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Curando com

histórias
O narrar e as Consultas
Terapêuticas

Gilberto Safra
O Narrar
❖ Quando narramos uma situação, nós buscamos
compartilhar uma experiência de vida. (Nicolai Leskov)
❖ Para que uma pessoa possa experienciar e narrar é
necessário que esteja enraizada em uma comunidade
pois é a presença do Outro que possibilita a sua
constituição, ofertando-lhe um si mesmo. (Gilberto Safra)
❖ Observamos uma multiplicação cada vez mais
intensa do fenômeno do desenraizamento – produz
uma fratura nos fundamentos da condição humana.
Desenraizamento
❖ Étnico – é a perda das referências étnicas de uma
pessoa.

❖ Ético – é quando as relações humanas não são


norteadas por um senso de responsabilidade mútua.

❖ Estético – a pessoa é colocada em um espaço e um


tempo que não tem relação com a sua corporeidade.
Extinção do narrar
Substituindo o narrar há diversas informações mas
o narrar, como possibilidade do experimentar, do
durar, do compartilhar desaparece da vida humana.

Formas de adoecimento contemporâneo:


➢ Ausência de si mesmo
➢ Formas peculiares de solidão
➢ Não pertencimento
➢ Mal estar infinito
➢ Pânico
Narrar no processo clínico
❖ A narrativa guarda íntima relação com o ciclo de vida
humana: a processualidade.

❖ A narrativa é composta por passado, presente e


futuro e contempla as facetas do existir humano: a
origem, o caminho e o fim.

❖ A narrativa, ao mesmo tempo em que possibilita o


tempo da experiência, sempre nos apresenta para
além do tempo.
Método de consulta terapêutica – Gilberto Safra
❖ Sempre que possível, integrar a família ao processo de
ajuda à criança – recuperam a autoconfiança.
❖ Entrevista inicial com os pais, deixando para estes a
decisão de levar a criança ou não; entrevista com a cça e
último encontro com os pais.
❖ Ouvir as queixas e angústias de forma compreensiva,
evitando o desenvolvimento de ansiedades persecutórias e se
colocar como colaborador.
❖Depois de pensarem juntos e compreenderem melhor a
angústia da criança, discute-se meios de intervenção.
Método de consulta terapêutica – Gilberto Safra
Para a aplicação do método, é necessário alguns
pressupostos básicos para que o procedimento tenha
efeito:

- Grau de perturbação que uma criança apresenta


para saber se neste tipo de trabalho poderemos dar
a ela o tipo de ajuda que necessita. Na consulta será
abordado apenas a angustia emergente.
Classificação psicopatológica proposta por Knobel (1977) -
fenômenos regressivos da infância:
1. Processos regressivos normais: aparecem ao longo do
desenvolvimento e, apesar de serem considerados anormais pelos
pais, são na verdade fenômenos normais.
2. Processos regressivos reativos: surgem em uma cça que, embora
venha se desenvolvendo normalmente, reage a acontecimentos
externos que para ela são excessivos.
3. Processos regressivos desestruturantes: há uma desestruturação
da personalidade da cça, que vinha se desenvolvendo bem, isto a
leva a organizações de quadros neuróticos e, às vezes, psicóticos.
4. Processos regressivos reestruturantes: a cça sofre um processo
regressivo severo, em que aquilo que foi conquistado em termos de
desenvolvimento é perdido, levando-a até mesmo a estruturar-se em
uma modalidade de organização que não corresponde nem à sua
idade nem a de seu nível psicológico.
1.Processos regressivos normais: aparecem
ao longo do desenvolvimento e, apesar de
serem considerados anormais pelos pais, são
na verdade fenômenos normais.

2. Processos regressivos reativos: surgem em


uma cça que, embora venha se
desenvolvendo normalmente, reage a
acontecimentos externos que para ela são
excessivos.
Entrevista com os pais
Dois objetivos básicos:
- Obter dados da dinâmica familiar e de aspectos do
desenvolvimento da criança.
- Lidar com a ansiedade dos pais.

1. Permitir aos pais explorarem a problemática da criança,


livremente, para que possam expressar suas angústias e
preocupações a respeito.
❖ Ego auxiliar – refletir junto com os pais sobre a situação
de sofrimento da criança e relacionando-a com
aspectos da realidade que parecem contribuir para o
incremento da sintomatologia da criança.
2. A entrevista só começa quando a ansiedade dos
pais estiver razoavelmente contida, só então será
benéfico formular questões que busquem esclarecer
ou levar os pais a refletir sobre as informações
comunicadas durante a entrevista.
HIPÓTESES

❖ Nesta entrevista, é útil dizer aos pais o que se


pensa a respeito da situação apresentada, das
possíveis causas da problemática, para que
também tenham a oportunidade de opinar sobre
a condição apresentada. COOPERAÇÃO DOS PAIS
Entrevista com a criança
❖ Oferecer um espaço (potencial) onde a criança possa
se comunicar, ser compreendida, mas sem ser
invadida.
❖ Crianças de 3 a 8 anos – comunicação através da
expressão lúdica.
❖ Crianças acima de 8 anos costumam comunicar-se
verbalmente.
❖ Alternativa – jogo do rabisco
O uso da história infantil
❖ Objetivo: oportunidade de comunicar as suas
vivencias psíquicas a alguém disposto a compreende-
las.
❖ Ação terapêutica pois é tentando comunicar suas
angústias a alguém que a criança consegue superar
dissociações de seu self, o que em si mesmo é
benéfico, porque é por meio deste trabalho que ela
terá a possibilidade de transformar suas experiências
em elementos toleráveis e passíveis de serem
colocados sob domínio de seu gesto.
O uso da história infantil

❖ É desejado inserir nas histórias possíveis soluções de


conflito.

A história deve conter a angústia básica da criança, suas


organizações defensivas, o tipo de relação objetal e um
personagem que funcione como um objeto
compreensivo, que ajude na integração do self
O uso da história infantil
❖ Para a elaboração da história, convoca-se os pais,
após o contato com a criança.

❖ Resgata-se com os pais o valor do brinquedo como


forma de comunicação, a fim de que possam vir a
entender as ansiedades e comunicações da criança.

❖ Dar exemplos do significado de algumas brincadeiras


ou jogos da criança – associações dos pais com outros
episódios ou brinquedos similares, além da
compreensão por um processo de empatia.
Último encontro com os pais
❖ Elaborar a história junto com os pais criando diversas
versões do mesmo tema.
Objetivo: criar uma história para o seu filho, que seja
útil naquele momento e também que possam
aprender um método por meio do qual possam aliviar
a angústia da criança em outras situações.
❖ Terapêutica para os pais – favorece que eles possam
resgatar funções muitas vezes esquecidas no seu
passado, que lhes permitem utilizar a capacidade
imaginativa e criativa para elaboração de angústias de
forma lúdica.
Ilustração de caso clínico – Caso Miriam
Primeira consulta
Miriam era uma menina de seis anos de idade quando veio à consulta.
Seus pais resolveram traze-la porque chorava com facilidade e dormia com
muita dificuldade, pois tinha pesadelos constantes. Observando estes sintomas,
os pais acharam que seria necessário procurar ajuda profissional.
Os pais relataram que Miriam sempre tinha sido uma menina
bastante carinhosa e sensível às reprimendas, chorando magoada após ser
chamada à atenção.
Não possuía irmãos e na escola parecia ter um bom relacionamento
com as crianças. A mãe e o pai trabalhavam; a mãe por meio período,
enquanto a filha se encontrava na escola.
Desenvolvimento:
Segundo os pais, não houve problemas. Apenas, com a idade de 3 anos
e dois meses, foi submetida a uma operação cirúrgica para remoção das
amídalas. Quando soube que seria submetida a este tipo de cirurgia, ficou muito
amedrontada e dizia que tinha medo de morrer. Foi para o hospital chorando.
Nessa ocasião, os pais ficaram bastante mobilizados, com dó da criança e
comentaram, ao relatar o fato, que quase choraram juntos.
Os pesadelos de Miriam referiam-se à morte de si mesma ou a de um
dos pais. Quando isso acontecia, acordava gritando. Geralmente a mãe ia ao
quarto da filha e procurava acalma-la, ficando ao lado dela até que
adormecesse novamente.
Durante a entrevista, os pais se mostraram cooperativos, desejando
cuidar da filha. Era difícil para eles suportar o choro e a dor da filha. Toda vez
que mencionavam um episódio de choro ou pesadelo, ficavam tensos e com os
olhos marejados de lágrimas.
Foi dito a eles que parecia ser difícil para eles verem Miriam
chorando ou com medo. Isto serviu como estímulo para que eles
expressassem as suas angústias e descrevessem a si mesmos como muito
emotivos, afirmando que a cada vez que observavam a filha em uma dessas
condições ficavam com o coração partido.
O pai disse que possivelmente estavam querendo dar à filha uma
vida cor de rosa, sem sofrimentos, mas que era difícil não fazer nada para
alivia-la dessas situações difíceis. Foi dito então que era possível tentar
acalma-la, mas não impedir que situações difíceis ocorressem.
Em seguida conversaram sobre as expectativas que tinham de si
mesmos como pais. Dessa forma foi possível discutir um pouco o ideal de
pais que buscavam alcançar. No final da entrevista foi marcado um
encontro com Miriam.
Segunda consulta
Miriam entrou na sala de jogos sem dificuldades. Observou os objetos
sobre a mesa demoradamente. Foi explicada a ela a razão daquela consulta. A
menina explorou cada um dos brinquedos e escolheu os bonecos, com os quais
formou uma família. Em seguida, pegou o fogãozinho e as panelas para criar
uma cozinha e com as massinhas de modelar fez a comida. Em um segundo
momento ela era mãe de todos os bonecos e cuidava deles, dando de comer.
Enquanto fazia comida, a água às vezes derramava sobre a mesa e ela, logo em
seguida, buscava um pano para enxugar o que tinha sido molhado. Procurava
deixar a sua casinha bem em ordem. Em determinado momento tomou um
caminhão onde colocou os seus filhos para passear. Nesse passeio uma das
rodinhas do caminhão casualmente caiu. Neste momento o jogo é interrompido
pela angústia, que adquiriu proporções intensas. Miriam se inibiu, olhou
assustada o brinquedo sobre o chão, dizendo que queria ir embora e não queria
mais brincar.
O analista interveio, dizendo que ela parecia assustada porque
a roda do caminhão tinha saído e que possivelmente ela estava achando
que tinha destruído o caminhão. Miriam continuou hesitante durante
algum tempo, até que trouxe o carrinho com a roda para o analista,
para que este a colocasse novamente. Como se tratava de uma tarefa que
ela poderia realizar, o analista lhe disse que ela parecia acreditar que
só destruía e que não podia consertar, e a convidou a tentar.
A menina ficou parada alguns instantes, até que resolveu
tentar, conseguindo recolocar a roda no carrinho. Isto feito, parecia
estar aliviada. Tomou o caminhão com os bonecos e continuou o passeio
da família de bonecos, até que a sessão terminou.
Terceira consulta
Durante a primeira parte da entrevista com os pais, se
conversou sobre o modo de ser de Miriam. Foi comentado que ela temia
ser incapaz de sentimentos construtivos e achava que os objetos
facilmente se destruíam. Desejava ser como a mãe e procurava ser
ordeira ao extremo, como uma tentativa de controlar o que imaginava
ser a sua capacidade destrutiva.
Os pais verbalizaram que tinham pensado muito a respeito do
que havia sido conversado na primeira entrevista e achavam que
funcionavam de maneira semelhante ao que naquele momento se
discutia a respeito da filha.
Formulou-se uma história que pudesse ser útil a Miriam, que
seguiu o seguinte padrão:
O uso da história infantil

❖ É desejado inserir nas histórias possíveis soluções de


conflito.

A história deve conter a angústia básica da criança, suas


organizações defensivas, o tipo de relação objetal e um
personagem que funcione como um objeto
compreensivo, que ajude na integração do self
Era uma vez uma princesinha que vivia no castelo com o rei, seu
pai, e a rainha mãe. A princesinha vivia em um quarto reluzente,
porque para ela tudo precisava estar em ordem. Os brinquedos
que ela tinha, nem gostava de usar, pois tinha medo que se
estragassem. Aliás, esta princesinha tinha medo que tudo se
estragasse, até o rei papai e a rainha mamãe. A princesinha às
vezes sonhava em como seria bom quando ela pudesse ser como a
rainha, usar os vestidos que a rainha usava, sentar naquele trono
que ela achava tão bonito... Mas quando ela começava a sonhar,
logo ficava com medo, porque temia que se sonhasse estar no
lugar da rainha mãe, alguma coisa ruim pudesse acontecer com
a rainha. Mas um dia a rainha mãe, vendo que a princesinha
nem brincava e às vezes nem dormia de tão preocupada,
conversou com ela e perguntou à princesinha o que se passava.
A princesinha falou: Ah! Eu tenho tanto medo que as coisas
se estraguem e que você e o papai morram! A rainha mãe
falou: Ah! Agora eu entendo. Sabe, filhinha, às vezes a gente
fica chateada e com raiva por muitas coisas. Você pode, às
vezes, até ficar com raiva de mim, porque gostaria de sentar
no meu trono, mas não é por isso que eu vou morrer. E não é
só porque você fica chateada que uma coisa quebra. Eu sei
que você fica triste quando as coisas estragam porque você
gosta delas e também da mamãe e do papai. A princesinha
respirou aliviada e ficou satisfeita por perceber que não era
tão "estragona" assim.
Essa história foi contada várias vezes a Miriam por seus pais,
principalmente após um pesadelo ou um momento de angústia.
Segundo informações dos pais, os pesadelos deixaram de ocorrer,
Miriam ficou menos manhosa e passou a brincar mais livremente. Neste caso,
um fator importante na boa evolução parece ter sido resultado de uma melhor
condição psicológica dos pais para lidar com o que se passava. A história, na
verdade, tinha auxiliado a menina e também os pais, pois essa era uma
família em que a mentalidade predominante era depressiva. Havia um temor
da vitalidade, que era compartilhado por todos. Ao contar a história para a
criança os pais eram beneficiados tanto pelo conteúdo da mesma quanto pelo
fato de que, ao observarem a evolução da filha, reafirmavam para si mesmos
as suas capacidades de cuidar.
Referências

SAFRA, Gilberto. Curando com histórias. São


Paulo: Edições Sobornost, 2005.

SAFRA, Gilberto. O narrar. In: Desvelando a


memória do humano: o brincar, o narrar, o corpo,
o sagrado, o silêncio. São Paulo: Edições
Sobornost, 2006.

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