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Contextos Clínicos, 7(1):37-48, janeiro-junho 2014

© 2014 by Unisinos - doi: 10.4013/ctc.2014.71.04

Entre bruxas e lobos: o uso dos contos de fadas na


psicoterapia de grupo com crianças

Among witches and wolves: The use of fairy tales


in group psychotherapy with children

Flavia Cambruzzi Sbardelotto


Psicóloga. Rua Vereador Cibeli, 396, Bairro Planalto, 95180-000, Farroupilha, RS, Brasil.
fcambruzzi@gmail.com

Tagma Marina Schneider Donelli


Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Av. Unisinos, 950,
Cristo Rei, 93022-00, São Leopoldo, RS, Brasil. tagmad@unisinos.br

Resumo. O presente estudo objetivou investigar a utilização dos Contos de


Fadas como intervenção em um grupo de crianças, pacientes de um ambula-
tório de Saúde Mental, encaminhadas por dificuldades na aprendizagem ou
relacionamento social. Partiu-se da ideia de que os Contos de Fadas contêm
material simbólico para ajudar a criança a elaborar seus conflitos, interagin-
do na capacidade de fantasiar, e com isso contribuindo no desenvolvimento
dos processos de simbolização e criatividade. Pretendeu-se, com esse estu-
do, responder se a utilização dos Contos de Fadas poderia ser uma ferra-
menta para ajudar nos processos de simbolização e criatividade, através da
avaliação antes e após realização do grupo. Participaram do estudo quatro
crianças, com idades entre seis e nove anos e seus pais. Para a coleta dos
dados, foram utilizados os prontuários, uma entrevista inicial com os pais,
uma entrevista com a criança, aplicação do Teste das Fábulas e do HTP (Hou-
se, Tree and Person), e a realização de um grupo terapêutico com duração de
10 encontros. Observou-se que os contos de fadas foram importantes den-
tro do grupo para o acesso da problemática de cada um dos participantes,
tornando-se possível a realização de intervenções, possibilitando a nomea-
ção dos afetos. Observou-se, através dos testes, que, ao final dos encontros,
as crianças obtiveram ganhos nos processos de simbolização, além de uma
melhora das queixas iniciais.

Palavras-chave: contos de fadas, psicoterapia de grupo, crianças.

Abstract. This study aimed to investigate the use of Fairy Tales as interven-
tion in a group of children, patients from a mental health clinic, who were re-
ferred because of learning or social relationship difficulties. We started from
the idea that Fairy Tales have symbolic material to help children elaborate
their conflicts, help their capability to fantasize and, therefore, contribute
to the symbolization and creativity processes. This study aimed to answer
if the use of Fairy Tales could be a tool to help the symbolization and cre-
ativity processes, through evaluations before and after the group activity
happened. Four children from age six to nine and their parents took part
in this study. The data was composed of psychological charts, an initial in-
terview with the parents, an interview with the child, the Fairy Tales test,
the HTP (House, Tree and Person) test and 10 therapeutic group meetings.
Entre bruxas e lobos: o uso dos contos de fadas na psicoterapia de grupo com crianças

We observed that the fairy tales were important in the group to access each
participant’s issues, making the interventions possible and allowing them to
name their affections. We observed through the tests that at the end of the
group meetings the children achieved gains in the symbolization processes,
besides improvements in their first complaints.

Keywords: fairy tales, group psychotherapy, children.

Introdução buir para conter esse medo (Bettelheim, 2007;


Gutfreind, 2010).
A maioria das crianças cresce ouvindo As histórias ensinam à criança que é inevi-
contos de fadas. Essas histórias, repletas de tável o ser humano achar-se frente às dificul-
bruxas, princesas e príncipes, dão espaço, na dades graves da vida. Entretanto, mostram
vida adulta, para outras histórias envolven- que, se a pessoa tiver coragem para enfrentar
do outros heróis, que estão na televisão, nos essas provações, por mais injustas que pos-
jornais, em diversos meios de informação. sam ser, ela poderá superar todos os obstácu-
As metáforas continuam existindo e fazendo los e vencer no final. A criança necessita que
parte da nossa comunicação. Sabe-se que o lhe sejam atribuídas sugestões simbólicas de
lobo mau que come vovós não existe, mas, no como lidar com os conflitos existenciais, para
entanto, essas histórias transmitem mensagens assim, amadurecer com segurança. Assim, os
que são úteis na vida das pessoas, mensagens contos de fadas são ricos nesses aspectos, pois
interpretadas como uma moral. São essas me- falam exatamente dos problemas existenciais
táforas que possibilitam alcançar metas dentro de todos nós e, ao mesmo tempo, garantem o
da psicoterapia, que a fala por vezes não con- final feliz, pois, seja lá o que acontecer, sem-
segue alcançar, ajudando assim a promover pre haverá o clichê “feliz para sempre” (Bette-
mudanças importantes no curso da terapia lheim, 2007).
(Alves, 1999). A história do conto em si não diz respeito
Sabe-se que, nos contos de fadas, assim à realidade externa, mas eles dizem dos pro-
como nos mitos, há a presença de representa- blemas interiores do homem, e o que interes-
ções arcaicas do psiquismo humano. Ou seja, é sa no conto não são as informações acerca da
possível observar, dentro dos contos, expres- realidade, mas sim aquilo que nos toca inter-
sões simbólicas que se relacionam com aspec- namente. O conto é escrito de maneira muito
tos psíquicos arcaicos, como, por exemplo, a simples, o que ajuda a simplificar também as
fantasia de devoração, o sentimento de rejei- situações (Bettelheim, 2007).
ção ou de vazio, que são encontrados simbo- Observa-se, com a utilização dos contos de
licamente através de personagens e enredos e fadas, que esse recurso produz uma melhora
que habitam o inconsciente de todos nós (Cor- em diversos aspectos da vida imaginária da
so e Corso, 2006; Schneider, 2008). criança, bem como da possibilidade de elabo-
Essas representações servem de instru- ração de conflitos. A partir do momento em
mento para acessar representações do começo que a criança passa a sentir prazer em ouvir
da vida psíquica, que se encontram em nível e contar histórias, desenvolve-se a criativida-
inconsciente. Esse acesso possibilita o surgi- de, que está relacionada à melhora na saúde
mento daquelas memórias que são evocadas mental das crianças. Esses espaços traduzem
inconscientemente e que causam, em muitos experiências novas que estimulam a criança a
casos, sintomas ou simplesmente compõem a interessar-se pelo seu funcionamento psíquico,
forma de ser e de pensar (Corso e Corso, 2006; além de ajudar no desenvolvimento do pensar
Schneider, 2008). (Gutfreind, 2010)
Os contos de fadas oferecem, dessa forma, Com os achados em estudos envolvendo
muitas representações para os conflitos e nos os contos de fadas, nota-se que essa inter-
fazem acreditar que não há mais o que temer, venção oferece às crianças a possibilidade de
sendo assim, eles ajudam a criança a lidar com recontar, reouvir e reviver suas próprias his-
o medo “daquilo que não tem nome”, passan- tórias para, a partir disso, construí-las, con-
do a nomear um interlocutor (a bruxa, o lobo tá-las, expressá-las e, sobretudo, elaborá-las
mau, a madrasta, o feitiço, etc.) que vai contri- (Gutfreid, 2010). Os contos fornecem muitos

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elementos simbólicos que a criança utiliza contatados por telefone e foi agendada uma
para elaborar seus conflitos através da narra- entrevista inicial, durante a qual foram apre-
tiva (Corso e Corso, 2006). sentados os objetivos e a proposta da pesquisa,
Partindo dos pressupostos apontados na re- e, posteriormente, assinado o Termo de Con-
visão da literatura, o presente estudo objetivou sentimento Livre e Esclarecido. Após entre-
utilizar os contos de fadas como instrumento vista com os pais, foi realizada uma entrevista
de intervenção mediadora na Psicoterapia de lúdica com a criança e aplicação do Teste das
Grupo com crianças que foram encaminhadas Fábulas (Cunha e Nunes, 1993) e o teste HTP
a um ambulatório de saúde mental, onde se (Buck, 2003). Quando finalizada essa etapa,
pretendeu responder se a utilização dos con- iniciou-se o denominado Grupo de Contos de
tos de fadas como recurso terapêutico em um Fadas, sendo utilizados, para fins de pesquisa,
grupo de crianças poderia favorecer, através dez encontros, destacando-se que a proposta
de avaliação antes e após a participação no de intervenção continuou acontecendo após a
grupo, a ocorrência de mudanças na capacida- finalização da pesquisa, e nenhuma das crian-
de de simbolização e criatividade infantil. ças ficou sem atendimento. Todos os proce-
dimentos foram filmados para contribuir na
Método análise dos dados e, ao final, as crianças foram
reavaliadas através dos testes descritos ante-
A partir de uma abordagem qualitativa, foi riormente (Fábulas e HTP).
utilizado o delineamento de Estudo de Casos Todos os procedimentos da pesquisa fo-
Múltiplos, de caráter longitudinal, que visou ram realizados nas dependências do CAISME.
avaliar os sujeitos antes e após a intervenção, A devolução dos resultados se deu após a con-
tanto individualmente quanto a partir do con- clusão do estudo e foi repassada aos pais de
texto grupal em que estavam inseridos. Tam- forma individual. A instituição também rece-
bém se caracteriza, metodologicamente, como beu uma devolução dos resultados, dada de
uma pesquisa-ação. A pesquisa-ação pressu- maneira coletiva aos profissionais que com-
põe a participação do pesquisador na situação põem a equipe do local.
a ser investigada. Visa, de maneira sistemática,
transformar as realidades observadas a partir Resultados e discussão
da observação e do conhecimento (Fonseca,
2002). Para a realização dos dez encontros gru-
A Pesquisa-Ação é uma investigação de pais, foram disponibilizados 16 contos esco-
cunho social que é realizada associando uma lhidos pela terapeuta em consonância com as
ação ou participação, com um problema cole- preferências de cada criança, observadas na
tivo, onde pesquisador e participantes estão entrevista individual. Em cada encontro, foi
envolvidos de forma participativa. A Pesqui- escolhido e lido um conto, sendo que aqueles
sa-Ação tende a envolver, então, um planeja- lidos foram retirados e não estavam disponí-
mento, um diagnóstico, uma ação, uma obser- veis nos encontros posteriores. A leitura dos
vação e uma reflexão, todos encadeados em contos foi realizada pela terapeuta, pois, se-
um ciclo (Fonseca, 2002). gundo Gutfreind (2010), há a necessidade de
Participaram da pesquisa quatro crianças cativar a atenção da criança para que ela des-
encaminhadas ao Centro de Atenção Integra- frute da riqueza da história e, assim, garantir
do em Saúde Mental (CAISME) que ocupavam um melhor entendimento do enredo.
a lista de espera para atendimento em Psicolo- Os encontros tiveram duração de uma hora
gia da unidade. Os participantes foram: Davi, e foram divididos em três etapas: leitura do
de 06 anos, com queixa de ansiedades e difi- conto, desenho e brincadeira livre. Em todos
culdades de ir para a escola; Ana, de 09 anos, os encontros, as crianças quiseram desenhar e,
com queixas de mudança de comportamento e geralmente, faziam-no em silêncio, demons-
desinteresse pela escola após o falecimento do trando que aquele era um momento para ela-
pai; Diogo, de 07 anos, com queixa de agitação boração do que foi evocado com o conto.
e desatenção e, por fim, Lucas, de 07 anos, com Após os desenhos, as crianças optavam por
queixa de agitação e agressividade. Todos os brincar, sendo que foram disponibilizados na
nomes utilizados neste estudo são fictícios. sala diversos brinquedos, estruturados e não
Após consentimento da direção do local estruturados. Foi feita uma caixa de brinque-
e aprovação do Comitê de Ética em Pesqui- dos do grupo, com animais, soldadinhos, fan-
sa, sob nº 11/111, os pais das crianças foram toches, carrinhos, panelinhas e coroas de prin-

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cesa. Além disso, havia outra caixa pertencente vezes, buscando o olhar da terapeuta. Tam-
à sala de atendimento do Serviço de Psicolo- bém acompanhavam atitudes mais agitadas,
gia, com diversos carrinhos, aviões, bonecos e como mexer-se na cadeira, mexer na mesa,
armas de plástico. Também foram oferecidos pegar o livro da mão da terapeuta e, em algu-
brinquedos não estruturados, como blocos de mas vezes, conversas paralelas. Com o passar
madeira em diversos formatos, peças de encai- dos encontros, os olhares fixaram-se mais na
xar de plástico, e peças para construção daqui- terapeuta e demonstraram mais interesse em
lo que a imaginação deles permitisse. Os jogos ouvir o conto, diminuindo a agitação duran-
de regras eram retirados da sala em cada en- te a escuta. Através dos olhares, foi possível
contro para que as crianças pudessem utilizar convidar as crianças a entrarem no mundo do
os brinquedos para estimularem a imaginação conto, viajarem para terras distantes e lá se de-
através da brincadeira, possibilitando um mo- pararem consigo mesmas, e, assim, ajudá-las
mento de representar o conto ou deixar vir à a elaborarem seus conflitos (Gutfreind, 2010).
tona aquilo que fora evocado. Os contos escolhidos para os encontros fo-
Em oposição ao que muitas vezes percebe-se ram, na ordem do primeiro ao décimo encon-
no trabalho com crianças, o grupo não demons- tro: Chapeuzinho Vermelho, Rapunzel, A Bela e a
trou preferência por contos considerados de Fera, O Patinho Feio, Peter Pan, Pinóquio, Os Três
meninas ou meninos, sendo que meninos esco- Porquinhos, A Gata Borralheira, Branca de Neve e
lheram contos como A Gata Borralheira, Branca os Sete Anões, e João e o Pé de Feijão.
de Neve e A Bela e a Fera. Em nenhum momento, Observou-se que alguns contos foram mais
as crianças citaram que certos contos eram con- mobilizadores do que outros. Alguns contos
siderados mais femininos que outros. agitavam o grupo, outros acalmavam. Foi pos-
Em quase todos os encontros, as crianças sível perceber que contos modernos, como Pi-
trouxeram, de maneira espontânea, situações nóquio e Peter Pan, desencadearam uma catarse
de briga, tanto na escola como em casa. Fala- grupal, marcada pela agitação e pela competi-
vam de como ficavam nervosas com alguns co- ção. Porém, os contos clássicos desencadearam
legas e de como é difícil controlar os impulsos vivências mais arcaicas, ligadas aos conflitos
de raiva. Geralmente, esses conteúdos foram de cada criança.
evocados durante os desenhos, e, por vezes, Bettelheim (2007) fala da importância do
apareceram nas brincadeiras, como no caso de uso dos contos clássicos e de tradição oral,
Ana, que será descrito mais detalhadamente a lidos na íntegra, que, cheios de arcaísmos,
seguir. vinculam-se aos arquétipos do inconsciente
Durante a leitura do conto, observou-se coletivo, sendo que os contos mais modernos
que crianças tendiam a antecipar a história, fa- acabam por se vincularem mais ao incons-
lando daquilo que iria acontecer com os perso- ciente do próprio escritor. Com isso, os con-
nagens. Essa capacidade de antecipação é en- tos modernos não possibilitam as associações
tendida como saudável e terapêutica, uma vez livres e os devaneios, contribuindo pouco na
que isso demonstra a capacidade de pensar e reparação das dificuldades da criança. Pode-se
imaginar não apenas o conto, mas sua própria
perceber que, após leitura dos contos moder-
história (Gutfreind, 2010).
nos, houve uma maior agitação grupal e uma
Essa antecipação também sugeriu uma ne-
maior dificuldade de expressão no desenho.
cessidade de aliviar a tensão causada pelos
conflitos da história, o que acontecia em pra-
ticamente todos os encontros, em que, por ve- Os personagens dessa história
zes, discutiam sobre os personagens, expondo
a sua opinião sobre o enredo. Em contos como A partir desse momento será realizada uma
Rapunzel e Patinho Feio, as crianças diziam que exposição sobre os participantes dessa pesqui-
não teriam dado o bebê para a bruxa ou aban- sa, realizando uma descrição dos casos e as
donado o pequeno pato, dando assim, um análises do processo de cada um.
novo rumo para as suas próprias histórias e
aliviando as tensões provocadas pela evocação O príncipe da Rapunzel
de um conteúdo sádico (Gutfreind, 2010).
O olhar tornou-se importante analisador Davi tem seis anos de idade e frequenta a
neste grupo. Nos primeiros encontros, as primeira série do ensino fundamental. Em en-
crianças pareciam ansiosas pelo fim da leitu- trevista com a mãe, a mesma conta que Davi
ra, e seus olhares pareciam mais evasivos, por começou a apresentar tiques nervosos, que

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geralmente se apresentavam na forma de chei- a partir do seu olhar, que fitava a terapeuta e
rar os dedos e levá-los ao topo da cabeça. Esse mostrava-se interessado pelas figuras do livro.
comportamento rítmico geralmente aparecia Assim, ao longo dos encontros, Davi foi sendo
junto da agitação e em situações de nervosis- contagiado pelas histórias. Os contos possuem
mo, como, por exemplo, ir para escola ou sair material simbólico necessário para cativar a
de casa sem a mãe. criança, porque fala de seus conflitos, em nível
Além disso, Davi começou a apresentar di- inconsciente, oferecendo-lhe também o con-
ficuldades de relacionamento na escola, não forto das angústias, por isso, o conto é capaz
gostava de ficar perto de outras crianças, de- de cativar (Gutfreind, 2010).
sejando ficar mais isolado. Em casa, os tiques Observou-se que o conto da Rapunzel foi
apresentavam-se também, porém, com menos importante para Davi diminuir sua ansiedade
frequência do que em situações estressoras de separação. Davi ouviu essa história no se-
fora de casa. gundo encontro, em que foi possível perceber
Durante a avaliação, por diversas vezes, o quanto ela lhe foi mobilizadora. Durante a
Davi pergunta onde está a sua mãe, pedindo atividade com desenhos, Davi reproduz um
para ir ao banheiro para verificar se ela está lá menino empinando uma pipa, que fora inter-
fora. A partir da entrevista com Davi, pode-se pretado pela terapeuta como uma forma de al-
confirmar que o mesmo estava passando por cançar algo que estivesse alto, como uma torre,
uma ansiedade de separação, além da dificul- mostrando também a sua necessidade de liga-
dade em brincar e estabelecer vínculos com ção com ela, representada pelo fio que empina
outras crianças. a pipa.
Sabe-se que chega um momento em que a Rapunzel, em sua essência, fala de uma
criança necessita separar-se da mãe para de- mãe possessiva, tanto na figura do desejo da
senvolver-se e explorar o mundo, e, segundo genitora, quanto na da clausura da bruxa. Vale
Winnicott, a capacidade da mãe suficiente- ressaltar que, na grande maioria dos contos,
mente boa de iludir o bebê constituirá tam- a figura da mãe boa, que geralmente desapa-
bém a base para sua tarefa em desiludi-lo, e rece logo ao início do conto, como em Branca
provocar essa separação. A partir da interação de Neve, Cinderela e Rapunzel, e a bruxa ou
dos dois, entre a realidade interna subjetiva e a a madrasta malvada se referem igualmente às
realidade externa objetiva, surgirá um espaço figuras maternas.
intermediário de ilusão. Esse espaço, chama- No conto Rapunzel, a simbiose é marcada
do de espaço potencial encantará a criança que simbolicamente pelos longos cabelos da per-
passará a manipular essa realidade externa, sonagem, como um cordão umbilical, o qual
estabelecendo-se em um jogo no interno e no a bruxa utiliza para subir a torre. Simbolica-
externo, onde agregará um objeto transicional. mente, essa torre expressa a clausura da rela-
Esse objeto transicional será como extensão ção simbiótica, havendo, na figura da mãe má
do seio materno, estando, ao mesmo tempo, (bruxa), a impossibilidade em sair, ou seja, de
na realidade externa e na interna, e ajudará crescer. Apenas com a chegada do príncipe, o
a criança a separar-se dessa mãe de maneira que vai demonstrar o crescimento dessa meni-
saudável. Segundo a perspectiva winnicottia- na, e a necessidade de ela se afastar dessa mãe,
na, perturbações nesse espaço potencial impli- será rompido o cordão simbiótico. Isso ocorre
cam uma dificuldade de elaboração simbólica, quando a bruxa corta a trança de Rapunzel, or-
onde a criança apenas fantasia acerca do obje- denando-lhe a ficar no deserto, gerando, com
to, mantendo uma posição defensiva e de ne- isso, a quebra do vínculo com ela. Porém, o re-
gação (Winnicott, 2000). encontro com o príncipe garante o final feliz,
Desde o primeiro atendimento, Davi dei- que alivia a tensão do conto, mostrando sim-
xou claro que não gostava de contos de fadas, bolicamente que é possível sobreviver, crescer
apenas de histórias em quadrinho. Também e ser feliz após o rompimento simbiótico com
expôs que gostava de brincar sozinho, com o a mãe (Corso e Corso, 2006). O conto da Ra-
video game ou em jogos de computador, geral- punzel foi muito importante para que Davi su-
mente bastante violentos. No primeiro encon- perasse a ansiedade de separação, diminuindo
tro do grupo, Davi permaneceu boa parte do assim, os tiques, que não apareceram mais no
tempo em pé, encostado em uma das paredes. grupo após o quarto encontro. Essas mudan-
Durante a leitura dos contos, Davi perma- ças também foram observadas pela mãe, que
necia quieto e bastante atento. Foi possível relata para a terapeuta que Davi fica mais tran-
observar seu crescente interesse pelos contos quilo quando ela sai para trabalhar, solicitan-

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do, às vezes, que ele realize algumas tarefas O brincar por si só é terapêutico; estimular e
sozinho, as quais antes, sem a mãe, geravam conseguir que a criança possa brincar já é a pró-
muito sofrimento. Segundo Gutfreind (2010), pria psicoterapia. Quando brinca, a criança traz
o conto de fadas possibilita à criança expressar os objetos e os fenômenos que pertencem à re-
o seu sentimento, aliviando com isso as suas alidade externa. Assim, a criança põe para fora
tensões internas. um pouco do material onírico, e, brincando com
O Teste das Fábulas apresentou grandes ele, há a possibilidade de nomear os sentimen-
diferenças entre sua primeira aplicação e o re- tos e as angústias, aliviando um pouco o que
teste. Foi possível identificar uma melhora sig- está em nível inconsciente (Winnicott, 1975).
nificativa no processo de simbolização, pois, O teste HTP mostrou diferenças principal-
na primeira aplicação, houve uma grande di- mente no desenho da casa. Na primeira apli-
ficuldade em elaborar as histórias, sendo que, cação, a casa está inclinada para a esquerda,
no reteste, Davi construiu enredos com início, como se estivesse desabando, sendo que, no
meio e fim, conforme mostra o Quadro 1. inquérito, Davi responde que essa casa é fei-
Observaram-se, na primeira aplicação, res- ta de ferro, o que pode significar um ambiente
postas mais inseguras e ansiosas, havendo di- extremamente concreto, mas que também pa-
versos choques. Já na segunda aplicação, rea- rece estar em fase de desabamento. Uma casa
lizada após os dez encontros grupais, pode-se de ferro torna-se semelhante a uma prisão, que
perceber uma melhora, principalmente dessa simbolicamente estava relacionada a manei-
ansiedade, pois as respostas se apresentam ra como Davi sentia-se no ambiente familiar,
mais claras, menos ambivalentes e com menos onde era tratado como um “mini-adulto”. Du-
choques. As Fábulas 2 e 10, do aniversário de rante o período das sessões grupais, foi tam-
casamento e do sonho mau, respectivamente, bém realizado um trabalho com a mãe, a fim
foram as que geraram maior mobilização na de que ela pudesse estimular Davi a brincar
primeira aplicação, sendo que, na segunda em casa com objetos não estruturados. Obser-
aplicação, elas foram mais desenvolvidas, sem vou-se, então, na segunda aplicação, o dese-
a necessidade de defesas. nho da casa sem inclinação, uma casa de tijolos
Com o passar dos encontros, Davi foi se com uma chaminé por onde agora podem sair
contagiando com os contos e com as brinca- todas essas pressões (Buck, 2003).
deiras. Passou a ter mais facilidade em brincar Para Davi, o grupo não significou apenas
em grupo, buscando os brinquedos por con- um espaço para ajudá-lo na resolução de seu
ta própria, além de mostrar, ao final do gru- conflito, mas também foi importante para con-
po, uma maior criatividade nas brincadeiras. tagiá-lo com a magia dos contos de fadas, le-
A criança, que, ao iniciar, tinha dificuldades vando-o para um mundo onde ele pudesse so-
em brincar com brinquedos não estruturados, nhar e brincar, com menos ansiedades e medos.
passou a se divertir dentro do grupo, cons- Assim, o príncipe da Rapunzel conseguiu sair
truindo torres, robôs e castelos com blocos de da prisão que era sua torre, sem sofrimentos.
madeira. Além disso, conseguia inventar his-
tórias durante a sua brincadeira que, por ve- A bela do grupo
zes, se relacionavam com o conto da Rapun-
zel, como no caso das construções de torres, Ana, nove anos, cursava a quarta série do
onde tentava montar diversas torres, bem al- ensino fundamental. Era uma menina alta para
tas, fazendo-as cair e divertindo-se com isso, a sua idade, sempre falante e disposta a tudo.
ou seja, libertando-se da prisão da torre, da Após a morte do pai, semanalmente, Ana e sua
simbiose com a mãe. mãe visitavam o túmulo onde foi sepultado.

Quadro 1. Comparação entre as duas aplicações do Teste das Fábulas.


Chart 1. Comparison between the two applications of the Test of Fables.

1º Aplicação 2º Aplicação
F2 – TR: 3’. “Porque ele F2 – TR: 2’. “Porque ele tá triste e ...e (P) porque ninguém dava
tava triste (P) não sei (P) bola pra ele (P) porque eles tavam entertidos na conversa (P) acaba
vai ver que porque, não a conversa e eles vão ali no quintal, as pessoas que não davam bola
sei, não sei” pra ele conversam com ele (P) daí acaba bem”.

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Para Bowlby (2002), a perda dos pais é vis- rindo necessidade de segurança e ansiedade.
ta pela criança como um desamparo. Os senti- A exposição das raízes que estão visíveis pode
mentos mais comuns nesse caso são o medo do ser comum em crianças, mas também sugerem
abandono, a saudade e a raiva por não poder uma necessidade sólida de apoio. Na segunda
ver mais aquele que se foi. Nota-se que perdas aplicação, a árvore se torna grande, sugerindo
repentinas são consideradas as mais difíceis uma busca de satisfação supercompensatória,
de elaborar em virtude do afetamento da oni- fantasia e/ou hipersensibilidade. O mesmo
potência infantil, pois é mostrado para criança acontece com o desenho da pessoa, que, na
que seus pais não são superpoderosos, como primeira aplicação, é pequeno e, na segunda,
inconscientemente ela imaginava. grande, chegando a ser cortada pela margem
De todos os contos lidos, A Bela e a Fera foi da folha (Buck, 2003).
muito importante para ela, pois possibilitou O desenho da árvore ajuda a compreen-
acessar o seu luto. Durante a leitura deste con- der como é a visão do individuo em relação
to, Ana permaneceu em silêncio, absorvendo ao seu ambiente. Já o desenho da pessoa mos-
a história. Após o desenho que faz da sua casa tra a capacidade do indivíduo para atuar em
em cima de uma rua asfaltada, o que mostra relacionamentos e “para submeter o self e as
como essa casa necessita de apoio firme, de relações interpessoais a uma avaliação crítica
um alicerce sólido, ela fala do pai. objetiva” (Buck, 2003, p. 57). A mudança entre
Após essa conversa, Ana vai para a casinha um desenho pequeno que significa, no caso da
colocando diversos bonecos dentro e Lucas árvore, uma inadequação em lidar com o am-
pede para ajudá-la. Acham uma coroa e brin- biente para um grande, que sugere uma busca
cam de ser a rainha, e Ana se torna a Bela. Lu- pela satisfação, mostra que Ana passou a com-
cas pede também para colocar a coroa em sua preender melhor o que está acontecendo em
cabeça, dizendo ser um rei. Esse momento tra- seu ambiente, apesar das pressões que ainda a
duziu a cumplicidade de Lucas em relação à afetam. Já o desenho da pessoa, que se torna,
história de Ana, pedindo para brincar com ela no segundo momento, grande e com tronco e
na casinha e dando-lhe uma coroa para que ela braços desproporcionais ao restante, sugere
se sentisse a Bela. A brincadeira foi necessária impulsos insatisfeitos e vividos de forma in-
naquele momento para que ela elaborasse tensa (Buck, 2003).
toda a angústia que surge após ouvir o conto Os desenhos de Ana, bem como o Teste das
e falar do pai. Fábulas, mostram que ainda permanecem os
O Teste das Fábulas mostrou, na primeira conflitos anteriores, porém, o que mudou foi a
aplicação, o choque ao responder à Fábula 4, sua forma de percebê-los e senti-los. As pres-
correspondente ao enterro. Esse choque per- sões ambientais ainda são sentidas e ainda há
manece também na segunda aplicação, sendo sofrimento, porém, percebe-se que Ana procu-
que, nesta, Ana também faz uma auto-refe- ra meios de lidar com esse turbilhão de sen-
rência à sua própria história, falando que foi timentos, encaminhando-se para a fantasia.
visitar seu pai no cemitério (Cunha e Nunes, Percebe-se, conforme estudado por Bettelheim
1993). (2007), que os contos ajudam a criança a no-
A maioria das respostas de Ana são ativas mear os seus sentimentos, o que garante um
e adaptadas, com exceção da Fábula 3, do cor- alívio das tensões causadas pelos conflitos.
deirinho, em que a resposta foi ambivalente
e não adaptada na primeira aplicação, sendo O Pinóquio espertalhão
que, na segunda, torna-se adaptada, porém,
ainda com ação ambivalente. A principal di- Diogo, sete anos, estudava na primeira sé-
ferença entre as duas aplicações está na com- rie do ensino fundamental, numa escola no in-
posição das histórias, que se tornaram mais terior da cidade. Sua família é grande, e Diogo
longas, com enredos mais consistentes, com é o filho caçula de oito irmãos, já adultos. Esses
início, meio e desfecho (Cunha e Nunes, 1993). irmãos são do primeiro casamento do pai, que,
O teste HTP mostrou diferenças significati- após separação, casa-se novamente. O pai, já
vas no desenho da árvore e da pessoa. No pri- aposentado, é quem cuida do filho durante o
meiro desenho, a árvore era pequena, possuía dia, enquanto a esposa trabalha. Os irmãos são
chão e raízes expostas, sugerindo regressão, casados e assim, Diogo, enquanto não está na
preocupações consigo mesma além da fixação escola, passa o dia em casa com o pai, sem ter
no passado. Houve rotação da página sugerin- muito contato com outras crianças, pois onde
do grande angústia. Há linha do solo, suge- moram não há muitas famílias.

Contextos Clínicos, vol. 7, n. 1, janeiro-junho 2014 43


Entre bruxas e lobos: o uso dos contos de fadas na psicoterapia de grupo com crianças

Nos encontros, Diogo se mostrou sempre Diogo – Não, eu e o Lucas saímos caminhando,
agitado e inquieto. A dificuldade maior foi em né?
brincar e dividir os brinquedos com as demais Terapeuta – Quando a gente faz alguma coisa
crianças. Durante a leitura do conto, enquanto que a gente sabe que não é legal, a gente pode
dizer que fez aquilo. Às vezes é sem querer, por
as demais crianças ouviam atentamente a his-
impulsividade, porque a gente não pensou, mas
tória, Diogo movimentava-se exageradamente acabou errando. Não tem nada de errado a gente
na cadeira, puxava o livro e prejudicava a aten- assumir o que faz. Todos nós erramos.
ção dos demais.
A mesma dificuldade que os pais coloca- Durante esse diálogo Diogo permanece in-
ram sentir em impor limites em Diogo também quieto, dando risadas e falando sobre outros
foi sentida pela terapeuta quando do trabalho assuntos. Foi possível observar a inquietação de
desenvolvido dentro do grupo, pois, por diver- Ana, que pede a todo instante para o Diogo ou-
sas vezes em que o limite foi imposto, Diogo vir e parar de mexer nos brinquedos. Essa atitu-
demonstrou resistência e dificuldades em acei- de traduziu a dificuldade de Diogo em compre-
tar. Sua agitação, por vezes, acabava agitando ender os limites e aceitar as regras. A terapeuta
as demais crianças, sendo que Diogo tentava, a se utiliza da metáfora do conto para ajudá-los a
todo o momento, chamar a atenção. Uma das compreender os seus comportamentos.
principais dificuldades era em relação a algu-
mas regras do grupo, como, por exemplo, a Terapeuta - Essa história fala exatamente do que
de não mexer na câmera que filmava o grupo. aconteceu aqui hoje. Fala de um menino que não
Em praticamente todos os encontros, Diogo conseguia seguir ordens. O que o Gepeto dizia
levantava de sua cadeira para ver a câmera, pro Pinóquio?
mexendo nela. Em todos esses momentos, foi Ana – Para ir pra escola.
lembrado o combinado, porém, Diogo parecia Lucas –E ele foi pro parque de diversões, ele de-
sobedeceu o pai dele.
não dar importância aos acordos firmados.
Terapeuta – E o que a fada dizia para ele?
Foi possível observar que Diogo apresen-
Lucas – Volte para casa depois da escola.
tava comportamentos de liderança dentro do Terapeuta – E que era para ir pra escola tam-
grupo, convocando os demais para as brinca- bém.
deiras. Porém, em diversas situações, possuía Diogo – Ahhhhh
uma postura de líder negativo, convocando Terapeuta – E o que Pinóquio fazia?
outras crianças para brincadeiras que trans- Lucas – Ele ia primeiro brincar com os amigos
grediam as regras estabelecidas pelo grupo. deles e daí ele se atrasava muito pra ir.
Todos esses comportamentos também eram Terapeuta – Exato, ele acaba não indo pra esco-
percebidos na escola e em casa. Além de uma la, ele desobedecia a ordem do pai e da fada.
Lucas – O Gepeto foi pro mar procurar o Pinó-
posição de líder, era possível perceber que
quio e daí apareceu uma baleia daí a baleia engo-
Diogo representava também um papel de “sa- liu o Gepeto junto, e no final ele resgatou o pai
botador”, que, segundo Zimmerman (1993), dele.
trata-se do paciente que, através dos seus re- Terapeuta – Isso aí. Porque o Pinóquio acabava
cursos resistenciais, acaba por criar obstáculos desobedecendo a ordens.
no andamento da tarefa grupal. Ana – Não, mas só do pai dele.
No sexto encontro, tendo sido lido o conto Diogo – Mas daí quando a fada, como viu que ele
do Pinóquio, Diogo pede água para beber, sen- é bem corajoso e obediente, transformou ele num
do que as demais crianças também dizem sen- menino de verdade que nem no sonho dele.
tir sede. Entre o tempo de a terapeuta entregar
os copos a Diogo e Lucas e sair para buscar o Após esse diálogo, que possibilitou falar
terceiro copo para Ana, Diogo convida Lucas a que Pinóquio também tinha dificuldades em
competir para ver quem bebe tudo antes. Após respeitar as regras e os limites, foi possível
isso, Diogo sai correndo da sala em direção ao observar que as crianças passam a desenhar
bebedouro, sendo que, no trajeto, bate em uma e brincar mais tranquilas. Ao final, Lucas fala
pessoa que por ali passava. A terapeuta con- que Gepeto fora engolido por uma baleia, mas
versa com as crianças, conforme a transcrição que foi salvo por Pinóquio. Essa frase mostra a
a seguir: eles que o mundo lá fora é cruel, mas que, se as
pessoas agirem de maneira sincera e respeita-
Terapeuta –Vocês percebem que isso não é um rem os outros, podem sair vitoriosas.
comportamento legal, vocês acabam saindo cor- A fala final de Diogo mostra que, com a
rendo... metáfora do conto, foi possível introjetar que é

Contextos Clínicos, vol. 7, n. 1, janeiro-junho 2014 44


Flavia Cambruzzi Sbardelotto, Tagma Marina Schneider Donelli

possível um final feliz, mediante nossos esfor- complexidade, muito ligados ao complexo de
ços, respeito e cumprimento das regras. Esse castração, além de uma grande dificuldade de
momento foi muito importante para Diogo, vínculo com a mãe. O que se observou foi que
pois sua principal queixa era exatamente a di- os dez encontros grupais não foram suficien-
ficuldade no cumprimento de regras. tes para atuar na sua problemática, sendo que
Pinóquio, no inicio da história, não é um os contos de fadas foram mais importantes
menino de verdade, e sim um boneco de ma- para trabalhar questões comportamentais vis-
deira, manipulável. Mas a sua rebeldia e seus tas na relação grupal, os quais possivelmente
repetidos erros, além do sentimento de culpa e não teriam surgido se fossem em um espaço
do remorso, transformam-no em um humano, individualizado.
que erra e que se culpa. Pinóquio fala dessa re-
alidade, em que errar é humano e insistir nos O pequeno borralheiro
erros é mais humano ainda, pois isso que é a
neurose, voltar sempre para o mesmo cami- Aos quatro anos, Lucas foi retirado do con-
nho já percorrido (Corso e Corso, 2006). vívio da mãe, usuária de drogas, e, ao entrar
Assim, foi possível perceber que a aproxi- na escola, as queixas começam a surgir. O pai,
mação do descumprimento de regras dentro em entrevista, conta que o filho é muito que-
do grupo, com a história do Pinóquio, ajudou rido, atencioso e carinhoso. Porém, às vezes,
as crianças a nomearem aquela atitude como nota que o filho sofre com a falta da mãe.
humana e normal, porém, que também se pre- O pai fala, durante a entrevista, das dificul-
cisa ter coragem para assumir as coisas que dades em lidar com a mãe de Lucas, que pos-
são feitas de errado se se tem a pretensão de suí comportamento bastante opositor. O casal
que tudo termine bem. separou-se logo após o nascimento da terceira
O Teste das Fábulas mostrou poucas dife- filha, momento em que também a mãe volta a
renças entre a primeira e segunda aplicação. fazer uso de drogas. A partir daí, o pai passou
De todas as crianças, Diogo foi visivelmente a morar com o filho mais velho de doze anos, e
o que menos apresentou melhoras da queixa a mãe ficou com a guarda da filha recém-nas-
inicial. Ao final do grupo, Diogo manteve as cida e de Lucas. Nesse período, por diversas
mesmas dificuldades do inicio, principalmen- vezes, a mãe fez uso de drogas na frente do
te no que tange à agitação e à aceitação dos li- menino. Além disso, o pai relatou que a mãe
mites. Porém, observou-se que Diogo, ao final, sempre teve dificuldades no cuidar dos filhos.
passou a ter mais paciência para escutar e mais Parte-se da ideia de que é através do con-
facilidade em dividir os brinquedos. tato com a mãe que se torna possível ao bebê
Tanto na primeira como na segunda apli- fantasiar a existência de um seio criado somen-
cação, foi possível observar marcas fortes do te para ele para atender as suas necessidades.
processo de castração, sendo evidenciado pela Com isso, cria-se uma fantasia e uma ilusão de
angústia e pela ansiedade. Também há o medo, que, quando ele desejar esse seio, ele lhe será
fantasia de abandono e rejeição. Mostrou-se apresentado. Falhas nesse processo, tanto no
também a ansiedade marcada pela presença de que diz respeito à mãe suficientemente boa
uma mãe controladora e possessiva que não per- quanto na preocupação materna primária, po-
mite a independização do filho, causando-lhe di- dem provocar um retorno ao estado de isola-
ficuldades no seu processo desenvolvimental. A mento (Lima, 2010).
figura do pai como castrador é evidenciada, sob Essas falhas no processo de ilusão podem
o símbolo do jacaré, que não permite a criança acarretar dificuldades na criatividade, dificulda-
entrar no açude (símbolo da mãe), causando-lhe de de nomear os significados e organizar expe-
também forte angústia, caracterizada pela mobi- riências. Porém, se, ao contrário, o desenvolvi-
lização que a fábula lhe trouxe. mento ocorrer de forma saudável, o bebê passa a
O teste não apontou melhoras na cons- conseguir experimentar o mundo através de sua
trução das histórias, ou seja, no processo de ilusão e representar esses mundos, ou seja, sim-
simbolização, sendo que, nas duas aplicações, bolizar. E vai ser a partir dos objetivos transicio-
houve dificuldades em compor uma história, nais e do brinquedo que constituirá a capacidade
sendo necessários diversos questionamentos de formar os símbolos (Lima, 2010).
da terapeuta para estimulá-lo a imaginar e A relação com a mãe sempre foi muito per-
concluir a fábula. meada pelas dúvidas e pelos medos. Nunca
No caso de Diogo, foi possível observar foi dito a Lucas de maneira clara o porquê de
que os conflitos internos são de uma maior sua mãe ter se afastado da família e o porquê

Contextos Clínicos, vol. 7, n. 1, janeiro-junho 2014 45


Entre bruxas e lobos: o uso dos contos de fadas na psicoterapia de grupo com crianças

de ela não o visitar mais. Isso gerou sentimen- produziu quatro ao todo. No primeiro, ele faz
tos confusos para ele, que estão sendo difíceis o planeta terra e diversos outros planetas ao
de compreender, onde há raiva, mas também redor; no segundo, desenha pai, irmão e irmã
há saudade. na chuva; no terceiro, faz um vulcão com uma
Winnicott fala da mãe suficientemente boa, casa e um menino; e, no último, faz um ônibus,
porém, é importante destacar que esse termo onde, após questionado, diz estar a mãe.
não faz alusão a uma mãe que não falha. Essa É interessante notar a sequência dos dese-
mãe vai sustentar o processo de ilusão, mas nhos e o simbolismo por detrás deles, onde se
também de desilusão, da presença e da ausên- percebe um ambiente conturbado e violento,
cia, da satisfação e da insatisfação, do amor e simbolizado pelo vulcão onde está a sua casa.
da frustração. Essa mãe falha e deve saber fa- O pai e os irmãos estão na chuva, mostrando
lhar (Winnicott, 2000). A função materna diz desproteção, além de Lucas sentir-se distante
respeito à relação estabelecida entre mãe e o de todos, pois se desenha em folha separada,
bebê, além dos seus cuidados e a forma como em cima de um vulcão, ou seja, em cima dos
ela lhe proporciona o holding (Santos, 1999). conflitos familiares, onde pode haver culpa
Nota-se que a ausência da mãe é grande por tudo o que está acontecendo. A mãe está
e vai de encontro à necessidade de Lucas de retratada no quarto desenho, dentro de um
um holding materno. A ausência da mãe é vista ônibus, ou seja, indo embora dessa família. Os
principalmente pelos desenhos, os quais retra- desenhos mostram como Lucas percebe toda
tam o menino, seus irmãos e seu pai. Quando essa situação familiar, além de uma possível
questionado sobre a mãe, ele simplesmente culpa por esta mãe ter saído do lar.
fala que ela não vive mais com eles. Em apenas O conto da Gata Borralheira pode ter aju-
um desenho, Lucas faz referência à mãe que dado Lucas a internalizar e dar sentido a todos
está dentro de um ônibus, indo embora. os sentimentos que provocam sua agressivi-
Observou-se que o conto da Gata Borralhei- dade. Esse conto fala especialmente sobre a
ra foi importante para desencadear pensamen- rivalidade fraterna e sobre como a persona-
tos a respeito das brigas com o irmão e, prin- gem se sente dominada por suas meias-irmãs.
cipalmente, para trabalhar essa problemática. Seus interesses acabam sendo sacrificados pela
Observou-se que o conto abriu caminho para mãe, ou madrasta, sendo obrigada a fazer tra-
acessar essa problemática, conforme transcrito balhos sujos e não recebendo nenhuma gra-
a seguir: tificação por isso. É exatamente assim que se
sente a criança quando há a rivalidade fraterna
Lucas – Teu irmão te bate, Ana? (Bettelheim, 2007).
Ana – Não. Lucas talvez se sinta como a Gata Borra-
Terapeuta – Teu irmão te bate, Lucas? lheira, que tem irmãos com quem compete
Lucas – Sim, e eu quebro a cara dele. pelo olhar da mãe madrasta. Não foi por nada
Diogo – Mas ele não pode. É que nem no jogo, se que Lucas se lembrou das brigas com o irmão
um te dá um chute tu não pode dá outro de volta,
e de como isso é agressivo às vezes, porque
se não tu vai expulso.
Terapeuta – Se no jogo é assim, na vida, será
realmente é assim que ele se sente, dividindo
que é como? a atenção do pai com os dois irmãos e tendo
Ana – É o mesmo. a mãe afastada do lar. Os desenhos de Lucas
Lucas – E depois, eles têm que me bater. mostram exatamente isso, quando ele desenha
Terapeuta – E por que ele te bate? os irmãos em uma folha e se desenha em outra
Lucas – Porque o jogo é pros dois, daí eu “intico” em cima de um vulcão, onde há intensidade,
ele e ele leva. instabilidade. Esse afastamento fala da riva-
Terapeuta – Como a Gata Borralheira teria se lidade, fala de como é difícil ter irmãos e de
virado nessa história, porque ela tinha irmãs e a dividir a atenção dos pais.
madrasta que eram más com ela, e o que ela fez,
No Teste das Fábulas, foi possível perceber
ela batia nas irmãs, ela brigava com elas?
Diogo – Não fazia nada. que as respostas fazem bastante referência à
Terapeuta – O que ela fazia então? figura materna. Na Fábula 1, há a separação
Diogo – Ela não batia nas irmãs. dos pais, um para cada galho, e da criança
Terapeuta – E no final, não deu tudo certo, sem também, mostrando a fantasia de rejeição que
bater nas irmãs? é marcada também na Fábula 2. Na Fábula 4,
a morte é de uma mulher, figura possivelmen-
Ao final desse diálogo, Lucas pede para te representativa de sua mãe. Foi necessário
fazer mais desenhos, sendo que, nesse dia, “matar” simbolicamente essa mãe para aliviar

Contextos Clínicos, vol. 7, n. 1, janeiro-junho 2014 46


Flavia Cambruzzi Sbardelotto, Tagma Marina Schneider Donelli

as mobilizações das fábulas anteriores. É pos- da testagem, as respostas ao teste foram mais
sível também uma má resolução do complexo elaboradas, com maior riqueza de conteúdos,
de castração, aparecendo esse conteúdo nas tendo maior definição no início, no meio e no
Fábulas 5, 6 e 10, sendo que há um medo por desfecho. Quanto à criança que não apresen-
esse processo. tou melhoras significativas, entendeu-se que
Na retestagem, é possível observar que ain- os dez encontros não foram suficientes para
da há a fantasia de rejeição e abandono, prin- dar conta de toda a problemática e dos con-
cipalmente na Fábula 1. Porém, as respostas flitos por ele apresentados. Pode-se apontar
são mais ricas em conteúdo, com início, meio e que alguns casos requerem um trabalho mais
fim, o que mostra uma melhora nos processos intenso e com tempo não previamente deter-
de simbolização. Além disso, alguns conflitos minado, bem como com a utilização de outros
que na primeira testagem apareceram carrega- dispositivos psicoterapêuticos.
dos de defesas, na retestagem, mostram uma Pode-se dizer que não foram apenas os
evolução, com respostas mais claras e sem a contos de fadas que contribuíram para uma
necessidade de defesas. Ainda pode haver a melhora nas queixas inicias e nos processos de
rejeição, porém, a forma como Lucas dá o final simbolização, mas o próprio convívio e as tro-
para a fábula mostrou que esse sentimento já cas de experiências vivenciadas entre o gru-
não é tão carregado de culpa. po. O objetivo da terapia grupal é contribuir
O que se pode notar no caso de Lucas é que para a mudança intrapsíquica dos pacientes
ele obteve, com a participação no grupo e com através da vinculação, da troca de ideias e
o acesso aos contos, a possibilidade de nome- sentimentos. A participação de outras crian-
ar seus sentimentos, que de tão confusos lhe ças estimula a espontaneidade que, por vezes,
causavam agressividade, raiva e irritabilidade. aparece apenas no convívio grupal. A troca
Sua melhora é vista principalmente na calma entre o grupo favorece certo espelhamento,
com que realizava as tarefas e, principalmente, onde cada um pode ver no outro os mesmos
na facilidade em falar daquilo que lhe incomo- temores e fantasias e sentir-se acolhido e com-
dava. preendido (Leviski, 1997; Castro, 2009).
Além disso, o momento do desenho mos-
Considerações finais trou-se muito importante para a externaliza-
ção dos sentimentos e o desenvolvimento da
Foi possível constatar uma relação entre os criatividade. Em todos os encontros, as crian-
fenômenos observados no grupo de Contos ças desenharam após a narração do conto, sen-
de Fadas e a teoria apresentada especialmen- do proposto que elas desenhassem aquilo que
te por Bettelheim (2007), Gutfreind (2010) e elas tivessem vontade em relação ao conto, ou
Corso e Corso (2006). Essas observações com- sobre outros assuntos. O objetivo desse mo-
petem especialmente ao fato de os contos ofe- mento foi deixar a criança livre para expressar
receram às crianças a possibilidade da nomea- artisticamente aquilo que o conto mobilizou.
ção dos afetos, capacidade e desenvolvimento Da mesma forma que o desenho, a brinca-
da imaginação e simbolização, orientação aos deira também se tornou um momento impor-
seus conflitos, principalmente a partir da iden- tante para elaboração dos conteúdos evocados
tificação com os personagens. no conto. Observou-se que cada conto afetou
Os contos de fadas tornaram-se terapêu- as crianças de maneira particular, pois algu-
ticos, pois atuaram na construção de espaços mas brincadeiras eram mais calmas, enquanto
transicionais, onde cada criança teve a possi- outras eram permeadas pela agitação e pela
bilidade de identificação com algum perso- competição.
nagem específico que se aproximou de sua Segundo Winnicott (1975), o brincar se de-
problemática e, a partir dessa relação, pôde senvolve no espaço potencial através da opor-
ressignificar sua própria história, diminuindo tunidade de a criança experienciar a separação
assim, a angústia, a agressividade, as ansie- da figura materna. O brincar permite a cons-
dades e os medos. Através dos resultados do trução do self, pois, através da manipulação
Teste das Fábulas, foi possível observar que dos fenômenos transicionais entre a realidade
os contos de fadas contribuíram significante- interna do individuo e a realidade comparti-
mente no desenvolvimento da capacidade de lhada, ele se encontra e permite a construção e
imaginação e simbolização dos participantes. a existência do eu.
Três das quatro crianças avaliadas mostra- Dessa forma, foi possível concluir que o
ram melhoras nesse processo, pois, na segun- Grupo de Conto de Fadas possibilitou a me-

Contextos Clínicos, vol. 7, n. 1, janeiro-junho 2014 47


Entre bruxas e lobos: o uso dos contos de fadas na psicoterapia de grupo com crianças

lhora nas queixas iniciais de cada criança, que GUTFREIND, C. 2010. O Terapeuta e o Lobo. Rio de
competiam especialmente à agressividade e à Janeiro, Artes e Ofícios, 237 p.
ansiedade, além de contribuir no desenvolvi- LEVISKY, R. 1997. Grupos com Crianças. In: D. ZI-
MERMAN; L.C. OSORIO, Como trabalhamos com
mento dos processos de simbolização. Obser-
grupos. Rio de Janeiro, Artes Médicas, p. 311-320.
vou-se que isso se deu através da presença dos LIMA, R.B. 2010. O Dispositivo Conto de Fadas na clí-
contos como mediador nesse processo, mas nica com crianças que apresentam Déficit de Simbo-
também pela utilização do desenho como fer- lização. São Leopoldo, RS. Dissertação de Mes-
ramenta terapêutica e do brincar como possi- trado. Universidade do Vale do Rio dos Sinos,
bilidade de elaboração. 117 p.
SANTOS, M.A. 1999. A Constituição do Mundo Psí-
quico na Concepção winnicottiana: uma Contri-
Referências buição à clínica das psicoses. Psicologia, Reflexão
e Crítica, 12(3). Disponível em: http://www.scie-
ALVES, L.M.C. 1999. Metáforas como Ferramenta lo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
Terapêutica. Pensando Famílias, 1(1):62-68. 79721999000300005&lng=pt&nrm=iso. Acesso
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BOWLBY, J. 2002. Apego e Perda. Vol. 1, A natureza do SCHNEIDER, R.E.F. 2008. Oficina de Contos de Fadas:
vínculo. São Paulo, Martins Fontes, 496 p. Uma intervenção com crianças asmáticas, a partir do
BUCK, J.N. 2003. HTP, Casa-Árvore-Pessoa, técnica enfoque Winnicottiano. São Leopoldo, RS. Disser-
projetiva de desenho: Manual e Guia de interpreta- tação de Mestrado. Universidade do Vale do Rio
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dizagem. Fortaleza, Universidade Estadual do Submetido: 08/08/2013
Ceará, 127 p. Aceito: 16/12/2013

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