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Capa: Fernando Cornacchia

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Revisão: Mlrian de Camargo
Maria Lúcia A. Maier
16-07 JOÃO-FRANCISCO DUARTE JÚNIOR

Dados Internacionais de Catalogação


na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP,
Brasil)
Duarte Júnior, João-Francisco, 1953-
Porque arte-educação?/ João-Francisco
Duarte Júnior-6' ed. -
Campinas, SP: Papirus, 1991. (ColeçãoAge
re).
Bibliografia.
ISBN 85-308-0003-6

1. Arte-Estudo e ensino 2. Arte -FIio


1. Título li. Série.
sofia 3. Educação-Filosofia POR QUE ARTE-EDUCAÇÃO?
91-0481
CDD-370.1
-707
Índices para catálogo sistemátic
o:

1. Arte : Estudo e ensino 707


2. Arte e educação: Filosofia da
3. Educação: Fundamentos estéti educação 370.1
cos: FIiosofia da educação 370.1
3. Educação artística 707
4. Educação e arte: Filosofia da educa
ção 370.1

CAP. 2
ADESTRAMENTO E APRENDIZAGEM

15u Edição
2004

.,
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ADESTRAMENTO E APRENDIZAGEM

Quase todos já ouviram falar que alguns psicólogos se utili­


zam de ratos em seus experimentos. Os resultados de tais experi­
mentos, em geral, são generalizados e extrapolados para o homem:
eles crêem que entre ratos e homens a diferença seja muito pequena;
de grau, somente. Apesar de algumas pessoas que conhecemos
realmente se aproximarem bastante dos ratos, ainda as diferenças
são enormes. Porém, um pequeno e modelar experimento com esses
roedores pode nos auxiliar e servir como ponto de partida.
Deixando um rato sem beber durante 24 horas e colocando-o
depois numa gaiola apropriada (conhecida como "caixa de Skin­
ner"), ele certamente virá a "aprender" um novo comportamento.
Nessa gaiola existe uma pequena alavanca que, quando pressiona­
da, fornece uma gota de água. Apoiando-se na alavanca e receben­
do a água, logo o animal estabelece a ligação entre uma coisa e

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outra e passa a acionar o mecanismo "propositalmente" para saciar estado lá. Posso conhecê-la por um símbolo, por uma palavra que
a sua sede. Vamos dizer, então, que o rato "aprendeu" (entre aspas) a representa.
a pressionar a barra: ele adquiriu um novo comportamento. Um outro exemplo: posso pensar no que fiz ontem e planejar
O fundamental deste experimento é que o animal só "apren­ o que farei amanhã. Tenho consciência elo tempo: ele um passado,
deu" este novo comportamento porque ele o auxilia a resolver um um presente e um futuro. Isto é possível pela palavra, que me
problema crucial: a sua sobrevivência. Pressionando a barra ele representa o ontem, o hoje e o amanhã. Enquanto o animal só
impede a própria morte: sobrevive! O rato não poderia ser "treina­ possui o seu presente: está aderido a um hoje eterno.
do" - o experimento não se realizaria - se ele não estivesse Podemos concluir então que o homem não está preso a seu
necessitando ela água. corpo e a seu presente como está o animal, mas tem consciência
Daí podermos deduzir que o comportamento animal procura ele outras dimensões e de outros tempos. A consciência humana é,
sempre resolver este imperativo básico, que .é manter a viela. O desta forma, produto de sua capacidade simbólica, produto ele sua
animal se adapta a seu meio ambiente e ali pode vir a desenvolver palavra. O que faz o homem ter uma viela qualitativamente dife­
algumas habilidades, se estas o auxiliarem na tarefa ele sobreviver. rente ele todas as demais formas de viela. O ser humano tem uma
Ursos "aprendem" a anelar ele bicicleta, elefantes a "plantar bana­ consciência reflexiva, isto é, pode pensar em si próprio, pode
neira" e cães a jogar bola, pois dependem ele tais. atividades para tomar-se como objeto de seu pensamento. Pensamento este que se
receber comida ele seu treinador. É este o motor ela "aprendizagem" dá graças à palavra.
no mundo animal: garantir a viela, a sobrevivência. Linhas atrás dissemos que o animal se adapta a seu meio
Porém, este modelo ele "aprendizagem" não pode ser inte­ ambiente. Incapaz de transformá-lo de maneira ordenada, planeja­
gralmente aplicado a seres humanos. Nós possuímos uma dimensão da, ele deve sempre se adaptar às circunstâncias, desenvolvendo
a mais em relação ao animal, que transforma radicalmente a viela atividades que o auxiliem a sobreviver aqui e agora. Mas o homem
meramente biológica em algo qualitativamente diferente. Esta di­ não. Não se adapta simplesmente a um meio, e sim procura
mensão é a dimensão simbólica do mundo humano: a palavra. transformá-lo, modificá-lo, construí-lo. Faz com que o meio se
Através ela palavra o homem se "desprendeu" (transcendeu) adapte a ele. O homem constrói o mundo. Imprime um sentido às
ele seu corpo físico. O mundo animal é aquilo que seus sentidos suas ações. Visa o futuro: planeja, pensa, e então age, construindo
lhe permitem: o que ele vê, ouve, cheira e toca.Já o mundo humano o que imaginou. Este é o mundo humano: um mundo que suplanta
vai além, muito além, daquilo que existe à nossa volta, acessível a a simples dimensão física, que existe também enquanto possibili­
nossos sentidos. E vai além, através elos símbolos, da palavra. dade; que existe como um vir-a-ser. Em suma: um mundo também
Quando digo "Antártida", por exemplo, a palavra me traz à cons­ simbólico.
ciência uma região elo planeta que não está agora ao alcance ele Esta é então a radical diferença entre homem e animal: a
meus sentidos. Posso saber dessa região gelada sem jamais ter consciência reflexiva, simbólica. A palavra é o primeiro elemento

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tramj'ormador do mundo de que se vale o ser humano. Por ela o Anteriormente afirmou-se que o motor da atividade animal
mundo é ordenado num todo significativo. Com a palavra o homem era a sua sobrevivência: sua adaptação ao meio e o desenvolvimen­
organiza o real, atribuindo-lhe significados. Toda a massa de sensa­ to ele novos comportamentos buscam o fim último de se manter
ções e percepções é filtrada pela linguagem humana e recebe uma vivo. Isto também é verdade para o homem, se bem que verdade
significação. Vejo uma forma difusa em meio a neblina: não sei o apenas parcialmente. Porque, se trabalhamos sempre para a nossa
que é, apenas algo vago, sem sentido. Alguém me diz "aquilo é sobrevivência, essa sobrevivência não tem a ver somente com a
uma árvore". Imediatamente a forma ganha um sentido, um signi­ manutenção ela vida biológica. Tem a ver, principalmente, com a
ficado. Integra-se no meu mundo conhecido. Agora sei o que é manutenção elo significado, do sentido da vida. Buscamos não
aquilo, mesmo sem percebê-lo claramente. Tem um nome: árvore. apenas manter a viela (biológica), mas fundamentalmente a sua
Pelo nome adquiriu significação, passou a fazer parte de minha coerência - a coerência num mundo simbólico.
estrutura conceitual.
A viela tem que fazer sentido. Temos de possuir nossos
Ou então esse objeto à minha frente. Não sei o que é, não sei
valores, sonhos e ideais, em função dos quais nos manteremos
ele sua utilidade, nunca o vi antes. Alguém me informa: "isto é um
vivos. Comprar uma casa, escrever um livro, não roubar, ser
grampeador - com ele podemos prender juntas algumas folhas de
honesto, casar são alguns desses valores que mantêm as pessoas
papel". Se de agora em diante me falarem ele um grampeador,
existindo. Tais valores - tais significações - chegam a ser, no
saberei elo que se trata. Meu mundo se ampliou. Nele coube mais
mundo elos homens, até mais importantes que a própria vida. Será
um nome, mais um objeto significativo. O grampeador - o objeto
esta uma afirmação paradoxal? Não, se pensarmos no caso extremo
e a palavra que o representa - passou a fazer parte do meu mundo.
elo suicida. Muitas vezes sua estrutura física, vital, se encontra
O mundo que construímos tem o caráter de um todo unifi­ perfeita. Mas ele se mata. E se mata porque sua existência perdeu
cado, ordenado. Evitamos o caos, a desordem. Vamos relacionan­ a significação, deixou ele fazer sentido. (Albe11 Camus, outro filósofo
do os eventos, os objetos e as nossas percepções numa estrutura francês, dizia que a única questão filosófica realmente importante
organizada. Relacionamos tudo numa estrutura significativa, que era o suicídio).
nos permite dizer como o mundo é. E tal estrutura significativa nos
Ou então pensemos no guerrilheiro: ele também entrega a
é dada pela linguagem.
vida para que um ideal continue existindo, para que o mundo um
Merleau-Ponty, um filósofo francês, fala do comportamento dia seja melhor - mesmo que ele já não esteja neste mundo. (No
humano como um c01nportarnento simbólico. O animal reage aos momento em que escrevo estas linhas é anunciada a morte do loº
estímulos físicos de seu meio. O homem age, em função dos signifi­ prisioneiro político elo IRA, na Irlanda, devido à greve ele fome por
cados que ele imprime à realidade. Age segundo a significação que
eles mantida).
sua linguagem permite.

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Assim, a vida humana não é apenas vida (física), mas exis­ sensação foi a de "estar num ciclone", que "perdemos a noção ele
tência, ou seja, comporta um sentido. E este sentido são as palavras espaço", que "nosso estômago pareceu subir e descer" etc. Ou seja:
que nos dão. A linguagem - e através dela os valores, os significa­ procuramos nmnear e comparar a experiência com outras (estar
dos - fundamenta e estrutura nossa existência nesta terra. num ciclone, por exemplo).
Portanto, tudo em nosso mundo possui um valor e um nome. Agora a segunda parte da assertiva: todos os novos conceitos
Os significados advêm fundamentalmente dos símbolos, das pala­ que aprendemos, nós os compreendemos por referência às nossas
vras, dos nomes. "No princípio era a Palavra", segundo o dizer experiências anteriores. Vejo uma máquina que não conheço, e sou
bíblico. Estamos constantemente buscando significações para as inf ormado de que se trata ele uma "guilhotina", utilizada para cortar
nossas experiências. Estamos constantemente nomeando-as, com­ papéis. Este novo conceito, "guilhotina", eu só o compreendo por
parando-as, tentando explicá-las. E isto através dos símbolos, da já saber o que é papel e o que é o ato ele cortar. Isto é: o novo
palavra. "Você não imagina o que é andar na montanha-russa", conceito "se prende" às experiências anteriores que já tive, com
dizemos a um amigo que nunca foi a um parque ele diversões. "É papéis e com o ato de cortar. Um novo símbolo, urna nova palavra,
corno estar num ciclone: você rodopia, seu estômago sobe, desce; um novo conceito somente é compreendido tomando-se por base
sua noção de lugar, ele espaço, fica perdida" - procuramos expli­ nossas vivências anteriores.
car-lhe. O que estamos fazendo? Tentando dar um significado, um Esse é então o mecanismo do conhecimento humano: um
sentido para aquela experiência, ao traduzi-la em palavras. jogo (dialético) entre o que é sentido (vivido) e o que é simbolizado
Nossas experiências vividas são sempre seguidas de simbo­ (transformado em palavras ou outros símbolos).
lizações, que permitem explicitá-las (a nós mesmos). Gendlin, um De certa forma, esse é o jogo entre o sentir e o pensar, já que
psicólogo norte-americano, afirma que toda significação tem dois o pensamento sempre se dá através de palavras. Um jogo em que
componentes: as experiências e os símbolos. Isto é: tudo o que estamos mergulhados desde que adquirimos a fala, em nossa infância.
experienciamos, procurarnos nomear, explicitar simbolicamente; Vamos retornar então à questão da aprendizagem. O ratinho
e, inversamente, todos os novos conceitos que adquirimos, nós os do primeiro exemplo, nós dissemos que ele "aprendeu" (entre aspas)
compreendemos por referência a nossas experiências anteriores. a pressionar a barra para receber água. Na realidade, seria melhor
Expliquemos melhor esta afirmação. dizer que ele foi adestrado, ou treinado, ou condicionado. Isso
O exemplo acima, da montanha-russa, refere-se à primeira porque o rato não tem a capacidade de transformar aquela sua
parte de nossa afirmação: vivemos urna experiência, sentimos o experiência num símbolo, isto é, de extrair dela um significado.
que é andar naquele brinquedo e, depois, tentamos dar um sentido Jamais ele poderá "contar" ("ensinar") a um companheiro seu a
a esta nova vivência. Procuramos torná-la inteligível, explicitável, forma de se obter água quando colocado naquela gaiola. Sua
através dos símbolos verbais (palavras). Dizemos então que nossa

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experiência não recebe uma significação, não é transformada em conceito e o aplica a diferentes situações. Ou seja: ela aprende um
símbolos que a representem. significado.
Inclusive, se esse mesmo rato for colocado numa outra gaiola, Eis aí a diferença entre aprendizagenz e adestramento. No
em que a barra tenha um modelo, uma localização e uma cor adestramento há uma resposta fixa a um sinal, também fixo. Na
diferentes, ele deverá novamente ser treinado para pressionar a nova aprendizagem há a abstração do significado que os símbolos
barra. Não possuindo a capacidade abstrativa que os símbolos permitem. E apenas o homem constrói símbolos.
permitem, ele não pode transferir sua experiência para um novo Anteriormente foi dito aqui que o animal somente desenvol­
contexto. ve novos comportamentos se estes o auxiliarem na tarefa de se
O que é bastante diferente da aprendizagem humana, no manter vivo. No caso humano, em que não é apenas a vida
sentido forte do termo. Como nós transformamos nossas experiên­ biológica que está envolvida, mas também o seu sentido, a sua
cias em símbolos, abstraindo delas o seu significado, podemos agir coerência, esta verdade se amplia um pouco. Nossa mente é
em novas situações com base em experiências passadas. Exempli­ seletiva: apenas aprendemos aquilo que percebemos como impor­
fiquemos. tante para a nossa existência. Tudo que foge aos nossos valores,
Suponha-se que treinemos um cão a sentar-se cada vez tudo que não percebemos como necessário ao nosso dia-a-dia, é
que lhe mostramos um círculo recortado em uin cartão. Cada esquecido. Não é retido. Um exemplo claro desta situação são as
vez que lhe apresentamos o cartão, ele se senta (para receber infindáveis "matérias" que decoramos apenas para fazer uma
um pedaço de carne - condição essencial de qualquer treinamento). prova, na escola. Após a prova, o que foi decorado vai gradual­
Se, ao invés do círculo recortado, nós lhe apresentarmos um círculo mente desaparecendo de nossa memória, por não ter um uso no
desenhado numa folha de papel, ele já não se sentará. Ele foi treinado cotidiano.
para responder apenas ao círculo recortado. Por isso uma educação que apenas pretenda transmitir sig­
Agora com uma criança. Dizemos a ela que iremos jogar um nificados que estão distantes da vida concreta dos educandos, não
jogo: cada vez que lhe mostrarmos um círculo (ela deve saber o produz aprendizagem alguma. É necessário que os conceitos (símbo­
que é um círculo, deve ter o conceito), ela deverá bater palmas. los) estejam em conexão com as experiências dos indivíduos. Volta­
Podemos apresentar os mais diversos círculos, recortados, pinta­ mos assim à dialética entre o sentir (vivenciar) e o simbolizar. Este
dos, grandes, pequenos, que fatalmente ela aplaudirá. é o ponto fundamental no método de alfabetização do educador
No caso do cachorro, ele foi treinado a responder a um sinal, brasileiro Paulo Freire: aprende-se a escrever quando as palavras
fixo e imutável. No caso da criança, ela aprendeu a responder a se referem às experiências concretamente vividas.
um conceito, a um símbolo. A criança abstrai o significado do Aprender não é decorar. Aprender é um processo que mobi­
liza tanto os significados, os símbolos, quanto os sentimentos, as

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experiências a que eles se referem. Já, decorar, é algo assim como o
que ocorre com o animal: uma resposta fixa, sem criatividade, a um
estímulo fixo. A campainha toca, os alunos se sentam e passam a
escrever um sem-número de palavras, cuja significação não com­
preendem bem. Cuja significação está distante de sua vida cotidiana.
As palavras deixam de ser símbolos, representando conceitos, para se
tornarem quase que meros sinais.
Aliás, sempre acreditei que a escola brasileira, nos dias que
correm, está mais para uma "caixa de Skinner" do que para um local
de real aprendizado. Está mais para o adestramento do que para a
aprendizagem.

Resumo das idéias principais

• O animal é treinado, se adapta ao meio eresponde a.sinais..


@ O homem aprende, transforma o meio, e tem um com­
portamento simbólico.
e A consciência humana, reflexiva, é função dos símbolos,
da linguagem.
• Todo processo de conhecimento e de aprendizagem hu­
nianos se dá sobre dois fatores: as vivências (o que é
sentido) e as simbolizações (o que é pensado).
@ A tudo o que sentimos, vivemos, procuramos dar um
significado, através dos símbolos (palavras).
• Todo novo conceito, nós o aprendemos com base em
nossas vivências.

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