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Adolescência e as contribuições da promessa

para a reorganização do psiquismo moral

Hellen Fonseca de Sousa da Costa Vale


Marta Helena de Freita

Introdução

Na literatura psicológica contemporânea, o desenvolvimento


moral tem sido mais frequentemente abordado a partir de uma
perspectiva cognitiva e educacional. Neste trabalho, sem negar a
relevância das contribuições para a psicologia jurídica provindas destes
campos, nos propomos a aprofundar esta temática, abordando-a a partir
de uma leitura fenomenológica da psicanálise, em Freud, mas também
fundamentando-se em outros autores que têm contribuído para a
compreensão da organização psíquica e moral e suas ancoragens e
decorrências psicossociais na cultura contemporânea.
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CAPÍTULO 6 – Adolescência e as contribuições da promessa
para a reorganização do psiquismo moral

Voltamo-nos mais especificamente para o modo como se dá a


reorganização psíquica moral durante a adolescência e sobre o papel
ocupado pela promessa no decorrer deste processo. A promessa, no
sentido em que a tomamos neste capítulo, é sinônimo de compromisso e
aliança, vinculando-se, portanto, àquilo que, em psicanálise, se
convencionou chamar de “Supereu”.
Após uma fundamentação teórico-conceitual e algumas reflexões
sobre os modos de ser adolescente na sociedade contemporânea,
procuramos ilustrar o exposto com trechos de falas de adolescentes que
participaram de uma pesquisa realizada em Brasília. A partir disso,
discute-se as implicações da promessa para o acompanhamento clínico
de adolescentes na contemporaneidade.

Adolescência ontem e hoje

A adolescência de outrora correspondia a um período de


constituição psíquica dos sujeitos em transição, decorrido entre a idade
infantil e a idade adulta. Era vista somente como passagem de uma fase
a outra. Hoje, isso mudou. A adolescência saiu daquele status de ser
somente um tempo de transição, para ocupar o lugar de fase do
desenvolvimento humano. Com isso, transformaram-se também os
elementos que compõem a formação do psiquismo do adolescente
contemporâneo, bem como suas construções éticas e morais. Podemos
dizer, então, que os tempos mudaram, a adolescência mudou, e a forma
como ela é concebida também mudou. Consequentemente, seu modo de
tratamento também acompanha tais mudanças.
Retomemos a origem do termo adolescência, a fim de
entendermos melhor onde esta se situava em sua origem e onde se situa
hoje, no contexto da sociedade contemporânea. Etimologicamente, a
palavra adolescência tem origem no Latim ad, que quer dizer ‘para’ +

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CAPÍTULO 6 – Adolescência e as contribuições da promessa
para a reorganização do psiquismo moral

olescere, que quer dizer ‘crescer’. Portanto, adolescência, em seu sentido


mais literal, significaria ‘crescer para’ Pereira & Pinto (2003). Ou seja,
crescer para ser adulto, cidadão e livre, ou pelo menos é o que se espera.
Por outro lado, o termo também deriva do latim adolescere, que significa
adoecer, enfermar. Deste modo, sua dupla origem etimológica sugere
uma etapa da vida com aptidão para crescer e, ao mesmo tempo, para
adoecer (OUTERAL, 1994).
Crescer e/ou adoecer são fenômenos inerentes à própria
etimologia da palavra e também à própria fase. A adolescência, já em sua
raiz, é conflituosa por si só. É reconhecida pelos clínicos como uma etapa
de conversão e desconversão e que acontece com muita rapidez. Não
obstante, pode ser entendida como uma crise necessariamente normal
e/ou desencadeante de transtornos psicológicos (ABERASTURY; KNOBEL,
1989). Em ambos os casos, o modelo sociocultural vigente reflete-se nas
construções identitárias dos jovens. De acordo com a psicanálise, o
adolescente, em seu trabalho de ressignificação de identidade, retoma o
édipo em segunda edição, com oportunidade de resolver problemas
infantis mal resolvidos, mas também com riscos de quebra, similarmente
ao que nos informa as etimologias da palavra.
Os fenômenos característicos do adolescente e suas dificuldades
a tempos vêm sendo assunto da literatura de diversas épocas, como, por
exemplo, na obra de Goethe (2006), “Os Sofrimentos Do Jovem Werther”,
marco inicial do romantismo, apresentando um jovem - e seus conflitos
- marcado por uma profunda paixão sem possibilidade de consumá-la.
Também no romance de Fiódor Dostoiévski (2015), “O Adolescente”, que
detalha a vida e os conflitos de um jovem de 19 anos numa relação
problemática com o pai e seu modo convencional de pensamento.
Contrapondo-se à visão sobre o conceito de adolescência
predominantemente naturalizante nos primórdios da psicologia e da

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CAPÍTULO 6 – Adolescência e as contribuições da promessa
para a reorganização do psiquismo moral

psicanálise. Aqui, mais uma vez, poetas e literatas se antecipam aos


cientistas e clínicos no que diz respeito aos fenômenos humanos.
Focamos essencialmente, neste trabalho, a adolescência e sua
relação com as vicissitudes típicas da modernidade. Isso não impede que
retornemos a épocas anteriores no intuito de ilustrar as mudanças
ocorridas. Ora, quando pensamos nos moldes de organização da
contemporaneidade, podemos dizer que são bem diferentes dos modos
de organização das épocas de Goethe (séc. XVIII), Dostoiévski (séc. XIX) e
até mesmo de Freud (séc XIX/XX). Naquelas épocas, o modelo de
referência era o modelo pai orientado, primava-se pela adultez, tendo em
vista que o jovem não gozava de muitos privilégios à época.
Diferentemente, nos primórdios do século XXI, podemos dizer que o
modelo de referência almejado é o da adolescência. Ou seja, a falência
dos referenciais paternos contribui para que o processo da adolescência
se mantenha esticado por longo tempo, colaborando no surgimento de
sintomatologias e novas formas de manifestações psicopatológicas
(OLIVEIRA & HANKE, 2017).
Deste modo, tanto a psicologia clínica quanto a psicanálise são
convidadas a pensar dispositivos clínicos novos para lidar com o
adolescente inserido nesta cultura. Logo, na tentativa de buscar aspectos
criativos para lidar com adolescentes desta cultura, apresentamos a tese
de que a promessa pode ser utilizada como dispositivo clínico a favor do
processo psicoterápico e, consequentemente, da construção psíquica do
adolescente em acompanhamento. Afinal, em psicanálise, não existe
pesquisa sem clínica e nem clínica sem pesquisa, sendo o saber e o
conhecimento construídos sempre a partir do encontro entre ambas.
Entendemos a promessa como ato que inaugura a aliança
terapêutica, que pode sustentar o processo, mesmo em caso de desejo
de desistência e de prevalência do mecanismo da resistência. Deste modo,
o compromisso (que nada mais é do que prometer com) levado a cabo

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entre a dupla terapêutica poderá sustentar o trabalho até o fim. Prometer


e cumprir proporcionam refinamento psíquico pela renúncia, como nos
ensina Freud (1911). Além de inaugurar a aliança, o prometer consolida
o modelo de organização superegóica do adolescente diante dos
movimentos pulsionais. Isto é, a promessa é aqui entendida como esteio
do dever ser e dos ideais, constituinte de uma parte da moral e do
supereu. Cabe ressaltar que aprofundaremos o assunto do supereu em
outro trabalho. No escopo deste capítulo, focaremos na promessa como
dispositivo inaugural dos vínculos, da aliança terapêutica, e seu papel na
formação do psiquismo moral do adolescente de nossa cultura. Além da
fundamentação teórica concernente, apresentaremos trechos de falas e
situações clínicas envolvendo adolescentes contemporâneos para
ilustrar esta tese.
É notória a presença e a necessidade, mesmo que
transversalmente, da aliança terapêutica como condição para
manutenção e continuidade do processo clínico em qualquer vertente
teórica da psicologia. Mas são poucos os estudos que tratam da aliança
terapêutica com adolescentes Cecchettini (2016). Mais raros, ainda, são
estudos que tratam da promessa ligada à clínica com adolescente (VALE;
MARTINS, 2017). Ora, parece que a clínica com adolescentes resguarda
suas peculiaridades e (im)possibilidades, desde o início (VALE, 2015).
Sabemos que a cultura atual é referida como a cultura do excesso
e da liquidez (BAUMAN, 2001). Sintomatologias associadas ao esse tempo
pedem urgência de estudos efetivos sobre o tema da adolescência. Como
exemplo caricatural, temos o fenômeno ocorrido em 2017, sobretudo no
Brasil, chamado de Baleia azul Berdinelli e Martín (2017). Além disso, de
modo geral e em escala global, temos a violência, a depressão e o suicídio
como principais fantasmas voltados à realidade dos adolescentes e das
instituições que os cercam (família, igreja, escola, Estado, medicina,
dentre outros). Conforme dados alarmantes da Organização Mundial da

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para a reorganização do psiquismo moral

Saúde (OPAS/OMS, 2018), o suicídio, segunda maior causa de morte entre


jovens de 15 a 29 anos, acomete mais de 800 mil pessoas. A primeira
causa é a violência.
Dados preocupantes e que, de certa forma, são reinterpretados
qualitativamente por autores igualmente contemporâneos e de extrema
relevância, como Balman (2001), Calligaris (2003), Lipovetski (2004),
Ávila (2011) e Monteiro e Macedo (2016), relacionando-as também às
mudanças significativas no tornar-se adolescente a partir das profundas
transformações sociais e culturais das últimas décadas. Hoje, temos a
adolescência aplaudida como ideal cultural a ser alcançado a qualquer
preço. Temos ainda a falta de parâmetros necessários à construção do
adolescente no mundo. Nossa cultura atual não oferece ao adolescente,
direção definida do que é ser adulto e seus diferentes papéis sociais.
Essas duas “ausências” devem ser levadas em consideração quando
pensamos nas ressignificações necessárias à fase.
Podemos dizer que, por conta do afrouxamento dos laços sociais,
a função paterna em derrocada pode ser uma ameaça à construção dos
adolescentes e ao pacto social civilizatório necessário a essa construção.
Sônia Alberti (2009), no livro “Esse sujeito adolescente”, intitula o quarto
capítulo com a frase “Viver é amarração”. A autora discorre sobre
passagem ao ato - acting-out - e ato suicídio em Freud e Lacan. Apresenta
o ato falho suicida como a desistência de apelar ao Outro do saber. Como
a falta de esperança em algo que poderia sustentar e a desistência das
amarrações necessárias à vida.
Concordamos com a autora, e entendemos que, de fato, viver é
amarração, é laço, é contato e também contrato, inclusive o contrato
social e o pacto civilizatório. Aproximamo-nos também das concepções
de Benveniste (2005) e Searle (1984), acreditando que essa amarração
pode ser dada por meio dos modos como o sujeito assume os verbos na
linguagem. Benveniste (2005) afirma que verbos como “jurar, prometer,

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garantir, certificar” demonstram, dentre outras coisas, a subjetividade


de quem os pronuncia, colocando aquele que diz tanto no lugar de dizer
como no lugar de assumir o que é dito. Eis, literalmente, o que o autor
referencia:

O mesmo verbo, segundo seja assumido por um ‘sujeito’ ou esteja


colocado fora da ‘pessoa’, toma um valor diferente. É uma
consequência do fato de que a própria instância de discurso que
contém o verbo apresenta o ato, ao mesmo tempo em que
fundamenta o sujeito. Assim, o ato é cumprido pela Subjetividade
na e pela linguagem instância de enunciação do seu ‘nome’ (que é
jurar), ao mesmo tempo em que o sujeito é apresentado pela
instância de enunciação do seu indicador (que é ‘eu’). (BENVENISTE,
2005, p.292).

Ademais, entendemos que os verbos jurar, prometer e se


comprometer são verbos que fazem o engajamento social, possibilitando,
assim, uma amarração ao Outro da civilização. A ligação que Freud (1930)
evidencia ao falar de Eros e pulsão de vida. Ora, percebemos que o Eros
freudiano, necessário à vida, às construções e às ligações, na sociedade
atual, vem sendo aniquilado pelo dever-ser e dever-ter a qualquer custo.
Potencializados pela era tecnológica, pelos avanços científicos, pela
mídia e pelo capitalismo, a promessa de realização do ideal, travestida
pelo ‘dever-ser’ e ‘dever-ter’, torna-se o principal sintoma da atualidade.
Presenciamos um contexto social mundial em que o imperativo
na sociedade é: seja sempre jovem, seja sempre feliz, você deve querer,
você deve e pode ter, você consegue, você pode, goze! Contanto, claro,
que tenha o aparato econômico necessário para isso! Isso retira o dever-
ser da posição de almejar o tornar-se uma pessoa integra, sábia, que
valoriza a honra, a evolução intelectual e o ideal, e abarca um dever-ser
de acúmulo de riquezas, que fantasiosamente produz um imaginário de
que se pode o que quiser, desde que se tenha o poder financeiro para
isso. Como aponta Ávila (2011), até poucas décadas atrás o adolescente
desejava com todas as suas forças tornar-se adulto, participar do mundo

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CAPÍTULO 6 – Adolescência e as contribuições da promessa
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dos adultos e ser reconhecido como tal; agora, entretanto, são os adultos
que primam por serem adolescentes, agindo, frequentemente, de forma
até descompromissada.
Então, nosso questionamento central é: como ficam as
construções do psiquismo moral desses sujeitos na sociedade
contemporânea - dita por alguns de pós-moderna - que tornou mais
complexa a entrada na vida adulta, chegando a potencializar o
prolongamento do processo adolescente ao ter como balizador principal,
do dever e da obrigação, o imperativo do gozo?
No intuito de responder à pergunta problema colocada acima,
temos como principal objetivo, neste texto, evidenciar os
entrelaçamentos entre a formação moral e os modos de
comprometimentos dos adolescentes de hoje. Partimos do princípio de
que entender sobre questões referentes às promessas e aos
compromissos pode servir como dispositivo clínico no trabalho
psicológico com adolescentes. Ou seja, prometer, comprometer-se e
cumprir são condições necessárias para que o adolescente saia da
condição de alienação diante do discurso social e se responsabilize por
suas palavras e/ou atos. Ato de promessa implica ato de renúncia,
favorecendo a construção do pacto civilizatório e, simultaneamente, das
identidades pessoais.
Nas análises, simultaneamente psicossociais e clínicas, de relatos,
depoimentos e situação clínica, desenvolvidas ao longo deste artigo,
procuraremos ilustrar com atos de fala que mostram o lugar da
adolescência nos dias de hoje. Deste modo, inicialmente apresentadas
em parágrafos, no intuito de evidenciar o teor do discurso, as vinhetas
serão comentadas, buscando situar uma direção geral de sentido. Os
recortes, a nível da frase, têm o intuito de apresentar a significação dos
verbos enquanto ato mental referente aos destinos pulsionais.
Essa tal adolescência

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CAPÍTULO 6 – Adolescência e as contribuições da promessa
para a reorganização do psiquismo moral

Compreendemos a adolescência como ligada diretamente ao


corpo, mas também e fundamentalmente, à cultura. Simultaneamente,
concordamos com a psicanalista argentina Alba Flesler (2012): o sujeito
não tem idades, mas sim, apresenta tempos. Nesta mesma linha de
raciocínio, Freud (1911) nos ensina que o inconsciente não pode ser
apreendido em termos de idade cronológica, mas sim, de modelos de
funcionamento. Assim, apesar de sabermos que é por conta de mudanças
corporais que a adolescência ascende, assumimos que, mais importante
que delimitar idade dos acontecimentos, é entender o modelo de
funcionamento acontecimental, construído mediante relações do corpo
vivido com a cultura e sociedade atual.
Vale lembrar, a título de exemplo, o que ressalta o autor Levisky
(1998): podemos encontrar, em nossa sociedade, sujeitos que vivenciam
o processo da adolescência de forma extremamente curta, devido às
contingências socioeconômicas que forçam o sujeito a mergulhar na vida
adulta sem ter tido tempo suficiente para amadurecer e elaborar seus
conflitos maturacionais. Mas, existem também aqueles que protelam ao
máximo essa vivência. Esses últimos são sujeitos cronologicamente
adultos, mas que estendem seu processo adolescente no tempo,
mantendo-se em um estado de dependência afetiva e econômica. Assim,
por medo de assumirem responsabilidades, prolongam o estado de
imaturidade por tempo indeterminado (GURSKI; PEREIRA, 2016).
O fenômeno da adolescência, encurtada pelas contingências
sociais e econômicas, fica evidente nas falas de adolescentes de hoje 3,
como os exemplos de W. e K, apresentados adiante. Na sequência, o
fenômeno da adolescência estendida será também exemplificado, com

3
Estes exemplos foram colhidos de entrevistas realizadas em pesquisa de
iniciação científica orientada pela primeira autora e devidamente submetida ao
comitê de ética em pesquisa – processo número CAAE:11831818.0.0000.8118.
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depoimentos daqueles que adiam as responsabilidades e decisões da


vida adulta, fazendo da adolescência o seu modo de vida.
W. é um adolescente do sexo masculino, de 17 anos. Quando
perguntado em qual período da vida considerava estar (criança,
adolescente ou adulto) ele responde:

Basicamente eu pulei a fase da adolescência (breve silêncio). Por


fatores familiares mesmo e por questões de responsabilidade
mesmo. Eu sou brincalhão e tudo mais. Eu gosto muito de brincar
com as pessoas, só que, na hora de ser sério, eu tenho que ser sério.
Então eu considero que estooouuu (mudança de entonação) indo
para a fase adulta, meio que, pulando a adolescência. Eu me
considero um adulto responsável já! Eu penso em muita coisa, eu
penso muito na responsabilidade de casa. Tanto nas
responsabilidades que não são minhas.

A referência de W. ao verbo dever, quando relata: “eu tenho que


ser sério”, evidencia sua organização moral. Ou seja, o dever o leva a ter
de pensar em muita coisa, inclusive em coisas que julga não ser da alçada
dele. Ele prima pelo dever em detrimento do querer, mesmo que isso
possa lhe causar um mal-estar e a sensação de não se sentir vivenciando
o processo adolescente do modo como a sociedade exige.
Assim como K., uma moça de 19 anos, ao responder à mesma
pergunta, diz:

Agora eu me considero adulta. Porque, eu senti o impacto, é, de


começar a enfrentar as responsabilidades, ter que ir atrás das coisas.
Porque, eu notei isso: que quando eu estava mais na minha fase de
adolescência, não era assim. Eu senti muito o impacto,
principalmente quando eu entrei na faculdade. E eu me sinto uma
adulta devido s responsabilidades. Isso veio, saindo do ensino
médio indo para a faculdade.

Neste caso, a frase “começar a enfrentar as responsabilidades e


ter que ir atrás das coisas”, também evidencia a ocorrência do dever - o
de se emancipar e responsabilizar-se pelas obrigações atuais e pelo
próprio devir - agora não mais atribuído ao outro.

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CAPÍTULO 6 – Adolescência e as contribuições da promessa
para a reorganização do psiquismo moral

Ambos os jovens associam o dever, a responsabilidade e a


autonomia à fase adulta. W. continua dizendo:

Bom, prá mim, ser adolescente é realmente: brincar, se divertir, é


geralmente não ligar pras coisas. Geralmente o que vejo, a maioria
dos adolescentes não ligando para as coisas, não se importando com
os valores. Os valores das coisas mesmo. Porque, como eles querem
diversão, que já foi impregnado que essa é a melhor fase, a fase que
tem que aproveitar e curtir.

Tal relato confirma que o modelo de adolescência ideal


internalizado no psiquismo de W. é o modelo de descompromisso e não
responsabilização das ações no mundo. A única cobrança, inclusive do
mundo adulto, é por aproveitar e curtir a fase. Isso evidencia que o
discurso social que predomina é o do anseio por anular a experiência
organizadora do sujeito, a castração. Deste modo, aquele que não
compartilha deste modelo experimenta sentimentos de inadequação e
impressões de não ter vivenciado ou ter atropelado a adolescência e
pulado diretamente para os compromissos adultos. W. sente que
renunciou à sua adolescência em detrimento das responsabilidades que
julga ser somente do mundo dos adultos.
Já a entrevistada K. considera que teve uma adolescência
conturbada por rupturas vivenciadas na escola com grupos de amizade.
Ela conta que sua saída da infância também foi impactante e que a
ruptura com o grupo do qual fazia parte a afetou muito, culminando no
comportamento de automutilação e marcando “negativamente” sua
adolescência e sua relação com os pais. Relata que, quando os pais
ficaram sabendo de suas automutilações, ficaram “muito mal”, mas
depois passaram a “não ligar mais”. Ou então a cobrar de K. amor e
gratidão por eles, e a se preocuparem com o que os outros iam pensar
deles se ela morresse. Sobre esse momento, a jovem diz: “a tristeza foi
substituída pela culpa (silêncio). Eu não sei se superei. Acho que eu superei

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para a reorganização do psiquismo moral

mais ou menos.” Isto é, agora ela tem como dever, imposto pelos pais,
manter-se viva, e além disso, ir em busca de sua emancipação. Uma forma
e tanto de superação, que coloca a jovem diante de novas exigências, mas
também diante da renúncia pulsional.
K. sente a ruptura da fase adolescente e sinaliza o caminho para
a fase adulta, ainda caracterizado pelo saber e não saber sobre as
responsabilidades e preocupações com o que ela chama de “coisas do
mundo adulto”. Fala de uma tomada de consciência:

Pra mim, adulto vai ser, você ser consciente das suas
responsabilidades, das suas decisões. Agora, adolescente, acho
que... é ainda não saber direito. Não ter o conhecimento da
importância dessas responsabilidades, sabe? Na adolescência, você
não tem preocupação das coisas adultas. De passar numa federal,
num curso. Tirar identidade, carteira de trabalho. Você não tem
consciência dessas responsabilidades.

Poderíamos incluir a responsabilidade do compromisso com a


alteridade e de ter de se manter viva? Ainda em seu relato, fala do
impacto que sentiu ao ter “de começar a enfrentar as responsabilidades
da vida e ter de ir atrás das coisas”, sobretudo quando terminou o ensino
médio e foi para a faculdade, demarcando bem os lugares e momentos
de mudança e de posições de autonomia e responsabilização no mundo.
A jovem hoje cursa psicologia.
Os dois relatos demonstram o imaginário difundido na nossa
cultura, de que o crescimento e a responsabilização, ou seja, o dever, são
tidos como algo negativo na adolescência, levando os jovens a sofrer e
buscar o adiamento da adultez. Mesmo quando as contingências da vida
se impõem e impossibilitam esse adiamento, o desejo por esse
adiamento parece continuar. Ressalte-se que, apesar do mal-estar
explicitado em seus discursos, dentre 13 jovens entrevistados, esses
foram os únicos a demonstrarem, mesmo em meio a problemas, a

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para a reorganização do psiquismo moral

construção moral pautada no “dever ser”, mantendo-os engajados em


laços e contrato sociais.

O lugar social da adolescência e suas respectivas promessas

Adolescência e pubescência demarcam mudanças. Adolescência


é tida como conceito simbólico construído socialmente. Já a pubescência,
embora mais vinculada às transformações corporais, é interpretada e
vivida socialmente de modo também variável em diferentes culturas. Por
exemplo, na Amazônia brasileira, jovens de 11 anos que menstruam são
logo consideradas mulheres e têm vida sexual precoce, se comparamos
como a pubescência na Suécia, que ocorre entre 16 e 20 anos. Então, de
certa maneira, o que importa não é propriamente só o fato biológico da
menarca, mas o seu simbolismo.
A variabilidade no modo de viver a adolescência ao longo das
épocas fica evidente quando comparamos os modos como era
experimentada e compreendida nos séculos XIX e XX e como isto ocorre
na atualidade. Isso fica ilustrado, por exemplo, quando tomamos a
grande obra de Gilberto Freyre (2013), “Sobrados e Mucambos”.
Constatamos, a partir dela, que as promessas implícitas na regulação do
contrato social eram bem diferentes das promessas de hoje. À época, a
infância também tinha conotação diferente, mas a oposição entre as duas
fases fica bastante clara quando o escritor descreve o menino que
ascende a uma determinada idade, que não é mais uma criança
pequena/anjo, e nem ainda um adulto. Esse menino era conhecido como
o párvulo, e é assim caracterizado na obra:

Havia um sentimento de completa inferioridade em relação a si e ao


mundo do adulto. Tamanho é o prestígio do homem feito, nas
sociedades patriarcais, que o menino, com vergonha da meninice,
deixa-se amadurecer, morbidamente, antes do tempo. Sente gosto
na precocidade que o liberta da grande vergonha de ser menino. Da
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CAPÍTULO 6 – Adolescência e as contribuições da promessa
para a reorganização do psiquismo moral

inferioridade de ser párvulo. Tamanho é o prestígio da idade grande,


avançada, provecta, naquelas sociedades, que o rapaz imita o velho
desde a adolescência. E trata de esconder por trás de barbas de
mouro, de óculos de velho, ou simplesmente, de uma fisionomia
sempre severa, todo o brilho da mocidade, toda alegria da
adolescência, todo o resto da meninice que lhe fique dançando nos
olhos ou animando-lhe os gestos. (FREYRE, 2013, p. 177).

Do ponto de vista histórico, acerca da infância e da


adolescência/juventude no Brasil, percebemos, com Gilberto Freyre
(2013), que, dentro do sistema patriarcal, existia clara diferenciação
entre o menino e o homem, dada inclusive pela imensa distância social
entre ambos. Esta diferença tão grande entre o “párvulo” e o “adulto” é
tão marcante quanto as diferenças que separam os sexos e as classes - o
“forte” do “fraco”, a dominadora da servil – e, muitas vezes, sob o
disfarce de raça ou casta “superior” e “inferior”.
A meninice nas sociedades patriarcais era uma fase curta. A
criança era vista e idealizada como algo próximo do angelical. Era-lhe
permitido até andar nu dentro de casa. Mas, quando ascendia ao sexto
ou sétimo ano, era logo quebrada a asa do anjo, e este se tornava o
menino diabo. As promessas que demarcavam a ascensão da criança anjo
para o menino diabo, no contrato social da época descrita por Freyre,
determinavam o modo como a sociedade tratava suas crianças e a forma
como essas crianças se comportavam perante o social e as fases de seus
ciclos de vida, levando os meninos a desejarem tornar-se logo homens
adultos.
Por consequência, aumenta a oposição entre menino e homem,
entre pai e filho. Tal oposição se dava em decorrência do grande prestígio
do homem adulto e ao desprestígio do párvulo, a ponto de levar o menino
a ter vergonha de sua meninice, fazendo com que desejasse amadurecer
o quanto antes. Para tal, o rapaz imitava o velho desde a adolescência,
no intuito de ser liberto de tal vergonha e inferioridade por ser párvulo.

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CAPÍTULO 6 – Adolescência e as contribuições da promessa
para a reorganização do psiquismo moral

As imitações iam desde o uso de óculos de velho, combinado com uma


fisionomia severa, até às barbas de mouro (FREYRE, 2013).
Párvulo é sinônimo de menino, garoto, moço, gaiato, criança,
petiz, rapaz, muchacho. O párvulo, para Freyre, seria o menino danado,
custoso, de 11 anos. Párvulo vem de parvo, que quer dizer infantil, pouco
inteligente, parvoíce, ou aquele que não fala em nome próprio, como o
infans. Se existe a tendência em opor-se, biologicamente, pubescência e
adolescência, com Freyre, agora temos a oposição entre párvulo e
cidadão, pessoa. O autor diz que as crianças eram forçadas a ficarem
adultas rápido, na base da pisa e da palmatória. Obrigados a ter bigodes.
Entendemos a noção de adolescência de hoje como intermediária às
oposições citadas.
Os discursos produzidos pelo mundo adulto emolduram espaços
e atos morais que o adolescente pode participar e praticar, estabelecendo
assim princípios e conceitos norteadores de acordo com o contexto da
época. Por decorrência, estabelecem modelos de promessas os mais
diversos. Então, na época retratada no romance de Freyre, ser adulto
passa a ser um valor e a promessa em pauta era a de ser valorizado por
ser um homem responsável. No entanto, hoje a nossa cultura não oferece
direções claras que orientem os adolescentes em seus percursos. Além
disso, a promessa implícita é pautada pela realização do ideal hedonista,
o que pode levar a um gozo mortífero, que se apresenta em uma
valoração negativa do ser adulto.
Percebemos que, nas últimas sete décadas, ocorreram mudanças
na estrutura do laço social, mudanças referentes às virtudes, valores,
moralidade, ética, e cultura em geral, que trouxeram consequências para
a organização estrutural da sociedade. Assim como Maia (2004, p. 61),
também não temos o intuito de julgar em boas ou más, melhores ou
piores as épocas passadas e a atual, mas sim entender analiticamente
aquilo que vem se modificando no campo social e que traz alterações

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CAPÍTULO 6 – Adolescência e as contribuições da promessa
para a reorganização do psiquismo moral

para a constituição do campo subjetivo e, consequentemente


caracterizando novas formas de configurações de sofrimentos humanos.
Está claro, para nós, que a moral na nossa sociedade não se
evidencia mais da mesma forma que se evidenciava no início do século
XX. Sabemos que, na época em que Freud (1856-1939) escreveu sua teoria,
a moral social era pai orientada, isto é, tinha como principal função o pai,
era pautada por um discurso de dever austero e regular, em que os
mandamentos “pai-orientados” ordenavam submissão do desejo às leis
morais, principalmente quando se tratava de questões sexuais. Hoje,
notamos que não se trata mais do mesmo modelo de organização moral
e ética da época vitoriana. Na atualidade, ações éticas combinam com
divertimento, com interesse econômico e liberdade individual. Como nos
diz o filósofo Lipovetsky:

A minha hipótese é que estamos na terceira fase da história da moral,


que chamo de fase pós-moralista, a qual rompe, embora o
complementando, o processo de secularização acionado no fim do
século XVII e no século XVIII. Sociedade pós moralista, não
sociedade pós-moral; sociedade que exalta mais os desejos, o ego, a
felicidade, o bem-estar individual, do que ideal de abnegação. Nossa
cultura cotidiana desde os anos 1950 e 1960 não é mais dominada
pelos grandes imperativos do dever sacrificial e difícil, mas pela
felicidade, pelo sucesso pessoal, pelos direitos dos indivíduos, não
mais pelos seus deveres. (LIPOVETSKY, 2004, p. 27)

De acordo com a citação do filósofo, o modelo de organização


ética passa de uma ética da razão para uma ética do desejo, na sociedade
atual, pós-moderna, pós-moralista. Desde a década de 50 e 60, segundo
Lipovetsky (2004), felicidade, bem-estar, sucesso, passam a ser exaltados
no lugar de imperativos de sacrifício e abnegação. O que antes era
denominado moral individual, dever em relação a si mesmo, e.g.,
castidade, higiene, trabalho, parcimônia, reveste-se agora de nova
interpretação, configurando-se como direito e liberdade individual.
Para exemplificar, retomemos as falas de W.

123
CAPÍTULO 6 – Adolescência e as contribuições da promessa
para a reorganização do psiquismo moral

Geralmente o que vejo, a maioria dos adolescentes não ligando para


as coisas, não se importando com os valores. Os valores das coisas
mesmo. Porque, como eles querem diversão, que já foi impregnado
que essa é a melhor fase, a fase que tem que aproveitar e curtir.
Sendo que eu acho que todas as fases têm que aproveitar e curtir.
Ééé, eles não têm muito valores nas coisas. Isso que geralmente gera
os conflitos familiares, que é o que eu vejo muito. Conflito entre
adolescente e com pai, porque as vezes não tem valor e o pai quer
impor um valor e, dá muita briga.
Então, pra mim adolescente é, (pequena pausa) essa pessoa. Jovem
que quer mesmo se divertir e tudo mais. Não quer estar sobre regras.
Que eu acho um dos pontos principais. Sendo que eu acho que as
regras são necessárias. Mesmo as vezes a gente quereno, todos nós,
eu acho, encabular algumas, pular algumas. É isso pra mim.

A fala de W. remonta ao conflito atual de alguns jovens e mesmo


adultos de hoje. O conflito entre duas modalidades de valores: de um
lado, a de se tornarem adultos comprometidos e tudo que isso acarreta;
de outro, a de continuarem felizes a qualquer custo, livres dos deveres,
sem regras e sem responsabilidades. Ora, sabemos o quanto os processos
de continência e o holding winnicottiano são importantes para a
construção do ser Medeiros, Aiello-Vaisberg e José (2014). Contudo, para
a maioria dos jovens, podemos dizer que os deveres continuam, mas
agora não mais imbricados ao ideal de ser um grande homem, mas sim
ao dever de ter, possuir, poder, ser feliz o todo tempo. Neste sentido,
podemos dizer que passamos para um contexto social do qual o Ter tem
prioridade em relação ao Ser. E é nesse cenário atual que se constroem
os processos de subjetivação e de identidade dos adolescentes
contemporâneos, como se vê nas falas dos entrevistados, afirmando que
deixarão de ser adolescentes quando puderem assumir
responsabilidades financeiras, ou seja, só serão responsáveis se tiverem
dinheiro para pagar suas próprias contas e despesas.
Ora, a grande maioria dos adultos e adolescentes de hoje estão
preocupados apenas com a emancipação financeira, e se esquecem do
valor e da importância da emancipação psicológica e emocional. Então
124
CAPÍTULO 6 – Adolescência e as contribuições da promessa
para a reorganização do psiquismo moral

temos também adultos/adolescentes ou adultescentes (GURSKI; PEREIRA,


2016) que esticam o tempo de “fazer-se sujeito”, vivenciando uma
“adolescência sem fim”, e que, frequentemente, mesmo com 40 anos de
idade ainda moram na casa dos pais, adiando a responsabilização do
tempo adulto, e levando uma vida pautada somente pelo gozo imediato.
Todas as transformações sociais trouxeram novas configurações,
mas que parecem não se apresentam de uma forma sólida. O sociólogo
polonês Zygmunt Bauman (2001, p. 9) utiliza a metáfora da fluidez, ou
liquidez, ao refletir sobre as transformações do mundo atual. E
argumenta: “Imaginar uma vida de impulsos momentâneos, de ações de
curto prazo, destituída de rotinas sustentáveis, uma vida sem hábitos, é
imaginar, de fato, uma existência sem sentido”.
De fato, existência desesperadora e sem sentido nunca esteve tão
presente como em nossa época. A clínica nos mostra isso cotidianamente.
A crescente quantidade de sintomas da atualidade, e.g., autoextermínio,
escarificações, depressões, drogadições, dentre outros, reafirma isso.
Bauman (1998, p. 10) também escreve sobre esse fenômeno e alfineta:
“Se obscuros e monótonos dias assombraram os que procuravam a
segurança, noites insones são a desgraça dos livres. Em ambos os casos,
a felicidade soçobra. ”
A liberdade exacerbada de nosso tempo fica exemplifica na
vinheta reproduzida dos relatos de. L., 15 anos. Ao ser perguntado sobre
o que pode e o que não pode na adolescência, responde: “Na verdade,
não tem regra do que pode e não pode fazer. Ele faz qualquer coisa, né.
Mas cada um faz sua limitação né, cada um sabe o que é errado e o que
não é. Mas cada um faz o que dá na telha”. Outra jovem, D., 18 anos,
assim responde à mesma pergunta:

Assim, sinceramente acho que pode tudo! Que é aquela fase que
você está na experiência pra você se tornar um adulto né. É aquela
fase meio termo. Então, você precisa passar por coisa. Pra saber o

125
CAPÍTULO 6 – Adolescência e as contribuições da promessa
para a reorganização do psiquismo moral

que é certo e o que é errado, pra você formar sua moral e sua ética.
Pra no futuro você ser uma pessoa melhor, então eu acho que pode
tudo.

Surpreendetemente, na grande maioria das entrevistas, quando


os adolescentes foram perguntados sobre querer, poder e dever em
relação ao namoro, sexo e drogas, 12 dos 13 entrevistados, responderam
com o verbo “posso” em todos os quesitos. No quesito drogas, o
adolescente L. relata: “eu fumo maconha só, só, só. Drogas em geral são
horríveis! Cocaína, LCD, crack qualquer coisa assim, eu corro longe. Mas
eu gosto de fumar maconha. Eu uso maconha quando eu tô muito
estressado. Eu fumo e relaxo”.
Para L., a saída para o desconforto é o uso da maconha. Podemos
dizer que, para muitos outros jovens, também. Sucumbem a um impulso
momentâneo a fim de dar conta do mal-estar inerente à vida. No entanto,
“uma vida de impulsos momentâneos, de ações de curto prazo” (BALMAN,
2001) vai na contramão daquilo que entendemos como promessa,
confirmando a importância de qualificar os atos promissivos como
possibilitadores de minimizar destinos cruéis. O autor não fala
especificamente em adolescentes. Mas pensemos essa existência sem
sentido, potencializada pela fase da adolescência associada a modelos
relacionais, éticos e morais vividos na atualmente. Um pensar que nos
ocupa, assusta e preocupa!
Ainda de acordo com Bauman (1998), a exigência contemporânea
está relacionada a um ideal de liberdade, só que liberdade no sentido de
poder fazer tudo (o que sabemos ser uma visão equivocada do sentido
de liberdade). Diferentemente da época de Freyre e Freud, reconhecida
como época moderna, em que o ideal era pautado pelo desejo de controle
e ordem, visando a necessidade de construir um mundo sólido, seguro,
limpo, coerente, estável, puro. Entendemos que segurança foi uma das
promessas modernas de um mundo melhor.

126
CAPÍTULO 6 – Adolescência e as contribuições da promessa
para a reorganização do psiquismo moral

Ou seja, houve um deslocamento nos modos e formas de viver e


pensar por conta das diferenças das promessas sociais referentes a cada
época. Portanto, podemos dizer que as identidades, ao longo do tempo,
passam a ser redefinidas, de Freud (1930), com o Mal-estar na civilização,
à Bauman (1998), com o Mal-estar da modernidade líquida. A partir das
discussões desses dois renomados autores, percebemos que a
adolescência passa de uma construção psíquica onde a sociedade era
orientada por uma ideia de culpa, com ideais de regulamentação e
controle, para uma nova construção, onde a sociedade é orientada pela
ideia de desregulamentação e insegurança, da qual trata Bauman (1998).
Neste caso, nos perguntamos: o que implicitamente cada construção nos
propõe enquanto promessa e regulação do contrato social humano?
Poderíamos dizer que ‘poder tudo’ é a promessa implicada no modelo
atual?
Na época de Freyre (2013), o párvulo tinha vergonha de sua
meninice e imitava o adulto, forçando o amadurecimento antes da hora
por desejar ter o prestígio de um homem adulto logo. Em nossa época,
os adultos buscam imitar e concorrer com os adolescentes, evidenciando
o sumiço das barreiras geracionais e a tentativa de escamotear a lei e os
interditos por medo de conflitos relacionais entre pais e filhos
(EMMANUELLI, 2008). Podemos dizer que, em ambas as épocas, a crise da
adolescência é marcada pela problemática identificatória. Então, nos
perguntamos: quais promessas estão implicadas no modo de
funcionamento social do adolescente de hoje? Se os adultos desejam
retornar ao modelo que construímos como sendo dos adolescentes,
“liberdade sem responsabilidades”, como fica a questão identificatória?
As questões identificatórias possuem um grande impacto na
regulação do adolescente no mundo, como nos ensina Viola, Moreira e
Teixeira (2018). Por outro lado, são reverberados pelas mídias,
tecnologias e globalização, formatos de identificação que podem trazer

127
CAPÍTULO 6 – Adolescência e as contribuições da promessa
para a reorganização do psiquismo moral

consequências graves para os sujeitos em transição. A tecnologia nos


possibilitou a fantasia de que não precisamos envelhecer. A mídia
possibilita a propagação de materiais que prometem juventude
prolongada. As redes sociais mostram uma visão “perfeita” das
realidades. Os aparelhos eletrônicos prometem aproximação. O
imediatismo também é fenômeno presente. Ou seja, diversos
acontecimentos potencializaram a falsa sensação de que podemos ter
tudo o que queremos. Então, o que quero, acredito que posso. O que leva,
facilmente, a um funcionamento infantil: quero e posso, agora!
Diante do exposto, temos seres humanos que vêm ao encontro
um do outro com uma ânsia acrescida da pressa em logo possuir, realizar,
ter, gozar. Como denuncia Ávila (2011, p.5), “fica-se” depressa demais,
“vai-se para a cama” cedo demais, junta-se e separa-se com sofreguidão.
O amor hoje é urgente e imediatista, não admite delongas, não espera,
não promete, não aguenta”. Neste contexto, parece não ter mais espaço
aquele amor referenciado em 1Coríntios 13:4-13, “paciente, benigno, que
não se conduz inconveniente, tudo espera, tudo sofre, tudo crê e jamais
acaba”. Tornou-se ele, obsoleto para a época hipermoderna e liquida?

As promessas na clínica com o adolescente

Diante de todas as mudanças em nosso formato de organização


social, como a clínica psicológica pode contribuir para minimizar os
sofrimentos presentes na vida dos jovens? Responder a esta questão
exige mais atenção ao modo de comprometimento dos adolescentes.
Entendemos que proporcionar espaços para o jovem prometer e se
comprometer são condições necessárias a um bom engajamento e,
consequentemente, para mudanças favoráveis à constituição psíquica
dos sujeitos. Ilustremos com um caso clínico.

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CAPÍTULO 6 – Adolescência e as contribuições da promessa
para a reorganização do psiquismo moral

Trata-se de um jovem de 18 anos de idade, ainda psiquicamente


adolescente, com uma história de vida permeada por perdas e tragédias.
É o filho do meio, tendo mais um casal de irmãos. Sempre teve uma
família restrita e, com a morte dos pais, sua família restringe-se hoje a
apenas esses dois irmãos. Perdeu o pai quando tinha seis anos, o que
contribuiu para as dificuldades financeiras. Também perdeu a mãe
recentemente. Chega à psicoterapia via pedido de terceiros, que faziam
parte da mesma comunidade religiosa que a mãe frequentava quando
estava viva. No momento do primeiro encontro, encontrava-se ainda em
processo de luto, devido à perda da mãe há apenas cinco meses, de uma
forma trágica e repentina (não citaremos mais detalhes no intuito de
guardar o sigilo da clínica e em respeito ao paciente).
Na primeira sessão, conta que perdeu a esperança de vez após a
morte da mãe. Queixa-se de sintomas depressivos graves e pensamentos
suicida. Conta sobre não ter ânimo para nenhuma atividade, diz que, para
chegar até a terapia, foi muito difícil, e não sabe se conseguirá retornar
nas sessões seguintes. Nós o recebemos de forma quase maternal.
Escutando e acolhendo sua dor e sofrer, que, naquele momento,
transbordavam para além do discurso, apresentando-se no corpo.
Percebemos, em sua fala, que, apesar da dor e dos sintomas, ele possuía
recursos superegóicas que contribuíam para levar os compromissos a
sério. Decidimos usar tais recursos a nosso favor. Ao final, qualificamos
seu pedido de ajuda, e dissemos a ele que tínhamos esperança o bastante
para emprestar-lhe um pouco. Reiteramos que é possível tornar a vida
possível sim, e que poderíamos seguir juntos na tentativa de obter
alguma melhora. Com isso, implicitamente, enquanto terapeuta, fizemos
uma promessa, de seguirmos junto com ele durante o processo.
Ressaltamos sobre os possíveis obstáculos e dissemos que, se
fosse mesmo começar, não poderia ceder. Esboçamos minimamente
como funciona a terapia e estabelecemos algumas regras quanto aos

129
CAPÍTULO 6 – Adolescência e as contribuições da promessa
para a reorganização do psiquismo moral

horários e dias. Nos comprometemos de saída e, por fim, demos espaço


para que ele escolhesse iniciasse ou não o tratamento. Ele reconheceu
que precisava de ajuda, mas que não sabia se tinha forças para fazer algo
no momento. Pensou e respondeu que queria o acompanhamento.
Reiteramos que, com aquela fala, estaríamos fazendo um contrato verbal
que teria muito valor para a terapia e para nós, e que, por mais que o
desânimo e a vontade de não comparecer se apresentassem, ele não
poderia deixar de ir ao nosso compromisso.
Nas três sessões seguintes, o paciente compareceu no horário,
como combinado. Disse ter sentido uma pequena melhora após o último
atendimento. O que sabemos ser comum nas sessões iniciais, devido à
catarse. Mas, sempre com pensamentos pessimistas e negativos, ainda
não acreditava que sua dor pudesse passar. A importância do
compromisso firmado inicialmente ficou bem clara quando, passadas
quatro semanas de acompanhamento, ele chegou com pequeno atraso na
sessão, demonstrando aparência abatida e desanimada, informando que
quase não conseguiu ir ao atendimento. Entretanto, complementou
dizendo: “mas, eu te prometi, só por isso eu vim” (sic). Um ato de fala
performático, tal como descrito por Benveniste (2005) e Searle (1984),
que o levou a fazer atos no presente do indicativo e a cumprir com o seu
compromisso. Ele se responsabilizou pela palavra dada e escolheu
comparecer e não ceder frente às resistências e aos sintomas.
A situação descrita acima corrobora o quanto o
comprometimento deve ser qualificado em sessões iniciais. Ele serviu de
sustento para não sucumbir ao desânimo, aos sintomas e às resistências
inerentes ao processo, dando possibilidades de continuar a ter
esperanças, de elaborar seu luto, se haver com a psicoterapia e de se
reconstruir mesmo em meio ao caos. Entendemos, então, que uma
promessa se desdobra em três importantes verbos dos quais acreditamos
serem os representantes da moral e dos valores humanos, auxiliando

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CAPÍTULO 6 – Adolescência e as contribuições da promessa
para a reorganização do psiquismo moral

diretamente na montagem e estruturação superegóica. São eles: querer,


poder e dever.
A promessa é o esteio do dever ser e dos ideais, pois pode
sustentar o futuro através de atos no presente. Exemplo disso são as
renúncias feitas por pessoas que estão engajadas em alguma religião.
Renunciam prazeres da carne no aqui e agora em prol de ganhos futuros
para o espírito. Isto mostra também que o prometer já estava envolvido
nas curas praticadas antes mesmo da existência de teorias científicas.
Mesmo hoje, os religiosos prometem algo que nenhuma teoria científica
pode prometer, como por exemplo, a vida após a morte, o milagre, a
salvação. Tais promessas têm como maior resposta a esperança.
Muitas vezes, em nome de não querer repetir o paradigma
religioso, ou devido à mudança e à relativização paradigmática da moral
e dos valores instituídos em culturas anteriores, vemos atualmente a
desqualificação de atos promissivos e de ritos que contém
implicitamente uma promessa. Isso leva à falta de esperança, a um ciclo
vicioso/sintomático, entre tédio e gozo, custe o que custar, podendo
levar a reações psicopatológicas graves, principalmente na adolescência.
Como explicitado no exemplo acima, a promessa inicial pôde sustentar a
esperança pautada na relação terapêutica e nas promessas mútuas.

Considerações Finais

Neste capítulo, tivemos como foco principal evidenciar o quanto


a construção do psiquismo moral do adolescente é balizada pelo formato
da estrutura social em que o sujeito se constrói e pelo lugar, na cultura,
reservado pelo adulto para esse adolescente. Para tal, realizamos uma
análise simultaneamente clínica e psicossocial dos diferentes tempos da
adolescência e das promessas implicadas nos formatos sociais antigos e
atuais.

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CAPÍTULO 6 – Adolescência e as contribuições da promessa
para a reorganização do psiquismo moral

No que diz respeito à clínica com adolescentes e seus


entrelaçamentos com a cultura atual, há de se considerar a relevância do
tema, na medida em que prometer e cumprir são a base para qualquer
tipo de ligação e construção social. Diante disso, as promessas, ou
ausência delas, implicadas na construção social e modos de organização
moral do adolescente de hoje, acabam por influenciar, as vezes
negativamente, o psiquismo adolescente em construção.
Tendo em vista que a adolescência é uma fase na qual é
importante vivenciar essa impulsão fantasiosa do poder e do querer, a
cultura atual frequentemente elogia e potencializa tais impulsões de
forma descuidada, sem possibilitar ou oferecer a contenção necessária
para a organização do psiquismo. Ora, construir-se acreditando que tudo
pode é perigoso. À medida que o jovem não produz anteparos suficientes
para lidar com frustrações e renúncias próprias ao mundo da vida, vão-
se instalando modos de produções subjetivas frágeis e adoecidas. Essa
questão também se apresenta como problemática relevante para o campo
jurídico, na medida em que os adolescentes têm alcançado projeção
pelas vias das transgressões à lei, delinquências e delitos.
Por fim, cabe ressaltar que qualificar os atos de promessa e suas
implicações morais e éticas pode ser um dispositivo clínico e
psicossocial a ser utilizado a favor do tratamento, psicoterapia, análise
e possível cura. Esta é, pois, uma temática que merece mais estudos,
visto ser plena de implicações para os campos da psicologia clínica,
social, jurídica e educacional.

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