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Belém - Pará
2019
FILLIPE AUGUSTO RODRIGUES COSTA
Belém - Pará
2019
FILLIPE AUGUSTO RODRIGUES COSTA
BANCA EXAMINADORA
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Tool - Lateratus
RESUMO
Neste trabalho tratarei sobre Arte e Magia. Através da reflexão acerca do processo
de criação do curta-metragem “O Filho do Homem” irei demonstrar como, em minha
experiência, procurei aproximar o fazer artístico do fazer mágico. Para tal, irei
conceituar em quais termos entendo e defino o ato mágico e aplicar tais concepções
para a reflexão sobre a poética de criação da obra cinematográfica em questão. O
intuito é o de construir uma reflexão acerca da obra - concepção, execução e
finalização - a partir desta abordagem que relaciona arte e magia e, além disso,
refletir sobre meu fazer artístico neste processo . A linguagem da Magia, com suas
terminologias, sentidos e simbolismos, será instrumentalizada para a descrição e
reflexão de cada etapa que perpassa todo o processo de criação do filme. Além da
construção de pensamento acerca do processo de feitura da obra, o conteúdo
principal desse trabalho é fruto de uma auto-análise que leva em conta e valoriza a
transformação que a prática artística - Mágica - me proporciona. Essa é a matéria
principal destas linhas, a magia real da transformação que perpassa vida e arte e
que permite que o artista entenda melhor a si mesmo e ao mundo a partir de sua
prática artística.
In this paper I will deal with Art and Magic. Through reflection on the process of
creating the film "O Filho do Homem". I will conceptualize in what terms I define the
magical act and apply such conceptions for a reflection on the poetics of creation of
the movie from a approach that relates art and magic and reflect about my artistic
work in this process. A language of magic, with its terminologies, meanings and
symbolisms, will be instrumentalized for the description and reflection of each step
that goes through the entire process of filmmaking. Beyond the construction of
thought about the process of revision of the work, the main content of this work is the
result of a self-analysis that takes into account and values the transformation that
artistic practice - Magic - provides me. This is the main subject of these lines, a real
transformation magic that permeates life and art and allows the artist to better
understand himself and the world through his artistic practice.
INTRODUÇÃO 11
1. ARTE E MAGIA 14
O que é Magia? 14
A Arte Enquanto Magia 15
O Filme Como Um Ato Mágico 17
Sobre as Motivações 21
Primeiras Versões da Trama 23
A Torre e a Estrela 27
I. O PRINCÍPIO ATIVO 32
A ESCRITA DO ROTEIRO 32
No Princípio Era o Verbo 32
Perfil de Personagens 34
Homem 34
Velho 35
Breve Reflexão Sobre o Ato de Criar Personagens 35
A PRÉ-PRODUÇÃO E O PLANEJAMENTO 37
As Imagens Antes das Palavras 38
Pré-Produção 38
Proposta de Direção 40
A Casa 41
A Floresta 41
O Fogo 42
Estilo de Direção/Decupagem 42
Referência 45
Esoterismo 45
Tarot 45
Pintura Renascentista 46
I.N.R.I - Igne Natura Renovatur Integra 46
AS FILMAGENS 47
A Transmutação do Verbo em Carne 47
Ação 48
Reflexões Acerca dos Dias de Filmagem 49
4. SOLVE ET COAGULA 54
REFERÊNCIAS 56
INTRODUÇÃO
Todo filme é feito por um motivo. Existe sempre uma razão e uma vontade em
cada ato que realizamos em vida. Partindo de um desejo íntimo, interno, surge para
o artista o ímpeto de materializar algo que dê conta de manifestar na realidade física,
aquilo que existiu primeiro em sua mente e coração. O cineasta enquanto criador e
manipulador de símbolos e sentidos, dispõe de diversos artifícios e articula-os para
comunicar-se com o mundo e transformá-lo. Essa transformação é dupla, externa e
interna. A reflexão que tento dar conta neste memorial descritivo é a de como
concebi, executei e agora reflito sobre o curta-metragem “O Filho do Homem”. E
através de um prisma que relaciona o fazer artístico com o fazer mágico, concluir o
que alcancei tanto com a obra e com a transformação e amadurecimento advinda
desta.
A reflexão proposta aqui parte, ao que me parece, na direção de dois
caminhos: Um se debruça sobre a obra, o outro sobre mim. Os dois são o mesmo
caminho. Aqui proponho encarar de maneira honesta e sincera o meu processo
criativo, minhas dúvidas, frustrações, meus erros e acertos. Partindo do desejo
original e chegando ao resultado final, como a obra e eu mudamos e como essas
mudanças nos refletem mutuamente? Via de mão-dupla, entre o artista e a obra, o
criador e a criatura, o desejado e o alcançado, o erro e o acerto, mas acima de tudo
a evolução, o autoconhecimento, a magia.
Existe um trabalho artístico desenvolvido, um filme, e existe um texto sobre
esse objeto. Em minhas pesquisas não encontrei parâmetros claros que definiam
como tal texto deveria ser escrito, por isso me senti livre para imaginar algo que
fosse mais pessoal, uma escrita que não estivesse tão engessada em moldes
acadêmicos, mas que desse conta de construir uma reflexão válida sobre o fazer
artístico. Sempre estive claro da importância que deveria ter a escolha do que
escrever e de como escrever. Uma escrita não meramente descritiva, mas sim que
se sustenta por si só e, ao mesmo tempo, se relaciona com o filme e expande a
experiência do diálogo quando se torna pública.
11
Desejei trazer uma reflexão do criador e obra que se estende desde antes do
nascimento dela até depois de sua(s) morte(s). Almejo com esses escritos uma
auto-análise acerca da poética da criação da obra que enriqueça o pensar e o fazer
artístico primeiramente próprio e posteriormente, e com sorte, de quem o ler.
A idéia geral da reflexão construída no texto deste memorial é de que Arte e
Magia são atividades similares, senão idênticas, e que ambas têm a função de,
através do trabalho do artista/mago, transmutar os nossos mundos internos em
manifestações externas, obras de arte, que comuniquem, discutam e reflitam sobre
questões comuns a todos e que transformem a realidade. Foi através deste
paradigma que pensei, criei e reflito sobre a minha obra artística/mágica, o
curta-metragem “O Filho do Homem”.
Do modo como o encarei, o fazer artístico/mágico é uma ferramenta para o
autoconhecimento, sendo o resultado (nesse caso, filme e memorial) a manifestação
material do questionamento proposto e investigado. O filme como meio mágico pelo
qual se busca tratar de um tema, um assunto, uma questão pessoal e universal. Não
como resposta definitiva, mas sim um ponto de partida para um aprendizado em
constante construção.
Pretendo usar a linguagem da magia, sua terminologia, seus simbolismos e
seu modo de ver a agir no mundo para refletir sobre o meu processo criativo na
construção desta obra. Busco entender como cresço como ser humano e artista e
como a obra é um atestado de uma fase dessa mudança. A Magia como um modo
de ver o mundo, como uma metodologia de análise do ser e da obra.
O trabalho se divide em 4 partes. Tal divisão se dá por motivos, além de
organizacionais e de encadeamento da construção do pensamento, simbólicos. Tal
ordem se justifica quanto ao significado esotérico dos números em relação a
progressão do processo da criação da obra, desde a fase da ideia inicial até a
finalização do filme.
No primeiro capítulo, delimitam-se as bases sobre as quais o pensar e o fazer
se desenvolveram. É aqui que apresento, brevemente, a Magia em um contexto
histórico mais geral para em seguida delimitar a abordagem dada ao conceito de
12
Magia neste trabalho: o modo como Magia e Arte se relacionam e como isso se
aplica a minha vida e fazer artístico, mais especificamente neste filme.
No segundo, estendo a escrita e a análise para reflexão sobre aspectos mais
práticos da concepção da obra: o surgimento da idéia inicial, os tratamentos do
roteiro, as referências e inspirações e toda a transformação ocorrida nessa fase.
Neste segundo momento trato também das motivações pessoais e de como elas
foram sendo melhor entendidas e descobertas, numa verdadeira alquimia* interna,
durante o processo todo, acarretando mudanças no projeto e em mim. Neste
capítulo é abordada a criação, ainda no mundo interno do artista, mas já em contato
com outras forças, do que se deseja manifestar posteriormente no externo.
Na terceira parte traço a descrição e reflexão sobre todas as fases do projeto
de curta-metragem “O Filho do Homem”: Roteiro, Pré-Produção, Plano de Direção,
Filmagens e Pós-produção. O capítulo em dividido em outros 5 subcapítulos nos
quais a mesma lógica simbólica de divisão é aplicada e onde cada tópico é abordado
em pormenores.
Por fim, no quarto capítulo, as conclusões.
13
1. ARTE E MAGIA
O que é Magia?
Uma das definições mais formais que podemos encontrar define a Magia como
“Arte, ciência ou prática baseada na crença de ser possível influenciar o curso dos
acontecimentos e produzir efeitos não naturais, valendo-se da intervenção de seres
fantásticos e da manipulação de algum princípio oculto supostamente presente na
natureza, seja por meio de fórmulas rituais ou de ações simbólicas.”1
A Magia, então, seria um conhecimento oculto através do qual se pode vir a
conhecer as leis e segredos da natureza e do homem e através da qual pelo estudo
e prática, o Mago (adepto, iniciado, as denominações são muitas) pode aprimorar
suas faculdades físicas, cognitivas e espirituais, entrando em comunhão com essas
forças ocultas e desenvolvendo controle sobre si mesmo e sobre o mundo ao seu
redor. Para Eliphas Levi (1860, pág 29) ocultista do século XIX, a magia é “A ciência
exata e absoluta da natureza e de suas leis”.
u Magi,
A origem etimológica da palavra magia vem da língua persa: Magus o
cujo significado remete a homem sábio e/ou imagem. Portanto, podemos apreender
o sentido de que o praticante da Magia - o mago - seria alguém com conhecimentos
para criar ou manipular imagens, símbolos, linguagem. Ponto de vista interessante
ao qual voltarei mais adiante e que constituirá um dos cernes da reflexão construída
neste trabalho.
O conceito de magia é múltiplo, complexo, por vezes contraditório e de difícil
definição. Entretanto, é de comum acordo entre a maioria das fontes que a Magia
quanto força, quanto entidade, quanto energia com influência e importância para a
vida social do gênero humano tem origem desde o próprio alvorecer da humanidade.
A magia, ainda não com esse nome nem com os sentidos que hoje podemos
1
MAGIA. Em: DICIONÁRIO Michaelis. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/
Acesso em: 10 out. 2019.
14
associar a ela, era tudo aquilo de maravilhoso, fantástico e misterioso que existia
entre o mundo e o homem.
O Xamanismo, prática originária de onde hoje é a Sibéria, mas cujo o termo é
usado para se referir a manifestações similares de povos originários de todos os
continentes, foi a primeira manifestação religiosa/espiritual a partir da qual o homem
buscou a comunhão, o entendimento e a comunicação com a natureza e com o
mundo ao seu redor. A figura do Xamã tinha destaque dentros dessas sociedades
primeiras pois cabia a ele a função de mediar a conexão através de símbolos,
imagens, sons, danças entre os homens e o mundo do maravilhoso desconhecido.
A partir da função do xamã de significar o mundo, surge a linguagem, o
pensamento simbólico, a cognição do gênero humano se desenvolve e começamos
a nos armar de ferramentas para entender, interagir e construir nossa realidade.
Tudo graças ao trabalho do antepassado mais distante dos magos e artistas, o
“homem sábio que cria imagens”.
Com o passar dos séculos e em diferentes sociedades, a Magia, em suas
mais diversas acepções, sempre se manteve presente. No antigo Egito, com os
sacerdotes e iniciados nas escolas de mistérios, responsáveis pela manutenção dos
grandes segredos da vida, na Grécia com os cultos Eleusinos, ritos de adoração às
Deusas da agricultura, no oriente médio com o misticismo Judaico e até com o
próprio Cristianismo em seus primeiros anos. Sem falar nas tradições de povos dos
continentes Americanos, Africano, Asiático, todos, sem exceção, fortemente
influenciados na esfera pessoal, social, psicológica e cultural pela magia.
Exemplos para citar de forma breve e sob uma perspectiva histórica o quanto
essa misteriosa força sempre foi central na existência humana.
15
passado, levanta o questionamento sobre qual é o verdadeiro papel dela nos dias
atuais e como ela pode voltar a possuir a relevância que teve um dia. Segundo ele:
A definição acima foi feita por Aleister Crowley (1875-1947), célebre mago e um
dos nomes mais importantes do ocultismo ocidental, em seu livro Magick Without
Tears (1954). Me apropriando e fazendo uma reflexão a partir dela, instrumentalizo-a
agora em minhas considerações acerca de meu processo de criação da obra e
procuro esclarecer a partir de que raciocínio podemos considerar o ato de fazer um
filme como um ato mágico.
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Neste livro, lançado postumamente e contendo correspondências trocadas pelo
mago e ocultista inglês com diversas pessoas no decorrer de sua vida, em uma
determinada carta Crowley é indagado por uma mulher que lhe pergunta o que é a
Magia e por qual razão alguém deveria dedicar tempo e energia ao seu estudo e
prática, ao que ele responde que tal questão não é passível de resposta, pois a
Magia não é algo comparável a um interesse qualquer ou objeto de estudo externo,
desligado de nossa vida comum. Para ele, cada ato é um ato mágico; seja por
vontade, ignorância ou descuido, toda ação que tomamos provoca mudanças em
nosso ambiente. A diferença entre uma pessoa que não detém esse conhecimento e
outra que possui é que a última consegue direcionar suas ações na direção de seus
desejos. Esse é o ponto chave para entendermos como o pensamento mágico pode
ter uma aplicação prática. Neste caso, na feitura de uma obra artística e posterior
reflexão sobre a mesma.
Em seguida o autor constrói, a partir de exemplos, aplicações práticas da
definição, postulado e teoremas nos quais define a Magia. Esclarecendo como suas
características podem se aplicar a basicamente toda gama de atividades humanas.
Não é minha intenção me alongar nesses conceitos e teorias, só o suficiente para
entendermos como o raciocínio que guiará minha reflexão sobre meu processo
artístico foi formado.
Ainda seguindo as colocações de Crowley, o postulado da Magia que ele nos
apresenta é o de que toda mudança deve ser provocada através da aplicação do
tipo e do grau certo de força da maneira correta e através do meio correto.
Em outros termos: Se desejo realizar algo, é preciso que eu saiba exatamente
quais atos devo exercer para alcançar meu objetivo. Exemplificando: Se desejo fazer
um filme que servirá como meu trabalho de conclusão, existe uma série de ações
que precisam ser feitas para que eu consiga realizar esse desejo. O primeiro passo
é entendê-las, em seguida aplicá-las e por fim, trabalho pertinente a este memorial
descritivo, avaliar sua execução.
Na parte final e mais extensa da carta, Crowley apresenta mais de vinte
teoremas a respeito da Magia, proposições que podem ser demonstradas em
18
situações diversas e comuns por meio de um processo lógico. Aqui, irei me ater aos
três primeiros. Em ordem:
1. Todo ato intencional é um ato Mágico.
2. Todo ato de sucesso agiu em conformidade com o postulado.
3. Toda falha prova que um ou mais requerimentos do postulado não foram
preenchidos.
De acordo com essa prerrogativa, todo e qualquer ato, realizado
conscientemente e com clara intenção, ou vontade, podem ser atos mágicos. Sendo
assim, pode uma manifestação artística ser um ato mágico? Pode um filme,
realizado como trabalho de conclusão de curso, ser considerado como um ato
mágico? Ao meu ver, e em diálogo com a visão de Alan Moore sobre o papel da
magia quanto arte e com a conceituação de Crowley vista acima, sim.
Pois bem, seguindo dentro do raciocínio proposto por Crowley e utilizando de
seus termos, a minha Vontade aqui tem natureza dupla: A primeira e mais óbvia,
comum a todo trabalho de conclusão de curso, é a de que através deste trabalho eu
conclua a graduação . A segunda é fazer um filme que seja significativo para mim no
nível pessoal, profissional e acadêmico. E que, além de tudo, possibilite uma
transformação, uma reflexão, profunda e válida que desse conta de concluir de
maneira satisfatória a minha trajetória no nível superior.
A partir das premissas apresentadas aqui e da perspectiva que considera o
fazer artístico como mágico, nos capítulos seguintes irei descrever meu processo de
criação da obra “O Filho do Homem” - meu ato mágico; enquanto reflito, avalio e
tento entender como essa experiência me transformou, refletindo sobre o antes o
agora e o depois.
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2. O INÍCIO DA JORNADA - CONCEPÇÃO DA OBRA
“As ideias produzem as obras e por sua vez as formas refletem e reproduzem as ideias”
Eliphas Levi em História da Magia
“A desordem é essencial à criação, enquanto esta se define por uma certa ordem”
Paul Valéry
Todo filme surge a partir do desejo de comunicar algo. Uma ideia, um sonho,
um sentimento, uma pergunta. Para a sensibilidade do artista/mago tudo que atinge
os sentidos pode, potencialmente, ser a fagulha inicial que dispara uma série de
movimentos internos e externos que culminará na transmutação do subjetivo em
arte. O resultado final, nesse caso o filme, é o fruto do desdobramento de todas as
decisões, caminhos seguidos, deslumbramentos, interferências e descobrimentos
que acometem o artista e seus companheiros de empreitada no decorrer da criação
artística.
Como movimento inicial, o momento da concepção do que poderá vir a ser a
obra é muito importante. É durante essa fase que a potência indomada, a matéria
bruta da arte, o imaterial interno, começa a ser esboçado em formas materiais. É a
descida do artista/mago rumo ao desconhecido e seu tatear no escuro para
encontrar o caminho de volta à superfície trazendo rascunhos, rabiscos, desenhos,
frases, imagens e sons mentais na tentativa de começar a materializar o que virá a
ser sua obra de arte. Nesse período tudo é válido e nada deve ser refreado.
Entretanto, é válido que se comece a definir algumas limitações de certo modo
auto-impostas levando em conta o entorno e a realidade que nos cerca. Lembrando
do postulado de Crowley, é preciso que o mago conheça o ambiente no qual vai agir
e use isso a seu favor para conseguir alcançar seu objetivo. Logo, todo esse período
20
inicial de pura e simples criação em fluxo livre, foi, pouco a pouco e
conscientemente, sendo balizado levando em conta termos de ordem não tão nobre
ou esotérica como prazos, orçamento, aspectos logísticos de produção. Tudo isso
será explicitado no decorrer do capítulo.
A preparação para a execução do ato mágico/artístico exige do mago/artista
um movimento interno que precede o externo. Meditação, reflexão, investigação
interna. É preciso entender o que se quer, para poder querer e manifestar. Neste
capítulo darei conta de explanar e refletir um pouco acerca dos movimentos iniciais
de idas e vindas da concepção do filme, traçando a minha trajetória de reflexão e
entendimento cada vez maior tanto do projeto quanto de mim mesmo.
Sobre as Motivações
21
Em uma constante dança e recombinação de pensamentos, reflexões, imagens,
sentimentos, referências e toda outra sorte de fenômenos estéticos o lampejo de
uma nova ideia surge e cabe a sensibilidade atenta capturá-la. Ainda disforme,
confusa, potencialmente tudo e nada ao mesmo tempo, essa fagulha inicial é uma
semente e a mente e o coração do artista/mago devem ser a terra fértil onde ela
pode florescer.
Interessante pensar no artista como esse ser que “capta” algo verdadeiro,
profundo e que, se a princípio não surge de uma ação consciente dele, logo em
seguida demanda que se engendre uma série de ações ativas para dar conta de dar
uma forma, uma expressão, uma manifestação física para essa, como eu gosto de
chamar, fagulha inicial que vai ganhando força, fôlego e ar até se tornar uma grande
chama, uma labareda ardente e forte.
O trabalho, então, do artista/mago é o de estar sempre com os canais de
percepção, dos mais densos aos mais sutis, abertos para receber e perceber esses
estímulos que podem ser transmutados em arte e dispor de conhecimento e das
ferramentas para fazê-lo. Como dito no capítulo anterior, ele seria “o criador de
pontes” entre esses dois mundos. Um pensamento de Paes Loureiro (2003) pode
corroborar com essa visão. Ele diz:
22
comentadas brevemente mais adiante), mesmo que não desenvolvida por ainda não
ser totalmente compreendida. De modo auto-referencial, o personagem do filme que
seria minha conclusão de curso deveria ser alguém que se transformou assim como
eu julgo ter me transformado. Um personagem e uma trama que tivesse algo
claramente meu.
No caso de um filme quanto trabalho acadêmico certo nível de controle, e de
racionalização em cima do objeto-filme, é necessário. Por isso essa investigação dos
motivos, dos temas e das questões que se deseja trabalhar e como elas se
justificam se fizeram tão necessárias nessa fase inicial. Confesso que foi difícil para
mim, no início, conseguir definir de maneira assertiva sobre tudo, dentro de moldes
mais formais e comumente aceitos em um projeto de curta-metragem: Tema,
motivação do personagem, ação, arco dramático, design da trama, plano de direção
etc. Consegui definir esses pontos chaves, dando forma e ordenação a massa
amorfa das ideias, somente certo tempo depois. Não iniciei o TCC sabendo
claramente o que seria o filme, com um plano e um projeto pronto para serem
somente executados. Tudo ia se revelando e sendo melhor entendido à medida que
eu avançava cada vez mais fundo na investigação pessoal, nos estudos, nas
conversas, trocas e orientações.
Desde o início do ano, quando começo a pensar na obra que seria minha
conclusão de curso, sempre tive claro para mim que deveria ser algo que refletisse
essa mudança de paradigma pela qual eu vinha passando. Um filme, acompanhado
de uma reflexão em forma de memorial, que dessem conta de abarcar a experiência
de desenvolvimento de minha evolução e entendimento quanto ser humano e artista
que perpassa a vida dentro da universidade e fora dela. Demorei a me encontrar e
julgo que agora, ao fim, nesse debruçar sobre o meu próprio eu de meses atrás,
enxergo e entendo as coisas com um pouco mais de clareza do que durante o
decorrer do processo, no olho do furacão.
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A primeira decisão, e talvez a mais óbvia, é a de que a trama do filme devia
tratar de algum tema de relevância para mim. Nessa busca por esse tema, assunto,
ideia que fosse significativa, passei por diversos caminhos, histórias, roteiros.
Pensando agora sobre esses momentos, vejo que toda errância e incertezas dessa
fase inicial talvez fossem sintomáticas do momento “perdido” no qual eu me
encontrava. Era um estar perdido, um tatear no escuro, que instigava a investigar e a
descobrir o que de mim deveria haver nessa obra. Eu sabia o que queria alcançar,
algo profundo, real, sincero, mas não fazia idéia de por onde começar. Ou melhor,
fazia, mas não em termos formais e claros. Era ainda uma fase de maturação interna
do que posteriormente seria entendido e manifestado.
O primeiro argumento no qual comecei a trabalhar foi uma mistura de um
sonho que tive com inspirações momentâneas, algumas imagens mentais e um
título, também obtido durante a noite, nos reinos oníricos. Uma miscelânea de
pontos distintos que eu almejava unir em uma narrativa experimental, mescla de
fake documentário com ficção. A trama trataria de criação artística de maneira
metalinguística, de ancestralidade, de amazônia, de desmatamento, relação entre
passado e futuro, entre pai e filho. Durante um tempo, permaneci com essa ideia.
Cheguei a desenvolvê-la um pouco para logo em seguida abandoná-la. Começou,
então, a primeira de muitas mortes* (citação ou nota de rodapé sobre as mortes) seguidas
de renascimentos sucessivos. Percebi que não era bem aquele filme que eu deveria
ou poderia fazer, pelo menos não nesse momento. Logo tratei de mudar
completamente a história. No entanto, algo se manteve, desde essa primeira ideia
até a última: relação entre um homem e seu antepassado (pai, sábio, ancião).
Alguém com o qual ele precisava se relacionar bem, fazer as pazes, para ter o que
era preciso para seguir em frente. Apesar de ainda não saber com clareza então,
esse seria, de certo modo, o meu tema central.
A próxima tentativa de uma história ficou comigo por pouco tempo. Chegou a
ter uma ou duas versões de roteiro. Nessa eu tentei abordar questões de
paternidade, mesclada com ocultismo e rituais para trazer de volta filhos perdidos
que davam fatalmente errado. Uma ideia infeliz que felizmente não foi muito adiante.
24
Os dias passavam e a demanda por um roteiro finalizado no qual eu e parte
da equipe já formada pudesse trabalhar me fez correr com a escrita. O filme
seguinte (note-se que esse já era o terceiro) chamava-se “O Rito Vermelho” e foi o
que permaneceu conosco por mais tempo, antes da dissolução final e mais difícil,
abordada em detalhes mais à frente no tópico “A Torre e a Estrela”. Foi com esse
roteiro, ainda em tratamento, que começamos a trabalhar na pré-produção. Modo de
trabalhar incomum para a maioria das produções. Enquanto eu ainda escrevia, a
direção de arte já trabalhava em seus conceitos e criações, a produção já começava
a articular aspectos práticos e logísticos.
Com o começo das orientações mais individuais e com foco na construção do
projeto como um todo, começamos a discutir o filme em seus níveis mais básicos:
premissa, personagens, progressão narrativa, roteiro e plano de direção. Discussões
sempre muito abertas com membros da equipe e orientadores que foram se
tornando cada vez mais construtivas. Essas conversas foram as primeiras em que
pude discutir mais a fundo o meu roteiro, minhas ideias, meus motivos e através
delas tive uma visão externa e necessária para que eu alinhasse melhor o projeto.
Após esses encontros de orientação e posteriores conversas que se
seguiram, comecei a perceber que a minha história talvez não estivesse tão sólida
quanto me parecia. Essas colocações externas foram essenciais para que eu
conseguisse olhar para tudo com outros olhos e perceber que, de fato, minhas
intenções e referências talvez não estivessem completamente alinhadas com o que
o atual tratamento do roteiro apresentava. Esse feedback por parte da orientação e
membros da equipe foi muito necessário. Por meio dele, pude reavaliar o processo
como um todo. No entanto, algo que me preocupou foi a questão do tempo. Já
estávamos em pré-produção, com o cronograma avançando e me parecia
complicado ter que fazer mudanças estruturais a níveis tão básicos àquela altura.
Foi difícil considerar me desfazer de certezas, pois elas me davam segurança. No
mar de dúvidas que pode ser o fazer artístico, se agarrar a elas dava um pouco de
esperança. Mas logo percebi que a maior parte do que eu julgava como certo estava
errado, ou pelo menos não tão certo assim. Foi o momento em que notei que seria
necessário dar alguns passos para trás para poder avançar em seguida.
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O próximo passo foi fazer o exercício de tentar chegar a raiz de tudo. De toda
a inspiração, desejo e necessidade de contar essa história. Voltei aos primeiros
rabiscos em cadernos antigos, aos primeiros arquivos sem título em pastas no
computador, as referências que me inspiraram e fui, textualmente, traçando à mão
no papel meus caminhos desde lá até aqui. Nesses extensos escritos fui percebendo
o que permanecia desde o início, o que mudou, o que se manteve e, o mais
importante, quais mudanças ou não-mudanças foram realmente necessárias. Nessa
de voltar ao início de tudo, investigava o que era realmente importante para mim e o
que eu mantinha por simples comodismo, medo ou falsa sensação de segurança.
Revisei todos os tratamentos de argumento, todos os personagens e suas ações e
cheguei a conclusão que em grande parte eu estava tentando encaixar os mesmos
elementos, retrabalhados, em formas antigas e tentando fazer funcionar à força.
Mexendo as mesmas peças dentro das mesmas casas do tabuleiro. Personagens e
ações que se mantinham e eram reorganizados dentro de novos arranjos e
narrativas que permaneceram sempre, em sua raiz, basicamente a mesma. Acho
que esse foi o principal problema. A história foi se transformando, mas o mesmo
arranjo de personagens, ações e cenário se mantiveram e foram reajustados e
ressignificados. Foi preciso uma visão maior para perceber todas as outras jogadas
possíveis.
Para mim era claro que algumas dessas características, personagens, ações
e significados que se mantinham desde o início assim o faziam por serem, de fato,
essenciais. Esses eram os personagens Homem e Velho, a atmosfera da casa, a
fogueira no final, entre outras coisas. Eu tive que ter cuidado e estar sempre
consciente para não cair no erro de querer mudar a história toda por achar que seria
mais fácil partir do zero. A falsa sensação de que tudo é possível diante de uma
novidade. Eu sabia que a história estava ali e eu só precisava conseguir encontrá-la
através da constante investigação do que era realmente importante para mim e a
eliminação de tudo que não era.
Investigando as referências, principalmente literárias, que tive no decorrer da
pesquisa e que foram essenciais para guiar os rumos da narrativa, me questionei até
onde eu me apropriei delas ou simplesmente as reproduzi. Precisei me encontrar
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dentro de tudo aquilo que eu ia descobrindo e usando para validar minha história.
Lembro que a cada nova leitura, referência, descoberta, eu tentava encaixá-la de um
jeito ou de outro na narrativa. Foi um erro tentar encaixar outras explicações e
sentidos dentro de formas antigas. Percebi que era preciso me apropriar das
referências e trabalhar a partir delas e não diretamente com elas.
Foi a descoberta de que faltava mais o Eu dentro da construção dessa obra
que me fez parar e reavaliar tudo em perspectiva. Não encarei como problema ou
erro o fato de ter que parar e repensar o projeto quase como um todo. Não existe
idéia “pura” que não mude, que não se transforme, que não se contamine de outras
idéias o tempo todo durante esse processo de criação. No entanto, minha maior
preocupação, como dito anteriormente, continuava sendo o tempo. Nosso projeto
teve a particularidade de ocorrer desse modo não tão usual para produções
independentes e sem dinheiro, em que o planejamento prévio deve ser ainda mais
valorizado para que tudo saia direito e os contratempos sejam evitados ao máximo,
o roteiro ainda estava sendo trabalhado enquanto alguns passos da pré-produção já
estavam em andamento. Felizmente tive a confiança, respeito e compreensão da
equipe para poder fazer uma revisão geral, pelo bem do projeto.
A Torre e a Estrela
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ensinamentos como auxílio para me entender melhor nessa jornada e embasar meu
raciocínio.
Os chamados Arcanos Maiores são um conjunto de 22 cartas que retratam na
constituição de sua arte, simbologia e progressão, em termos bem gerais, uma
jornada de evolução física, mental e espiritual. Inicia-se na potência completa e
desgovernada e termina no domínio de si mesmo e do mundo. Dentro do caminho
do Tarot cada carta representa um grande arquétipo e juntas formam, ao todo, um
rico e mágico alfabeto simbólico cujo estudo pode proporcionar grande
autoconhecimento pessoal e artístico. Na altura dos Arcanos 16 e 17, as cartas “A
Torre” e “A Estrela”, respectivamente, uma grande transformação ocorre. São nestes
dois arquétipos que reflito e aprofundo meu processo de criação.
Fonte: Tarot de Rider-Waite, ano 1909 Fonte: Tarot de Rider-Waite, ano 1909
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e seu pai. Mantinha-se algo que existia desde o início: o relacionamento entre entre
um homem e seu passado, sua história, representado na figura de um velho (um
mestre, um pai, um sábio) o qual ele precisaria entender, perdoar e superar para
poder seguir em frente.
Foi um momento realmente muito especial — mágico — quando finalmente
entendi e de certo modo aceitei, porque essas coisas parecem que sempre existiram
dentro de nós enquanto só nos faltava entender e aceitá-las, que o tema do meu
filme, do meu ato mágico, seria esse. Uma inquietação e motivo de questionamentos
pessoais, algo que atravessa de minha vida pessoal para o fazer artístico, porque diz
respeito a auto-descoberta, a compreensão de quem somos, do que fazemos e do
porque fazemos. Questões básicas da existência humana cujo o papel da Arte e da
Magia é nos ajudar a responder. Ou a fazer melhores e mais profundas perguntas. A
necessidade de resolver meus problemas ao entender meu passado para não ser
refém dele e poder, assim, construir meu futuro. Uma motivação cujo o emprego de
forças, físicas, mentais e mágicas, valeria a pena.
Toda esse novo arranjo e entendimento, entretanto, e não digo isso de
maneira negativa, partia para uma construção dentro de certas delimitações de
ordem prática muito bem definidas e advindas de decisões tomadas ainda no projeto
anterior. Muito mudou quanto ao tema, intencionalidade e motivações, mas muito
também se manteve no que dizia respeito a ambientação do espaço, das locações,
dos personagens, de escolhas estéticas quanto à luz e fotografia, quanto ao som e
ausência de diálogos. Foi um trabalho de constante recriação dentro dos limites
reais que possuíamos. Uma ideia que se transformou ao mesmo tempo em que se
adequava às possibilidades e à criatividade e sinceridade sobre quem somos e o
que podemos fazer. Uma trama que muda enquanto permanece e ao mesmo tempo
se transmuta em algo mais significativo.
Seria, então, uma trama que trataria da relação de um filho e seu pai.
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3. O FILHO DO HOMEM
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I. O PRINCÍPIO ATIVO
A ESCRITA DO ROTEIRO
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ditos básicos da escrita dramática para cinema: Robert Mckee e Doc Comparato
foram alguns com os quais, em meus reencontros, pude aprender técnicas,
habilidades e noções que julguei serem deficientes em minha formação até o
momento. O que aprendi quando cruzei com tais autores no caminho foi válido e me
permitiu trazer muito na minha bagagem em minha jornada de volta. Também
esbarrei em escritos antigos pessoais sobre aprendizados que travei com Raimundo
Carrero*, escritor pernambucano, há não muito tempo atrás. Através desse outro
reencontro pude relembrar aprendizados que me foram úteis na posterior construção
dos personagens. Vídeos no youtube sobre escrita de roteiro, estudos de estruturas
narrativas clássicas, regras, formas, normas, trilhas abertas por outros caminhantes
nas quais eu pudesse seguir, tudo isso fez parte de minha peregrinação resignada
em busca do Verbo. No decorrer da jornada, nos momentos de tranquilidade das
madrugadas sob as estrelas à beira da estrada ou no silêncio de uma manhã, na
existência suspensa de um dia que ainda não começou, folhas e mais folhas foram
escritas, manual e digitalmente. Muitos verbos, mas ainda não o meu. Muitas vozes,
ouvidas e referenciadas, mas ainda não a minha.
Todas as outras vozes e ensinamentos com as quais me deparei, foram
buscadas com o objetivo de conseguir segurança, uma base, um norte, construído
pelos que vieram antes de mim, mas essa estrada rumo ao mundo externo só pôde
me levar até certo ponto. Depois da última fronteira, o caminho que é circular, ou
melhor, espiralado, me trouxe de volta para dentro de mim mesmo e foi aqui que
encontrei o que eu precisava.
Depois de muitas escritas e reescritas, conversas, orientações, crises,
desabafos e principalmente um olhar sincero e verdadeiro para mim mesmo, para
descobrir aquilo sobre o qual eu realmente deveria tratar, na altura de seu 7º
tratamento, tínhamos o roteiro de “O Filho do Homem” pronto para ser filmado.
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Perfil de Personagens
Homem
Ele é o filho.
É aquele que existe a partir do pai. É uma parte desse, mas apesar das
semelhanças também é, ou deve se tornar, fundamentalmente diferente. Ser
diferente, superar o próprio pai, é essencial para o amadurecimento e sobrevivência
do Homem. Esse processo de reconhecimento de si mesmo na figura do pai e a
partir de então o entendimento de que é preciso ir além é a jornada que o Homem
deve empreender.
Quando o pai morre, simbolicamente, o Homem renasce. Ou melhor, quando
o Homem deixa o pai morrer é quando ele o internaliza de verdade, aprende com os
erros dele e o supera. É preciso deixar o próprio pai morrer para poder renascer.
O Homem vive dentro do universo criado pelo pai, a casa, até que esteja
pronto para quebrar a casca e sair. Alguns nunca conseguem. Esses são os que
perpetuam a mesma história, os mesmos erros, os mesmos vícios de seus pais.
Esses são os que não quebram o ciclo.
Ele irá quebrar o ciclo, aceitar a morte de seu pai e aprender com ela. Irá,
depois de algum esforço, decidir não perpetuar aquela história que ele
invariavelmente há de herdar, mas que não precisa necessariamente ser a sua.
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Velho
Ele é o pai.
Totalmente imerso naquele universo da casa, já é em si mesmo parte
constituinte e quase indistinguível do todo. A casa não é o reflexo dele; ela é o Velho
e ele é a casa. Ao mesmo tempo em que ele é, também, vítima. O Velho foi um
homem que não seguiu outro caminho. Refém do silêncio não por escolha
conscientemente própria, mas por não ter nunca sido capaz de romper o ciclo assim
como o Homem tem a chance de fazer agora. Quando o Velho morre é a casa (e
tudo que ela representa) que também começa a morrer. É toda aquela história que
chega a um fim, mas que ao mesmo tempo demanda, imediatamente, que alguém
assuma o lugar e dê prosseguimento à manutenção de toda velha ordem ou que a
quebre de vez. Essa é a escolha do Homem: romper com o ciclo ou mantê-lo.
O Velho é aquele que precisará ser superado, uma imagem do futuro do que
o homem pode vir a se tornar, o futuro que ele deve evitar que se realize. O velho
precisa morrer se o homem quiser sobreviver. São as semelhanças com o próprio
pai que o homem mata.Ele é a sucessão do homem. O final da volta completa que o
círculo dá.
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da ficção: Devemos tratar dos temas e assuntos sobre os quais nos debruçamos em
uma obra através de representações que nos ajudem a contar, debater, discutir,
provar o nosso ponto de vista à respeito de alguma coisa.
A inspiração para um filme pode partir de uma experiência particular da vida
do autor, mas ela nunca (ou dificilmente) será transposta de maneira literal. O
protagonista do filme não é, não viveu e não pensa exatamente a mesma coisa que
o artista. Ele não é uma pessoa real. É um artifício, um boneco de arame, daqueles
que são estáticos e sem expressão até o momento em que nós o animamos com o
sopro da vida. E esse sopro tem tudo que decidirmos que ele deva ter. É através
dele que damos vida a esses seres que só existem nesse outro mundo criado e que
enfrentam por nós nossos mais profundos medos. Um personagem não é um ser
humano. É, antes de tudo, um ponto de vista. É uma existência criada por nós,
criadores, para travar por nós, simples seres humanos, as batalhas que não
conseguimos vencer em nossa vida normal e desinteressante. São eles que descem
ao mais profundo de nossos planos para enfrentar nossos demônios. Nós os
criamos para isso. Nós os usamos para isso. Nós os moldamos, tal qual Deus
moldou Adão, de acordo com a mitologia cristã, à nossa imagem e semelhança.
Escolhemos que aspectos nossos ou que nos falta gostaríamos que esse
personagem, nosso avatar nesse mundo criado, possua. Tudo isso parte de nós.
Todo esse processo mágico de criação de mundos e pessoas para habitar neles
surge através da nossa subjetividade, da nossa expressão, da manifestação do
nosso poder e por isso, talvez, seja tão mais poderoso, tão mais mágico. Por não
possuir as amarras que nossa vida, aparentemente, possui o que esses
personagens vivem nesses mundos em que os colocamos pode ser mais
significativo que a experiência da vida em si. Através da arte (ou da magia) criamos
outros mundos e ressignificamos o nosso.
Sendo assim, após reflexão tão elucidativa, se revelou para mim o que agora
parece óbvio: O meu filme não é, ou melhor, não deve ser uma transcrição exata de
fatos ocorridos na minha vida, a partir da minha história, ou sequer no mundo real.
Qualquer tentativa nesse sentido seria frustrante e infrutífera. Essa história deveria
ser, isso sim, minha interpretação sobre determinado tema. O meu modo de
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discuti-lo. A minha maneira de defender o que acho certo ou errado ou de descobrir
o que é que eu acho certo e o que é que eu acho errado. É claro que a fagulha inicial
que desperta a vontade de manifestar essa idéia parte de experiências reais. De
situações, sentimentos, emoções, angústias, medos, pensamentos, textos lidos,
filmes vistos, pessoas que cruzam nosso caminho, amores, desafetos, deus, a vida,
a morte e toda e qualquer sorte de fenômenos que nossos sentidos possam captar.
Na verdade é essencial que a semente da idéia venha daí pois é ele que será
plantada e germinará uma árvore completamente nova ─ a obra de arte ─ mas cujo
os frutos serão, se a planta for bem formada, aquela essência primordial. É ela que
pode alcançar o coração de outra pessoa, porque ela é comum à todos nós seres
humanos.
O desafio, então, fica sendo o de extrair essa semente mais primordial, do
fundo do nosso ser, do local que todos nós compartilhamos, e passá-la por um
prisma que lhe transmuta em uma forma nova, excitante, instigante. Uma árvore
frondosa, pequena ou grande, isso realmente não importa, e que ao nos
maravilharmos com sua vista e provarmos os seus frutos possamos, ao degustá-los,
sentir encher nossa boca e escorrer garganta abaixo aquele velho e conhecido
sabor.
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fracasso, precisaria encontrar bases nas quais pudesse se assentar e ser
construído. Essas bases primeiras viriam a ser o coração, as mentes, os braços e as
pernas de outros colaboradores. Artistas, e antes de tudo amigos, que aceitaram
compartilhar o mesmo Sonho e somar forças para a sua transmutação em Arte.
Neste subcapítulo, tudo que diz respeito à preparação e planejamento que
antecede a manifestação física. Apresentação do projeto, plano de direção,
intencionalidades dentro de cada área, referências.
Pré-Produção
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momentos de estresse e desesperança onde a magia do mundo parece
desaparecer, a força dos dois foi essencial para que o filme e eu continuássemos.
Algo que me guiou na elaboração do novo tratamento do roteiro e proposta de
direção foi ter sempre em mente nossas limitações ─ de tempo, de equipe, de
dinheiro ─ e considerar tudo isso na busca de um balanço entre o pragmático e o
artístico. Essa noção bem clara do que é possível de ser realizado com os recursos
que temos é algo que ganhei com a experiência de ter escrito, dirigido e editado dois
curta-metragens e co-dirigido um longa durante a jornada acadêmica. Atuando
também como produtor desse filme, a visão do que é prático e realizável sempre me
balizou as idéias. E não encarei isso como algo negativo, acredito que jogar
conscientemente dentro das limitações é fazer delas combustível para nos
sobressairmos dentro desse espaço de atuação delimitado.
Um dos desafios foi descobrir como, trabalhando dentro dessas limitações de
ordem prática, eu podia direcionar tudo para potencializar os resultados possíveis.
Na direção, na arte, na fotografia, na atuação, no som. Todas as escolhas deveriam
ser muito bem pensadas de modo a serem assertivas e econômicas. Essa noção
pode parecer simples ou lugar-comum, mas para mim, enquanto estudante e
realizador me formando bacharel em cinema, essa “revelação” só me atinge agora,
ao fim da graduação, após minhas experiências na área e reflexões a respeito delas.
Contar uma história curta e concisa. Esse foi o almejado. Minhas pretensões
não eram a de criar um filme formal ou que seguisse um padrão clássico de
narrativa, por isso a forma poderia ser mais livre, mais experimental. Esse tipo de
liberdade, estética e poética, favorece o tipo de cinema que podemos fazer.
O meu objetivo era o de criar um filme atmosférico em que os sentidos da
narrativa sejam claros, mas não totalmente explícitos, havendo espaço para
interpretações e elementos que possibilitem isso. Uma narrativa curta na qual o
amplo e universal tema da relação entre filho e pai pudesse ser trabalhado de
maneira concisa através da situação dramática da morte de um pai e o modo como
um filho lida com ela.
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Proposta de Direção
O filme trata do tema da relação entre um filho e seu pai e mostra como esse
homem, na situação de ter que lidar com a morte do pai, acaba se transformando e
se tornando independente dele.
Nas cenas dentro da casa, que são a maioria, uma escolha estética e
estratégica é o uso de enquadramentos mais fechados com o objetivo de evidenciar
os olhares, os corpos e os gestos dos dois. Nessa história de homens, de pai e filho
e do silêncio que perpassa os dois, o destaque que a câmera dá para esses corpos
em estágios diferentes da vida, para a proximidade e a distância entre eles, para um
quanto oposto do outro, é muito válido para a construção do sentido do filme: Um
homem que se constrói e reconstrói através da imagem e do contato com o corpo
desse pai.
A jornada do protagonista em busca do autoconhecimento, mesmo que
inconscientemente, começa através do contato distante que se torna próximo com o
corpo do pai e que posteriormente termina com a separação definitiva dos dois.
Tudo parte sempre do ponto de vista dele: do modo como ele olha para o pai, como
os gestos dos dois se assemelham, como aquele espaço em que eles vivem é
opressor, restrito, sufocante. Tudo isso construído, também, pelos planos fechados,
investigadores, que se restringem a tentar desvendar a superfície da pele, a textura
dos tecidos, a comparar esses dois corpos díspares que, em uma interpretação mais
profunda, podem ser o mesmo em diferentes momentos da vida.
Essa câmera que se detém nos detalhes, no micro, constitui uma escolha
estética e estratégica porque além de corroborar com o sentido que busco criar
também possibilita um trabalho de produção, fotografia e arte mais centrado nos
recortes, possibilitando escolhas estratégicas do que mostrar e do que esconder.
Nas cenas da floresta, no mundo natural e livre pelo qual o homem caminha
com o corpo de seu pai rumo à libertação, pela primeira vez os enquadramentos são
abertos. A visão se expande quando o Homem adentra um mundo novo, livre das
barreiras que antes o prendiam.
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A Casa
É o mundo construído por nós e que nos contém e oprime. É o passado que
se acumula e se repete, nos aprisionando dentro de hábitos e vícios. É o nosso
mundo externo que reflete o interno, define e impede de ver além daqueles limites.
Todos os móveis, objetos, a bagunça, a sujeira são a exteriorização do mundo
interior confuso e caótico. “O que está em cima é como o que está embaixo assim
como o que está dentro é como o que está fora.” diz o segundo princípio Hermético.
O Homem é como o Velho. Dentro daquela casa, é como se a imagem dos dois
refletisse uma à outra. O Velho é como um vir a ser do Homem.
Dentro da casa, a rotina que se repete (demonstrada na repetição de cenas
que giram em torno da mesa de jantar) é quebrada pela ocasião da morte do Velho e
a possibilidade que se abre, a partir de então, de quebra desse ciclo por parte do
Homem... ou de sua manutenção. É entre essas duas opções que ele deve escolher:
Ou ele se torna aquilo que seu pai foi e continua a habitar aquela casa até se tornar
parte dela ou decide romper com tudo e abandonar aquele ciclo. Se um é como o
outro então entender o pai é entender a si mesmo. Libertar o pai é libertar a si
mesmo. Deixar o pai morrer é deixar uma parte antiga de si morrer para que outra
possa renascer.
A Floresta
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O Fogo
Estilo de Direção/Decupagem
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irá perpassar todo o filme. A iluminação dentro da casa, na qual as cenas são na
maioria noturnas, será sempre escassa, pontual. Planos mais fechados em que se
valorizou recortes e o corpo dos atores nos permitiu não depender do uso de grande
parte do espaço físico para situar uma cena. A pintura renascentista e seu jogo entre
claro e escuro foram referências para a iluminação, criando a visualidade desses
corpos divididos, mergulhados em sombras e emergindo delas. O foco na textura
das peles, nas nuances dos olhares, nas mãos, nos corpos.
Esse forte uso da luz e sombra bem marcada foi uma escolha tanto estilística
quanto estratégica. A escolha do recorte do que se mostrar e como se mostrar foi
trabalhada com o intuito de potencializar nossas possibilidades dentro das restrições
de espaço, produção, tempo e equipe. Pouca quantidade de planos por diária, desse
modo podendo executá-los melhor.
Planejei planos mais fechados que transmitissem a sensação de mundo
oculto, restrito, secreto. Nunca sabemos quem, de fato, são aqueles dois ou que
casa é aquela. Não temos claras indicações espaço-temporais de onde e quando se
passa essa história. Outra coisa que os enquadramentos mais fechados permitem é
a construção, através da manipulação da linguagem no momento da montagem, de
outros sentidos e direcionamentos, muitas vezes ainda não previstos durante o
planejamento e a execução.
Através da arte, a intenção foi construir aquele espaço da casa quanto
exteriorização do mundo interior dos personagens. Acúmulo de memórias, de anos,
de mágoas e silêncios, de coisas que se arrastam. A criação do sentido da relação
de oposição entre os dois também deve perpassar toda a construção da arte
levando em conta os cenários comuns: mesa de jantar e corredor; e individuais: os
quartos de cada um deles Dentro da casa, nos cenários e objetos, cores mais
escuras, envelhecidas, que denotam a idéia de algo fora do seu tempo. A casa,
assim como o Velho, inicia o filme prestes a “morrer”. No decorrer da progressão, à
medida que o tempo avança enquanto o Homem mantém o corpo do Velho no
quarto, a transformação pela qual a casa e ele passam demonstra a degradação que
vai tomando conta de tudo até o momento final. É através do trabalho da arte em
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cima dos cenários, objetos, figurinos e aparência do personagem que será
construído, dentro dos poucos planos, a noção da passagem de tempo.
O filme não possui diálogos e por isso o pensamento do som se fez
extremamente mais importante para a construção de uma ambientação que crie um
universo sonoro para o mundo dessa essa casa. Dentro da casa, os ruídos deverão
ser valorizados. Escolho pela ausência de diálogos neste filme sobre o silêncio dos
homens. Aqui o silêncio tem importância tanto temática quanto narrativa. Será
buscada a construção atmosférica através do som diegético, dos gestos mínimos,
toques, passos, que reverberam no silêncio da casa e através de ocasional trilha
sonora que entre para evocar os complexos sentimentos dos personagens.
Também é preciso dizer o quanto a escolha pela ausência de diálogos foi
uma alternativa tanto criativa quanto prática. A captação de diálogo em som direto
pode ser, em minha experiência, muitas vezes problemática. A falta de controle
sobre o ambiente externo e todas as intempéries imprevisíveis que podem ocorrer (e
quase sempre ocorrem) acabam por dificultar a captação de um som de qualidade, o
que exige um maior trabalho durante a edição de som, consequentemente
demandando mais tempo e recursos, duas coisas que não teríamos muito a
disposição. Além do mais, essa escolha corrobora com minha decisão de contar
essa história de maneira concisa e direta, onde a linguagem pudesse ser usada de
maneira mais interessante para transmitir os sentidos desejados, sem que a
exposição explícita através de diálogo fosse necessária.
Som da casa x Som da floresta.
A idéia sempre foi a de ter esses dois ambientes bem marcados e divididos
pelos seus característicos sons ambiente. A casa e a floresta, antagônicos
esteticamente e simbolicamente. A passagem de um para o outro, uma ruptura,
marcada pelos sons que irrompem de um para o outro. Em algumas cenas do roteiro
há claras indicações de momentos em que os sons que vem de fora ─ da natureza,
a ordem primeira, que sempre há de prevalecer frente a todas as nossas
construções, sejam físicas, como a casa; ou imateriais como as relações ─ invadem
a casa como prenúncios das mudanças por vir.
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Referência
Esoterismo
Tarot
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Como referenciado no capítulo 2, no tópico “A Torre e A Estrela”, o estudo do
Tarot além de referência estética e simbólica também permeia e auxilia o meu
pensar.
Pintura Renascentista
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III. A TRÍPLICE ORDEM DO TERNÁRIO, A MANIFESTAÇÃO FÍSICA
AS FILMAGENS
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Trago esses dois conceitos, de fontes distintas, tratando de contextos outros,
mas que podem ser relacionados, para refletir, dentro de minha experiência, sobre a
ação, o agir, da pessoa e do artista. Do autor e do personagem.
Ação
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única parte que interessa para quem assiste o filme: O momento entre o “ação” e o
“corta”.
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exata, as variáveis são muitas e imprevisíveis. Foi preciso lidar com essa
imprevisibilidade o tempo inteiro. Para o bem e para o mal, o planejado muda, se
adapta, se transforma completamente. Há horas em que o filme parece escapar de
nossas mãos e outras em que o seguramos com unhas e dentes. É uma dança. O
sonhado se choca com o sólido real das horas que passam, do som externo que
atrapalha, do cabo que não chega, da bateria que acaba, da mente e do corpo
cansados e se adapta, se reconfigura.
Entre o filme sonhado e o executado, um terceiro nasce: O real.
Depois da materialização das imagens e sons ainda em seu estado bruto,
artista/mago tem todos os elementos dos quais precisa para executar o final do ato
mágico. Sob seu altar, ou melhor, ilha de edição, os símbolos e sentidos ganham
sua forma final no processo da montagem.
nos quatro elementos, nas quatro estações, nos quatro pontos cardeais. É a
manifestação ordenada e segura no plano físico.
Aqui reflIto sobre o processo de montagem praticamente em tempo real. A
escrita ocorre ao mesmo tempo em que a edição do filme é finalizada. Processo
vivo, dialético comigo mesmo, relatos direto do front (ou melhor dizendo, da ilha).
Essa é fase final, onde a magia, em todo seu esplendor e mistério, de fato acontece.
Dispondo de todos os elementos o artista/mago manipula-os para alcançar o
resultado final... que pode ser diferente do imaginado a princípio. É necessário
manter a mente e a vontade forte e focada para tomar as melhores decisões
entendendo o material que se tem em mãos.
Na ilha de edição nos deparamos pela primeira vez com o material bruto e o
assistimos almejando uma imparcialidade que falha miseravelmente. Falha porque
tudo aquilo nos toca de maneira profunda. Ainda estamos muito próximos de tudo,
muito imersos naquelas imagens. Nas primeiras vezes que assistimos, tudo parece
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ser um erro. O que salta à vista é só o que nos desagrada e irrita. Deveria ter feito
diferente, deveria ter feito melhor. Nas primeiras incursões na ilha de edição a
melhor postura que pude assumir foi a de simplesmente executar o trabalho de
maneira metódica e objetiva. Trabalhando com o Diego dos Prazeres, montador e
colega de turma, durante os primeiros dias, nos quais ele fazia o trabalho mais
metódico de organizar os arquivos, sincronizar os sons e montar de grosso modo
tudo que havia sido filmado, eu acompanhava, na medida do possível, com certa
distância, sem exercer nenhum esforço criativo. Ainda estávamos mapeando o
território do nosso filme que, pouco a pouco, se revelava.
Quando conseguimos fechar um primeiro corte bem bruto, com cerca de 30
minutos, com todas as cenas filmadas completas e na sequência do roteiro de cara
percebi que o sentido e a progressão da trama imaginados não se manteriam. O
material que tínhamos montado não era exatamente igual ao que tínhamos gravado
e ao que eu tinha escrito e pensado. Se François Truffaut dizia que a direção devia
lutar contra o roteiro e que a montagem devia lutar contra a direção, agora eu podia
confirmar isso.
O trabalho da montagem, então, passou a ser o de entender melhor o material
que tínhamos e qual o sentido que poderíamos tirar dele. Reajustando,
recombinando, reconstruindo, a matéria bruta da magia apontava diversas
possibilidades.
Seguiram-se momentos de crise nos quais eu achava que tudo estava
perdido e que nada de bom sairia daquele material seguidos de outros de êxtase em
que tudo parecia estar dando mais certo do que eu jamais sonhei. Essa eterna
relação de amor e ódio entre criador e criação perpassa o processo inteiro.
O movimento de olhar para o material com outros olhos, tentando entender o
que existia ali, e que nem sempre era o que havíamos planejado, acabou por exigir
mais tempo do que a princípio havíamos definido. O processo de montagem
perdurou mais do que o planejado porque descobrir essa “nova” história foi mais
desafiante e exigiu que explorássemos alternativas além das imaginadas à príncipio.
O tempo inteiro me questionava se o que eu estava fazendo não era
simplesmente tentando resolver problemas advindos da má execução da direção.
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Como se eu não tivesse conseguido alcançar o que eu queria no decorrer das
filmagens e agora tivesse que dar conta de corrigir na montagem. Esse é um
pensamento negativista que pode conter um pouco de verdade, mas não
necessariamente sempre. É fácil se deixar levar pelo pessimismo estando numa
posição de tanto estresse como eu estava/estou. Com o passar do tempo e do
trabalho duro e reflexão em cima do material, fui recuperando meu amor por ele. As
conversas e opiniões de membros da equipe, orientador e outros amigos também
ajudaram. Até que minha percepção ficou mais clara sobre o filme que eu poderia ter
em mãos e percebi que o fato do material possibilitar outras opções de montagem e
criação de outros sentidos não era demérito. Não sair exatamente como o planejado
não é necessariamente algo ruim. O que foi difícil foi lidar com as incertezas que a
postura diante desse desafio de repensar muito do que já vinha sendo pensado
exige. Foi um trabalho árduo de idas e vindas entre diferentes cortes até chegar ao
corte, até o momento, final.
Em todo processo de montagem de um filme, na minha experiência, existe um
processo de maturação que diz respeito ao modo como o montador encara e se
relaciona com o material. Processo que tem um tempo próprio e que não pode ser
apressado porque nem mesmo eu sei dizer quando é que a mágica acontece de
fato. O click que é quando tudo se encaixa perfeitamente e que só acontece depois
de muitas horas e dias remexendo, explorando, testando, amando e odiando o
material bruto. No início é o reconhecimento, a parte mais metódica e burocrática.
São somente arquivos que demandam uma organização primeira para que só então
possam ser encarados como nosso filme. Depois vem o desenvolvimento da relação
entre montador e filme, duas entidades que se digladiam em busca de um objetivo
em comum. É a fase dos testes, da experimentação. Algumas partes são
descartadas para sempre, outras permanecem sem a menor possibilidade de serem
eliminadas. Aqui eu já conhecia muito bem o material, mas ainda não dominava-o
completamente. Na última etapa, basicamente enquanto escrevo, foi quando
finalmente pude me sentir totalmente familiarizado e sob controle do material. Após
exaustivas horas de edição, me sinto mais seguro sobre o rumo que a montagem
deve tomar.
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O tempo entre o fim das filmagens e a entrega do trabalho, filme e memorial,
foi relativamente curto — cerca de 2 meses — e levando em conta o modo de
produção no qual temos que trabalhar é compreensível, para mim, que o filme ainda
não esteja em sua forma final à altura da entrega e defesa do trabalho de conclusão.
Seguindo um calendário no qual tivemos que conciliar aulas, filmagens,
disponibilidade para acesso aos equipamentos e ilha de edição e ainda atuando, no
meu caso, como diretor, produtor, montador e editor de som, além de articular o
desenvolvimento das artes gráficas e cartaz do filme foi, de fato, um tempo muito
corrido - e continua sendo - para a realização de tudo. Acho válido trazer esse relato
para dentro da reflexão do memorial porque são fatos e situações que se relacionam
diretamente, pro bem ou pro mal, com a feitura da obra. Paralelamente ao trabalho
de montagem, também editei e mixei o som, além de pequenos efeitos de
pós-produção e créditos.
Enquanto finalizo o corte do filme para entrega e apresentação do trabalho de
conclusão, vislumbro outros caminhos possíveis para a montagem. Numa constante
potência de transformação a obra nunca está pronta até que o artista decida que
or motivos práticos e possíveis, decido
esteja, podendo ser modificada ad infinitum. P
(porque na verdade preciso) entregar o filme em seu atual estado de finalização.
Uma versão não realizada em todas suas possibilidades de afinamento de corte, de
edição de som e mixagem, mas apta, em minha opinião, a ser entregue e avaliada
pela banca.
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4. SOLVE ET COAGULA
REFLEXÕES INICIAIS - O FIM É O COMEÇO
54
alcançar um estado mais elevado e de maior sabedoria. Nesse sentido, fui feliz em
minha empreitada. A minha prática mágica, a feitura desse filme, operou
transformações grandiosas. Encerro a graduação com uma visão clara de onde ir
daqui em diante, tanto interna, quanto externamente.
O que vislumbro adiante é um caminho de atuação artística no qual Magia e
Arte estejam cada vez mais interligados e meus estudos, pesquisas e práticas me
levem a seguir neste percurso em que me descubro inquieto, mutável, inconstante,
porém nunca incompleto, sempre e cada vez mais: Eu.
Durante as pesquisas para a escrita deste memorial acabei por me deparar
com o desejo, e a necessidade, de expandir o “método” utilizado aqui para campos
maiores. Seria tal campo o de uma pesquisa e prática dentro de uma Epistemologia
Mágica. Temo estar tentando adentrar em uma área que nem sei se existe e ao qual
não tenho pretensões de sequer tentar delinear neste memorial. Entretanto, fica a
inquietação, o ímpeto que dá início a tudo e qualquer coisa, de iniciar-me por esta
senda, que se não existir irei ter de inventar.
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REFERÊNCIAS
COMPARATO, Doc - Da Criação ao Roteiro: Teoria e Prática. 3ª ed. São Paulo,
Editora Summus, 2019.
CROWLEY, Aleister. REGARDIE, Israel - Magick Without Tears. 7ª ed. Las Vegas:
Falcon Press Golden Dawn Publications, 1989.
LEVI, Eliphas - Dogma e Ritual da Alta Magia. 3ª ed. São Paulo: Editora
Pensamento, 2019.
LEVI, Eliphas - História da Magia. 21ª ed. São Paulo: Editora Pensamento, 2019.
MUIR, Tom - Writing and Risk: Magic, Occult, Exorcisms. Journal of Academic
Writing Vol. 8, 212-224, 2018.
MCKEE, Robert - Story. 1ª ed. São Paulo, Editora Arte & Letra, 2017.
PASSERON, René - Da estética à Poiética. Porto Arte, Porto Alegre, v.8, n. 15,
p.103 - 116, nov. 1997.
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PINTO, Carolina Gonçalves - Processos Criativos da Direção Cinematográfica.
2015. Dissertação de Mestrado - Universidade de São Paulo - Escola de
Comunicação e Artes. São Paulo, 2015.
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