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MORGANA RECH

NAS RAÍZES DA SUBLIMAÇÃO:

O estranho e o regressivo no âmago da arte

Tese de Doutorado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica,
Instituto de Psicologia, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutora em
Teoria Psicanalítica.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marta Rezende Cardoso

Rio de Janeiro

2019
(ficha catalográfica)

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MORGANA RECH

NAS RAÍZES DA SUBLIMAÇÃO:

O estranho e o regressivo no âmago da arte

Tese de Doutorado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica,
Instituto de Psicologia, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutora em
Teoria Psicanalítica.

Aprovada em:
Banca Examinadora:

________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Marta Rezende Cardoso (Orientadora) – PPGTP/IP/UFRJ

________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Regina Herzog – PPGTP/IP/UFRJ

________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Fernanda Pacheco – PPGTP/IP/UFRJ

________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Silvia Zornig – PPGDP/PUC-RIO

________________________________________________________
Prof. Dr. Fábio Belo – Fafich/UFMG

RIO DE JANEIRO
2019

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AGRADECIMENTOS

À família, que cuidou das bases.


À CAPES, que garantiu o sustento.
À Marta, pela orientação e amizade.
À Fabíola, pela alegria com que revisou.
Aos amigos que incentivaram e esperaram.
Aos meus pacientes, pela coragem das criações.
À Tânia, que ajudou a pilotar o barco da Subversa.
Ao grupo de pesquisa, pelo entusiasmo com o estudo.
Ao Cesar, que me ensinou a usar o post-it decentemente.
Ao Instituto Cultural Freud, que me recebeu como analista.
Aos amigos Aline, Gabriela, Gabrielle, André, Fabio, Priscilla,
Daniel e Ney, pelo bom humor, talento e sensibilidade nas trocas.
Ao Daniel Queiroz e o Estevan Ketzer, pela qualidade da interlocução.
Aos mestres da prática Elizabeth, Halina e Sig, pelas portas que me abriram.
À Valéria e sua vista da pedra do elefante, em Friburgo, onde se escreve em paz.

4
Dedicado à memória do Victor Heringer, que uma vez me disse: “eu sou só livro, meu bem”.

5
RECH, Morgana. Nas raízes da sublimação: o estranho e o regressivo no âmago da arte. Rio
de Janeiro, 2019. Tese (Doutorado em Teoria Psicanalítica) – Instituto de Psicologia, Programa
de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2019.

RESUMO

Esta tese realiza uma investigação sobre as bases da criação artística e da apreensão
estética, partindo da premissa de que algo de muito primitivo liga esses dois processos num par
indivisível. Nosso objetivo é analisar as raízes da sublimação, a fim de destacar que a
criatividade artística se insere numa dimensão arcaica da experiência subjetiva viabilizada pelo
campo da estética. Defendemos que as ações psíquicas relativas à dimensão do “estranho” e a
de regressão abrangem as experiências ligadas à arte de maneira mais ampla sem, no entanto,
recairmos numa interpretação de tipo patográfico.
A partir de um recorte, analisamos o trajeto freudiano de aproximação às obras de arte
e exploramos a complexidade da noção de sublimação, sublinhando sua base sexual.
Analisamos a presença do traumático, incorporado na forma artística, como manifestação
daquilo que torna a criação de arte imperativa e faz com que não passemos ilesos por uma obra.
A indiscutível importância do campo sensorial no processo de criação artística e em sua
recepção no outro nos leva a explorar a questão de uma temporalidade especial, pertencente à
atualidade do inconsciente, em jogo nesse processo. Diante da relevância da arte, daquilo que
traz à “flor da pele” o imponderável do vivido e da memória psíquica de cada um, se enraíza
um nível primitivo da subjetividade humana.
Com as noções de inspiração, de Jean Laplanche e de saisissement, na proposta de
Michel de M´Uzan, a radicalidade da relação do eu com a alteridade é considerada como
elemento decisivo para que uma experiência artística resulte num instante de reconstrução
narcísica.

PALAVRAS-CHAVE: Arte. Sublimação. Alteridade. Estética. Psicanálise.

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RECH, Morgana. The roots of sublimation: the strange and the regressie into the heart of art.
Rio de Janeiro, 2019. Tese (Doutorado em Teoria Psicanalítica) – Instituto de Psicologia,
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2019.

ABSTRACT

This thesis carries out an investigation about the bases of artistic creation and
aesthetic apprehension, starting from the premise that something very primitive connects these
two processes into an indivisible pair. Our goal is to analyze the roots of sublimation in order
to insert artistic creativity at an archaic dimension of the subjective experience, made feasible
by the field of aesthetics. We argue that the psychic actions concerning to the dimension of the
"strange" and the regressive encompass the experiences associated with art in a broader way,
without, however, resorting to a type of pathographic interpretation.
We analyze some of the Freudian approachs to works of art; exploring the complexity
of the notion of sublimation, underlining its sexual base. We emphasize the presence of the
traumatic, embodied in the artistic form, as a manifestation of what makes the creation of art
imperative and do not let us pass unharmed by a work. The indisputable importance of the
sensory in the process of artistic creation and its reception by others leads us to explore a special
temporality, belonging to the actuality of the unconscious, at stake in this process. The arts are
relevant as an object wich brings to the "flower of the skin" the imponderable of living and the
psychic memory of each one, as a primitive level of human subjectivity.
With the notions of inspiration argued by Jean Laplanche, and saisissement in the
proposal of Michel de M'Uzan, we consider the radicality of the relation of the ego with
otherness as a decisive element to turn an artistic experience into an instant of narcissistic
reconstruction.

KEYWORDS: Art. Sublimation. Otherness. Aesthetics. Psychoanalysis.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................11

1. FREUD E A ARTE: UM ENCONTRO, UMA ATITUDE .................................... 18


1.1. UMA VERSÃO DA HISTÓRIA ............................................................................ 23
1.1.1. As menções a Vico ................................................................................................. 27
1.2. UMA TEORIA ESTÉTICA PARA FREUD .......................................................... 29
1.3. O DEVANEIO COMO HIPÓTESE ....................................................................... 32
1.4. O SONHO COMO PARADIGMA .......................................................................... 34

2. SUBLIMAR ............................................................................................................ 37
2.1. VALORIZAÇÃO SOCIAL .................................................................................... 40
2.2. Algumas derivações ................................................................................................ 40
2.3. Tudo pelo sentido .................................................................................................... 43
2.4. O TRAJETO DA DESEROTIZAÇÃO ................................................................... 47
2.4.1. Recalque e sublimação originária ........................................................................... 50
2.5. SUBLIMAÇÃO E NARCISISMO ......................................................................... 53

3. “ESTRANHAR” ................................................................................................... 59
3.1. PRIMEIROS PASSOS: LOGOS, PATHOS E ARTE ............................................ 61
3.2. ALGUMAS BASES DO ESTRANHO .................................................................. 62
3.3. O GESTO DE MOISÉS .......................................................................................... 64
3.4. FUNDAR UM TERRITÓRIO ................................................................................ 67
3.4.1. Os motivos do fantástico ........................................................................................ 70
3.5. TEMPO DE REPETIR ............................................................................................ 74
3.5.1. Esse problema da morte .......................................................................................... 76
3.5.2. O choque com o atual .............................................................................................. 80
3.6. O ESTRANHO DA ARTE ..................................................................................... 82

4. REGRESSAR ......................................................................................................... 87
4.1. A PERCEPÇÃO E SEUS ENIGMAS .................................................................... 90
4.1.1. Do perceber ao traduzir ........................................................................................... 95

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4.2. OS BENEFÍCIOS DA PASSIVIDADE: INSPIRAÇÃO ......................................... 98
4.2.1 Entre autor, obra e leitor ......................................................................................... 102
4.3. SONHO, ALUCINAÇÃO E DÉCOLLAGE .......................................................... 104
4.4. “ENFIM, O IMPASSE”: SAISISSEMENT ............................................................. 108
4.4.1. Alter-ego e a abertura para o novo .......................................................................... 114

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 118


REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 126

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Questions and Answers

1. Who is an artist?
A. An artist is one who says he is an artist
B. An artist is one who has a diplom from an art
[academy
C. An artist is one who makes art
D. An artist is one who makes money from art
E. An artist is none of these things, some of these
[things, all of these things

2. What is art?
A. Art is what an artist says is art
B. Art is what a critic says is art
C. Art is what an artist makes
D. Art is what makes money for an artist
E. Art is none of these things, some of these things
[all of these things

3. What is quality in art?


A. Quality in art is a fiction of the artist
B. Quality in art is a fiction of the critic
C. Quality in art is the cost of making art
D. Quality in art is the selling price of art
E. Quality in art is none of these things, some of these
[things, all of these things

4. What is the relationship between politics and art?


A. Art is a political weapon
B. Art has nothing to do with politics
C. Art serves imperialism
D. Art serves revolution
E. The relationship between politics and art is none of
[these things, some of these things, all of these things

5. Why do I continue?
A. I continue because art is my life work
B. I continue because art is my commercial business
C. I continue because art will die if I stop
D. I continue because art will continue unchanged if
[I stop
E. I continue because none of these things, some of
[these things, all of these things”

Carl Andre

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INTRODUÇÃO

“Queremos sempre saber de novo a razão da arte, e a resposta está sempre apenas dentro dela”
(Alberto Pimenta, 2012)

A pesquisa que apresentamos aqui entra para o rol da tradição de aproximar a


psicanálise da arte. De certa forma, dá continuidade ao percurso de mestrado (2011-2013) –
realizado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto – que resultou em uma dissertação
sobre o poeta citado na epígrafe acima. Em 2012, quando a pesquisa sobre Pimenta já iniciara,
o poeta me entregou em mãos um livro chamado “De la mort à l´art” (1977), do psicanalista
Michel de M´Uzan, e disse-me: “acho que é exatamente assim que acontece”. Naquelas
circunstâncias, entretanto, pudemos desenvolver de maneira incipiente as ricas contribuições
do livro, na busca por acomodar uma teoria psicanalítica em um texto que seria apresentado a
teóricos da literatura. Felizmente, a receptividade das Letras viu no texto a originalidade, não
o empecilho. Uma primeira ação foi lançada, embora pouquíssimo esgotada. Então, reservei
boa parte do que lia em M´Uzan para uma futura pesquisa, agora do lado de cá, que aqui segue
seu curso. É daí que vem nosso ponto de partida.
Na presente trajetória, nosso objetivo inicia com a pergunta já usual: por que criam os
artistas? No que consiste a criatividade artística? Com ela, entretanto, vêm as seguintes: quais
os efeitos no psiquismo desse tipo específico de criação dentre tantas outras criações humanas?
Mas, afinal, o que é um artista? Como podemos defini-lo? Valerá defini-lo? E defrontamo-nos
então com os percalços que sempre acompanham o tema, fugidio da psicanálise em sua
natureza. Optamos, então, por aceitar essa fugacidade, em primeiro lugar, e não confrontá-la.
E assim centramos nossa pesquisa no mais fundo que pudemos ir nos processos criativos,
buscando investigar a ação de mecanismos inscritos nos limites do psiquismo e que, em nossa
hipótese, estão na base da criação de um tipo de arte que podemos chamar de dotada de raiz
estética; capaz de provocar efeito estético. É sobre isso, afinal, que versa o livro que inspira
esta tese.
Não tomaremos um tipo de expressão artística, nem uma determinada corrente estética,
tampouco uma obra ou autor específicos. Nossa pesquisa não contempla as particularidades
distintivas entre as variadas formas em que uma obra de arte pode se apresentar – música,
literatura, escultura, teatro, etc. A discussão é, antes, sobre o efeito estético da arte em sua

11
dimensão mais primitiva, o que nos leva ao campo da radicalidade da relação com a alteridade.
Dessa maneira, apresentamos também uma teoria da arte segundo um ponto de vista
psicanalítico que remonta a Freud e dialoga com a modernidade e a psicanálise contemporânea.
Em nosso entendimento, indagar “o que é arte”, antes de sondar o enigma da criatividade dos
artistas, consiste em uma oportunidade de fazer trabalhar os conceitos que rondam o encontro
da arte com a psicanálise. É uma pergunta que Freud tentou responder, afinal, e nosso percurso
investiga a própria maneira como isso ocorreu. Mesmo que seja uma pergunta sem resposta,
nosso recorte arrisca-se a traçar uma hipótese.
Antes de apresentarmos nosso passo a passo, convém mencionar que nosso estudo, em
todos os seus esforços, pretende seguir um rumo diferente ao da patografia, que não nos pareceu
promissor desde o início. Por “patografia”, compreendemos o tipo de estudo que sobrepõe a
metapsicologia à arte, tomando o artista e sua obra como uma espécie de caso clínico, lido sob
ótica similar à das ferramentas que nos auxiliam a compreender a manifestação dos sintomas.
A nós, parece que esse caminho acaba por sugerir uma patologização da arte, como
possibilidade de desvio de um excesso, enquanto é infinitamente mais que isso. Pareceu-nos
produtivo a tentativa de ir além da patografia, de alguma maneira.
Essa premissa nos remete inevitavelmente às primeiras investigações de Freud sobre o
tema e a postura científica que assumiu diante das obras de arte, a maneira como articulou as
análises das obras na construção de sua “ficção metapsicológica”. Como indica Chaves (2017,
p. 9), a partir dos depoimentos de Max Graf, as inclinações de Freud para a arte não poderiam,
de fato, ocupar um lugar central em sua obra. O relevo dado a esse campo decorria mais “da
importância que tinha, para Freud, a aplicação de seu método aos mais variados domínios da
vida psíquica, de tal modo que essa múltipla aplicação constituía no fundo uma unidade, uma
espécie de sistema” (p. 9). Tal busca por unidade seria, portanto, condutora do trajeto trilhado
pela tão questionável “psicanálise aplicada” à arte, que alguns autores revisam em virtude de
seu grau de determinismo na leitura e interpretação dos objetos e processos artísticos. Pontalis
(2015), por exemplo, afirma em uma conversa com M´Uzan, que seu desconforto nessa
perspectiva, é a “posição de leitor soberano” assumida pelo psicanalista – “leitor-analista”, em
seus termos –, que age “sem pedir permissão a ninguém, principalmente ao autor” (p. 6).
Ademais, considera-se com ênfase no campo psicanalítico que o método freudiano
empregado no estudo das figuras artísticas não poderia se realizar sem operar uma espécie de
tangência aos temas da arte, aos quais vai conferindo localização de subsolo em seu conjunto
teórico. Na superfície dos textos, estaria essa complexa teoria da criatividade que sobrepõe os
elementos biográficos – oriundos da história infantil do artista – em relação à obra. Esse é um

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ponto movediço e ambivalente, pois, por um lado, a centralidade da sexualidade no
entendimento da criação pode ser redutora da compreensão da amplitude da arte. Por outro
lado, no entanto, a teoria de Freud inaugura um paradigma inovador no estudo da criatividade
e entra para a história da arte por diversos caminhos e frestas. A partir de sua “Interpretação
dos Sonhos”, a maneira de se estudar a arte foi enriquecida permanentemente.
A patografia, aliás, não consiste num método inaugurado exclusivamente pela
psicanálise, mas reaparecido e fortalecido por ela, existente desde o final do século XIX e
questionado por diversas correntes estéticas do início do século XX no âmbito da crítica
literária e das teorias da arte, como a partir do surgimento do Formalismo Russo, em 1920 ou,
mais tarde, com as contribuições de Theodor W. Adorno e a teoria crítica de Frankfurt. Em
uma passagem bem conhecida de sua Teoria Estética (1970), o filósofo afirma que a teoria
psicanalítica, no que concerne ao campo artístico, “decifra fenômenos, mas não atinge o
fenômeno arte” (Adorno, citado por Pimenta, 2003, p. 21). É um ponto de vista também
assimilado dentro do campo psicanalítico, por autores que destacaremos ao longo de nosso
estudo; a saber: Jean Laplanche, Jean-Bertrand Pontalis, Murielle Gagnebin, Michel de
M`Uzan, Inês Loureiro, Joel Birman e, inclusive, o próprio Freud, que segundo Chaves (2017)
teria dito em 1907, em uma sessão das Sociedade das Quartas-Feiras, que “a Psicanálise merece
ser colocada acima da patografia, pois ela inquire acerca do processo de criação. Todo escritor
pode ser objeto de uma patografia, mas esta não nos ensina nada de novo”. 1
É significativo, então, observar como Freud aborda a arbitrariedade da aplicação de sua
metapsicologia aos artistas, reservando eventualmente um espaço nos seus textos para afirmar
uma certa desconfiança dos passos que a psicanálise pode dar na direção da arte. O texto sobre
Leonardo da Vinci pode ser visto por seu brilhantismo através de muitos ângulos, mas
destacamos aqui os movimentos ambíguos que Freud expressa em relação aos seus próprios
caminhos. Isto é, desde o início, o psicanalista toma a questão do inacabamento do pintor como
linha argumentativa, mas afirma, ao fim, que “a patografia não tem, de modo algum, como
objetivo tornar compreensível o desempenho do grande homem; não se deve jamais censurar
alguém por não ter feito o que não prometeu fazer” (FREUD, 1910/2017, p. 153).
As afirmativas desse teor se repetem em uma série de outras publicações que vão desde
seus ensaios metapsicológicos originados de grandes conferências até pequenos detalhes de
seu acervo epistolar, dos quais selecionamos uma ínfima amostra. Afinal, além de um

1
Minutes..., 1976, p. 257 ss.; Wiener..., 2008, citado por Chaves, 2017, p. 11

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investigador, Freud também foi um interlocutor de grandes artistas e outros estudiosos da arte.
Em 1933/2010, por exemplo, escreveu um prólogo a um estudo sobre o escritor Edgar Allan
Poe realizado por Marie Bonaparte, no qual cumprimenta a autora pela investigação e
reconhece o trabalho de interpretação psicanalítica sobre as obras de arte. Contudo, levanta
desconfianças de que se possa avançar no campo; afirma que as características da obra podem
ser determinadas pela natureza particular do autor, mas também podem constituir um
precipitado de vivências arcaicas que escapariam dos métodos comuns de análise psicanalítica
da arte. E afirma: “pesquisas como essa não pretendem explicar o gênio do escritor; mas
mostram que motivações o despertaram e que material lhe foi dado pelo destino. Há uma
atração especial em estudar as leis da psique humana em indivíduos extraordinários” (p. 469).
Dito isso, nossa metodologia de pesquisa absorve essa postura de Freud como um
primeiro trilho de investigação. Num segundo trilho, elegemos a inegável centralidade do
conceito de sublimação dentre aqueles que, no legado freudiano, buscaram uma explicação
para a criatividade artística. Na própria relação entre os dois trilhos, um campo se abre para
nós como uma espécie de “resto” tanto do primeiro como do segundo trilho: o domínio do
estranho e do regressivo. Do primeiro, porque associamos a postura de Freud à ação do efeito
estético em seu caráter de inquietante estranheza. Do segundo, porque fomos buscar a
possibilidade de ação de elementos inscritos num registro aquém da sublimação como motor
de impressão da dimensão estética nas obras. De certa forma, apostamos que esses dois
domínios entram na construção teórica de Freud como espécie de “corpo estranho” no conjunto
das análises de obras que empreendeu, nos quais se “enraizou” a sublimação. Tendo esses
trilhos como nosso guia, este estudo se estrutura da seguinte forma:
Dedicamos nosso primeiro capítulo à realização desse “mergulho” nos escritos de
Freud, destacando aquilo que seria uma “postura” diante da arte. Com foco numa visão
panorâmica sobre o modo como Freud se relacionou com alguns artistas e com algumas escolas
estéticas; e elencamos algumas questões históricas que envolvem o tema da arte e dos processos
de criação e apreensão artística oriundas da época quando Freud escrevia. Evidentemente, é
uma discussão que não pudemos esgotar, mas cujo recorte também afirma nossa postura diante
da metapsicologia freudiana da arte. Na companhia de Rancière (2001/2009) e Kon
(1996/2014), nosso objetivo é mostrar que o autor não foi apenas influenciado por artistas e
obras, mas foi parte integrante da revolução estética que caracterizou a modernidade. As
relações de leitura e escrita que Freud estabeleceu com a arte, por um lado, o instigavam a
procurar respostas possíveis para a natureza e a função da arte e, por outro, o mantinham
afastado, considerando as manifestações artísticas como um território demasiadamente

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estrangeiro à psicanálise e, como presume-se, a ele. Nosso argumento inicial tem apoio
principal na análise freudiana sobre a Gradiva de Jensen (1907), e nas formulações de
“Escritores Criativos e Devaneios” (1909). Este seria o primeiro eixo de nossa pesquisa, do
qual destacamos também a centralidade do conceito de sublimação, inseparável da perspectiva
de Freud de que a origem da criação artística estaria na força da pulsão sexual e em sua
capacidade de desviar de seu objetivo original.
Assim sendo, a complexidade da sublimação será apresentada em nosso segundo
capítulo. Daremos ênfase à problemática do sexual na formulação do conceito, com apoio
principal nas propostas de Jean Laplanche e Joel Birman, que avançam na reflexão sobre a
ambivalência que existe em torno da “deserotização” do produto sublimado, ao passo que sua
origem é, afinal de contas, sexual. Nosso trajeto vai buscar, nos enigmas do conceito, a relação
da arte com o tom de “elevação moral” e “valorização social” que cercam a sublimação em
suas origens. Em suas raízes, no entanto, há algo que escapa ao trabalho de representação,
permanecendo aquém da possibilidade de domínio da intensidade pulsional. A nosso ver, um
amplo terreno da experiência estética se situa, justamente, no que “resta” da sublimação. Esse
terreno, com efeito, articula-se à ação do traumático no psiquismo; ação do “estranho” que, na
arte, expressa não um conteúdo facilmente apreensível pelo conceito, mas uma sensação
registrada corporalmente.
Em nosso terceiro capítulo, a pesquisa se direciona aos fenômenos relacionados ao
estranho, aos quais Freud articulou algumas figuras da arte que expressavam para ele próprio
a ação de um irrepresentável, inapreensível para o psiquismo a não ser em seu caráter estético.
O estudo sobre o “Moisés”, de Michelângelo (Freud, 1914/2006) e uma particular atenção que
o autor deu aos contos fantásticos nos indicam que há uma segunda postura de Freud no campo
das artes; uma postura que vai, pouco a pouco, dando forma à nossa pesquisa. Trata-se daquela
postura mediada pela ordem da inquietante estranheza, da hesitação de si, onde não há trabalho
psíquico capaz de dar representação ao excedente pulsional. Nesse campo da experiência, são
os elementos inseridos num tempo aquém do cronológico que se apresentam, como no tempo
do trauma. Então, os limites entre o eu e o outro já não são precisos quando há um impasse em
relação à garantia de existência psíquica. Com a formulação do segundo dualismo pulsional,
Freud (1920/2006) dirá que, diante do traumático, a ação mortífera da pulsão entra em cena,
invadindo a estabilidade do eu, que está em posição passiva, pronto a agir compulsivamente.
Nosso estudo, no entanto, menos do que comprovar uma possível – ou impossível – ação
criativa da pulsão de morte, pretende mostrar que as obras de arte chegam até lá; podem
incorporar o traumático e ganhar forma pela dimensão estética do psiquismo.

15
O que defendemos, então, é que esse até lá significa o acesso à dimensão arcaica do
psiquismo, que através da arte encontraria uma possibilidade de inscrever as experiências que
pertencem ao campo do irrepresentável, conferindo a elas forma sensível. O que pode ser mais
primitivo do que a compulsão do eu a repetir aquilo que não consegue inscrever? Poderá a arte
mover esse degrau abaixo das camadas de revestimento daquilo que habita o espaço psíquico?
Acessar uma possibilidade de origem?
E então voltamos a Michel de M´Uzan, que se arrisca em questionamentos dessa
natureza em torno de um método investigativo particular. Se, em Freud, a obra é interpretada
à luz da metapsicologia, de maneira que o artista é peça da engrenagem da teoria que se
constrói, a obra de arte ocupa posição de produto do aparelho psíquico exemplarmente
desenvolvido por Freud. Em M´Uzan, a operação se inverte; ele aponta para a possibilidade de
a obra ser produtora de ações psíquicas, inclusive de construções psicanalíticas. Na maioria
dos trabalhos desse autor, a hipótese psicanalítica está à serviço da obra. O ponto de início,
geralmente, é o valor formal de um objeto estético, o que lhe permite realizar lances de dados
inesperados no campo psicanalítico, tanto mais na abordagem do tema em questão. O autor
analisa, entre outras coisas, elementos como ângulos, ritmos, som, cor, luz, etc., para buscar
posteriormente os conceitos do arsenal teórico psicanalítico, figurando como um entusiasta da
questão da criatividade e dos processos ligados à criação. Suas hipóteses indicam que há um
instante decisivo na experiência artística. O instante de uma espécie de “sumiço” do eu,
totalmente passivo ao plano sensorial, em que o corpo está totalmente à mercê das formas do
mundo. Para descrever essa disposição psíquica, o autor utiliza a noção de saisissement que,
em nossa escolha, será mantido no francês original. O termo seria o substantivo para o verbo
saisir, que na tradução para o português estaria aproximada à ação de “apreender bruscamente”
ou “capturar algo de forma inesperada”.
Dito isso, nosso último capítulo é dedicado ao desenvolvimento do âmbito limítrofe
entre o espaço psíquico e o território corporal-perceptivo, apostando na ideia de que eles estão
presentes de forma decisiva no contato com a obra de arte. Todo artista, afinal, é antes um
espectador; não há escritor que não seja leitor. Não se pode separar por completo a criação da
apreensão estética, e nosso objetivo é mostrar que aquilo que inspira um artista a criar é o
estado de abertura radical ao outro, a entrega ao “outro de si” na busca incessante pela liberdade
de lhe dar novos rostos. Jean Laplanche embasa nossa fundamentação de que a inspiração
artística remonta às origens do encontro com o outro em sua face mais arcaica; a da instalação
de uma vida pulsional, eternamente estrangeira em sua constituição. Com M´Uzan, de certa
maneira, vamos regressar ao nosso ponto de início, na tentativa de dar corpo à possibilidade de

16
ressoar o enigmático e o impoderável da arte, seus espaços de vazio e ruptura promovidos no
eu. A invasão do “corpo estranho” quando acompanhada de uma forma que fascina, poderá
impulsionar a busca por reconstrução narcísica? Até que ponto atirar-se no abismo é recurso
para encontrar um possível conforto para a queda? Iniciamos, assim, esse percurso que não se
isenta de suas próprias contradições, ao buscar abranger tal temática na circunscrição de um
texto acadêmico. Apostaremos, todavia, que a tentativa de estabelecer vínculos fortes entre
psicanálise e arte é muito mais ampla do que apresentamos neste trabalho, questão que se
evidencia pelo fato de vários dos autores com os quais trabalhamos ligarem a estética dos
processos artísticos à atmosfera analítica.
Por ultrapassar os limites de nosso tema, essa é uma questão que ficará em aberto, mas
para a qual esperamos contribuir, na melhor das hipóteses, ao longo de todo o texto. A partir
disso que entendemos como o “âmago” da arte, a ambição é deixar exposta a medula óssea do
que nos leva a criar e recriar formas para as existências, processo que não pode ocorrer fora da
zona de visão do outro. É para onde voltamos em cada sessão de análise, de certa maneira, ao
sustentar no olhar o impoderável do tempo e do corpo. Onde analista e paciente representam e
tantas vezes incorporam papéis e sensações para as quais apenas ensaiamos uma descrição
inteligível, mas que tem no enigmático sua permanente matéria prima.

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1 FREUD E A ARTE: UM ENCONTRO, UMA ATITUDE

“Sempre que não me encontro em meu próprio terreno, me oriento com dificuldade”
Sigmund Freud, 1927 2

Com a fundação da psicanálise, um novo olhar é lançado na direção do estudo da arte.


Freud, à frente da investigação e da constituição do saber psicanalítico, exerce influência
significativa no entendimento das razões da arte, com suas perguntas sobre o porquê da criação,
o sentido das manifestações artísticas, sua inserção na cultura e suas particularidades na ordem
das produções humanas. A cultura, como esclarece Birman (1997), consiste num dos pólos que
atuam como referentes decisivos na categoria de sujeito, juntamente a outro pólo
fundamentalmente embasado pela psicanálise, o do inconsciente. Eis o que sabemos como
sujeito atravessado pelo inconsciente: “uma produção simbólica e desejante que se delineia
entre os pólos da pulsão e da cultura” (BIRMAN, 1997, p. 10). Logo, o pensamento freudiano
desencadeia mudanças significativas no modo como se vê o sujeito moderno.
O impacto causado pelas proposições freudianas não incide apenas no saber médico,
guiado até então pela lógica positivista, com o qual Freud se viu às voltas para demonstrar sua
revolução epistemológica. Também as teorias da arte, a crítica literária e a própria produção
ficcional tiveram de abrir passagem para a possibilidade de interpretação de obras à luz da
psicanálise, absorvendo a ideia da consciência dividida e a formalização dos processos
inconscientes, como a associação livre e o fenômeno onírico. Um dos mais significativos
exemplos dessa infiltração encontra-se de forma declarada no Manifesto Surrealista, publicado
em 1924 pelo poeta francês André Breton (1930/2001), principal teórico do movimento.
Sem a pretenção de detalhar aqui a complexidade do Surrealismo, digamos apenas, com
Teles (1977), que ele representou um ponto culminante de uma série de expressões artísticas
que tiveram voz no início do século XX em diversos países da Europa, determinantes de
inúmeras rupturas no panorama artístico vigente, hoje conhecidas como as vanguardas
europeias. O Surrealismo emerge, portanto, como o manifesto de um território em
movimentação latente, como se fosse ele próprio a realização de um desejo inconsciente de

2
Carta a Arnold Sweig, 2 de junho de 1927. Correspondencia Freud-Sweig. Trad.: Margaret Miller. Argentina:
Granica, 1974, p. 10.

18
outros movimentos artísticos, relegando ao passado o estatuto da arte como ornamento e
assumindo o caráter de essência de vida, dotada de um valor estético (KON, 1996/2014).
Da relação com a psicanálise, Breton e seu grupo valem-se do paradigma do sonho
como instrumento para fundamentar o automatismo na escrita, admitindo como mecanismo da
escrita automática aquelas manifestações em que um livre curso das associações é posto na
obra, tal como o livre curso da atividade onírica. Num agradecimento explícito a Freud, Breton
escreve (TELES, 1977, p. 173): “Deve-se dar graças às descobertas de Freud. Na trilha de suas
descobertas, esboça-se uma corrente de opinião, a favor da qual o explorador humano poderá
levar mais longe suas investigações, autorizado que estará a não mais levar em conta realidades
sumárias. Talvez esteja a imaginação a ponto de retomar seus direitos”.
Contudo, como indicam Kon (1996/2014) e Pontalis (1977), o entusiasmo com que
Breton absorve os pressupostos freudianos não ocorre inversamente da mesma forma. Freud,
por seu turno, teria visto com olhos desconfiados a articulação de seu nome ao Surrealismo,
prezando pela integridade de sua estrutura teórica. Entre outras razões, o autor se distanciava
do projeto surrealista em virtude da pretensão do grupo de mimetizar o inconsciente na arte,
tendo admitido apenas alguns pontos de interesse, como o fato da arte ter a capacidade de
transgredir limites imprecisos via manifestação inconsciente, como escreve a Stefan Zweig, em
19383. Outro ponto que prevenia Freud de uma aproximação maior com o Surrealismo, como
supõe Aubourg (2002), era o risco de uma confusão de sua simbólica, apresentada e
desenvolvida em “A Interpretação dos Sonhos”, de 1900, com um simbolismo junguiano, o
que sugere um tom de incompreensão de Freud sobre o plano estético da arte moderna.
Outros exemplos podem ser mencionados relativamente aos artistas com os quais Freud
estabeleceu uma relação de teor paradoxal, ao passo que abrangem simultaneamente atitudes
de ressalva e interesse, questão evidenciada por todo o registro epistolar do autor. Salvador
Dalí, por exemplo, que “com seus ingênuos olhos de fanático e sua inegável maestria técnica”4
tencionou Freud a “reconsiderar os surrealistas”, aqueles “loucos arrematados”; ou Oskar
Pfister, a quem o psicanalista confessou ter lido seu livro sobre o expressionismo “com tanto
interesse quanto aversão”.
Com o romancista Arnold Zweig, Freud manteve uma longa correspondência nas quais
fica nítido o fascínio que os artistas nutriam pela psicanálise, tanto em seu caráter de liberdade
individual como política, havendo grande acento na importância de Freud como figura

3
Sigmund Freud. Correspondência de Amor e Outras Cartas, 1982.
4
Idem. Carta de 1938 a Stefan Zweig.

19
legitimadora e parecerista de obras literárias que lhe eram enviadas para leitura, assim como
de núcleos considerados marginalizados na Alemanha, para os quais Zweig solicitava o apoio
do fundador da psicanálise. Da postura de Freud, notamos o tom complacente e, ao mesmo
tempo, altivo ao expressar sua solidariedade aos pedidos e interesse pelas leituras, sublinhando
sempre a linha que os aproximava e, em simultâneo, que os separava. Em 1930, provavelmente
ocupado da escrita de “O Mal-Estar na Civilização”, Freud explica a Zweig que não poderia
atender seu mais recente pedido, de escrever sobre “a verdadeira vontade de poder”. Freud usa
as seguintes palavras: “Sei demasiado pouco sobre as ânsias de poder dos homens, já que
sempre vivi como um teórico. Assombro-me a cada vez que vejo até que ponto as correntes
dos últimos anos têm tentado me arrastar até o atual, o moderno”. 5
No entanto, nem sempre a relação de Freud com os artistas aparece acompanhada de
tantos entraves. Por um outro lado, o autor mantém relações de verdadeiro deslumbramento
com escritores, pintores e escultores cujas obras, de algum modo, se regulam a partir da
subordinação à categoria do belo, mesmo quando se remetem ao registro do sublime, que desde
seu início surge como contraponto à ideia de beleza. Neste sentido, estamos de acordo com
Loureiro (2003) quando afirma ser necessário distinguir dentro da teoria de Freud as ideias
sobre arte das ideias sobre a beleza, de modo que podemos considerar que a filiação freudiana
à estética do belo acaba por circunscrever um corpus de suas análises de obras de arte. Como
se Freud tivesse alcançado pouco êxito nessa diferenciação, a autora sugere que todas as
proposições freudianas sobre arte merecem uma revisão, por dois motivos: o primeiro deles é
que a beleza traz em si o caráter de deciframento e revelação de sentido oculto, ideia que Freud
aplicou amplamente em sua teoria, portanto longe de ser exclusiva à arte. O segundo,
consequentemente, é que nem toda a arte tem a função de embelezar, como tentamos evidenciar
com a contextualização da arte considerada vanguardista, transgressora ou mesmo indiferente
a tal função.
Isso significa dizer, portanto, que foi sempre às formas consideradas “oficiais” pela
categorização estética que Freud submeteu sua teoria, procurando nelas resoluções universais,
de maneira similar ao seu trabalho clínico: do particular ao abrangente. Assim, na relação com
artistas como Shakespeare, Goethe, Schiller, Heine, Dostoiévski, entre tantos outros, o
psicanalista exprime sua admiração, fazendo dessas obras não só objetos de análise e
apreciação, como também de ilustração clínica, situando as experiências artísticas,

5
Carta a Arnold Zweig, 7 de dezembro de 1930. Correspondencia Freud-Zweig. Trad.: Margaret Miller.
Argentina: Granica, 1974, p. 10.

20
principalmente as criativas, no registro do triunfo sobre mal-estar ou, nas palavras de Loureiro
(2003), de satisfação substitutiva – uma atividade que satisfaz quase tanto quanto o desejo
sexual. Podemos encontrar este ponto desenvolvido nitidamente nos “Três Ensaios sobre a
Teoria da Sexualidade”, num trecho que vale a pena reproduzir, embora venhamos a aprofundar
a relação da arte com o sexual e a sublimação somente no segundo capítulo.

A progressiva ocultação do corpo advinda com a civilização mantém desperta a


curiosidade sexual, que ambiciona completar o objeto sexual através da revelação das
partes ocultas, mas que pode ser desviada (“sublimada”) para a arte, caso se consiga
afastar o interesse dos genitais e voltá-lo para a forma do corpo como um todo.
(FREUD, 1905/2006, p. 148)

O “corpo como um todo” entende-se aqui como beleza. Eis aqui o que Freud entende
por belo em seu radical: a sensação do apaziguamento através da contemplação daquilo que
está desviado ou recoberto pelo olhar. Curiosos são, portanto, os itens biográficos que mostram
o fundador da psicanálise tantas vezes num estado que vai, justamente, de encontro ao do
apaziguamento, nas relações que estabeleceu com os artistas. É o que parece ter havido, por
exemplo, com Artur Schnitzler, ficcionista e dramaturgo vienense com quem, de acordo com
Mango & Pontalis (2013, p. 152), Freud teria estabelecido uma relação de cunho especular,
tendo denominado o escritor como um possível “duplo”6 de si, em carta de 14 de maio de 1922
(p. 154). A hipótese é que isso tenha ocorrido não só pelas inúmeras semelhanças biográficas
que aproximam Freud e Schnitzler, nem só pelo fato de terem escrito incansavelmente – cada
um em seu terreno –, nem apenas pelo caráter renovador de suas obras, mas principalmente
porque Schnitzler inquietava Freud. Por um lado, o escritor compartilhava de seus mesmos
anseios, “a vontade comum, incansável, obstinada, de, por caminhos distintos, desbravar terras
desconhecidas” (MANGO & PONTALIS, 2013, p. 154), por outro lado entregava-se a tal
missão através da linguagem poética, pouco se importando com a resolução universal, muito
menos científica, das manifestações do inconsciente, possibilidade que Freud não se atrevera a
atribuir-se.
Deste modo, é com visibilidade que o estudo sobre arte, no campo psicanalítico,
consiste num caminho cuja delimitação é enevoada em seu próprio surgimento, expresso pela
trilha traçada por Freud e pela própria relação que estabeleceu com os artistas; logo, com sua
concepção sobre arte. Se, por um lado, um certo tipo de arte foi admitido como válido ou
merecedor de absorção em sua construção teórica, por outro também ouve essa espécie de

6
Freud escreve: “Evitei-o em decorrência de uma espécie de medo de conhecer o meu duplo”.

21
“outro” Freud, que deixa indícios de resistência a outras formas de arte, talvez as que lhe
causaram maior impacto, seja através da aversão (como parece ter ocorrido com o projeto
surrealista) ou da inquetude, como vimos acima a respeito de Schnitzler.
Ainda assim, a contribuição freudiana para o assunto é inegavelmente relevante e o
grande feito de Freud talvez tenha sido o de abranger, num só núcleo de pensamento, respostas
possíveis tanto para o entendimento da arte como para o entendimento do funcionamento
psíquico, um através do outro. De sobra, contribuiu para o própria transformação do campo
artístico e intelectual na modernidade, com a originalidade de seu método, motivo provável
pelo qual Arnold Zweig, em suas lisongeiras cartas ao “querido e admirado professor Freud”,
denomina-o como “o precursor mais reto e intrépido do emprego da razão humana”, na ocasião
em que Freud recebe o prestigioso Prêmio Goethe, em 1930. A premiação, como afirma Bracco
(2011), foi instituída em 1927 na cidade de Frankfurt, cidade natal do poeta que lhe dá nome,
e é considerada ainda hoje como um dos mais importantes eventos de reconhecimento
intelectual e cultural da Alemanha. Com o objetivo de destacar as personalidades mais
importantes em termos de contribuição cultural e intelectual, a cada três anos eleva seus
vencedores à genialidade de Goethe. No discurso da cerimônia que concedeu a honraria a
Freud, constou o brilhantismo com que atuou na psicanálise em diálogo com artistas e suas
obras, tendo sido sua própria extensa escrita reconhecida como valorosa do ponto de vista
literário, porém não restrita a esse aspecto (BRACCO, 2011).
O que esse fato indica é que Freud atuou no campo artístico com maior consolidação
quando suas propostas estiveram à serviço da formulação do método de tratamento
psicanalítico, guiado pela premissa básica sobre a importância da linguagem na compreensão
dos fenômenos psíquicos, que desde o início da obra, como em “O tratamento psíquico”, de
1981, aparece como o procedimento por excelência, em que a linguagem é “ela própria
instrumento de uma operação: confissão, acusação, injunção” (SCHNEIDER, 1993, p. 20).
Cabe mencionar também a célebre conferência “Sobre a Psicoterapia”, de 1905, em que
apresenta suas recentes conclusões aos colegas de medicina utilizando a comparação da técnica
da psicanálise com a técnica utilizada na produção de esculturas. O trabalho de lapidar e moldar
excessos, a busca por contato com o material bruto que sempre estivera ali, é posto como
similar ao trabalho de derrubar as resistências do paciente, dando a ideia de que, em ambos os
processos, há um trabalho de arte a ser empreendido. Mais tarde, em “A Dissecação da
Personalidade Psíquica” (1933), ao definir a já conclusiva versão do aparelho psíquico, Freud
volta a compará-lo às técnicas artísticas, afirmando que, se fôssemos colocar o psiquismo em

22
contornos gráficos, o mais apropriado seria recorrermos aos pintores modernos, “com áreas
cromáticas que se fundem umas nas outras” (FREUD, 1933/2010, pp. 222-223).
Afinal, as referências dentro da obra são múltiplas e a figura do artista é convocada
sempre que Freud parece ir um pouco além ou, em suas palavras, sempre que não está em
“terreno próprio”, mas do qual nutre-se de forma mais ou menos evidente, de acordo com o
projeto de erguer os pilares que sustentam a psicanálise até a atualidade. Nesse contexto,
Pontalis (2015) refere que a relação da psicanálise com a literatura, por exemplo, marca em
grande parte as origens do saber psicanalítico, configurando simultaneamente pilar e objeto de
aplicação de suas questões. Toda a questão ficcional dos casos clínicos de Freud, relatados em
tom romanesco, “o Projeto para uma Psicologia Científica jogado no papel como um poema
em sua febre criativa” (PONTALIS, 2015, p. 5), todo o acervo epistolar freudiano e o projeto
de “colocar em escritura” descrito em “A Interpretação dos Sonhos”, seriam dados básicos da
intrincação de Freud com as artes.
Por outro lado, a escrita e a prática clínica deixam-se tocar apenas em suas arestas, tendo
em vista que toda a estruturação e transmissão da psicanálise é composta de uma escrita, no
sentido da construção realizada no processo analítico, assim como uma análise da escrita, que
origina a complexa ideia da psicanálise aplicada, objetivada pela durável investida de Freud no
entendimento do processo criativo. Ainda assim, a aproximação é paradoxal, à medida que a
área que aproxima arte e psicanálise é também, inversamente, aquela que as afastam. São
registros que se tocam, mas permanecem localizados em territórios distintos, cujos movimentos
são inversamente opostos. É o que defendem Pontalis e M´Uzan (2010) quando indicam que o
objetivo de toda a análise é, por fim, “desenvolver um sentido de escrita”, mas para isso é
necessário, de fato, que a psicanálise se mantenha realizando movimentos mais redutores, de
certo modo, em comparação aos movimentos expansivos próprios ao registro da arte. Nesse
sentido, a genialidade das operações de Freud triunfa novamente. Vejamos algumas hipóteses
para explicar esse fato.

1.1. UMA VERSÃO DA HISTÓRIA

Lançando um olhar mais crítico à permanente investida freudiana no campo artístico,


podemos verificar que o autor, ocasionalmente, é considerado como um teórico que atuou para
além da psicanálise; isto é, como um autor de literatura. Em tom mais radical, na visão de
alguns autores, Freud pode ser perfeitamente lido como um verdadeiro poeta. Como é de se
supor, tal acepção é mais comum noutros campos de estudo que não a psicanálise, como a

23
crítica literária, a filosofia ou a história da arte. Harold Bloom (1930/1994), por exemplo,
destaca a presença de Freud no contexto do romantismo afirmando que, ao lado de Nietzsche,
Freud foi um “dos mais fortes poetas da tradição romântica europeia” (p. 14). Num ponto de
vista muito particular, o crítico atribui ao legado freudiano a virtude típica da poesia forte, que
seria a de promover a “usurpação psíquica”, sendo ela própria a atualização do questionamento
sobre os motivos da criação de obras de arte. Em outras palavras, a força da obra, na visão de
Bloom, é aquela depois da qual nada permanece igual, em que as perguntas precisam ser
refeitas, principalmente a pergunta sobre o porquê de criar. Neste feito, Freud teria sido um
expoente da demonstração da “poesia forte”, pois foi uma questão que lhe foi cara (p. 18).
No campo da psicanálise, com mais cautela, alguns autores vão aproximar a
investigação de Freud a uma investigação estética ao explorar historicamente os aspectos que
destacamos no tópico anterior e que sugerem a sua hesitação no campo da arte, bem como a
relação paradoxal que estabeleceu com os artistas, a resistência ao saber puramente científico,
entre outras questões. Tal caminho de reflexão, em geral, apresenta duas vertentes
complementares: uma de autores que concluem que Freud foi vigorosamente influenciado pela
arte e, somente por isso, pôde fundamentar a psicanálise; e uma de autores que defendem que
a própria psicanálise é uma espécie de ciência-ficção. Vamos tomar como centrais o estudo de
Kon (1996/2014), como exemplo da primeira vertente; e de Rancière (2001/2009), como
exemplo da segunda.
Em “Freud e seu Duplo”, Kon (1996/2014) apresenta um exaustivo estudo sócio-
histórico do campo artístico e intelectual no contexto da atuação de Freud. A autora defende
que, levando tais perspectivas em consideração, toda a psicanálise se constrói em razão da
ficção, “pautada por uma densa ambiguidade – e por isso mesmo essencial –, do criador da
psicanálise e de sua obra com as artes em geral e, mais particularmente, com a nova arte de seu
tempo” (p. 55). Essas perspectivas seriam, em primeiro lugar, a tão comentada Viena do final
do século XIX, posteriormente chamada de “modernidade vienense”, da qual, para autora,
Freud não apenas foi influenciado, mas ele próprio e seu pensamento seriam partes
constituintes da revolução cultural que entrava em curso. Em diálogo com estudiosos da época,
Kon assume que Viena foi “berço primitivo” da chegada e disseminação da arte moderna,
através da ruptura com as manifestações da arte clássica, promovida pelo movimento que ficou
conhecido como “Secessão”7, termo que indica corte, desmembramento e clivagem.

7
Da “Secessão Vienense” ou “Secessão de Viena” fizeram parte dezenove artistas, liderados por Gustav Klimt,
que promoveram uma exposição inaugural, em 1898, que ia de encontro às normas estabelecidas pela Casa do
Artista, que ditava as ordens do setor cultural.

24
O que a Sesseção Vienense reivindicava na arte e nas produções intelectuais da época,
como lembra Kon, eram a fragilidade e a impermanência do Eu, convocação que implica o
desejo de legitimar nas manifestações artísticas a ideia de multiplicidade e indeterminação,
questões exaltadas nas diversas correntes estéticas que tiveram lugar no início do século XX.
O embrião de toda a arte moderna estaria já aí, fixado desde a útima década do século XIX,
momento no qual o núcleo artístico de Viena teve participação fundamental: “a verdade
objetiva é relativizada na subjetiva, e esta, ancorada em sensações que abrem um espaço
inteiramente novo, para o qual ainda deveriam ser encontradas as denominações adequadas: o
interior, a alma, o sistema nervoso, o inconsciente” (p. 65).
Tomado que estaria por tal atmosfera, para Kon, é neste contexto que Freud atua, em
uma espécie de “flerte distante” com a arte, autorizado a pôr em prática a construção de um
método que, assim como a revolução cultural, também admite a contradição, a mutação e a
multiplicidade do eu como premissa de base. O estudo do sonho constitui, nas palavras de Kon,
um alicerce desse “novo território” que inclui os sonhos do próprio fundador da psicanálise, à
medida que não poderia ter havido estudo sobre os sonhos sem auto análise:

[Freud] não introduz apenas a produção onírica, alvo, até então, da atenção de poetas,
de supersticiosos ou ingênuos, mas se apoia em seus próprios sonhos [....] O sonho,
entendido como a via régia para o acesso ao saber inconsciente, traz em si o apelo à
singularidade e ao não racional. A intimidade do cientista, doravante, impregna seu
trabalho, dirige seu olhar e é objeto de sua atenção. (KON, 1996/2014, p. 67)

Assim, a hipótese aqui é de que Freud constrói um método autêntico que combina “uma
modalidade de pensamento calcado em moldes positivistas” e a “observação rigorosa da
matéria empírica”, o que faria surgir um novo método de investigação, subversivo de sua
própria origem, à medida que questiona essencialmente o papel da razão frente ao caráter
irruptivo do humano, contextualizados em termos de sexualidade e morte, essencialmente. Dito
de outra maneira, é por este motivo que Freud só poderia ter criado a psicanálise a modo de
criação de uma “obra” fundamental:

O objeto de investigação da psicanálise não é outro senão o sujeito que investiga; o


psicanalista é também movimentado por suas fantasias, assujeitado às pulsões e,
dessa maneira, o distanciamento entre esses dois supostos polos da investigação é
impossível. O conhecimento só pode ser alcançado, ou melhor, criado, estando o
cientista intimamente engajado em sua obra, transformando-se no e pelo trabalho.
(Kon, 1996/2014 p. 68)

Desse modo, a autora sustenta um ponto de vista de que Freud foi, em simultâneo,
produto e produtor “de um contexto de revisão profunda das ideias e valores liberais do século

25
XIX” (p. 68). Isso porque, mesmo mantendo uma espécie de “distância segura” em relação aos
artistas expoentes dos movimentos controversos da arte, como foi com Salvador Dalí e André
Breton, a exemplo do que já abordamos, o que Kon indica é que houve uma absorção mútua
entre arte e psicanálise em sua própria fundação, mesmo que à revelia de Freud, pelo menos
conscientemente. À medida que ele teria sido influenciado pelo contexto artístico,
consequentemente validou os preceitos da modernidade proclamada pelos artistas da época, na
construção de seus fundamentos.
Numa reflexão semelhante, que ruma, contudo, noutra direção, Jacques Rancière
(2001/2009) considera que Freud operou uma investigação de teor estético em todo o seu
percurso, porém fundamenta sua hipótese a partir da análise do conteúdo artístico que sustenta
os pilares da obra freudiana. Em tom direto, em “O Inconsciente Estético”, o filósofo antecipa:
“Não se tratará, aqui, de psicanalisar Freud. As figuras literárias e artísticas por ele escolhidas
não me interessam porque remeteriam ao romance analítico do Fundador. Interessa-me saber a
que servem de prova e o que lhes permite servir de prova” (p. 10). Para Rancière, o grande
feito de Freud em relação à arte, não foi o de interpretar as formações da cultura, mas provar a
permeabilidade do não-pensamento no pensamento, “de certa presença do pensamento na
materialidade sensível, do involuntário no pensamento consciente e do sentido no
insignificante” (P. 10). Esta permabilidade, assim como sustenta Kon, pode ser vista na própria
permeabilidade de Freud em suas ações de pesquisa, tendo sido sujeito e objeto de suas
análises, método psicanalítico por excelência.
O inconsciente freudiano, como defende Rancière, é permeado pela ideia de um
inconsciente estético que veio à tona através da revolução promovida pelo campo artístico,
absorvida e validada por Freud. Tal revolução seria o da fixação do campo da estética na
compreensão da arte, processo do qual Freud é herdeiro e componente: “o pensamento
freudiano, para além de qualquer classicismo das referências artísticas de Freud, só se torna
possível com base na revolução que opera a passagem do domínio das artes do reino da poética
para o da estética”. (p. 14). Com isso, o filósofo afirma que o conjunto da obra freudiana integra
um movimento de passagem da lógica da ordenação do pensamento para a lógica da vacilação
do pensamento; em suas próprias palavras, da união paradoxal entre logos e pathos.
Logo, as investidas de Freud na compreensão da arte estariam desta maneira
comprometidas, questão evidenciada, na visão de Rancière, desde a introdução de Édipo no
centro da teoria de Freud. Mesmo tendo utilizado a figura mítica de Édipo como apoio para sua
teoria, o fundador da psicanálise teria de se haver com o fato de que não há apenas uma leitura
de Édipo; há sempre uma recepção nova para a mesma tragédia, fato que Freud intuitivamente

26
aplica para fundar seu método de tratamento. Contudo, há um degrau ainda mais fundo nessa
discussão: os caminhos abertos por Vico.
1.1.1. As menções a Vico

No contexto dessa pré-história da relação de Freud com o campo artístico, tanto Jacques
Rancière como Harold Bloom trazem uma curiosa menção às ideias do filósofo italiano
Giambattista Vico (séc XVII-XVIII) como um marco fundamental para que a revolução
estética pudesse começar a ser posta em prática na modernidade. Ambos autores sugerem, desta
feita, que tal revolução marca também a sustentação do pensamento de Freud em relação à arte.
Como um “precursor freudiano”, em ambas as perspectivas, Vico teria realizado um trajeto
similar cerca de duzentos anos antes de Freud, da seguinte forma: a partir de uma pesquisa nos
antigos hieróglifos, concluiu que eles não guardavam, necessariamente, um sentido oculto
religioso, mas antes o conteúdo inconsciente de quem o criara. Rancière sublinha, com esse
dado histórico, a teoria de que a palavra da arte carrega, como marca mais forte, rastros do
conteúdo inconsciente de seu criador, questão que nos escritos literários acompanha todo o
domínio da estética no plano filosófico, incluindo, na perspectiva de Rancière, o pensamento
freudiano.
Para Bloom (1930, p. 15), Vico desvenda “o genuíno escândalo das origens poéticas”,
ao desfazer pela primeira vez a ideia de que a poesia transmite conteúdos ocultos pré
estabelecidos que teriam como efeito o deslumbramento e a elevação. Acima de tudo, Vico
inaugura a ideia da poesia como defesa contra o terror da morte e da invasão de pensamentos
considerados perigosos pela mente humana. Por isso, a relação com Freud é evidente, pois
“uma defesa psíquica em termos viconianos não é significativamente diferente da noção
freudiana de defesa” (p. 21). Com “defesa psíquica”, aqui colocada em termo geral, fora do
âmbito psicanalítico, Bloom se refere à dimensão de “ignorância e identificação” do humano,
ou seja, àquela em que o sujeito vacila entre conhecer-se e desconhecer-se, perspectiva
legitimada por Freud no campo psicanalítico com a ideia de consciência dividida.
Podemos dizer, assim, que sobre esse terreno de base se estrutura toda a ideia da arte
no campo psicanalítico, identificando-se na pré-história de sua teorização a ideia de que as
obras de arte são produzidas em registro de condição de existência, motivadas pela vontade do
humano de superar a si mesmo. Na perspectiva de Bloom, foi sempre este o móvel da poética
na cultura ocidental: a razão entre a impotência e a onipotência, dinâmica que regula a ação

27
dos poetas tanto internamente como externamente, ou seja, numa permanente relação de
influência e superação de si e de uns com os outros8.
Rancière situa a mesma dinâmica em termos do advento da sobreposição entre pathos
e logos, que a partir da modernidade passa a ditar os modos de conceber a arte. O fundamento
da arte está, nessa acepção, no fato de que os objetos artísticos funcionam ora como um
esconderijo, ora como um desvelamento do eu, tal como preconizado por Vico e, de certa
maneira, preservado até Freud: “Há solidariedade entre o caráter poético da linguagem e seu
caráter cifrado. Mas essa cifragem não dissimula nenhuma ciência secreta. Ela não é, enfim,
nada mais que a inscrição do processo mesmo pelo qual essa palavra é produzida”
(RANCIÈRE, 2001/2009, p. 30).
Dito de outra maneira, o que Freud formaliza, para Rancière, é a ideia de um
inconsciente estético, conceito que, simultaneamente, situa-se na pré história da psicanálise e,
como vimos, viabiliza a sua fundação. Ou seja, “a grande regra freudiana de que não existem
‘detalhes’ desprezíveis, de que, ao contrário, são esses detalhes que nos colocam no caminho
da verdade, se inscreve na continuidade direta da revolução estética” (p. 35-36). Freud nos dá
notícias, portanto, da ruptura promovida outrora pelo contexto sócio-cultural vigente no
período em que trabalhou e fundou os pilares do saber psicanalítico, indo ao encontro da ideia
de que “não existem temas nobres e temas vulgares, muito menos episódios narrativos
importantes e episódios descritivos acessórios. Não existe episódio, descrição ou frase que não
carregue em si a potência da obra” (p. 35-36).
Vejamos mais objetivamente, portanto, como ese processo se evidencia no legado
freudiano, dando início à inevitável revisita do corpus artístico de Freud. Vamos aceitar, para
isso, a premissa de Loureiro de que Freud desenvolveu, sincronicamente, uma teoria da arte e
uma teoria estética, e que ambas constituem campos distintos que devem ser analisados
separadamente.

8
Esta relação dos poetas entre si é o que Bloom desenvolve mais especificamente em termos de angústia da
influência, teoria que teremos a oportunidade de abordar ao longo de nosso estudo.

28
1.2. UMA TEORIA ESTÉTICA PARA FREUD

“As palavras são um material plástico, que se presta a todo tipo de coisas”
(FREUD, 1905/2006, p. 41)

Retomando, portanto, as ideias de Loureiro (2003), o desempenho de Freud em definir


um conceito de estética é questionável, senão insuficiente. Por todo o contexto histórico,
cultural e filosófico que abordamos, é fácil concluir que, de fato, a definição de um campo
preciso da estética não foi a prioridade do projeto freudiano, embora o autor tenha se
aventurado e questionado esse solo de maneira insistente. Acontece que essa insistência, como
vimos, pouco se desvinculou da ideia do belo como premissa fundamental para se pensar sobre
estética enquanto categoria, teorização que parece inconcisa para se pensar, por exemplo, em
manifestações artísticas contemporâneas (LOUREIRO, 2003), ou sobre a própria queda da
ideia de beleza no campo da arte, ou ainda a revolução estética de que fala Rancière.
Das respostas que Freud nos dá a respeito do campo da estética ao longo de sua obra,
há um grande relevo para a ideia de que as manifestações do inconsciente, como o sonho, o ato
falho e as sublimações – que viabilizam os processos de criação artística, entre outras coisas –
são eventos que proporcionam um prazer de natureza estética. Para Loureiro (2003), essa é a
primeira e mais assertada leitura que podemos fazer de Freud no domínio da estética, o “reino
das atividades associadas ao prazer”, nas palavras da autora. A intenção das atividades ditas
estéticas estão na ordem, portanto, do apaziguamento, da conciliação psíquica, através de seus
recursos econômicos, isto é, da enomia libidinal. Seria uma forma de conceber a experiência
estética de maneira muito próxima ao modo de entender a experiência promovida pela categoria
do belo, à medida que denota as ideias de perfeição, síntese, harmonia, tendo sido
paulatinamente questionado ao longo de toda a história da arte por constituir um modo
discriminatório ou totalizador de conceber a arte (SONTAG, 2005). É uma ideia que
acompanhará Freud até suas últimas publicações, evidenciada em “O mal-estar na civilização
(1930)”, em que Freud escreve:

[...] a felicidade na vida é buscada sobretudo no gozo da beleza, onde quer que ela se
mostre a nossos sentidos e nosso julgamento, a beleza das formas e dos gestos
humanos, de objetos naturais e de paisagens, de criações artísticas e mesmo
científicas. Essa atitude estética para com o objetivo da vida não oferece muita
proteção contra a ameaça de sofrer, mas compensa muitas coisas. (FREUD
1930/2010, p. 41)

29
E a comparação da psicanálise com a estética, domínio do belo, vem logo a seguir,
juntamente à admissão de Freud sobre sua posição de leigo no assunto, afirmativa, aliás,
bastante recorrente nas investidas do autor sobre o tema:

A ciência da estética investiga as condições em que o belo é percebido; sobre a


natureza e origem da beleza ela nada pôde esclarecer; como de hábito, o insucesso é
escondido numa prodigalidade de palavras altissonantes e pobres de sentido.
Infelizmente, tampouco a psicanálise tem muito a dizer sobre a beleza. (FREUD,
1930/2010, p. 40)

Loureiro (2003) sugere que a articulação entre prazer estético e beleza entra em afinidade
com os pilares da proposta psicanalítica sobre o funcionamento psíquico, regido pelo princípio
do prazer, que nos primórdios da teoria de Freud é colocada em termos endógenos, ou seja,
com um fim em si, o da descarga da excitação libidinal: “Creio que tudo o que Freud chegou a
formular sobre arte e beleza origina-se em uma preocupação com a experiência psíquico-
corporal por elas provocada, e não em um interesse abstrato pela beleza ou pela arte em si
mesmas” (LOUREIRO, 2003, p. 26). São questões que aparecem em diversos textos
destinados à compreensão metapsicológica do campo da estética, dos quais destacamos “Os
chistes e sua relação com o inconsciente” (1905), que na concepção de Loureiro (2003) é um
dos textos mais importantes sobre o tema; “Escritores criativos e devaneios” (1907), em que
vemos um direcionamento das ideias sobre estética aplicadas à arte de modo geral, com ênfase
para a literatura; e em “Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen”, a primeira análise que Freud
empreende sobre uma obra de arte, em completa articulação com esse “reino das atividades
associadas ao prazer”, cujo paradigma é a formação onírica.
A grande contribuição do texto sobre os chistes é a definição da estética como, em
primeiro lugar, uma experiência de natureza prazerosa e, em segundo, acessória e “subsidiária
de outro tipo de satisfação” (LOUREIRO, p. 97). O caráter enigmático e altamente “material”
do chiste (a verbalização ou a imagem transmitida) fornece a ideia de prazer estético
intimamente relacionado à particularidade da forma, sugerindo que um chiste possui o caráter
de rompimento na cadeia representacional, pois introduz-se na consciência à modo de conteúdo
manifesto, que estaria à serviço do encobrimento do conteúdo latente: “a brevidade dos chistes
é frequentemente o resultado de um processo particular que deixa um segundo vestígio na
verbalização do chiste – a formação de um substituto” (FREUD, 1905/2006, p. 36). O chiste
não é considerado pelo autor como uma “necessidade vital” ou “séria”, por isso produz o prazer
cuja natureza é estética e descompromissada, com um fim em si mesmo, justamente pelas
características formais específicas pelas quais se apresenta, cujo correlato se encontraria

30
recalcado no inconsciente. Por esse motivo, Freud relaciona diversas vezes o processo de
formação do chiste e o processo de formação do sonho: ambos colocam em causa a
figurabilidade – o processo de dar forma aos conteúdos psíquicos, mais imagético do que
discursivo – que por sua vez faz uso dos mecanismos inconscientes de deslocamento e
condensação, os quais também serão designados como fundamentais no processo de criação
artística.
É a esse panorama que Loureiro (2005, p. 97) se refere quando defende que “a reflexão
sobre o prazer estético se encontra fortemente atrelada a uma teoria da arte concebida nos
moldes das formações de compromisso”. O acento dado à figurabilidade indica a dimensão
imagética das representações como sua força motriz, dando notícias da importância da
materialidade da forma para que ocorra o prazer estético, porém, é da lógica do sentido que o
chiste é tributário. Logo, temos uma teoria estética freudiana de teor internalista, que considera
a presença do outro como mero “acidente” estético, aparecendo como receptor do evento, que
pode sentir a mesma sensação espantosa de seu emissor, mas jamais acessar a sua “verdade”.
Desse modo, a base da experiência estética freudiana é considerada em termos
econômicos, pois obedece à lógica da descarga de excitação, em que a “produção de prazer
corresponde à despesa psíquica que é economizada” (FREUD, 1905/2006, p. 116), seja ela pela
fruição de um prazer outrora impedido internamente, ou pelo alívio da censura crítica do
aparelho psíquico. Esse prazer é entendido por Freud como preliminar, cujo objetivo é
suspender inibições intrapsíquicas e, por isso, também promover o alívio das tensões ou
barreiras no plano intersubjetivo. No caso da arte, por exemplo, que na visão do psicanalista
utiliza técnicas similares à da produção dos chistes – o rompimento no código comum da
linguagem, o humor, a associação de imagética não intencional, o nonsense, etc. – a experiência
estética no plano intersubjetivo aparece de modo mais exuberante, pois inclui uma relação de
reconhecimento pelo outro, que Freud atribui à tradição aristotélica, indicando o simples evento
do reconhecimento em si mesmo.
A discussão sobre o drama trágico elucida a função do prazer estético de apaziguar,
quando, provavelmente em 1906, Freud sintetiza em “Personagens Psicopáticos no Palco” a
relação entre ficção, prazer e alívio, indicando que há um duplo movimento na experiência
estética oriunda à arte: por um lado, é geradora de excitação e, por outro, deve ser capaz de
promover o alívio das tensões, questão que nos remete à essência da catarse. Tal processo, para
Freud, ocorre tanto no processo da criação, em que o artista promove um desvio do sofrimento
em si, quanto no processo da apreensão pelo expectador, que se reconhece no sofrimento do

31
artista, reage aos afetos, mas, por fim, seu mal-estar é suavizado pela distância que estabelece
com a obra.
Os limites e as hesitações de Freud à aceitação de algumas manifestações artísticas
aparecem quando ele afirma, neste texto, que a regra condicional das experiências estéticas na
arte, vem sendo infringida com frequência pelos autores modernos (FREUD, 1906/2006, p.
293). Contudo, pouco tempo depois, o autor avança suas investigações no terreno da estética,
procurando as bases dessa dinâmica econômica da constituição subjetiva dos sujeitos, na busca
pela resposta permanentemente reaberta em sua obra: qual a fonte poderosa do artista? A
hipótese do devaneio é, então, considerada, aplicada à ficção literária.

1.3. O DEVANEIO COMO HIPÓTESE

No início do texto dedicado aos escritores imaginativos, em 1907, Freud afirma o


tamanho da imprecisão que recai sobre o entendimento a respeito dos recursos dos escritores,
esses “estranhos seres”, que permanecem inalcançáveis à explicação psicanalítica rigorosa,
sem revelar seus segredos de criação ou os meios para que um indivíduo comum possa tornar-
se um escritor criativo. Em tom especulativo, buscando chaves para uma explicação universal
sobre a criatividade artística, o psicanalista associa-a ao brincar infantil e à atividade de
fantasiar.
Sua hipótese é de que a atividade lúdica precede a atividade fantasiosa; ao brincar, a
criança materializa seus afetos e suas relações com as figuras parentais, elaborando sentimentos
e encontrando substitutos para a realização de desejos inconscientes. Com o desenvolvimento
psicofisiológico, a atividade lúdica tende a ser extinta para dar lugar a uma atividade
fantasística, “que encerra traços de sua origem a partir da ocasião que o provocou e a partir da
lembrança. Dessa forma o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio de desejo
que os une” (FREUD, 1907b/2006, p. 138). A fantasia lúdica, em termos amplos na teoria
freudiana, marca a oposição ao sentido de realidade percebida, logo, diz respeito à realidade
psíquica, referente aos elementos que constituem o mundo interno, cuja satisfação ocorre
através de mecanismos guiados pelo princípio do prazer, em oposição ao princípio de realidade
(LAPLANCHE & PONTALIS, 1981, p. 152). A fantasia tem por finalidade, portanto, a
realização de desejos pela via da realidade ilusória ou imaginativa, campo dentro do qual a
relação com a arte seria parte constitutiva.
Tal como a criança que brinca, na proposta de Freud, a arte desempenha o papel de
finalidade substitutiva, expressando fantasiosamente uma realidade objetiva através da

32
irrealidade imaginativa, sendo a primeira correlata à sensação de desprazer e a segunda, de
prazer. Trata-se de uma hipótese em que a criação – de literatura, no caso específico desse texto
– consiste em uma fonte de prazer por funcionar como um pseudodevaneio, ou um devaneio
não patológico, embora sejam pouco desenvolvidos os fatores que distinguiriam, então, uma
saída pela criatividade e uma saída pelos “penosos sintomas que afligem nossos pacientes,
abrindo-se aqui um amplo desvio” (FREUD, 1907b/2006, p. 139). Assim, em termos de
dimensão econômica, criatividade e psicopatologia pouco diferem, como defende Loureiro
(2005).
Um ponto que nos interessa significativamente neste texto é a consideração de Freud
sobre os gêneros literários, quando questiona o modo pelo qual alguns textos causam prazer e
outros não. Há obras imaginativas que, segundo Freud, “guardam boa distância do modelo do
devaneio ingênuo” (p. 57), como em certos romances “excêntricos”, em que o “herói” não está
na posição ativa. Todavia, a conclusão do autor não ultrapassa a ideia do “devaneio modelo”
como paradigma para que exista uma efetiva atividade criativa, mesmo que a fruição estética
que a engendre, nesse ponto de vista, já não seja tão despretenciosa assim. É a situação ficcional
que faria a ponte entre realidade, fantasia e obra, como fica nítido no trecho a seguir, escrito
um parágrafo antes de Freud afirmar, como tantas vezes, a sua crença de que esse esquema
ainda é “muito insuficiente” (p. 141), acusando sua própria hipótese de simplista:

Em geral, até agora não se formou uma ideia concreta da natureza dos resultados
dessa investigação, e com frequência fez-se da mesma uma concepção simplista. À
luz da compreensão interna (insight) de tais fantasias, podemos encarar a situação
como se segue. Uma poderosa experiência no presente desperta no escritor criativo
uma lembrança de uma experiência anterior (geralmente de sua infância), da qual se
origina então um desejo que encontra realização na obra criativa. A própria obra
revela elementos da ocasião motivadora do presente e da lembrança antiga. (FREUD,
1907b/2006, p. 141).

Na perspectiva de Britton, há um reducionismo nesse ponto de vista em que a criação


artística está colocada no registro de consolo e, com apoio no trabalho de Jones (1957), afirma
que há uma ênfase indevida no papel da fantasia nesse trabalho de Freud, “descuidando assim
os traços estritamente estéticos da obra de arte” (BRITTON, 1999, p. 109). Em resumo, o autor
defende que a limitação do texto de 1907 é que Freud não distingue exatamente a diferença
entre um tipo de ficção “cuja função é buscar a verdade e um tipo de ficção cuja função é
desviar da verdade” (p. 96). Ou seja, mais importante do que o apoio na fantasia, seria a
compreensão do efeito estético da obra de arte no encontro com a realidade externa, em
conformidade em relação com o nível de profundidade dessas fantasias. Britton considera, com

33
essa ótica, que uma ficção verdadeira no essencial e uma ficção intencionalmente falsa “se
explica desde o momento em que se permite que o conceito de fantasia transcenda o limite de
um devaneio cuja função é de satisfazer o desejo” (p. 96).
Assim sendo, o texto de 1907 limita-se ao entendimento da atividade de criação
ficcional a partir do modelo do inconsciente formalizado em 1900, com “A Interpretação dos
Sonhos”, principalmente dentro do esquema dos sonhos diurnos, que consistem em fantasias
recalcadas no inconsciente, mas que outrora foram conscientes: “cenas, episódios, narrativas,
ficções que o sujeito forja e conta a si mesmo no estado de vigília” (LAPLANCHE e
PONTALIS, 1981, p. 153). Portanto, a criação artística seria um sonho diurno para
privilegiados, profícua elaboração secundária repleta de promessas de que um desejo
impossível se realize, teorização aplicada devotamente na extensa análise freudiana sobre o
conto “Gradiva”, escrito por Wilhelm Jensen.

1. 4 O SONHO COMO PARADIGMA

Gradiva é um conto escrito pelo alemão Wilhelm Jensen, em 1903 e conta a história da
relação de apaixonamento que o personagem principal, um arqueólogo, passa a nutrir por
Gradiva, um relevo encontrado em um museu de antiguidades em Roma (FREUD, 1907/2006).
Por se tratar de uma “fantasia pompeana”, foi uma indicação de leitura de Jung a Freud, que
desde sempre apreciou a imaginária região de Pompéia, haja vista para seu caráter
arqueológico, inspirador do método psicanalítico. O exemplo literário é tomado por Freud no
contexto da investigação sobre o sentido do sonho, num momento em que o autor procura
legitimar o valor efetivo da produção onírica na vida psíquica e a relação de sobreposição que
estabelece com o estado de vigília, inserindo-se portanto na trama dos conceitos de
recalcamento, conteúdo manifesto, conteúdo latente, elaboração secundária, fantasia, prazer e
realidade. Por isso, é um texto que analisa, simultaneamente, o fenômeno onírico e o fenômeno
artístico sob a égide da reveleção do sentido oculto.
Diferentemente de suas outras análises, cujos relatos de sonhos se originam de casos
clínicos reais, com a Gradiva, Freud se arrisca a tomar uma narrativa ficcional como objeto de
exame, apostando na possibilidade de a arte funcionar ela própria como uma materialização do
limite entre realidade e fantasia, indicando dois planos de reflexão: um dentro da própria
narrativa, em que o personagem, Hanold, é tomado como caso clínico “real” e com validade
de análise, mesmo que Freud demonstre eventualmente certa dúvida nessa atitude; outro em
que Freud não deixa de questionar, como plano de fundo, a capacidade do escritor, Jensen, de

34
produzir esse efeito de indiscriminação dos planos real e ficcional no leitor. Vemos essa
transposição no trecho a seguir, que condensa em si a complexidade do pensamento freudiano
no campo da investigação sobre arte e indica o tom “acidental” desse tipo de análise: “Mesmo
que essa investigação nada de novo nos ensine sobre a natureza dos sonhos, talvez permita-nos
obter alguma compreensão interna, ainda que tênue, da natureza da criação literária” (FREUD,
1907/2006, p. 20).
Com efeito, Freud promove a trama dos elementos da narrativa em articulação com a
trama dos conceitos metapsicológicos em questão, no intuito de realçar os mecanismos
envolvidos no fenômeno do retorno do recalcado. A imagem da Gradiva está situada no centro
do trabalho e é através deste elemento formal – que traz em si o paradigma arqueológico da
psicanálise – que o personagem Hanold teria acesso às memórias pertencentes à sua história
infantil recalcada no inconsciente. Desse modo, ao passo que Freud vai manobrando a análise
literária da obra, formaliza também a relação entre conceitos psicanalíticos fundamentais, como
o papel do recalque na formação do fetiche, em articulação com a cena edípica e o complexo
de castração, discussão acompanhada pela importância da figurabilidade e da representação
nos processos de deslocamento e condensação, típicos do sonhar – e, supõe Freud, do criar.
Elemento importante a ser ressaltado na Gradiva é também a afetação do próprio Freud
na leitura do conto, situando-se como interlocutor entre Jensen, o autor da obra, e Hanold, o
autor do sonho. O psicanalista, autor também de sua própria obra e de seu arcabouço teórico,
parece, em alguns momentos, igualmente tomado pelo mistério da Gradiva, dando pistas sobre
o estado de estranheza que mais tarde integrará em sua teorização sobre estética, com o texto
“O Estranho” (1919) – o qual será motivo de atenção no terceiro capítulo de nosso estudo.
Todavia, na Gradiva, Freud fala com frequência na sensação de ser “dominado” pelo autor do
conto, no sentido de uma “desorientação” de sua experiência como leitor que se vê
efetivamente acometido por sentimentos de dúvida, ambiguidade e manipulação:
“Evidentemente não foi só nosso herói quem perdeu o equilíbrio. Também ficamos
desorientados com o aparecimento de Gradiva” (FREUD, 1907/2006, p. 26).
Na perspectiva de Rancière (2001/2009, p. 52), o texto sobre a Gradiva, com toda a
complexidade e profundidade que Freud demonstra na articulação de seus elementos e da
contribuição que traz ao campo da estética, consiste em uma confirmação do predomínio do
interesse “conteudista” das análises freudianas das obras de arte. Dito de outra maneira, o
sentido das obras não estão centradas em suas características formais, mas na “intenção que aí
se exprime e pelo conteúdo que aí se revela”, observação que vai ao encontro da proposta de
Loureiro (2003, 2005) a respeito do prazer de fruição. Nas palavras do filósofo:

35
Sabe-se que em geral ele conduz essa busca pelo conteúdo rumo à descoberta da
lembrança recalcada e, em última instância, rumo ao ponto de partida que é angústia
infantil da castração. Essa designação da causa última se dá geralmente pela mediação
do fantasma organizador, da formação de compromisso que permite à libido do
artista, mais ou menos representado por seu herói, escapar ao recalque e se sublimar
na obra, ao preço de nela inscrever seu enigma. Essa tomada de partido vigorosa tem
uma consequência singular, que o próprio Freud é levado a observar: a saber, a
biografização da ficção. (RANCIÈRE, 2001, p. 52-53).

Temos, portanto, no centro da análise da Gradiva a relação entre fruição estética e


sonho; e em sua periferia, a reflexão sobre a gênese da atividade criativa. Considerando que no
pensamento freudiano a produção artística, em termos estéticos, obedece a processos similares
à produção onírica, o texto sobre a Gradiva nos oferece uma análise de um sonho que só existe
como produto de outro processo psíquico – o criativo – que, tal como o sonho, serve-se de
mecanismos de deslocamento e condensação, mas encontra no conceito de sublimação o seu
terreno central. Entramos, assim, num eixo paralelo a essa discussão que apresentamos até
aqui sobre o entendimento da experiência estética na arte, qual seja o eixo do campo pulsional
propriamente dito e suas particularidades. Sabemos que, em Freud, é o conceito de sublimação
que atravessa e sustenta os pilares do pensamento metapsicológico sobre os processos de
criação e apreensão dos objetos artísticos, embora carregue também suas nuances e impasses
teóricos, aos quais daremos atenção no capítulo a seguir.

36
2 SUBLIMAR

“explicar com palavras deste mundo


que partiu de mim um barco
levando-me”

Alejandra Pizarnik

Dentre os conceitos da metapsicologia com os quais Freud tentou compreender a


origem da criação artística, a sublimação ocupa lugar central. Em “Princípios básicos da
psicanálise” (1913a/2010), o autor afirma que uma das capacidades da pulsão sexual é o desvio
do objetivo sexual original ao “se voltar para outros mais elevados, não mais sexuais
(sublimação). Assim, a pulsão é capaz de fazer importantes contribuições para as conquistas
sociais e artísticas da humanidade” (p. 273). Esse axioma, no entanto, é um ponto complexo da
teoria freudiana sobre a sublimação, que sofreu modificações importantes ao longo da obra,
pois traz em si múltiplos cruzamentos conceituais.
Na acepção de Laplanche (1998), a sublimação constitui uma das “cruzes freudianas”,
que podemos entender tanto no sentido de encruzilhada, como de fardo, pois Freud teria citado
mais do que desenvolvido e analisado o conceito, mostrando sempre sua postura pouco otimista
em relação ao esclarecimento da sublimação. Já Roussillon (2010) a compreende como uma
espécie de “motor escondido” da psicanálise, como uma “problemática matricial” (p. 237),
como se a construção psicanalítica, seu entusiasmo criativo e tambem suas inibições e conflitos,
encontrassem na sublimação seu ponto nodal.
Nos inúmeros textos em que Freud menciona o processo sublimatório, é justo concluir,
com Loffredo (2017), que o conceito não corresponde literalmente, tampouco exclusivamente,
à criação artística. A arte não serviu de base para que Freud formulasse esse conceito, mas
esbarrou na hipótese da solução sublimatória, assim como esbarrou noutros conceitos
importantes de sua obra. Entretanto, podemos dizer que a sublimação exerce papel de
relevância na explicação da origem das produções humanas que oferecem um tipo de satisfação
libidinal alternativa à sexual, um modo de triunfar contra a animalidade dos instintos
(ROUSSILLON, 2010). Logo, são produções associadas à inserção do humano na cultura,
abrangendo, além da arte, a religião, a filosofia e a política.
Essas figuras, entretanto, como defende Birman, ganharam leituras nem sempre
articuladas entre si. Arte e política, por exemplo, são fios desligados no campo psicanalítico, à
medida que a arte é amplamente considerada como uma figura da sublimação, enquanto a

37
política não, mesmo tendo aparecido na obra de Freud de maneira eloquente (BIRMAN, 2010).
Chamamos atenção para esse fato com o fim de destacar que, dentre as perguntas que a arte faz
à psicanálise, a sublimação oferece subsídios para o entendimento da criação artística como
destino pulsional, em que “predomina um modelo intrapsíquico”, pois é dessa forma que se
constitui a compreensão do processo sublimatório, “mesmo ao reconhecer que a sublimação é
uma das noções-chave que aponta para a transformação da pulsão em sua dimensão
intersubjetiva e social” (PEREIRA, 2009, p. 24). Para tal, apresenta como plano de fundo a
problemática da erotização, em contraste com a deserotização da pulsão, oferecendo
ferramentas para promover, sobretudo, uma interpretação da criação artística a partir do sexual
(ROUSSILLON, 2010). Em virtude disso, dispõe de recursos limitados para a compreensão da
particularidade da obra de arte em seus aspectos formais.
Dada essa problemática, Freud pôde considerar a sublimação como um tronco comum
tanto às manifestações mais elevadas, como às mais vis (BIRMAN, 2010; PEREIRA, 2014),
incluindo a arte, frequentemente, no contexto da “elevação”. De 1908 (“A moral sexual
´civilizada` e a doença nervosa dos tempos modernos”) até 1933 (“Novas conferências sobre a
psicanálise”), a definição do processo sublimatório sofreu mudanças radicais, alternando-se
entre dois polos de definição: inicialmente como deserotização da pulsão, até, afinal, como
busca da afirmação da vida contra a morte (BIRMAN, 2010). Como vamos detalhar mais à
frente, no primeiro polo, a hipótese de Freud considera que na operação sublimatória a pulsão
perderia sua força erótica, transformando o seu objetivo. A força pulsional se direcionaria a um
objeto que deixa de ser erótico e passa a ser sublime – processo que estaria na base tanto da
criatividade, como da fruição de uma obra. No último polo, com a instauração do segundo
dualismo pulsional, as operações da erotização e da sublimação já não se opõem como
inicialmente Freud postulara, mas fazem parte do mesmo movimento, qual seja o de invenção
de novos objetos para o investimento pulsional, em favor da pulsão de vida.
De todo modo, a saída sublimatória opera a favor da simbolização e da criação de
significado para o vivido. Contudo, por outro lado, há uma desterritorizalização psíquica
(BIRMAN, 2010; KUPERMANN, 2008) envolvida na operação sublimatória, ao passo que
também acarreta um refreamento da força pulsional (BIRMAN, 2010). Enquanto no polo da
deserotização pulsional, o que está em sua base é um impedimento à satisfação de origem
sexual; no segundo, há uma luta contra a destrutividade e a crueldade, veiculadas
essencialmente pela força da pulsão de morte. Para Michel de M´Uzan (1877; 2010), essas
nuances fazem da sublimação um conceito que oferece uma explicação idílica para a
criatividade artística, a qual anda pelo caminho da resolução do conflito; a “saída” dele. Ora, a

38
arte, diz M´Uzan, está menos na solução do que na batalha, isto é, encontra-se na própria
matéria da luta. Quando um artista tem seus conflitos demasiadamente solucinados, já não se
trata de arte, pois já não há nova obra por criar. No enunciado de Harold Bloom, a obra poética
nasce, afinal, da ignorância das causas: “se um poeta souber muito bem a causa de seu poema,
não será capaz de escrevê-lo, ou então o escreverá mal” (BLOOM, 1930/1992).
Na hipótese de Kupermann (2008), a ideia de “saída” ou “solução” sublimatória se
sustenta sob a hipótese repressiva, pois a primeira concepção de sublimação em Freud aparece
como um destino pulsional alternativo àquele que levaria à formação da neurose ou da
perversão. Além disso, “o predomínio da hipótese repressiva” ocorre ao passo que a sublimação
entraria em ação onde a pulsão sexual se vê barrada pela moral civilizatória. Nesse sentido,
com apoio na crítica de Marcuse (1978), Kupermann indica que o conceito, tal como aparece
no percurso de Freud, não oferece propriamente uma compreensão para o trabalho criativo,
uma vez que para produzir sentido, o criado teria de se submeter à interpretação pela revelação
do sexual recalcado.
Tamanha amplitude conceitual, insuficientemente esgotada por Freud, deixa, segundo
Loffredo (2017), uma “herança de inacabamento”, que faz da sublimação um conceito
impreciso, híbrido (PEREIRA, 2004), contraditório, plurivalente (LOFFREDO, 2017) e,
inclusive, interdisciplinar (BIRMAN, 2010)9. No Vocabulário de Psicanálise, de Laplanche e
Pontalis (1981), os autores definem a sublimação como um dos destinos da pulsão que, ao
mesmo tempo, aparenta-se e dissocia-se da sexualidade, que por sua particularidade está na
base das atividades artísticas e científicas consideradas como valorizadas socialmente. Na
síntese desses aspectos, Guillaumin (1998) afirma que a teorização sobre a sublimação
apresenta dois lados na teoria freudiana: um intrapsíquico, que diz respeito à deserotização da
pulsão, que “eleva seus produtos a um estado que escapa à censura e ao recalcamento”
(GUILLAUMIN, 1998, p. 8) e outro interpsíquico, que ameniza a violência pulsional nos
grupos. Em ambos os lados, existem contradições inerentes, principalmente quando o que está
em causa é a criação artística. Tais contradições podem ser assinaladas no interior de dois
elementos que caracterizam a sublimação e que vamos apresentar a seguir, em diálogo com
autores pós-freudianos. Esses elementos são a valorização social e a deserotização da pulsão.

9
Por exemplo, em virtude da ideia da sublimação como força propulsora de intensidades, Birman (2010) aborda
a proximidade existente entre o conceito freudiano de sublimação e a teoria de Tomas Hobbes sobre a dinâmica
de violência no grupo social. Nessa leitura mais ampla, a sublimação como força é frequentemente trabalhada por
Birman em articulação com o campo da estética, da crítica literária e da filosofia.

39
2.1. VALORIZAÇÃO SOCIAL

Na acepção de Jean Laplanche (1999), a própria ideia de “valor social” implicada na


sublimação merece debate, pelo risco de ser confundida, por exemplo, com uma elitização das
questões que envolvem a sublimação. Além disso, afirma o autor, o termo “valorização social”
assinala uma dimensão implícita de erotização e simbolização, processos inerentes à marcha
do aculturamento humano. Para Loffredo (2017), a valorização social “limita os
desdobramentos do potencial heurístico subjacente a essa construção metapsicológica”,
enlaçando-a às construções que se destacam no contexto sociocultural. Para Chaves (2017), há
ainda uma hierarquia dentro desses vários processos de inserção da pulsão no campo da cultura,
na qual a arte e a criação ocupam lugar alto, na teoria de Freud. Contudo, a religião, a filosofia,
e a própria formação das neuroses – levada pelo paradigma da histeria – não se isentam da
transgressão e metamorfose da dimensão do sexual, nos limites do corpo e no psiquismo
(CHAVES, 2017, p. 34).
Trata-se, então, de um conceito habitado por paradoxos, cujo principal está no fato de
configurar ação apaziguadora enquanto efeito, por um lado; e, por outro, de ter a violência em
sua origem, ao passo que se opera um “encobrimento” ou desvio da origem sexual da pulsão.
Isso se deve a muitos fatores que estão localizados na própria derivação da sublimação e que
estão na base da sua marca de valor social.

2.1.1 Algumas derivações

A derivação mais flagrante que assume a sublimação é a da secular categoria estética


do sublime, que traz em si a marca da ambiguidade entre apaziguamento e tormenta. Na teoria
de Edmund Burke (1757), o sublime indica uma experiência do delight: a possibilidade de um
objeto proporcionar prazer, mesmo tendo o horror em sua origem; de abranger o vil no elevado,
dar-lhe acolhida e forma. Na senda de Burke, Immanuel Kant (1764) considera que a
experiência sublime só pode ser apreendida pelo intermédio da razão, podendo abranger em si
a “representação do irrepresentável”. Essas derivações conceituais mostram, acima de tudo,
que a sublimação surge para dar conta – ou melhor, dar forma – ao insuportável da experiência
humana, possibilitando a sua transformação em outra coisa. (PEREIRA, 2009, LOUREIRO,
2003; 2005). A apropriação do termo por Freud entra em seu arsenal metapsicológico como
uma “sublime ação”, na perspectiva de Birman (2002), no sentido do desligamento da meta

40
original e sua transfiguração na meta nova. Entretanto, em seu caráter de ligação, poderíamos
dizer que a sublimação realiza “uma ação sobre o sublime” em suas realizações.
Do ponto de vista civilizatório, o discurso antropológico e o psicanalítico são
complementares no sentido da renúncia pulsional, pois a própria matéria da civilidade traz em
si os seus traços de violência e crueldade, perspectiva de Freud sobre os fundamentos
civilizatórios e relacionais da humanidade. Nesse sentido, é unânime pensar que a própria
origem civilizatória tem dimensão sublimatória; entretanto, também é justo dizer que nem toda
a manifestação sublimada é culturalmente inserida, tampouco valorizada (LAPLANCHE,
1999). Sendo a arte uma figura da sublimação, essa questão se torna particularmente
exuberante, uma vez que os movimentos de reconhecimento, inserção e exclusão das
manifestações artísticas dinamizam as concepções de arte ao longo da história (GULLAR,
2002). Em suma, como realça Guillaumin (1998), o social desempenha um papel fundamental
na regulação de suas sublimações, principalmente no que diz respeito à arte, pois “a sociedade
controla a criação artística na medida em que a toma ou a rejeita, e à medida que cria facilidades
ou obstáculos à sua realização ou sua continuação” (p. 82). Logo, a relação entre arte e
valorização social é complexa e incerta, devendo acolher, para uma reflexão profunda, a ideia
de que a História da arte se caracteriza justamente pelas dificuldades que encontra na complexa
relação entre manifestação artística e aceitação/inserção social – principalmente as formas
artísticas consideradas desviantes, discussão que regula a dinâmica de obediência e
desobediência aos padrões canônicos da arte.
Outro paradoxo pertinente às raízes da sublimação é a metáfora da alquimia, que
descreve o fenômeno de dissolução vaporosa diretamente de uma substância originalmente
sólida e densa, sem que exista a passagem pelo estado líquido. Para Loffredo (2017), a leitura
dessa raiz conceitual no discurso psicanalítico apresenta um “tom moral que atravessa a ideia
do mecanismo sublimatório desde suas origens”. A autora se refere à ideia de pureza espiritual
denotada no movimento químico, que, pela inexistência da liquidez, afasta qualquer resquício
de primitivismo da vida, pois “coloca o processo bem afastado das imagens relativas ao
nascimento no meio uterino” (LOFFREDO, 2017, p. 201 apud MIJOLLA-MELLOR, 2005, p.
3). Sublimare, pela origem terminológica latina, conduz o termo pelo trilho de tudo aquilo que
eleva (sub), que vai de baixo (limus) para cima e confere à sua operação uma “dimensão
idealizante, associada à emergência de elevados valores” (LOFFREDO, 2017, p. 201).
Na teoria freudiana, a sublimação se desenvolve ancorada na concepção de catarse, de
Aristóteles. Segundo Chaves (2017), Freud desenvolve a tradição do conceito no sentido de
elevá-lo à ideia de cura psíquica, que dá notícias da relação da arte com a sensação do

41
apaziguamento do conflito psíquico. Chaves (2017) observa, nesse sentido, que a catarse em
suas variadas conceituações fundamentais cumpre sempre a qualidade de alívio, seja na
perspectiva iluminista de Lessing, que traduziu a catarse por “purificação”, como na
perspectiva romântica, com Goethe e Bernays, cujas respectivas traduções são “compensação”
e “descarga libertadora”, enquanto Freud centrou seu pensamento nos ideais da Aufklärung
(“iluminação”). Nesse sentido, deu profundidade à posição de Berger10, para quem a catarse,
nas expressões artísticas, teria o poder da elevação espiritual e moral, e inclui aí a possibilidade
de “desabafo dos afetos” mediada pela arte. Tal ponto é explícito em “Os personagens
psicopáticos no palco” (1905), em que o sofrimento e, consequentemente, seu alívio através da
cena dramática teatral – ou então da poesia lírica – aparece como material e regra básica da
arte, que devem ser empregados em seu processo de criação e apreensão (FREUD, 1905).
Portanto, são elementos entrecruzados e imbuídos na teorização da operação sublimatória
(CHAVES, 2017, p. 24-27).
Em “A moral sexual ´civilizada` e a doença dos tempos modernos”, Freud indica que a
sublimação consiste num destino pulsional que visa à civilidade dos indivíduos, através de uma
série de atividades, dentro das quais a arte ocupa lugar central (BIRMAN, 2000). Sublimar,
nesse contexto, corresponde a aplicar um recurso de deslocamento à libido, carregando-a de
plasticidade, no intuito de possibilitar um destino desviante à pulsão sexual frente à
impossibilidade ou inutilidade de sua descarga. Em “O mal-estar na civilização”, Freud retoma
o debate sobre a atividade criativa em sua capacidade de proteger os indivíduos contra as
mazelas humanas, ainda que não construa uma barreira completamente impenetrável contra o
sofrimento.
Em seus trabalhos, Joel Birman pauta a complexidade da teoria de Freud no que diz
respeito aos destinos das pulsões e sua relação com as manifestações culturais, enfatizando que
a questão da valorização social marca o discurso freudiano em seus fundamentos, a partir da
problemática do mal-estar na modernidade: “Certamente, pelo imperativo de constituir um
discurso clínico que fosse rigoroso, a psicanálise teve de se centrar nos registros do sujeito e
das formas de subjetivação. No entanto, isso implicava na consideração efetiva das formas de
sociabilidade e de poder” (BIRMAN, 2010, p. 539). Desde 1905, com a publicação de “Os três
ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud indica que a sublimação veicula a inserção

10
“Alfred von Berger (1853-1912) ocupou, entre outros, o cargo de professor colaborador de Estética na
Universidade de Viena. Dramaturgo e ensaísta, ele fora também diretor do Teatro de Hamburgo e, de volta a
Viena, assumiu a mesma função no Burgtheater da capital do império Austro-Húngaro” (CHAVES, 2017, p. 24).

42
cultural à medida que afasta as intensidades da sexualidade, processo constitutivo do
desenvolvimento humano desde a infância. A arte, como produção sublimatória, é valorizada
ou aceita a partir da orientação do objetivo sexual para outro fim, idealizado (FREUD, 1914) e
desencarnado (SCARFONI, 2005). Para Freud, “a possibilidade de orientarem uma parcela de
sua libido para alvos artísticos mais elevados” através da operação sublimatória, está
diretamente ligada à possibilidade de “afastar o interesse dos genitais e voltá-lo para a forma
do corpo como um todo” (FREUD, 1905/2006, p. 148).
É desse modo, portanto, que a sublimação se envereda no discurso freudiano associada
ao processo civilizatório e caracterizada como um modo de desfecho favorável para a exigência
erótica, sem necessariamente incorrer pela via patológica (FREUD, 1913/2006). Isso, pelo
menos, em seu aspecto de valorização social, o que implica dizer, simultaneamente, que a
sublimação constitui via de desenvolvimento de virtudes a partir de “nossas piores disposições”
(FREUD, 1913/2006, p. 191).
Nesse ponto, estão inseridas as características fundamentais da operação sublimatória,
a saber a deserotização da pulsão, o que traz uma série de paradoxos que poderíamos ver como
contradições. Porém, vamos considerar a hipótese de Pereira (2009), que aposta no aspecto
paradoxal da sublimação não apenas como característica, mas como modelo de análise desse
conceito que pode ser considerado como um dos mais deslizantes do legado de Freud. Uma das
principais dicotomias que o processo sublimatório coloca em jogo, portanto, é em torno das
noções de representação e figurabilidade, supondo que sua ação está centrada, em maior parte,
na primazia do sentido. Essa questão traz alguns desdobramentos importantes ao nosso estudo.

2.1.2 Tudo pelo sentido

Em termos conceituais gerais, a sublimação consiste na transformação de um conteúdo


ou representação de uma força pulsional de origem sexual em uma outra coisa, na forma de
disposição para um “trabalho”, admissível pela censura e com interesse cultural (PEREIRA,
2009). Como regra geral, a percepção do novo precisa estabelecer conexão com um
representante inconsciente, para que possa ter vazão no vivido, gerando produtos criativos.
Então, a sublimação configura um mecanismo alternativo à formação sintomática ou ao
recalque, como veremos adiante, à medida que o recalque guarda em si as fantasias
inconscientes, favorecendo a ideia de dissolução de um conflito psíquico. Em um primeiro
momento, esse conflito seria travado entre pulsões sexuais e pulsões do eu, o que indica a
batalha por elaborar e simbolizar a sexualidade infantil, de natureza inicialmente perverso-

43
polimorfa, segundo Freud. Em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), o autor
aborda a sublimação como um meio de moderação de conteúdo, principalmente do conteúdo
ligado à curiosidade sexual infantil, sendo a entrada no período de latência uma de suas
principais figuras. Dessa forma, há uma relação de contingência entre recalque e sublimação,
mesmo que sejam mecanismos que se diferenciam.
Como destaca Roussillon (2010), se o sexual é considerado como um motivo escondido
do processo criador, então ele se torna “um sexual enigmático em sua natureza” (p. 238),
solicitando que seus produtos sejam interpretados. Nesse ponto, reside um problemático debate
a respeito da interpretação das formações do inconsciente, que repousa sobre um método
clássico e universalmente confiável de interpretação por uma via inteligível, como Freud
demonstrou em “A interpretação dos Sonhos” (1900). Muito sumariamente falando, o autor
propõe que a análise – de teor de decomposição – dos diversos elementos do sonho narrado,
permitem que o psicanalista revele a cena fantasmática original; o seu verdadeiro sentido
oculto, e que a interpretação desse conteúdo oferece o que há de mais precioso ao sujeito em
análise: o sentido.
O lugar do axioma freudiano a respeito do pressuposto do sentido na interpretação
psicanalítica vem sendo complementado em articulação com a importância dos elementos
sensórios que estão implicados na própria construção do sentido e sua transmissão por uma via
inteligível. No contexto pós-freudiano, alguns autores defendem que o domínio da
figurabilidade merece uma notoriedade maior (MACEDO et al, 2008), em relação ao domínio
da representação, o que implica dar lugar à ordem do sensível no ato interpretativo; ao domínio
do figurativo, da dimensão não verbal ou puramente estética. Essa reflexão se torna ainda mais
enérgica no âmbito da interpretação das obras de arte, mas também articulada às ferramentas
da clínica psicanalítica (PEREIRA, 2009), em que a figurabilidade vem sendo convocada como
fonte de uma dimensão fundamental de trabalho.
Este termo (Darstellung) foi investigado por Freud principalmente a partir do estudo
dos processos de formação onírica, abordado desde “A Interpretação dos Sonhos”. Aparece
primeiramente como processo pelo qual uma inscrição disforme ganha forma psíquica por
apresentação, configurando um traço de memória (PEREIRA, 2009). Com a sistematização da
teoria do trauma e o estudo dos sonhos traumáticos (ou de repetição), a figurabilidade recebe
acento em sua função de ligação pulsional, através da dimensão estética. Como veremos no
próximo capítulo deste estudo, o aspecto figurativo dos elementos psíquicos vem dar
veiculação à imagem traumática, ou seja, daquilo que nem sequer está disponível para a
representação, dada a intensidade pulsional que está em causa.

44
Entretanto, é relevante considerar o destaque dado por Pereira (2009) ao fato de a
figurabilidade pôr em jogo processos de ligação originais entre forma e conteúdo, associando
essa noção de forma direta à dimensão estética do psiquismo e do inconsciente. É um modo de
apostar que as experiências estéticas acolhem a dimensão de forma e conteúdo de maneira não
linear, podendo revelar sentido oculto, mas também velá-los, construir enigmas novos para
revesti-los. Roussillon (2010) corrobora essa perspectiva, afirmando que há uma certa
insuficiência na ideia de um sentido inteligível pelo desvelamento do “sexual recalcado” ou
“sexual sublimado”, pois a criatividade pode tanto indicar a presença do inconsciente
fantasmático originário, como também o apagamento de seus traços. Na perspectiva do autor,
com a entrada da pulsão de morte e a o consequente acento dado à potência da imagem
traumática nos processos psíquicos, compreendemos que o trabalho criativo pode responder a
uma ação psíquica de natureza diversa. A criação pode ocorrer sem que uma “capacidade de
sublimar” esteja disponível ao ego, sendo travada mediante um conflito interno de ordem mais
radical, cujo objetivo é o da negociação com a força pulsional que impele o psíquico na direção
da destruição (ROUSSILLON, 2010, p. 240). Nesse caso, a ordem do sentido não está posta
como primeiro plano no próprio motivo que leva à criação.
Roussillon (2010) defende, por isso, a diferença entre o âmbito do “desejo de criar” e o
da “exigência de criar”, denunciando assim que a lacuna que a criação viria preencher pode se
situar em estágios distintos da vida psíquica e recorrer a elementos mais ou menos elaborados;
alguns dos quais não serão passíveis de extração de um sentido inteligível posteriormente. O
motivo da criação leva, sobretudo, aos meios de interpretação das obras de arte, que devem
acompanhar esse percurso, colocando à disposição da obra outras vias de leitura e apreensão
centradas na estética, esfera em que a figurabilidade é central. Mais distante da ideia de
“guardiã” de sentidos ocultos, a obra passa a dar poucas pistas, solicitando mais um sistema
estético de leitura do que uma explicação legítima para o seu ponto de origem. A criatividade,
para o autor, precisa trabalhar com a “ultrapassagem” para além de uma “solução” ou “saída”.
É como dizer que a obra de arte não desvenda enigmas, mas ela própria o é. Nesse interjogo, é
preciso reconsiderar a subordinação da criação à simbolização – da qual a sublimação
hesitantemente deriva.
No destaque de Pereira (2009), o uso freudiano da figurabilidade nunca esteve
descolado do interesse de Freud pela visualidade e por outras manifestações aparentemente
“mudas” que produzem um dizer. Ou, de outro modo, por “manifestações silenciosas que
convocam o sentido (ou apontam seu limite)” (PEREIRA, 2009, p. 2). Freud faz seu próprio

45
caminho nessa jornada, caracterizando seu próprio brilhantismo em deixar a sublimação sob
essa sombra de incertezas.
De acordo com Roussillon (2010), um fato muito importante a considerar é que a
psicanálise da tradição freudiana não está submetida em primeiro plano com os cânones da
estética social, como está a arte. Aquela busca a explicação sobre as transformações que
possam se dar no espaço psíquico, mas o faz em acordo especial com seus próprios códigos
internos, longe dos quais deixaria, justamente, de fazer sentido:

O ´belo` que ela encontra não deve nada aos cânones da estética social, refere-se antes
à harmonização interna ligada ao trabalho de integração, entender-se bem, ver-se
bem, sentir-se bem, refletir sobre si mesmo o melhor possível e se exprimir da forma
mais justa e mais verdadeira: tais são as regras constitutivas de ação e de
transformação. Seguramente esse trabalho não está cortado dos sistemas sociais, e a
estética não lhe é necessariamente um valor estranho, mas a subordinação maior de
sua empreitada não a coloca em primeira mão no centro desta. (ROUSSILLON, 2010,
p. 243)

Da mesma forma, outros campos de saber ocupados com a interpretação das obras de
arte, como a crítica literária por exemplo, reposicionam-se permanentemente diante do
contraste inesgotável entre o inteligível e o sensível, o representativo e o sensorial, as figuras e
seus referentes; e tentam acomodar também os processos de ruptura que os binarismos venham
a sofrer dentro dos códigos existentes na arte. Na literatura, a primazia do sentido é questionada
declaradamente a partir de elementos que vão dar ênfase ao aspecto formal, como por exemplo:
1) a categorização de conceitos que possam distinguir um texto em seu caráter literário através
de marcas formais que ele apresenta11; 2) a relativização da intenção do autor na interpretação
das obras12; 3) a sistematização da crítica como necessária para a validação das obras e da
própria sobrevivência da literatura13. Lembremos, por exemplo, que no significativo ensaio “A
morte do autor” (1968), Roland Barthes defende que “o autor” – leia-se a preocupação com o
verdadeiro sentido latente de sua produção ficcional e sua figura biográfica – deve morrer para
que nasça o leitor – leia-se o crítico. Isso implica que a presença do leitor é assumida como
característica indispensável do acontecimento literário, de relevância tão grande quanto a do
autor: “matar o autor permite, enfim, que o crítico (leitor) se transforme num desbravador
insaciável de sentidos que o texto pode ensejar, aparentemente sem nunca plasmar nenhum”

11
Cf. ERLICH, Victor (1955). El Formalismo Ruso: Historia-Doctrina. Barcelona: Biblioteca Breve Editorial
Seix Barral, S. A., 1974.
12
Cf. FOUCAULT, Michel (1969). O que é um autor?. Trad.: José A. Bragança de Miranda e António Fernando
Cascais. Lisboa: Passagem, 1992.
13
Cf. JAUSS, Robert (1969). A Literatura como Provocação, trad. de Teresa Cruz. Lisboa: Veja, 1993.

46
(QUEIROZ, 2016, p. 10). Dito de outra maneira, o texto em si não diz nada se não encontrar o
seu leitor, de quem o escritor depende para que a literatura exista (BARTHES, 1968/2004).
Evidentemente, trata-se de uma posição teórica afastada da psicanálise em sua
dimensão epistemológica; mas que se aproxima quando vemos na literatura um objeto comum
de análise, respeitando aquilo que a própria literatura reivindica para si ao longo dos tempos.
Dando voz a essa função, o que Barthes reivindica para a literatura não é senão uma maior
liberdade para o ato de ler, sentir e interpretar, o que não deixa de tocar frequentemente nas
propostas psicanalíticas.
Freud mencionou algumas vezes essa ligação fundamental entre autor e leitor, como
base determinante para que uma fruição estética possa ocorrer a partir da apreciação de uma
obra de arte. Para Pereira (2009), com base nos trabalhos de Loureiro (2003; 2005; 1997), essa
perspectiva pode ser extraída do percurso de Freud em todos seus trabalhos sobre arte,
sublimação e cultura, em que uma dimensão estética aparece em negativo, com especial
marcação aos trabalhos publicados entre 1905 e 1909 (“Os chistes e sua relação com o
inconsciente”; “Personagens psicopáticos no palco”; “Escritores criativos e devaneio” e
“Gradiva de Jensen”). Vale a pena salientar novamente os estudos freudianos sobre o brincar
infantil e o humor, em que Freud introduz a ideia de que a fruição é um complemento necessário
à sublimação e se dá pela forma. O autor conclui que tanto a criação artística, quanto o brincar
infantil e o ato falho são produções do inconsciente que trazem o endereçamento ao outro como
como marca de sua manifestação (KUPERMANN, 2008). Entretanto, julgou em um primeiro
momento que tal ligação se dá sob uma base pulsional deserotizada, atributo fundamental da
operação sublimatória que não ficou imune aos paradoxos e contradições na obra freudiana.

2.2 O TRAJETO DA DESEROTIZAÇÃO

Dada a complexidade de suas vicissitudes, a sublimação foi remanejada por Freud nos
principais momentos de sua teoria, figurando diferentemente no primeiro e no segundo modelo
pulsional. Poderíamos dizer, com Birman (2010), que a concepção inicial e final da sublimação,
no discurso freudiano, “indicam características bem diferenciadas, que são até mesmo opostas”
(p. 532). Para Pereira (2009), tal hibridez do conceito demonstra a sua “incoerência coerente”,
caráter que justamente o fortalece e caracteriza, mesmo que Freud tenha mencionado muitas
vezes sua própria insatisfação conceitual e aparentemente destruído um texto dedicado
especialmente ao assunto (p. 33).

47
Em suma, num primeiro momento do pensamento freudiano, sublimar corresponde a
deserotizar a pulsão, transformando assim a sua meta na direção de outros objetos. Num
segundo momento, entretanto, formalizado pela segunda teoria das pulsões, sublimar significa
criar novos objetos de investimento libidinal como forma de vencer um conflito contra a
destrutividade (BIRMAN, 2000). Portanto, a deserotização da pulsão é uma problemática
especialmente presente na primeira contextualização da sublimação, em que o conceito se
constitui como um destino pulsional que resulta como desfecho para um conflito psíquico entre
as demandas pulsionais de fundo sexual e as de conservação do eu. Trata-se também de uma
solução conciliadora entre os domínios do prazer e da realidade, fator que concede à
sublimação o seu tom adaptativo (PEREIRA, 2009). Como alternativa ao impedimento ou
inutilidade da satisfação erótica, a sublimação visa a bloquear o acesso consciente ao conteúdo
desprezível ou abjeto, amenizando a força da pulsão sexual (BIRMAN, 2000, p. 21). Esse é
um ponto que inscreve a semelhança entre o mecanismo sublimatório e o mecanismo do
recalque, à medida que ambos seriam dois modos do psiquismo conter a exigência erótica
(BIRMAN, 2000; MENDES, 2010). Em outras palavras, seriam modos de renúncia pulsional,
inscritos na dinâmica econômica do psiquismo, de maneira que “a sublimação é tratada como
defesa, ainda que uma das defesas mais nobres, realizável supostamente por indivíduos
psiquicamente ´elevados`” (PEREIRA, 2009, p. 35).
O curioso, entretanto, é que Freud mantém o leitor avisado, até os últimos anos de seus
escritos, de que não há uma “garantia” de que o sofrimento cesse e que o sujeito encontre uma
resposta satisfatória para a angústia que o atormenta, ao fim da produção sublimada. Em “O
mal-estar na civilização” (1930), o autor atribui esse desamparo que recai sobre a criatividade
ao fato de que o talento artístico é um enigma; além disso, de a criação sublimada não alcançar
as raízes das vivências primitivas – e, por isso, “não convulsiona nosso ser físico” (FREUD,
1930/2006, p. 87). Essa proposição, como veremos à frente, é repensada por alguns autores no
contexto contemporâneo. Roussillon (2010) dá margem a esse debate ao afirmar que não há o
“em si” da produção criativa; ela existe para cada um dentro de sua economia simbólica. Não
existiria, então, uma atividade criativa, mas “sujeitos tomados pelas formas de seus desejos ou
tomados pela particularidade de sua história traumática, que tentam com mais ou menos talento
e sucesso, materializar representativamente aquilo que os determina" (ROUSSILLON, 2010,
p. 244).
Contudo, Freud obteve resultados grandiosos no contexto da relação entre criatividade
e sublimação, e um de seus maiores legados encontra-se extensamente elucidado no célebre
estudo sobre Leonardo da Vinci, publicado em 1910. Sem a pretensão de esgotar aqui sua

48
riqueza e profundidade, destacamos o fator central da hipótese de Freud de que, através da
operação sublimatória, as inibições de natureza sexual de Leonardo, ligados à sua história
infantil, teriam se “dissolvido” em direção à arte e à pesquisa. Além disso, destaca-se a
relevância dos elementos arcaicos da vida psíquica do artista, principalmente as experiências
ligadas à figura materna, à fixação em fortes impressões no estágio primário do
desenvolvimento e à tentativa de dominação de uma marca instransponível e insistente, cujo
motor se interligaria ao motor criativo a modo de um inacabamento (FREUD, 1910/2010).
Nesse caso, a ação da sublimação se justificaria por ter relançado a sexualidade perverso-
polimorfa e seus afetos primordiais na direção do domínio do belo e do sublime (LOFFREDO,
2017; BIRMAN, 2010), podendo agir sobre eles através da atividade irrefreável de criar e
pesquisar. O pintor italiano, que na visão de Freud teria aproveitado num grau elevadíssimo os
sabores e dissabores da sublimação, hipoteticamente encontrava na arte a capacidade de
esvanecer a força da pulsão sexual, destinando sua intensidade na direção obstinada da criação
e do desvelamento dos sentidos ocultos no mundo. Como relata Freud, “a pulsão sexual se
presta de maneira muito especial a fornecer tais contribuições devido à sua capacidade de
sublimação, ou seja, ela está em condições de, eventualmente, valorizar mais seu próximo
objetivo em relação a outro” (FREUD, 1910/2017, p. 89).
Segundo Pereira (2009), apesar das críticas que recaem sob esse modo de leitura da
criatividade de Leonardo, o texto de Freud traz avanços significativos em relação ao tema da
arte, ao assumir a raiz sexual das atividades criativas. Segundo a autora,

O que esse texto tem de mais forte e atual está em sua tese central de que a
sexualidade, ainda que transformada, está na base dos processos criativos e da
curiosidade. A conjunção entre a sexualidade e o pensamento, a partir do confronto
da criança com os enigmas das origens, da vida, da morte e da diferença sexual, tanto
coloca a sublimação na origem da constituição psíquica quanto a mantém ligada,
ainda que transformada com a sexualidade. (PEREIRA, 2009, p.37)

Como dito acima, a partir da formalização do segundo dualismo pulsional, Freud vai
reequacionar a operação da sublimação, supondo que se trata de força de ligação pulsional que
age a favor do conflito entre pulsões de vida e morte. Tendo alicerçado a incidência mortífera
do psiquismo, Freud compreende que a sublimação consiste num mecanismo utilizado pelo eu
para realizar ligação pulsional (BIRMAN, 2000; MENDES, 2011) frente às irrupções
destrutivas, de modo que erotização e sublimação, a partir de então, são ambas assinaladas
como inscritas na pulsão de vida, como contraponto à pulsão de morte. Para Mendes (2011), a
sublimação não é explicitamente contextualizada no texto de 1920, mas é ampliada pela nova
perspectiva do funcionamento psíquico. Sustenta Birman (2000) que, a partir do novo dualismo

49
pulsional, é possível verificar que “sublimar não corresponde necessariamente a dessexualizar
[...] Erotizar e sublimar visariam dominar e intrincar a pulsão de morte nas pulsões de vida, ou
seja, tornar a vida possível para o sujeito pela superação do trabalho silencioso da pulsão de
morte” (BIRMAN, 2000: 22-23).
Como sublinha Loffredo (2017, p. 213), “em função do convívio e tensão permanentes
entre a pulsão de vida e a pulsão de morte, uma leitura possível seria destacar que se trata de
colocar, de um lado, a erotização e a sublimação, de outro, a destrutividade e a crueldade”. No
entanto, esse é um ponto complexo e paradoxal, ao passo que pode adquirir nunances distintas
em acordo com a compreensão de cada autor a respeito da própria origem da pulsão. Laplanche
(1999), por exemplo, afirma que a pulsão nunca perde o seu caráter sexual; o que há é a
capacidade de estabelecer ligação pulsional, a de realização de trabalho psíquico, sendo o eu o
seu agenciador. O lado que erotiza e sublima consiste no lado da ligação pulsional, que favorece
o processo de simbolização e elaboração dos afetos. Em oposição, teríamos o aspecto de
desligamento pulsional como elemento próprio da destrutividade, que convocaria o psiquismo
a dar respostas de ordem precária aos conflitos internos.
Todavia, para uma apreciação mais completa do tortuoso trajeto da deserotização que a
sublimação percorre com base no pensamento de Freud, é preciso considerar a expressividade
da introdução do conceito de narcisismo, como um ponto chave que dá sustentação à ideia de
que o eu responderia à violência interna através da criação desses novos elementos. Antes, no
entanto, vamos considerar uma breve diferenciação entre sublimação e recalque, uma vez que
a imprecisão dessa distinção é abordada por alguns autores que enriquecem o conceito. Vamos
apontar para a ideia de que há uma “sublimação originária” no alicerce da própria constituição
narcísica apresentando algumas dessas proposições.

2.2.1 Recalque e sublimação originária

No debate sobre o “desvio” do sexual supostamente operado pela operação


sublimatória, raramente se negligencia a proximidade que permanece entre o processo de
recalcamento e a sublimação; afinal, ambos dão destino à força do sexual, imprimindo nela
uma nova “aparência”. Como mencionamos anteriormente, Birman (2008) aponta que as raízes
da sublimação e do recalque se encontrariam na gênese do próprio processo civilizatório,
explicitado por Freud como “moral sexual civilizada”, na senda da ideia de “defesa” às
irrupções da sexualidade perverso-polimorfa apresentada em “Os três ensaios sobre a teoria da
sexualidade” (FREUD, 1905). A sublimação é formulada como destino para um excesso

50
pulsional que, em virtude da correlação entre sua intensidade e a precariedade na capacidade
de elaboração pelo ego, se configura como processo desterritorializador do eu. Ela existe a
partir do momento em que Freud percebeu, além de outros fatores, a característica repressiva
presente no âmago da formação cultural. Nas palavras de Birman (2010, p. 541), de que “na
modernidade a codificação excessivamente moralizante e moralista dos objetos permitidos e
interditos, para o usufruto do gozo erótico, produziria a repressão da pulsão sexual e das
inibições psíquicas de maneira a engendrar o incremento das perturbações psíquicas”. Assim,
a sublimação é um destino outro para a força pulsional, para além do recalque, mediado pela
culpa, mas que oferece possibilidades de incremento da potência humana e de sua expansão
psíquica.
Na leitura de Joyce McDougall (1983), nessa “pré-história” conceitual da sublimação,
fica difícil diferenciá-la não só do recalque, mas do próprio registro da perversão, visto que
ambos os conceitos emergem na teoria freudiana praticamente com a mesma definição em
1905, exceto pelos elementos ligados à valorização social e aos paradoxos da deserotização em
que se baseia a operação sublimatória. Frente a tal problema, algumas hipóteses aparecem para
indicar que a sublimação pode ser estendida a um período primitivo do desenvolvimento
psíquico, havendo um processo sublimatório realizado desde a origem (LAPLANCHE, 1989),
nos próprios fundamentos do recalcamento originário.
A diferença entre ambos estaria na plasticidade pulsional, uma vez que a sublimação
permite o movimento e o rearranjo das representações e seus enigmas. De acordo com André
(2008), a operação sublimatória age mesmo no centro da mudança pulsional: “em mudança de
objetivo, é ‘mudança’ a palavra principal” (p. 156, tradução nossa). Embora figurado com o
auxílio dos mecanismos de deslocamento e condensação, tem em seu cerne o caráter de
encontro com uma dimensão original. Transformar a meta pulsional convocaria,
paradoxalmente, uma revisita à origem: “a plasticidade pulsional, condição de possibilidade da
sublimação originária, tem por condição a finalidade sem fim do sexual infantil” (p. 155).
É um ponto que restitui ao conceito o seu caráter de sustentação da relação com a
alteridade, trabalhado por Jean Laplanche (1989; 1999) com a retomada da própria ideia
freudiana de que o sexual infantil se apoia na pulsão de autoconservação para se desenvolver e
se constituir como força pulsional. A transformação da pulsão sexual em sentimento de ternura
seria um exemplo notório desse processo, inerente e necessário à experiência primária de
afeição entre uma criança e um adulto. O autor aposta que, então, para compreendermos a
complexidade das manifestações da sublimação, “seria necessário conceber a sublimação como
algo que se produz no próprio momento do surgimento da excitação sexual, no tempo da pulsão

51
parcial sexual” (LAPLANCHE, 1989, p. 91). Assim, podemos falar de uma sublimação que é
constitutiva na própria origem da pulsão e que carrega o aspecto de “índice” perceptivo das
primeiras experiências. Ainda para o autor, o índice carrega o traço dos primeiros objetos de
investimento, cuja existência na vida psíquica assume posição de um irredutível ao trabalho da
pulsão; logo, entra em jogo também na operação da sublimação. O indicial se refere, desse
modo, “à natureza do recalque enquanto resto de um evento obscuro para o psiquismo e para o
qual seria vão procurar a restituição, já que não seria propriamente uma tradução, já que nada
garantiria a fidelidade aos fatos” (SCARFONE, 2005).
Desse prisma, vemos a sublimação articulada inerentemente à dimensão do arcaico da
experiência humana, admitindo que suas figuras movimentam a instauração das marcas
primevas da constituição psíquica, capazes de serem apreendidas em sua potência figurativa.
Como destaca Scarfone (2005; 2015), as primeiras marcas da experiência humana não são
assimiladas em seu sentido temporal exato, mas se apresentam ao psiquismo permanentemente
e tornam-se exuberantes em situações de impasse – que por sua vez pode “abrir” para uma
dimensão criativa. Teremos a oportunidade de aprofundar essa proposição em nosso próximo
capítulo.
Convém sublinhar, afinal, que no curso do desenvolvimento da sexualidade, a
sublimação se situa também como solução para a perda de objeto primário, território onde
imperam essas primeiras marcas e traços, ligados ao sexual infantil (SCARFONE, 2005) e que
vão dar sustentação para a constituição do narcisismo, como sugerimos anteriormente. Por
“solução”, leia-se a deserotização desses primeiros objetos e por “sexual infantil” leia-se o
nível radical da alteridade interna; o enigmático por essência que exige uma permanente
tradução psíquica.
Logo, a deserotização da pulsão está implicada na operação sublimatória, mas,
simultaneamente, lança seus enigmas para “os confins da identidade”, para empregar o termo
de Michel de M´Uzan. Já a erotização de novos objetos e a abertura para a criatividade
carregaria consigo as marcas do enigmático. Ela convocaria, sobretudo:

isso que vem do outro como um tipo de chamado. Chamado, no entanto, cuja resposta
é menos evidente, sobretudo se levarmos em conta que as formas que podem tomar
essa resposta falharão necessariamente em apreender o fundo da questão, fundo que
escapa ao próprio emissor, pois provém de seu próprio recalcado [...] não há obra
sublimatória senão na medida onde são inventadas as formas que, dessa falha (e da
coisa que resiste ao esforço de assimilação) pode se fazer, às vezes, cobertura e
veículo. (SCARFONE, 2005, p. 1399)

Se retomarmos, com Scarfone (2005), o campo da sexualidade infantil em seu caráter


inicialmente polimorfo, a operação sublimatória age, desde a origem, no sentido de favorecer

52
a plasticidade desse campo, o que também pressupõe a sua função constitutiva de veicular
restos, em virtude de já haver sobre ela um recalcamento que mantém sempre presente o seu
caráter de indizível. Essas propostas indicam que a sublimação está presente de maneira
permanente ao longo da vida, assumindo tons distintos no desenvolvimento psicossexual,
podendo ser “acionada” tanto em virtude da irredutibilidade do arcaísmo psíquico, como pelo
imperativo dos ideais.
Uma breve apreciação sobre a relação entre sublimação e narcisismo vem dar auxílio
na elucidação dessa perspectiva.

2.3 SUBLIMAÇÃO E NARCISISMO

A divisão da libido em “libido objetal” e “libido do eu” marca a dinâmica do


investimento no mundo interno e externo, ocorrendo em simultâneo com o interjogo das
relações entre o eu e o outro, correlato do nível de abertura e fechamento à realidade exterior.
O conceito de narcisismo vem marcar definitivamente o limite dessas fronteiras e desse
princípio econômico do investimento de libido, a partir da proposição de que o próprio eu
constitui objeto de investimento libidinal desde o início da vida; trabalho primeiramente
realizado pela mediação do outro e, aos poucos, assumido pelo sujeito como sua própria
existência, seu valor, suas aspirações e, especialmente, seus ideais.
Para Freud, é indiferente se a descarga das mazelas narcísicas se dirige a elementos
reais ou imaginários. A imaginação, na verdade, atende às demandas narcísicas com eficácia.
O eu, visto como “um precipitado” dos elementos que o constituem, utiliza a ficção em menor
ou maior grau para se orientar e justificar suas ações, de modo que a arte aí se enreda (FREUD,
1914/2010, p. 29). A instância do eu formaliza-se como um mediador das ações psíquicas,
através de um princípio essencialmente econômico: quanto mais a libido volta-se para si, mais
ela desinveste na direção do mundo exterior, e vice-versa. Narciso, figura iludida por natureza,
recorre a variadas formas para estabelecer sua integridade e confirmar seu valor, colocando à
prova constante a relação entre princípio do prazer e de realidade. Por essa razão, a imagem de
um narcisismo empobrecido e entregue à própria sorte seria a do amante apaixonado. Em
contrapartida, o represamento dessa energia no eu seria uma forma de saída para a insatisfação,
em que o eu perde seus objetos de amor e vê-se desapontado consigo. De acordo com Birman
(2003), o narcisismo constitui um momento em que o eu deixa de ser neutro, passando a figurar
como instância erotizada:

53
a instância do eu passou a ser concebida também como sexualizada, não sendo mais
direcionada apenas pela busca desinteressada da verdade. Portanto, o eu seria também
investido pela libido e deixaria assim de ter qualquer transparência nas suas operações
cognitivas, turvado que ficaria pelas suas exigências erógenas, perdendo então
qualquer neutralidade na leitura do mundo. (Birman, 2003, p. 65)

No entanto, com os conceitos de eu ideal e ideal do eu, Freud também sustenta que o
“empobrecimento” do eu pode ocorrer em virtude de ter deixado a desejar aos padrões de seus
ideais. Os processos e objetos que integram o mundo interno, articulados à inserção do sujeito
na cultura, fazem exigências ao eu, que se submete em forma de uma apreciação de si, mediada
por suas instâncias críticas (FREUD, 1914). Em síntese, com esse termo Freud refere o
processo da formação narcísica, que pressupõe a instância do “eu ideal”, como uma marca de
referência para o eu a modo de um espelhamento. Como vimos, admitimos aqui que o processo
sublimatório está presente desde a origem, se considerarmos que a origem do psíquico está
apoiada no sexual. Portanto, num esquema sintético, podemos dizer que o desempenho do eu
é marcado por um ideal – selado pelas relações com a alteridade interna e externa – que mede
a distância entre o que eu deve ao superego, o que assume como desejo e o que tolera como
frustração. Para que esse ideal se forme, afinal, é preciso que pelo menos duas ações psíquicas
sejam realizadas: uma de domínio sob as figuras ligadas à cena edípica e outra de uma sujeição
às exigências do id.
A idealização de um objeto – o seu superinvestimento – atenderia à função de reparar
uma falha na introjeção dos primeiros objetos idealizados (MIJOLLA-MELLOR, 2010, p.
502). Frente a uma vicissitude nessa primeira introjeção, que consiste afinal na identificação,
o eu “encontra-se obrigado a despojar-se de sua libido narcísica em benefício de objetos
existentes na realidade e, portanto, alienantes, no sentido de uma restrição imposta ao eu de
colocar para fora de si seu elemento constitutivo mais importante, o ideal do eu”. (MIJOLLA-
MELLOR, 2010, p. 502). Projeta para fora de si uma imagem que lhe fascina e lhe faz
exigências (FREUD, 1914/2010, p. 41).
O ponto que nos interessa nesse “nó” – um dos “mais difíceis de desatar na
metapsicologia da sublimação” (PEREIRA, 2009, p. 41) é a função de agente que a ação
sublimatória assume nessa mediação a partir da formulação do narcisismo, que remonta às
origens da constituição psíquica e que carrega marcas primitivas, como demonstramos
anteriormente em relação à sublimação originária. Afinal, ela já está na base da formação do
eu ideal, cujo sombreamento lança o eu na formação do ideal de si. Então, vemos que esse
aspecto “estranho” da sublimação se encontra tanto na base da formação dos ideais como na
manifestação de suas exigências sobre o eu, como lemos de forma menos explícita em “A

54
pulsão e seus destinos” (FREUD, 1915). Como esclarece Mijolla-Mellor (2010, p. 501), o ideal
do eu não existe enquanto instância separada do eu; não pode concentrar em si o investimento
libidinal. Por essa razão, age compelindo o eu a sublimar suas pulsões, dentro disso que Freud
denomina como um “processo particular” em meio a outros recursos utilizados pelo ego, como
o próprio recalque. Aliás, na acepção de Birman (2000), a sublimação permite que a exigência
pulsional encontre um destino através da “suspensão do recalque”, havendo o seu
“amortecimento” inicial para posterior erotização de um novo objeto.
Na indicação de Kupermann (2008), com a introdução do narcisismo, o eu aparece
como instância que recorre fortemente à sublimação para criar novos objetos de amor, em
harmonia com sua própria imagem. Diante da possibilidade de um represamento da libido no
território do eu, a sublimação aparece como um destino pulsional favorável, desviando ao seu
transbordamento e escapando à via da introversão patológica. Para Roussillon (2010), com o
conceito de narcisismo, o que Freud teria dito até então sobre a capacidade de criar, abre um
campo para pensar sobre a necessidade de criar: “No caminho, o sexual encontrou a figura de
Narciso, aquela do movimento auto, do retorno sobre si mesmo, da reflexividade que produz e
revela o enigma do ´si mesmo` e para além, a da identidade” (ROUSSILLON, 2010, p. 238).
A sublimação, desse modo, tem um duplo papel: por um lado, é intrínseca à formação
do ideal; por outro, ameniza as exigências feitas ao eu, pelo ideal que lhe mede e observa. Esse
processo, afinal, rege a dinâmica econômica da relação eu-outro. O eu constitui, por sua própria
existência, um chamado à derivação sublimatória. Isso implica dizer que a formação do ideal
põe em movimento a dimensão arcaica do psiquismo, inserindo a relação entre passividade e
atividade no cerne do processo sublimatório. Para Mijolla-Mellor (2010), esse aspecto faz da
sublimação um processo de “ligação ao investimento de um tempo futuro e ao trabalho para
conseguir isso” (MIJOLLA-MELLOR, 2010). Nesse sentido, a sublimação pode se aproximar
de outros processos psíquicos que promovem uma reelaboração da percepção do eu sobre si;
logo, de seu registro identificatório, pois a pergunta “quem sou eu?”, no plano narcísico, vem
acompanhada da pergunta “com quem me pareço?”.
Com esses termos em debate, propomos que, na criatividade, o processo sublimatório
é convocado no sentido mais amplo que Freud pôde conferir a essa operação de transformação
pulsional, podendo alcançar registros primevos ligados aos processos identificatórios que não
envolvem apenas a mudança da meta pulsional, mas também e simultaneamente do objeto de
investimento. Em outras palavras, a sublimação inclui em seus efeitos a capacidade de
transformação do eu e seus limites; ela está no lugar de objeto-ideal (MIJOLLA-MELLOR,
2010), é uma nova aposta do eu de alcançar-se e reconstruir-se mediante um objeto

55
simultaneamente novo e intermediário: “Espera-se que esse processo permita substituir não
apenas o objeto-ideal, mas o eu-ideal. A representação sublimada de si é ligada a um projeto
preciso e ilimitado, no qual a própria busca terá o poder de restituir ao eu a imagem ideal que
ele perdeu” (MIJOLLA-MELLOR, 2010, p. 503). Na inusitada proposta da autora, o processo
sublimatório, em termos do movimento libidinal, é menos a estase do que o “coice” – termo
que a autora utiliza para designar o aspecto de movimento brusco à própria invasão do
excedente pulsional, implicando a dimensão violenta aí – a partir do qual, paradoxalmente, um
“sopro de ar fresco” se torna possível (MIJOLLA-MELLOR, 2010). Na sugestão de Nasio
(2014), a sublimação poderia ocorrer a modo de transmissão de um passado remoto, que se
dirige, sobretudo, ao prazer de se expandir. Segundo o autor, “se expandir significa não só criar
uma obra, mas criar-se a si ao criar a obra. Uma coisa é o desejo de produzir, uma outra é a
alegria de se descobrir melhor do que somos, porque conseguimos atravessar a prova da criação
(NASIO, 2014, p. 130, tradução nossa).
Por essa razão, sustenta-se que a atividade criativa acontece mediante um interjogo
constante de dominação da radicalidade da alteridade interna que se manifesta. Na hipótese de
Roussillon (2010), nesse interjogo é possível localizar diversas maneiras de compreender o
próprio registro relacional que um artista estabelece com sua obra, sendo mais ou menos
exigido por ela; mais ou menos absorvido por ela ou até mesmo reconstruído, reinventado
por/em suas produções. Convém dizer, sobretudo, que uma entrega mais ou menos consciente
a esse encontro radical com a alteridade precisa ser realizada, para que o artista, assim mesmo,
cogite vencê-lo e que uma raiz estética da arte emerja: “uma vez iniciado o movimento criativo,
o ´produto` deste conquista uma relativa economia, que é aliás, sem dúvida, uma das
características de seu valor. Ele guia a mão ao mesmo tempo que é fabricado por ela”
(ROUSSILLON, 2010, p. 244).
No texto dedicado ao narcisismo, Freud (1914) apresenta dois exemplos provenientes
da arte literária sugerindo que a arte funciona como figura expoente para esse âmbito de
reconstituição narcísica. Na primeira delas, o autor recorre aos versos de Heine para
exemplificar a ideia da operação sublimatória favorecendo uma “poética da cura”, ao passo que
o poeta confessa que no centro de seu “impulso de criar” está localizado o mal-estar que lhe
assoma. No modo como Freud utiliza tal demonstração, fica evidente a dupla função da criação
de um objeto artístico como, nesse caso, o poema: o fato de que ele representa e, ao mesmo
tempo, é. Ou seja, o poeta representa em palavras a própria ação sublimatória. Por outro lado,
o próprio poema é, em si, tal obra. Em uma única imagem composta por quatro versos,

56
condensa as implicações teóricas com as quais Freud trabalha cientificamente, de maneira que
os limites entre Freud e Heine, nesse pequeno trecho do texto, tornam-se brevemente turvos.
Já o humorista literário é mencionado como um indivíduo fascinante para seus leitores,
“pela coerência narcísica com que mantêm afastados de seu eu tudo o que possa diminuí-lo”
(FREUD, 1914/2010, p. 34). Então, vemos uma perspectiva de que, assim como o criador
literário afasta de si suas mazelas narcísicas, ele as imprime no objeto criado, fazendo surgir
assim uma face idealizada da arte aos olhos de Freud, à medida que o artista parece manifestar
uma “posição libidinal inatacável” (p. 34).
Visto por esse lado, é possível estabelecer uma linha contínua entre as menções de
Freud a essa figura de “estranho dominador” relacionado ao escritor ficcional, desde o texto
sobre Jensen. Essa imagem aparece como alguém que possui o domínio sobre o leitor,
conduzindo-o por um caminho particular. É um lado que “acompanha” Freud, esse que se deixa
enredar pelos artifícios artísticos. Entre a tentativa de decifração e a da entrega total, aparece
como uma espécie de “resto” essa imagem do poeta que “ainda não nos informou se pretende
deixar-nos dentro do nosso mundo, desse prosaico mundo governado pelas leis da ciência, ou
se pretende transportar-nos a um outro mundo imaginário, no qual se concede realidade aos
espíritos e fantasmas” (FREUD, 1909/2006, p. 27).
Levados esses argumentos em conta, consideramos que a sublimação percorre um
caminho paralelo ao dos pressupostos freudianos sobre estética, mas que se encontram
principalmente pelo enlace que o narcisismo vem dar à teorização sobre a criatividade. A partir
das contribuições pós-freudianas que levantamos aqui, nosso intuito é indicar, no capítulo
seguinte, a abertura para alguns fenômenos de natureza essencialmente estética que, por um
lado, já estão embrionadas na teorização sobre a sublimação; porém, por outro lado, mostram-
se de maneira mais específica no entendimento do trabalho criativo e da experiência artística,
expandindo-se para além da operação sublimatória.
Como vimos nesse capítulo, na passagem do primeiro ao segundo dualismo pulsional,
a sublimação deixa de lado o papel de renúncia pulsional, e assume a função de transformação
da pulsão (PEREIRA, 2009), sendo via de criação de novos objetos de investimento libidinal.
É relevante perceber, então, a sublimação ganhando novos contornos com a segunda teoria das
pulsões, à medida que Freud também se aproxima de uma investigação estética sobre os
processos criativos, principalmente quando reanalisa a brincadeira infantil e as experiências de
fundo traumático. Ao passo que estabelece relação dessas figuras com a arte, retira
definitivamente da sublimação a marca de uma operação deserotizada. Em nosso próximo
capítulo, vamos abordar a consistência do estético em Freud, principalmente em torno dos

57
fenômenos relacionados ao “Estranho” (1919), âmbito no qual a primazia do sentido fica em
segundo plano, desafiando os limites da representação. Com apoio em Freud e nos
desdobramentos de sua teoria por comentadores contemporâneos, vamos partir da ideia de que
o paradoxo da sublimação é justamente o de constituir, ao mesmo tempo, criação e perda da
força da pulsão sexual, apostando que um abalo na dimensão identificatória também possa dar
notícias do ato criativo.

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3 “ESTRANHAR”

“Vocês, montanhas,
Dêem-me um corpo,
Vocês, oceanos,
Dêem-me outro corpo para derramar em meu completo desvario.
Grande terra, seja meu baú,
Seja peito para esse coração tremendo
Seja abrigo para as tempestades que me batem,
Seja âncora para meu ego obstinado.”

Lucian Blaga (1895-1961)

As questões relativas ao “Estranho” embasam um eixo relevante dentro da totalidade


dos trabalhos freudianos. Vamos tratá-lo aqui como uma noção teórica – diferentemente da
ideia de conceito acabado –, pelo fato de se tratar de um termo que coloca questões em
desenvolvimento (M´UZAN, 1977). Um dos motivos da abertura conceitual do estranho é a
particularidade de sua tradução, que parte do alemão Unheimlich e ganha sutis nuances em
cada língua, como na francesa, que assume a noção como inquietante étrangeté. São nuances
que acabam por formar o que vamos propor como um “terreno” do estranho, uma vez que
pretendemos mostrar a amplitude de seus fenômenos e a relação deles com a arte.
Afinal, podemos dizer que o estranho, as características de seus elementos e de seus
fenômenos alicerçam um paradigma estético na obra de Freud, dentro do qual a arte encontra
lugar particular. Para Guillaumin (1998), tal paradigma consiste numa espécie de “resto” da
própria teorização freudiana da sublimação, ao passo que o processo sublimatório, aproximado
ao registro da elaboração psíquica, mantém zonas de inacabamento e fragilidade irredutíveis,
de importância variável. Por isso, a sublimação lhe parece um modo geral de compreender o
processo criativo, enquanto o paradigma estético que lhe subjaz descreve o fenômeno estético
da arte propriamente dito, fornecendo o entendimento da continuidade de sua atuação no
psiquismo. Portanto, o terreno do estranho abrange elementos relativos à experiência artística
que estão inscritos tanto no campo da representação como em seus interstícios.
Uma das características fundamentais do estranho é o seu caráter sensorial, ao passo
que se apresenta por meio de uma sensação de estranheza, variável em sua figura, mas que
inevitavelmente faz hesitar a percepção que o eu tem de si mesmo. Essa definição da estranheza
aparece no discurso de Freud em diferentes períodos e contextos, e recebe o teor “inquietante”
à medida que a teoria do trauma se condolida no pensamento do autor. Embora a gênese do

59
trauma ganhe contornos e delimitações distintas em cada momento de sua obra, é justo afirmar
que a ação do traumático está permanentemente presente, como um ponto paradigmático da
construção teórica de Freud. Além disso, defendemos que sua articulação efetiva com a arte
ganha consistência a partir da virada teórica que sustenta o segundo modelo do dualismo
pulsional, sistematizada em 1920.
Assim, assumimos que a estranheza possui duas características fundamentais: ela
responde a uma condição de passividade do eu, frente a uma situação de ameaça ao seu
território, uma vez que evidencia uma irrupção pulsional interna demasiado intensa para que
possa ser representada. Essa resposta, por sua vez, se materializa através da dominância da
sensação; e a sensação de que falamos aqui é a de se ver estrangeiro a si mesmo. Portanto,
conferimos um fundo traumático ao terreno do estranho, com ênfase para a ampliação que a
ideia de trauma recebe quando tratamos do tema da experiência artística.
No contexto específico da arte, a introdução do estranho subsidia o entendimento de
que os processos criativos e a fruição das obras de arte podem ser motivados, em seu cerne, a
partir da sensação de estraneidade ao si mesmo, associada aos sentimentos de caráter ambíguo,
angustiante e ambivalente. E mais ainda: encontramos nesse âmbito do estudo de Freud
indícios plausíveis para verificar que o próprio objeto artístico, em alguns casos, se configura
como prolongamento material do estranho, capaz de provocar no seu observador a apreensão
da estranheza, cujo sentido representacional independe do sentido impresso na obra por seu
autor.
Como indica Guillaumin (1998), trata-se de um ponto de difícil alcance na obra
freudiana, em virtude da fragmentação que os estudos sobre a arte revelam na teorização. Na
perspectiva do autor, tal fragmentação deve-se ao impasse de Freud entre duas posturas de
abordar a arte: a de considerar os objetos artísticos em sua transcendência, diferentemente dos
demais objetos da vida cotidiana, ou como “resultado de um certo uso narcísico do
investimento, regulado circunstancialmente pela forma das defesas e da economia global do
aparelho psíquico” (p. 4). Enquanto a primeira postura considera a arte como um objeto
estético, a segunda considera a arte como um produto resultante da distribuição libidinal do
psiquismo. Para Guillaumin, a sublimação é um conceito que acolhe a segunda opção, mas não
a primeira; pois subsidia um entendimento restrito da criação, ao elucidar a ideia do
apaziguamento pulsional figurado pela vontade de criar, que denota o caráter de elevação pela
possibilidade de surgimento da obra. Contudo, a relação da arte em seu acontecimento estético,
que abrange os momentos de crise, agitação e instabilidade do eu, e atinge o registro identitário,
recorrem ao território da estranheza para justificar suas ocorrências.

60
Já que a relação de Freud foi de hesitação, então é coerente afirmar que há, em sua obra,
fundamentos para justificar a primeira postura, que considerou a arte em seu caráter de
experiência estética. É o que iremos demonstrar neste capítulo, recorrendo ao terreno do
estranho e os fenômenos relacionados a ele. Indicaremos que algumas expressões artísticas
desempenharam papel estrutural na construção da teoria de Freud, especialmente a escultura
de Moisés e os contos fantásticos. Essas figuras, por suas características específicas e pelo
modo como Freud as analisou, parecem reger-se pela temporalidade do atual, que também rege
a compulsão à repetição, como desenvolveremos adiante. Em que medida a arte estabelece
comunicação direta com tal temporalidade será foco de nossa discussão final.

3.1 PRIMEIROS PASSOS: LOGOS, PATHOS E ARTE

Como sublinha Birman (1997), podemos ler no discurso psicanalítico que a


consciência, a sensação de estar em si e ser “senhor” de uma instância do eu, é descontínua. O
eu é um campo lacunar, tomado eventualmente por suspensões, onde o inconsciente se
manifesta através de suas formações, estando a arte aí inserida.
De acordo com Rancière (2001/2009), o campo da estética reposiciona continuamente
tal tensão entre eu e não-eu, ou entre pathos e logos, o que presume uma determinada relação
da subjetividade com a obra de arte, na reflexão sobre o processo criativo. Por pathos, leia-se
o que é estranho a si, o que já não é o eu; por logos, o seu contrário; a apropriação e a clareza
sobre si. A obra de Freud, segundo Rancière, acomoda-se dentro de uma tradição filosófica que
amplia a ideia paradoxal que dá acento ao pathos, em relação ao logos e “faz da arte o território
de um pensamento presente fora de si mesmo”(p. 13), na senda de Nietzsche e Shopenhauer.
Ou seja, o pensamento sobre a arte não está nela mesma, mas no obscuro do eu que lhe
impulsionou. A arte existe, para Freud, enquanto houver um logos dominado por um pathos,
de maneira que pensar sobre a arte é refletir sobre o não-eu e o sobre o não-pensamento.
Para Rancière, Freud consegue formalizar essa perspectiva de maneira mais efetiva, a
partir da introdução do estranho. Como se, nessa etapa de seu percurso, Freud elevasse sua
teoria até o ponto das próprias figuras que utilizou para analisar. Elas configuram, afinal,
“testemunhos da existência de certa relação do pensamento com o não-pensamento, de certa
presença do pensamento na materialidade sensível, do involuntário no pensamento consciente
e do sentido no insignificante” (p. 10). A investigação clássica freudiana sobre a criatividade
com centralidade na sexualidade pressupõe, por si só, um regime específico de pensamento da
arte, que admite a sobreposição entre o que é propriedade do eu e o que não é. Admite, de todo

61
modo, que na arte há a entrada de “algo estranho” a si e que mantém sob tensão “um
procedimento consciente e de uma produção inconsciente, de uma ação voluntária e de um
processo involuntário, em suma, a identidade de um logos e de um pathos”. A proposta de
Rancière é que, com o campo do estranho em perspectiva, fica mais nítido em Freud que é
dessa tensão que restaria o material próprio do acontecimento artístico, uma “identidade que
doravante dá testemunho do fato da arte” (p. 30).
Outro modo de situar essa tensão seria em torno da polaridade entre as forças apolíneas
e dionisíacas, presente no entendimento de Freud sobre a criação. A força apolínea, enquanto
guardiã da beleza e do ordenamento; a força dionisíaca, enquanto força descontrolada, que
responde a “outra voz”, encontrariam lugar na teoria de Freud sobre a arte, sobretudo em sua
teoria sobre o estranho. Ela acompanha vigorosamente a senda “da identificação do próprio
fato da arte à polaridade da bela aparência apolínea e dessa pulsão dionisíaca, ao mesmo tempo
de alegria e de sofrimento, que vem à tona nas formas mesmas que pretendem negá-la” (p. 31).
Como já assinalamos, a psicanálise surge precisamente nessa esteira, “se inscreve
historicamente no cerne desse contramovimento e reina na literatura que mergulha no puro
sem-sentido da vida bruta ou no encontro com as forças das trevas” (p. 31). Dessa forma, seria
precisamente como resultado dessa polaridade que resta o domínio do estranho. O apreço pela
literatura fantástica e o interesse pelas origens da expressão sensorial agitadas pela experiência
artística dão corpo a esse terreno tão movediço da obra de Freud. Entretanto, antes de abordá-
las, convém contextualizarmos alguns pontos de sustentação do estranho.

3.2 ALGUMAS BASES DO ESTRANHO

Mesmo antes da publicação de “O Estranho” (1919), que constitui base medular de sua
teorização estética, alguns indícios da sensação de estranheza relacionadas às experiências
artísticas já estavam dados. Podemos citar tanto o estudo sobre a Gradiva de Jensen (1907),
quanto o Moisés de Michelângelo (1914), textos em que os elementos de mistério, enigma e
passividade frente ao acontecimento estético são colocados em discussão, e apresentam ideias
sobre a dominação do excedente pulsional pelo eu, diante dos elementos que lhe escapam à
representação. Nesse arsenal metapsicológico, o terreno do estranho se delineia em articulação
com a atuação de mecanismos rudimentares presentes na própria constituição psíquica, uma
vez que reinam as marcas do outro interno. Além disso, a ideia de um retorno da libido sobre
o eu, que ganha consistência com a introdução do conceito de narcisismo (FREUD, 1914),
fornece os elementos necessários para que o estranho se formalize em termos de economia

62
libidinal. Trata-se de um rastro que deriva, também, dos paradigmas clínicos observados por
Freud, principalmente a psicose, a melancolia e a paranoia, que apresentam manifestamente o
processo de externalização de uma parte do eu, em virtude de haver uma “incorporação” do
outro no seu território. A externalização de uma parte de si, nessas condições, aparece como
modo de lidar com o transbordamento pulsional que volta-se sobre o eu e age no sentido de sua
fragmentação ou dissolução. Nesses quadros, afinal, há um estranho interno, marcado muito
violentamente, que resulta na sensação nítida de um estranhamento externo que observa, julga
ou maltrata o eu (CARDOSO, 2016).
Entretanto, retomando o tema da arte, lembremos que esses modelos foram precedidos
de algumas considerações sobre “O interesse da psicanálise para a estética” 14 (FREUD,
1913/2006), que situa o campo estético como um terreno distinto do campo das
psicopatologias, embora comum se levarmos em consideração o seu fundo ancorado no
traumático. A atuação da estética, escreve Freud, consiste na reação às impressões de elementos
primitivos que assomam o espaço do psiquismo, o que garante a transformação da sensação de
passividade em atividade. O “prazer artístico” é apenas superficial, enquanto uma camada
latente e “mais poderosa”, encadeia pelo menos três dimensões da experiência artística: “as
impressões infantis do artista; a história de sua vida e a obra como reação às impressões” (p.
189), demonstrando que a complexidade do processo criativo “constitui um dos temas mais
atraentes de estudo analítico” (p. 189).
Os atos falhos e o humor, aliás, já haviam sido caracterizados como manifestações
estéticas justamente por esse motivo. Através das leis particulares dessas manifestações
espontâneas; ou de manifestações altamente elaboradas, como a arte e seu código específico
de comunicação, Freud chega a algumas conclusões sobre a experiência estética, que vão
marcar o seu pensamento sobre a criação e a apreensão artística. Mesmo que resista a afastar
os mecanismos envolvidos na criação artística daqueles envolvidos na formação da neurose,
parece valioso o relevo que Freud confere, nesse período, a duas características importantes
da experiência estética e sua consequente estranheza: elas movimentam elementos primitivos
do psiquismo e demandam a existência de uma relação entre emissor e receptor, que partilham
da mesma mensagem. Além disso, coloca em jogo pelo menos três elementos intrapsíquicos: a
onipotência narcísica, à medida que a criação exige do eu uma atitude de dominação interna; o
arcaísmo das sensações e a transformação da passividade em atividade.

14
Loureiro (2003) chama atenção para o fato de que a tradução correta do alemão para esse texto no alemão
original seria “o interesse da psicanálise do ponto de vista de uma ciência da arte” (Loureiro, 2003, p. 27).

63
Freud fala na arte como “um meio caminho entre uma realidade que frustra os desejos
e o mundo de desejos realizados da imaginação – uma região em que, por assim dizer, os
esforços de onipotência do homem primitivo ainda se acham em pleno vigor” (p. 189). Longe
de demonstrar uma resolução efetiva para o campo, Freud afirma que a psicanálise ainda
encontrará resoluções mais satisfatórias para o campo da arte, designando-lhes “um lugar”
próprio (p. 188). Pouco tempo depois, demonstrará sua persistência e nova abertura para o
tema, com o estudo da escultura “Moisés”, de Michelangelo, que parece aprofundar os três
aspectos mencionados acima: onipotência, dominação e sensação.

3.3 O GESTO DE MOISÉS

Em 1914 é publicado o “Moisés de Michelangelo”, análise que segue procedimentos


nitidamente distintos de outros estudos de obras e artistas, como o de Leonardo da Vinci (1914),
por exemplo. Diferentemente da investigação biográfica do artista, Freud verifica, sobretudo,
que a obra de Michelangelo permite uma multiplicidade de leituras, ampliando o axioma
determinista entre criação artística e realização de desejo inconsciente. Parece haver um
evidente desinteresse pela intenção do artista com base em sua história infantil; Freud não
procura mais a figura da infância do artista traduzida na obra. Afasta-se, portanto do paradigma
que compara a arte com o sonho em termos do seu encadeamento na dominância do princípio
do prazer. O que se admite, por outro lado, é a dimensão enigmática de Moisés e as
interpretações plurais de seu gesto; a possibilidade de a indeterminação ser a característica
principal da obra (SOUZA, 2016). Na visão de Rancière (2001/2009), esse trabalho introduz
uma posição freudiana bastante distinta em relação ao estudo da arte, e inaugura um rumo
teórico que vai se libertar da ideia de que a origem da motivação criativa advém de um ponto
recalcado da sexualidade infantil, organizada pela cena edípica. No texto do Moisés, lemos:

um freudismo mais radical, liberado das sequelas da tradição representativa e afinado


com o novo regime da arte que lhe concede seu Édipo, o regime que iguala o ativo
ao passivo, afirmando ao mesmo tempo a autonomia antirrepresentativa da arte e sua
natureza profundamente heteronômica, seu valor de testemunho da ação das forças
que ultrapassam o sujeito e o arrancam de si mesmo. E, para isso, apoia-se
principalmente em “Além do princípio de prazer” e todos os textos dos anos 1920 e
1930, que marcam a distância entre o Freud corretor de Jensen, Ibsen ou Hoffmann,
e o Freud admirador de um Moisés liberto da fúria sagrada. (RANCIÈRE, 2001/2009
p. 77)

Segundo Schneider (2008), o texto de Moisés demonstra claramente a dinâmica da


onipotência, ao passo que trata da tentativa de domínio frente à violência da obra. Freud está

64
petrificado diante de Moisés, e lamenta, inclusive, que outro observador da escultura tenha
antecipado seus próprios pensamentos, que lhe pareciam preciosos por ser o resultado de seus
próprios esforços (FREUD, 1914/2006, p. 238). Após a batalha interpretativa que trava com os
diversos críticos da obra, assume Freud, o prazer estético é relatado, reconhecendo que,
certamente, tal era a intenção de Michelangelo ao criar o enigmático Moisés, “até o limite
máximo do que é exprimível em arte” (p. 238). Vemos, então, Freud assomado pela
determinação onipotente de alcançar, dominar, apreender Moisés.
A onipotência, para Freud, constitui um dos fios de constituição do narcisismo, que
fornece contorno definitivo da formação do eu. Em seus primórdios, onipotentemente, o eu
tudo pode, encontra-se em estado de abertura e a separação entre realidade e fantasia é precária.
O eu se desenvolve na direção de seu fechamento e estabelecimento de fronteiras, porém,
poderá realizar retornos até fases anteriores diante de uma ameaça, como ocorre nas
megalomanias, em que o pensamento onipotente é dominante. O eu regride, sobretudo, na
incumbência de dominar um excedente pulsional, sentido como violento.
O campo das sensações é articulado ao trabalho, já que Freud reconhece seu próprio
estado de “paralisia” diante da obra, expondo-se como se “pertencesse à turba sobre a qual seus
olhos [os de Moisés] estão voltados – a turba que não pode prender-se a nenhuma convicção,
que não tem fé nem paciência e que se rejubila ao reconquistar seus ilusórios ídolos” (p. 225).
Desta forma, passa a admitir que a experiência artística abrange uma dimensão de arcaísmo
que ultrapassa os limites do próprio escopo metapsicológico. Intui, por fim, que a experiência
artística estabelece comunicação com a efemeridade da constituição narcísica e seu contraste
com a potência das expressões da arte na percepção do outro. Freud escreve:

A meu ver, o que nos prende tão poderosamente só pode ser a intenção do artista, até
onde ele conseguiu expressá-la em sua obra e fazer-nos compreendê-la. Entendo que
isso não pode ser simplesmente uma questão de compreensão intelectual; o que ele
visa é despertar em nós a mesma atitude emocional, a mesma constelação mental que
nele produziu o ímpeto de criar. (FREUD, 1914/2006, p. 218)

Para Schneider (2008), cuja visão está em afinidade com Rancière (2001/2009), o texto
em questão marca um “segundo pensamento” freudiano sobre a arte, que amplia o paradigma
do apaziguamento, quando Freud passa a considerar a pulsão de domínio face à situação de
passividade como tendência básica do psiquismo. A relação com a arte daria notícias, então,
de que “o prazer estético parece provocar uma inversão pulsional, como se se emancipasse ao
olhar da regulação editada pelo princípio do prazer” (SCHNEIDER, 2008, p. 61). Deste modo,
o efeito estético está associado à gênese do traumático, por um lado e à submissão do ego como

65
resposta que, na visão da autora, veicula elementos da pulsão masoquista pelo fato de,
paradoxalmente, unir o prazer e o desprazer em um único ato, figurado pelo campo sensório:

Freud se aproxima de uma experiência que parece delinear o sistema de oposições


binárias que estrutura o texto metapsicológico: ativo-passivo, sujeito-objeto. Ou o
universo estético parece romper esta lógica oposicional, para situar o essencial, não
naquilo que cada psiquismo singular viu, mas nisso que passa de um para outro e que
excede a oposição do sofrer e do gozar. (SCHNEIDER, 2008, p. 62)

Buscando a inteligibilidade do que ele próprio considera inexprimível em sua máxima


expressão, Freud discute persistentemente a particularidade formal de Moisés. Admite, ao
longo de todo o texto, uma série de outras análises, feitas por outros autores, para a
compreensão do efeito estético da escultura, distinguida historicamente pela pluralidade de
leituras que a dubiedade dos gestos de Moisés indica e provoca. Entretanto, após percorrer uma
série de hipóteses a respeito da “imortalidade” que Michelangelo imprime à pedra, Freud, mais
ou menos identificado com algumas delas, reafirma a inquietação insolúvel que lhe resta, com
ênfase central para os elementos formais da obra e os seus contrastes. Por exemplo, o de
“descobrir um paralelo mais estreito entre o estado de espírito do herói, tal como se expressa
em sua atitude, e o contraste entre a calma exterior e a emoção interior” (FREUD, 1914/2006,
p. 226).
A base da interpretação de Freud a respeito do processo criativo de Michelangelo passa
a ter, flagrantemente, a reação do observador como elemento significativo. Comparativamente
ao estudo sobre Leonardo da Vinci, para Moisés não há uma única verdade sobre as motivações
do artista, mas, sobretudo, um questionamento sobre o efeito de domínio que a escultura inspira
e provoca. Freud questiona, nesse sentido, se “teria então a mão do mestre realmente traçado
na pedra uma mensagem tão vaga que torna possível tantas leituras diferentes dela” (FREUD,
1914/2006 p. 221), admitindo também a predominância da sensorialidade no encontro com a
obra, denominada por Freud como “tempestade de emoções”. Concedendo importância à sua
multiplicidade interpretativa em virtude da riqueza de detalhes, Freud defende que
“Michelangelo criou, não uma figura histórica, mas um tipo de caráter corporificando uma
inesgotável força interior capaz de domar o mundo recalcitrante; e deu forma não apenas à
narrativa bíblica de Moisés, mas às suas próprias experiências internas” (FREUD, 1914/2006
p. 226).
Para André, a análise da escultura de Michelangelo dá notícias, sobretudo, de uma
experiência de inquietante estranheza do próprio Freud: “mais secretamente, o texto de Freud
fala de Freud, via figura transferencial de Moisés e a inquietante estranheza com a qual enfrenta

66
a obra esculpida” (ANDRÉ, 2008, p. 150-151, tradução nossa). Entretanto, é legítimo
considerar a importância que o gesto de Moisés concede à perspectiva de Freud sobre a arte,
que parece acomodar as sensações de angústia, perplexidade e regressão num mesmo terreno
inquietante. As experiências artísticas podem ser, desse modo, sustentáculos do traumático que
assombra e intranquiliza (MCDOUGALL, 2008), mesmo que o conteúdo da obra não lhe faça
referência direta e propriamente dita. De acordo com Loureiro (2005), o campo estético designa
justamente “uma modalidade da experiência na qual, embora tenhamos a expectativa de que se
´resolva` ou redunde em (ou contenha) algum tipo de prazer, pode ter no desprazer sua
tonalidade dominante” (p. 107).
Com a publicação de “O Estranho”, Freud desenvolve categoricamente suas
contribuições ao campo estético, a partir das quais a relação entre criação e apreensão artística
se consolidam. A inquietante estranheza, fundação de um território muito particular,
desestabiliza fronteiras internas e externas e realiza produções únicas.

3.4 FUNDAR UM TERRITÓRIO

É consonante a premissa de que o texto “O Estranho” – ou “O Inquietante” (1919/2010)


na tradução que utilizamos aqui – remodela o tema da arte na teoria freudiana, legitimando um
novo patamar em seu paradigma estético. No entendimento de Loureiro (2003), tal paradigma
assume-se como “teoria das qualidades dos sentimentos”, uma vez que o campo das sensações
e a importância dos elementos formais das obras de arte ganham declarado relevo, e o “material
da estética” é posto como “emoções atenuadas, inibidas quanto à meta, dependentes de muitos
fatores concomitantes” (FREUD, 1919/2010, p. 329).
O efeito das emoções tranquilizadoras ou positivas, que Freud tantas vezes investigou
nas experiências artísticas, dá lugar, então, ao sentimento de inquietação experimentado
corporalmente, incluindo as sensações de repulsa, aflição, medo, susto e horror. Freud procura,
sobretudo, um território para situar o núcleo do repulsivo, buscando inclusivamente tal registro
em seu próprio trabalho, quando afirma que há tempos não experimenta algo que lhe produza
a impressão do inquietante em sua própria escrita. Para experimentá-lo, “primeiro tem de
transportar-se para esse sentimento, evocar dentro de si a possibilidade dele” (p. 330)
Por “estranho”, Freud não se refere apenas ao que é desconhecido externamente, já que
nem todas essas experiências são assustadoras; o autor refere-se, sobretudo, ao estranhamento
ao qual “algo é acrescentado” internamente (p. 239), indicando dessa forma uma ideia de
invasão psíquica, por um lado, e de retorno, por outro: “o estranho é aquela categoria do

67
assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar” (p. 238). Diz respeito
ao que é sentido como não “doméstico”, que não está treinado, tampouco controlado; ao que
não é amigável, expressão de um demoníaco, avassalador, desgovernado, sem fronteiras. Neste
contexto, Cardoso (2016) destaca a face de desamparo desvelada pelo sentimento de invasão
do demoníaco; a autora indica que essa experiência traz consigo a ambivalência original de
passividade diante de um outro que é, ao mesmo tempo, fascinante e dominador, figura do
processo constitutivo de identificação (p. 133). Logo, o assombro relativo à sensação de
estranheza não revela apenas a mera reação frente ao desconhecido, que inexiste no território
do eu, mas opostamente, por ser demasiadamente conhecido e, por isso, veicular uma força
pulsional de dominação ao excedente. O Unheimlich, portanto, traz em si o Heimlich, “é uma
palavra que desenvolve o seu significado na direção da ambiguidade, até afinal coincidir com
seu oposto” (FREUD, 1919/2010, p. 340).
No exame desses fenômenos, Freud parte de dois métodos de análise: a primeira,
terminológica e linguística relacionada ao termo Unheimlich (não-familiar); e outra a partir de
“propriedades de pessoas, coisas, impressões sensórias, experiências e situações que despertam
em nós o sentimento de estranheza” (p. 238), sendo a literatura uma especial fonte de análise.
Os exemplos literários que Freud utiliza são extraídos de narrativas cujos recursos estilísticos
são de teor fantástico, a partir dos quais constrói várias hipóteses, em diálogo com as ideias de
Ernest Jentsch15. A primeira delas, chamada de teoria da incerteza intelectual, diria que o
estranhamento se daria pela mera dubiedade dos elementos deste tipo de narrativa, que impõe
ao leitor a imprecisão do limite entre os estados vitais e os estados mortíferos, ou o contraste
do humano/não humano. A refutação, contudo, vem logo em seguida, ao passo que Freud
verifica que nem todos os objetos que possuem tal aspecto causam o efeito de estranhamento,
inclusive podendo ser geradores de outras emoções, como o prazer:

(...) sabemos agora que não devemos estar observando o produto da imaginação de
um louco, por trás da qual nós, com a superioridade das mentes racionais, estamos
aptos a detectar a sensata verdade; e, ainda assim, esse conhecimento não diminui em
nada a impressão da estranheza (FREUD, 1919/2010, p. 248).

Freud conclui que há algo a mais a ser levado em consideração, já que, a partir da análise
dos elementos do conto O Homem de Areia, escrito por Ernst Theodor Amadeus Hoffmann,
observa que existem traços relativos ao conflito edípico, nomeadamente ao complexo da
castração, participando do processo gerador do estranhamento. Desta forma, observa Freud,

15
On the Psychologyof the Uncanny, de 1906.

68
este algo mais seria a presença do recalcado, projetado para o exterior pelo eu e sentido como
estranho a ele mesmo. O inquietante viria, assim, de uma espécie de ativação do retorno do
recalcado, ou de crenças primitivas que, aparentemente superadas, tornam a inquietar,
incidindo sobre o eu de forma insistente e repetida.
Sobre o texto de Hoffmann, Freud nota que “o autor quer fazer com que nós mesmos
olhemos através dos óculos ou binóculos do demoníaco ótico, e que ele próprio talvez tenha
usado pessoalmente um tal instrumento” (p. 346). Essa afirmação confere uma contribuição
relevante à dinâmica do processo criativo, pois Freud defende que o elemento demoníaco é
matéria prima do escritor ficcional e, simultaneamente, efeito estético do factual da obra. A
experiência da leitura da obra ficcional, portanto, realiza-se neste terreno inquietante que
acomoda elementos primitivos de fragmentação do eu. É próprio da arte, Freud não cansa de
afirmar, a possibilidade de extensão do eu em suas manifestações mais insólitas, como ocorre
na literatura: “O escritor pode exacerbar e multiplicar o inquietante muito além do que é
possível nas vivências” (FREUD, 1919/2010, p. 373).
A esse processo, Gagnebin (2009) denomina “fundar mundos no mundo”, ampliando o
fenômeno do estranho ao enfatizar seu caráter de território, dando a ideia de expansão
perceptiva. Para a autora, o terreno da inquietante estranheza hospeda seus fenômenos dentro
de uma espacialidade específica, que permite a negociação entre fronteiras, lugar de abrigo do
estrangeiro, “ao lado do animismo, da magia, da onipotência dos pensamentos, das relações
com a morte, das repetições involuntárias e do complexo de castração, o domínio da estética”
(p. 185, tradução nossa). Loureiro (2005) subscreve essa perspectiva e ilustra sua hipótese com
o exemplo da Síndrome de Stendhal, distúrbio que acomete turistas em visitação a Florença e
outras cidades com vigorosa expressão artística, e que denomina a ocorrência da vacilação do
eu, nas quais ocorre uma profunda confusão ou excitação psíquica. “No encontro do viajante
com a obra de arte há sempre um ‘invariante’ – o deslocamento e o desenraizamento do entorno
habitual, conhecido e familiar – e isto para ela é decisivo para o desencadeamento da síndrome,
bem como para sua compreensão” (p. 106).
A ideia de território coincide com a afirmação de Freud de que a literatura engendra e
põe em questão dois planos do estranho. Haveria um plano do estranho “superado”, que está
situada no âmbito representativo e que opera a transição de elementos apreensíveis pelo registro
da representação; e outro de ordem primitiva, originado “de complexos reprimidos e mais
resistentes”, que estão aquém do registro representacional e dão a ideia de marca psíquica. São
puramente apresentações insistentes da mesma coisa que se expressam através da via sensória,
mas que não encontram um correspondente no registro representacional – configurando então,

69
um estranho mais angustiante. Enquanto o primeiro plano seria passível de exposição à prova
de realidade e simbolização, o segundo se expressaria pela atuação de mecanismos de
repetição. Para Freud, a obra literária – principalmente a literatura fantástica, que mobiliza a
dimensão enigmática da existência – apela aos dois planos mencionados, simultaneamente,
podendo fazê-los se sobrepor. Assim temos um paradoxo inerente às obras de arte: elas podem
alcançar elementos de extrema violência, em maior ou menor grau e, ainda assim, são anteparos
para quem as observa ou interage com elas. A obra é tolerável para fruição somente pelo seu
caráter ficcional, que se expressa“na vida e na obra que se situa no terreno da realidade material.
Contudo, para que ela exista, os dois planos do estranho se encadearam na realidade subjetiva
da criação de seu autor, processo em que ambos os registros podem atuar e se perder “nas
realidades fictícias”. Em suma, entre a estética da criação e a estética da recepção, há um
terreno de diferença, completamente estranho e imprevisível, que pode alcançar zonas
incalculáveis.
Indicamos, dessa forma, que a divisão em dois planos do estranho implica, em primeiro
lugar, que as obras de arte são constituídas da estranheza em sua materialidade; seu próprio
material é estranho, motivo que leva Freud a examiná-las como fontes desse fenômeno. Além
disso, essa realidade material é dependente apenas parcialmente da camada que mobilizou o
processo criativo de seu autor. Chamamos atenção a esse fato para indicar que a análise de
Freud delineia, pouco a pouco, a ideia de que o terreno inquietante esfumaça os limites precisos
entre obra, autor e crítico (o próprio Freud). Em segundo lugar, o efeito estético mobilizado,
em grande parte pelo medo, lança a inteligibilidade da obra para segundo plano. Neste sentido,
há uma particularidade da literatura fantástica que merece breve aprofundamento, uma vez que
foi através dela que Freud alcançou níveis mais profundos de suas concepções sobre os
processos criativos e das respostas psíquicas frente ao efeito estético das obras de arte. Neste
âmbito, os apontamentos de Tzevan Todorov (1970) sobre os motivos da literatura fantástica
parecem frutíferos para discussão.

3.4.1 Os motivos do fantástico

Dentre os gêneros literários, o fantástico se destaca16, principalmente, como um tipo de


narrativa que se expressa como rompimento da lógica inteligível, que não se orienta, portanto,

16
Na primeira parte do livro “Introdução à literatura fantástica”, Todorov discute a efetividade da inclusão do
“fantástico” como gênero literário, questão sem resposta definitiva dentro dos estudos literários. Estamos
assumindo-o como gênero, por se tratar de uma discussão que escapa ao nosso tema.

70
pelas leis da natureza. Sua marca mais distinta é a instalação do teor de incerteza e espanto na
construção ficcional. Alguns de seus maiores representantes se mantêm imortalizados na
história da poética ocidental, como Edgar Alan Poe, Guy de Maupassant, Ann Radcliffe e
Hoffmann, tendo este último chamado a atenção de Freud.
De acordo com Todorov (1970/1981), “o fantástico é a vacilação experimentada por
um ser que não conhece mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente
sobrenatural” (p. 16). O recurso estilístico não tem somente a intenção de levar o leitor a uma
situação enigmática, mas promover uma condição específica de leitura; o enigma não é
vivenciado apenas na reação do leitor, nem no espanto do personagem diante da situação
ficcional, mas também na maneira de ler. Diante do fantástico, o leitor precisa tomar certas
atitudes, confrontando sua própria proximidade com o evento estranho.
Desse modo, Todorov (1970/1981) também indica que há uma temporalidade própria
do fantástico, cuja durabilidade é o tempo de seu próprio efeito: “o fantástico não dura mais
que o tempo de uma vacilação: vacilação comum ao leitor e ao personagem, que devem decidir
se o que percebem provém ou não da ´realidade`, tal como existe para a opinião corrente” (p.
24). O estranho, para Todorov, é parte componente do fantástico. A tentativa de dar uma
definição ao enigma da narrativa já configura o encontro com a imprecisão de limites formais,
pois ele “dissolve-se no campo geral da literatura” (p. 26).
Para o autor, a definição freudiana do “estranho” caracteriza, na literatura, a expressão
do “estranho puro”. Diante do inegável reconhecimento dos processos inconscientes
envolvidos no fantástico, Todorov menciona a teoria de Freud, de que “o sentimento do
estranho se originaria com a aparição de uma imagem oriunda da infância do indivíduo ou da
raça” (p. 27), admitindo que existe uma relação direta entre a sensação da estranheza, evocada
pelos temas do fantástico – ligados a tabus mais ou menos antigos – e o primitivismo das
vivências, que se constituem pela transgressão.
Freud, entretanto, aprofunda-se nesse exame, constatando que diante das manifestações
da estranheza, um complexo inacabamento dos limites no registro da alteridade interna é
colocado à prova. De forma muito similar ao que é dito sobre o fantástico na literatura, Freud
sustenta que “o efeito inquietante é fácil e frequentemente atingido quando a fronteira entre
fantasia e realidade é apagada, quando nos vem ao encontro algo real que até então víamos
como fantástico" (FREUD, 1919/2010, p. 368). Desta maneira, Freud enriquece a relação entre
os terrenos do estranho e do fantástico com a ideia de que a imprecisão desses limites convoca
a dimensão de apagamento de uma linha tênue que, por sua vez, separa o território do eu da
dimensão do outro, nos remetendo, assim, à radicalidade das relações com a alteridade.

71
Poderíamos dizer, deste modo, que o fantástico aparece como uma figura de estranheza para
Freud, evento que se dá em acordo com a expressão do fantástico como gênero na história da
literatura. Tanto para Freud como para os teóricos da literatura esse gênero chamou a atenção
por levar a experiência de escrita e leitura a um nível radical, em que uma fragmentação do eu
se manifesta.
Consequentemente, Freud se depara com a investigação sobre o duplo, inseparável do
exame dos fenômenos geradores da sensação de estranheza, e sua relação com a arte e os
artistas. Um dos trabalhos em que se apoia é “O Duplo”, de Otto Rank (1914/1939), autor da
afirmação de que Theodor Hoffmann “é, sem dúvida, o maior conhecedor do problema da
Dupla Personalidade” (p. 19). Rank apresenta, além disso, um extenso estudo sobre a presença
do tema da Dupla Personalidade, que em sua análise sempre habitou a literatura ficcional, com
especial expressão no romantismo alemão17.
Além de Hoffmann, Rank menciona a relevância de Robert Louis Stevenson (1850-
1894), especialmente com o conto “Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, publicado originalmente em 1886.
Rank aborda dois aspectos do duplo presentes na narrativa: um puramente ficcional,
representado pelo conto em sua materialidade; outro de um fenômeno dissociativo de
Stevenson, que teria sido “acometido” durante um sonho, cujas “impressões foram tão vivas
que escreveu a história de um fôlego, tal como esta se lhe apresentara durante o sono”18
(RANK, 1914/1939, p. 27). No plano ficcional, o personagem principal, Dr. Jekyll, encontra
uma fórmula que lhe permite assumir outra personalidade – “totalmente perversa”, na leitura
de Rank – e uma série de embates e fenômenos estranhos passam a ocorrer em virtude de serem
os dois personagens a aparição da mesma pessoa, separados pelo bem e pelo mal. A trama gira
em torno da resolução do mistério de uma morte enigmática e as situações de estranheza são
narradas de variadas formas, havendo o sumiço constante de um e de outro lado da mesma
personalidade. Para Freud, uma narrativa desse gênero expressa o fenômeno das manifestações
do duplo por excelência, assim como demonstrou em relação ao “Homem de Areia”, de
Hoffmann.
A riqueza do texto “O Estranho” permite ainda que Freud conclua que a estranheza é
um fenômeno mais amplo do que a literatura, embora a literatura alcance graus incalculáveis
de sua manifestação. A literatura seria, portanto, um prolongamento da materialidade do

17
Rank faz especial alusão ao cinema, dimensão em que o duplo ganha exuberância com os processos técnicos
cinematográficos, dada a sua amplitude imagética, que pode alcançar registros abstratos, similar à amplitude
imagética do sonho (Rank, 1914, 1939).
18
Rank está se baseando em “A vida de Robert Louis Stevenson”, escrita por Graham Balfour.

72
estranho sentido como externo, como se uma parte do eu encontrasse lá uma roupagem
provisória, um novo terreno representativo. Porém, nesse estranho sentido como externo
residiria, sobretudo, a própria presença dos elementos não representados de si, e a manifestação
do duplo, por abranger experiências em que o eu se encontra em situação dúbia de uma parte
de si, passa a conhecer na repetição a sua temporalidade específica. Como afirma Freud, nesse
registro impera a “duplicação, divisão e intercâmbio do eu. E, finalmente, há o retorno
constante da mesma coisa – a repetição dos mesmos aspectos, ou características, ou
vicissitudes, dos mesmos crimes, ou até dos mesmos nomes” (FREUD, 1919/2010 p. 252).
Podemos dizer, assim, que o fantástico da literatura abre caminhos para que Freud
contextualize, pouco tempo depois, em “Além do Princípio do Prazer” (1920), a ação da
compulsão à repetição no psiquismo, seu caráter atual e sua insistência enquanto apresentação
da mesma cena. Evidentemente, tal teorização deve-se também a outras questões, como o
paradigma clínico com que Freud se deparava e às cinzas da guerra como motores da neurose
traumática. Porém, tendo em vista as vicissitudes com esse “momento literário” de Freud,
defendemos que o acento dado à literatura fantástica é maior do que o de um mero exemplo,
especialmente diante das frequentes menções de Freud ao “poder do escritor”, a sua capacidade
de manipulação e maleabilidade dos leitores a partir de seus recursos técnicos.
Na acepção de Chaves (2017), o peso da literatura é de fundamental relevância na
fundamentação dos caminhos abertos por “O estranho” dentro dos estudos de Freud sobre arte.
Na perspectiva do autor, “é como se o texto de 1919 introduzisse uma ruptura total, que
favoreceria inteiramente as suas ´inovações`, delegando, desse modo, tanto os escritos
anteriores quanto posteriores a um lugar secundário” (CHAVES, 2017, p. 11-12). Sublinha
também que alguns conceitos destacados noutros textos sobre arte, como identificação,
sublimação, fantasia, projeção, escolha, lembrança encobridora, passam a ter relevância
secundária nesse contexto. Afinal, a última ênfase de Freud em 1919 é sobre o caráter de
insistência das manifestações da estranheza, que se origina dos complexos recalcados e que
permanece tão inquietante na literatura como nas vivências, abrindo caminhos para uma
reflexão sobre a dimensão atual e atuante dos objetos artísticos. A esse respeito, Freud escreve
a Thomas Mann, muitos anos depois, mostrando sua grande confiança de que “as palavras de
um escritor são ações, afinal” (FREUD, 1933a/2010, p. 470).
Por conseguinte, vamos nos valer da aposta de que há uma íntima conexão entre os
fenômenos relacionados ao estranho e os objetos artísticos em sua materialidade, e de que a
temporalidade do atual constitui seu fio de ligação. Para desdobrarmos essa hipótese, vamos

73
nos centrar sobre a particularidade desta temporalidade que, numa determinada perspectiva,
rege os fenômenos da repetição.

3.5 TEMPO DE REPETIR

Os fenômenos de repetição constituem um dos maiores temas do pensamento de Freud


e suas nuances desencadearam significativas alterações conceituais no conjunto da obra. Nesse
âmbito, Cardoso (2002; 2016) traz contribuições fundamentais à articulação entre os
fenômenos de repetição e as características da atuação do traumático, partindo dos indícios de
Freud a respeito da compulsão à repetição. Segunda a autora, esses indícios encontram-se na
obra de Freud de maneira não evidente e não sistematizada, mas podem seguir um trilho desde
a introdução do narcisismo, com o desenvolvimento da temática dos ideais, da identificação e
da instância crítica. Esses elementos trazem à teoria a ideia dos movimentos auto infligidos,
que fazem exigências e regem a instância do eu, ao passo que versam sobre a internalização do
território do outro no espaço psíquico. Nesta hipótese, esse momento teórico da obra freudiana
pode ser lido como um preparo para o pensamento sobre o caráter de auto-ataque do pulsional,
que encontraria na pulsão de morte e na formalização da compulsão à repetição a sua
justificação.
Segundo Scarfone (2016), a própria tendência de o recalcado retornar consiste num
fenômeno de repetição, que ocorre justamente por abrigar o irrepresentável nele próprio,
embora a compulsão à repetição configure uma dimensão mais radical que o retorno do
recalcado. Na perspectiva do autor, metaforicamente, o núcleo indizível do recalcado possui
uma “força de atração”, responsável por convocar o psiquismo a “pensar em imagens”, quando
em situação de passividade frente ao inquietante, sensação essencialmente atuante do
inconsciente e que faz confrontar a dupla condição humana de atividade e passividade.
Na compulsão à repetição, entretanto, “não se trata simplesmente de uma compulsão
própria do material inconsciente” (CARDOSO, 2016, p. 152), mas da repetição compulsiva da
experiência de desprazer, em virtude de inexistir a possibilidade de ligação com o pulsional
inscrito nas representações encadeadas pelo princípio do prazer. Devido a essa independência,
os fenômenos da ordem da compulsão à repetição são marcados por sua natureza livre e, ao
mesmo tempo, tirânica, pois se manifesta em forma de exigências intoleráveis ao eu. A autora
destaca que, nesses fenômenos, Freud “vê a marca do demoníaco” (p. 149), cujo tempo de
atuação é o do “sempre presente”, que carece de historicização, permanentemente repetido e,
portanto, atual.

74
Deste modo, justifica-se a relação da compulsão à repetição com os sonhos traumáticos,
ambos sendo regidos pela temporalidade do atual, própria do trauma. Nesse argumento,
sustenta-se que a questão da repetição sempre estivera presente na obra freudiana, entretanto
aparece sob novo aspecto a partir da inauguração do novo dualismo pulsional, em 1920. Uma
de suas figuras mais destacadas é o enigma do sonho traumático, cuja característica principal é
o seu caráter insistente e figurativo atuante no psiquismo em forma de retorno da mesma coisa.
São sonhos que evidenciam, sobretudo, a temporalidade do traumático, que por seu aspecto de
congelamento e fixidez, insiste pela ininterrupta apresentação da cena, marcada no aparelho
psíquico num registro que evoca o limite do representável e a atualidade do inconsciente. Isso
ocorreria, pela perspectiva do segundo dualismo pulsional, em função de o traumatismo acossar
o psiquismo, confrontando sua capacidade de elaboração, remetendo o eu a uma espécie de
“corpo estranho” interno, que não cessa de repetir (CARDOSO & MALDONADO, 2011).
Ao estudar esse tipo de sonho, Freud (1920/2006) formula sua teoria de que o psiquismo
é regido por uma camada mais primitiva, cuja natureza é, paradoxalmente, inerte e ativa. O
sonho traumático vem revelar que nem toda produção onírica encontra-se sob influência do
princípio do prazer; podendo ocorrer “antes que a dominância do princípio do prazer possa
mesmo começar” (p. 42). Em vista disso, o autor indica a independência do princípio do prazer
como o principal aspecto da compulsão à repetição que, por esse motivo, é encarada também
como força demoníaca, desanexada do sistema representativo e permanentemente inquietante.
Relativamente ao tempo do atual, o trabalho de Ritter (2016) demonstra uma pertinente
retomada das neuroses atuais, desenvolvidas por Freud no início da obra como um tipo de
patologia distinto das psiconeuroses – nas quais seria possível desvelar o sentido de um desejo
inconsciente. As neuroses atuais, ao contrário, consistiriam em quadros com intenso apelo à
dimensão corporal, com ausência de trabalho psíquico e a forte presença da angústia, sendo
que “neurose de angústia” nomeia uma das formas em que a neurose atual pode se manifestar
(p. 18). Assim, resgata-se o caráter traumático dessas afecções em que a possibilidade de
elaboração está indisponível, de maneira que a repetição ocorre no lugar onde falha a ligação
com a representação. Então, na hipótese desse autor, a compulsão à repetição já estaria
embrionada na concepção das neuroses atuais. Esse estudo nos sugere e nos interessa à medida
que enriquece a ideia da temporalidade da compulsão à repetição, à luz das neuroses atuais. A
marca dessa temporalidade, então, é aquela em que o eu está suspenso, pois o sistema de
representações está prejudicado. Porém, paradoxalmente, a sensação de si é indivisível do ato
que repete, sem que exista a ligação entre uma coisa e outra – ou, mais especificamente falando,
entre o corpo e o psiquismo. Deste modo, sustentamos que haveria uma linha implícita na obra

75
freudiana que une a angústia das neuroses atuais à face mortífera da compulsão à repetição.
Logo, consideramos que a temporalidade da compulsão à repetição e a temporalidade do
estranhamento são similares, ao passo que convocam a apresentação constante do “mesmo” e
a hesitação do sentimento de si, processos que ocorrem sob a dominância da imagem e da
sensação, em contraste à inteligibilidade perceptiva.
Outra característica da temporalidade especial da compulsão à repetição seria a marca
do choque entre dois estados psíquicos, a saber a passividade e a atividade, cujo atrito promove
a sensação de descontinuidade do eu. Com a figura dos sonhos traumáticos, vemos que, mesmo
que a possibilidade de elaboração se apresente como indisponível, há, por outro lado, pelo
próprio fato da repetição, uma iniciativa de trabalho psíquico, pois “se este mecanismo está
aquém dos limites do que poderíamos considerar como elaborável e, então, além do
funcionamento do princípio do prazer, ele já constitui, por outro lado, um primeiro indício,
uma ação preparatória para a realização de um trabalho" (CARDOSO & MALDONADO,
2011, p. 113). Freud considerou que a compulsão à repetição seria acionada por uma pulsão
específica, de morte, que merece uma breve revisão e questionamento.

3.5.1 Esse problema da morte

Como dissemos acima, a ação da compulsão à repetição e a apresentação desse tempo


auto é reafirmado pela pulsão de morte, na obra freudiana. Ao assumir que o psiquismo também
se movimenta por um princípio que está além do princípio do prazer, Freud (1920/2006)
sustenta formalmente que a força pulsional se organiza em termos de morte e vida, chegando
a considerar que nessa perspectiva a polarização pulsional se dá entre a ligação e o
desligamento de sua intensidade. Figuradamente, na segunda teoria das pulsões, “a oposição
principal será entre o amor e o ódio” (CARDOSO, 2016, p. 148). A força da pulsão de morte
seria a responsável pelas situações patológicas em que há um auto-ataque, como, por exemplo,
as autopunições, os atos de violência contra si, ou as condutas adictivas, em que o eu se torna
um servo de si mesmo, tentando responder à desordem interna. Como também sublinhamos, a
compulsão à repetição, enquanto ritmo temporal, rege esses quadros.
Como destaca Cardoso (2002), uma série de questões são objeto de discussão
psicanalítica em torno do conceito de pulsão de morte, trazidas por diferentes autores pós-
freudianos. A articulação com essa expressão da pulsão com a arte é ainda mais problemática
e incerta, ao passo que as tendências mortíferas e as tendências criativas podem apresentar-se

76
sob um campo simultaneamente comum e extremamente distante; como se fossem polos
opostos de uma mesma linha, como sugere Freud a partir de 1920.
No texto “O Estranho”, o autor afirma que a compulsão à repetição incita a primitiva
dimensão do desamparo humano e da angústia de aniquilamento, questão que faz referência à
morte de duas maneiras: em primeiro lugar, a representação da morte no psiquismo que, para
Freud, seria a maior estranheza de qualquer existência psíquica, ou seja, a impossibilidade de
representar completamente a própria morte seria uma condição inerente ao ser humano,
fundamental para que exista uma separação entre consciente e inconsciente. Nas palavras de
Birman (1999), “o estranho” faz a articulação do que existe no sujeito entre a inevitabilidade
da morte e a sua divisão; isto é, para o horror da morte, inexiste um referente representacional,
essencialmente sem possibilidade de circunscrição no tempo e no espaço. Diante da ideia da
morte,
a subjetividade deixa de existir momentaneamente, entrando numa órbita de
suspensão em relação ao mundo dos objetos [...] não existe proteção possível em
relação ao horror, pois aquilo que aterroriza não se circunscreve no tempo e no
espaço, mas se apodera da subjetividade como uma presa, como algo que lhe invade.
(BIRMAN, 1999, p. 148)

Consequentemente, o segundo plano da referência que “O Estranho” faz à morte situa-


se no sentido da força pulsional mortífera; portanto, no sentido metafórico que designa o
aspecto invasor e irrefreável da pulsão, que traz à tona o nível mais elementar do desamparo.
Sob a dominância do mortífero, então, o psiquismo está coagido numa situação de domínio em
nome da sobrevivência; logo, coagido a repetir. O sonho traumático se repete, automatizado,
pois há uma luta do psiquismo sendo travada contra o terror do desamparo, havendo assim uma
“captura” do excedente pulsional (PARABONI, 2016, p. 77). A invasão da força mortífera
incide sob a precariedade de defesas e barreiras suficientemente delimitadas para formar uma
representação da intensidade das sensações advindas diante da percepção nova. Essa sensação
se dá sempre no presente, na ordem da presentificação. A apresentação do sonho traumático
reside, paradoxalmente, na vitalidade de uma imagem que traz com ela o próprio material da
batalha contra o mortífero.
Essa perspectiva, no entanto, é reconsiderada no contexto pós-freudiano. Para Jean
Laplanche (1970/2015), por exemplo, o conceito de pulsão de morte fica desalojado do aspecto
sexual, na teoria de Freud. A retirada do fator sexual é lida por esse autor como um “desvio
biologizante”, à medida que Freud teria feito um movimento de retorno ao plano biológico ao
conceber a pulsão de morte nesses moldes; remontando à hipótese da pulsão de
autoconservação. Ora, a autoconservação, diz Laplanche, não pode ser puramente instintual,

77
pois guarda em si traços de apego, num plano em que as necessidades fisiológicas e as
necessidades de amor são inseparáveis (p. 57).
Na hipótese laplancheana, então, a pulsão de morte não representa uma ausência do
caráter sexual da pulsão, uma vez que a pulsão se constitui do sexual inconsciente do outro
(LAPLANCHE, 2015), mas à face des-ligada da sexualidade, que não pôde ser assimilada pelo
eu em virtude de trazer consigo a marca excessivamente presente do sexual inconsciente do
outro, intrusivo no espaço psíquico. Portanto, para Laplanche, a pulsão de morte é sexual e traz
as marcas da alteridade interna mais radical, reencontrando “o aspecto totalizante e perverso
da pulsão sexual” (CARDOSO, 2016, p. 150). Da relação que se possa estabelecer aqui com a
arte é a da relação entre essa radicalidade interna e o teor de poeticidade de uma obra, pois
“quanto mais poética, mais a poesia é intraduzível” (LAPLANCHE, 2002/2015, p. 122).
Vamos retomar essa questão em nosso capítulo seguinte.
Michel de M´Uzan (1977), por seu turno, apresenta uma perspectiva excepcional nesse
contexto, discordando que a pulsão de morte existe no psiquismo. Para ele, a questão da morte
na obra freudiana merece exame, principalmente se levarmos em consideração que Freud “é
assombrado pela morte” (p. 49, tradução nossa). O autor destaca que alguns elementos da
narrativa epistolar freudiana demonstram o seu horror à ideia da finitude da vida, especialmente
na correspondência com o médico e amigo Wilhelm Fliess, cujo encontro foi marcado por uma
relação “onde morte e repetição se entrelaçam indefinidamente” (p. 61). Deste modo, a hipótese
de M´Uzan é de que a formalização do segundo dualismo pulsional apresenta uma tonalidade
sintomática no conjunto teórico freudiano, pois a teorização sobre a morte operou para Freud
uma espécie de corpo estranho com o qual Freud não pôde guerrear, principalmente diante da
cena bélica, que teria reeditado o seu medo de morrer. O advento da pulsão de morte, para
M´Uzan, pode ser interpretado como uma “solução” de Freud para seu próprio conflito
insolúvel.
A repetição desse combate, entretanto, não é veiculada pela pulsão de morte, na acepção
de M´Uzan, mas é ela própria o pivô do pensamento de Freud (p. 60). M´Uzan pondera que a
metapsicologia freudiana alcançara seu “edifício completo” em 191519, quando Freud afirma
que a ideia da morte não encontra nenhum apoio na vida pulsional. Isso justifica, para M´Uzan,
o fato de “O Estranho” fazer a articulação com o que é excessivo e sintomático em Freud,
embora paradoxalmente inevitável. Em outras palavras, a pulsão de morte seria o próprio
mortífero de todo o movimento freudiano de investigação e escrita; contudo, esse mortífero

19
O autor subscreve a tese de Ernest Jones.

78
não constitui uma força pulsional autônoma. Pelo fato de sua impossibilidade de representação
no inconsciente, a morte só pode se apresentar na forma de medo e ilusão, que lhe mascaram:
“com a ideia de uma pulsão de morte, Freud vem dar o golpe mais rude às ilusões, satélites da
morte” (p. 52).
A aniquilação, todavia, admissível ao inconsciente, configura o inimigo ou o
estrangeiro por excelência, que “mesmo desaparecido, pode sempre regressar para se vingar.
[...] Em relação ao inconsciente, assim como para tudo o que é primitivo, a morte temida
efetivamente jamais é natural, ela é sempre o fato de um outro, vivo ou invisível, que vem
retirar qualquer coisa, privar da vida” (p. 51). Essa privação, no entanto, se encontra no mesmo
plano das outras figuras da angústia de aniquilação, que significam a angústia de castração.
Para M´Uzan, trata-se do mesmo perigo; a morte não passa de uma castradora da vida, para o
inconsciente.
A justificativa de M´Uzan na apresentação dessa perspectiva está no argumento de que
a “face” da pulsão de morte se apresenta como uma “implosão”, mais do que uma explosão.
Ela age na direção do desaparecimento do eu, de modo que podemos falar em pulsão de morte
como um destino especial cujo termo último seria “uma verdadeira extinção” do eu
(GAGNEBIN, 2015, p. 168). Esse aspecto mostra, com efeito, uma “tendência letal que parece
se impor” (p.168) e que se caracteriza pela dominância do atual. É o que diferencia, também,
a ação do mecanismo mortífero em relação aos fenômenos destrutivos que, para M´Uzan, estão
inscritos na ordem da sobrevivência, que recorrem à fragmentação do eu, mas que ainda assim
o mantém em funcionamento enquanto o nível fantasmático é predominante. O fenômeno
mortífero, por outro lado, é veiculado pelo choque entre a manifestação pulsional e o seu
próprio vacilo, uma vez que M´Uzan admite uma visão profundamente monista da pulsão. Seu
aspecto dualista se dá em termos de diferenciação (GAGNEBIN, 2015, p. 168-169).
Cumpre notar que, de fato, a pulsão de morte incita um grande número de perspectivas
dentro das reflexões psicanalíticas, muitas que não foram abordadas aqui e que estabelecem
articulação com a criatividade e a arte. Em nosso entendimento, contudo, o elemento mais
frutífero a considerar é que a “morte”, esse outro avassalador, é uma “convidada” comum no
campo da arte. Ela entra em sentidos múltiplos na experiência artística e com ela travam-se
lutas e combates dos mais diversos. Portanto, mais proveitoso do que considerar o seu
contributo congênito à criatividade, parece ser a consideração sobre seu caráter de convivência,
intrínseca à produção artística, que apela aos recursos do duplo para se efetivar e alcançar sua
imortalidade. Como sustenta Rank (1914/1939) o duplo, em um primeiro momento da teoria
freudiana, é portador da imortalidade, pois o eu é um absoluto; em seguida, Freud reassume

79
esse ponto afirmando que “a alma imortal foi provavelmente o primeiro duplo do corpo” (p.
351). Por fim,
essas concepções surgiram no terreno do ilimitado amor a si próprio, do narcisismo
primário, que domina tanto a vida psíquica da criança como a do homem primitivo e,
com a superação dessa fase, o duplo tem seu sinal invertido: de garantia de
sobrevivência passa a inquietante mensageiro da morte. (RANK, 1914/1939, p. 351)

Logo, seja em seu caráter pulsional, ou sexual, ou castrador, podemos supor que o
mortífero interage com a arte enquanto presença permanente, num jogo de natureza
ambivalente. A relação de influência, por exemplo, que precede o próprio ato da criação,
envolve a ambivalência de morte e vida em sentido dramático; pois é preciso superar e, ao
mesmo tempo, imortalizar o artista ou o objeto admirado (BLOOM, 1975/1991). Interessa,
então, assumir que o inconsciente pode servir como terreno desse alargamento, para onde se
pode regressar e pôr seu substrato em uma forma particular. A perspectiva de M´Uzan (1977)
é instigante, uma vez que possibilita tal abrangência, tendo em vista que “para o inconsciente,
que ignora o negativo; para o inconsciente, em que os contrários coincidem e que é regido
somente pelo princípio do prazer, a morte não é propriamente uma questão necessária para a
vida” (p. 51); o que não significa sua inexistência eventual, figurando, por isso mesmo, como
expoente do estranho. Defendemos, então, que essa apresentação depende do choque com o
atual para ocorrer.

3.5.2 O choque com o atual

Vamos partir do princípio que o choque com o atual é o que caracteriza a experiência
do inconsciente, em termos amplos. Dentro da linha que seguimos, porém, queremos destacar
uma dimensão mais acentuada dessa experiência; do encontro com aquilo que orbita o próprio
material do retorno do recalcado, seus restos e marcas indizíveis. Em suma, na ordem do ato,
“que surge desfazendo os circuitos e traços espaço-temporais existentes, obrigando-os
consequentemente a se reorganizar, à se redramatizar e a se recolocar em cena. O ato é
tenebroso, contrário à representação” (SCARFONE, 2015, p. 31, tradução nossa).
Paradoxalmente, contudo, induz o trabalho de representação em uma forma peculiar, forçando
a tomada de um sentido a modo de um golpe. Nessa perspectiva, o atual consiste na presença
de um impasse, em que a camada de historicização do eu se esvanece; sem outra possibilidade,
é para o infinito que se lança, temporalidade que não se inscreve nem no passado e nem no “vir

80
a ser”, mas na temporalidade de um não-passado – ou, melhor dizendo, de um impassé20 (p.
31).
Para Scarfone (2015), é possível antever a teorização sobre o atual ao longo de todo o
percurso de Freud. O autor defende que, desde “O projeto para uma psicologia científica”
(1895), Freud mostra magistralmente que no núcleo de toda a representação há o seu índice
perceptivo, a partir da diferenciação entre representação palavra e representação coisa. Para
Scarfone, a psicanálise não perde jamais a sua natureza de “coisa”, questão que pode ser lida
para além do esforço de Freud de levar sua ciência pelo centro da decifração interpretativa, seu
esforço por iluminar, dar sentido e escapar à afasia em que está mergulhado o enigma da
histeria. Em suma, os movimentos de Freud vão na direção do psíquico (codificável), em
contraste ao atual. Entretanto, para Scarfone, o atual é mais amplo do que o contraste ao
psíquico. O atual está encravado – poderíamos dizer, encarnado – no psíquico. Na constituição
perceptiva, o que ocorre é um encobrimento, um “envelopamento” do núcleo traumático,
insistentemente familiar, que aparece, porém, como estranho (SCARFONE, 2014/5).
A defesa de Scarfone é de que a sina do atual é sempre retornar, e que há na obra
freudiana elementos suficientes para concluir que essa questão, de certa forma, nunca fora
abandonada, edificando, por isso mesmo, o constructo teórico de Freud, de maneira
aproximada ao que afirmara M´Uzan relativamente às questões em torno da morte e do
mortífero. Sublinha-se, assim, que há uma opacidade essencial na psicanálise, coração da
relação eu-outro e que sustenta justamente a autenticidade, singularidade e, de certa forma,
imponderabilidade da experiência psicanalítica (SCARFONE, 2014/5; 2015).
Relativamente à ideia de núcleo traumático, Scarfone (2014/5) destaca também que o
atual já estava presente na ideia de umbigo do sonho, em “A interpretação dos sonhos”, como
um determinante da experiência inconsciente (FREUD, 1900). Porém, como já vimos, ganhou
forma vivaz a partir do questionamento sobre os sonhos traumáticos, sob os ruídos
remanescentes da guerra, do trauma, da pulsão de morte e da familiaridade com o demoníaco.
Entretanto, o “umbigo do sonho” traz a ideia original de que os sonhos não são tratados somente
pelo lado do conteúdo, mas também pelos processos que o constituem. Os mecanismos de
deslocamento e condensação, que permitem a montagem das cenas oníricas, não descrevem
apenas o que está em causa, mas apontam para o centro onde gravita a sua experiência
alucinatória (p. 1373).

20
O jogo de palavras utilizado pelo autor é proposital e procura colocar a significação dupla da palavra impasse,
que na língua francesa também poderia remeter ao não-passado; aquilo que não ocorreu pois não se inscreve.

81
Para M´Uzan (1977; 2010; 2015), todo o terreno do inquietante e seus inerentes
fenômenos de repetição guardam em si uma dimensão rigorosamente arcaica, e palpável apenas
por algum sistema de estética, como Freud mesmo afirma em “Além do princípio do prazer”
(1920). Enquanto efeito, ele resultaria inescapavelmente de um “vacilo identitário”, flagrado
pelo campo do sensório e pela externalização de uma parte do eu. Já as experiências mais
impactantes – como as artísticas, na visão de M´Uzan – estariam na ordem de um “escândalo
identitário”, uma vez que engendrariam a reação ao estrangeiro, em que uma atuação é
possibilitada no campo da inquietante estranheza. Tais elementos, alusivos à temporalidade do
atual, dizem respeito aos primórdios da vida psíquica e à dimensão enigmática do encontro
com o outro, que marcam sobretudo esse núcleo indicial da própria atividade representativa.
Teremos a oportunidade de regressar a esses aspectos em nosso próximo capítulo.
Todavia, destacamos a visão de M´Uzan (1977) a respeito dos objetos artísticos se
caracterizarem pela capacidade de estabelecer uma espécie de vínculo direto com o
imponderável das experiências, uma vez que o material da arte guardaria em si, da mesma
forma, tal capacidade, justamente por suas características próprias. Parece plausível, então, o
argumento de que isso ocorre pelo fato de as obras de arte guardarem em sua própria
materialidade a gama ilimitada do estranhamento do mundo, questão que merece as
considerações a seguir.

3.6 O ESTRANHO DA ARTE

Considerando como ingênua e mesmo impossível a tarefa de afirmar o que é a arte,


supomos que a estranheza pode ser colocada como uma hipótese – ampla, porém válida – para
definição de seus aspectos mais decisivos. Sklovskij (1919, p. 102 apud ERLICH, 1955/1974),
que integrou o formalismo russo, movimento que desenvolveu teses diversas para determinar
o que é um texto literário, aposta no conceito de “estranhificação” para designar a
particularidade indispensável da imagem poética. Para ele, “mais do que traduzir o estranho a
termos familiares, a imagem poética converte em estranho o habitual, apresentando-o sob uma
nova luz, situando-o em um contexto inesperado” (ERLICH, 1955/1974, p. 252).
A teoria da estranhificação desloca o acento da origem da imagem poética para a função
de ruptura que ela exerce na ordem da repetição comum do vivido. Por essa característica, a
imagem poética faria, em sua gênese, uma transferência do objeto para a “esfera da nova
percepção”, o que implica “o ato de deformação criadora” (p. 253), que por sua vez “restaura
a agudeza de nossa percepção, dando ´densidade` ao mundo que nos rodeia”. Assim, na

82
hipótese de Sklovskij, a estranhificação não é exclusiva de nenhuma escola ou corrente
artística, mas de todo o fato da arte, isto é, o fato do deslocamento semântico, que implica na
necessária posição do artista de se negar “a reconhecer os objetos familiares e descrevê-los
como se os tivesse visto pela primeira vez” (p. 254).
Freud se aproximou dessa discussão no texto “Transitoriedade” (1916), em que
descreve a interação que o poeta Rainer Maria Rilke (1875-1926) trava com a beleza e
perfeição da natureza, na ocasião de um passeio que fizeram juntos. O psicanalista observa a
maneira como Rilke percebe a realidade da natureza que os rodeia, e fica consternado com o
modo como o poeta deseja aprofundar-se na matéria, como resposta à transitoriedade e
vulgaridade da vida. É certo que o referido texto também traz uma posição peculiar de Freud a
respeito da beleza, apostando que seu valor está justamente no seu caráter de declínio.
Entretanto, Freud não aceita facilmente o pessimismo do amigo e tampouco nega a
transitoriedade da vida e das formas – principalmente as formas belas – demonstrando
novamente a estranheza que lhe causa o tema da arte. De todo modo, fica declarado nesse texto
que Freud atribui à particularidade artística uma relação de incorporação com as formas da
natureza; e percebe, desse modo, a tristeza do poeta diante da incapacidade de absorver a beleza
do mundo.
À frente da teoria da estranhificação, notamos que a percepção da realidade objetiva e
a sua transposição em uma forma de arte, veicula também outras três operações intrínsecas à
experiência do ato criativo no momento mesmo da inspiração – noção que vamos desenvolver
no próximo capítulo deste estudo. A primeira dessas operações seria o evidente rompimento
com o código comum de comunicação, materializado no factual da arte. Em segundo lugar,
consequentemente, é a função expressiva do objeto artístico, em oposição à comunicativa,
sendo que o potencial estético de uma obra repousa sob sua possibilidade de expressão e
apreensão estética, o que coloca seu valor comunicacional em segundo plano. Em terceiro
lugar, de que tal potencial estético deve estabelecer alguma relação com a expressão estética
do mundo enquanto realidade material, o que parece muito próximo do que Freud denomina
como “transitoriedade”. Segundo Pimenta (2001), o conjunto desses três elementos define
quando uma experiência artística alcança o seu efeito estético que, contrariamente à
comunicação comum, “desce ao fundo”. O conjunto desses três elementos oferece a precisão
para uma definição de arte em que a categorização é secundária, ao passo que os poetas
recorrem à função expressiva da linguagem, em oposição à sua função comunicativa:

Nós podemos comunicar, uns com os outros, enquanto não descermos muito ao fundo
(...) A comunicação só é possível assim numa base superficial. Esse é o problema, e

83
é enfim a função da linguagem comunicativa. A linguagem expressiva não
comunica... Mas que absurdo pensar que alguém para comunicar iria fazer uma coisa
enigmática, em versos, com ritmo. Que maneira esquisita de comunicar! Ele não
comunica, ele exprime. Exprime aquilo que é incomunicável numa linguagem
comum. E por isso usa as antíteses, usa as metáforas, transforma.... É isso. Agora,
tudo isso tem de ser em função de si mesmo, da sua própria história, e em função de
uma realidade que se vive. Em continuar se fazendo poesia como se fazia há cem
anos, o único problema é que não tem mais nada a ver com a nossa realidade. É só
isso, mais nenhum. (A OUTRA FACE DA LUA – Episódio n.º 2. Direção: JIP.
Produção: JIP Produções. Autoria: Júlio Isidoro. Ano: 2001.)21

Terrapon (2012) defende que uma das faces da inspiração, na criação artística, é a
sensação de “encarnação” do mundo, impresso na obra a partir de seu estranhamento, que
encontraria eco no que há de mais estranho internamente no sujeito produtor e no sujeito
espectador. Esse processo se ancora, por um lado, numa tendência de plenitude narcísica e, por
outro lado, no ato de negar a categorização e a catalogação da vida, o que eleva a imaginação
ao nível de “preeminência absolta” (p. 166). Paradoxalmente, seria um modo de entrega à
ilusão de conhecimento global instantâneo e da possibilidade de participar da intimidade da
natureza, uma vez que “as formas vivem ao fundo da matéria, aparecendo em imagens à
superfície” (p. 166). No objeto artístico, segundo Terrapon, o artista se encarna no mundo.
Entre ele e a realidade material das coisas, a semelhança é que ambos permanecerão. É como
dizer que, na arte, encontra-se uma maneira de não morrer, de não ser aniquilado. Desse modo,
presentifica simultaneamente a afirmação da vida e o desafio à morte e repete compulsivamente
a matéria dessa batalha, documentando nela a estética seguida por cada um que cria.
Lupasco (1968) desenvolve um “princípio de antagonismo” para caracterizar o jogo de
forças opostas que está na base da apreensão sensível de um fenômeno. Ele defende que toda
experiência sensível é feita de pequenos choques com o seu oposto, indo buscar na fonte da
estimulação sensível uma espécie de “prodigiosa sucessão de mortes e ressureições” (p. 21).
Nesse sentido, em última instância, esse jogo de forças seria o da temporalidade da vida e a
temporalidade da morte. Tal acepção vai ao encontro da perspectiva de M´Uzan (1977, p. 11),
de que a luta travada na arte é sobretudo uma luta pela vida, acolhendo a coexistência de outros
pares de opostos que são postos à prova, a saber: o apelo pelo olhar vs. o pavor da crítica; a
necessidade comunicativa vs. o gesto expressivo; a irrupção pulsional vs. a cifra da matéria da
arte; a repetição do mesmo vs. a busca por uma forma nova. É nesse nível radical da alteridade
que “o jogo de todas as tendências contraditórias é possível” (p. 18).

21
Entrevista de Alberto Pimenta concedida a Júlio Isidro, no programa “A outra face da lua” (RTP, Portugal),
disponibilizado para o YouTube no seguinte endereço: «http://www.youtube.com/watch?v=_Lq_4I9ImoA»

84
Para Pourrinet (2006), efetivamente, essa radicalidade ganha especial exuberância e
figura na observação das manifestações da arte contemporânea, em que uma determinada forma
oposta à da elaboração vem sendo exposta, em que o imponderável do aspecto formal é
colocado diante dos olhos do espectador em potencial fragmentado. No próprio factual artístico
se apresenta o “estado de esvaziamento, de não-limite, de perda do corpo, do inumano e do
sentido que testemunha o trajeto da arte contemporânea” (p. 162). Para a autora, o mais
relevante nessa reflexão está no aspecto de possibilidade de transformação a partir do radical.
Em sentido similar, Schneider (2008) fala da possibilidade da arte operar como “negação
antitraumática” ou “antimemória”, na senda do “segundo pensamento” de Freud em relação à
arte, abordado aqui com o exemplo do “marco” de Moisés. Segundo essa hipótese, o processo
artístico visaria a agir de duas formas sob o núcleo do traumático, transformando-o em paródia
de invulnerabilidade e, em seguida, fazendo-o servir de apagamento, instigador de lembranças
inacessíveis, inscritas no corpo como cicatrizes. McDougall (2008) corrobora esse ponto, ao
afirmar que a criação artística pode operar como um sustentáculo do traumático, pois se trata
de uma atividade que dá base a elementos ligados pela violência emocional inerente ao estado
primário do psiquismo humano, e que a arte mantém este estado primário “em aberto”.
Defendemos, então, que os objetos artísticos deflagram um instante de ressurreição
ilusória, capaz de ser figurada materialmente. Como sublinha Jeudy (2002), “no auge de um
sentimento de desapropriação de si, a certeza de não existir o si mesmo se impõe com a estranha
convicção de que o corpo age só, ao sabor das intenções e sobretudo dos caprichos do Outro”
(p. 22). E, paradoxalmente, há “o sentimento de “despossessão” de si, que na experiência
artística pode configurar uma maneira de entrar em posse do novo, além de constituir “também
uma fonte de prazer quando se mantém irruptiva, vertiginosa, e não se transforma em estado
duradouro” (GUILLAUMIN, 1998, p. 3). A função do objeto estético assume a posição de
restituição ou reencontro com o outro, agora sentido como autêntico de si; outrora
indiscernível. A obra de arte encarna o estrangeirismo em si mesma, ao passo que inaugura
uma relação em que “qualquer coisa se suspende, tomando corpo e substância numa duração
própria condenada à eternidade” (GUILLAUMIN, 1998, p. 8).
Aceitando essa hipótese, a perspectiva freudiana é expandida no sentido de que o
assombro interno – contextualizado aqui em termos de seu fundo traumático e nos fenômenos
do estranho, encontraria na imortalidade da obra uma ancoragem; processo essencialmente
chocante, causador de rupturas de um “planejamento interno” (p. 8). A experiência se daria ao
nível de uma “nova para-excitação”, já que o sujeito incita a busca por representações externas
novas e mais ambíguas, cujo objetivo seria o de aceder à identidade de percepção (Freud, 1895).

85
Portanto, a obra de arte entendida no âmbito de objeto estético convoca uma confusão tópica
entre as representações relativas ao estímulo (vivido) interno e externo justamente pelo próprio
caráter duplo da obra: o factual e o simbólico (GUILLAUMIN, 1998). Por um lado, a obra é;
por outro, ela representa, dualidade que instala prontamente uma relação duplamente especular
entre seu produtor e seu receptor (PIMENTA, 1978/2003).
Como veremos em nosso capítulo seguinte, a caracterização do estranho da arte serve
para justificar a inserção das experiências artísticas como figura do instante de saisissement,
termo oriundo da teoria do antropólogo alemão Leo Frobenius e retomado por Michel de
M´Uzan. Em sua origem conceitual, tal instante diz respeito à assimilação de uma dimensão
da cultura que não está inscrita na ordem da linguagem verbal e da inteligibilidade, como numa
espécie de grau zero ou marca original de uma determinada identidade cultural (WIDLÖCHER,
2012, p. 22; M´UZAN, 2012). Uma vez inscrito nos sentidos próprios desse organismo, o
indivíduo se vê saisi por essa dimensão original, incorporando suas marcas.
M´Uzan emprega o termo para caracterizar o instante de potencialidade criativa,
constituído pelo impasse e pela abertura para o atual, como vimos. Desse modo, valida a
relevância dos elementos que se encontram aquém dos elementos inscritos na ordem
representativa e que constituem, afinal, agentes da “estranheza atuante” (SCARFONE,
2014/5). Nesse sentido, o instante do saisissement é flagrantemente associado ao instante
poético, bastante afastado, na visão de M´Uzan, de um momento idílico. Tal como no sonho
perturbador de Stevenson relatado por Rank – e conforme sublinha Pourrinet (2006): “saisi
porque não se trata de uma compreensão do espírito, mas qualquer coisa que atravessa e invade
o corpo” (p. 162).
Cabe assinalar, por fim, que uma série de aspectos relativos ao arcaísmo da vida
psíquica são colocados em questão nos fenômenos da estranheza, que convocam a dimensão
de um retorno fundamental a uma temporalidade remota da existência. Diante desses tópicos,
o prosseguimento de nosso estudo centra-se na dimensão intrapsíquica veiculada no
movimento de regresso, que pode afinal mobilizar as experiências artísticas em sua raiz estética
de criação e apreensão.

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4 REGRESSAR

Na arte, o contato entre sujeito e obra realiza um apelo aos órgãos do sentido, faz acessar
registros inscritos em mais de uma temporalidade, desafiando a ordem perceptiva. Segundo
Jeudy (1998/2002), o aparecimento das imagens da arte entra no âmbito dos distúrbios da
percepção; e a sua categorização estética é realizada só posteriormente a esse primeiro impacto.
Decidir se o que vemos é belo, feio, desprezível ou apaziguador é uma forma de recolocar em
ordem o caos percebido em forma atemporal e incontrolável. O movimento psíquico próprio
da apreensão estética vai da percepção à representação, todavia está no caos perceptivo o
acontecimento artístico propriamente dito. A classificação dá acolhida e sentido
representacional, mas esconde também o que no objeto permanece inquietante.
Ora, essa face do objeto artístico, como vimos demonstrando até aqui, consiste numa
tentativa de equivaler a obra com o enigmático em nossos próprios sentidos corporais. Para
acessar o que de mais precioso ela pode nos oferecer, a primeira referência que temos é a da
percepção de nosso próprio corpo. O juizo estético, por mais rebuscado que seja, pouco pode
dizer de uma experiência artística se não tiver à disposição uma abertura para os enigmas do
registro sensório. Os contornos dados ao objeto, os nomes que lhe são conferidos, dependem
da apreensão sensível para que possa evoluir à classificação estética conceitual. Isso porque
“essa classificação se choca com os efeitos incongruentes da mobilidade das imagens corporais
e de seu poder de irrupção” (JEUDY, 1998/2002, p. 21).
Lembremos do texto de Moisés e da postura de Freud de tentar apreender uma lógica
inteligível para o inominável enigma do choque com a potência da escultura de Michelângelo.
Como defendeu Rancière (2001/2009), a inquietante batalha de Freud é com a admissão dessa
enigmática relação das obras de arte com o estado mais fundamental de desamparo humano.
Segundo o autor, “o motor das análises de Freud, a razão do privilégio que ele concede à intriga
biográfica, seja a da ficção, seja a do artista, se encontra aí: ele se recusa a atribuir a potência
da pintura, da escultura ou da literatura a esse desamparo” (p. 75).
Pretendemos demonstrar que o aspecto enigmático da arte nos leva até o mais íntimo
do arcaísmo da vida e nos coloca frente à possibilidade de reconstrução e restauração
intencional de nossos mais profundos desamparos, tanto individual como socialmente. Em
nome da permanente abertura ao choque com o desamparo, os poetas dedicam suas obras uns
aos outros e oferecem aos leitores o posto de recriadores de suas próprias lacunas, de seu

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sentido de existência. Para Pimenta (1978/2003), a intenção da arte nunca é contínua, mas
busca sempre o choque entre imagens e entre indivíduos para persistir. Ao longo da História,
uma obra faz referência a outra obra, mas garante para si a a sua própria autenticidade, que
também é uma forma de elogiar ou romper com a tradição, dentro do contexto da arte.
Já a classificação conceitual é uma consequência natural ao processo de apreensão e
transmissão dos objetos artísticos, mas não dá conta da particularidade de cada ato criativo.
Isto é, “não basta portanto aperceber a relação formal ente e arte e arte, mas há que tomar
igualmente em conta a relação entre consciências de arte e consciencias de vida” (p. 126). Ou
seja, a categorização está sempre disponível; ela dá respostas e possui modelos prévios de
análise que nem sempre alcançam uma determinada expressão artística.
Na fruição estética, é a entrega ao estado de completo desarmamento que está em jogo.
Nas palavras de Nosek (2017), é preciso se deixar traumatizar para assimilar a arte, embora
essa permissão nos dirija ao infinito do espaço estrangeiro de si, ao choque com ele: “Da mesma
forma que o infinito traumatiza seu conceito, o outro me traumatiza. Recebê-lo é uma
imposição – a ela me submeto. Permito sua presença, ao mesmo tempo em que me abdico de
catequizá-lo. Torno-me refém do infinito. Como um deus, o estrangeiro não pode ser nomeado
sem que se cometa sacrilégio” (p. 20). Nesse sentido, a categorização conceitual da arte ocorre
mediante uma violação de sua natureza de enigma. Mesmo que se possa fazê-lo, a intenção
estética de uma obra pode ser reassimilada no tempo e no espaço, pois carrega traços indizíveis
e, por isso atemporais.
Em nosso entendimento, é pelos enigmáticos caminhos da percepção que essa fruição
se realiza e alcança sua potencialidade de transformação psíquica. A obra de arte elogia ou
desafia o público porque sua função estética é também descortinar os elementos inconscientes,
irrepresentáveis ou mesmo inexistentes nas subjetividades individuais e sociais. É essa afetação
estética procurada pelo artista: enxergar no outro a reedição de sua própria apreensão do
inquietante, transformada com tantos recursos quantos lhe couberem (PIMENTA, 1978/2003).
Uma obra de arte consegue, como nenhum outro objeto, mesclar e reconfigurar a relação entre
o belo e o estranho, despragmatizar as formas de representação da realidade, desconstruir
sentidos para reconstruí-los em uma composição que inexiste previamente. Enfim,
desenvolver-se experimentalmente. Queremos mostrar, com isso, que os artistas se colocariam
nessa posição deliberadamente para adentrar a aventura criativa, num ato do qual pode
depender a sua sobrevivência psíquica, em menor ou maior grau.
Na arte literária, por exemplo, o poema seria uma antítese que “diz o indizível”. O verso
que lemos pode ser considerado como a “periferia poética”, enquanto o próprio indizível está

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na sua origem e, ao mesmo tempo, é o seu centro (PIMENTA, 1978/2003, p. 78). É justo dizer,
então, que o movimento do centro à periferia acompanha a composição criativa. O artista inicia
o procedimento “agarrado” a elementos inscritos nos limites da representação, como se
alcançasse o registro em que a palavra é descoberta; desvelada; reaberta. Por isso, a passagem
desse instante inicial de inspiração ao entrelaçamento do discurso é realizado à maneira de um
enigma, uma “zona indeterminada entre o inatingível e o realizado”, que “faz o caráter
enigmático das obras de arte” (PIMENTA, 1978/2003, p. 77).
Para Pimenta (1978/2003), o paradoxo intrínseco à arte – dizer o indizível – alimenta-
se de um jogo de forças centrífuga e centrípeta de equilíbrio e desequilíbrio do eu. É onde se
inscreve, em sua visão, a dimensão poética da língua; onde as percepções existem em sentido
dominante às representações e para as quais o artista procura abrigo. Vamos insistir na ênfase
com que esse processo aparece na arte literária. Na poesia,
o autor não encontra, para o conhecimento do mundo, resposta adequada e satisfatória
na língua como veículo da estruturação da percepção e do pensamento (e é isso que
ela é). Assim, dá ele a resposta que encontra em interstícios ocultos que há na (s)
língua (s), ou então reformula-a, ´desvia`o sentido das palavras, destrói a linearidade
inventando como compensação para a gramática perdida um ritmo achado.
(PIMENTA, 1978/2003, pp. 75-76)

Com efeito, a psicanálise busca o entendimento desse processo por um variado


caminho. Busca, sobretudo, estabelecer fios entre a elevada elaboração aparente nas produções
criativas e os fundamentos da vida psíquica. Os pilares da construção freudiana são marcados
pela teorização de uma gama de experiências ligadas à capacidade do aparelho psíquico de
realizar movimentos regredientes na incumbência de construir sentidos para as vivências. O
sonho, nessa perspectiva, seria a manifestação da regressão mais exuberante. Seu aspecto non
sense mostra com clareza o que acontece quando a consciência se ausenta e dá lugar ao enigma
perceptivo de si e do mundo. A produção onírica regressa ao arcaico da vida psíquica e dá
acolhida ao seu caráter traumático. Volta-se ao reino alucinatório das sensações e sua
irremediável siuação de passividade infinita frente à presença do outro. As marcas psíquicas se
revitalizam em novos formatos, buscando se inscrever num registro historicizante de si.
Para Michel de M´Uzan (2015), a regressão das formas é a marca fundamental da
atividade ficcional. A semelhança entre a natureza da ficcção e da regressão está no fato de que
ambas são regidas por leis de movimento próprias. Na leitura de uma obra literária, por
exemplo, o movimento psíquico vai do elementar ao complexo, ao passo que “as figuras se
tornam cada vez mais simbólicas por se constituírem em uma série de máscaras” (p. 16). Na
visão do autor, esse movimento está necessariamente impresso nos atos criativos, porque

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“escrever, no fundo, consiste em dizer sem dizer, dizer outra coisa além do que se quer dizer,
a mentir sem saber para revelar qualquer verdade ignorada” (p. 16, tradução nossa).
Para Didier Anzieu (1981), dentre os conceitos freudianos, a regressão fundamenta uma
etapa essencial do processo criativo, a do instante inicial que desencadeia todo o processo de
concepção e composição da obra. Como um núcleo impulsor da criação, a regressão seria
anterior à sublimação e implicada nos fenômenos do estranho. Afinal, esses fenômenos tão
declaradamente marcados em obras como as supracitadas e não só, figuram o estado de retorno
a épocas em que o eu ainda não se delimitava precisamente. A partir deles, compomos nossa
hipótese de que justamente a sua presença é que confere marca autêntica à criação e apreensão
artística.
O “abalo” das fronteiras do eu que está em jogo no ato crativo estabelece como seu
domínio principal a destruição e a posterior reconstrução dos “sentidos de si”, por vias
alternativas à da inteligibilidade conceitual. Para Anzieu (1981), o eu do criador “está apto a
provocar a regressão, a se deixar fazer a dissociação, mas controlando um e outro” (p. 66). Por
essa razão, a regressão criativa abrangeria uma dupla capacidade egoica; uma de regredir e
outra de tolerar o material que surge do processo regressivo, a fim de reconfigurá-lo.
Visto isso, nosso estudo se complementa com a abordagem de duas noções que definem
o instante inicial que leva à criação na arte: a inspiração, na proposta de Jean Laplanche; e o
saisissement, na acepção de Michel de M´Uzan. São concepções que versam sobre a sensação
de passividade interna frente a irrupção pulsional e a sua reação pela via da produção artística.
Não estamos considerando essa passividade como uma “enfermidade” que cairia sob o artista
inesperadamente. Antes de um infortúnio, entrar na crise criativa é o fundamento das produções
artísticas; logo, é visada pelo artista. Para desenvolvermos esse caminho, vamos retomar alguns
pontos fundamentais do fenômeno perceptivo e seus enigmas.

4.1. A PERCEPÇÃO E SEUS ENIGMAS

“Nosso modo de ver o presente reescreve o passado”


(NOSEK, 2017, p. 34)

A premissa freudiana sobre o funcionamento psíquico é fundamentalmente perceptiva.


É com a percepção que apreendemos o mundo e damos significado às narrativas que constituem
nossa existência. Freud aposta, no início de seu percurso, que o aparelho psíquico seria
constituído a partir da fixação de traços de memória marcados desde as primeiras vivências,

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que por sua vez evoluiriam na forma de “orgãos de percepção”. A função da percepção é de
fundamental relevância na delimitação das barreiras entre interioridade e exterioridade desde
o início da vida, marcando a diferença entre os registros de prazer e desprazer. Quanto mais
permeáveis forem os órgãos de percepção, menos “barreiras” haveriam para a recepção de
novos estímulos e, portanto, mais sucetível às excitações internas e à sensação de desprazer.
Quanto menos permeável, mais assegurada a homeostase de prazer no psiquismo (FREUD,
1985/2006).
A questão já aparece desde a “Carta 52” (FREUD, 1985a/2006), endereçada a Fliess,
em que o autor compõe um complexo sistema tradutivo para o psiquismo, segundo o qual as
atividades de percepção e representação estão atreladas. A formação das representações,
defende Freud, constitui o destino das percepções, conferindo significado aos afetos
vivenciados no território corporal. No entanto, no núcleo das representações estariam inscritos
os índices de percepção, que consistem naqueles elementos que inexistem no espaço psíquico,
mas que, paradoxalmente, são uma espécie de guia para a atividade representacional. É em
torno dos índices que as narrativas sobre o eu vão se construindo e tomando forma, de maneira
que os índices de percepção e os registros de memória não são distintos, mas complementares
de um mesmo processo. Isto é, os traços de memória se rearranjam no psiquismo justamente
em função dos índices perceptivos, que se movimentam em sentido progrediente em direção à
representação. Como defendem Macedo et al (2008, p. 73), a “Carta 52” é importante porque
Freud deixa claro que construir memórias é a função essencial do psiquismo; as memórias não
são sua propriedade, mas seu próprio material, e as percepções estão à serviço dessa construção.
De acordo com Coelho Junior (1999), as formulações iniciais freudianas sobre a
percepção sofrem grande influência do empirismo, de maneira que aparecem ora definidas
como uma função, ora como o ato pelo qual se exerce essa função (BOTELLA, C. & S., 2002).
Com a “Carta 52”, Freud descreve diferentes níveis de registro do conteúdo perceptivo, mas a
percepção permanece como registro passivo da realidade, em que “há a tentativa de garantir
uma correspondência verdadeira entre o objeto externo da percepção e a representação psíquica
deste objeto” (COELHO JUNIOR, 1999, p. 27). Tendo em vista que tal correspondência
atende, também, ao esquema de estágios para o desenvolvimento sexual construído por Freud
(1905/2006), em termos gerais o conceito de percepção permanece colado à ideia de fixação
de um conteúdo originário ou de um conteúdo traumático, de acordo com a possibilidade de
ligação pulsional existente entre o registro sensorial e o representacional do psiquismo –
poderíamos dizer mais especificamente, entre corpo e psiquismo. O caráter da percepção é

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fugaz e fugidio, de maneira que só podemos compreendê-la em acordo com o sistema de
representações, considerado como estrutura da realidade psíquica.
Com a sistematização da segunda teoria das pulsões, Freud associa a percepção à função
egoica de mediar as intensidades pulsionais, relacionando o transbordamento pulsional à
dimensão do trauma. Entretanto, a teoria do trauma percorre um longo caminho, partindo da
hipótese de que o traumatismo está ligado a uma vivência sexual precoce, permanecendo como
corpo “enquistado no sujeito, fora das cadeias associativas, o que impede a excitação de se
descarregar” (KNOBLOCH, 1998, p. 37). Com o avanço dos estudos sobre a angústia e sobre
o narcisismo, Freud indicara que, em nível sensorial, o perigo percebido internamente seria
igual ao perigo percebido na exterioridade (FREUD, 1926/2006). Dessa forma, retira da teoria
do trauma o peso do real factual e concebe a ideia de traumatismo psíquico.
Com efeito, a esfera do traumático se caracteriza pela exuberância do fator informe
anunciado pelas sensações. O traumático desafia a possibilidade de representação porque sua
intensidade excede a capacidade egoica de dar-lhe um rosto, um nome ou mesmo um símbolo.
Logo, é distinto do inconsciente recalcado, que está em comunicação com o pré-consciente e,
portanto, é apreensível pela percepção. Não se pode rememorar o traumático, pois ele não se
inscreve como passado, é o intraduzível por excelência. Pode-se, no entanto, reconstruí-lo,
recriá-lo ou reformá-lo em sistemas esteticamente atuantes. Nesses sistemas, é o corpo em sua
estranheza que está em evidência; isso porque a percepção estética “acompanha as imagens
corporais, constrói-se e destrói-se nas visões metamórficas do corpo” (JEUDY, 1998/2002, p.
27).
De acordo com Scarfone (2014/5), a estética abre via possível para que se realize a
reconstrução de um tempo “não passado” (impassé), próprio do traumático. É como dizer que
o impassível de ser figurado pela representação, pode se tornar recoberto ou passar por uma
“soldagem”, procedimento ao qual a linguagem artística teria fácil acesso. Na defesa do autor,
o papel da percepção e sua potencialidade estética abre um caminho frutífero para desvendar
alguns enigmas da própria teoria freudiana e do caminho realizado entre as duas teorias do
trauma. Segundo o autor, o abandono da teoria da sedução (factual) sinaliza esse resto que
permanece como a “coisa” do inconsciente, seu aspecto indicial. É uma forma de pensar que,
metaforicamente, a teoria sobre o trauma real não fora completamente abandonada. Freud teria,
isso sim, escapado ao infantil “mudo” obstinado pela construção de seu projeto teórico. Para
Scarfone, o início da teorização freudiana figura como uma espécie de marca criativa nuclear
de todo o seu percurso, que vai sendo “envelopado” e, simultaneamente, se tornando mais
exuberante ao longo do tempo.

92
Nessa perspectiva, a percepção do semelhante escaparia sempre à apreensão completa,
se pensarmos na face infantil que carrega todo ato de percepção. Segundo o autor, esse hiato
inapreensível entre percebido e apreendido deve-se à mudez das primeiras percepções ligadas
ao corpo infantil mediado pelo outro. Em termos sensoriais, a experiência primitiva de
satisfação está perdida. Porém, paradoxalmente, o âmago estético dessa experiência exerce
influência sobre as coordenadas sensoriais de toda experiência. Então, o trabalho de rememorar
implica na realização de construir “vestimentas psíquicas” para o infantil indicial. Lembrar é
menos reencontrar lembranças do que reconstruí-las, num “chamado a si”. Nesse sentido, “todo
ser que encontra um outro humano é, em parte, infans” (SACARFONE, 2014/5, p. 1370,
tradução nossa).
A relação entre percepção e representação encontra caminhos turvos e incertos para se
desenvolver. Uma percepção dependeria de uma espécie de “megulho estético” no inconsciente
para, a partir daí, tomar forma. Numa passagem muito relevante de “O eu e o id” (1923/2006),
Freud conclui que a primeira forma de pensar é em imagens; que o pensar figurativo antecede
o pensamento discursivo, capaz de ser “posto em palavras”. O aparecimento de imagens
concretas, “sem nome” permitiria, por um lado, um livre trânsito das percepções, porém, por
outro, careceria de ligação com os conteúdos conscientes. Ou seja, as palavras possuem uma
potência estética antes de serem dotadas de uma potência representacional (FREUD,
1923/2006, p. 34-5).
Em “A Negativa” (1925/2006), Freud indica o estranho “abismo” pelo qual percorre
uma percepção até formar-se como representação. Segundo o autor, a cada julgamento de uma
nova situação, o eu realiza uma “apalpação motora” que remonta ao núcleo de formação da
capacidade perceptiva. A percepção se manifesta “na extremidade sensorial do aparelho
mental, em conexão com as percepções dos sentidos, pois, em nossa hipótese, a percepção não
é um processo puramente passivo” (p. 268). Na observação clínica, Freud percebe que o
inconsciente utiliza mecanismos para mediar, pela representação, uma incompatibilidade
pulsional, chegando a inverter numa negativa o que seria uma afirmação. Constata também que
haveriam elementos inconscientes de caráter “inegável”; uma vez que sua expressão se expõe
corporalmente. Por essa razão, “a reprodução de uma percepção como representação nem
sempre é fiel; podendo ser modificada por omissões ou alterada pela fusão de vários elementos”
(FREUD, 1923/2006, p. 268).
Muitos autores pós-freudianos exploram e enriquecem esse pressuposto ao introduzir a
relevância de outros elementos referentes ao campo perceptivo implicados na constituição
psíquica, como a qualidade do olhar e do toque epidérmico como possibilidade de

93
encobrimento das marcas traumáticas (ANZIEU, 1981), o acolhimento e o espaço para a
construção lúdica e imaginativa (WINNICOTT, 1954/5), o desamparo originário frente ao
impacto do sexual (LAPLANCHE, 1999; 1989), entre outros. Esses elementos estariam
presentes não apenas em articulação com a memória e na passagem da imagem ao discurso.
Em nosso entender, eles configuram uma dimensão da constituição psíquica de caráter estético
presente nas próprias características da pulsão.
Nessa perspectiva, a presença dos elementos irrepresentáveis do psiquismo vão além
do que Freud descreveu com a ideia de traumático; eles definem a experiência “desconhecível”
da realidade, em contraste com o reconhecível. No domínio do irrepresentável, para os autores,
“não há mais distinção possível entre as noções de fenômeno, de estrutura e de dinâmica. Não
há mais desacordo possível entre conteúdo, estado e movimento. Os limites se apagam”
(BOTELLA, C & S., 2002, p. 159). Não se trata, portanto, de associar o irrepresentável apenas
aos sentimentos de angústia e vazio, mas aceitar que seu caráter de “desconhecível” pode
integrar-se à percepção reconhecível do mundo, principalmente em experiências de apelo
estético extremo, como ocorre na arte.
Convém, por fim, mencionar que em “A dissecação da personalidade psíquica”
(1933b/2010), Freud afirma que uma expansão perceptiva corresponde à expansão do eu,
principalmente quando mediada por experiências de caráter regressivo, dando como exemplo
o adoecimento e o misticismo. O autor supõe que experiências como essas ativam uma
capacidade especial da percepção de “apreender coisas nas profundezas do eu e o id que lhe
são inacessíveis de outra forma” (p. 223). Curiosamente, essa observação leva-o a comparar o
psiquismo com a pintura moderna, por não oferecer a possibilidade de uma delimitação gráfica
nítida, “com áreas cromáticas que se fundem umas nas outras” (p. 223). Ele traça tal paridade
para demonstrar que o esquema da divisão psíquica de “O eu e o id” é apenas uma tentativa de
apreender a forma do psiquismo, abrangendo assim suas variações.
Outra marcante análise do funcionamento perceptivo foi feita por Freud em “Uma nota
sobre o bloco mágico” (1925a/2006), em que o aparelho psíquico é comparado a uma prancheta
de duas camadas que escreve e apaga o que foi escrito com um gesto das mãos. O autor parece
bastante entusiasmado ao perceber que, diferentemente da escrita no papel, o bloco mágico
permite que o conteúdo fixado pode ser reescrito, sem que deixe de ficar marcado em sua
profundidade. O psiquismo não é como uma folha de papel, ele afirma, com uma só superfície
onde se fixa e se “apagam” os conteúdos; mas teria uma camada protetora das marcas, como
no bloco mágico. O que é escrito teria esse “fundo” extremamente paradoxal, pois, por um
lado, é ilegível e, por outro lado, é o responsável por tornar as experiências gráficas e palpáveis.

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O traumático, para Freud, seria quando inexiste conexão entre as duas camadas da prancheta
mágica; como se as palavras ali escritas caíssem num vazio mortífero.
A riqueza dessas apreciações torna o estudo da percepção intrigante, na obra de Freud
(BOTELLA, C. & S., 2002, p. 149). Seu enigma vem do caráter estrangeiro desse “bloco
mágico” que, afinal, define a potência estética das vivências. Podemos dar ênfase, também, a
relação do bloco mágico com a própria atividade de criação e investigação com as quais Freud
se comprometeu. É sugestivo indagar como um escritor inventivo como esse, empenhado em
nível extraordinário com sua obra, encontra num novo objeto uma nova solução para o mesmo
enigma que o acompanha. Antes de descrever a magia do bloco, Freud refere a limitação que
a imobilidade do papel lhe impõe, contrariamente à vivacidade e criatividade de seus
pensamentos. Na seguinte passagem, podemos ver Freud interessado na possibilidade de
possuir uma folha “permanentemente em branco” para trabalhar:
posso escolher uma superfície para escrever, que preservará intacta qualquer nota
efetuada sobre ela por uma duração indefinida de tempo – por exemplo, uma folha de
papel sobre a qual posso escrever a tinta. Estou, assim, de posse de um ´traço de
memória permanente`. A desvantagem desse procedimento é que a capacidade
receptiva da superfície de escrita logo se exaure. A folha se preenche com escrita,
nela não há lugar para quaisquer outras notas e me vejo obrigado a pôr em uso outra
folha na qual não se tenha ecrito. Ademais, a vantagem do mesmo procedimento, o
fato de fornecer um ´traço permanente, pode perder seu valor para mim se, após certo
tempo, a nota deixa de me interessar e não mais desejo ´retê-la em minha memória`”.
(FREUD, 1925a/2006, p. 255)

De todo modo, vamos levar adiante a proposta da percepção envolvida em duas


camadas do aparelho psíquico; um que inscreve um conteúdo e outro que ressoa sua fixação,
processo que implica uma permanente tradução de um registro para o outro. Nossa intenção é
explicitar que o sensório é inseparável do processo de formação das representações, uma vez
que ele traz a marca estética do outro em suas fundações mais indiciais.

4.1.1 Do perceber ao traduzir

De acordo com Jean Laplanche (2003/2015), as experiências são assimiladas no


psiquismo mediante um processo de tradução permanente. O autor atenta para a premissa
freudiana de que a primeira experiência de prazer possui significativa relevância na fixação das
primeiras marcas psíquicas e na formação das percepções. Resgata a teoria de Freud sobre os
índices de percepção, que se formam tendo como “guia” essa primeira sensação de satisfação
essencialmente corporal, associada ao primeiro momento em que uma angústia e o seu

95
apaziguamento podem ser registrados como traços de uma única experiência, ainda carente de
representação.
Dessa maneira, o autor articula as considerações sobre a percepção em Freud a uma
“teoria da situação antropológica fundamental”. De acordo com ela, o psiquismo se funda
mediante a dimensão relacional, em primeiro lugar. Para que haja uma percepção
suficientemente integrada do mundo e de si, é preciso que tenha ocorrido uma relação de
tradução das primeiras sensações, que ocorre inevitavelmente em vistas de uma dissemetria
fundamental: um adulto que já possui um inconsciente constituído e, contrariamente, o infans,
cujo inconsciente só pode ser fundado a partir desse encontro. Laplanche enfatiza, sobretudo,
o caráter enigmático dessas primeiras inscrições psíquicas, realizando uma integração teórica
dos apontamentos freudianos a respeito das experiências primárias, das memórias traumáticas
e da relação entre os espaços psíquico e corporal, em torno do qual o inconsciente se constitui.
Segundo o autor, a tradução das percepções em representações ocorre desde a origem da vida
psíquica, na via da formação de um “isso primordial”, que vai caracterizar a alteridade do
inconsciente e se implicar na própria pulsão. Esse processo ocorreria em função de um impasse
relacionado aos códigos comunicativos inconscientes, próprio da situação originária do
psiquismo. Laplanche (2003/2015) considera que o encontro com o outro primordial implica
um inescapável traumatismo constitutivo do aparelho psíquico e sua dimensão pulsional,
processo que ocorre via corpo.
Tal como no bloco mágico de Freud, vemos a ideia de duas camadas da inscrição
perceptiva; uma que se fixa na superfície corporal e outra que se increve como estraneidade
que espera por assimilação. A estraneidade, portanto, é ao mesmo tempo constitutiva e
invasora. Logo, a necessidade de integração do corpo estranho funda a pulsão, pois funda a
possibilidade de realização de trabalho psíquico que visaria à dissolução do corpo estranho. A
pulsão se origina à medida que se origina a exigência de trabalho psíquico, “imposta ao corpo
por sua ligação com os significantes inconscientes recalcados” (p. 195). O esquema de
operação dessa tradução é o mesmo do traumatismo da teoria de Freud, que ocorre em dois
tempos:
No primeiro tempo a mensagem é simplesmente inscrita, ou implantada, sem ser
compreendida. Como se fosse mantida sob a camada fina da consciência ou ´sob a
pele`. Num segundo tempo a mensagem é revivificada do interior. Ela age como um
corpo estranho interno que é preciso a todo preço integrar, controlar. (LAPLANCHE,
2003/2015, p. 195)

Na acepção laplancheana, é como dizer que perceber já é, de algum modo, tentaitva de


tradução. A mensagem consiste numa categoria de assimilação perceptiva – portanto,

96
consciente-pré-consciente – comprometida com o inconsciente sexual do outro. Por isso,
possui um endereçamento, uma marca fundamental de alteridade da qual nenhum ser humano
pode escapar. Com essa categoria, Laplanche demonstra que a metabolização das percepções
implica num processo de tradução cujo aspecto inicial é a disparidade entre um estado de
desamparo, próprio ao infans; e um estado de sedução, próprio daquele que ampara e, ao
mesmo tempo, regressa ao enigma das origens. Nesse encontro, a dimensão corporal operaria
como a própria ferramenta de tradução de sensações em palavras; e a relação eu-outro seria
território fundamental dessa experimentação: “A mensagem enigmática é o que marca a
dimensão irredutível da alteridade. Não em virtude de alguma alquimia ou metafísica, mas
porque essa mensagem porta em si o traço irredutível e ilegível do inconsciente sexual do
outro” (LAPLANCHE, 1999, p. 328, tradução nossa).
A tradução opera como uma cobertura para o aspecto irredutível e ilegível das
mensagens, processo que nunca ocorre em completa harmonia e perfeição. A tradução é,
sobretudo, uma tentativa de assimilar e integrar essa matéria do mundo que chega em forma de
enigma do outro. Seu destino, portanto, é deixar restos para que se constitua o inconsciente
propriamente dito e se origine a vida pulsional. Logo, o processo de recalque configura um
“fracasso parcial” da tradução, necessário e fundamental porque a tradução está fadada a
fracassar parcialmente, a deixar um resto. Já a transposição de uma cena noutra cena e a
formação da fantasia seria um novo momento qualitativo e não um “apogeu da pulsão infantil”
(p. 41), como no clássico sentido freudiano. Seria, quiçá, um permanente escrever-e-apagar no
bloco mágico.
Na perspectiva de Laplanche (2008/2015), o sexual seria aquela dimensão do arcaico
impossível de apagar. Uma maneira de afirmar que as manifestações do inconsciente carregam
necessariamente a marca de um enigma sob os quais as representações se organizam e sem o
qual a realidade seria intolerável. De acordo com o autor, “o sexual de origem intersubjetiva,
portanto, o pulsional, o sexual adquirido vem, muito estranhamente, antes do inato. A pulsão
vem antes do instinto, a fantasia vem antes da função; e quando o instinto sexual chega, o
assento já está ocupado" (p. 41). É preciso, então, traduzir esse outro interno continuamente –
e, sobretudo, é preciso falhar parcialmente nessa tradução, para dar formas à existência
psíquica. A criatividade humana aí também repousa, principalmente porque não existem
resoluções suficientes para a curiosidade relacionada a esse enigma infinito.
No entanto, a criatividade de que fala Laplanche não cria o sexual, pois ele é
implantado; é estrangeiro. As mensagens enigmáticas que trazem suas notícias não são,
inicialmente, linguísticas, mas corporais. Para que exista a possibilidade de implantação, é

97
necessária uma abertura em nível do corpo, “é preciso admitir uma receptividade somática
inicial” (LAPLANCHE, 1970/2015, p. 63), o que pressupõe a entrega estética, isto é, das
sensações, ao outro. Essa tradução também é feita pelo corpo porque “essa mensagem, ainda
que formulada em uma língua comum, é contaminada por outra coisa, outra coisa que mal é
uma língua e que é simplesmente o inconsciente do outro” (LAPLANCHE, 2002/2015, p. 127).
Para McDougall (1989/1991), o arcaísmo corporal guarda uma dimensão poética da
existência, em função da paradoxal solidez dos elementos pré-verbais e pré-simbólicos que ele
engendra. Logo, esses elementos já não seriam apreensíveis em si, mas possuem a capacidade
de afetar as representações consolidadas, quando reativadas. A noção de inspiração na
abordagem de Laplanche vem dar auxílio a essa compreensão.

4.2 OS BENEFÍCIOS DA PASSIVIDADE: INSPIRAÇÃO

“Cada movimento me aproxima implacavelmente do meu centro – subir crescente da tensão a dois em que me
alteio. Novo vislumbre: eu-mesmo não é, nem pode ser, eu-só. Pois foi de aberto a quem se abria a mim que
inaugurei esta isenção da gravidade”

Nuno Bragança

De acordo com Jean Laplanche (1999), na arte imprime-se um combate referente à


sensação inicial de passividade frente a uma invasão pulsional de intensidade excessiva no
território do eu. Para ele, esse fato explicita que esse mesmo processo estaria na base do
processo criativo, de modo que a inspiração se localizia no âmago do instante inicial da
criatividade artística, situado por Laplanche no centro de fragmentação da força de ligação
pulsional.
Em primeiro lugar, a inspiração se caracteriza pelo estado de abertura ao outro, numa
franca atitude interna de chamado e de procura pelo olhar do outro. Relativamente ao que vimos
no tópico anterior, a inspiração constitui um retorno à dimensão da abertura plena ao enigma
das mensagens inconscientes advindas do outro. A experiência de se ver inspirado seria aquela
de se entregar à sedução própria dessa relação originária, de se colocar em posição de ser um
outro, pôr o corpo e a abertura dos sentidos em situação passiva, como numa provocação
(LAPLANCHE, 2015).
Em virtude dessa premissa básica, o autor sustenta que a inspiração está situada no
movimento originário da pulsão; mais precisamente, no recalcamento originário, em que um
inconsciente se funda. O corpo, nessa dimensão da constituição psíquica, é tomado pela marca
do outro sedutor, e seria esse corpo recolocado à prova – no sentido do experimentalismo

98
próprio da arte – no instante de inspiração (LAPLANCHE, 1999). Aqui reencontramos a
proposição de Laplanche sobre o movimento de retorno da simbolização à pré-simbolização,
da genitalidade à pré-genitalidade, da pulsão sexual à pulsão parcial.
Por essa razão, o fascínio, a volúpia e mesmo o abjeto da arte encontrariam lugar,
acolhida e liberdade para serem vivenciados cada um a seu modo. É como dizer que, no ato
criativo, o eu pudesse se “dessublimar” narcísicamente e remontar à fase em que ele pode se
reconstituir. Afinal, na situação de passividade interna, o eu se encontra em situação de
submissão ao eu estrangeiro. Atingir o estado de inspiração constituiria uma possibilidade de
vencê-lo; alcançar o traço irredutível da linguagem, processo que ocorrerá interna e
externamente. Alcançado esse nível, o sujeito só pode ir buscar os enigmas do mundo, seus
excessos e disparidades linguísticas e formais e transformar em obra aquilo que lhe afeta no
mais íntimo.
Com efeito, a passividade necessária à criação pode ser vivenciada de modo inescapável
em diferentes níveis e formas, pois a arte não livra da perturbação psíquica, mas permite que
um diálogo mais íntimo possa se estabelecer com o estrangeiro. A inspiração pressupõe
passividade para ocorrer, mas há algum aspecto de busca ativa por esse instante. Esperar pela
inspiração constitui, paradoxalmente, uma “espera ativa”. Laplanche afirma, em entrevista a
Cardoso (2000), que não vê que “essa exterioridade seja um conteúdo, que Deus, ou que Apolo
chegue e inspire o artista, é claro. Penso que ele se coloca numa situação em que abre essa
relação com a alteridade; mesmo que esta seja uma relação em que está aberto à alteridade do
outro” (p. 69).
Afinal, é preciso o desejo de alcançar e superar outras formas com as quais os artistas
mantêm uma relação de influência – conjunto de fascínio e desejo de vitória (ANZIEU, 1981).
Isto é, ninguém escreve um poema se nunca tiver vivenciado o desejo de superar esse mesmo
poema. Pode escrever uma sequência de frases, mas entre um conjunto de frases e um poema
há justamente uma vastidão de elementos que caracterizam a arte. É preciso que tenha havido
uma abertura prévia, no sentido de permitir a implantação da matéria da arte que, de certa
forma, traz à tona os enigmas das mensagens que constituem o mundo, a relação humana com
o natural e o social, com as violências internas e externas. E, sobretudo, o artista precisa extrair
desse mesmo mundo as linguagens com as quais deseja e consegue trabalhar. Aí teríamos uma
“arte suficientemente boa”, pois é nesse jogo de aberturas que um equilíbrio está em jogo na
inspiração, atrelados pelo fio condutor que é feito de sensibilidade. Nesse processo, poderíamos
dizer que há uma multiplicidade de “outros” em questão.

99
Segundo Laplanche (1999), a própria constituição da pulsão configura um ataque ao
ego, de maneira que ela torna a projetar para o exterior esse ataque. Se podemos falar de uma
violência psíquica primordial na abertura inerente à inspiração, no sentido de uma
“autoagressão”, então esse desejo de afetar e transgredir o “outro artista inspirador” apareceria
como motor criativo. Seria uma forma de reviver e reabrir essa instalação do outro no eu, mas
não engendrada, ainda, pela pulsão de morte. A pulsão de morte não chegaria a se exercer;
Laplanche defende que se trata de um “momento pré-pulsional”, em que a pulsão de morte fica
“submersa”. Em entrevista, ele afirma que na inspiração “há uma espécie de retorno ao nível
da intrusão do outro; isto é, não há apenas domínio por parte da pulsão de morte – mas que a
deixa submersa – há o retorno à relação primária com o outro, à prioridade do outro”
(CARDOSO, 2002, p. 67).
Nota-se que o acesso a esse nível da experiência se daria em seu caráter virtual, não
materializado em si, mas constituído de uma superfície sobre a qual as formas artísticas vêm
dar contorno. Do mesmo modo, o eu que media o combate entre vida e morte é um eu virtual,
por trazer em torno de si os revestimentos que o contornam narcísicamente (LAPLANCHE,
1999, p. 311). Na inspiração, então, o revestimento hesita numa reabertura, que corresponde à
chance de ser recoberto. O jogo se daria numa espiral de dissolução e delimitação do eu no
sentido freudiano de “superfície corporal” (FREUD, 1923/2006), onde o forte apelo ao registro
da sensorialidade presente nos atos criativos agiria como fio condutor do estremecimento de
si. A sensorialidade, afinal, configura uma face afetiva das percepções, e se forma através de
“encontros entre partes do corpo próprio e partes dos objetos do mundo externo. Ela procura
satisfações ou expectativas, surpresas agradáveis ou desagradáveis, excitações estimulantes ou
dolorosas, abertura estruturante ou fechamento traumático” (POURRINET, 2006a, p. 163).
Lembremos que na origem etimológica, o latim spirare é a da imagem de “soprar
profundamente para dentro”, atribuída tradicionalmente à aparição de uma entidade exterior
que, num sopro, diz a mensagem ao artista. Podemos aplicá-la metaforicamente ao que
Laplanche (1999) descreve intrapsíquicamente: o sopro, emitido pelo próprio eu estrangeiro, é
o mesmo que abre caminhos para o regresso às raízes perceptivas de si na relação com a
entidade soberana. Em sentido similar, M´Uzan (1977; 2015) confere o teor de entidade à
noção de “quimera”; imagem que implica a espera do sopro para a transformação em labareda
e que está presente nas raízes da atividade de criação. Segundo o autor, o aspecto regressivo da
quimera é aquele marcado por uma “ocupação” de “um conjunto de representações
estrangeiras, de frases não atendidas, embora gramaticalmente corretas, de rêveries mais ou

100
menos elaboradas”, através das quais “ele experimenta uma sutil mudança de estado que se
traduz por um sentimento de ligeira despersonalização” (VILLA, 2012, p. 46).
Com efeito, essas proposições adensam as teorias da arte que buscam índices precisos
para a compreensão do valor do efeito estético da arte como guia para fixar definições de arte.
Uma forte hipótese é dada pelo filósofo Theodor Adorno em sua “Teoria Estética”
(1970/2006); arte, para ele, é todo objeto estético que provoca o efeito de “instalação do novo”
a partir do simultâneo rompimento e reconstrução de uma estranheza compartilhada. A
autenticidade dos objetos artísticos estaria assim categorizada. Em “Palestra sobre lírica e
sociedade”, o autor afirma que o auto-esquecimento praticado na arte constitui, sobretudo,“um
instante de reconciliação: a linguagem fala por si mesma apenas quando deixa de falar como
algo alheio e se torna a própria voz do sujeito. Onde o eu se esquece na linguagem, ali ele está
inteiramente presente” (ADORNO, 1973/2003, p. 75).
Segundo M´Uzan (2012), a criação não é uma propriedade da pulsão, mas do espaço
estranho em que a pulsão entra e dá significado às ações e às representações. É uma “terra de
todos” onde os objetos estéticos se enraízam e se acomodam entre si. Nas palavras do autor, a
criação abrange “o sentimento de que, por alguns momentos, nós nos reencontramos, e em
outros, nós caminhamos sobre vias paralelas, mas não contraditórias” (M`Uzan, 2012, p. 29).
Efetivamente, na teoria laplancheana, uma das mais significativas características da inspiração
é o seu intrínseco apelo ao outro, por se tratar de um instante feito da própria matéria do
enigmático. Sem um endereçamento ao outro, a inspiração não teria razão de ser. De acordo
com Laplanche (1999), os enigmas existem enquanto relação com a alteridade em seu teor de
trauma, seja no sentido constitutivo ou não; o movimento é centrípeto, indo da periferia para o
centro, “e tudo o que o sujeito pode fazer é permanecer aberto ao trauma e pelo trauma” (p.
332). Nessa perspectiva, é justa a hipótese de M´Uzan (2010) de que a sina do artista é
“entregar-se novamente” e repetir o processo criativo, sendo a ficção um prolongamento de sua
unidade narcísica. Assim como a ficção, a fronteira eu-outro é um espaço para o qual o artista
precisa regressar. A fronteira é sempre um espaço que se pode alargar, nunca apenas uma linha.
A partir dessas proposições, é produtivo afirmar a abertura desse caminho regressivo
como condição para que uma raíz estética na arte possa ser impressa no momento de sua criação
e de sua fruição, sem traçarmos qualquer relação causal com a patologia. Um argumento que
vem em nosso favor é considerar que os artistas se incorporam uns nos outros; ou seja, há uma
permanente reconstrução e superação da arte em seus próprios sistemas, aos quais os artistas
estão comprometidos – e, muito possivelmente, ancorados. Vamos desenvolver brevemente
essa relação.

101
4.2.1. Entre obra, autor e leitor

A relação dos artistas entre si produz e altera as definições de arte ao longo do tempo,
o que nos leva a pensar que todo artista é, sobretudo, um espectador de outras obras. Para
Anzieu (1981), a criação requer como primeira condição uma “filiação simbólica” a um criador
reconhecido, que promove o duplo desejo de filiação e superação. Em nossa hipótese, esse
desejo de afetar o outro e a abertura necessária para fazê-lo se inscrevem tanto no registro da
fruição como da criação artística.
Na escrita de ficção, essa questão se evidencia com a ideia de que há uma
intertextualidade permanente que configura a própria noção e renovação da literatura. De
acordo com Bloom, uma obra literária que se considere significativa deve ser capaz de evocar
em si a “leitura forte”, isto é, dotada de capacidade para, nela própria, encontrar/armazenar a
chamada de outros textos. Para além de mera influência, o texto “inspirador”, de alguma
maneira, está presente; e portanto, nesse sentido, escrever um poema é sempre uma postura
diante de outros poemas (QUEIROZ, 2016).
Haveria, então, uma espécie de “relação de transferência” dos poetas entre si, em que
um constante jogo de passividade/atividade é necessário para que a literatura se perpetue.
Segundo Dionisio (2014), a leitura não é uma atividade separada do texto, mas componente
dele; o espectador tem “função e lugar específicos no mecanismo de produção. A história da
arte depende da existência de um destinatário” (p. 45). No ato de leitura, a obra se realiza e
atinge a disposição individual do leitor, mas há uma diferença entre a leitura da dimensão
artística da obra – suas características e sua aparência dada pelo escritor – e a leitura da
dimensão estética, que pressupõe a realização efetuada pelo leitor. Dionisio se apoia na estética
da recepção para elucidar o aspecto criativo da leitura de uma obra, uma vez que o impacto
produzido pelo texo é equivalente às condições do leitor de complementar o que lê. Tal
dimensão estética é imprevisível e irreproduzível pelo ato de interpretação discursiva, mas pode
ser comunicada e recriada através de outra obra, de outro poema.
Do ponto de vista intrapsíquico, podemos dizer que o texto literário não existe
separadamente da realidade inconsciente individual e viva do autor, no sentido da emissão do
destinatário, por uma via estética, para além do conteúdo impresso; sem o inconsciente, o texto
é um simples corpo inanimado e anônimo, “um corpus de letras mortas” (ANZIEU, 1981, p.
12). Então, o apelo ao outro de que falamos acima se estende daquele nível à dimensão do ato
da recepção da obra, ao passo que deixar-se afetar pela obra abrange, também, a vontade de
eternidade, o compromisso com a arte e com o ato de se ver parte dela. Nesse ponto de vista, a

102
criação colocaria em jogo a vitória da batalha contra o tempo e a inserção reconhecida no curso
do intertexto da arte. Uma obra a que se chame poética constitui, afinal, “triunfo sobre o
esquecimento”, segundo Bloom. Em suas palavras:
[...] poemas não são coisas mas somente palavras que se referem a outras palavras, e
aquelas referem-se a outras palavras e, assim por diante, através do mundo
densamente povoado da linguagem literária. Qualquer poema é um interpoema e
qualquer leitura de um poema é uma interleitura. Um poema não é escritura, mas re-
escritura, e, apesar de um poema forte ser um novo ponto de partida, esse início é
sempre um reinício. (BLOOM, 1930/1992, p. 14, grifo do autor)

Para Anzieu (1981), o leitor da obra retoma essa singularidade e lhe confere uma outra
originalidade na relação que estabelece com ela. O destaque é dado ao tipo de leitura que
trabalha o leitor, no sentido de lhe oferecer mais do que um prazer ligeiro. É preciso que a
obra dê a oportunidade ao leitor de se abandonar à sua rêverie, se inserir em seus fragmentos,
tornando turvo o limite entre a leitura e sua própria atividade fantasmática. É similar ao
encontro amoroso, diz Anzieu, e consiste numa das formas mais seguras “de fazer o luto dos
limites de nossa vida, dos limites da condição humana” (p. 47). Como sustenta Pontalis, o
escritor “não vai somente ao encontro do ignorado, do desconhecido nele, ele procura suscitar
no leitor um movimento similar [...] Ler não é interpretar, mas talvez regressar, com tudo o que
isso comporta de positivo" (M´UZAN & PONTALIS, 1977, p. 11, tradução nossa). Por
“positivo”, Pontalis se refere ao ato de confronto do leitor com seus próprios códigos internos
perante o indizível do texto; um passo que ele deverá dar antes de se posicionar como
intérprete-crítico do conteúdo lido. Defendemos, assim, que a estranheza do material
acompanha os processos de abertura à estranheza interna, num jogo inseparável e cujos limites
são indiscerníveis por completo. É a obra que inspira, antes do trauma; e é a necessidade de
ultrapassá-la que produz o novo, continuamente.
Segundo Anzieu (1981), na passagem da filiação simbólica à criação, há uma
“decolagem” (décollage) a ser realizada. Essa noção nos interessa claramente porque aborda
uma fase específica e, simultaneamente, decisiva do processo criativo. Nela, lemos dois
sentidos: voo e “descolamento”, o que dá notícias de uma nova relação com a alteridade
avassaladora, como num “recontorno” das fronteiras do eu. Identificado com suas influências,
aberto à matéria da arte e à matéria do estranho, será preciso que o eu realize a ultrapassagem
– de si – a fim de inserir sua marca no mundo da arte e do outro. Processo inerente à experiência
estética, inseparável da criatividade.

103
4.3 SONHO, ALUCINAÇÃO E DÉCOLLAGE

“Vai! Nada temas! Tudo regressa.


E o que tem de acontecer, já se cumpriu”
Friedrich Holderlin

Para articularmos a noção de décollage, de Anzieu, ao nosso estudo, vamos primeiro


ter em mente a sua peculiar tradução para o português, que tanto pode significar “decolagem”
ou “descolagem”, ambas palavras utilizadas para a partida do avião no português brasileiro e
no europeu, respectivamente. No inglês, as traduções encontram sinônimos para “partida”
(departure), “início” (starting) ou mesmo “saída” (leaving). De todo modo, o termo trata do
descolamento de uma superfície, que marca o início de um trajeto para cima.
Em “A interpretação dos Sonhos”, Freud (1900/2006) percebe que a primeira
experiência de satisfação que um indivíduo vivencia se realiza a modo de uma “decolagem sem
volta”: impossível de ser apreendida como lembrança (Freud, 1985), que só pode se repetir no
registro alucinatório. Com o estudo dos sonhos, o autor percebe que a marca dessa experiência
essencialmente corporal tende a se repetir nas experiências regressivas, pois ambas têm em
comum a dominância da alucinação – por que não dizer, de um “voo para dentro de si”. Ela
está presente na produção onírica, na qual percepção e regressão se articulam à medida que “o
investimento total da percepção a partir da excitação da necessidade é o caminho mais curto
em direção à realização do desejo” (p. 28). É o momento em que Freud inclui a função do
desejo na construção das representações psíquicas.
Nas palavras de Botella, C. & S. (2002), “a dinâmica da percepção é como aquela dos
pensamentos latentes do sonho: intuímos sua existência, as provas de sua ação, sem, no entanto,
conseguir chegar a eles”. De acordo com os autores, a regressão ocorre em situações especiais
como uma resposta de um movimento psíquico de abertura da representação-lembrança e
consiste em uma tentativa de acesso ao objeto-satisfação alucinatório. Dessa maneira,
defendem a existência de um duplo movimento pulsional que busca a realização do desejo: “a
percepção do mundo, como a auto-percepção, permanece inseparável do alucinatório; do
buraco da ausência da satisfação [...] ela se constitui tomando conjuntamente as duas vias
psíquicas, certamente a progrediente rumo à representação, mas também a regrediente rumo à
alucinação” (p. 157).
Ademais, Freud (1900/2006) assume que as produções oníricas configuram verdadeiros
enigmas que demonstram o uso dos mecanismos inconscientes de condensação e deslocamento

104
pelos quais as percepções – imagens mnésicas e os restos diurnos – se fundem e se configuram.
O autor defende que isso se deve à regressão, em que a percepção se reduz a seus índices e
regressa a um estado que só pode ser de alucinação. Fica evidente, então, para Freud, que o
estado regressivo está presente tanto no ato de sonhar como nos estados de vigília, já que
consciente e inconsciente não estão completamente ausentes em nenhum deles. A regressão
pressupõe percorrer o trajeto que vai da representação à percepção, pois consiste no retorno
“de um ato complexo de representação para a matéria-prima dos traços subjacentes” (p. 573).
O fator alucinatório se deve ao fato de a excitação somática não se dirigir ao mundo externo,
mas ao mundo interno: “em vez se propagar para a extremidade motora do aparelho, ela se
movimenta no sentido da extremidade sensorial e, por fim, atinge o sistema perceptivo” (p.
572).
De acordo com Anzieu (1981), o sonho, o desejo e a criação têm em comum o fato de
constituírem momentos em que o psiquismo está em posição de crise. É como dizer que a
regressão é necessária para que um trabalho possa ser realizado ao nível dos elementos inscritos
aquém do nível representacional, dando “destino” à crise. O autor considera que o modelo do
sonho auxilia na compreensão dos processos criativos em função de seu movimento regressivo,
mais do que em função de acesso ao conteúdo inconsciente. O sonho, afirma Anzieu (1981),
remonta ao estado de alucinação primária e comporta os mesmos elementos que se impõem no
momento da composição criativa: “representação de um conflito sobre uma ´outra cena`,
dramatização, deslocamento, condensação de coisas e palavras, figuração simbólica,
transformação em seu oposto” (p. 21, tradução nossa). Para se chegar a tal produção
enigmática, no entanto, haveria uma espécie de “crise auto infligida” que estaria à mercê da
regressão; como um estado similar ao risco que se corre no ato de sonhar – uma “mini crise”,
na acepção do autor –, em que uma entrega ao outro é inevitavelmente realizada. Na criação,
que ocorre na vigília, o autor compara a crise criativa a um sonho de angústia visto com olhos
abertos.
A esse processo, Anzieu denomina como “decolagem”, em cuja definição vamos
destacar duas características: em primeiro lugar, a decolagem é a marca que diferencia a criação
da criatividade, ao passo que a última corresponde a um processo mais geral presente na
maioria dos indivíduos e que pode ser cultivado conforme os códigos de comunicação
compartilhados. A criação, por seu turno, é um fenômeno raro: “é a invenção e a composição
de uma obra de arte ou de ciência que responde a dois critérios: trazer o novo (isso é, produzir
qualquer coisa jamais antes feita), e ver o valor cedo ou tarde reconhecido pelo público”
(ANZIEU, 1981, p. 17). Phillipe Porret (2015) está em acordo com essa proposição, destacando

105
a criatividade como uma faculdade inerente à natureza humana. A criação artística em que
estaria imbrionada um processo de decolagem se destaca pelo fato da forma se constituir como
realização de uma estética própria. Como falamos anteriormente (Cap. III), a materialidade
produtiva do ato criativo tem acento nessas obras, à medida que se supõe nelas a posição do
artista que se incarnou no mundo. Para Porret, o artista se deixa “produzir em uma relação
original e complexa com relação à linguagem” (p. 118). M´Uzan (1977) arremata essa ideia ao
afirmar que, nesse nível da criação que destacamos, “a obra de arte é um fato social”.
Sendo assim, tanto para Porret como para Anzieu, a decolagem caracteriza as obras de
arte mais geniais, não no sentido de sua qualidade de erudição ou de sua facilidade de inserção
cultural, mas as mais capazes de provocar uma afetação no outro ou um processo de ruptura
onde quer que sejam inseridas. Isso permite incluir a genialidade das experiências artisticas em
uma vasta gama de contextos aos quais se realiza alguma resistência; política e
individualmente. Porém, não se trata de valorar o artista pela capacidade de absorção pela
cultura, mas pelo
poder de deixar-se bruscamente de viver por si e fazer de sua personalidade um
espelho, de tal modo que sua vida, por mais medíocre que possa ser mundanamente
e até intelectualmente falando, seja ali refletida e o gênio consista no poder de refletir
e não na qualidade intrínseca do espetáculo refletido. (ANZIEU, 1981, p. 17, tradução
nossa)

A segunda característica da “decolagem” é o processo de “ultrapassagem de si”, similar


ao que abordamos como um dos componentes da sublimação, embora não esgotado nela. No
entanto, aqui temos a ideia mais explícita de suspensão do eu, cuja última instância seria a “de
afirmar uma convicção com a imortalidade” ou uma “imortalidade laureada” 22 (ANZIEU,
1981, p. 18, tradução nossa). É o que explica, para o autor, processos vivenciados na arte
dotados de extrema radicalidade, como a “incubação” com a obra, que pressupõe uma
coexistência em dois corpos e a batalha por sua finalização.
Avaliando a teoria freudiana, Anzieu (1981) considera a possibilidade de o próprio
Freud ter vivenciado seus momentos de decolagem na construção da obra, dando destaque aos
relatos de sonhos e às auto-análises empreendidas pelo psicanalista austríaco. Para Anzieu, a
genialidade de Freud pode se dever a felizes crises de despersonalização. O autor sustenta sua
hipótese a partir de uma análise das sucessivas rupturas em relação às quais Freud teria
experimentado sensações de estranheza, de urgência criativa e, simultaneamente, de

22
O autor faz referência ao poema “Cimetière marin”, de Paul Valéry.

106
inacabamento de seu “edifício” teórico como um processo de natureza regressiva à tomada de
consciência de sua própria morte.
De todo modo, a criação figuraria como alternativa à letalidade da crise; uma forma de
ultrapassá-la e produzir restauração interna. Logo, como uma alteridade absoluta: “a angústia,
o sofrimento, o terror, o vazio interior podem ser tais que a criação aparece como a única outra
questão, às vezes possível e impossível” (ANZIEU, 1981, p. 20). De acordo com o autor, os
seguintes elementos são componentes da “crise criativa”:
Em primeiro lugar, ela seria dotada de uma plurimensionalidade, repercursiva entre
interioridade e exterioridade. Os limites entre interno e externo se dissipariam
momentaneamente, provocando o desencadeamento de uma espécie de “curto circuito”
pulsional. Segundo Anzieu, a sensação de fragmentação e dissolução “aumenta a gravidade do
fenômeno crítico acrescentando à crise propriamente dita uma segunda crise, a do pensamento
que falha em pensar na crise”; ou seja, a situação de se encontrar “atacado em sua capacidade
de estabelecer ligações e em sua fertilidade de implantar na obra os pensamentos que
respondam à origem do problema” (p. 21).
Em segundo lugar, o registro do princípio do prazer seria relegado ao segundo plano,
de modo que o autor menciona uma “perda do prazer do funcionamento”. O reconhecimento
das fontes de obtenção de prazer estariam invertidos e, dessa maneira, o domínio do
funcionamento mecânico, desabitado e esvaziado seriam dominantes. Consequentemente, a
crise criativa levaria o sujeito à revivência de rupturas, cuja temporalidade se inscreve no
registro do traumático.
O retorno à predisposição originária ao desamparo de que fala Anzieu seria aquele da
repetição da situação de desamparo original levada ao extremo do corporal, até o momento do
trauma do nascimento, “protótipo de crises ulteriores” (p. 22). Então, entra em jogo o caráter
das experiências que, de alguma maneira, reeditam a ruptura mais drástica na continuidade da
sensação de continência e, logo, convocam a tentativa “hipersensível” do reestabelecimento do
equilíbrio completo no registro eu-outro. Portanto, em último lugar, a ultrapassagem criativa
já inscreveria a invenção de um objeto de transição23, que permite o reencontro com a confiança
da continuidade e na capacidade de voltar a estabelecer ligações pulsionais. Dessa maneira, o
autor demonstra que a crise criativa, extremamente dotada de caráteres regressivos, carregaria
um aspecto paradoxalmente adaptativo.

23
O autor faz referência ao conceito de objeto transicional, de Winnicott (ANZIEU, 1981, p. 22).

107
Nesse contexto, as contribuições de Winnicott (1954/5) são amplamente reconhecidas.
Sua teoria da criatividade dá notícias da possibilibidade do indivíduo ir em busca de seu self
verdadeiro ou integrado (o único, em verdade), encontrando formas de criar saídas adaptativas
ao ambiente, mesmo diante das falhas que estão “contidas” em sua experiência de vida. O autor
defende que uma nova chance de desenvolvimento progressivo a partir da regressão pode
ocorrer, uma vez que a regressão é intrínseca a um mecanismo altamente elaborado pelo eu.
Segundo Winnicott (1954/5), o estado regredido equivale a um congelamento da situação que
foi traumática e que, para o eu, pode ser útil mediante um tipo específico de regressão
“adaptivo” e criativo, que “se distingue das outras organizações defensivas pelo fato de
carregar consigo a esperança de uma nova oportunidade de congelamento de uma situação
congelada” (WINNICOTT, 1954/5, p. 466).
Através da capacidade de regredir positivamente, dita por Winnicott como uma
capacidade criativa quase artística, o self se serviria de processos de desintegração para
alcançar uma nova integração. Porém, o paradoxo é que a regressão dependeria, nesta
perspectiva, de recursos suficientemente integrados assegurados na relação primária, para
ocorrer. Em outras palavras, é preciso ter sido para o outro, para poder ser para si. Na visão
de Luz (2002), eis aí o gesto que a arte permanentemente refaz, em essência:
Experimentar-se como radicalmente outro para ser o mesmo – como na relação do
bebê com o olhar da mãe – é, também, correr o risco do inumano, da exterioridade
pura, o perigo maior da mutilação anterior à castração, da angústia impensável, da
queda infinita. Essa é a aposta da arte: devolver ao quadro da experiência o
movimento de retorno em direção ao ser. (LUZ, 2002, p. 305)

Para Birman (2008), é importante destacar que Winnicott concebe uma teoria da
criatividade que rejeita a primazia do dualismo realidade interna vs. realidade externa. Assim,
formula uma “terceira área” ou “terceiro território” da experiência humana, opostamente à
dicotomia “dentro e fora”, cujo acento está justamente na qualidade e na capacidade de se
deixar iludir como fundamento da possibilidade de regredir e se readaptar ao mundo.

4.4 “ENFIM, O IMPASSE!”: SAISISSEMENT

“Escrever é corrigir a vida”


Enrique Vila-Matas

O poeta Georges Bataille confessou certa vez a Allain Robbe-Grillet a sua angústia
diante de um bloqueio criativo pelo qual passava. Entusiasmado, teria escrito ao amigo:

108
“Enfim, o impasse!”, contente pela chegada do momento em que se colocava numa posição
que, poderíamos dizer, como de “inspiração”. Esse exemplo chega aos olhos de M´Uzan (1977)
como uma relevante demonstração de que alguns elementos muito relevantes se condensam na
forma do bloqueio criativo. Conclui que “a marca do verdadeiro escritor é a impossibilidade
de escrever” e que está “na dificuldade, no bloqueio, na inibição, a alma mesmo do trabalho
autêntico” (p. 4).
Essa concepção está em acordo com a já mencionada teoria de Roland Barthes sobre a
“morte do autor”, em que a definição de autoria literária sofre um deslocamento. Deixa de
constituir “instância” permanente e imutável em todas as etapas de produção da obra, e passa-
se assumir que o autor nasce juntamento ao surgimento do texto; essa é a sua “existência” como
escritor. O ato de escrever se estende até esse momento principal em que o escritor não está,
de fato, escrevendo, mas está se relacionando com o mundo, preparando-se interna e
externamente, na busca pela posição em que poderá escrever. Todas as suas percepções estarão,
de certa forma, em relação com a obra que ainda não se materializou, mas que já existe na
forma de sentidos internos.
Terminada a obra e entregue ao público, o escritor seria tão leitor de sua própria obra
como os demais, tornando circular o processo criativo (BARTHES, 1968/2004). Nesse
entendimento, a ideia de escritor é a de um sujeito que surge a partir do texto, que também faz
surgir o leitor, como vimos anteriormente. Com a expressão de Bataille, M´Uzan ilustra a
hipótese de que esse momento de existência constituiria, afinal, a busca radical dos escritores
– e dos artistas de maneira geral – a de aceder ao instante de saisissement, espécie de captura
de si, em que o eu inicia um processo de contorno a partir do que pode capturar do mundo.
Através da dimensão estética da criação e da entrega sensorial, esse termo indica um instante
com aparência de um novo nascimento (M´UZAN, 1977). Sua marca primordial é a de um
instante brusco que, a nosso ver, dá notícias do choque com o outro interno e a possibilidade
de encará-lo nos olhos. Em vista disso, a noção de saisissement abrange a situação de
passividade e a possibilidade de saída dela, processo que remetemos aos elementos de
ambiguidade própria dos fenômenos do estranho, que aqui abrangem simultaneamente a
abertura para o arcaísmo da vida psíquica e para o novo, essência da matéria ficcional.
A primeira dessas ambivalências estaria centrada na instância da alteridade, ao passo
que, no ato criativo, o apelo à confirmação de existir é inevitavelmente mediado por um outro.
Na perspectiva de M´Uzan, esse procedimento acompanha o artista durante todas as fases do
processo de criação; ele se conduz e, simultaneamente, é conduzido na direção do outro em
uma série mais ou menos sequencial de “camadas de cobertura”. Dentre elas, podemos dizer

109
que num primeiro momento, temos a face do outro artista, que causou a afetação estética e o
desejo ambivalente de incorporação e superação e que virá a se tornar influência; em seguida,
defendemos a dimensão de abertura ao outro mais próximo do nível corporal, relacionada à
experiência sensorial e a revivência das experiências ligadas à primeira satisfação. Por fim,
temos o outro espectador, a quem o artista se dirige esperando reconhecimento. Na visão de
M´Uzan e de Anzieu, todas essas facetas do outro estão condensadas no processo criativo, e a
separação delas é inviável e improdutiva para compreendermos a arte no campo psicanalítico.
Nessa acepção, a criatividade artística seria menos uma saída para um conflito do que uma
“zona” de permanente negociação de fronteiras com o outro.
Segundo M´Uzan (1977), nesse interjogo o eu trava um conflito para mediar as pulsões
agressivas, que articulamos à presença do sexual bruto, exuberante no caráter pré-genital da
pulsão. De acordo com o autor, no ato de expressão brusca característica da arte, abre-se a
possibilidade de investimento libidinal a modo de um ataque de fundo agressivo, direcionado
ao externo – no sentido da encarnação de que falamos no capítulo anterior. Ganhar forma com
a criação de um novo objeto estético corresponderia à possibilidade de dar contorno ao sexual
estrangeiro; forjá-lo e ligá-lo a uma nova relação com o outro.
Em seus momentos radicais, trata-se de uma questão de sobrevivência psíquica, já que,
por um lado, o excedente pulsional é deslocado na direção da obra e de si. Porém, por outro,
corre-se o risco de uma inundação pelo excesso, razão pela qual o vislumbre do espectador
auxilia na mediação do excedente. Portanto, trata-se de um conflito produzido, que se
estabelece à medida que o artista – mais do que qualquer outra pessoa, depende da existência
do outro para obter reconhecimento por sua produção que foi posta em obra. Na perspectiva do
autor, esse processo repete o procedimento infantil de sedução primária, que abrange a
dicotomia dar/sentir prazer em proveito do sentimento de sobrevivência. Para seduzir e ser
reconhecido, o artista se falsifica em suas expressões; está sob a primazia do outro. O infans
sofre exatamente desse conflito entre satisfazer a si e satisfazer o outro, no processo de
interiorização das primeiras figuras que, de certa forma, “fundam” a sua existência. Já o
espectador da obra seria um “terceiro incluído”, na visão de Gagnebin (2009). Ele forjaria o
primeiro olhar recebido; sua forma, sua intensidade e sua potência de acolhimento. Parece justo
dizer que aqui se justificam os múltiplos casos de artistas que, no momento de uma publicação,
apresentação ou exposição, descrevem não o sentimento de apaziguamento, mas o de
constrangimento, angústia e vazio.
Diante de tamanha abrangência, para Anzieu (1981), podemos associar à noção de
saisissement ao “transe corporal, angústia branca, estado quase alucinatório, de lucidez

110
intelectual aguda”, em que “o sujeito registra o conteúdo sem necessariamente tê-lo provocado”
(p. 95), embora sua forma, em última instância, seja auto infligida. Sua origem estaria inserida
na ordem da preparação ou da realização do desejo de criar, até então necessariamente negado
ou esvaziado, razão pela qual Anzieu reconhece que uma função do eu está presente. Contudo,
a ação egoica consiste, mormente, na entrega à elaboração psíquica que vai da representação
ao nível mais fundo da percepção, a fim de buscar nos solos de si uma nova base de relação
com a alteridade.
Portanto, as características são as mesmas do mecanismo da regressão e/ou da
dissociação, embora a noção em questão seja mais parcial e temporária do que um quadro
regressivo ou dissociativo (ANZIEU, 1981). A distinção residiria no paradoxo de reunir numa
só ação do ego “um forte superinvestimento narcísico” e “uma porosidade ou alargamento das
fronteiras do eu” (p. 96), que concede acesso às realidades psíquicas em seu estatuto incerto
entre interioridade e exterioridade.
Diferentemente da teoria da inspiração de Laplanche, a ênfase do saisissement não
reside na passividade frente à ação do pulsioanl sexual, mas na consequência da situação de
entrega à transgressão e autenticidade das formas. M´Uzan (1977) reconhece o destino
sublimatório como um mecanismo que só poderá agir posteriormente. O saisissement seria um
tipo de resto e, ao mesmo tempo, propulsor da atividade sublimatória. Nesse instante inicial,
não é a busca por sentido “legível” que está em primeiro plano, mas a busca de um equilíbrio
viável diante da instabilidade do trajeto de apagamento e surgimento, presença e ausência,
retorno e avanço do sentimento de si. Logo, a atenção para essa etapa primordial da criação
desestabiliza e torna incerta a relação entre representação inconsciente e seu correspondente
pré-consciente-consciente, o que também faz hesitar qualquer possibilidade de interpretação
de uma obra pelos aspectos biográficos de seu autor.
Enquanto reação à radicalidade da estranheza, o estágio do saisissement traz a ideia de
dique para o excesso pulsional; e não seu tempo de dissolução. O acento é dado ao efeito da
criação de opor a ordem pulsional, objetal e narcísica à ordem da autoconservação e da
identidade, registro nomeado por M´Uzan como “vital-identital”. Nesse âmbito, é do primeiro
registro corporal que se trata, estimulado pelo artista em proveito da captura da forma.
Na proposta de M´uzan, a sentença freudiana “onde estava o isso, o eu deve advir”
(FREUD, 1933b/2010, p. 223) é transformada em seu contrário quando pensamos na temática
da criação artística; ou seja, “onde estava o eu, o isso deve advir”. Se Freud se referia ao
processo do eu de se tornar “senhor” do inconsciente em sua natureza pulsional, M´Uzan
considera que, na criatividade, em primeiro lugar é preciso que o eu se entregue e se submeta

111
à desterritorialização para que o inconsciente possa “tomar lugar” como radicalidade de uma
alteridade interna e externa. É importante destacar que essa operação não ocorre conduzida por
um suposto inconsciente da obra (ANZIEU, 1981), mas pelo aspecto da permissão consciente
do artista de buscar a melhor posição de criação, uma vez que se impõe a necessidade de induzí-
lo (M´UZAN, 1977).
Por essa razão, os autores abordam o momento de “tudo ou nada da criação” inscrito
nas raízes da sublimação; como se toda a sensação de existência estivesse em relação de
dependência com a obra. A regressão viria antes da sublimação propriamente dita, por abir via
para a ação das pulsões parcias (M´UZAN, 1977, p. 43).
No que diz respeito à temporalidade psíquica abordada pelos autores, a dinâmica dá-se
com base na inquietante estranheza, com a possibilidade de desvio do aprisionamento da
compulsão à repetição. M´Uzan (1977; 2010; 2012) enfatiza a base da temporalidade própria
ao traumático, valendo-se, contudo, da ideia de contraste com a experiência estética do
estranhamento, adquirida no instante que precede a criação ficcional, valorizado como uma
nova condição psíquica. O tempo do traumático, como vimos anteriormente, não se inscreve
na temporalidade do princípio do prazer, desafiando os limites de historicidade do eu. Para o
autor, a combinação dessa condição com o impacto do instante de saisissement, age
paradoxalmente na direção do impacto com o mundo e consequente afirmação de um desejo.
Assim, o movimento é duplamente estético: para dentro, de acesso ao estranho interno, e para
fora, de acesso ao estranho da língua e da linguagem. Tal “momento chave” constituiria, para
o autor, o engendramento da inquietante estranheza em um novo foco de engrenagem para a
repetição, a partir da criação de uma matéria ficcional. Como indicamos anteriormente, o eu
experimenta um breve desaparecimento em cujo território as sensações dominantes
materializam a condição da criatividade.
Na visão de M´Uzan, uma nova economia psíquica se inaugura a partir daí, com o
vislumbre de uma reconstrução narcísica, “uma elaboração que é essencialmente um trabalho
de representação, de dramatização, pelo qual uma vida humana se autosimboliza”
(GAGNEBIN, 2012, p. 33). Isso porque, em termos gerais, a atividade ficcional permite o
acesso à capacidade de dramatização em si mesma, interferindo na “função autopoiética de
construção e de reconstrução da cena sobre a qual é possível de (se) representar” (p. 32). Essa
proposta faz alusão ao “grau zero da escrita”, noção que confere ao texto literário a soberania
perante toda interpretação que se possa fazer sobre ele24. Independentemente do significado

24
Cf. BARTHES, Roland (1964). O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

112
que se lhe tenha dado, o texto é sempre um ponto de ínício a uma nova experiência. M´Uzan
(2015, p. 43) compreende a atividade ficcional sob esse ângulo.
Dessa maneira, outro ponto fundamental na compreensão do conceito de saisissement
é a relevância do aspecto formal da obra, por aparecer e se insinuar como abertura para a
captação sensível pelo psiquismo. Uma expressão fulgurante de seu aparecimento seria aquela
em que a estrutura da obra se impõe ao artista, sobrepondo-se ao conteúdo; a forma que acena
(SCARFONE, 2012). Portanto, trata-se de um conceito que auxilia a compreensão das
produções em que o conteúdo se curva à forma e que apelam às posturas estéticas de leitura,
em que a ordem da sensação de sobrepõe à do pensamento.
Esse âmbito da arte consiste, efetivamente, na própria matéria de renovação dos códigos
artísticos dentro de seus sistemas próprios, de maneira que a estética da ruptura é sempre
contemporânea. M´Uzan recorre a vários exemplos da arte que, em sua perspectiva,
demonstram a expressão do saisissement como sua marca estética. Ou seja, que conseguem
imprimi-lo em obra, de alguma forma. Um deles é o trecho do romance de André Biély, “Kotik
Létaiev” (1915):
O primeiro eu-tu me toma sobre a forma de delírio sem imagem – delírio muito antigo
depois sempre conhecido: inexplicavelmente, incrivelmente parece que a consciência
está no corpo e essa impressão matematicamente exata que tu é tu e que tu não sou
eu, mas talvez... uma forma do nada, dirigida para o nulo, incontrolável e – Que é
isso? (BIÉLY, 1915/1973, p. 15, apud M´UZAN, 2015, p. 63)

Um segundo exemplo é o do espetáculo de dança contemporânea “Fase”, coreografado


por Anne Teresa de Keersmaeker25 e representado mais de cento e sessenta vezes desde sua
primeira apresentação, em 1982. Na obra, duas bailarinas estão em palco com figurino e gestos
idênticos. Realizam movimentos compulsivamente repetidos, cirulares, com pequenas e
rigorosas alterações entre eles. O jogo de silhuetas é projetado através da iluminação,
multiplicando suas sombras em três partes, sendo uma delas uma fusão das sombras de cada
uma das artistas.
Segundo M´Uzan (2015), em “Fase”,
os movimentos estão, talvez, no limite da perda do equilíbrio. O extremo formalismo
dos gestos, seus ritmos na repetitividade, cria no espectador um estado hipnótico
talvez ao limite do tédio, mas talvez somente porque nós podemos questionar se, por
isso, nós estamos sobre o domínio de uma repetição, a qual, enfim, se encarregaria
de uma abertura sobre o mesmo. (M´UZAN, 2015, p. 64, tradução nossa; grifo nosso)

25
Há uma versão do espetáculo disponível para o youtube: https://www.youtube.com/watch?v=RTke1tQztpQ

113
A ideia de “transformação do idêntico em mesmo” é abordada pelo autor como o
processo pelo qual um “pensamento sem forma” ou uma sensação sem nome – que pode surgir
como um estado de angústia ou dissolução – pode se transformar em pensamento complexo,
mediado pelas ligações afetivas que se tornam disponíveis pela representação. Segundo
Gagnebin (2009), nesse estágio da fruição, delega-se à obra as capacidades de unificação e
totalização específicas do eu, à medida que ela está a serviço de Eros. Para a autora, é a
dimensão propícia para o surgimento de um “tipo de alter ego que drena os sentidos e emoções
desterritorializados com mais ou menos força” (p. 186). Vamos especificá-lo em seguida.
Para concluir a introdução à noção de saisissement, defendemos, com Gagnebin (2009)
de que não é preciso haver um eu frágil para alcançar a experiência estética e dar curso a um
processo criativo que atinja essa profundidade do aparelho psíquico. Por se tratar de um instante
de duração limitada, a autora considera que está em primeiro plano a dimensão de plasticidade
psíquica, o que não está relacionado necessariamente à conotação de fragilidade. Em nossa
hipótese, a plasticidade estaria ligada à capacidade de manobrar as manifestações do duplo
através dos recursos estéticos próprios da arte, com suas ramificações em uma dimensão tão
arcaica da vida psíquica.
Anzieu (1981) destaca ainda a gravidade do risco que os artistas assumem ao se
engajarem nesse tipo de processo, figurado exemplarmente pela extrema necessidade de
solidão – entre outros fatores – que se torna imperiosa na atividade de criação. Nesse contexto,
as noções de “repetição do mesmo” e “repetição do idêntico” ajudam a compreender o processo
do surgimento das formas no plano intrapsíquico. Já como resultado do saisissement, as formas
dariam um primeiro “preenchimento” ao espaço vazio, ou, em outras palavras, um “habitante”
para a “terra de todos” (everyman´s land). De acordo com Milly (2012), é a transição do registro
“eu” para o “tu” que o saisissement viabiliza, no sentido do “outro que avança” e ganha forma.
Como exemplo dessa transição, vamos abordar brevemente a noção de alter ego,
trabalhada por M´Uzan e Gagnebin como surgimento de uma voz interna consequente ao
instante saisissement; uma possibilidade de caminho aberto por ele e que conduzirá o
procedimento de composição criativa.

4.4.1 Alter ego e a abertura para o novo

A noção de alter ego nomeia a transição do instante inicial (saisissement) em direçao à


produção de uma primeira voz interna, com função de realizar a ultrapassagem do impasse
intrínseco à crise criativa, como falamos anteriormente. Sua existência ocorre a modo de um

114
surgimento, como um primeiro movimento progrediente que contrasta com o movimento
regrediente da crise criativa. Na perspectiva de M´Uzan (1977), ele é definido como um marco
de “antes e depois” correspondente à passagem entre dois registros distintos da temporalidade
da repetição – do idêntico ao mesmo, ambos relacionados ao fenômeno de invenção do duplo.
Vamos desenvolvê-los.
Em primeiro lugar, num sentido comum, o “mesmo” se diferencia do “idêntico” em sua
capacidade de variação, o que significa dizer em seu estatuto de alteridade. De acordo com
Gagnebin (2015), enquanto o primeiro é criativo, o segundo é mortífero. Ambos estão
envolvidos no mecanismo da compulsão à repetição, embora o idêntico constitua o seu núcleo
invariável e imobilizado. Nele não há margem para diferenciação; nenhuma marca ou elemento
se distingue entre o eu e seu duplo. Logo, sugere a ideia de recuperação de um narcisismo
bastante arcaico, espécie de “cegueira” sobre si e sobre o outro; um silenciamento da
manifestação de alteridade interna. Lembremos, no entanto, que na perspectiva que traçamos
aqui, é esse, justamente, o estágio conveniente ao saisissement. Paradoxalmente, esse registro
seria dotado de intensidade estética invulgar. A liberação do “idêntico” oferece chance ao
“mesmo” para aparecer (AUBRY, 2012).
Já o registro do “mesmo” compreende alguma possibilidade de limite; logo, haveria um
estranhamento possível nesse registro, razão pela qual M´Uzan o articula ao mecanismo da
compulsão à repetição propriamente dito. Isto é, a passagem ao mesmo inscreve a entrada em
um novo campo onde a alteridade interna é reconhecida. O eu estranha-se e vasculha suas
entranhas (NOSEK, 2017), em momentânea situação fusional com a obra. Esse estágio
permitiria uma espécie de “sopro de elaboração”, processo em que o artista – munido da
estranha matéria da arte – se veria capaz de ficcionalizar seu duplo. Para M´Uzan, o uso de
tendências megalomaníacas são bem-vindas nesse procedimento. O mesmo e o idêntico são
dois modos de inexistência palpável da “categoria de passado”, situações em que o eu se
“desistoriciza” e recorre ao ato para se manifestar – nesse caso, um ato não inscrito previamente
no patológico. No registro do idêntico, no entanto, o passado não existe em lugar algum;
enquanto no mesmo ele ganha chance de realizar uma “reescritura interior a partir de uma
primeira história” (M´UZAN, 1977, p. 87, tradução nossa).
O alter ego seria, então, a primeira voz desse procedimento. Aparece como agenciador
da superação da sensação de desamparo e restauração narcísica. De acordo com M´Uzan
(2012), a assunção dessa instância permite a saída do estado narcíscico primário, pois a reunião
das representações dotadas de forte intensidade pulsional agiria na mediação entre interioridade
e exterioridade, na direção de um novo equilíbrio econômico da vida psíquica. Aposta,

115
portanto, um investimento libidinal na figura do duplo. O alter ego surge como voz interna,
que dita as exigências formais da obra; é a voz mais íntima, sem deixar de perder seu tom
estrangeiro:
Ele faz, às vezes, a mesma coisa e qualquer coisa outra, para além do morto que ele
havia perpetrado na guerra, sem a reconhecer, sobre a armadura de um cavaleiro
inimigo. Mudança de máscaras, mutação de substâncias, isso que o poeta quis mais
ou menos deliberadamente representar, é uma série de transformações variadas de
uma figura – àquela do fato bruto – à uma outra figura, aquela de sua representação
simbólica. (M´UZAN, 1977, p. 87, tradução nossa)

É como se a batalha do alter ego fosse a de, paradoxalmente, proteger e permitir que o
eu se arrisque em se representar tal como é; um negociador de si mesmo que utiliza os aspectos
formais em favor de sua contingência. Assim, a primeira relação com a autoria da obra
configura um “outro anônimo”, em torno do qual o artista se apóia e se lança, simultaneamente
(GAGNEBIN, 2009). Esse processo faria vir à tona a exuberância das tendências agressivas e
narcísicas do sujeito, conduzindo ao enfrentamento dos limites das fronteiras psíquicas. No
caso do escritor, esse jogo seria vivenciado ao extremo, ao passo que em grande número dos
casos, há um compromisso e uma devoção grandiosos à escrita, à ocupação com o texto e com
o tempo dedicado em sua construção. Ele cita o exemplo de Arthur Adamov, que lhe disse:
“Quando escrevemos, é o terror. Quando não escrevemos, é o horror” (M´UZAN, 2015, p. 19).
O alter ego atenderia à função de erigir um primeiro represamento libidinal,
possibilitando o refreamento para a a irrupção pulsional. Por isso, claramente está à serviço do
escritor como figura central do seu “público interno”. Para M´Uzan (1977), trata-se de uma
possibilidade de dar forma e destino à intensidade pulsional outrora anárquica, sentida pelo eu
como forma de ataque interno. Como uma voz que tranquiliza, mostrando que a obra surgirá,
o alter ego induz à neutralização imediata que “contribui essencialmente ao sentimento de
plenitude, de força imediatamente disponível que caracteriza a completude narcísica” (p. 21).
Para Gagnebin (2009), o aparecimento do alter ego consiste no estágio em que o artista
está “habitado por um outro de si”. A autora considera que existem dois registros fundamentais
de sua manifestação cujo efeito ressoa em dois tipos de obras. No primeiro deles, inclui obras
que demonstram uma maior “continência” e estabilidade. Nesses casos, o alter ego apóia-se na
técnica para sustentar-se; “assimilado à descoberta, no seio do mais subjetivo, às restrições
próprias aos requisitos da arte, às regras da escola, à complexidade dos saberes conquistados
ao longo dos séculos” (p. 198, tradução nossa). Esse tipo de construção implica na negociação
do artista com as exigências culturais e resultaria em formas estéticas acolhedoras e calmantes.
Isso porque estariam relacionadas ao acolhimento ambivalente próprio da relação primária,
marcada pela tensão sexual que Freud definira desde 1905 como a presença paradoxal do outro

116
que nutre/invade, na forma da tensão sexual que vai dar origem ao ritmo corporal: “o
reconhecimento da presença ativa do alter ego ao seio de uma obra se leria como os ritmos e
as escansões [separação de sílabas poéticas] lhe trabalhando” (p. 199, tradução nossa). No
segundo caso, o alter-ego adviria “reiterar a experiência fabulosa da confrontação com o objeto
primário em si lidando com um terceiro” (p. 199), e então resultariam obras que invocariam
em suas raízes estéticas o poder de desconcertar e desestabilizar o espectador, fazendo apelo
ao registro da despersonalização, trazendo a marca da relação primária atravessada por um
outro.
Notadamente, o alter ego consiste em um conjunto de figuras que necessitam de alguma
opacidade interna para se realizar e entrar em contradição com as figuras exteriorizadas pela
obra. Ele cria, então, uma nova zona de conflito onde os demais elementos formais da
composição criativa podem emergir através da elaboração de recursos identificatórios. Dessa
maneira, constitui o mediador, destinatário e, de certa maneira, o genitor da obra; dotado de
uma realidade psíquica que aparece sobretudo nos problemas que provoca. Em nossa
perspectiva, o aparecimento do alter ego nos auxilia a compreender mais completamente a ideia
de reconstrução narcísica a partir da arte. Como se tivesse se “ausentado” de si, o eu regressaria
de sua própria suspensão provocada pelo efeito estético.
Todo esse movimento regrediente visaria a produzir uma reserva libidinal substanciosa
o suficiente para operar tamanho dispêndio de trabalho psíquico pelo artista, razão pela qual
consideramos que essas hipóteses se situam no âmago do processo sublimatório (M´UZAN,
1977). As hipóteses que formulamos teriam, então, uma possibilidade de se encadear em um
movimento cíclico que, de alguma maneira, mantém a arte e a psicanálise num percurso comum
e, ao mesmo tempo, estranho, tanto de um lado como de outro. Assim como na arte, que é uma
maneira de editar as repetições do mundo, a psicanálise enfrenta o mortífero e o assombroso
de cada um, fazendo desse material a própria construção do ambiente analítico.
Na finalização de nosso estudo, vamos deixar “em aberto” – esperando por uma nova
captura – uma discussão para futuros trabalhos. Uma série de aspectos que abordamos neste
capítulo é associada pelos citados autores à potência da situação clínica. O próprio M´Uzan,
aliás, deixa claro sempre que introduz o termo, que toda a teorização sobre o saisissement é
perfeitamente aplicável e promissora na reflexão sobre o trabalho de transformação e criação
em um processo analítico. Vemos, assim, que não só no início de sua fundação, com Freud,
mas que na contemporaneidade, as infiltrações, correspondências e ligações entre arte e
psicanálise continuam imperiosas.

117
CONSIDERAÇÕES FINAIS

“De resto, liberdade aos novos! Para detestar os antepassados: estamos em casa e temos tempo.
[...]
Pois eu é um outro. Se o cobre acorda corneta, não é por sua culpa. Isto me é evidente: assisto ao nascimento
do meu pensamento: lanço um toque de violino: a sinfonia se mexe nas profundezas, chega, de um pulo ao
palco.
[...]
O primeiro estudo do homem que quer ser poeta é o seu próprio conhecimento inteiro; ele procura a sua alma,
a inspecciona, a tenta, a aprende. Quando a sabe, deve cultivá-la; isto parece simples [...] Digo que é preciso
ser vidente, se fazer vidente [...] por meio de um desregramento de todos os sentidos [...] ele esgota nele mesmo
todos os venenos”.

Arthur Rimbaud

Ao fim desta pesquisa, constatamos que a relação da psicanálise com a arte configura
um campo de estudo permanentemente indispensável tanto à construção do saber psicanalítico
como ao enriquecimento do fazer artístico. Dentro de seus limites, nosso estudo teve por
objetivo estabelecer uma hipótese sobre os enigmas intrínsecos à criatividade artística e ao
efeito estético alcançado em determinadas obras de arte. Concluímos que, para além da ação
da sublimação, é possível admitir um terreno “subterrâneo” que se apresenta na ação estética,
e que a vivacidade dessa esfera caracteriza a experiência artística menos por sua valorização
social do que por sua autenticidade.
Como afirma Italo Calvino (1980/2009), no universo artístico há uma espécie de
“estante hipotética”, na qual cada artista busca um lugar para si e para sua obra. Ao fazer parte
da estante, espera-se que “de alguma forma a modifique, expulse dali outros volumes ou os
faça retroceder para a segunda fileira, reclame que se coloquem na primeira fila certos outros
livros” (p. 190). Esperamos ter auxiliado a evidenciar que não só no universo artístico existe
uma estante hipotética, mas na subjetividade do encontro com as obras de arte e nas maneiras
de estudá-las. Defendemos que a psicanálise, sob esse ângulo, é fundada com base na “estante
hipotética” de Freud, com os recortes artísticos que examinou e na postura que assumiu nessa
empreitada. Uma vez que necessitava de validade diante de uma comunidade médica, cujo
espírito era conservador, a arte não significou mero “exemplo” para as descobertas do
inconsciente, tampouco terreno de aplicação para o método da interpretação. Constituiu, isso
sim, material de construção do saber psicanalítico, que até hoje ressoa no “edifício” teórico que

118
levamos adiante. Nossa aposta é que a própria arte persiste no núcleo do saber psicanalítico
como uma “quimera” de reinvenção de nossos métodos de trabalho, entrelaçamento tão
vigorosamente revisto no contexto pós-freudiano.
Ao longo de nosso percurso, sustentamos que o conceito de sublimação, com toda a
centralidade e complexidade que possui na metapsicologia, não se restringe à realização de
uma espécie de “triunfo” contra o sintoma a partir da deserotização de seus produtos. A
operação sublimatória nos oferece uma ferramenta capital para compreender a dinâmica da
economia pulsional que está em causa na criação artística, mas não se limita a tomar o produto
sublimado como saída para o excesso ou para a inibição da pulsão sexual – encerrando aí o
horizonte interpretativo de uma obra. A sublimação expõe a marca do pulsional como
determinante na criação; estabelece um terreno cultural sobre o qual compartilhamos
impressões a respeito de seus produtos; é um destino propício para que as pulsões se
transformem, se amenizem e produzam objetos passíveis de se inserirem na cultura. Esses
aspectos fundamentais da sublimação na descoberta freudiana iluminam a capacidade humana
de criar novos sentidos sob a égide do conflito psíquico ancorado na sexualidade.
Pudemos ver a ambiguidade que persiste em torno dessa premissa da teorização, em
virtude de o sexual constituir origem, embora não constitua fim do produto sublimado.
Compreendemos que esse constante paradoxo faz com que Freud refaça as equações do
mecanismo sublimatório, e estabelecemos a introdução do narcisismo como um ponto
fundamental dos dois pólos pelo qual o conceito passa: num primeiro momento, equivalendo à
deserotização, isto é, ao refreamento da pulsão sexual. Num segundo momento, consequente
da entrada do narcisismo, a sublimação perde o caráter de satisfação substitutiva para a pulsão
sexual e adquire caráter constitutivo da relação eu-outro, impulsionada pelos imperativos dos
ideais. Em nosso desenvolvimento, vimos que sua ação passa a se opor à ação das tendências
mortíferas que habitam o psiquismo, razão pela qual, com o segundo dualismo pulsional, passa
a compor os mecanismos ligados à pulsão de vida; isto é, de erotização dos objetos.
Se um de nossos objetivos, com base em Laplanche (1989), foi elucidar que a força do
sexual está efetivamente embrionada no processo sublimatório, concluímos que a arte enquanto
um de seus principais produtos, mais do que apaziguar a angústia e o sofrimento, presentifica
uma estranheza interna. A origem da criatividade ancorada no sexual implica na imposição de
sua relação com a alteridade, dimensão que inscreve um estágio aquém da sublimação, mas
que está presente na criação; uma espécie de “resto” que participa ativamente da produção
criativa; que vai “juntamente”, por assim dizer, à sublimação. Defendemos que a questão da
transformação psíquica realizada a partir da criatividade – particularmente da criatividade que

119
determina a produção de arte – deve-se mais à ativação desses elementos residuais,
pertencentes ao espaço “intraduzível” do psiquismo.
Vimos também que tal plano confere o tom de enigma e “imponência” da obra sobre o
artista, expresso pelo caráter inescapável presente em maior ou menor grau, que posicionará o
artista em gesto de submissão à sua criação. Para nós, essa etapa da pesquisa é de suma
importância para sustentar de que nem todas as obras de arte que se possam analisar sob a ótica
da sublimação encontram nesse mecanismo específico a justificativa para a existência daquele
artista ou daquela poética. Essa “abertura” do solo da sublimação para um “andar subterrâneo”
torna a relação entre obra e motivação criativa mais incerta do que tradicionalmente parece às
análises psicanalíticas.
Concluímos também que tal abertura acompanhou Freud em alguns de seus momentos
como crítico literário/de arte e consideramos que a análise do “Moisés”, assombrosamente
esculpido por Michelângelo, marca uma fronteira na teorização sobre o tema. Nas primeiras
linhas do texto, ele expõe o efeito que as manifestações artísticas sempre exerceram sobre ele,
particularmente a literatura e a escultura. Escreve sobre a importância que o efeito estético tem
para si e como esse mesmo efeito é incongruente com a atitude racionalista:
Isso já me levou em oportunidades adequadas, a me demorar longamente diante delas
e a querer compreender tal efeito à minha maneira, ou seja, explicar a mim mesmo,
por quais meios surtem efeito. Onde não posso fazer isso, por exemplo, na música,
sou quase incapaz da fruição. Uma constituição racionalista ou, talvez, analítica teima
em resistir a que eu venha me comover sem que possa saber por que me comovo.
(FREUD, 1914/2010, p. 183)

Em nossa tese, tal incongruência entre a construção do método de interpretação


psicanalítico e a entrega “comovida” à arte configura, justamente, uma espécie de “corpo
estranho” do constructo teórico freudiano. A arte tem um lugar na teoria psicanalítica, mas esse
lugar é sempre intangível e, de certa forma, nos leva por uma temporalidade especial, que
julgamos se aproximar da temporalidade da repetição. No entanto, desafiando a própria
premissa freudiana de que a postura científica e a comoção artística são insolúveis uma na
outra, vimos que a teorização sobre a ação do traumático no psiquismo se apresenta como
caminho pertinente na reflexão sobre o efeito estético das obras. Como evidência, temos a
significativa marca da literatura fantástica (FREUD, 1919/2006) em articulação com o
inquietante. As declarações de Freud sobre a leitura de “O Homem de Areia”, de Theodor
Hoffmann, marcam uma espécie de “abertura” para a sistematização da segunda teoria do
aparelho psíquico, que reformula a gênese do traumático.

120
Concluímos que tanto o “gesto” de Moisés, que inquieta Freud, como o contato com a
literatura fantástica, apresentam o teor de um “segundo Freud” nas temáticas da arte, ao passo
que elas não apenas explicitam o desamparo humano fundamental diante do outro, mas
transmitem essa sensação ao corpo do espectador. A sobreposição dos elementos sensorias à
compreensão inteligível desse momento da teorização está associada, a nosso ver, ao próprio
estranho da arte “capturado” por Freud. Isto é, aquilo que destacamos como a absorção da
matéria do mundo encarnada na produção criativa; o modo como os artistas incorporam a
realidade externa num procedimento de dissolução de fronteiras com o espaço interno;
colocando-se “em obra” a partir desse apagamento.
A literatura fantástica, como vimos na companhia de Todorov (1970/1981), explicita
essa característica em grau mais declarado relativamente a outras formas de narrativa. Podemos
imaginar que, ao abordá-la, Freud também teria se visto numa situação inescapável ao apanhá-
la de sua “estante hipotética”, para usarmos novamente a figura de linguagem de Calvino.
Notamos, então, que no lugar subterrâneo da sublimação residiria um amplo terreno
que configura o território da inquietante estranheza, dos fenômenos de estranhamento da
sensação de limite do eu, onde o âmago da sensorialidade é posta em causa. O que está em jogo
é a temporalidade atual do inconsciente, que foi explorada como presença de uma figura
persistente e inassimilável. Defendemos que a criação atinge esse registro e extrai daí a própria
matéria indizível e autêntica de sua forma. Na amplitude pela qual elaboramos a pesquisa,
concluímos que uma investigação sobre a ação da pulsão de morte garante incertezas na
definição da origem da criatividade de um determinado artista ou obra. Concluímos que a ação
criativa constitui, em última instância, uma luta pela vida, pela permanência – batalha que não
deve se reduzir ao ato de fazer frente à pulsão de morte. Além disso, essa relação corre o risco
de nos levar à ultrapassada correspondência entre o labor artístico e as condutas destrutivas,
como a adicção, por exemplo. Não vemos nenhum aspecto para o qual essa articulação possa
ser efetivamente produtiva para o avanço do estudo psicanalítico sobre arte.
Alternativamente e com as propostas de M´Uzan (1977; 2015) e de Laplanche (1989;
1999), compreendemos que o lado “mortífero” que possa estar imbutido na ação de irrupção
criativa, é antes o de uma condição sem a qual os artistas não podem trabalhar. O mortífero da
arte de que pudemos falar em nosso percurso é aquele que acomete o eu na forma de um estado
de tudo-ou-nada. Esse fator, mais do que demonstrar uma fragilidade ou precariedade na
constituição narcísica, nos faz pensar sobre o risco assumido pelo sujeito que decide expor uma
produção artística, objeto simultânemente íntimo e público, em busca de um olhar que a valide
através do qual a obra passe a integrar o mundo.

121
Sustentamos que em todo esse procedimento – que acarreta, evidentemente, dispêndio
de energia psíquica – o artista busca, decerto, transformação e expansão de seu território
egóico, porém tal ato se mostra inseparável da procura por terreno fértil no outro. Como afirma
Otto Rank (citado por NOSEK, 2017, p. 37), “a arte é o sonho da humanidade”; e para isso ela
precisa de espaço para se constituir como um “fato social” (M´UZAN, 1977). Vimos que a
própria forma artística naquilo que a caracteriza é a capacidade do artista de forjar essa
condição, no sentido de compor a abertura radical de si de maneira mais ou menos deliberada,
conforme o caso e a relação estabelecida com a obra. Metaforicamente, uma obra pode
enaltecer, destruir, acusar, reconstruir seu próprio criador, sendo bastante comum, inclusive,
que exista um aspecto relacional entre as obras de um só artista, como divisões em períodos,
hiatos, auges, etc.
As questões que trouxemos até aqui nos fizeram perceber que o subterrâneo da criação
age na reabertura do primitivo domínio das percepções. Nesse domínio, a forma artística
materializa, numa espécie de espelhamento, o regresso ao arcaico; o eu se entrega à passividade
vivida outrora, em estágio incapturável do desenvolvimento psíquico; deixa-se, portanto,
invadir pelo campo dos sentidos. Vimos que o registro da despersonalização, aquele que faz do
eu um anfitrião submisso ao estrangeiro em si, permite que a arte e os estados altamente
regressivos do aparelho psíquico convivam em harmonia quando “contornados” pela fruição
estética, sempre endereçada ao outro. A inspiração, na abordagem de Laplanche,
diferentemente de um “sopro divino”, dá notícias do estado de comoção passiva frente às
percepções internas e externas. Em nosso entender, trata-se de um paradoxo próprio às
experiências artísticas: a vivência do estado de passividade interna imbuída na postura ativa e
produtiva de um novo objeto; o regresso que visa à partida – ou à décollage, na perspectiva de
Anzieu (1981), enfim, um constante jogo de contrários do qual a arte se alimenta e evolui ao
longo do tempo. Demonstramos que tal âmbito é essencialmente relacional, que remonta à
dissolução das fronteiras com a alteridade e que situaria em primeiro plano a importância
exclusiva da arte de afetar o outro em sua expressão.
Mesmo que se trate da expressão de um enigma, o espaço entre artista e espectador é
constituinte do processo criativo; a obra é criada na companhia da expectativa do olhar do
outro, como vimos com a ideia de que, no interior de cada artista, existe um público interno
primordial. Há, no entanto, um abismo entre o público interno e o público real. Do
reconhecimento e da oficialização da arte dependem outros fatores que não foram trabalhados
por nós, mas que certamente são também relevantes para compreender a amplitude do que está
em jogo na vida de um artista.

122
Consideramos, por fim, que uma série de etapas – mutiplicáveis entre si – separam o
instante de saisissement da apreciação estética que uma obra pode receber do meio externo,
que não deixa de ser um processo instaurador de outros instantes de saisissement, e assim
sucessivamente. Contudo, constatamos a extrema relevância desse momento crucial, teorizado
de maneira tão arrojada por Michel de M´Uzan, marca de uma espécie de núcleo íntimo e
intraduzível impresso de forma tão exuberante numa poética. Destacamos a confiança de que
os estudos que articulam arte e psicanálise se enriquecerão de modo significativo ao explorar
ainda mais profundamente as contribuições desse autor, ainda pouco conhecido no contexto da
psicanálise brasileira.
Como um possível rumo futuro, deixamos registrada a constante articulação feita não
só por M´Uzan, mas por Anzieu, Gagnebin e outros autores, entre o saisissement na arte e em
determinadas particularidades da relação entre psicanalista e paciente. Aliás, aparentemente
Freud já buscava na arte a inspiração para desenvolver suas concepções sobre o trabalho com
seus pacientes. Seus relatos são amplamente reconhecidos pelo valor literário que demonstram,
mas, sobretudo, pela capacidade atemporal de seus escritos permanecerem nos convidando ao
inevitável regresso às origens de sua criação; de seu “nascimento”. O autor nos deixa como
legado a ideia de que a função do analista não se limita a interpretar o inconsciente, mas a
construí-lo junto ao paciente, centrado na particular atmosfera que se dispõe entre a dupla. O
foco na radicalidade que essa relação pode assumir, os papéis que ambos desempenham e a
disposição para assumi-los evidenciam uma dimensão estética que uma sessão de análise pode
acolher e, por essa justa razão, se encadear nos processos de transformação psíquica.
Embora não tenhamos desenvolvido nossas hipóteses nessa direção, encontramos no
estudo da arte o relevo e a profundidade que o registro sensorial alcança numa relação entre
dois inconscientes. Para M´Uzan, esse tronco comum à arte e à clínica não se torna flagrante
apenas nos casos chamados difíceis ou limítrofes, nos quais as atuações e as somatizações
tomam a cena. Na atmosfera clínica, de maneira geral, nas formas insinuadas pelo jogo corpo
a corpo, no ritmo, temperatura, tonalidade vocal, lapsos, nas imagens que invadem a escuta,
entre outros elementos, o paciente convida seu analista a lê-lo. Ao aceitar as condições, o
analista passa a ser um espectador da estética narrada, mas também um narrador da construção
da “nova” história. O psicanalista, para M´Uzan, pode desenvolver uma “escuta literária”, se
disponibilizando a adentrar os caminhos da regressão, uma vez que as percepções se
apresentam sob a exigência de uma forma que lhe caiba e, ainda, uma gramática própria aos
quais o psicanalista pode aceder.

123
Comumente, pensa-se no paciente como uma espécie de “autor” da narrativa que será
realizada no percurso. M´Uzan & Pontalis (2015), no entanto, aproximam o psicanalista ao
lugar de escritor, ao passo que é de sua postura que depende não apenas a leitura do que ouve,
mas a escrita que produz sobre o material bruto que recebe. De acordo com os autores, o
trabalho do analista é “se deixar invadir” pelo inconsciente de seu paciente. À maneira de um
escritor, é seu papel enfrentar as crises de despersonalização que, possivelmente, assolarão a
situação analítica, conduzindo as ferramentas para que a personificação, a simbolização e a
criação de formas tome lugar.
Para M´Uzan (2015), a escuta analítica seria mais literária do que a própria escrita
psicanalítica, pois nenhuma sessão de análise é fielmente descritível, assim como a escrita de
ficção. Nessa hipótese, um ato analítico – assim como um ato de leitura – dispõe da
oportunidade de experimentar um instante de transformação do equilíbrio econômico do par
em questão. Para M´Uzan, são momentos dotados de intensa produtibilidade sensorial, em que
os limites dos corpos estão brevemente turvos, favorecendo uma transformação permanente na
organização narcísica do analisando. Nesses instantes, o analista ganharia posição de autoria
junto ao analisando; processo que ocorre sucessivamente. M´Uzan aposta que esse instante
possui as mesmas características do instante de saisissement, que estaria na base da atividade
criativa, como sustentamos ao longo deste trajeto. O autor defende que tal instante central da
criação, por abranger a possibilidade de suporte para uma breve perda dos limites do eu, é
similar a alguns momentos particulares de uma experiência de análise, quando analista e
analisando se unem num breve estado de flutuação, de baixa das resistências, selando a
catástrofe do sentido em prol de um momento de euforia. Por essência, não podemos figurá-lo
como um momento permanentemente suportável, mas sem o qual não há nem experiência
artística nem uma efetiva experiência analítica que se sustente como tal. Em outras palavras,
seriam raros esses momentos, mas extremamente produtivos.
Tendo em vista o vasto horizonte para onde esse caminho conduz, encerramos nosso
trabalho apontando para ele como possibilidade de uma futura reflexão que possa
eventualmente se delinear. Antes do ponto final, lembremos que em 1907, em “Escritores
Criativos e Devaneios”, Freud escreveu que diante dos artistas, a psicanálise deveria “depor
suas armas”. Felizmente, seu estado supostamente “desarmado” diante das obras que
magistralmente analisou, erigiu o saber que permanece nos movendo pela tradição e
embasando reflexões como esta. Fica, então, a expectativa que os trabalhos sobre arte possam,
sim, trabalhar “desarmados” de interpretações restritivas; mas que possam armar-se dos

124
conceitos fundamentais psicanalíticos numa atitude de promover novos e mais estreitos laços
com o campo da arte.

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