Você está na página 1de 239

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA


Programa de Pós-Graduação em Filosofia

O PAPEL DA ESTÉTICA NA TEORIA

Estatuto da estética filosófica após o fim da arte

Wesley de Faria Leonel

Ouro Preto

2017
Wesley de Faria Leonel

O PAPEL DA ESTÉTICA NA TEORIA

Estatuto da estética filosófica após o fim da arte

Dissertação apresentada ao Mestrado em Estética e


Filosofia da Arte do Instituto de Filosofia, Artes e
Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto como
requisito parcial para obtenção do título de mestre
em filosofia.

Área de concentração: Estética e Filosofia da Arte

Orientador: Prof. Dr. Romero Freitas.

OURO PRETO

2017
L576p Leonel, Wesley de Faria.
O papel da estética na teoria [manuscrito]: estatuto da estética filosófica após
o fim da arte / Wesley de Faria Leonel. - 2017.
238f.:

Orientador: Prof. Dr. Romero Freitas.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto de


Filosofia, Arte e Cultura. Departamento de Filosofia. Programa de Pós-Graduação
em Estética e Filosofia da Arte.
Área de Concentração: Filosofia.

1. Danto, Arthur C., 1924-2013 . 2. Ontologia. 3. Percepção . 4. Estética. I.


Freitas, Romero. II. Universidade Federal de Ouro Preto. III. Titulo.

CDU: 101.1

Catalogação: www.sisbin.ufop.br
AGRADECIMENTOS

A Danto, por ter me mostrado de formas variadas uma maneira tão apaixonada de fazer
filosofia e discutir as questões de arte, cultura e pluralismo que tanto me sensibilizaram.

Aos meus pais, Antônio e Dorotéa, por terem me concedido a vida.

Aos amigos Erinaldo Borges, Paulo Andrade Vitória, Adriano Rodrigues, Victor Freitas,
Alexandre Vidigal, Pedro Lage, Rony Melo, Luís Fernando, Carol Nunes Silva, Sofia
Machado, Eliza, Anderson, Vinícius Sousa, Aninha, Neimar Oliveira e aos companheiros
de mestrado e simpósio mundo a fora.

A Flávia Rocha, pelo amor e confiança reconfortantes.

A André Castro, pela escuta sensível e encorajadora.

A Joana Pessoa e à República Xiboca, onde tudo começou. Aos amigos da Pandiá
Calógeras, 127.

Ao meu orientador, Romero Freitas, pela orientação, confiança, compreensão e


interlocução crítica e cuidadosa.

A Bruno Guimarães, entusiasta, crítico e conselheiro. A Noéli Ramme, pela interlocução e


exortação à estética analítica. A ambos agradeço pela gentileza de terem aceitado o convite
para a defesa desta dissertação, da qual podem se considerar interlocutores. Também a
Giorgia Cecchinato, Rodrigo Duarte e André Abath.

Ao PPG, pelas experiências, oportunidades e compreensão. Aos professores e funcionários


do IFAC, em especial a Cíntia Vieira, Claudinéia Guimarães e ao Toninho. Aos parceiros
da Revista Exagium, Karen França e Maurício Reis.

Aos ―conterrâneos‖ de Sabará e de Bom Despacho. Aos meus alunos do Zorô (e, mais
recentemente, do José Brandão). A Ouro Preto e à saudade de casa.

À CAPES, pelo imprescindível financiamento desta pesquisa.

A todos que contribuíram direta ou indiretamente para este trabalho, meu muito obrigado.
Antiepopéia
(Conceição Lima - A Dolorosa raiz do Micondó)

Aquele que na rotação dos astros


e no oráculo dos sábios
buscou de sua lei e mandamento
a razão, a anuência, o fundamento

Aquele que dos vivos a lança e o destino detinha


Aquele cujo trono dos mortos provinha

Aquele a quem a voz da tribo ungiu


chamou rei, de poderes investiu

Por panos, por espelhos, por missangas


por ganância, avidez, bugigangas
as portas da corte se abriu
de povo seu reino exauriu
RESUMO

O papel da estética na teoria: estatuto da estética filosófica após o fim da arte

O trabalho aborda a questão do estatuto da estética no contexto da arte contemporânea. Esta


questão, direcionada ao pensamento de Arthur Danto, importante filósofo da arte
contemporânea, pretende esclarecer as razões sistemáticas e teóricas da suspensão das
pretensões normativa e definicional da estética filosófica. Tal questionamento nasce da
posição incômoda a que fica relegada a estética clássica tanto no que diz respeito ao
declarado fim da arte quanto, consequentemente, ao desincentivo da estética. Assumindo
programaticamente a hipótese do fim da arte e a definição de obras de arte em condições
necessárias e suficientes, esclarecemos a centralidade da ontologia na filosofia da arte de
Danto e como, a partir de um projeto definicional focado na distinção entre termos
observacionais e teóricos, experiência, atitude ou qualquer outra categoria estética
tradicional, estão conceitual e sistematicamente interditadas. Conforme propomos, o cerne
da disputa concentra-se na concepção de arte e de filosofia e a relação entre ambas.
Apresentamos o debate a partir de uma perspectiva metafilosófica na qual é possível traçar
um panorama sistêmico da filosofia danteana, bem como relacioná-lo com a perspectiva
wittgensteiniana e revelar os pressupostos tacitamente operantes na rejeição danteana da
estética. A partir desta perspectiva ampla é que apontamos, ao fim, a possibilidade de
desenvolvimento de uma estética do significado.

Palavras-chave: Fim da arte; estética; antiestética; ontologia; definição da arte; percepção;


termos observacionais; termos teóricos; Arthur Danto; Wittgenstein.
ABSTRACT

The Role of Aesthetics in Theory: The Statute of Aesthetics After the End of Art

The dissertation deals with the question of the status of aesthetics in the context of
contemporary art. This question, directed to the philosophy of Arthur Danto, that is
important thinker of contemporary art, aims to clarify the systematic and theoretical reasons
for the suspension of normative and definitional pretensions of philosophical aesthetics.
Such problem arises from the uncomfortable position to which classical aesthetics are
relegated, both as regards the declared the end of art, consequently, the disincentive of
aesthetics. Assuming programmatically the hypothesis of the end of art and the definition of
works of art under necessary and sufficient conditions, we clarify the centrality of ontology
in Danto's philosophy of art and how a definitional project focused on the distinction
between observational terms and theoretical terms, the aesthetic experience, aesthetic
attitude or any other traditional aesthetic category are conceptually and systematically
interdicted. As we have proposed, the core of the dispute is centered on the conception of
art and of philosophy, as well as the relation between both. We present the debate from a
metaphilosophical perspective in which it is possible to draw a systemic panorama of
Dantean philosophy, as well as relate it with the Wittgensteinian perspective and thus
reveal the tacitly operative assumptions in the Dantean rejection of aesthetics. From this
broad perspective, we finally point to the possibility of developing an entirely new
aesthetic, the aesthetic of meaning.

Key-words: End of art; Aesthetics; Anti-aesthesis; Ontology; Definition of art; Perception;


observational terms; theoretical terms; Arthur Danto; Wittgenstein.
SUMÁRIO

RESUMO................................................................................................................................ 7

ABSTRACT ........................................................................................................................... 8

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 10

CAPÍTULO 1 ....................................................................................................................... 15

FILOSOFIA E/DA/NA ARTE ............................................................................................. 15

1.1 - Danto e a Filosofia .................................................................................................... 15

1.2 - A concepção filosófica de Danto .............................................................................. 30

1.2.1- Gênese dos problemas filosóficos .................................................................. 32

1.2.2- A filosofia e sua história ................................................................................. 52

1.3 - Conclusão ................................................................................................................. 57

CAPÍTULO 2 ....................................................................................................................... 60

A ARTE NO SISTEMA FILOSÓFICO ............................................................................... 60

2.1- A fórmula de mundo do Materialismo representacionalista ...................................... 60

2.1.1- Ens Representans ................................................................................................ 63

2.1.2- Episódio cognitivo básico como princípio de simplicidade ............................... 69

2.1.3- O ―estrangulamento do representacionalismo‖ e a falácia instrumental ............ 75

2.2 - O lugar da arte na filosofia ....................................................................................... 80

2.3 - Conclusão ................................................................................................................. 90

CAPÍTULO 3 ....................................................................................................................... 93

FILOSOFIA DA ARTE E O DESINCENTIVO À ESTÉTICA .......................................... 93

3.1- Introdução .................................................................................................................. 94

3.2- Filosofia da arte X Estética Filosófica ....................................................................... 97


3.3- ―A arte na era da teoria‖: ontologia, definição e história da arte ............................. 105

3.4 – O contexto analítico em torno da definição da arte ............................................... 106

3.4.1- Wittgenstein e a estética.................................................................................... 106

3.4.2- Morris Weitz como herdeiro negativo de Wittgenstein .................................... 117

3.4.3- O escopo do projeto de definição essencialista de Danto ................................. 130

3.5- Conclusão ................................................................................................................ 143

CAPÍTULO 4 ..................................................................................................................... 146

INDISCERNÍVEIS COMO DISPOSITIVO ANTI-ESTÉTICO ....................................... 146

4.1- Teoria Transfigurativa da arte ................................................................................. 147

4.1.1- Indiscernibilidade e Indiscerníveis: características e relações com a definição de


arte ............................................................................................................................... 149

4.2- Aspectos técnicos do método dos indiscerníveis ..................................................... 152

4.2.1- Experimentos mentais ....................................................................................... 153

4.2.2- Cláusulas ceteris paribus .................................................................................. 158

4.2.3- Argumentos transcendentais ............................................................................. 161

4.3- Aspectos teóricos do método dos indiscerníveis ..................................................... 166

4.3.1- Os limites entre arte e realidade ........................................................................ 166

4.3.2- Contraparte material: princípios, teses e seu papel na teoria ............................ 170

4.3.3- Externalismo perceptual, o pressuposto tacitamente operante dos indiscerníveis


..................................................................................................................................... 177

4.3.4- Ontologia de Obras de Arte e Ontologia da Linguagem ................................... 184

4.3.5- A natureza ontológico-metafísica do significado ............................................. 187

4.6- Conclusão ................................................................................................................ 193

CAPÍTULO 5 ..................................................................................................................... 197

O LUGAR DA ESTÉTICA NA TEORIA ......................................................................... 197

5.1- Introdução ................................................................................................................ 197


5.2- Balanço da estética no Opus danteano - inestética .................................................. 199

5.2.1- Pluralismo pós-histórico, mundo da vida, era da estética ................................. 205

5.3- O projeto de uma estética do significado................................................................. 214

6- CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 222

7- REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 230


INTRODUÇÃO
Qual é o estatuto da estética após o fim da arte? Ou, mais especificamente, se na visão de
Danto a arte chegou ao seu fim celebrando uma vitória na ontologia, como esta conquista
inviabiliza a abordagem estética? Com efeito, este trabalho concentra-se especialmente na
obra A Transfiguração do lugar-comum, acerca da qual pretendemos expor as razões, os
mecanismos e as intuições sistêmicas através dos quais a estética, compreendida como
empresa definicional e normativa, fundada sobre habilidades perceptivas de recognição ou
atitudes proposicionais de reação/experiência sensorial, se encontraria essencialmente
inoperante.

A natureza investigativa desta dissertação é, pois, teórico-metodológica. A filosofia da arte


danteana, fornecida na obra central deste trabalho, é abordada a partir de uma perspectiva
ampla, destacada e relativamente crítica. A indicação de que os indiscerníveis são a causa
central do afastamento da estética motivou uma incursão pela ideia de sistema de filosofia
originalmente designado por Danto, o qual está fundado numa noção platônica da origem e
da natureza do trabalho filosófico, que seria essencialmente teoria total da representação
humana do mundo da experiência. A representação é, em Danto, a divisa entre o domínio
material inexpressivo e a dimensão ontologicamente relevante para nós, ens representans.
Danto está à procura da interpretação conceitual adequada à especificidade representacional
10
da arte, assim como o Wittgenstein do Tractatus fornece as fronteiras e as relações entre o
mundo e a linguagem, entre fatos e proposições. Em sua abordagem, Danto está sempre
―procurando uma cadeia ligando arte e realidade‖1, uma divisa entre arte e vida2 e, portanto,
entre o estético e o prático e a arte e o útil 3. A Transfiguração do lugar-comum toma como
modelo o Tractatus, atualizando, à sua maneira, o espírito filosófico de caracterizar um
domínio a partir de fora.

É possível, então, abordar tal filosofia da arte desenhando um paralelo no qual o olho
geométrico equivalha ao sujeito transcendental como condição de se ter um mundo e uma
linguagem, assim como as teorias ou a atmosfera conceitual da arte são as condições para
que a arte seja vista e que, como tal, o olho não pode ver, não faz parte do campo visual. Os
limites do conceito de arte são os limites entre a arte e a vida e entre a arte e a filosofia.
Esta visão parece coadunar com a tese segundo a qual o fim da arte é o rompimento
derradeiro com qualquer critério ou paradigma visual para ver arte e, antes de tudo, para
que algo seja arte. Assim, desde os fundamentos atribuíveis à obra-objeto deste trabalho, o
lugar necessário à estética tradicional não se credencia a fornecer discurso informativo
sobre a arte, já que ela não satisfaz o atributo fundamental de se edificar, a partir de uma
perspectiva totalizante e externa, um legítimo discurso sub specie aeternitatis. Se ela o
fizer, será por forças de um fundamento ontológico alheio a si. Os termos observacionais
que formam o domínio discursivo da estética estão circunscritos à observação e, portanto,
não podem ser autoevidentes (isto é, expressar autoconsciência). Mas o que justifica
exigência de que em um discurso filosófico que se pretenda consequente não devam figurar
quaisquer termos observacionais?

A principal contribuição que pretendemos oferecer no Capítulo Um trata dos fundamentos


últimos dos indiscerníveis: como problema originário da filosofia, como marca
característica de qualquer problema filosófico específico e como método. É por força da
defesa de Kalle Puolakka de que a obsessão pela distinção entre obra de arte e mera coisa
real deriva das visões metafilosóficas de Danto, e pelo fato de esta fundamentação ser
surpreendentemente ignorada por muitos de seus interlocutores e comentadores, que nos

1
DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar comum: uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p.
2
DANTO, Arthur. Andy Warhol: Arthur Danto. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 53.
3
DANTO, Arthur. Após o fim da arte. São Paulo: Odysseus/Edusp, 2006, p. 96.

11
encorajamos a apresentar como as proposições da filosofia da arte não são nem
deontológicas nem juízos de valor, mas ontológicas. Contudo, como em Danto os
indiscerníveis em arte são a garantia do término de sua história, elementos decisivos da
compreensão metafilosófica danteana são apresentados a fim de responder à questão ―o que
é filosofia?‖ e como, a partir daì, podemos distingui-la da arte após o fim da arte. A chave
de leitura aí é o conceito de Representação. Propondo que há uma relação imbricada e
dialética entre arte e filosofia, em que tanto o estado da arte em dada época quanto a
maneira de compreender a atividade filosófica interferem nos resultados finais, apresentam-
se as principais realizações artísticas que exerceram impacto na filosofia da arte de Danto.
Identificam-se também os desafios que partiam do contexto filosófico do qual Danto fazia
parte na época em que escreve A Transfiguração do lugar-comum. Conclui-se que sua
compreensão de filosofia como interpretação sub specie aeternitati do todo da experiência
não apenas projeta sobre a arte a ideia de representação como fórmula de mundo, mas
reconhece na própria arte uma espécie de exemplificação extraordinária deste conceito. É
preciso, mais uma vez, especificar.

Por isso, no Capítulo Dois dedicamo-nos a localizar a arte no sistema filosófico


originalmente concebido por Danto. Ponderamos que este projeto sistemático total não fora
completado, mas em A Transfiguração do lugar-comum ressoam ainda os ecos desta
intenção (que encontrou na dedicação à tarefa de pensar a arte contemporânea um desvio de
rota decisivo). Recorremos à obra Connections to the World (1999), que muito contribui
para as questões sistêmicas apenas apontadas em A Transfiguração do lugar-comum.
Expomos o materialismo representacionalista, doutrina filosófica segundo a qual tudo o que
há é matéria e representações. Propomos que a formação de um quadro ontológico a partir
desta doutrina nos permite localizar o lugar da arte e determinar a especificidade desta em
relação à filosofia. A história progressiva (mas acabada) e a maneira significante como a
arte concebe a relação entre matéria e representação (ou entre a contraparte material e a
conceptualidade) são as fronteiras finais entre arte e filosofia, bem como entre arte e vida.
Nos termos danteanos, a arte é um sonho acordado, a filosofia é um pesadelo repetidamente
encenado.

12
O Capítulo Três pretende tornar consequente a ideia segundo a qual uma mudança externa
no estatuto do objeto de estudo força uma mudança interna na forma adequada de a
filosofia interpelá-lo. Entendemos que a modificação terminológica segundo a qual a
investigação adequada à arte deve ser a filosofia da arte, não a estética, é consequência
direta disso e o impacto imediato é a erosão ontológica do estatuto da estética. Motivados
principalmente pelos estudos arqueológicos de Melissa Theriault acerca da herança
wittgensteiniana de Danto, e apoiados também nas análises de Nöel Carroll e Stephen
Davies sobre o debate analítico em torno da autenticidade do discurso filosófico e sua
pretensão de definir a arte, apresentamos as relações e diferenças do projeto filosófico de
Danto, Weitz e Wittgenstein. O trunfo da aposta danteana de ser a filosofia da arte capaz de
gerar um discurso informativo acerca da arte reside na compreensão de seu trabalho como
uma abordagem conceitual que insistentemente se mostra estar informada das conquistas
definitivas ocorridas no mundo da arte. Nesse sentido, o capítulo retoma temas importantes
dos dois primeiros capítulos. Conforme será possível constatar, os indiscerníveis são o
cerne da estratégia danteana de fundar uma filosofia essencialista da arte. Com eles se
pretende fugir das ameaças céticas e quietistas ao mesmo tempo em que se mantenha que o
elemento definidor da arte corresponda à dimensão conceitual insistentemente afirmada por
Danto.

O Capítulo Quatro pretende mostrar como se estrutura a inviabilidade da estética filosófica


enquanto teoria correta para a arte. Pretende-se esclarecer como a experiência, o prazer ou a
atitudes estética são radicalmente desviantes. Neste capítulo são levadas às últimas
consequências as principais indicações da literatura acerca da filosofia da arte danteana em
sua dimensão de negação da estética. Os aspectos e relações dos indiscerníveis enquanto
método e problema filosófico são salientados. Combinamos a estas indicações as análises
metafilosóficas e sistemáticas realizadas anteriormente, donde resulta uma análise própria
dos aspectos técnicos e teóricos envolvidos no método dos indiscerníveis que, segundo
Virginia Aita, são a causa da definição essencialista oferecida por Danto. Ver-se-á que o
comprometimento metafilosófico do método dos indiscerníveis faz com que ele funcione
como um verdadeiro mecanismo de expulsão da abordagem estética. Com ele, todo
discurso pautado em conceitos observacionais está inviabilizado. A caracterização do
significado de obras de arte como um objeto abstrato interpretativo, isto é, independente de

13
valor-verdade, sacramenta a inaptidão e descredenciamento estéticos. Ver-se-á, contudo,
que a tese do externalismo conceptualista, que reza que o conteúdo perceptivo lhe é
externo, subjaz os indiscerníveis e não é exaustivamente debatida. Criticamos esta
inconsistência pois, fosse essa tese inoperante, o afastamento da estética não seria
facilmente defendido.

No Capítulo Cinco é oferecida uma visão panorâmica da posição inestética de Danto com
vistas a pensar o estatuto da estética a partir de uma posição distanciada e dinâmica.
Apresentam-se alguns argumentos presentes em Após o fim da arte que ratificam a posição
inestética – embora o façam a partir de um ponto de vista sensivelmente distinto. Há um
esboço dos principais itens de tensão de Danto para com a compreensão estética operante
na crítica de arte de Greenberg. Em seguida, levando adiante o balanço do estatuto da
estética na filosofia da arte danteana, apresentamos passagens em que é afirmada a
possibilidade de refundar a estética sobre o signo da interpretação. Com efeito, esboçamos
algumas diretrizes da estética do significado buscando mostrar como conceitos e categorias
tradicionais podem ser reinterpretadas, convivendo com outras novas. Esta proposta poderia
estar disponível desde os primeiros escritos de Danto. Além de um balanço, desejamos
apresentar uma conclusão em que esteja representada a complexidade e a riqueza do tema
do estatuto da estética no pensamento de Arthur Danto, apontando de maneira crítica um
futuro promissor de fundação da chamada estética do significado, uma estética que parece
dialogar de maneira inovadora temas clássicos e contemporâneos da arte.

14
CAPÍTULO 1

FILOSOFIA E/DA/NA ARTE

Esta conjunção um tanto quanto incomum de arte e filosofia tem influenciado profundamente
a maneira como tenho pensado sobre ambos os temas.
(Arthur Danto)

Obviamente a investigação acerca da metodologia filosófica não pode e nem deve ser
filosoficamente neutra. Ela é apenas mais filosofia vertida sobre a filosofia mesma.
[...]Pequenas melhorias nos padrões de raciocínio aceitos podem permitir que a comunidade
filosófica chegue a um acordo bem informado sobre o status de muitos outros argumentos.
Fazer filosofia não é como andar de bicicleta, em que se executa melhor quando não se pensa
a respeito – ou se o é, os melhores ciclistas são aqueles que pensam a respeito. [...] Para
tornar nossos instrumentos de raciocínio mais confiáveis, devemos investigar os próprios
instrumentos, mesmo quando eles não são os objetos últimos de nossas preocupações.
(Timothy Williamson)

1.1 - Danto e a Filosofia


O que justifica defender que a filosofia ainda possa edificar um discurso informativo acerca
da arte, se esta se emancipou das formas descredenciadoras que a aprisionaram em uma
compreensão figurativa falsa durante várias épocas?

Passado um ano desde a sua criação, em 1916, a Society of Independent Artists, êmula
estadunidense da francesa Société des Artistes Indépendants, resolve promover uma
15
exposição livre com artistas que, contribuindo com a simbólica quantia de seis dólares,
poderiam tornar-se sócios do grêmio e pleitear a exibição de suas obras. Um misterioso
candidato, de nome R. Mutt, inscreve um urinol branco de porcelana com inscrições laterais
―R. Mutt 1917‖. À maneira de sua equivalente europeia, a Society of Independent Artists
pretendia ultrapassar a censura prévia da academia e de críticos que ditavam quem era
artista e o que era obra – as coisas que se prestariam à apresentação ou ao leitmotiv de uma
obra deveriam atender a certa integridade prévia. Parecia que a Society respirava ares
progressistas: o artista exporia a obra, o público daria o vaticínio.

Marcel Duchamp, um dos fundadores da Society, já havia experimentado, em 1913, a


criação de um tipo novo de obra de arte escultural, a ―Roda de Bicicleta‖.

Em Nova York, em 1915, comprei numa loja de equipamentos uma pá de neve na


qual escrevi ‗In Advance of the Broken Arm‘. Foi por esta época que a palavra
‗readymade‘ me veio à mente para designar esta forma de manifestação 4.

A ideia era tomar objetos pré-existentes, já prontos, e modificar seu status através de sua
proposição como arte.

À parte as várias discussões geradas em função das versões subsequentes de Roda de


Bicicleta – e mesmo das incursões através de pseudônimos e disfarces –, Marcel Duchamp
sofreu o revés tanto da versão estadunidense quanto da Société, francesa: La Fontaine foi
recusada em 1917, após decisão majoritária dos diretores; cinco anos antes, na França, Nu
Descendant un Escalier também sofrera represálias (embora não fosse uma escultura).
Propor um readymade à exposição parecia um teste de fogo às aspirações progressistas da
mostra. Os fundamentos utilizados para determinar o que é e o que não é arte parecem
pertencer à estética retiniana.

4
DUCHAMP, Marcel. Sobre os readymades. 1961. As referências físicas aos trabalhos O ato criador,
Sobre os readymades e O caso R. Mutt de Duchamp, utilizados aqui, estão disponíveis nas edições físicas
DUCHAMP, Marcel ―O Ato Criador‖ In: BATTCOCK, Gregory. A Nova Arte. São Paulo: Perspectiva
(coleção Debates), 1986, p.72-74 [original do artigo de Duchamp: 1957]; DUCHAMP, Marcel. ―O caso
Richard Mutt‖, Blind Man, n°2, New York, 1917; DUCHAMP, Marcel. Sobre os ready-mades [Lecture at the
Museum of Modern Art, New York, October, 19, 1961]. Published in: Art and Artists, n°1, 4, July 1966.
Utilizamos, entretanto, uma versão eletrônica textualmente idêntica disponível em repositório textual ligado
ao departamento de Artes Visuais da UNB: http://ipiunb2012.blogspot.com.br/2012/03/leitura-e-discussao-
marcel-duchamp.html. (Último acesso em 01/04/2017). Fica fixada esta referência para as posteriores citações
destes textos.

16
A despeito, entretanto, do sumiço da La Fontaine original, de sua recusa na mostra e de
Duchamp ter desertado a Society of Independents Artists logo após o indeferimento,
estavam lançadas as sementes para um novo futuro no mundo da arte.

Diz-nos Duchamp:

Gostaria de deixar bem claro que a escolha destes "readymades" jamais foi ditada
por um deleite estético. A escolha foi feita com base em uma reação de
indiferença visual e ao mesmo tempo em uma total ausência de bom ou mal
gosto. De fato uma completa anestesia 5.

A este respeito, o crítico de arte Steven Zucker afirma:

É compreensível que você pense no ato de Duchamp como um ato cínico. E eu


penso que de certa forma ele realmente é: ele está tentando tornar os aparatos do
mercado da arte transparentes, nos forçando a despertar acerca de ‗como nós
definimos a arte?‘ e ‗como isso é importante?‘ e como talvez tais valores estéticos
estejam deslocados. Mas ele também está interessado em mostrar que a arte, no
século XX, não precisa necessariamente estar focada na técnica de sua produção,
ou focada necessariamente na proficiência do artista com os pincéis, mas está
focada na linguagem simbólica que a arte evoca e na maneira pela qual a arte
pode transformar a maneira como nós vemos o mundo. No século XX, o valor
artístico depende de sua habilidade em transformar a maneira que vemos 6.

E a importância deste episódio – e dos demais que a ele se somaram – é realçada pelo fato
do ―quão difìcil é encontrar, em nossa cultura atual, novas formas de nos fazer ver o mundo
de modo distinto‖7. Na visão de Danto, a ideia dos readymades inaugurou uma nova seara
conceitual, crítica e artística no mundo da arte. Marcel Duchamp marcou a história da arte
com os readymades. A reação pouco progressista de ambos os grêmios parece mesmo ter
sido canalizada positivamente por Duchamp, que interpôs à rejeição e à recusa
antidemocrática a criação de uma série de readymades, explorando uma nova seara de
objetos artísticos8. Os artistas que seguirão os passos iniciados por Duchamp radicalizariam
sua mensagem. Estavam estabelecidas as coordenadas para um novo rumo na arte – e os

5
DUCHAMP, Marcel. Sobre os readymades, idem.
6
ZUCKER, Steven. Art as concept: Duchamp, In Advance of the Broken Arm. A conversation with Sal
Khan & Steven Zucker. Vídeo disponível online: https://www.khanacademy.org/humanities/art-1010/wwI-
dada/dada1/v/duchamp-s-shovel-art-as-concept Acesso em 30/09/2015, às 00:35. [Tradução simultânea
pessoal para estudos].
7
ZUCKER, Steven. Why is this art? Andy Warhol, Campbell's Soup Cans. Vídeo disponível online:
https://www.khanacademy.org/humanities/art-1010/pop/v/andy-warhol-campbell-s-soup-cans-why-is-this-art
Acesso em 30/09/2015, às 00:35. [Tradução simultânea pessoal para estudos].
8
E muito embora estes ―objetos prontos‖ possuìssem um poder criativo enorme, Duchamp pondera: ―percebi
muito cedo o perigo de repetir indiscriminadamente esta forma de expressão, e decidi limitar a produção dos
readymades a um pequeno grupo anual‖. Duchamp In: 8 DUCHAMP, Marcel. Sobre os readymades. 1961,
p. 4.

17
artistas estadunidenses (bem como os radicados nos Estados Unidos) se responsabilizariam
pelos primeiros desenvolvimentos deste novo tempo.

Arthur Danto teve, antes da carreira como filósofo e crítico de arte, uma carreira artística
com relativo sucesso profissional com gravações, xilogravuras e metalogravuras, embora,
conforme ele mesmo diz, possuísse uma ―concepção um pouco romântica [acerca] da
pintura‖, como ―a maioria dos artistas dos anos 50‖ 9, comprometido com os ―mais altos
ideais da pintura‖ 10 . Formado na escola filosófica analítica dos Estados Unidos, Danto
sofreu um verdadeiro arrebate com as obras da arte pop. Em avaliação do próprio Danto:
―minha primeira reação [ao ver a arte pop] foi de indignação‖ [...] ―e a verdade é que minha
vida mudou completamente depois de contemplar‖ O beijo, de Lichtenstein, e: ―em 1964,
as embalagens de papelão de Andy Warhol [...] me deixaram estupefato‖ 11, ―basta dizer que
fiquei pasmo‖12.

Muito embora as primeiras experiências de Danto com a arte pop em 1960 tenham levado à
conclusão ―de que aquilo não era arte‖, parece razoável dizer que este encontro com a pop
arte e a arte conceitual é o evento que motivará a guinada mencionada pelo filósofo:
―minhas ideias haviam se originado do confronto direto com os acontecimentos [...] da arte
nova-iorquina da década de 60, [suscitando] questões nunca antes levantadas na
filosofia‖ 13 . Em Andy Warhol: Arthur Danto – livro que é o ―reconhecimento de uma
dìvida‖ –, o filósofo revela: ―[...] acho necessário explicar a importância que ele [Warhol]
teve para mim‖. Ele continua: ―Ver sua segunda exposição na Stable Gallery, em abril de
1962, foi para mim uma experiência transformadora. Fez com que eu me tornasse um
filósofo da arte‖ 14 , ―sem Warhol eu jamais teria escrito A transfiguração do lugar-
comum‖15, emenda. ―Os trabalhos apresentados [nas exposições de Andy Warhol na Stable

9
DANTO, Arthur. A Transfiguração do lugar-comum, p. 15.
10
Ibdem, loc. cit.
11
DANTO, Arthur. A Transfiguração do lugar-comum, p. 16.
12
DANTO, Arthur. Andy Warhol, p. 12.
13
DANTO, Arthur. A Transfiguração do lugar-comum, p. 13.
14
DANTO, Arthur. Andy Warhol: Arthur Danto, p. 12.
15
Ibdem, p. 15.

18
Gallery em 1962 e 1964], pareceram-me exigir da filosofia da arte uma abordagem
radicalmente nova‖16.

Morris Weitz, um dos primeiros filósofos analíticos da arte, argumentou, à maneira anti-
filosófica comum à época da publicação de The Role of Theory in Aesthetics (1956), que
as sucessivas falhas de artistas e estetas em definir a arte devem-se ao fato de ―a arte não
[ser] suscetìvel de definição‖ 17 . É possível que Weitz estivesse um pouco desorientado
frente à variedade de obras de arte propostas na época. Além da perspectiva positivista-
lógica, a crítica à metafísica da presença e o pragmatismo endossavam a perspectiva de
uma morte da filosofia 18 . Questionava-se diretamente a aptidão da filosofia para
empreendimentos cognoscitivos à maneira essencialista. Em última instância, questionava-
se a própria filosofia como atividade séria. Quanto à sua aptidão para tratar a arte
conceitualmente, não seria diferente. Weitz desenvolve os vaticínios quietistas de
Wittgenstein, ―mas não há dúvidas de que um desânimo geral acerca do estado da arte
contemporânea possa ter pontuado sua conclusão‖19. A absoluta pluralidade e liberdade de
tudo poder ser arte parece inviabilizar – ou ao menos questionar – ―a ideia de que algo é
uma obra de arte porque compartilha com outros de seu tipo uma essência comum‖ 20. No
entanto, o filósofo da arte é desafiado a forjar um método desde as origens, consciente do
estado da arte e convencido de sua relevância teórica. Desde esta perspectiva radical, um
―fim da arte‖ seria na verdade uma consequência estatutária para o filosofar, consequência
mesmo do fim da filosofia, de sua morte.

Morris Weitz afirma inicialmente que a ausência de qualquer propriedade necessária da arte
inviabiliza a conjunção entre esta e uma propriedade suficiente21. Na melhor das hipóteses,
o que a classe de obras de arte nos apresentaria seria uma semelhança de família. À

16
Ibdem, p. 8.
17
WEITZ, Morris. The Role of Theory in Aesthetics (1956). Disponível em: <
http://criticanarede.com/fil_teoriaestetica.html>. Acesso em: 2 junho 2011. Artigo originalmente publicado
em The Journal of Aesthetics and Art Criticism, XV (1956), 27-35. Texto disponìvel também em D‘OREY,
Carmo (org.) O Que é a Arte? A Perspectiva Analítica. Tradução de Vítor Silva e Desidério Murcho. Lisboa:
Dinalivro, 2007.
18
Cf. D‘AGOSTINI, Franca. Analíticos e continentais, Primeira Parte, 1- Fim da filosofia, p. 44-88.
19
DAVIES, Stephen. Weitz's Anti-Essentialism, pág. 63; In: LAMARQUE, Paul; OLSEN, Stein (ed.).
Aesthetic and the Philosophy of Art: the analitic tradition. Oxford: Blackwell, 2004, p. 63-68.
20
DAVIES, Stephen. Weitz's Anti-Essentialism, p. 63; Idem.
21
Todos estes argumentos serão retomados com mais vagar na seção dedicada à discussão da ontologia e
definição de obras de arte de Danto, que faz um retrospecto desta discussão.

19
filosofia restaria apenas uma ―terapia‖ conceitual, bastante restrita. Consequentemente, na
relação entre arte e filosofia, o papel da teoria é não-definicional, desempenha um papel
apenas descritivo. Contudo, de um ponto de vista wittgensteiniano, a estética desempenha
um papel transcendental conforme fora definido por Wittgenstein, isto é, como aplicação
crítica de um sistema: ―assim como a lógica, a ética e a estética baseiam-se em uma
experiência MÍSTICA: admirar-se não de como o mundo é, mas antes que ele seja.
[Quando se tem essa experiência, vê-se] o mundo de fora, como um 'todo limitado'‖ 22 ,
numa ―percepção do mundo sub specie aeterni‖23. Porquanto o papel da teoria da arte para
Morris Weitz é não-definicional, não-essencialista, o papel possível à estética seria a
caracterização das semelhanças de família.

Ora, Arthur Danto parece seguir os passos de Duchamp quando busca dar à arte
contemporânea um significado filosófico, ao mesmo tempo em que vê nela a origem avant
la lettre de um novo tempo que fora inaugurado na arte. Nesse sentido, Danto pode ser
compreendido como filósofo e crítico de arte cujos esforços estão consagrados à análise e à
interpretação dos movimentos e da significação da arte em sua era mais recente. Talvez
possamos dizer – e de fato há quem diga – que, assim como Clement Greenberg foi eleito o
crítico da arte modernista, analogamente Arthur Danto estaria à procura de atender à
demanda de preencher a lacuna de um crítico para a arte contemporânea. Para este crítico e
filósofo da arte contemporânea, a arte entra em um momento completamente novo e
irreversível após os readymades, donde surgirão consequências significativas, não só para a
arte ela mesma, como também para a filosofia e, portanto, para a estética24.

O uso artístico de materiais não convencionais (non-standard materials)


certamente remonta aos ready-mades de 1915-1917 de Duchamp, e embora eu
suponha isso como parte da revolução que ele levou a efeito, a distinção entre
materiais convencionais e não-convencionais desapareceu do pensamento crítico
atual. Do mesmo modo que o conceito de gosto desapareceu da avaliação crítica
de obras de arte. Essas duas conquistas (ou desastres segundo Jean Clair) estão
interligadas. Duchamp, sozinho, demonstrou que é inteiramente possível algo ser
arte sem ter qualquer relação com o gosto, bom ou ruim. Assim ele pôs um fim
naquele período do pensamento e da prática estéticos comprometidos, para usar

22
GLOCK, Hans- Johann. Dicionário Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 139.
23
Ibdem, p. 12.
24
Em linhas gerais, esta é a conhecida interpretação de Danto sobre a significação de Duchamp, aqui
apresentada para discutir o estatuto da estética.

20
um dos tìtulos de David Hume, com o ―Padrão do Gosto‖ (The Standard of
Taste)25.

A filosofia da arte de Arthur Danto procurou responder à altura à novidade da arte


contemporânea interpretando-a como significado diferenciado na história recente da arte.

Danto não só rubrica as asserções e o espírito avant la lettre de Marcel Duchamp, mas
também acredita que elas se efetivaram e que, de fato, inauguraram um novo tempo na arte,
conquistando inúmeros prosélitos, gente comprometida com a elevação reflexiva da arte – a
despeito dos revezes iniciais. Acima de tudo as atenções filosóficas de Danto recaem sobre
a significação inaugural dos readymades: todas as intenções de Duchamp com estes objetos
prêt-à-porter se efetivaram e, na visão de Danto, se impuseram de tal forma que uma
espécie de antiestética26 teria se tornado prática corrente e a própria realidade do mundo da
arte após (e principalmente nos) os anos 60. Esta é uma realidade completamente nova
dentro do panorama filosófico em sua relação com a arte. Uma situação em que a filosofia é
obrigada a rever sua clivagem com a arte.

Após Duchamp, poderia-se em princípio fazer arte de qualquer coisa. A era da


terebentina e do gosto tinha chegado ao fim. A era de encontrar uma definição de
arte para substituir a baseada no prazer estético tinha começado 27.

A tarefa definicional e normativa da estética deve ser descontinuada em favor de uma


reflexão ontológica e histórica acerca da arte após o seu fim. Resta saber como será o
desempenho da filosofia nesta nova fase e, principalmente, as repercussões destas para a
estética. Esta é a tarefa que nos toca.

O alinhamento do pensamento filosófico-crítico de Arthur Danto ao artístico-teórico de


Marcel Duchamp – e de Andy Warhol, na esteira revolucionária inaugurada por Duchamp –
se deixa perceber quando se evidenciam elementos relacionados, tal como, no pensamento
de Duchamp, a ideia de readymade que demonstraria uma equivalência entre o objeto do

25
DANTO, Arthur. Marcel Duchamp e o fim do gosto: uma defesa da arte contemporânea, pág. 21. In:
ARS (São Paulo), São Paulo, v. 6, n. 12, p. 15-28, Dec. 2008. Access on 10 Apr. 2017. Available from
http://dx.doi.org/10.1590/S1678-53202008000200002.
26
Enquanto Duchamp designa por ―anestesia‖ a intenção de os readymades não causarem qualquer deleite
estético, a consequência global de não podermos identificar o conceito de arte através de qualquer concepção
estética é designada por Danto pela expressão ―antiestética‖. Optamos por esta grafia tendo em vista sua
consagração em comentadores internacionais (James Meyer e Toni Ross) e a ocorrência de conceito com
grafia semelhante em outros filósofos.
27
DANTO, Arthur. Marcel Duchamp e o fim do gosto, p. 24.

21
mundo da arte e o do mundo da vida, e de Arthur Danto (na Transfiguração do Lugar-
Comum, principalmente), que argumenta sobre a possibilidade de obras de arte consagradas
possuírem equivalentes físicos idênticos, embora sendo meras coisas reais, dando vazão
assim ao argumento dos indiscerníveis em arte. Soma-se a isso a noção de readymade
recíproco proposta por Duchamp. Esta possibilidade artística que consiste em reverter
objetos do mundo da arte para o mundo da vida, ―usa[ndo] um Rembrandt como uma tábua
de passar!‖, por exemplo, evidencia claramente o apagamento nos limites entre arte e vida,
conforme salientou Danto. Deve-se atentar, pois, ao método aplicado pelo filósofo para dar
cabo às questões ontológicas levantadas pela chamada arte contemporânea. Cito Danto:

Em 1964, as embalagens de papelão de Andy Warhol (...) me deixaram


estupefato. Aceitei-as prontamente como arte, mas depois me perguntei por que
aquelas caixas eram arte enquanto as embalagens comuns dos supermercados não
eram. Compreendi então que esta dúvida tinha a forma de um problema
filosófico28.

Referindo-se àquela figura que se tornou quase uma obsessão filosófica para Danto – Andy
Warhol-, fica estabelecida claramente a ligação entre readymades e indiscerníveis. Mais:
fica clara qual viria a ser a questão central da arte a partir de Duchamp. Os indiscerníveis
em arte sugerem que qualquer que seja o elemento distintivo entre uma obra e uma coisa
muitíssimo parecida com ela, este elemento não é aparente e, portanto, sua natureza não é
perceptiva. O problema filosófico levantado pela arte teria a forma da indiscernibilidade, a
qual se supõe ser exequível tratar a aparente indiferença entre dois objetos a partir da
assunção de que a característica definidora residiria em algo para além daquilo que os torna
em tudo perceptivamente iguais29. Saber quando um objeto, em tudo parecido com outro,
mas que não compartilha com ele a mesma natureza, é uma obra de arte, é claramente uma
empreitada conceitual e um chamado ao trabalho filosófico; uma questão na qual a
28
DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum, p. 16.
29
Esta pressuposição metodológica, presente nos indiscerníveis, permitiria garantir à filosofia uma espécie de
―relação privilegiada‖ para lidar com a problemática artìstica. É uma defesa da filosofia e também um
reconhecimento de direitos de a arte filosofar: ―De repente, na arte avançada das décadas de 60 e 70, arte e
filosofia estavam prontas uma para a outra. De fato, repentinamente elas precisavam uma da outra para se
diferenciarem‖ (Cf. DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum, p. 26). Como sabemos, Danto rejeita
a teoria institucional da arte (para ele, uma teoria incompleta e que erra o alvo ao interpretar o contexto como
instituição (sociologismo) e, ainda, por se apegar num pretenso papel da apreciação estética para a ontologia
das obras de arte). Danto nega também qualquer incursão das ciências naturais nesta seara: ―Existem trinta
versões conhecidas da obra Census in Bethlehem, de Pieter Bruegel, as quais formariam uma exibição
maravilhosa se expostas juntas. Entretanto, não há qualquer conexão entre aquilo o que uma ressonância
molecular poderia mostrar e aquilo sobre o que as obras são‖. (Cf. DANTO, A. Indiscernibility and
Perception, p. 322).

22
ontologia das obras de arte assume relevância em relação à percepção, à apreciação ou ao
gosto. As questões e categorias da estética tradicional permanecem questões filosóficas,
mas não esgotam a questão filosófica em jogo.

Ao indagar seriamente se a arte é um objeto filosófico de direito, Danto afasta a


possibilidade de a estética dizer algo de informativo sobre a real questão da arte desde seu o
período modernista (a saber, sua natureza). Esta estratégia, contudo, ainda que afaste a
estética da linha de frente das ações da filosofia acerca da arte, não torna clara a resposta
afirmativa acerca da justeza da arte como objeto de investigação da filosofia (que Danto
assume ao cotejar reflexivamente arte e filosofia), apenas (e relevantemente) mostra os
elementos desta relação. Urge mostrar quais questões levam a filosofia até a arte e quais
questões esta última suscita à filosofia em suas investigações, pois:

Não se dá apenas que nem todos os aspectos da arte interessam espontaneamente


à consciência filosófica, e que muito do que torna a arte fascinante, arrebatadora e
importante é não raro irrelevante do ponto de vista filosófico. Além disso, o
filósofo tende a jogar todo o peso do seu sistema de pensamento sobre os pontos
de interseção entre a arte e os demais assuntos de interesse filosófico, e retém da
arte apenas o que é pertinente à sua problemática 30.

Assim, quais as coordenadas do sistema da filosofia de Danto são jogadas sobre a arte e os
demais assuntos que a ele interessam e que, segundo o próprio Danto, ―formam um
conjunto logicamente fechado‖? Ou, noutros termos, qual é a problemática filosófica geral
de Danto? Analisar estas compreensões acerca do método e da atividade filosófica pode
esclarecer se o afastamento e a supressão da estética estão suficientemente fundadas.
Compreender a distância exata estabelecida pela relação entre filosofia e arte permitir-nos-á
esclarecer o lugar da estética neste quadro e a possibilidade de sua volta 31. ―As revoluções
no mundo da arte deixaram as definições bem intencionadas sem quaisquer recursos em
face do arrojo das novas obras de arte‖32, causando não apenas o declínio de um modelo
teórico e a procura por outro; também dinamizaram internamente disciplinas da filosofia no
ímpeto de atender a esta demanda e dar-lhe resposta. Mudou-se a teoria porque se retirou da

30
DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum, p. 100. (Grifos nossos).
31
Ao final de sua carreira, Arthur Danto começa a vislumbrar um lugar onde a estética ainda seja relevante.
No terceiro capítulo esboçamos este aceno de Danto à chamada estética do significado.
32
DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum, Prefácio, p. 26.

23
estética a proeminência em sua maneira de teorizar a arte. Noutras palavras: ―a arte é
filosoficamente independente da estética‖33.

Ainda sobre as paridades artístico-filosóficas, diz Duchamp: ―já que tubos de tinta usados
pelos artistas são manufaturados e produtos ‗readymade‘, poderìamos concluir que todas as
pinturas do mundo são ‗readymades aided‘, bem como trabalhos de assemblage‖34, pois,
como explica Duchamp sobre sua concepção do ato criador, o artista dispõe de um material
que deve moldar, configurar, reorganizar, dar forma, estabelecer, forjar. O ato de
configurar, forjar, instaura a obra, cria a familiaridade entre a intenção e a sua forma
acabada. Ora, apenas com um pouco mais de sofisticação e terminologia filosófica, Danto
parece operar a mesma estrutura ao descrever, no capítulo dois de A Transfiguração do
Lugar-comum, como se dá a identificação artística, a instauração de uma obra, isto é, o
processo através do qual um significado é instanciado num suporte (segundo Danto, uma
estratégia subtracionista da metodologia dos indiscerníveis possibilitaria identificar as
características pertencentes à obra, por um lado, e aquelas pertencentes ao suporte, por
outro).

Enquanto Duchamp define a transmutação como um fenômeno que consiste na


―transformação da matéria inerte numa obra de arte, um transubstanciado real‖ 35 que se
processa (na transmutação o público teria um papel de crítico e de complementação ao ato
criador), Arthur Danto teria um conceito equivalente, o de "transfiguração", segundo o qual
a natureza de um objeto qualquer, por ser arte, se eleva a outro patamar, a despeito da
similitude dele com outro objeto36.

Michael Gerald Lafferty concorda que o uso de readymades desobriga o domínio da técnica
artística e, neste sentido, o aspecto relevante está na proposição de algo como arte. No
entanto, ele questiona a escolha terminológica de Danto pelo conceito de transfiguração em
lugar de transubstanciação, uma vez que, segundo a metáfora cristã do sacramento da

33
DANTO, A. A future for Aesthetics, pág. 109. In: Francis Halsall, Julia Jansen & Tony O'Connor
(eds.), Rediscovering Aesthetics: Transdisciplinary Voices From Art History, Philosophy, and Art Practice.
Stanford, California: Stanford University Press, 2009, p. 103-116.
34
DUCHAMP, Marcel. Sobre os readymades. 1961, p. 4.
35
DUCHAMP, Marcel. O ato criador. 1965, p. 2.
36
LAFFERTY, Michael Gerald. Danto‟s Theory of Art, p. 47. (Tese de doutoramento do Departamento de
Filosofia da Warwick University). University of Warwick, Department of Philosophy, 2006. Repositório
online: http://go.warwick.ac.uk/wrap/42211 . Último acesso em 04/12/2016.

24
eucaristia, embora o pão e o vinho permaneçam os mesmos, a crença cristã compreende que
as suas essências se transformaram no corpo e sangue de Cristo. Com efeito, ―o processo é
similar com os objetos cotidianos; sua aparência não mudou, embora eles tenham sido
transubstanciados em obra de arte. É sua essência, não sua aparência que mudou‖37 . A
teoria essencialista da arte de Danto focaliza a dimensão que ultrapassa a perceptiva e que,
desvendada, talvez explique o modo mediado como vemos uma obra. Talvez isso explique
a preferência terminológica de Danto, já que transubstanciação refere-se à mudança da
essência subjacente, não da aparência do objeto transubstanciado. Portanto, transfiguração
torna mais complexo compreender que o que está em jogo é o significado (o conteúdo
representacional) como o elemento responsável pela forma como compreendemos e
lidamos com obras de arte, objetos cotidianos, dentre outros. Assim, seria interessante
especular em que medida a adoção da transubstanciação como terminologia central da
filosofia da arte danteana poderia influenciar, modificar ou arrefecer os impactos sobre o
desincentivo à estética, talvez até mesmo encaminhar tal vaticínio negativo (que vigora em
obras como Após o fim da arte e, especialmente, em A Transfiguração do lugar-comum) a
uma positivação, conforme ocorre em textos como Embodied Meanings, Isotypes and
Aesthetical Ideas, ou The Future of Aesthetics.

A despeito disso, os readymades de Duchamp consistem em escolher um artigo da vida


comum, um ato que redireciona a importância colocada sobre a necessidade de domínio de
uma técnica de produção: ―[...] se o Sr. Mutt fez ou não a fonte com suas próprias mãos,
isso não tem importância. Ele a ESCOLHEU [...] arranjou de forma que seu significado
utilitário desaparecesse sob um novo título e um novo ponto de vista - criou um novo
pensamento para este objeto‖38. Para Danto, comme mème, os readymades, e a arte herdeira
deste episódio, por consequência, lançaram um desafio filosófico incrível: discutir a
possibilidade do apagamento da fronteira entre arte e vida, e entre arte e filosofia, desafio
este que teria alçado a arte a um nível reflexivo filosófico nunca antes visto.

Com efeito, assim como para Duchamp a escolha, o arranjo, a reconfiguração do


significado utilitário e a criação de um novo pensamento para o objeto da vida comum
muda o seu estatuto, para Arthur Danto a interpretação filosófica correta seria aquela
37
Ibdem, p. 38.
38
DUCHAMP, Marcel. O caso Richard Mutt. 1917, p. 4.

25
segundo a qual os fatos são subdeterminados por teorias, por uma atmosfera conceitual,
cultural invisível – o que significa dizer que o estatuto de algo muda se mudou também o
pensamento sobre ele. Mais uma vez, esta conclusão é sustentada pelo argumento dos
indiscerníveis e é uma das mensagens de A Transfiguração do Lugar-comum: não é
possível que objetos aparentemente idênticos possuam naturezas idênticas em contextos
intensional/intencional e extensionalmente diversos.

A tendência igualitária a que tende a inclinar-se aquele que procura considerar o


―coeficiente artìstico‖ antes de empregar adjetivos como ―bom‖, ―ruim‖ ou ―indiferente‖
amplia tal consideração para além daquilo que se convencionou chamar a grande arte.
Conforme Marcel Duchamp afirma em O ato criador, de 1965, ―a arte pode ser ruim, boa
ou indiferente‖, pois ―arte ruim, ainda assim, é arte, da mesma forma que emoção ruim
ainda é emoção‖39. Arthur Danto procurou levar às últimas consequências aquilo a que
chamou ―igualitarismo em arte‖ ao desenvolver, no campo filosófico, o conceito de
pluralismo. Neste tocante, entretanto, compreendemos que os posicionamentos pluralista e
igualitarista encontram na figura de Warhol sua melhor representação. Na prática de Danto,
enquanto crítico de arte, também é possível perceber o esforço que busca superar os
ímpetos de avaliações críticas polarizadas, a exemplo dos modelos modernistas de Clement
Greenberg, Roger Fry, dentre outros.

Finalmente, não deixa de ser interessante notar que a analogia (irônica) é o tropo retórico
escolhido por Duchamp para rebater as acusações de imoralidade e plágio: ―a fonte do Sr.
Mutt não é imoral, isso é absurdo, não mais do que uma banheira é imoral‖ 40 . O que
garantiria a identidade da fonte de Mutt/Duchamp frente a um símile seria a nova posição
que ocuparia no quadro ontológico, respeitando o reenfoque teórico operado (isso valendo
tanto para Duchamp quanto para Danto).

Retomando os elementos acima relacionados, os readymades que, enquanto objetos


artísticos, suscitam indiscernibilidade perceptiva são instaurados pelo ato de criação que
cria algo, porque de fato transmuta significado. A aproximação que se dá, por conseguinte,
entre arte e vida, a reação do público imperativamente direcionada ao coeficiente artístico,

39
DUCHAMP, Marcel. O ato criador. 1965, p. 2.
40
DUCHAMP, Marcel. O caso Richard Mutt. 1917, p. 4.

26
não à camada sensual de uma percepção estética, levam público, artistas, curadores,
críticos, etc., a finalmente ampliar o horizonte teórico do mundo da arte para uma gramática
crítica e filosófica em que a obra seja antes tratada como tal, inaugurando o que Danto
chamará de pluralismo artìstico, uma espécie de ―significação polìtica‖ igualitária, pois
―tudo pode ser arte‖, inclusive a arte que não se candidata a atender a qualquer gratificação
estética. Por tudo isso, podemos dizer que Duchamp declara a preponderância do
coeficiente artístico, da qualidade artística de uma obra em detrimento da contemplação
estética.

A conclusão a que Danto chega, com o novo tempo que a arte conduziu sua própria história
após a década de sessenta, é também de que a noção de qualidade artística possui uma
gramática mais adequada à descrição e interpretação das obras de arte e do mundo da arte
do que o viés estetizante propunha. Para a estética – o que quer que Danto compreenda com
esta noção – foi vaticinado um futuro ou de desuso ou, ao menos, de uma necessidade
premente de revisão frente à relativização radical a que parece obrigada a se submeter. Se a
arte contemporânea compreendeu que pode existir sem ter de atender a quaisquer
expectativas de deleite estético, resta à filosofia mostrar que pode continuar o seu trabalho
conceitual sem depender da estética. A noção de estética com a qual Danto trabalha em A
Transfiguração do lugar-comum aproxima-se do padrão sensível de gosto e da experiência
de deleite sensível. Resta saber as razões que levam a esta conclusão, bem como se são
suficientes os elementos subentendidos que balizam o método utilizado para chegar a tão
negativa conclusão sobre a estética.

Em parte, esta conclusão se deve à noção de descredenciamento – princípio ao qual Danto


foi fiel. Seguindo as consequências desta ideia, o melhor que a filosofia da arte tem a fazer
é acompanhar, um tanto a posteriori, num ―voo de minerva‖, as modificações, cumulações
e clivagens ocorridas no mundo da arte. Se a filosofia da arte pretende dizer algo
significativo sobre a arte, ela deve abdicar do espírito descredencializador e, aprendendo a
reprojetar sua função crítica e sua análise estética, acompanhar a revolução teórica da arte,
que seria uma revolução autorreflexiva à maneira da filosofia. Obviamente, este
comportamento reconhece as credenciais da arte em relação ao estabelecimento de seu
próprio estatuto.

27
No artigo O Mundo da Arte, de 1964, Arthur Danto diz que a arte pós-impressionista,
através dos readymades, ―celebrou uma vitória na ontologia‖41 que deixou clara a natureza
(teórica) da arte e que, portanto, tal condição superaria o estado de indigência e
dependência estatutária frente à filosofia. No entanto, esta vitória, que significa a
autonomia real da arte frente a discursos descredencializadores, repercute sobre a filosofia
de maneira a exigir que esta renuncie a qualquer discurso profético sobre a história da arte
ou outra narrativa que pretenda encarcerar a arte em uma armadilha de minoridade
ontológica ou prática. A autonomização da arte significaria, para a destinação teórica da
filosofia em relação à arte, sua prática e significação, uma revisão da condição e da
natureza da análise e do discurso filosófico sobre a arte ou pelo menos uma compreensão
reflexiva de sua peculiaridade frente a arte enquanto objeto de investigação. Assim, a
estética filosófica deverá ser preterida à terceira posição, ocupando, pois, a filosofia da arte
a dianteira, que seria seguida pela crítica de arte, posicionada em segundo lugar. Desta
maneira, estaria estabelecida corretamente a relação com o mundo da arte. A autonomia da
arte exige da filosofia um discurso cogente, mas esta sobriedade discursiva poderá ser
alcançada somente se reconhecida a maioridade autorreflexiva da arte. Dito em outras
palavras, a autonomia da arte frente ao discurso descredencializador é de tal forma
autêntica, que oferece à filosofia ocasião de rever sua relação com a arte, sua aptidão à
reflexão sobre tal tema (dentre outros); e oferece, portanto, ocasião à estética,
especificamente, o referido desafio radical. ―Decifra-me, ou te engulo‖, protesta a arte
frente à estética, intimidada.

Para mim, a descoberta filosófica de Duchamp foi que a arte pode existir, e a
importância disso foi que ela não tinha qualquer distinção estética sobre a qual
falar, em um tempo em que, acreditava-se, o deleite estético era tudo sobre o que
a arte era. (...) Ele aclarou a atmosfera filosófica para que se pudesse reconhecer
que, desde de que a arte a-estética possa existir, a arte é filosoficamente
independente da estética. Isso é uma descoberta significante somente para
aqueles que, como eu, estavam preocupados com uma definição filosófica da
arte. (...) A questão era se a diferença entre a arte e a realidade pode consistir em
tais diferenças detectáveis. Eu penso que não, mas desde o início minha
estratégia foi descobrir como pode haver diferenças que não fossem diferenças
perceptíveis. Minha ideia era que deveria haver uma teoria da arte que pudesse
explicar a diferença (...) Minha opinião era que deveria haver razões para chamar
a Brillo Box de arte42.

41
DANTO, A. O mundo da arte. Revista Artefilosofia, Ouro Preto, n.1, p. 13-25, jul. 2006, p.16.
42
DANTO, A. A future for Aesthetics, p. 109. (Grifos nossos).

28
Ironicamente, a ―descoberta filosófica de Duchamp‖ e a contribuição decisiva de Andy
Warhol tornariam ―problemática até mesmo [a] suposta indefinibilidade da arte‖43 por parte
da filosofia, conforme reivindicam Wittgenstein e seus seguidores em filosofia da arte. A
diversificação ocorrida na classe de obras de arte foi tamanha que o acesso de forma direta
se tornou inviável. Como se fosse necessário, os modos de apresentação das obras se tornou
absurdamente complexo, problematizando até mesmo a relação – até então decidida – entre
arte e filosofia, conforme preconizou o quietismo wittgensteiniano a respeito da
possibilidade, e mesmo necessidade, de a filosofia definir a arte. Em outros termos, Danto
interpreta a autonomização radical da arte como um desafio ao vaticínio daqueles filósofos
analíticos da arte que questionavam a investigação essencialista. Danto, como um deles,
aponta para a estética como a mais atingida, mas propõe que é viável outra abordagem.

Por um lado, a filosofia deverá readequar a importância e finalidade das áreas de


investigação destinadas à arte, pois são ―maus tempos para a estética‖; por outro lado, não
devemos nos esquecer que a filosofia da arte de A Transfiguração do Lugar-comum está
fortemente situada no contexto da filosofia analítica. Havia, portanto, um duplo desafio:
superar o desafio que vinha da arte autoconsciente e o impedimento que ainda ecoava no
contexto analítico, vindo da antifilosofia de Wittgenstein. Se Weitz tem ou não razão, a
questão é que Danto teria agora dois problemas, mas que podem ser resumidos num único
obstáculo: mostrar o que pode a filosofia dizer de relevante e de informativo sobre a arte,
uma vez que o próprio Arthur Danto bloqueou o discurso estético. Se a estética está
impedida de seu labor definicional, de quais razões filosóficas pode Danto lançar mão para
defender a operação de uma filosofia da arte?

É inegável o impacto que a arte vanguardista e pós-vanguardista (principalmente)


imprimiram sobre a filosofia da arte, seja ela "analítica" ou não. A filosofia de Arthur
Danto foi edificada sobre este episódio e buscou desenvolver suas significações. A questão
"o que é a arte?" elevou a questão "como podemos definir a arte?" até o patamar reflexivo
no qual a filosofia se preocupa com as estratégias adotadas e os locais e tipos de pistas
procurados para lograr sucesso em tais empreendimentos. A questão, dinamizada
internamente ao mundo da arte sobre o seu quid, replica à filosofia a questão pelo seu

43
DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum, Prefácio, p. 26.

29
próprio quid. A conquista da autoconsciência da arte oferece um duplo desafio à filosofia,
que deve se empenhar em encontrar métodos imunes à nova série de obras criadas e não
pode mais, num tom de arrogante supremacia, prescindir da arte para saber qual tipo de
atividade é a filosofia e o que cabe a cada uma de suas subdisciplinas: ―[arte e filosofia]
precisa[am] uma da outra para se diferenciarem‖44.

No entanto, como a arte é o produto do que a filosofia projeta sobre ela (ou, melhor
dizendo, ―a maneira como sistematicamente um filósofo chega a compreender a arte‖),
iremos a seguir efetuar o que se provou necessário e útil desde as últimas páginas: mostrar
o sistema de filosofia pressuposto por Danto, a maneira como ele compreende a atividade
filosófica, como e por que se dá a implicação da arte na agenda da filosofia e, por fim, os
efeitos, as analogias e as co-implicações sistêmicas entre coordenadas metafilosóficas e a
definição da arte. Se, contra os impedimentos antidefinicionais, existe um lugar no qual a
filosofia se torna possível e imprescindível, em que consiste o fundamento sistêmico (e
sempre idiossincrático) da reflexão filosófica sobre a arte? Essa definição da arte, que se
pretende teórica, não comprometida com qualidades sensoriais, tem razões profundas e
paralelos interessantes; e, como sabemos, ela significa o afastamento (e em uma situação
honestamente ambígua) da estética da arte. Por conseguinte, de qual mal a estética sofre,
mas que não atinge a filosofia da arte? Adiantamo-nos em dizer que a filosofia da arte
danteana, por seu pretenso fundamento ontológico, não está fundada sobre termos
observacionais. Assim, a filosofia da arte é dotada, desde o início, de uma intuição gerativa,
sistêmica, de qualidades que faltam à estética. Estas razões metafilosóficas e sistemáticas
que afastaram a estética do contato (por que não dizer, do domínio?) privilegiado que teria
com a arte foram decisivas para a postura de Danto em sua reflexão sobre a arte. Assim,
vale a pena apresentá-las e analisá-las.

1.2 - A concepção filosófica de Danto


Como justificar a filosofia frente à autonomização de seu objeto ou frente ao discurso
antifilosófico? Nesta perspectiva, o que vem a ser a filosofia? Como distinguir arte e

44
DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum, p. 26.

30
filosofia, se a autonomia da arte se efetivou graças à conquista de uma autoreflexividade
compatível com a filosófica?

Como nota Danto, é um ―fato surpreendente que haja uma disciplina cuja natureza é um
problema interno para ela mesma‖45. Mas reflexividade ou auto-referencialidade não são
características apenas da filosofia – há poemas sobre poesia, filmes que versam sobre o
cinema e uma forma de arte que passou a perseguir obstinadamente sua identidade. Para
Danto, ―...a arte evolu[iu] de tal forma que a questão filosófica de seus status quase se
converteu em sua própria essência‖46. Em todo o caso, como nota Óscar Nudler, para a
filosofia ―a reflexão sobre sua própria condição é um componente constitutivo‖47, enquanto
que, se na física é perguntado o que é o tempo, abandona-se neste instante a ciência natural
e se põe a filosofar. Seja em questões ―internas‖ (acerca do método, da sua história ou da
linguagem) ou em questões ―externas‖ (acerca das relações entre filosofia e outras esferas
do saber), a questão que se coloca a filosofia a respeito de sua própria natureza não a faz
evadir-se de seu domínio – antes, constitui o seu ofício.

A despeito da centralidade da questão, nem todos os filósofos se dedicaram à pergunta


direta e detidamente; praticaram, isso sim, uma concepção tácita ou não sistematizada. ―O
trabalho filosófico revela, de forma ativa ou passiva, a ideia de filosofia que o inspira‖ 48.
Mas mesmo entre aqueles que das concepções metafilosóficas se ocuparam, não há
compreensão unânime. Danto se dedicou à questão pelo menos duas vezes 49 , e levou
adiante esta prática refletida. É possível encontrar, na quase totalidade de sua obra, uma
reflexão metafilosófica (destaque especial aos escritos que tratam da arte e que relacionam,
de maneira relevante para nós, arte e filosofia). ―[S]eja qual for o objeto do meu
pensamento, aprendo ao mesmo tempo sobre o objeto e sobre o próprio pensamento‖ 50,
recorda-nos Danto. Esta ―simbiose lógica entre a filosofia e seu(s) objeto(s)‖ pode,
especialmente no caso da filosofia da arte de Danto, dar a conhecer ―sua própria imagem no

45
DANTO, Arthur. What Philosophy Is : a guide to the elements. New York: Harper & Row, 1968, p. 2.
46
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 101. [Grifos nossos].
47
NUDLER, Óscar (ed.). Los problemas de la filosofía de la filosofía. Madrid: Editorial Trotta, 2010, p. 20.
48
Ibdem, p. 21.
49
Há dois escritos dedicados exclusivamente ao assunto: What Philosophy Is (1968) e Connections to the
World: The Basic Concepts of Philosophy (1989/1997).
50
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 99.

31
espelho‖51 ao propor uma definição de arte. Contrariando Wittgenstein (mas, ainda assim,
mantendo um debate próximo ao vienense), a proposição desta definição estabelece uma
relação entre filosofia da arte e a arte ela mesma, na visão de Danto, possível a despeito do
quase apagamento das fronteiras entre arte e filosofia. Faz-se necessário evidenciar porque
a arte oferece problemas, isto é, esclarecer as vias através das quais ―a arte se presta
espontaneamente ao tratamento filosófico‖ 52 , e que tornam a filosofia da arte possível,
portanto. Esta simbiose, pois, é a especificidade do sistema danteano: as suas concepções
sobre a arte são, em alguma medida, as suas concepções de filosofia.

1.2.1- Gênese dos problemas filosóficos

Conforme explica Paul K. Moser, metafilosofia é uma teoria sobre a natureza da filosofia.
Consiste num discurso de segunda ordem (meta) que busca identificar os objetivos,
métodos e pressupostos de uma atividade filosófica. Os tópicos tradicionais desta
investigação versam acerca das condições que tornam um discurso filosófico e não outra
coisa, além das condições sob as quais um discurso filosófico de primeira ordem seja
significativo, verdadeiro ou mesmo desejável. A epistemologia, a ontologia e a ética são as
disciplinas filosóficas que tradicionalmente figuram em investigações metafilosóficas, que
teorizam acerca da natureza e fundamento/validade do conhecer, do ser e dos valores, a fim
de determinar o objetivo, o método e os pressupostos de uma dada teoria do conhecimento,
ontologia, ética ou estética53.

Neste sentido, como Danto justifica a distinção entre filosofia e arte? Em que medida a
caracterização da filosofia justifica a ontologia de obras de arte – e não a estética – a
abordagem adequada para a arte? Vejamos como Danto caracteriza a filosofia.

O apelo aos problemas filosóficos como característica absolutamente singular da filosofia –


assim como o apelo à sua história e à questão de seu método – tem sido uma abordagem
bastante usual no debate metafilosófico. Procura-se reunir elementos que caracterizem

51
NUDLER, Óscar. Los problemas de la filosofía de la filosofía. p. 20.
52
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 99.
53
Cf. verbete ‗metaphilosophy‘ In AUDI, Robert. The Cambridge Dictionary of Philosophy. 2 nd Ed.
Cambridge University Press, 1999, p. 561-2.

32
suficientemente o fazer filosófico quanto ao seu objeto, seu itinerário e/ou à forma pela
qual se estrutura seu discurso.

Nöel Carroll lembra a influente contribuição de Danto à metafilosofia: ―de acordo com
Danto, questões genuinamente metafilosóficas surgem quando há uma necessidade teórica
de diferenciar duas coisas que são perceptualmente indiscernìveis‖54. Assim, dirá Danto:
―Os problemas filosóficos originam-se em conexão com pares de indiscernìveis‖ 55 . De
outra forma: problemas filosóficos são bem caracterizados pela indiscernibilidade, isto é,
quando se torna urgente distinguir coisas aparentemente idênticas, mas cujo ser é
radicalmente diverso. Entretanto, como ―nem todo assunto [..] é pertinente [à filosofia]‖ 56,
ela se configura como uma atividade que se debruça sobre problemas, não sobre um
seguimento qualquer de fatos, sendo os problemas filosóficos o ―lugar‖ privilegiado do
exercício da filosofia. Assim, todos os problemas filosóficos são problemas que envolvem
indiscernibilidade ou que pelo menos se deixam tratar em termos de pares de indiscerníveis.

Indo ao cerne da questão, tratar um problema pelo viés da indiscernibilidade significa lidar
com uma diferença interpretada de um ponto de vista essencialista e não-perceptivo.
Conforme nos lembra Carroll de forma muito pertinente, pressupõe-se a ―distinção entre
aparência e realidade‖ 57 , na qual, se a ―necessidade teórica de diferenciar duas coisas‖
nasce apenas quando o par em questão é ―perceptualmente indiscernível‖, a dimensão
perceptual aí é de qualquer forma filosoficamente irrelevante. Nem mesmo se discute
tamanha generalidade e recorrência de equivalências perceptivas. Tampouco é investigada
esta pretensa inexpressividade do perceptivo. Ainda assim – e mesmo por isso –, diz-se que
não há ontologia possível na dimensão perceptiva ao afirmar que a distinção
filosoficamente relevante há de brotar daquilo que em todos os sentidos ultrapassa esta
dimensão. Deve-se ser capaz de determinar o ser, a mesmidade e a alteridade, a despeito do
encantamento exercido pelas semelhanças. Mas como não brota filosofia de qualquer
distinção, sobre qual diferença radical Arthur Danto pretende fundar a filosofia? Qual seja o

54
CARROLL, Nöel. ‗DANTO, Arthur Coleman‘. In: AUDI, Robert. The Cambridge Dictionary of
Philosophy. Second Edition. Cambridge University Press, 1999, p. 204.
55
DANTO, Arthur. Connections to the World: The Basic Concepts of Philosophy. First Edition. University of
California Press, 1997, p. 11.
56
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 99.
57
DANTO, Arthur. Connections to the World, p. 14.

33
fundamento mais longínquo do tão estudado método dos indiscerníveis em arte é o que em
seguida exporemos.

Existiriam em Danto duas classes diversas de distinção, duas maneiras de estabelecer


diferenças: uma ―ordinária‖, digamos, e outra filosófica. Com efeito, diz ele, é vital que
aprendamos distinguir ―entre plantas e animais, entre as diferentes espécies de árvores e
peixes, entre o que é útil e o que é perigoso‖ 58. A ―distinção ordinária‖, que aprendemos
desde tenra infância, opera, como podemos ver na passagem citada, entre coisas (objetos e
animais), fatos e até mesmo sobre conceitos práticos vitais (como plantas venenosas e não
venenosas) e morais (como certo e errado). Trata-se de distinguir entre isto e aquilo.
Contudo, Arthur Danto diz que ―dentro mesmo da experiência, um tipo de distinção entre
aparência e realidade irá naturalmente surgir‖, de tal sorte que ―é importante que sonhos,
imagens, sombras, reflexos e ilusões sejam distinguidas das coisas reais‖59. A possibilidade
do erro e do engano entra na cota mesma que qualquer sistema de filosofia parece reservar
ao funcionamento duvidoso de nosso aparato perceptivo ou sensorial. Mas Danto propõe
que, quanto à ilusão ordinária (engano ocorrido no domínio cotidiano quando tomamos
como mesmo aquilo o que é outro), o equívoco de tomar por real a aparência é dirimido por
simples inspeção da materialidade do objeto que causa a suspeita. Assim sendo, podemos
interpretar a distinção ordinária de Danto como relacionada abertamente a um realismo
materialista. Adota-se a inspeção direta como meio para dirimir o erro, cujo antídoto final é
qualquer coisa de fatual ou perceptivamente disponível.

Não está em questão o que faz com que cada coisa seja o que é ou venha a ser o que é; o
que garantiria que o que parece ser o seja de fato e seguramente. A distinção de que
falamos é operada na (within) experiência. Qualquer ilusão ordinária poderá apelar para os
meios disponíveis (visuais, de competência linguística ou de reconhecimento) para que seja
dirimida. Tratar-se-iam, no limite, de ―defeitos‖ pontuais, nos quais o recurso às distinções
ordinárias estaria disponível. Parece que devemos apenas ser hábeis o bastante para evitar
confusões pontuais, não uma confusão generalizada. Na distinção ordinária, aprenderíamos
a identificar a contento uma coisa com sua ideia, sem que nos enganemos facilmente com
possíveis engodos. Ora, ao que parece, o mencionado salto não é o bastante para nos levar
58
Ibdem, p. 15.
59
Ibdem, p. 16.

34
até aquilo que caracterizará a filosofia mesma, pois estas distinções ocorrem ―sem que
nenhuma delas deem vazão à filosofia‖, mesmo que tais distinções ―forneçam os modelos
de que os filósofos precisarão para suas especulações de que exista uma distinção
comparável entre (beetwen) a experiência e algo mais real que ela‖60.

Assim, embora importante, a distinção ordinária é culturalmente contingente 61, não implica
qualquer problema filosófico e, portanto, qualquer confusão entre o que é da esfera da mera
aparência com aquilo que diz respeito à esfera da identidade mesma (―pictures of animals
and animals themselves‖62, por exemplo) envolve uma ilusão diferente daquela que ocorre
quando filosofias diferentes disputam um ponto. Tratar de aparência e realidade na
―distinção ordinária‖ consiste em uma operação horizontal, isto é, uma distinção que se dá
dentro da experiência mesma. Ou seja, o domínio da experiência mesma (o que quer que
isso signifique para Danto) é o domínio no qual se distingue ordinariamente aparência e
realidade; entre as coisas, fatos e valores práticos e suas ideias, seus conceitos, suas
representações, enfim. Mesmo na ordinariedade, contudo, é sempre algo para além da
experiência (e, portanto, da percepção, conforme caracterizada este domínio) que dirimirá
as ilusões. Este elemento, contudo, é contingente.

Com efeito, parece razoável deduzir do que até aqui explicamos que há uma íntima relação
entre experiência e percepção, de tal forma que o contato com o domínio da experiência se
daria, em parte, através da percepção (as distinções ordinárias completam a interação). É
um tanto difícil, contudo, fixar o que Danto compreende por tais termos – e a percepção
permanece não completamente determinada. Segundo Danto, a experiência é como ―uma
trama de tapeçaria tecida de tal maneira que mundo e sujeito não possam ser separados do
tecido que os une‖63. Assim, talvez possamos dizer que ‗experiência‘ seja compreendida
como ‗experiência diária‘, ‗experiência comum‘, enfim, mais próxima da noção de ‗mundo
da vida‘, principalmente se observarmos que, no Danto de Connections to the World, os
60
Loc. Cit. (grifos do próprio autor).
61
―No curso normal do sono, os sonhos ocorrem (...) e requerem explicações especiais para distinguir sonhos
de memórias que nem todas as culturas possuem: em algumas culturas, acredita-se que os sonhos são apenas
memórias de experiências que temos quando, por algum motivo, abandonamos o corpo ao dormir. E pode
haver poucas culturas em que não haja imagens, e a distinção entre imagens de animais e animais em si impõe
um ônus explicativo aos recursos conceituais de uma cultura.‖ Cf. Connections to the World, p. 16 (grifo
nosso).
62
Loc. Cit.
63
Ibdem, p. xxv.

35
exemplos dados a respeito do domínio a da experiência são bastante triviais. Neste sentido,
o modo como estabelecemos as distinções ordinárias contrapõem-se, sobretudo, ao modo
especializado de fazê-las, filosófica ou cientificamente.

No domínio da experiência, a identidade é determinada por representações e tem nelas o


critério do discernimento entre experiências confusas. Mas não parece ser algo
especialmente preocupante que às vezes nos confundamos. De fato, sobre este assunto,
Danto tende a mitigar o impacto da ilusão, a julgar pela declaração feita no Prefácio à
primeira edição de Connections to the World (1989), segundo a qual a possibilidade e
efetividade do erro em nossa experiência comum é menos importante e dramática do que
normalmente se tem costume de tratar:

A possibilidade de ilusão é um subproduto de nossa arquitetura cognitiva, com


certeza, e a falsidade é um companheiro sombrio da verdade tanto quanto a morte
o é da vida. Ainda assim, se nos satisfazemos com frequência estatística, a
preponderância da verdade sobre falsas representações deve ser espantosamente
grande64.

John L. Austin, que normalmente não costuma ser relacionado à discussão de elementos
que compõem a questão da indiscernibilidade em Danto diz, a respeito do engano advindo
da experiência: ―isso não me leva a suspeitar de que minhas percepções sensórias não
sejam, em geral, dignas de confiança, ou mesmo que possam estar me enganando neste
exato momento‖. Austin acrescenta:

Creio que, na prática, a maior parte das pessoas concorda com John Locke em
que ‗a certeza da existência da coisas in rerum natura, quando temos o
testemunho dos sentidos para nos apoiarmos nela, não constitui apenas o mais
alto grau que nossa constituição física pode alcançar, mas é, também,
proporcional às necessidade impostas por nossa condição‘ 65.

Danto o acompanha ao propor semelhante tese:

Em parte, isso [de haver mais acerto que erro] se deve ao fato de que muito
poucas de nossas traduções cognitivas colidirem com a consciência dos seres que
as definem. Como a maioria do que ocorre no corpo e no cérebro, a vida de
representação ocorre sem que tenhamos consciência de que está ocorrendo. Nossa

64
Ibdem, p. xxi.
65
AUSTIN, John L. Sentido e Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p.14.

36
competência cognitiva básica é um pedaço da herança biológica sobre a maior
parte da qual não exercemos qualquer controle 66.

Seguindo Austin, talvez seja mais correto dizer como o homem comum – não que somos
enganados pelos sentidos, mas que os sentidos é que são enganados (―a rapidez da mão
engana os olhos, etc.‖ 67 ). Neste sentido, o sucesso de nossas representações na vida
ordinária deve-se a uma competência que possui, inclusive, bases materiais
correspondentes. Na medida em que ―pouco das impressões que o mundo nos causa se
torna um registro objetivo de nossa consciência‖, os episódios cognitivos (cognitive
episodes) são sub-pessoais68. Eles são também epistemologicamente defensáveis por sua
eficácia representacional com o mundo, coisa que se percebe estatisticamente. Atualizando
espirituosamente a máxima latina ―Primum vivere deinde philosophari‖, Arthur Danto
acredita ―que isso equivale a dizer que foi uma sorte que o processo evolutivo de nossa
espécie não tenha sido iniciado por filósofos‖, pois somente seria ―biologicamente seguro
filosofar quando tivéssemos nos tornado estáveis enquanto espécie‖ 69. Se o erro fosse em
nós uma constante, parece seguro concluirmos que possivelmente não teríamos vingado
como espécie. Ora, constância estatística e êxito evolutivo são os elementos através dos
quais Danto apresenta sua versão do confiabilismo (reliabilism), tese segundo a qual
podemos justificar externamente nossas crenças epistêmicas sobre o mundo a partir da
eficiência do funcionamento do aparato cognitivo.

Portanto, assim como a natureza teria dado suporte material à nossa espécie para que
filosofássemos, foi necessário que o mundo da vida adquirisse consistência para que a
filosofia pudesse ultrapassá-lo teoricamente. ―A essência da filosofia permanece como
antes – sujeito, representação e o mundo, e especialmente as conexões entre o primeiro e o
último‖, já que, como somos seres cognitivos [cognitive beings], episódios cognitivos são
―um episódio comum e caracterìstico‖, que ―consiste em o mundo nos constrangendo a
representá-lo de uma forma que seja verdade‖70.

66
DANTO, A. Connections to the World, p. xxi.
67
AUSTIN, J. L. Sentido e Percepção, p. 21.
68
Cf. DANTO, A. Connections to the World, p. xxi.
69
Ibdem, p. xxii.
70
Ibdem, p. xxi.

37
Mas qual legitimidade pode requerer uma filosofia representacionalista de inspiração
confiabilista cuja parte significativa de seu objeto é caracterizada como algo sub-pessoal,
isto é, inerte às operações da consciência? É lícita a pretensão de tal filosofia ―espelhar‖ o
mundo, ou deveria ela conceder esta tarefa às ciências e buscar se ocupar de algo mais
edificante? Richard Rorty, oponente imediato de Danto neste ponto, criticou a filosofia
resumida sobre este ponto de vista e recomendou que fosse feito algo ―de maior serventia
humana que [apenas] a análise minuciosa com que diariamente a atividade filosófica tem se
ocupado‖ 71 : ―A implicação da discussão iniciada por Rorty é que a filosofia não teria
nenhum assunto próprio‖ e que melhor seria os filósofos se ―engajarem em alguma
‗conversação edificante‘ com outras disciplinas que tenham produzido um pequeno
problema para a análise filosófica‖72. Danto responde, porém, que, tanto do ponto de vista
humano existencial quanto teórico, ―a filosofia serve para lembrar à humanidade a
maravilha e a precariedade de nossa situação no universo‖ 73; e ―o que a filosofia oferece – e
nada mais do que a filosofia pode oferecer – é uma visão de conjunto das coisas – da
consciência, dos objetos, da existência e da verdade – do mundo em sua totalidade e da
nossa relação com esta totalidade a partir de dentro‖74. ―Mas é importante salientar que se
se acredita ou não haver três componentes básicos e três relações fundamentais [...] o
mundo tal como nós o experimentamos permanece exatamente o mesmo‖75.

Eis, portanto, o objeto da filosofia. Dado o mundo da vida por um lado, a filosofia não
possuiria um objeto específico, mas sim este mundo compreendido como a totalidade da
experiência humana. Mas é parte da sina da filosofia, para que seja filosofia, permanecer
logicamente fora do mundo, ―como uma misteriosa cidadela, invulnerável, mas instável‖ 76.
Enquanto no mundo da experiência nós, seres cognitivos, navegamos
representacionalmente entre coisas – horizontalmente como dissemos logo acima –, do
ponto de vista da filosofia é necessário uma abstração radical do domínio do mundo. Tal
abstração habilita o esquema verticalizado que interpreta o mundo como aparência de uma
realidade ulterior, que o ultrapassa, mas que para ele seria fundante.

71
Ibdem, p. xiii.
72
Ibdem, p. xiv.
73
Ibdem, p. xiv.
74
Ibdem, p. xv.
75
Ibdem, p. xxv.
76
Ibdem, p. xii.

38
A filosofia é uma visão sub specie aeternitatis do todo da experiência, do mundo da vida:

É a própria essência da filosofia empreender uma caracterização de um certo


domínio a partir de fora dele [...] e, então, dizer coisas que não podem ser
explicadas em termos que derivam seu sentido a partir de dentro deste domínio 77.

Mas a verdade deste discurso externo da filosofia, realmente metafórico, é adequadamente


compreendida apenas na medida em que exercitamos sua natureza hermenêutica, isto é

desde que o que ela pretende dizer é, afinal, verdadeiro e pode ser visto como
verdadeiro se nós podemos ocupar uma posição, como o filósofo pretende que
façamos, do lado de fora do domínio que ele procura caracterizar. É apenas
quando o domínio é extenso e total como a experiência ou a linguagem que ele se
torna difícil de conceber78.

Nestas condições (extensa, total e externa), a filosofia é a teoria mais básica de como
representamos o mundo em sua totalidade. Em última análise, o filósofo ―procura uma
explicação de como é que o mundo é inteligível‖ 79 , ―O que explica o mundo ser
inteligível?‖80. Eis a questão central da filosofia81.

De um modo geral, a maneira como Danto compreende a filosofia é bastante tradicional. A


compreensão danteana é semelhante à caracterização da filosofia quanto à distância que ela
ocupa em relação ao mundo da vida. Pergunta-se se a filosofia poderia ser encontrada
mesmo no prosaico ou se, por outro lado, deste domínio ela está completamente alheia ou,
ainda, se a ele retorna apenas para pensá-lo. Fala-se, com efeito, da filosofia numa condição
de reconciliação, ou de demolição, ou de conservação-e-superação, de reforma ou, num
sentido bastante singular, de autoconhecimento (ao estilo socrático). Aristóteles já havia
discutido nos primeiros livros da Metafísica, tendo em vista a necessidade e da satisfação
alcançada pelas variadas artes, aquela arte que seria a mais sábia e mais perfeita ―porque as
suas ciências não se subordinam ao útil‖. Segundo Aristóteles, pois, para além da geometria
77
Ibdem, p. 29.
78
Ibdem, p. 29. (Grifos nossos).
79
Ibdem, p. 30. (Grifos nossos).
80
Ibdem, p. 31. (Grifos nossos).
81
Esta totalidade diacrônica de representações não possui a mesma acepção daquela totalidade histórica
implicada na visão filosófica hegeliana. Assim como a avaliação das filosofias substantivas da história, a
cidadania concedida à estética, dentre outros temas, também a concepção de filosofia sofrerá alterações
quando Danto recorre a ―uma melhor filosofia‖, que finalmente lhe convenceu da ―existência de estruturas
históricas objetivas‖, principalmente no sentido de estruturas de modalidades.

39
(não totalmente pura) e da aritmética (uma expressão mais pura da matemática), a filosofia
seria ―a ciência de certas causas e certos princìpios‖, ―tendo por objeto as causas primeiras
e os princìpios‖82 primeiros, a mais abstrata das ciências e a mais fundamental: a ciência do
ser enquanto ser. Analogamente em Platão o escopo da filosofia – e tão somente dela – é
este ―estudo mais importante[,] a ideia do Bem‖ 83, em nome da qual deve-se trilhar ―o mais
longo e complexo caminho‖ que consiste no megiston mathema (µέγιστον µάϑηµα)84, isto
é, o conhecimento máximo. É pela força do método da dialética que ―[...] deverás observar
qual deles, deixando de lado os olhos e os outros sentidos, é capaz de seguir na direção do
próprio ser‖85. O longo caminho do devir ao ser é o caminho do sensível ao inteligível,
dialética à qual só está apto ―quem é capaz de visão de conjunto‖86.

Sendo outro o contexto em que Arthur Danto se insere, a filosofia não está mais em
condições de se intitular ―a rainha das ciências‖. Embora ―A Transfiguração do Lugar-
comum [seja] um livro de filosofia extremamente tradicional‖, é parcialmente verdadeira a
ideia de que ―a filosofia ocidental não seja mais que uma nota de rodapé a Platão‖, pois,
ainda que este tenha sido ―o primeiro a captar as estruturas em que se exercita o
pensamento filosófico‖ que os pensadores posteriores mais ou menos trilharam, ―o sistema
platônico é na verdade a versão mais ampla desta estrutura‖87. Assim, não é o caso que
Danto subscreva todas as concepções standard acerca do estatuto da filosofia frente a
outras formas de conhecimento. Quanto à questão metafilosófica da autonomia da filosofia
frente às ciências naturais e humanas, Danto certamente defende que a filosofia é
metodologicamente independente, ainda que ela deva se manter em constante debate com
os demais saberes.

Tradicionalmente, a relação estatutária entre filosofia e outros discursos foi interpretada


pelo viés epistemológico. De tal forma, a compreensão platônica e aristotélica acerca do
domínio prático mais trivial se aproxima da dóxa, e formas de conhecimento
82
ARISTÓTELES, Metafísica, 981a25. In: ARISTÓTELES. Metafísica: livro 1 e livro 2. São Paulo: Abril
Cultural, 1979, p. 13. (Ver também a este respeito: NUDLER, O. Los problemas de la filosofía de la filosofía,
p. 38-42).
83
PLATÃO. República, VI, 505 a. In: PLATÃO. A República: ou sobre a justiça. São Paulo: Martins Fontes,
2006, p. 254.
84
Ibdem, VI, 504 d ss.
85
Ibdem, VII, 537 c.
86
Ibdem, VII, 537 d.
87
DANTO, A. Connections to the World, p. 18.

40
instrumentalizado sofreram críticas baseadas em uma exclusividade temática da filosofia
que, via de regra, tende a se coroar como júri supremo do saber. Neste sentido, Danto
parece não ser tão tradicional, na medida em que lhe parece especial e filosoficamente
excitante a maneira como eventualmente certas coisas úteis oferecem desafios inéditos à
filosofia. Significa, então, dizer que a filosofia de Danto tem aquele esforço em não se alijar
do mundo vivido, mas sim dialogar com ele. Neste sentido, não estaria a filosofia ‗acima‘,
mas ‗ao lado de‘; falar-se-ia em ‗tipos diferentes‘ de discursos e saberes, não de ‗graus
hierarquicamente inferiores ou superiores‘. Mesmo em Platão, quando indagamos acerca da
compatibilidade dos mitos frente às restrições feitas em relação ao domínio do sensível do
devir e das imagens, revelam-se ser aquelas estórias a melhor vestimenta para a mais íntima
intuição da filosofia platônica: ―nós apenas podemos escapar da prisão da caverna pela via
do intelecto, não da vida‖, assim traduziu Danto a primeira grande intuição que fixou a
agenda do pensamento filosófico88.

Não é um caminho indutivo que nos levará à hermenêutica filosófica da realidade, à gênese
da filosofia. O princípio gerativo desta visão totalizante que consiste a filosofia deve ser
revelado, não simplesmente encontrado em nossa experiência ordinária ou na prática
científica. Em outras palavras, à filosofia importa qual é o princípio de inteligibilidade do
mundo compreendido como um todo: ―como é o mundo, se é o caso de ele ser
entendido?‖ 89 Esta é a contextualização necessária à compreensão da filosofia como
problematização do mundo a partir de fora. Assim, segundo Danto, numa análise
metafilosófica, as estratégias metafóricas da filosofia tem por objetivo oferecer uma visão
da totalidade do mundo (ou do universo, como denomina às vezes) através da identificação
de um princípio de inteligibilidade, pressuposto no discurso e nas metáforas filosóficas
que, por vezes, tomam como matéria prima as distinções que ordinariamente fazemos para,
então, dar forma às nossas experiências, saturando a questão ―qual tipo de universo é
este?‖90.

Para Platão, por exemplo, as ideias ou formas (ειϧον) seriam tal princípio porque estão para
além do mundo sensível das aparências. Com efeito, o mundo sensível se torna inteligível

88
Ibdem, p. 27.
89
Ibdem, p. 35.
90
Ibdem, p. 11.

41
porque participa das ideias, mas estas não são acessadas diretamente na experiência 91 .
Assim como ―para Platão compreender o mundo é alçar às formas que as coisas no mundo
exemplificam ou corporificam; [...] para Wittgenstein, ao menos no Tractatus, compreender
uma proposição é saber como o mundo deve ser se a proposição é verdadeira‖ 92, isto é, o
princípio de inteligibilidade é a relação especular entre proposição e fato: o mundo é
composto por todos os fatos que são o caso e a eles correspondem, uma-a-uma, proposições
simples. Danto parece compreender a teoria pictórica da linguagem presente no Tractatus
como a grande metáfora para o princípio de inteligibilidade do primeiro Wittgenstein.
Como para Danto a filosofia deve ser abstrata, breve, rápida e total, e desenvolver as
relações entre sujeito, mundo e representações, a filosofia do Wittgenstein do Tractatus
poderia ser resumida em três conceitos: ‗fato‘, ‗linguagem‘ e ‗correspondência‘ – este
último sendo muito bem captado na metáfora pictórica ou do espelho.

Portanto, desenvolver o princípio de inteligibilidade significa propor uma fórmula de


mundo 93 . A filosofia consiste nesta fórmula de mundo; isto é o que a identifica e
caracteriza.

Qual seria o princípio de inteligibilidade oferecido pela filosofia de Danto sobre o todo da
experiência?

Meu livro Connections to the World, de 1989, é uma filosofia da filosofia. Nele
exponho ideias que surgiram desde cedo em meu pensamento, a saber: que a
filosofia em sua totalidade tem de algum modo uma relação com o conceito de
representação – que os seres humanos são ens representans, seres que
representam o mundo; que nossas histórias individuais são as histórias de nossas
representações e de como essas representações se modificam no decorrer de
nossas vidas; que as representações formam sistemas que constituem nossa
imagem do mundo; que a história humana é a história de como esse sistema de
representações se altera com o tempo; que o mundo e nosso sistema de
representações são interdependentes [...] A certa altura eu decidira que meu

91
A Doutrina dos Gêneros Supremos, no Sofista, expõe esta participação.
92
DANTO, A. Connections to the World, p. 39.
93
Ibdem, p. 12. Optamos por traduzir literalmente a expressão world-formula proposta por Danto.

42
trabalho como filósofo deveria ser o de construir uma teoria das representações;
na verdade, uma filosofia do significado do ser humano94.

A representação é a noção atuante da meditação danteana, mas não opera sozinha. Junto do
materialismo, formam a chave de sua filosofia. Combinados, pode-se pensar uma resposta
consequente à questão de como o mundo adquire significado. Representação é o fio que
mantém unida a trama indivíduo e mundo. Contudo, sem a materialidade, ela paira no vazio
e não adquire a força e drama das questões realmente filosóficas que motivam. Danto
indaga: ‗Como é este mundo, para nós que somos seres cuja relação com ele é
representacional?‘; ‗Qual é a consistência deste mundo desde o nosso ponto de vista de
seres cognitivos?‘ 95. Representação e matéria formam um amálgama cuja noção gerativa
reflete a busca pelo lugar e relação do Homem no Mundo.

Se numa noção ampla da representação compreende-se que as coisas adquirem significado,


é plausível indagar em que medida o ceticismo acerca da identificação entre coisa e
representação estaria afastado. Como podemos garantir com significativa segurança que a
maneira como compreendemos uma coisa através de um veículo representacional qualquer
não seja arbitrária uma vez que, no limite, o ceticismo explora exatamente os critérios
utilizados para superar a distância entre a coisa e a sua representação. É isso o que está em
jogo e é neste tocante que a filosofia do materialismo representacionalista poderia inovar ao
propor à sua maneira o isomorfismo entre representação e mundo.

Esclarecida esta questão, é compreensível quão desafiador à empreitada da filosofia é a


situação global na qual informações sensoriais são não-decisivas quanto ao discernimento
de objetos no funcionamento representacional da compreensão humana. A sorte de
indiscernibilidade que interessa a Danto surge, portanto, entre exemplares extensionalmente
diferentes, cuja característica factual, qualquer que seja ela (perceptiva, intensional), nada
tem a acrescentar ao seu tratamento. Danto se interessa especialmente por diferenças
qualitativas (de natureza), não quantitativas. Qualquer pretensa indiscernibilidade entre
coisas do mesmo tipo (type) seria apenas uma diferença numérica (token) incidindo sob o
mesmo conceito. Na medida em que, para Danto, a representação é uma noção gerativa e

94
Ibdem, p.11-12.
95
Ibdem, Passim, p. 11, 35, 35 e 31, respectivamente.

43
interpretativa, e a ela se liga diretamente a indiscernibilidade como problema filosófico par
excellence, a questão radical que imediatamente se impõe à filosofia danteana diz respeito a
qual justificativa ela pode oferecer à pretensão de articular significativa e ontologicamente
um domínio inócuo e outro propositivo.

Na perspectiva deste hiato, a indiscernibilidade entre dois objetos é o signo maior do


problema imposto a esta compreensão filosófica segundo a qual a representação é o
conceito central: seres humanos são seres cognitivos, sua prática ordinária de distinções
opera separando aparência de realidade, mas a efetividade das ilusões e enganos, se
generalizada, nos coloca na posição em que é necessário suspender a crença ordinária nas
experiências e conteúdos perceptivos e se voltar ao escrutínio dos mecanismos
representacionais que, como tais, são imunes a qualquer contribuição que pudessem dar as
experiências e percepções. Presume-se, pois, que há diferenças mais decisivas para além
daquelas factualmente determináveis. Em última instância, a indiscernibilidade é a gênese
da filosofia porque solicita uma justificativa não arbitrária de um princípio geral de
identificação para a totalidade de uma classe, domínio, tema ou para a totalidade mesma da
experiência humana.

Segundo Danto, é comum – e pouco preocupante – que confundamos coisas parecidas, mas
seria ultrajante à sua filosofia que sejamos incapazes de oferecer representações diferentes
para objetos apenas aparentemente iguais. Qualquer que seja a totalidade do objeto do
discurso filosófico – o comportamento moral, os números, o espaço-tempo, o
conhecimento, a arte ou, de forma absoluta, a totalidade da experiência humana – o que
torna compreensível qualquer filosofia e a história mesma das disputas filosóficas é esta
tentativa em oferecer um princípio ou critério externo de maneira inequívoca. Mas se, no
limite, a indiscernibilidade é o cerne dos problemas filosóficos, devemos concluir, com
efeito, ―que um problema não é genuinamente um problema filosófico a menos que seja
possível imaginar que a solução deste consistirá em mostrar que aquilo que era mera
aparência foi tomada por realidade‖96. É fácil compreender como, no meio da confusão a
que nos submete a indiscernibilidade, escolhamos algo não determinante como a
característica mais relevante de algo. A questão é se podemos determinar sem mais o que é

96
Ibdem, p. 6.

44
real, se está vetado qualquer apelo ao sensorial ou ao perceptivo e se, por outro lado, cada
filosofia significa à sua maneira o conjunto do mundo. Uma vez mais, nos aproximamos do
caráter inerte dos sentidos conforme salientou Austin97.

Uma vez que o princípio de inteligibilidade residiria no não factual, na não experiência, a
indiscernibilidade surge de um deslocamento ontológico caracterizado por um movimento
negativo: ―É como se, ao analisar o que é algo para que seja inteligível, os filósofos
deduzam como o mundo deve ser por si só‖, operando uma abstração que, digamos, se
inicia pelo fim, criando representações externas totais a partir das quais o mundo adquire
identidade98: ―E certamente é aqui, nos limites entre mundos radicalmente diferentes, mas
de outra maneira indiscernìveis, que a filosofia mesma pode ter inìcio‖ 99.

É preciso notar, entretanto, que, embora intimamente relacionados, há uma sutil distinção
entre os indiscerníveis como problema filosófico e como método. Enquanto problema, a
indiscernibilidade possui uma gênese tal que se resume pela ―natureza peculiar dos
problemas filosóficos os quais não são equacionados em termos do critério de
verificabilidade, isto é , das condições empíricas de decidibilidade dos seus enunciados‖ 100.
A indiscernibilidade é, ao mesmo tempo, a gênese da reflexão filosófica e o emblema
dramático impresso sobre cada questão genuína a que se dedica. Por outro lado, o método
dos indiscernìveis é ―um dispositivo da filosofia da arte‖ e ―da própria filosofia (enquanto
discurso de segunda ordem)‖101, uma maneira de ―combater fogo com fogo‖. Conforme
veremos em detalhes mais adiante, o método dos indiscerníveis se pretende uma estratégia

97
―Os sentidos não nos dizem nada de verdadeiro, nem de falso‖. AUSTIN, Op. Cit., p. 11. De fato, Danto
não defende com todas as letras que ―os sentidos nos enganam‖ na indiscernibilidade. A questão é: a
percepção (ou a apreensão sensorial destes objetos) não é o bastante para decidir a identidade de um objeto. É
o caso que, ao indagar o que é obra e o que não é, estou a perceber coisas, ou que há um conteúdo que evoca
esta dúvida. Mas ela não é sobre a percepção ou não de objetos, mas da fixação de sua natureza para além do
perceptível. Deve-se lidar suficientemente com alguns dados das caixas (ou o que quer que seja) para que a
dúvida proposta por Danto se imponha. Não é o caso que eu não veja. A questão é ―o que é aquilo que vejo?‖,
―como o determino para além do ver?‖. Não sou furtado na percepção. Ela, mesmo em sua completude – e
por conta desta completude mesma – , evoca em mim questões que me dirigem à seara outra da ontologia, na
qual a percepção é incompleta.
98
DANTO, A. Connections to the World, p. 38.
99
Ibdem, p. 13.
100
AITA, V. Arthur Danto – narrativa histórica sub specie aeternitatis. ARS, São Paulo, vol.1 no.1, 2003,
p. 144-159. http://dx.doi.org/10.1590/S1678-53202003000100012, p. 150, nota 15.
101
Ibdem, p. 150, nota 15.

45
consequente de abordar questões perceptualmente aporéticas, decidindo resolvê-las através
da identificação de um elemento imune à aporia, ou seja, externo à dimensão perceptiva.

Dirigindo-nos à descrição metafilosófica que Danto realiza da filosofia como disputa pela
interpretação Sub specie aeterni mais adequada, a exposição tópica daqueles que seriam os
problemas centrais nas filosofias de Descartes, Kant, Hume, Alan Turing, Berkeley,
Espinosa e Duchamp (!) estão todos reduzidos ao problema dos indiscerníveis. Esta
redução é subsumida na noção de fórmula de mundo (apresentada acima), segundo a qual o
conceito central de uma filosofia é o suprassumo de sua interpretação total, o seu grão de
verdade. Tal redução é, entretanto, a apresentação mesma da visão metafilosófica danteana,
na medida em que deixa entrever a tese do caráter originário dos indiscerníveis, ao mesmo
tempo em que, oferecendo interpretações módicas de algumas filosofias, pretende revelar
aquelas que seriam as estruturas básicas do pensamento filosófico. A descrição
metafilosófica de Danto, tantas vezes apresentada por seus comentadores como forma de
exemplificar o problema dos indiscerníveis, contém importantes comprometimentos
teóricos.

Assim, em Descartes, o cogito é a fórmula que sintetiza o problema da indiscernibilidade


interna entre as experiências de sonho e as de vigília. A questão de distinguir condutas
conscientemente morais de condutas apenas circunstancialmente morais, em Kant, tem na
fórmula do imperativo categórico a resolução do critério moral ausente ―na superfìcie da
ação‖. A discussão acerca da causalidade em Hume – que por não ser empiricamente
verificável torna indistintos os mundos do acaso e o da estrita conexão causa-efeito –
encontra resolução na noção de hábito. No entanto, vem de Duchamp o pensamento que,
creio, melhor revela as intenções e a vitalidade da filosofia da arte de Danto: ―a ocorrência
histórica que origina a filosofia da arte como uma questão interna à arte — de dois objetos
perceptualmente indiscernìveis‖102. O Duchamp filósofo é apresentado como um pensador
cuja proposta artìstica revela ―a forma de um problema filosófico‖ – a indiscernibilidade – e
mostra, com isso, porque a arte é tão filosoficamente relevante em Danto: a arte encarna o
caráter espiritual da filosofia, opera o backstep característico da mais alta racionalidade
reflexiva e propõe que ―a diferença [entre a mera coisa real e a obra de arte idêntica a ela],

102
Loc. Cit.

46
porque filosófica, não é aquela que os olhos podem encontrar‖ 103 . Cabe à fórmula de
mundo da filosofia danteana defender sua interpretação sub specie aeterni perseguindo o
conteúdo representacional que confere inteligibilidade ao mundo (e ao mundo da arte).

Com efeito, abstraindo as especificidades de cada filosofia, Danto estipula o seguinte


quadro como sendo a estrutura geral da filosofia:

‘X’ corresponde à posição do Sujeito, ‘Y’ à da representação, ‘Z’ ao


Mundo e, com efeito, (i) corresponderia em toda filosofia ao
conhecimento (relação entre X e Y), (ii) à compreensão (relação Y e Z)
e (iii) ao ser (relação X e Z)

―Devo, portanto, arriscar a conjectura segundo a qual a filosofia é apenas o esforço por
compreender as relações entre sujeitos, representações e a realidade‖ 104 . Na verdade,
segundo a metafilosofia danteana, a filosofia opera sobre uma cisão radical e constitutiva.

Para a comentadora italiana Tiziana Andina,

O trabalho filosófico, para um bom metafísico descritivo como Danto, consiste


em traçar linhas fronteiriças: as fronteiras entre as coisas e as categorias das
coisas que formam o mundo, de forma a descrever as espécies fundamentais
daquilo que existe. Ao mapear o que existe, pode ser necessário deslocar ou

103
DANTO, A. Connections to the World, p. 6-8.
104
―Os componentes e relações que encontramos tanto em Platão quanto em Wittgenstein reaparecem de
novo e de novo na filosofia‖, como em Descartes. E mesmo que ―muitos filósofos avançaram filosofias que
procuram eliminar um ou outro componente [...] eles tentaram colapsar a distinção entre o eu e a realidade ou
entre a representação e a realidade‖, tal como teria ocorrido a Sartre e Berkeley. DANTO, A. Connections to
the World, p. 40.

47
cancelar todas as fronteiras. Este é o dever típico da filosofia, que, longe de ser
residual, é irredutível a qualquer outra ciência105.

Danto não é um metafísico tradicional porque sua investigação está focada na atividade
representacional, na linguagem humana, que é verificável. Assim, a filosofia transita entre
abismos: do sujeito às representações, perseguindo o conhecimento; das representações ao
mundo, inquirindo as formas de nossa compreensão; e do sujeito ao mundo, constituindo o
ser. Cada filosofia propõe uma fórmula de mundo com a pretensão de ser a descrição última
do elo que mantém unidos cada um dos polos da totalidade.

O escrutínio destas relações resume a atividade filosófica, ao mesmo tempo em que a


contrapõe às ciências. Quanto à questão de se há um conhecimento filosófico, Danto
responde afirmativamente à autonomia do discurso filosófico. O tipo de verdade e certezas
viáveis às afirmações filosóficas são, ao mesmo tempo, objetivas e relativas à atividade da
consciência. Embora a atividade filosófica de Danto envolva a análise da linguagem, o
filósofo não está disposto a ceder a qualquer interpretação relativista. Danto imediatamente
procura se diferenciar do quietismo anti-filosófico e do pragmatismo. Em uma entrevista a
Paulo Ghiraldelli, Danto revela de maneira bastante informal: ―Creio, por exemplo, em
verdade. O pragmatismo mantém que verdade é ‗o que funciona‘, mas eu creio que quando
nossas crenças e teorias funcionam, é porque elas são verdadeiras‖ 106. Contra a pretensão
de William James de que ―não há maneira de dizer se esta ou aquela fórmula de mundo
[world formula] deve ser a correta‖, Danto conclui, ad absurdum, que ―a mais importante
diferença [aquela entre mundos] parece não ter qualquer relevância cognitiva e não atender,
correspondentemente, a qualquer parte do conhecimento que possa ser adquirida – e,
mesmo que possamos adquiri-la, ela pertenceria não à filosofia, mas a algum ramo ou outro
das ciências positivas‖ 107 . Para Danto, a filosofia não é um estado de espírito, ―uma
coloração do todo da realidade, rosa se somos otimistas e azul, se somos pessimistas‖ 108.
Richard Rorty incentivava que os filósofos abandonassem as suas discussões infrutíferas e
procurassem engajar-se em conversações edificantes, mas, segundo Danto, não questionava

105
ANDINA, Tiziana. Arthur Danto: philosopher of pop. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing, 2011,
p. 10.
106
http://www.mariosantiago.net/Textos%20em%20PDF/entrevistaarthurdanto-pauloghiraldellijr.pdf, página
3. Lembre a tese confiabilista pressuposta nesta afirmação.
107
DANTO, A. Connections to the World, p. 12.
108
Ibdem, p. 13.

48
seriamente a destinação da filosofia e da ciência, não esclarecia o que significa ser
edificante e nem incentivava questionar a qual projeto contribuímos quando levamos a cabo
uma agenda109.

Wittgenstein nega que a filosofia diga algo de significativo, pois ela ―não é teoria, mas
atividade‖110. O positivismo lógico seguia a ideia wittgensteiniana de que ―a filosofia não
resulta em proposições filosóficas mas em tornar clara as proposições‖ e propunha que a
filosofia deveria estar à retaguarda das ciências. Como por ‗teoria‘ o primeiro Wittgenstein
e os positivistas lógicos compreendem qualquer coisa como um conjunto de proposições
figurativas que, como tal, dizem do mundo, a filosofia pode apenas ser um discurso ou sem
sentido (sinnlos) ou puro contrassenso (unsinnig). Isto é o mesmo que negar qualquer
autonomia e objetividade ao discurso filosófico. Como interpretação do todo do universo,
contudo, a filosofia pretende oferecer proposições cujo conteúdo de verdade está em
disputa. A totalidade do mundo é uma questão de conhecimento – de conhecimento
filosófico –, não de fé.

Mas diferentemente das proposições das ciências positivas, centradas sobre questões de
fato, as proposições filosóficas versam sobre a totalidade dos fatos. Por isso, não
esperaremos que um químico nos aponte um relatório laboratorial mostrando em que ponto
reside a diferença entre a pá de Duchamp e a pá de neve comum. ―Em qualquer lugar que
estejam escondidas as diferenças, não será a ciência a penetrá-las. São diferentes espécies
de diferenças, escondidas em diferentes espécies de lugares‖111. Fazendo eco a Wittgenstein
(Tractatus, § 6.52), Danto propõe que imaginemos um mapa científico completo do
universo, com todas as diferenças científicas identificadas e especificadas, ―sem que isso
nos ajude a resolver uma única questão filosófica‖. Do mesmo modo como é para a arte, ―A
diferença entre a ciência e a filosofia é uma diferença filosófica, não cientìfica‖ 112 . O
conceito de isomeria dos componentes químicos poderia ser uma objeção à exclusividade
filosófica dos indiscerníveis. No entanto, embora ―Indiscernìvel ao nìvel atômico, a
isomeria difere molecularmente‖, isto é, descendo ―a outro nìvel descritivo através do qual

109
Ibdem, p. xiii-xiv.
110
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado Lógico-filosófico, §4.12. In: WITTGENSTEIN, L. Tratado Lógico-
filosófico. Investigações filosóficas. 6ª edição. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2015, p. 62.
111
DANTO, A. Connections to the World, p. 10.
112
Ibdem, p. 11.

49
se firmará diferenças observadas entre coisas outrora tidas como as mesmas‖, o qual é
possìvel apenas materialmente, pois este ―imperativo não se aplica quando consideramos
indiscerníveis pares (ou n-tuples) entre objetos culturais, no qual não há nível molecular
para o qual descender‖ 113 . Ora, como poderíamos esperar uma inspeção laboratorial
conclusiva acerca da questão ―o que é arte?‖.

Deste modo, esta passagem aponta mais uma vez a particularidade e excelência da arte para
a filosofia, enquanto problema filosófico. Ela mostra também a autonomia da arte e da
filosofia na qual, finalmente, se dá a perceber a especificidade dos problemas filosóficos e
da metodologia filosófica. Com efeito, por operar em ―diferentes espécies de diferenças‖,
pode-se vislumbrar aqui outra maneira de compatibilizar as atividades filosófica e
científica, possibilitando uma reabilitação do status da filosofia frente à ciência e uma
releitura das relações entre estas duas atividades e seus estatutos.

Danto leva-nos a crer que se pode oferecer descrições disjuntas de um mesmo objeto sem
contradição. Por um lado, Danto parece dar certa prioridade ao uso ordinário de alguns
termos usados cotidianamente, quando as distinções ordinárias são sem problema.
Entretanto, em outros momentos, parece estabelecer que o apelo ao uso especializado para
alguns termos é a coisa certa a ser feita diante de certos problemas. Comentando, por
exemplo, o experimento mental de Hilary Putnam acerca da água na Terra (H2O) e a água
na Terra-Gêmea (XYZ), ele conclui que as diferenças que a água possui na Terra e na
Terra-Gêmea, em última análise, ―dependerão do que a ciência finalmente tem a dizer a
respeito da composição da água‖ 114 . Mas é completamente possível que Danto defenda
ambas posições (ordinária e especializada, científica e/ou filosófica), pois, como vimos
acima, há diferenças inacessíveis às ciências e ―distinguir obras de arte de outras coisas não
é uma tarefa tão simples, mesmo para falantes nativos‖ 115, que supostamente dominam o
uso do termo ‗arte‘. O discurso filosófico é autônomo e objetivo, mas como interpretação
total a filosofia deve manter-se sempre próxima das ciências, da arte e do mundo da vida.

113
DANTO, A. Indiscernibility and Perception – A reply to Margolis, p. 321-2.
114
DANTO, A. Connections to the World, p. 10.
115
DANTO, A. O Mundo da Arte, p. 14.

50
O descritivismo aí presente encaminha, portanto, a uma compatibilização de discursos em
função da problemática e do escopo envolvidos. Há uma disjunção: um objeto pode ser
descrito como isto ou como aquilo, a depender da ocasião/objetivo/questão, sem que com
isso esteja inviabilizada a correta identificação do mesmo. Como resultado, teremos uma
compreensão um tanto nova do estatuto da filosofia, sua destinação e seu lugar dentre as
demais empreitadas cognoscitivas.

De alguma forma, as questões filosóficas sobre a arte estão muito próximas das
questões que Descartes levanta acerca da diferença entre sonho e vigília [...]. O
problema de Descartes não pode ser resolvido pelo recurso a
eletroencefalogramas mais do que a questão do que faz uma pá de neve ser uma
obra de arte possa ser resolvida através da análise espectroscópica. Não é como
distinguir o falso do autêntico. Não é uma questão de conhecimento especializado
mas, para usar o termo frustrante, de ontologia116.

Por fim, devemos dizer que a filosofia, por lidar com a essência representacional humana e
com a interpretação ontológica do Universo como um todo, ocupa um lugar imprescindível
e inalienável no hall dos saberes. Tal como pretendemos ter mostrado até aqui, a discussão
promovida por Danto – principalmente pela forma como ele aproxima filosofia, arte e
ciências – está muito relacionada à questão de se é possível algum conhecimento filosófico.
Como vimos, a resposta é afirmativa, e o propósito último da filosofia, dado o todo do
Universo como sua ordem de fatos (seu ―objeto‖), é um discurso complexo capaz de gerar
proposições cujo valor-verdade será disputado com outros sistemas filosóficos, mas que
não se resumem à bivalência. Elas podem também possuir valor político, estético,
terapêutico, hermenêutico ou outro. ―A filosofia, por toda sua simplicidade, é
necessariamente abstrata e remota‖ 117 . Mas é também ―repetitiva‖, porque desdobra e
desenvolve em variadas dimensões as mesmas estruturas; é ―rápida‖ e ―surpreendentemente
breve‖, no sentido de versar sobre estruturas muito tênues; e, por ser ―necessariamente
sistemática‖, é astuciosa, ―resolve tudo de uma só vez‖118.

116
DANTO, A. Connections to the World, p. xv-xvi.
117
Ibdem, pág. xxvi: ―a filosofia, por todo sua simplicidade, é necessariamente abstrata e remota‖.
118
DANTO, A. A Transfiguração do Lugar-comum, p. 20, 41, 4, XV e 11, respectivamente.

51
1.2.2- A filosofia e sua história

Para Danto, diferentemente da arte, a filosofia não tem uma história em sentido real. Esta
diferenciação da filosofia perante a arte (e a ciência) através da história remete
providencialmente à situação em que tinham sido deixadas a arte e a filosofia ao final de A
Transfiguração do lugar-comum, situação de quase indistinção conceitual entre filosofia e a
arte, autoconsciente. É muitíssimo relevante esta concepção sobre a história da filosofia, já
que, em decorrência de Danto compreender a estética como ―o produto de sensibilidade
historicamente moderna‖119, ela ―não poderia se desenvolver propriamente até a história da
arte ter chegado ao seu fim‖120. A este respeito, parte significativa dos comentadores da
filosofia da arte danteana tem lembrado Hegel. Mas Carrier argumenta audaciosamente que
tal concepção está ―aderindo [- e radicalizando, devemos dizer -] a uma visão cartesiana da
história da filosofia‖ 121 , já que Descartes julgava que os problemas filosóficos ―estão
sempre lá, aguardando serem descobertos‖. Mas se é assim, ―toda a filosofia está disponìvel
a qualquer momento‖, então ―os problemas filosóficos eles mesmos podem ser discutidos
sem necessidade de preocupar-se com quem exatamente disse o que‖122. Esta interpretação
dos fundamentos metafilosóficos dos indiscerníveis vai de encontro à interpretação
historicista de Danto, tal como a conhecemos. Se correta, ela contribuiria no quadro
comparativo das posições ocupadas por Danto em sua versão analítica e em sua guinada a
Hegel.

Sendo Danto partidário de certo cognitivismo filosófico, seria ele também favorável à
posição segundo a qual há progresso na história da filosofia, um acúmulo progressivo e
cuidadosamente edificado de verdades filosóficas paulatinamente conquistadas? Segundo
Danto, ―internamente falando, a filosofia não tem uma história real‖ 123. Para David Carrier,

119
CARRIER, David. Danto as systematic Philosopher or comme on lit Danto en français, p. 18. In:
ROLLINS, Marc. Danto and His Critics, p. 13-27.
120
Ibdem, p. 17.
121
Ibdem, p. 14.
122
Loc. Cit. Esta postura de discutir problemas, não os filósofos, é bastante característica do estilo analítico de
filosofar.
123
DANTO, A. Connections to the World, p. 5.

52
isso significa dizer que a ―filosofia não evolui historicamente, [ainda que] ela se torne
possìvel em um momento histórico determinado‖124.

Do ponto de vista das condições teóricas do surgimento da filosofia e da alusão genética de


todo pensamento filosófico nos termos do estabelecimento de sua estrutura básica, a
filosofia possuiria uma história. Nela constariam as condições e contextos materiais e
espirituais que fomentaram e subsidiaram seu surgimento. Contudo, tanto do ponto de vista
das condições teóricas originárias da filosofia, quanto sobre sua natureza desde sempre
abstrata e remota, o aspecto dinâmico da filosofia não é perfeitamente histórico, pois este
não contém qualquer sentido teleológico. Seu dinamismo não se dá em um sentido
progressista-cumulativo. Não é possível extrair da história da filosofia uma doutrina
filosófica total. Apenas os filósofos destinam seu pensamento à formação de uma visão
total do mundo – eventuais concordâncias pontuais são apenas concomitâncias.

Sob o primeiro ponto de vista (da história em sentido cumulativo), cada nova filosofia é um
parricídio e nenhum filósofo poderá sensatamente se queixar de que seu pupilo o tenha
dado um coice tão logo conseguiu pôr-se de pé. Segundo Danto, a história da filosofia, ―em
comparação com a história tanto da ciência como da arte, exibe uma curiosa
descontinuidade. Cada momento de avanço filosófico parece se considerar como um
completo recomeço, o qual parece requerer um completo repúdio de tudo o que veio
antes‖125. Isto parece estar de acordo com a ideia (belicosa) danteana segundo a qual a
filosofia deve ser um discurso all inclusive e, como tal, compete com qualquer outra
filosofia que se pretenda a interpretação mais correta e completa desta totalidade. Sua
versão para a superação da teoria do flogisto na história da química, aliás, diz que a
refutação da teoria da combustão, proposta por Lavoisier entre 1775 e 1780, consistiu em
ter mostrado, através de experimentos laboratoriais, que tal composto simplesmente não
existia. O mesmo não acontece com a filosofia, pois ela trata de coisas que, como vimos,
ultrapassam as distinções internas à experiência e, portanto, não lidam com mobiliários do
mundo:

...na filosofia, tem-se que mostrar que a natureza da descoberta de um filósofo


explica como seus predecessores devem ter falhado em vê-la[, em descobrir ou

124
CARRIER, David. Danto as systematic Philosopher, p. 18.
125
DANTO, A. Connections to the World, p. 5.

53
interpretar erroneamente esta descoberta] – e isso significa que as descobertas
filosóficas estarão restritas primariamente a coisas em que uma possível confusão
entre aparência e realidade é concebível126.

Diferentemente da ciência, uma refutação em filosofia será tratada em termos de um


equívoco interpretativo total, não um erro pontual. É como a rainha em Hamlet, que julga
existir apenas o que vê. Com efeito, na filosofia radicaliza-se a impossibilidade da tradução
inter-teórica. Todo filósofo original deverá necessariamente julgar como equivocados os
seus predecessores. Esta maneira de conceber a atividade filosofia deixa clara como não há
real progresso na história da filosofia. O parricídio é a regra; o coice é inevitável.

Cada nova filosofia é um exercício de extraordinário combate interpretativo. Os sistemas se


renovam e se ampliam em função de novas totalidades de mundo a serem interpretadas, não
simplesmente pela importância interna dos conceitos que um outro sistema filosófico
oferecera. ―[...] o passado da filosofia é mantido vivo através da necessidade daqueles que,
para fazer avançar o assunto e desengatar-se de seus predecessores, buscam fazê-lo através
de uma refutação monumental‖127. O presente não cultua o passado. No máximo, este é
atualizado na ruptura. ―Assim, não há um corpo de dados aceitos e legados de geração a
geração, nenhuma acumulação de conhecimento, nenhum progresso‖ 128 . A história da
filosofia, se há alguma, consistiria em ―uma quase cômica [sequência de] substituição
daqueles que substituíram seus antecessores por aqueles que, por sua vez, serão postos em
uma posição precária no proclamado ápice de entendimento total, o qual supostamente a
filosofia consiste‖ 129 , e ao qual os últimos representantes da sequência supostamente
alçaram.

Mas esta frenética e – a bem dizer – cética sequência de substituições, além de não possuir
uma forma geral vista de longe, não põe em cheque a convicção cognoscitiva do discurso
filosófico? Mais uma vez, compara-se com as ciências naturais:

Mas isto significa, com efeito, que em contraste com a história da ciência, (...) a
história da filosofia, no todo, será tratada pelo filósofo posterior como uma
completa ilusão e, consequentemente, não como parte de um desenvolvimento

126
Ibdem, p. 5.
127
Ibdem, p. 3.
128
Ibdem, p. 3.
129
Ibdem, p. 4.

54
cognitivo. O presente é como acordar de um sonho e o sonho não é parte da
experiência de acordar, mas o seu abortamento130.

A metáfora não poderia ser mais precisa e mais sugestiva. Ela remonta ao capítulo um de
What Art Is, no qual Danto tratará da possibilidade de experiências estéticas como sonhos
acordados. De qualquer forma, aqui ainda não temos todos os elementos para tratar deste
paralelo. Aqui, esta passagem pretende se referir especificamente à ideia segundo a qual
toda filosofia, porque é uma interpretação externa ao todo do mundo, se parecerá com a
tentativa de ―mostrar à mosca a saìda da garrafa‖, pois assim a mosca estaria para sempre
liberta da ilusão metafísica que a afastava substancialmente da realidade – se é o caso de o
mundo se revelar condescendente com este truísmo. Para o desamparo geral do prisioneiro
da caverna, parece que a condição da filosofia é de incorrigível pesadelo (nightmare).
Ainda, e uma vez mais, diferentemente da arte, a história da filosofia seria o sempre e
mesmo sonho do qual nunca acordamos. Este é o drama da filosofia que, insistentemente
reencenado, nunca chega a qualquer verdade final do todo da experiência. Este pluralismo
do discurso filosófico procura defender a diversidade e a ausência de respostas finais
características da filosofia mantendo ao mesmo tempo a pretensão de ser informativa. Com
efeito, tal pluralismo filosófico transita perigosamente entre os abismos do relativismo e de
certo essencialismo.

Na arte, entretanto, há uma ―vitória da ontologia‖ 131 por festejar: as obras que encarnaram e
propuseram o problema filosófico por excelência – os indiscerníveis – lograram sucesso,
pois estão ―revelando que quaisquer que sejam as condições que um objeto deva satisfazer
para ser arte, estas não são de caráter perceptivo‖132. A eminência da ontologia na filosofia
e na arte contemporânea levanta a questão de saber o que distingue arte e filosofia –
questão que ao fim deste capítulo, esperamos, quedará esclarecida.

Na época – e ainda hoje – em que Hegel proclamou o fim da história, houve muita
incompreensão. Ora, Danto também o faz e como que revogando o que aqui estamos
estabelecendo com sua convicção metafilosófica acerca da história da filosofia. Ele

130
Ibdem, p. 5. (Grifos nossos).
131
DANTO, A. O Mundo da Arte, p. 15.
132
ALCARAZ LEÓN, Marìa José. ‗La concepción filosófica de Danto y el problema de la esencia del arte‘,
p. 14. In: ALCARAZ LEÓN, María José. La teoría del arte de Arthur Danto: de los objetos indiscernibles
a los significados encarnados. (Tese de doutorado) Universidad de Murcia. Departamento de Filosofía y
Lógica, 2006. http://hdl.handle.net/10803/10823

55
proclamou também que a história da arte chegou ao seu fim. Mas o próprio Danto explica
que esta refutação monumental e sempre radical ―explica porque o filósofo original sente
que a história começa com ele. Começa e termina com ele‖: ―Esta é dada de uma só vez e,
se correta, não necessitará nunca ser experimentada novamente‖133.

O historiador da arte Heinrich Wölfflin disse, tomando a história seriamente, que


nem tudo é possível a todo momento. A filosofia parece imune a esta
historicidade. Santayana está certo: a mesma filosofia é sempre possível. Em
certo sentido, nenhuma outra filosofia é possível, exceto em termos de variações
secundárias. Por isso a filosofia é sempre recomeço, e também por isso todos os
recomeços se parecem essencialmente os mesmos 134.

Se tivesse a filosofia uma história, neste sentido, não seria uma história real, seria a do
drama repetidamente encenado do mesmo sketch, mas por personagens e roupagens
diferentes.

Por outro lado, do ponto de vista das condições teóricas de surgimento da filosofia e da
alusão genética de todo pensamento filosófico nos termos do estabelecimento de sua
estrutura básica, a filosofia só pode surgir porque o conceito de Representação foi
estabelecido. Do primeiro ponto de vista, seu surgimento ocorreu naquelas sociedades que
Danto chama representacionais – sociedades aficionadas pelo conceito de realidade. Danto
diz: ―A filosofia surgiu realmente apenas duas vezes na história da civilização, uma delas
na Grécia e a outra na Índia. Nos dois casos ela surgiu por causa de uma distinção entre
aparência e realidade ter parecido urgente‖. Somente um esquema transcendente de
metafísica poderia fundamentar uma compreensão segundo a qual a filosofia opera com a
distinção entre a experiência e seu duplo, entre a aparência e algo para além dela, mais real.
No contexto indiano, por exemplo, esta relação entre aparência e realidade é ―algo como
uma revelação, acoplada com argumentos, [mas] sem que qualquer coisa parecida com
observação ou experiência sejam invocados, simplesmente porque a observação e a
experiência pertencem ao descreditado mundo da ilusão‖135 ( / maya). Já na Grécia,

a motivação para desenhar tal distinção [entre aparência e realidade] foi


ligeiramente diferente, mas ocorreu muito cedo aos pensadores gregos que o

133
DANTO, A. Connections to the World, p. 5.
134
Ibdem, p. 19.
135
Ibdem, p. 14. Danto não deixa claro (i) se a tradição Vedanta praticada na Índia pode ser compreendida
semelhantemente à tradição filosófica ocidental, que tem na independência da autoridade religiosa sua marca
fundante; e (ii) porque a filosofia praticada na China não é igualmente considerada.

56
mundo tal como ele aparece para os sentidos deve ser radicalmente diferente do
mundo o qual nós conhecemos através da razão, e que o primeiro, em razão de
136
sua discrepância, deve ser ilusório e, com efeito, não real .

Por isso, a distinção aparência-realidade é desenvolvida como elemento decisivo para o


debate filosófico, pois ―Em ambas as tradições, os pensadores foram obrigados a dar uma
caracterização da realidade, o que significa algo ser real‖ 137. Esta caracterização foi dada a
partir de fora, não na imanência.

Com efeito, do segundo ponto de vista (alusão genética), a filosofia hoje praticada tem a
ver com este evento originário, pois, ―em ambas as culturas esta questão [da distinção entre
aparência e realidade] estabeleceu a agenda a qual os filósofos seguiriam em caminhos
distintos, embora paralelos‖138. A filosofia hoje praticada remonta à sua distinção basilar,
ela continua tendo a Representação e a estrutura triádica correspondente (sujeito, mundo,
representações e as relações entre um e outro) como o fio condutor. Contudo, nenhum
destes aspectos da filosofia contém qualquer sentido histórico-teleológico.

Na medida em que Danto compreende a filosofia como um sistema de totalidade


interpretativa das representações do mundo, não há ganho descritivo ou interpretativo de
um sistema filosófico para outro. Embora se possa trazer debatedores à baila para discutir
as representações, com isto apenas se amplia o domínio sobre o qual deverá surgir uma
filosofia totalmente nova. Seguindo a compreensão de David Carrier de que Danto não
concebe evolução na história da filosofia, mas tão somente a possibilidade de um discurso
filosófico ―em um momento histórico especìfico‖, a arte teria concebido para a filosofia
este momento ideal quando seu desenvolvimento interno em busca de sua autoconsciência
culminou com a apresentação de um problema legitimamente filosófico na arte.

1.3 - Conclusão
A perspectiva do ―fim da arte‖ impõe uma consequência estatutária radical para o filosofar.
É preciso não apenas propor uma teoria, mas antes justificar o próprio exercício filosófico

136
Ibdem, p. 14.
137
Ibdem, p. 15.
138
Ibdem, p. 15.

57
como discurso informativo e não heterônomo. Internamente à filosofia, a pretensão de a
filosofia edificar empreendimentos cognoscitivos essencialistas é fortemente questionada,
principalmente com a defesa da morte da filosofia pelo positivismo lógico, pela metafísica
da presença e pelo pragmatismo. Ou a filosofia aliena, ou não é séria. A proximidade de
Danto do contexto analítico, que desenvolveu alguns vaticínios quietistas anti-filosóficos,
obrigou que a filosofia revisse sua clivagem com a arte. Propusemos que a apresentação da
concepção filosófica a partir de uma perspectiva ampla e fundante atende à necessidade de
diferenciar a abordagem danteana das demais abordagens, ao mesmo tempo em que
apresenta uma defesa da atividade filosófica enquanto discurso de segunda ordem.

Com efeito, a filosofia analisa domínios ou questões aparentemente idênticas perseguindo


conceitualmente o elemento definidor de cada um deles e esclarecendo, assim, as fronteiras
entre tais domínios. Informa esta atividade um posicionamento sub specie aeternitati acerca
da totalidade da experiência humana. Resume e expressa este posicionamento um conceito
central responsável por sintetizar a interpretação filosófica daquilo que vivemos na
experiência cotidiana.

Entretanto, como a filosofia não possui uma real história porque não implementa um
programa progressivo, os filósofos estão sempre em disputa pela posição última na qual
possam edificar sua filosofia. Não há avanço, não há possibilidade de tradução inter-
teórica. Cada nova tentativa de a filosofia acordar de seu pesadelo tende a tornar-se parte do
próprio pesadelo a julgar pelo filósofo seguinte. Ao abordar o território artístico, cada nova
filosofia apenas atualiza a vastidão do campo sobre o qual ela exercitará sua visão abstrata
e remota.

A conquista autônoma do conceito de arte repercute sobre a atividade interpretativa, as


pretensões definicionais e as tendências descredencializadoras da filosofia. Danto é um
grande incentivador do diálogo colateral entre filosofia e arte. Devemos manter uma
distância saudável do objeto. Nesse sentido, é a partir deste momento que o discurso
filosófico acerca da arte é revelado promissor – ou ao menos impactante na filosofia de
Danto. O fato de boa parte do discurso filosófico acerca da arte ter se revelado falho deve-
se, antes, a uma cegueira da filosofia quanto ao mundo da arte e o consequente fracasso
metodológico. Assim, é necessário que Danto repudie as filosofias anteriores ao advento do

58
fim da arte como não esclarecidas e não emancipadas. A acuidade ao mundo da arte e a
concepção do trabalho filosófico focado na natureza teórico-conceitual da arte tem como
consequência o abandono da estética.

Contudo, o que distingue arte e filosofia? Se a arte, como a filosofia, hoje é capaz de
articular de maneira consequente a questão de sua própria identidade; se ela domina os
indiscerníveis de maneira tal a ser capaz de propor uma formulação vitoriosa; mas,
diferentemente da filosofia, a arte conheceu seu fim ao esgotar as possibilidades de sua
história, qual sistema filosófico poderia acomodar uma arte que disponha deste estatuto?

59
CAPÍTULO 2

A ARTE NO SISTEMA FILOSÓFICO

Deem-me um ponto de apoio e moverei a Terra.

(Arquimedes)

As obras de arte se situam à mesma distância filosófica da realidade que as palavras e colocam os que as
contemplam como obras de arte a uma distância comparável, e como, ademais, essa distância cobre o espaço
no qual os filósofos sempre trabalharam, penso que a arte tem uma pertinência filosófica.

(Arthur Danto)

2.1- A fórmula de mundo do Materialismo representacionalista


Afinal, se a estética filosófica está desincentivada de seu papel tradicional de interpretar a
atividade artìstica, ―por que a arte [pode] faz[er] parte das coisas sobre as quais pode haver
uma filosofia?‖139. Se não pode haver de maneira alguma uma estética ontologicamente
comprometida, permanece o desafio premente de a filosofia estabelecer um método para o
tratamento da arte que, desde então, desafiou, segundo Danto, a maneira pela qual se

139
DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum, pág. 99.

60
praticava a reflexão filosófica sobre ela. Reformulando, pois, teríamos: por que a arte faz
parte das coisas sobre as quais não pode haver uma estética, mas sim uma filosofia da arte?

Esta pergunta exige que analisemos a relação entre arte e filosofia, isto é, as pressuposições
do tratamento danteano conferido à arte. Apresentaremos as estruturas do mundo nas quais
a estética não encontra ressonância. É, antes, a filosofia da arte que se justifica. Este
distanciamento quanto à abordagem das razões e concepções fundamentais da filosofia
danteana da arte nos permitirá compreender como a única filosofia que se pode ter da arte é
uma filosofia da arte, não uma estética filosófica. O motivo básico é que a estética,
tradicionalmente comprometida com o domínio ultrapassado da aparência, não é
autossuficiente para tratar objetos cuja natureza parcialmente está no mundo, mas outra
parte o ultrapassa peculiarmente.

O caminho para o qual acena esta questão nos leva adiante na agenda de Connections to the
World que, como obra ensaística, não trata exaustivamente todos os temas e questões
polêmicas que suscita. Não esperamos apresentar um resultado definitivo. Contudo, uma
vez que há poucos apontamentos sobre a reflexão metafilosófica e o sistema danteano na
academia brasileira, haverá um ganho adicional de informação a este respeito.

Na última parte de Connections to the World, Danto desenvolve um pouco mais os


elementos básicos e as relações respectivas da noção de episódio cognitivo básico e propõe
em linhas gerais uma metafísica capaz de abarcar a variedade de casos aos quais estariam
sujeitos os seres humanos, compreendidos como representational beings (ens
representans). Em última instância, esta teoria estabeleceria uma agenda (bastante
tradicional) em que estariam esboçados os meios pelos quais conheceríamos igualmente o
mundo e nós mesmos, individual e intersubjetivamente. O desdobramento desta teoria
equivale à efetivação do projeto de filosofia, o conteúdo mesmo da metafilosofia e
compreende uma metafísica descritiva das relações entre sujeito, mundo e representações.
À sua maneira, a resolução danteana mais ampla da estrutura triádica básica do pensamento
filosófico fornece uma fórmula na qual a totalidade do mundo possui apenas duas
substâncias: matéria e representação.

61
Danto nomeia sua resolução de representational materialism (materialismo
representacional). Na medida em que trata ao mesmo tempo do ens representans e do
Mundo, ela pretende oferecer o ponto que faltava para tornar sólida a crença (até então
mero truísmo) da simetria entre sujeito e mundo, segundo a qual o Mundo deve possuir a
forma geral de nosso funcionamento; que deve haver alguma espécie de afinidade
correspondente entre nós e o Mundo: se nós somos seres representacionais, o mundo
também teria uma forma representacional. Assim, o materialismo representacionalista é a
versão danteana para tentar superar esta cisão constitutiva.

Levada às últimas consequências, o materialismo representacionalista ambiciona encontrar


na plasticidade e dinamicidade do tecido neuronal uma identidade unívoca entre matéria e
sua essência (representacional). Se confirmada, a filosofia do materialismo
representacionalista apresenta-se como uma opção consequente contra o ceticismo dualista,
oferecendo um modelo amplo no qual se poderia lançar luz sobre questões antropológicas,
da filosofia da mente, da metafísica e da filosofia da arte e estética 140. Este era o escopo
originalmente concebido no projeto de construir uma filosofia da representação. Mas ela
não foi levada a cabo141.

As discussões acerca do ens representans e do materialismo representacional estão


intimamente relacionadas e jogam com as objeções céticas acerca das inseguranças
impostas pelo hiato corpo-mente, humanos-animais (ou humanos-máquinas), matéria-
representação e, por extensão, com a distinção entre obra de arte e mera coisa real. Se não,
a fórmula de mundo proposta pelo materialismo representacional apresenta ao menos o
quadro geral no qual se enquadraria a arte enquanto composto específico de matéria e
significado. Uma vez que o desincentivo da estética filosófica tradicional se justifica na

140
A hipótese não é exposta expressamente por Danto nesta obra, mas porquanto a superação da inestética
pela estética do significado passa pela compreensão da ―apreciação [como] uma função da situação cognitiva
do esteta‖ (A Transfiguração..., p. 172), que vê algo de tal e tal forma porque sabe que está diante de uma
obra com um significado dado, o materialismo representacionalista se apresenta como um debate interessante
acerca das possibilidades de superação das dificuldades um tanto dicotômicas impostas pela diferenciação
entre percepção e interpretação, próprias do método dos indiscerníveis.
141
Até pelo menos 1981, o propósito de Danto era escrever uma filosofia da representação. O último volume
de uma série de cinco deveria tratar da filosofia da mente, mas as atenções do filósofo foram todas capturadas
pela demanda de refletir sobre a arte. Entretanto, The Body/Body Problem (University of California Press,
1999) reúne ensaios de caráter seminal em que se executa a agenda tradicional da filosofia da mente à luz da
noção de representação, embora não nos pareça ser o desenvolvimento sistemático completo do projeto
originalmente vislumbrado.

62
suposta fundação desta sobre o signo da experiência, apreciação e prazer sensíveis (os quais
Danto encapsula na noção de ‗percepção‘), tal domínio não seria capaz de alcançar o
domínio propriamente filosófico. Segundo Danto, como a estética filosófica não é capaz de
operar a distinção entre o domínio da experiência e algo mais real para além dele, ela é
desviante.

Enquanto proposta filosófica, o materialismo representacionalista é o pano de fundo para a


compreensão adequada da posição que a arte ocupa no todo da criação dos ens
representans, ao mesmo tempo em que fornece as fronteiras cuja tarefa interpretativa a
filosofia danteana trilha. Para avaliar se os conceitos propostos por Danto oferecem bons
argumentos às objeções céticas ou um pelo menos um esboço do quadro ontológico geral
em que se encontra a arte, é preciso antes expor os elementos mais centrais desta filosofia,
constituídos pelos polos mais básicos apresentados no esquema da estrutura básica da
filosofia.

2.1.1- Ens Representans


Os filósofos sempre ofereceram metáforas para explicar a relação de nossa mente com o
mundo: No Teeteto, Sócrates diz que nossa mente é como um pedaço de cera; Locke falava
da tábula rasa. Segundo Danto, como ens representans, nosso corpo está essencialmente
marcado por estados sentenciais à maneira do prisioneiro de A Colonia Penal de Kafka.
Somos entidades linguísticas, e estas metáforas acerca da relação mente-mundo oferecem
―modelos de nós como seres representacionais e mesmo como seres sentenciais‖142. Além
disso, se verdadeiras, elas nos mostram a analogia através da qual podemos distinguir
humanos tanto de outros animais quanto de máquinas.

Segundo Danto, o sistema representacional formado em nós seria como a complexa rede de
teia de aranha: ―Uma metáfora melhor seria a da teia de aranha, na qual perturbações em
qualquer lugar fazem com que a aranha corra rapidamente em direção à fonte da
perturbação‖143. Por outro lado, a diferença entre nós e as máquinas é que elas ―não estão

142
DANTO, A. Connections to the World, p. 250.
143
Ibdem, p. 251.

63
conscientes de estarem conscientes – não são autoconscientes‖ 144 . Em outras palavras,
máquinas não são racionais, pois não são capazes de dar o passo atrás (back step) 145 .
Máquinas não são capazes de fornecer razões para justificar ações e crenças epistêmicas.
Por mais que parte considerável de nossa constituição consista em ―estar linkado‖ ao
mundo, para ser um ens representans é preciso mais que apenas ser afetado por estímulos
externos. Existe uma espécie de proeminência na tradição filosófica em analisar qualquer
transação cognitiva na qual ―nós somos descritos como receptáculos passivos de
representações vindas de fora‖146 – e de fato boa parte do debate analítico se dedicou a
superar o nocivo mito do dado, assim como muitos filósofos interlocutores de Danto de
alguma forma operam sob o esquema aparência-realidade.

É preciso que haja uma inter-relação dinâmica, uma via de mão dupla: ―a representação
deve modificar o ens representans de um jeito outro que apenas causando
representações‖147: ―A resposta [...] é que somos uma série de sistemas inter-relacionados, e
estes sistemas são exatamente aqueles postulados pela psicologia popular‖ 148. Em primeiro
lugar, realmente representamos a nós e ao mundo a partir das crenças perturbadas por
aquilo que as tornam verdades. Em segundo lugar, postula-se que ―há certas propensões –
inatas ou adquiridas – a fazer algo quando temos certas crenças‖, isto é, ―representações
traduzidas em ação‖ 149 . O que a folk psychology postula, portanto, é que somos
constrangidos pelo mundo, que as atitudes proposicionais (crenças advindas como respostas
a este constrangimento) possuem com ele uma relação de causação fundante, e que a
consequência desta relação é uma resposta ativa traduzida em ação ou em um conjunto de
representações e interpretações (teorias). Em termos ―populares‖, posso justificar a crença
que possuo com base no modo como o mundo se dá a mim e, assim, me qualificar a agir no
mundo. Ajo assim porque o mundo se mostra como tal.

144
Ibdem, p. 251.
145
A capacidade de dar o passo atrás (back step) é o critério tradicional utilizado no contexto analítico,
principalmente pelos chamados filósofos da escola de Pittsburgh (destacam-se aí as figuras de John Mcdowell
e Robert Brandom). Em Mcdowell, por exemplo, este conceito fundamenta a posição internalista em
epistemologia e filosofia da ação. O back step é evidência de racionalidade. Uma formulação standard deste
conceito possui ressonâncias fortes na filosofia como um todo, especialmente na filosofia kantiana e o legado
desta para o idealismo alemão.
146
DANTO, A. Connections to the World, p. 254.
147
Ibdem, p. 251.
148
Ibdem, p. 252.
149
Ibdem, p. 252.

64
Contudo, haverá sempre ―o poder da autossugestão‖ pois, num ―sistema perceptivo [...] o
sistema de crenças é ativado por similaridades‖150. Assim, enganos perceptivos podem ser
ou delusões ou representações sem objeto, criadas por intencionalidade de representação,
que faça crer que X com base em representações prévias de situações perceptivas
equivalentes. Danto assume um modelo padrão de conhecimento: ―Temos conhecimento
quando, e apenas quando, nossas representações tornam-se verdade por aquilo o que nos
leva a tê-las‖151. Conheço se, e somente se, sou capaz de dar razões às minhas próprias
crenças, sejam elas razões externas à minha mente (causadas pelo mundo) ou à crença posta
em cheque (apelando, pois, a um sistema prévio e holístico de crenças). Danto assume:

Isto dá origem à centralidade da epistemologia na imagem filosófica do ser


humano, na qual a questão agonizante é como nós sabemos se algumas de nossas
representações correspondem a causas externas e quando estamos obrigados a
responder as questões a partir de dentro – isto é, com base no conjunto de
representações152.

Com efeito, este padrão epistemológico é misto: é externalista na medida em que pretende
ser a melhor estratégia justificar estados de crença a partir do que as causou, isto é, de
constrangimentos do mundo; mas também possui um caráter internalista, quando
justificativas causais com o mundo não estão disponíveis, não estão asseguradas ou não são
necessárias. Tiziana Andina dá mais relevo à centralidade da epistemologia:

O coração do sistema danteano é indubitavelmente provido pela epistemologia.


Primeiro é necessário compreender como nossa visão da realidade e nossa
compreensão de mundo são arranjadas. É igualmente necessário compreender até
que ponto as representações de nós mesmos, dos eventos que compõem a história
do mundo e das coisas do mundo têm a ver com a verdade 153.

Esquematizemos da seguinte forma: do ponto de vista de nossas estruturas neuronais, as


impressões que o mundo causa em nós possuem a forma de proposições. Como tal, o
constrangimento de nossa sensibilidade se dá na forma ‗que P‘, que confere ao quadro
percebido um sentido relacional daquilo que o compõe, estruturado nesta forma. Isto
significa que atitudes proposicionais (‗creio que p‘) são sempre minimamente conscientes.
Com efeito, estas impressões propõem um estado do mundo e viabilizam a crença neste
estado. Uma crença nada mais é que uma permanência mais ou menos substanciosa destas

150
Ibdem, p. 252.
151
Ibdem, p. 251.
152
DANTO, A. Connections to the World, p. 254.
153
ANDINA, Tiziana. Arthur Danto: philosopher of pop, p. 10.

65
impressões em nosso tecido neuronal. Esta relação viabiliza ulteriores justificativas destas
mesmas crenças, se for o caso. Como estas impressões possuem a forma proposicional e
são o centro das crenças em estados de coisas percebidas, as crenças são proposicionais e
nós somos seres sentenciais. O modelo por excelência para a representação em Danto é a
noção de sentença.

As relações (i), (ii) e (iii) correspondem, respectivamente, à relação


de causalidade (entre sujeito e mundo), à relação com nós mesmos
(entre o sujeito e as representações de si) e à verdade.

Isto dito, a classe da representação se estabelece como se segue: crenças são representações
apenas quando (a) são memórias, (b) quando processam estímulos externos que remontam a
memórias e (c) quando são interpretações (representação de representações). De resto, o
todo da representação está relacionado à percepção, pois ela ―é ativada pelos mais simples
sinais – um zumbido, um arranhão, uma forma ou cor, ou um odor. Perceber é, ipso facto,
interpretar, e a peça de cera de Sócrates é, no fim, muito inerte para acomodar esta rede de
representações em constante mudança‖154. Assim, ―Nem todo estado corporal é um estado
representacional‖, mas todo estado representacional é corporal. Há processos não
representacionais em nós, mas eles são condição para a ocorrência de representações
ligadas à percepção ou a estados de crença.

154
DANTO, A. Connections to the World, p. 253.

66
Assim caracterizadas as entidades representacionais (seres humanos, mas também os
animais), Danto se põe a esquematizar a origem dos estados representacionais em nós em
―quatro tipos principais [que] podem ser distinguidos dependendo se os estados
representacionais são causa ou efeito, ou ambos ou nem causa nem efeito‖ 155:

Estados Representacionais

CAUSA EFEITO

1- R R

2- R R

3- R R

4- R R
‘R’ significa que é um estado representacional; ‘R’ significa
que se trata de um estado não-representacional.

Episódios do tipo 1 – em que estados representacionais são causados por uma representação
e tem representações como efeito – são tipos de episódios ―holìsticos‖ nos quais ―alguém
crê em uma coisa por causa de sua crença em outra coisa‖ e seriam ilustrados por exemplos
como ―crer que o som que ele ouve são causados pela chuva e então ele crer que está de
fato chovendo. Ou crer que Sócrates é mortal porque crê que todos os homens o são, e
então Sócrates também o seria‖156. Episódios deste tipo são ―episódios de raciocìnio, onde
inferimos certas coisas com base em outras, conduzindo ao modelo de seres humanos como
racionais ou, conforme proposto mais recentemente‖, como computadores de alta
velocidade de processamento. O tipo 2 de episódio é o tipo ―ordinário de transação
cognitiva no qual alguém crê que chove ‗lá fora‘ porque está realmente chovendo ‗lá fora‘‖.
E mais: ―O tipo 2 figura proeminentemente naquela sorte de metáfora da tábua de cera que
por séculos dominou os modelos de mente através dos quais foi pensada a compreensão

155
Ibdem, p. 253.
156
Ibdem, p. 254.

67
humana geral‖ e para a qual funcionaríamos como meros ―dispositivos de entrada‖157. Mas
com os ―episódios do tipo 3 nós adentramos no mundo: esta é a modalidade de ação na qual
nós modificamos o mundo para conformá-lo às representações que dele possuímos, se
assim podemos fazer‖. Faz todo sentido que Danto se interesse – como de modo diferente
se interessou McDowell – que não ―percamos o mundo‖. Assim, ―Um bom exemplo do
tipo 3 é quando alguém realiza alguma ação, movimentar o braço, digamos, porque ele quer
fazer algum sinal a outra pessoa e este movimento que faz com o braço satisfaz sua
representação‖ 158 . Parece satisfatório que interpretemos que o significado almejado é o
critério para julgar a ação de movimentar o braço, dotada de função representacional. ―Os
episódios de tipo 4 são os tipos usuais de episódios causais discutidos pelos filósofos‖ afim
de ilustrar a questão cética, tais como ―uma bola de bilhar se movendo quando atingida por
outra, um painel de vidro se quebrando quando atingido por uma pedra, um fósforo
entrando em combustão quando riscado‖159.

Embora o contrário não seja verdadeiro, ―Sempre que há episódios dos tipos 1, 2 e 3, há
episódios do tipo 4‖, alguns deles possuindo uma importância vital para as representações,
já que ―se o nível de açúcar no sangue cair, as representações são bloqueadas‖160. Assim, se
episódios do tipo quatro são condição necessária para os demais, e Danto crê ser acertada a
ideia segundo a qual se há apenas episódios do tipo quatro, então as ―representações são
materialmente corporificadas‖161. Em momento oportuno, seria importante investigar em
que medida a corporificação material das representações através do episódio 4 significaria
uma redução ou eliminação do domínio representacional pelo domínio material.

Ora, porquanto Danto afirma que o materialismo representacional sustenta que somente
existam dois tipos de coisas – matéria e representação - , a redução dos tipos 1, 2 e 3 ao tipo
4 parece não eliminar certo tipo de dualismo de substâncias, a não ser que esta redução
deva ser compreendida como uma espécie de superveniência – todavia sempre marcada.
Em todo caso, está mantida a possibilidade de disjunção descritiva acerca de uma e de
outra.

157
Ibdem, p. 254.
158
Ibdem, p. 253-4.
159
Ibdem, p. 253.
160
Ibdem, p. 255.
161
Ibdem, p. 255.

68
2.1.2- Episódio cognitivo básico como princípio de simplicidade
O materialismo representacional sustenta que ―Tanto quanto se imponha o problema mente-
corpo, o ponto de vista que [...] defendo é que o corpo é ele mesmo sentencialmente
estruturado. Talvez, ou mesmo provavelmente, o que é sentencialmente estruturado seja o
tecido nervoso‖162. Isso de tal forma que ―quando alguém crê que P, por exemplo, então ele
está em um estado sentencial que mantém que P da mesma maneira que uma elocução
[utterance] P mantém uma inscrição de P‖163.

Esta doutrina insiste

que há dois tipos de casos [matter] no universo, coisas que são representacionais e
coisas que não o são. Ele endossa uma metafísica que sustenta que o mundo deve
ser tal para que partes dele elevem-se à condição de representá-lo, incluindo o fato
subsequente que tais partes não só representam o mundo, é claro, mas são capazes
de representarem a si mesmos fazendo isso. Seres representacionais – nós e os
animais – são como aberturas na escuridão, como luzes vagantes, iluminando o
mundo e a si mesmas de uma só vez‖ 164.

Como adiantamos acima, o materialismo representacional defende (a) um dualismo de


substâncias – matéria e representação –, pois cada uma possui descrições irredutíveis entre
si e (b) uma tese metafísica mais forte segundo a qual existe uma afinidade entre mundo e a
atividade representacional. A metáfora dos seres representacionais como luzes sobre o breu,
além de metáfora encorajadora, reitera a ideia segundo a qual o destaque representacional
deve-se à existência de seres como nós.

A principal característica teórica do materialismo representacionalista é a intencionalidade.


Desde Franz Brentano a intencionalidade é tratada como o que define a fronteira entre o
físico e o mental. Entretanto, Danto discorda da tese da irredutibilidade de Brentano, uma
vez que discorda que não possa haver qualquer relação entre mente e cérebro. Segundo
Danto, a abordagem sob a ótica materialista oferece uma resposta natural dos estados de
crenças (leia-se, comprometida com a existência de menos entidades) e mais bem
comportada de coisas que existem somente enquanto ficções (isto é, logicamente
consistente com o princípio do terceiro excluído, da não-contradição e da identidade).

162
Ibdem, p. 243.
163
Ibdem, p. 244.
164
Loc. Cit.

69
(i) Segundo Danto, este materialismo dá uma explicação muito mais natural dos
aspectos lógicos envolvidos na intencionalidade dos estados mentais. De fato,
―se as proposições em que acreditamos forem de fato estados sentenciais de
alguém, haverá uma explicação completamente natural das características da
intencionalidade‖165. Considere as sentenças: (a) Clark Kent is a weakling e (b)
Superman is a weakling. Considerando que crenças proposicionais são estados
sentenciais e que no exemplo acima as proposições possuem forma sentencial
[sentential shape] distintas (numa o sujeito é Clark Kent e, na outra, Superman),
―então, claramente não há garantia de que uma pessoa que tenha uma sentença
com a forma da primeira terá, ipso facto, uma sentença com a forma da segunda.
É muito mais provável que possua uma sentença com a forma sentencial como a
da primeira e outra com a forma‖ Superman is not a weakling – isto se
‗Superman‘ é um sujeito de alguma sentença no conjunto de suas crenças. Se há
tal sentença disponível e as sentenças (a) e (b) ocorrem, a explicação mais
natural para isso é que provavelmente tal pessoa nunca ligou Clark Kent a
Superman. ―Tivesse ela feito isso, é quase certo que as duas sentenças iniciais
não teriam figurado nela como uma representação do mundo‖166.
(ii) A segunda característica metafísica da intencionalidade embutida no
materialismo representacional pretende oferecer uma explicação sem problemas
de crenças proposicionais ligadas à ontologia de objetos ficcionais. Desde o
ponto de vista material-representacionalista, como oferecer uma interpretação
logicamente consistente a uma crença cujo objeto não existe? Afirma-se,
portanto: ―Pode ser verdade que a intencionalidade é a marca do mental – mas
apenas porque o mental é em primeiro lugar representacional e, em segundo
lugar, material‖167. Considere: (c) Jane believes that Superman is kind e (d) Jane
noticed that Superman was kind. A sentença (c) envolve um estado de crença e,
seguindo a primazia do representacional, devemos aplicar sobre ela os critérios a
seguir, pois valem ―para coisas que podem ser verdadeiras ou falsas‖, que
―contém componentes que fazem referência ou falham em fazer referência, que

165
Ibdem, p. 245.
166
Ibdem, p. 245.
167
Ibdem, p. 246.

70
designam ou falham em designar, que correspondem ou falham em
corresponder‖168. Isto é, representações possuem valor-verdade. A sentença (b)
refere-se a um processo atual ou não e, como tal, recai sobre a instância
material. Dizemos de um fato se ele é ou não o caso, não que um fato atual é
falso e, por isso, devemos aplicar àquela sentença critérios ―aplicados a objetos
materiais‖. Jane não pode ter se dado conta de algo que não é o caso.

Segundo Danto, os filósofos deveriam ter estudado a intencionalidade mais pelo viés
materialista, focando principalmente a questão ―de qual sorte de realidade as sentenças
possuem‖ 169 . O tratamento da intencionalidade sob este viés tornaria a filosofia mais
consistente e melhor preparada para lidar com refutações tanto
reducionistas/naturalistas/materialistas quanto representacionais/essencialistas. Além disso,
a perspectiva materialista da intencionalidade ofereceria, segundo Danto, ―os primórdios de
uma boa teoria de como mentes podem estar situadas em corpos‖ 170. Mas, se esta teoria é
minimamente sólida, o que ela permitiria encarar com maior efetividade seria a objeção
cética mais fundamental segundo a qual não há qualquer garantia de que possamos
argumentar com segurança inabalável que nossas representações encontrem direto amparo
no mundo.

Danto passa a analisar o problema da identidade, pois parece dele depender quando assume
que um estado de crença é um estado sentencial (uma atitude proposicional em sentido
forte) de um ens representans. Em outros termos, o que está em jogo aqui é se o sentido
dado ao ‗é‘ numa frase como ‗Clark Kent is a weakling‖ tem o mesmo sentido quando
escrito (impresso, manuscrito, pintado, pichado, etc.), falado, pensado que quando inscrito
nos tecidos neuronais. Analisando a estratégia argumentativa utilizada, isto significa, por
um lado, que se ficar confirmado que ocorrências cerebrais possuem significados tout court
equiparáveis ao padrão proposicional, então teria ficado estabelecido, a partir do mundo
mesmo, e do lado de fora da dimensão da representação, que estados neuronais são sim
representacionais. Se o que se quer concluir é que o mundo é ele também representacional,
qualquer argumentação que se faça a partir da dimensão representacional mesma será não

168
Loc. Cit.
169
Loc. Cit.
170
Ibdem, p. 247.

71
consequente. A estratégia é argumentar a favor da correspondência da maneira mais
imparcial possível. Sendo ela verdade, estaria estabelecida a identidade
sentencial/representacional.

Por outro lado, cada um dos ―nìveis‖ escrito, falado e pensado possuem uma consistência
diferente, o que com certeza torna mais difícil determinar a natureza de cada identificação
feita em cada um dos níveis na medida em que este se torna mais escorregadio.
Analogicamente, a consistência ontológica de uma frase escrita em comparação a uma
proposição corresponderia, na argumentação de Danto, à consistência ontológica de uma
sentença escrita em relação a uma neurosentença, isto é, a maneira como nosso aparato
neuronal está sentencialmente constrangido e estruturado. Ser uma neurosentença significa
que um estado neuronal possua a forma ‗que P‘. A noção utilizada para salvar a unidade
sentencial corpo-mente é o par conceitual matéria e forma, ―uma resposta tão velha como o
é a metafìsica‖ – uma resposta verdadeiramente metafísica, na verdade: Aristóteles e
Wittgenstein sustentavam que ―no corpo humano nós temos a melhor imagem do que
encontrarìamos na mente humana‖171.

O caráter de necessidade seria garantido pela forma, na medida em que ―a mesma forma
pode ser materializada em vários meios‖ materiais. Mas a matéria não é passiva, ela
interage no resultado final da conformação, ao qual Danto denomina configuração (shape).
Cada combinação diferente entre forma e matéria resulta uma configuração diferente.
Entretanto, ―Se sentenças escritas e faladas podem variar, é difícil esperar que transcrições
neuronais devam ser invariantes de pessoa para pessoa‖ 172 . Por transcrições neuronais,
Danto compreende a interpretação do sistema nervoso como um sistema de representação
sentencialmente organizado, isto é, a interpretação de cada configuração em transliterações
escritas, faladas ou de outro tipo, mas que seja correspondente à neurosentença original. É
imprescindível dizer, entretanto, que esta é uma teoria não totalmente desenvolvida. Por
isso, é importante que se aprenda a interpretá-la: um trabalho bastante complexo, Danto
admite, mas que ―de qualquer forma, as leis da neurofisiologia [...] serão como as leis da
escrita ou da fala‖173. Um trabalho interpretativo complexo que combina neurofisiologia e

171
Loc. Cit.
172
DANTO, A. Connections to the World, p. 248.
173
Ibdem, p. 247.

72
análise do discurso. Sob o pano de fundo metafísico do materialismo representacional, o
exercício desta tarefa científico-filosófica consistiria em ―mostrar como o tecido nervoso
representa‖174.

Mais uma vez, este pano de fundo metafísico do materialismo representacional esbarra
numa redução difícil. Não fica claro quais elementos deveriam ser escolhidos para tal
interpretação neurosentencial caso entrem em conflito análises naturalistas e discursivas ou
como devem ser combinadas, mesmo sem conflito de paradigmas. Uma argumentação
como a do monismo anômalo, proposto por Donald Davidson 175, não é uma possibilidade
para Danto, pois esta é uma teoria de identidade de eventos específicos que nega a redução
do mental ao físico e vice e versa. Assumindo ela que eventos mentais individuais sejam
idênticos a eventos cerebrais individuais, mas que se pode também descrevê-los ora como
atitudes proposicionais (como eventos mentais: desejos, crenças, intenções) ora como
eventos físicos, eles são irredutíveis uns aos outros. A análise ensejada por Danto depende
exatamente de uma composição discursiva na qual estes tipos diferentes devem ser
combinados de forma a fornecer uma interpretação totalizante, coerente e fluida.

Neste sentido, ―A intuição importante do materialismo representacionalista é que nós


somos construídos sobre os princípios dos textos, que somos palavras tornadas carne‖176.
Ou seja, somos palavras corporificadas! O significado do texto escrito apenas ―é uma
função de como os textos de nossas vidas foram escritos‖ e ―a mente é um texto sendo
constantemente reescrito e revisitado‖177.

Utilizando a metáfora leibniziana do ‗adentrar as engrenagens‘, Danto conclui dizendo:


A minha ambição [com a análise dos estados representacionais e com o esboço da
metafísica do materialismo representacional] é que entremos no moinho que é outra
pessoa e aprendamos a ler o texto de sua mente. Em certo sentido, saberíamos
incomensuravelmente mais sobre nós mesmos se pudéssemos fazer isso. Por outro
lado, creio, saberíamos muito pouco uns dos outros além do que sabemos178.

174
Ibdem, p. 243.
175
Davidson, Donald. "Mental events" (1970), In: Beakley, B. e Ludlow, P. eds. (1992) The philosophy of
mind: classical problems/contemporary issues. Cambridge, Mass.: MIT Press, pp. 137-149.
176
DANTO, A. Connections to the World, p. 248. (Grifos nossos).
177
Ibdem, p. 253.
178
Ibdem, p. 256.

73
Conforme é dito em A Transfiguração do lugar-comum, a obra de arte nos dá a conhecer a
mente de nossos reis. A arte seria o lugar por excelência da revelação. Por outro lado, a
filosofia, como angústia da procura por si e pelo mundo no qual estamos, tem no
autoconhecimento a sua redenção e, como tal, é como um exemplar em escala diferente da
filosofia da história da arte.

―Palavras tornadas carne‖ – poético e sugestivo! Relativamente aos Seres Humanos como
ens representans, a obra de arte é, ao mesmo tempo, exemplar e metafórica. Na medida em
que a definição de obra de arte oferecida por Danto assevera que toda obra corporifica seu
significado, sendo, portanto, intencionada, revelando o modo de ver do artista, o modo
como representa algo de si ou do mundo, forjado com a marca de seu estilo, poderíamos
dizer que a obra revela algo de alguém. Por outro lado, é uma metáfora, uma analogia, do
que é o Ser Humano, pois, em última instância, mente e corpo formam um todo complexo
e, da mesma forma como a res cogitans é corporificada, ―significados são corporificados
em marcas físicas ou sons, ou Vista de Delft é corporificada no desenho que Vermeer
manipulou para forjá-la‖ 179 . Neste ínterim, as obras de arte constituem uma classe
curiosamente interessante. Somos ―palavras encarnadas‖, assim como as obras são corpos
feitos por palavras.

Todavia, em A Transfiguração do Lugar-comum, a percepção das obras de arte, após ceder


seu pretenso lugar de primazia às condições necessária e suficiente, não mais possui
esperança de retomar qualquer papel importante, pois não fica claro como poderiam tais
condições ser identificadas perceptualmente numa obra – principalmente se não se está
cônscio de tal definição da arte.

179
DANTO, Arthur. The Body/Body Problem: selected essays. Los Angeles: University of California Press,
1999, p. 14.

74
2.1.3- O “estrangulamento do representacionalismo” e a falácia
instrumental
Interpretando a ideia de representação como aquilo que funda o sentido, a crítica de Sue
Spaid180 à noção atuante em Danto (isto é, representação) parte do acesso perceptivo e do
papel cognitivo da arte, especialmente o tipo de arte da ―presença‖ (being-here), artes cujo
acesso não é ―nem imediato nem mediato‖, mas, ―de fato, elas se desdobram no tempo‖.
Assim, ―Embora o assunto ou o significado da arte seja representacionalmente
caracterizado, seu conteúdo dificilmente parece estar lógica ou causalmente conectado à
dimensão mais oculta do trabalho artístico, tal como exige o representacionalismo
rìgido‖181. Com efeito, assumindo que o prazer que podemos experimentar com obras de
arte não usuais demanda uma grande sedimentação de obras de arte prévias (e isso confere
um caráter contraditório à noção de ―prazer estético‖, que se pretende imediato), o
problema central a que Sue Spaid se dedica é saber se pode o prazer que alguém sente ser
aquilo que os estetas pretendem dizer com a noção de prazer estético. Segundo Spaid, as
noções de representacionalismo e sentido, aplicadas unívoca e estritamente por Danto,
somente se mantém de pé porque os desafios levantados pela presença (isness e being-
here) de várias obras é minimizado. Spaid alega ainda que a filosofia e a crítica danteana
―privilegiam experiências de primeira mão‖ – o que tornaria ainda mais problemático este
quadro.

O problema remonta à teoria da ação de Danto. Na medida em que as razões justificariam


as ações do sujeito moral, as intenções deveriam determinar previamente o significado de
sua obra acima de todo o debate ulterior realizado pelo mundo da arte. Mas intenções são
insuficientes neste sentido e, além disso, incertas, obscuras e não atuais. Enquanto obras de
arte são geralmente atuais, as intenções não o são e também não poderiam estar
logicamente estabelecidas anteriormente à existência da obra – ―a intenção do artista não
pode ser justificada por meio do apelo às suas razões‖ 182 . A maneira como a obra é
apreendida dependeria, segundo Spaid, muito mais das necessidades e da sensibilidade de
seus expectadores. Mesmo assim, Sue Spaid concorda com o critério de corporificação da
180
Cf. SPAID, Sue. Being-Here: Representationally Characterized Events or Not… In: AUXIER, Randall
E.; HAHN, Lewis E. (editors). The Philosophy of Arthur Danto. Chicago: Open Court, 2013, p. 193-207.
181
Ibdem, p. 194.
182
Ibdem, p. 197.

75
obra de arte e com o fato de ser pouco relevante a aparência da obra para com a formação
deste critério. O que ela julga inválido, no entanto, é a inferência segundo a qual o
significado incorporado mostra sobre o que é a obra, pois ―isso implica a anterioridade de
algum conceito explanatório ou uma interpretação ideal, ao invés de um conceito que o
espectador atribua à obra‖ 183 . Ademais, aplicando esta interpretação à classificação
proposta pelo quadro dos Estados Representacionais, estariam excluídos todos os
exemplares artísticos enquadrados nos tipos 3 (ações inexplicáveis) e 4 (being-here/arte
experimental), sendo abarcados apenas aqueles exemplares cujas informações lemos ou
interpretamos através das representações subjetivas e/ou intersubjetivas disponíveis. O
significado incorporado, como conceito explanatório ou interpretação ideal, por ser
partidário de um intencionalismo estrito, limitaria o espectro de relações e experiências
(muito mais amplo ao qual arte e ação permitem) apenas aos tipos 1 e 2. Segundo Spaid, a
própria Brillo Box ―prova que o resultado de uma ação (a intenção do artista) nem sempre é
imediatamente disponível como um evento representacionalmente caracterizado, embora
184
eventualmente ele deva ser‖ . Os indiscerníveis são um tiro no pé no
representacionalismo, pois ―como sete pinturas vermelhas idênticas com seis títulos
diferentes causam sete reações separadas no caso 1‖ e ―Se o significado fosse causalmente
conectado a cada objeto, [então] sete quadrados vermelhos renderiam apenas um resultado
[...], deixando apenas um significado possível‖185.

Spaid acredita que a estratégia argumentativa de Danto afasta providencialmente as falsas


crenças a partir do momento em que, do ponto de vista representacional, estabelece que é
impossível distinguir a crença em P da crença de que P é verdadeira (representação e
mundo são indistintos), mas que é uma muleta que insinua certeza e que ou acredita que o
sentido é obtido da coisa ou que a coisa impõe seu sentido sobre o expectador. Somos
levados a uma falsa bifurcação. Neste sentido, Spaid acredita que Danto usa o mesmo
sentido de representação necessário à articulação do juízo estético no primeiro momento da
Crítica da Faculdade de Julgar, de Kant, porque ―ele requere algum método de
representação para articular o juízo estético‖186. Além disso, ao estabelecer como condição

183
Ibdem, p. 197.
184
Loc. Cit.
185
SPAID, Sue. Being-Here, p. 201.
186
Ibdem, p. 198.

76
para a arte que ela deva possuir um significado, torna-se imperativo que qualquer obra o
possua e, portanto, comete-se a falácia instrumental. Se a questão da arte é ontológica, a
descrição de sua natureza deveria ser indicativa, não imperativa. Impõe-se previamente à
existência da obra uma norma: se é arte, ela deve ter significado e não pode eventualmente
não possuir significado. O que defenderia a teoria danteana da acusação de ser um discurso
descredencializador? Kelle Puolakka, Virgínia Aita e Tiziana Andina identificam a
metadiscursividade como a plataforma a partir da qual a filosofia danteana da arte pode ser
edificada sem qualquer alegação normativa pré-concebida. Contudo, é necessário esclarecer
a visão metafilosófica de Danto, bem como delinear seu projeto sistemático. Do contrário, o
papel desempenhado pelos indiscerníveis permanecerá insuficientemente esclarecido.

Para Sue Spaid, a normatividade da definição de obra de arte como significado impõe um
‗ter de‘ que mina a categoria mais especial da arte, sua liberdade.

Não apenas o representacionalismo é não-necessário, como também engendra


uma noção forte de significado que encaminha à falácia instrumental. Reduzir o
status indicativo da arte a um imperativo faz sentido como um critério
epistemológico, mas não certamente como critério ontológico 187.

Obras de arte associadas ao being-here são desafiadoras. Conforme defende Spaid, tais
obras engendram prazer estético, requerem uma análise ―pós-jogo‖ para articular
experiência e significado, melhoram a acuidade perceptiva e a capacidade cognitiva e
desafiam o estrangulamento do representacionalismo. Seu status e sua vivência não
dependem de qualquer mediação prévia para acontecer. Elas desafiam qualquer
instrumentalização teórica e a transformação de qualquer de seus aspectos em regra de
produção ou de interpretação para além da própria arte e da sua vivência.

Em resposta a Sue Spaid188, Danto busca defender-se da acusação de amplitude e fraqueza


do termo representação. Em primeiro lugar, esclarece o que entende por representação em
arte: ―[...] elas tem significado, ou que elas são sobre algo, ou que possuem conteúdo‖189.
Um argumento forte, neste sentido, é que pinturas contendo símbolos religiosos, sexuais ou

187
Ibdem, p. 206.
188
DANTO, A. Reply to Sue Spaid. In: AUXIER, Randall E.; HAHN, Lewis E. (editors). The Philosophy of
Arthur Danto. Chicago: Open Court, 2013, p. 208-213.
189
Ibdem, p. 209.

77
quaisquer outras representações não podem ser ―being-here‖ – em que sentido poderíamos
afirmar isso de Cristo, dos Dominicanos, de Vênus ou mesmo do Espírito Santo.

Sue não está dizendo, no entanto, que toda a classe de obras de arte é formada por obras
being-here, apenas que aquelas obras de arte cujo significado não está
representacionalmente determinado são um problema para a teoria all inclusive de Danto.
Além disso, ela não nega que obras possuam algum significado. Ela argumenta que seu
aboutness não é sólido o bastante para que possamos simplesmente deduzir dele o
significado ou conteúdo de uma obra em questão. Por outro lado, ela acusa a noção
danteana de representação de ser demasiado ampla para que interpretemos a arte. Além
disso, vale uma pequena ressalva, existem diferenças significativas entre ‗significado‘, ‗ter
um assunto‘ e ‗ter um conteúdo‘.

Do ponto de vista de Spaid, ela e Danto disputam qual é o elemento ínfimo de uma obra de
arte, se é representação ou being-hereness. Para Danto, ―Representação e ‗being-here‘ não
são respostas competindo por uma questão dada, mas respostas competindo por questões
diferentes‖190.

Assim, em segundo lugar, sendo uma obra monocromática tratada como um objeto
interpretado, ―então, o objeto seria o que é tratado como uma presença – a superfície do
Mar Vermelho, por exemplo. [...]. Nesse caso, o "being-there" não contrastaria com a
representação – ela o pressuporia‖ 191 . Dois objetos indiscerníveis estão igualmente
presentes. Assim, o conceito de presença, tal como proposto por Spaid, seria incapaz de
abarcar a questão da essência da arte oferecendo as condições necessária e suficiente,
indispensáveis à identificação artística de uma obra indiscernível a um objeto do
Lebenswelt192. O contra-argumento de Danto segue pela via do absurdo.

Danto se queixa, em terceiro lugar, de que Spaid tenha se concentrado no significado como
aspecto único de uma obra, quando ele é uma condição necessária. Tratando da ontologia
das obras de arte, há ainda a condição suficiente atrelada àquela outra e à qual Spaid teria
negligenciado. Sem a condição suficiente funcionando como característica diferenciadora,

190
Ibdem,p. 211.
191
Ibdem,p. 210.
192
Ibdem,p. 211.

78
dois objetos com significado seriam obviamente indistinguíveis; dois objetos sem qualquer
significado (ou sem nem um relevante) não solicitariam a condição necessária, inutilizando-
a. A noção de significado como elemento necessário, mas sem estar combinado com a
condição suficiente de que a obra corporifique tal significado, é uma definição provisória
da arte – mas ainda uma proposta categórica – pois, confessa Danto, ―não estou iludido de
que tenha conseguido uma definição estanque da arte, imune a contraexemplos criativos
que forçariam uma nova pesquisa‖193.

Em quarto lugar, Danto faz lembrar algo que sua interlocutora já havia notado, a saber, que
―a análise ontológica não tem muito o que fazer com a experiência de obras de arte‖ e,
portanto, voltando ao ponto dois de sua réplica, ele simplesmente diz que ―na medida em
que a experiência artística do expectador é o interesse central de Sue Spaid, ela está
abordando um tópico completamente diferente‖ 194 . Danto objeta acusando-a de erro
categorial.

Em último lugar é que Danto se dedica a responder às críticas de Spaid ao quadro dos
Estados Representacionais. Ele admite que este quadro não é exclusivamente sobre as
variadas formas de arte existentes e possíveis: ―eu estava pensando em quatro diferentes
tipos de episódios causais, em três dos quais causa e efeito estão ambos internamente
relacionados uns aos outros‖195. Ele confessa ainda que o quadro e sua descrição adquiriu a
forma de um ―discurso empolado‖ e com uma notação bastante óbvia – Danto só o
desenvolveu em Connections e no capítulo cinco de The Body/Body Problem, isto é, ele
procurou com ele apenas demonstrar a centralidade do conceito de representação na (sua)
filosofia. Assume também que tal quadro é esquemático e que com ele ―procurou introduzir
conteúdo aos episódios causais envolvendo seres que representam‖ 196 . Sua intenção era
explicar o comportamento humano como o de um animal que forma representações sobre si
e sobre o mundo, mas que ultrapassasse as simplificações do paradigma filosófico

193
Loc. Cit.
194
Loc. Cit.
195
Ibdem, p. 212.
196
Ibdem, p. 213.

79
hegemônico das bolas de bilhar: ―[...] diferente das bolas de bilhar, [nós nos] conectamos
ao mundo através de vários sistemas de significado‖197.

A réplica de Danto consiste, de modo geral, em minimizar o ponto central da argumentação


de Spaid (sensivelmente, a desvinculação feita entre meios representacionais, tal como a
intenção do artista, e a significação artística da obra como um todo, tanto do ponto de vista
da relação desta com o público como do ponto de vista do todo do mundo da arte e de sua
história) através do reenfoque de sua ontologia da arte ao ponto sensível no qual toca a
crítica. De resto, naquilo que poderia ser mais nocivo à sua teoria, Arthur Danto acusa a
crítica de Spaid de incorrer em um erro categorial. Ele repete, mais uma vez, que a
apreciação, contemplação, experiência, prazer estético ou qualquer outra coisa vinculada à
percepção não tem nada a ver com a ontologia. Com isso, ele pretende dizer que apenas
uma abordagem ontológica estaria credenciada para tratar da arte. Mas em nenhum
momento é trazido à baila a questão ―como devem ser as obras se nós as
experimentamos?‖.

Uma extensão do programa de interpretação do materialismo representacional à condição


material das contrapartes materiais das obras permanecerá, ao que parece, sem
desenvolvimento.

2.2 - O lugar da arte na filosofia


Podemos deduzir da metafilosofia e das colocações do materialismo representacional várias
conclusões. Desta doutrina, é possível formar um quadro ontológico do mundo e este
quadro seria formado apenas por coisas, representações (de tipos variados) e suas relações.

O mundo é constituído de coisas, mas algumas – as que Austin tinha em mente


em sua generalização do conceito de palavras – também estão fora do mundo, no
sentido de que é a respeito do mundo que elas são verdadeiras 198.

Enquanto Wittgenstein afirmava que ―o mundo é a totalidade dos fatos‖ e que fato ―é tudo
aquilo o que é o caso‖, Danto é menos taxativo e mais eclético quanto à metafísica dos
tipos de coisas que existem: aceita a existência de objetos ou coisas, fatos, eventos,
197
Ibdem, p. 212-3.
198
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 134.

80
processos. Cada uma destas realidades designaria uma complexidade crescente, mas podem
ser resumidas sob a designação ‗é o caso que‘ – mesmo que esta designação genérica, do
ponto de vista metafísico, esconda uma retórica absolutamente muito menos
comprometedora.

Assim, contra Wittgenstein, Danto afirma que ―Não há razão alguma para que a ‗ciência
natural total‘ de Wittgenstein não inclua fatos linguìsticos, fatos sobre a linguagem; esses
fatos exerceriam um duplo papel, estando ao mesmo tempo dentro e fora do mundo, parte
da realidade numa dimensão, parte da representação na outra dimensão‖ 199 . Como
dissemos, contra a visão metafilosófica de Wittgenstein, a visão de Danto é de que há um
espaço, uma destinação e um trabalho especifica e inarredavelmente filosóficos.

Vale lembrar que coisas e representações estão íntima e imprescindivelmente relacionadas,


pois, do ponto de vista ontológico, a identidade de algo é impossível sem sua interpretação.
Dentre as coisas que compõem o mundo, algumas são meras coisas reais – objetos físicos
orgânicos e inorgânicos, objetos do Lebenswelt, histórica e culturalmente circunscritos200 –
e outras coisas que representam (dentre as quais algumas são animais 201 e outras são
pessoas, isto é, ens representans autoconscientes, ―coisas no mundo com certa quìmica e
história evolutiva‖202). Assim, partindo da dimensão material-representativa, e dentro desta,
a classe de obras de arte, ―A ideia que desejo propor [...] é que, do ponto de vista lógico, as
obras de arte são comparáveis às palavras da linguagem porque, apesar de terem
equivalentes em simples coisas reais, elas dizem respeito a algo‖203.

Com efeito, a inteligibilidade do discurso filosófico enquanto sistema totalizante depende


fundamental e logicamente de ser compreendido como visão sub specie aeternitatis quando
dirigido ao mundo como um todo ou ao todo de qualquer dimensão particular. Voltada a
uma pletora absolutamente plural de entidades e representações, a filosofia se depara com
199
Ibdem, p. 134.
200
A partir de trabalhos como Após o fim da arte e The Future of Aesthetics, Danto passa a se referir a
objetos não artìsticos como ―objetos do lebenswelt‖, ―do mundo da vida‖, abandonando a distinção entre obra
e mera coisa real, resultado de uma comparação um tanto dualista cuja economia dispunha o leitor a uma
interpretação mais marcada das fronteiras entre arte e não-arte. Por toda ampliação e complexificação
capacitada pelo novo enfoque destas obras, julgamos a terminologia a ele relacionada mais adequada.
201
Talvez aí pudéssemos incluir os animais que são ens representans, mas incapazes de uma atividade
representacional autoconsciente. Mas este não é o escopo deste trabalho.
202
DANTO, A. Connections to the World, p. 226-7.
203
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 134-5.

81
meros objetos materiais (sem conceito), com veículos representacionais (linguagem oral
e/ou escrita, dentre outros) e, neste ínterim, com objetos que, além de remeterem a
conceitos, os incorporam – no vocabulário de Susanne Langer, são discursos
presentificadores, ―veìculo de representação que corporifica seu significado‖ 204 . Ao
contrário das meras coisas reais às quais são confrontadas, a curiosidade das obras de arte,
enquanto classe de coisas no mundo, consiste exatamente no fato de seu significado operar
um ―curto-circuito‖ semântico sobre ela mesma, compreendendo que, ―em essência, a
filosofia se ocupa daquilo que [Danto] denomin[a] metaforicamente como ‗o espaço entre a
linguagem e o mundo‘‖, e que as obras de arte

se situam à mesma distância filosófica da realidade que as palavras e que colocam os que
as contemplam como obras de arte a uma distância comparável, e como, ademais, essa
distância cobre o espaço no qual os filósofos sempre trabalharam, penso que a arte tem
uma pertinência filosófica‖ 205.

Esta pertinência filosófica se traduz não só numa semântica patente, mas possui uma
ontologia pressuposta, a qual a enquadra. Engendrada simultaneamente numa cultura
representacional, a arte é o assunto filosófico por excelência. Na arte mimética grega
clássica a filosofia encontrou ―um paradigma para toda a gama de problemas a que a
metafìsica responde‖ 206 , e na arte conceitual contemporânea, um paradigma ontológico
cujas questões foram finalmente respondidas. Do ponto de vista metafísico, a arte é uma
classe de coisas que denota uma essência cuja identidade, via de regra, consiste num
elemento curiosamente filosófico.

Ora, sendo o mundo composto por coisas e representações, os meros objetos reais assim o
são porque os meios que determinam sua natureza lhes são externos; as pessoas são
também coisas, mas coisas de um tipo biopsíquico, coisas cuja essência consiste em um
misto indissociável de corpo e mente, matéria que representa (ens representans), distintas
das meras coisas reais porque são ―palavras feitas carne‖ e, para assim serem, os meios que
determinam sua natureza são ontologicamente internos a ela; as representações, por fim,
podem ser estados de crença, linguagem verbal e não verbal, conceitos, ideias, paradigmas,
narrativas, etc. – isto é, realidades logicamente extrínsecas à dimensão material. De saída,

204
Apud DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 18.
205
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 135.
206
Ibdem, p. 135.

82
obras de arte se apresentam como uma experiência no mundo, a qual a filosofia tem sob a
perspectiva sub specie aeternitati. Mas, como tal, a arte não está totalmente no mundo da
experiência. Embora evada significativamente este domínio, não lhe é totalmente alheio.
Neste sentido, Danto afirma que a arte é, ao mesmo tempo, experiência ordinária e
realidade ontológica:

A caixa de Warhol era uma peça de arte popular, assim chamada porque ela era
sobre as imagens da cultura popular. A caixa de Harvey era parte da cultura
popular, mas não era parte da arte pop porque ela não era sobre a cultura popular
como um todo207.

Obras de arte são o único subtipo de coisas do mundo que, após inspeção filosófica,
revelam ser portadoras relativas de seu próprio significado – não apenas remetem a uma
região ontológica que as identifica como obra de arte. A vitória ontológica do pós-
modernismo dotou a arte de feições filosóficas. Eis a novidade filosófica da arte! Aí está,
então, esclarecido o que Danto compreende por esta ‗vitória‘.

Agora que ―já localizamos as obras de arte no espaço ontológico pertinente, temos pelo
menos condições de reconhecer que o projeto de superar a distância entre arte e realidade,
em resposta ao desafio de Platão, é mal concebido do ponto de vista lógico: aquele que
disse que um problema não deve significar, mas ser, enunciou uma espécie de
incoerência‖208 – lembre-se Jasper Johns e seus mapas, bandeiras, numerais: seus objetos
são! Ora, nesta matriz conceitual-ontológica danteana percebe-se claramente que ―a arte
sempre esteve inserida‖, de fato e por princípio. Segundo o próprio Danto, a congruência
entre arte e filosofia é tão grande, que ―as fronteiras entre a filosofia e a arte estão
ameaçadas de desaparecer‖209 – daí a urgência da distinção entre ambas.

É interessante que alguns indivíduos da classe obras de arte sejam objetos do Lebenswelt,
que adentraram aquela classe através de um desvio filosoficamente curioso. A proposta
artística dos readymades significa à filosofia danteana não apenas e uma vez mais a
analogia entre arte e pessoa (isto é, uma mera adequação da arte ao quadro filosófico
danteano pré-determinado). Ela aponta para uma elevação na qualidade e no tipo de
reflexão praticado no interior do mundo da arte, o qual teria tornado a arte a exemplificação

207
DANTO, A. The future of Aesthetics, p. 111.
208
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 137. (Grifos nossos).
209
Ibdem, p. 101-1.

83
por excelência da problematicidade filosófica, os indiscerníveis. Os readymades apontam
para uma elevação da dignidade ontológica, cognoscitiva (e, por que não?, política) do
discurso artístico. Danto argumenta longamente em defesa do recredenciamento da arte no
hall dos saberes, ocorrido, principalmente, desde a década de sessenta nos Estados Unidos.

Obras de arte deste estilo são uma metáfora transparente de si mesma, o que conduz à
suspensão de um limite claro entre o domínio do mundo da vida e do mundo da arte – outra
consequência radical para a filosofia. A arte, análoga e congruente à filosofia, é uma face
outra desta, e não mais uma mera atividade alienada, ingênua e sem credenciais.

No mundo há objetos de toda sorte, e o agrupamento de tais objetos forma tipos (kinds)
distintos. Estas classes de entes, no entanto, são conceitualizados, e tal agrupamento não se
deixa identificar ou reconhecer por simples inspeção. Cada discurso filosófico específico,
cada disciplina interna da filosofia, é uma espécie de metafísica descritiva de uma destas
classes ontológicas. Neste sentido, a filosofia da arte é uma metafísica regional daqueles
entes designados como arte e tratados como tal. De fato, uma analogia (muito au passant)
entre Danto e Peter Strawson não é impossível. O próprio Danto baliza esta comparação ao
afirmar que

a relação entre a obra e o seu substrato material é tão intrincada quanto[,] [...]
seguindo a distinção estabelecida por Peter Strawson[,] entre predicados P e
predicados M, é como se houvesse propriedades da obra, que exemplificam o que
poderíamos chamar de predicados O, e propriedades das meras coisas
indiscerníveis da obra, que exemplificam o que poderíamos chamar de predicados
C, e a questão é determinar quais predicados C também são predicados O e quais
não são210.

Esta comparação aparece mais de uma vez em A Transfiguração do lugar-comum, mas


―enquanto [Danto] não tiver constituìdo a obra‖, isto é, enquanto não apontar a identidade
que a discernirá de uma mera coisa, ele ―não po[derá] afirmar nada‖211 nem de O nem de C.
A comparação entre a análise conceitual danteana e strawsoniana, entretanto, não vai tão
mais longe. Ela é apenas sugestiva daquilo que seria a intenção análoga de Danto num
momento específico de sua investigação e quanto ao modo genérico como ambos se
recusam ao máximo em demolir as estruturas do pensamento em favor de uma proposta
totalmente nova e (fenomenologicamente ou experiencialmente) contra-intuitiva.

210
Ibdem, p. 163.
211
Ibdem, p. 164.

84
Analogamente a Strawson, a atitude de Danto se aproxima mais de uma interpretação das
estruturas do mundo da experiência, operando uma análise conceitual (às vezes
taxonômica, às vezes lógico-semântica) a partir de fora. Seguindo a comparação, em
Strawson, nosso esquema conceitual nos habilita a falar de particulares (objetos
particulares, eventos, acontecimentos e processos) através da identificação e da
reidentificação. A primeira se dá numa situação falante-ouvinte em um sistema espaço-
temporal unificado e sua estrutura é constituída, inicialmente, por uma referência
identificadora (em que se deve saturar uma descrição com nomes próprios, pronomes,
artigos determinados, etc.) e, em segundo lugar, pela identificação relativa (uma
identificação demonstrativa ostensiva, por exemplo). Quanto à reidentificação, mesmo que
hipoteticamente, o objeto deve poder manter uma continuidade espaço-temporal para que
possa ser reidentificado e, com isso, substanciar a identidade (sua identidade deve ser
consistente com os princípios lógicos da não-contradição e do terceiro excluído). A
combinação destes mecanismos dá origem àquilo que Strawson chama de expressões
sortais (conceitos de objetos particulares) e que tem como condições serem simples, óbvias,
levantarem questões facilmente respondíveis e versarem sempre sobre os particulares
básicos: corpos e pessoas. Mas a análise que contrapõe arte e mera coisa não parece se
satisfazer com estes critérios. Frente aos indiscerníveis, a estratégia da reidentificação tem
eficácia nula e, do lado da identificação, fica difícil saber como determinar a descrição
correta do objeto que é a contraparte material da obra – e então ―determinar quais
predicados C também são predicados O e quais não são‖. É a interpretação o critério que
estabelece a descrição correta. Segundo Danto, Strawson se contenta em dar seguimento à
agenda (ainda) dualista do cartesianismo ao identificar, sem problemas, estados mentais
como algo não redutível a estados do corpo 212 . A análise lógico-semântica que Danto
realiza no capítulo três de A Transfiguração do lugar-comum estabelece que, como veículo
de representação, denotativa ou não, as obras de arte possuem um sobre quê (aboutness) e,
como tal, sua identidade não poderia pactuar com um dualismo de substância, tal como em
Strawson.

Um último item mostra distinções entre os programas e posturas de ambos os filósofos. A


filosofia de Danto possui um aspecto não meramente descritivo. Ela parece propor uma
212
Cf. DANTO, A. Connections to the World, p. 222 ss.

85
revisão no quadro metafísico/ontológico de nossa compreensão sobre a arte. A despeito da
importância do mundo da vida e da prática linguística cotidiana como ponto de partida,
equívocos são sempre possíveis, e reviravoltas de toda sorte não estão afastadas. Neste
sentido, uma disputa acerca do ―que é arte?‖ não será apenas uma contenda na qual está
dispensada a filosofia. Lembrando Sêneca, uma vez que ―a verdade não é uma questão de
democracia‖, pois, a respeito da natureza da arte, ―distinguir obras de arte de outras coisas
não é uma tarefa tão simples, mesmo para falantes nativos, e hoje em dia alguém pode não
estar cônscio de estar num terreno artístico sem uma teoria artística para lhe dar conta
disso‖213, não é impossível imaginar as condições necessária e suficiente como propondo
como mais cogente uma abordagem não estetizante da arte.

Finalmente, Danto difere de Strawson metafisicamente, quanto ao princípio de


inteligibilidade e à fórmula de mundo que fundam sua filosofia. Com efeito, qualquer
discurso metafísico que vise suplantar a problematização de uma classe de coisas cujo
domínio escapou à prática ordinária corrente, justamente porque a introdução de objetos
recalcitrantes tornaram urgente ampliar o conceito sob o qual deveriam cair tais objetos,
passa a ser também um discurso não meramente descritivo, mas também revisionista, na
medida em que propõe uma ampliação (ou mesmo uma reforma) conceitual.

O problema posto no início deste capítulo conduziu-nos ao escrutínio da relação entre arte e
filosofia, isto é, da compreensão de filosofia pressuposta no entendimento e tratamento
danteano conferido à arte. Com efeito, apresentamos as estruturas do mundo nas quais a
estética não encontra ressonância. É, antes, a filosofia da arte que se justifica. Assim, esta
abordagem um pouco mais afastada e certamente panorâmica das razões e concepções
fundamentais da filosofia danteana da arte nos permitiu compreender porque, forçosamente,
a filosofia que se pode ter da arte é uma filosofia da arte, não uma estética filosófica,
tradicionalmente comprometida com o domínio ultrapassado da aparência. Além disso, há o
ganho adicional de informação, uma vez que esta reflexão metafilosófica não é tão bem
conhecida entre nós, ao contrário da filosofia da arte presente em A Transfiguração do
Lugar-comum e a filosofia da história da arte presente em Após o Fim da Arte. Neste

213
DANTO, A. O Mundo da Arte, p. 14.

86
capítulo, procuramos sempre que possível costurar os temas e ideias de interseção destas
obras mais conhecidas com as questões de Connections to the World.

Só há reflexão filosófica sobre a arte porque esta é especialmente filosófica. A arte é quase
uma filosofia. Ela está parcialmente no mundo, enquanto contraparte material (mas também
enquanto história, instituição, etc.); se transformou em conceito, sua busca por sua essência
(autoreferencialidade e autoreflexividade) a converteu em uma atividade tão autônoma
quanto a filosofia, formal e intelectualmente; e, finalmente, a arte revelou que sua
verdadeira face é o conceito, de tal forma que não é mais preciso seguir qualquer agenda
narrativa pautada no crivo sensorial, seja ela mimética ou pictórica.

Assim compreendida, a arte está emancipada, e por suas próprias forças internas. A arte
teria se desenvolvido sob a égide da formação do conceito de realidade, isto é, sob a marca
da Representação. Neste sentido, a arte ―como algo que contrasta com a realidade, se
desenvolveu junto com a filosofia‖ 214 . Todavia, ainda há pontos importantes que
garantiriam o não apagamento completo das fronteiras entre arte e filosofia. Primeiramente,
a autonomia reflexiva da arte estaria logicamente restrita às suas próprias iniciativas, ao
mundo da arte, não ao mundo como um todo e, desta forma, a amplitude e o escopo
reflexivo de que a arte é capaz estão restritos à sua atmosfera teórico-conceitual própria. É
ainda impossível tornar translúcido, numa obra, toda a reflexão que podemos
inadvertidamente creditar que o artista teria em mente, mesmo através de uma abordagem
ontológica, não apenas epistemológica. Finalmente, a arte goza de uma história que, em seu
último estágio, a libertou para ser o que quisesse, enquanto a filosofia de alguma forma
sempre soube o que é, mas não pode contar com um sentido progressivo em sua ―história‖
– como a autoreferencialidade e autoreflexividade lhe é constitutiva, e cada nova filosofia
está autoconsciente de si como um reinício radical. Por fim, enquanto a sucessão de
filosofias se parece muito mais com uma eterna sensação de despertar de um pesadelo (o
pesadelo de saber o que torna o mundo inteligível para nós, seres representacionais), a arte
possui um trunfo que é ter sido capaz de gerar o objeto filosófico por excelência, o objeto
que sintetiza toda a empresa ontológico-cognoscitiva da filosofia: obras de arte
indiscerníveis. A arte pode até ser uma totalidade autoconsciente, mas como as obras de

214
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 129.

87
arte possuem significado e o corporificam, elas guardam ainda alguma distância essencial
das coisas do mundo, e a filosofia se mantém como única forma de reflexão do mundo
como um todo. Ora, se é o contato e a habilidade em lidar com a materialidade o trunfo da
arte em se erguer do pesadelo de heteronomia e descredencialização, então a materialidade
é de fato decisiva neste sentido, não um mero acaso, e então deveríamos considerar
seriamente investigar a acepção negativa desta noção e o papel que desempenha na filosofia
de Danto.

Voltemos, entretanto, à distinção entre arte e filosofia. Assim compreendida, a


emancipação da arte trilhou um caminho próprio que, em seu cume, atingiu os parâmetros
mesmos do que torna a filosofia digna deste nome. Através de sua dinâmica interna, a arte
foi capaz de propor para si a questão de sua identidade da maneira mais radical (quase se
diluindo com objetos comuns da vida) e de – para o espanto de Danto – resolver este
problema num registro essencialista independente de qualquer meio alienante. Em outras
palavras, estabelecendo inicialmente as coordenadas metafilosóficas e combinando aí a
visão progressiva da história da arte (desenvolvida por Danto oito anos depois), o que
podemos perceber é um progressivo encaixe da arte no horizonte teórico da filosofia
danteana, seja do ponto de vista analítico (nosso foco maior), seja do ponto de vista da
historicidade.

As coordenadas metafilosóficas e sistemáticas da filosofia danteana se firmam sobre o solo


da ontologia (e, relativamente, sobre a epistemologia, mitigada nas obras sobre a arte). O
mundo da vida, sendo a dimensão da experiência, é o lugar por excelência da percepção e,
na medida em que o mundo da arte ascendeu ao domínio de seu próprio conceito, a
filosofia da arte é a reflexão ontológica total da dimensão do mundo da arte. A filosofia da
arte é uma ontologia regional, restrita a este objeto tão especialmente filosófico. Assim, a
congruência e afinidade que há entre a filosofia (conforme compreendida por Danto) e a
arte se traduzem em uma ontologia, não numa estética. A filosofia da arte é a única reflexão
filosófica possível, pois a estética é insensível à derradeira verdade da arte.

Tendo colocado aqui rapidamente as condições necessárias e suficientes que Danto


estabelece em sua ontologia da obra de arte, Virgínia Aita chama atenção para a disjunção
fundamental no pensamento de Danto: entre filosofia da arte e crítica de arte. Do lado do

88
discurso por excelência sobre a arte, a filosofia da arte é ―metafilosófica [e] não trata senão
da estrutura metafísica da obra e, deste modo, não restringe, sob nenhuma hipótese, o
território da crìtica, complementar à filosofia‖215. Esta complementaridade compartilha a
característica de a crítica de arte, assim como a filosofia da arte, ser um discurso
pretensamente não normativo, operando em um registro outro que não o da valoração em
arte ―boa‖ ou ―má‖. Contra um padrão estético do gosto, a crìtica de arte em Danto herda
da filosofia da arte a não normatividade e pluralismo, razões através das quais será possível
afirmar categoricamente que ―arte boa ou má ainda é arte‖. Também em seu estatuto (bem
como na prática crítica do próprio Danto), a crítica de arte está ajustada à revolução de
paradigma ocorrida no mundo da arte. Afirma Virgìnia Aita que ―A questão do fim da arte
interessa aqui, sobretudo, em relação às implicações dessa tese para uma prática crítica
como o fio condutor de um outro modus operandi compatível com o cenário artístico
atual‖216, consequência esta que

num cenário normativamente não estruturado, que dissolve todas as hierarquias, e


sem ―coisas primeiras ou últimas‖ implica forçosamente a mediação do ―juìzo‖, e
a reflexão torna-se tão imprescindível que institui a identidade da obra de arte
cujo esse é interpretari, quase filosofia, conceito corporificado‖217.

Consequentemente, Danto afirma que ao crítico cabe realizar a intermediação entre o


significado da obra e o público. Qualificando sua campanha filosófica como um trabalho
ontologicamente comprometido e o de Sue Spaid como um questionamento estético, Danto
reconhece ter sentido ―muitas vezes que as duas condições necessárias em minha definição
facilmente servem como momentos na crìtica de arte‖ 218, de tal forma que, definindo as
obras de arte como portadoras de significado e sustentando que tal significado é
incorporado, o papel do crítico de arte seria trabalhar como um hermeneuta, um tradutor
competente e confiável, que se imiscua entre o significado e a maneira como a obra
incorpora este significado, divulgando esta relação – mais ou menos como o filósofo em
geral se imiscui no espaço entre linguagem e mundo. Neste horizonte, à estética resta, óbvia
e consequentemente, apenas o papel de figurante, uma vez que a questão relevantemente
artística é uma questão ontológica e a resposta a esta questão encontra amparo apenas na

215
AITA, Virgínia, AITA, V. Arthur Danto – narrativa histórica sub specie aeternitatis, p. 288.
216
Idem, p. 288-9.
217
Idem, p. 292.
218
DANTO, A. Reply to Sue Spaid, p. 211.

89
crítica de arte, que nada mais é do que um desdobramento prático desta ontologia não
normativa da arte. Frente à arte autenticamente autônoma, a filosofia da arte é, por direito, a
única análise gabaritada, dada sua vertente ontológica. Sendo a crítica de arte uma espécie
de dedução da ontologia das obras de arte, da qual depende, ela ocupa imediatamente o
segundo lugar quanto à relação filosófica com a arte. A estética, por ligar-se aos aspectos
de mera aparência das obras de arte, está a dois passos da essência desta e ocupa a terceira e
(talvez) última posição na relação com a arte. Compreendido sob este viés perceptual, o
máximo que a estética seria capaz de fazer é conduzir-nos nas sombras, na escuridão do
mundo da arte ainda não desperto de si.

2.3 - Conclusão
À guisa de conclusão, podemos traçar analogias estruturais entre arte e filosofia. Há uma
passagem em Após o Fim da Arte219, muito pouco referendada pelos estudiosos da filosofia
danteana, em que Danto narra a ruína do paradigma legitimador do modernismo
paralelamente à derrocada do positivismo lógico, ao mesmo tempo em que permanecem os
fantasmas, mesmo após a ruína dos emblemas de legitimidade na arte e na filosofia.

Do ponto de vista geopolítico, os EUA se beneficiaram duplamente na arte e na filosofia


com europeus que imigraram durante a Segunda Guerra Mundial. Na arte, operou-se o
estabelecimento da vanguarda modernista do expressionismo abstrato e depois a passagem
à arte contemporânea. Na filosofia, o advento do positivismo lógico se estabeleceu como o
estilo mais influente em filosofia – pelo menos até meados do fim do século passado.

Para os positivistas lógicos, a principal ideia era que, do ponto de vista mais literal do
termo, ―a filosofia, tal como fora conhecida no curso dos séculos, havia chegado ao fim‖ e
que ―havia chegado a hora de que fosse substituìda por algo intelectualmente responsável, a
saber, a ciência‖ 220 . Segundo os positivistas lógicos, o critério de cientificidade é a
falseabilidade das proposições pela experiência, experiências estas a que devem ser
submetidas as pretensas proposições filosóficas. Adotando este critério, as proposições da

219
Ibdem, p. 156-160.
220
DANTO, A. Após o fim da arte, p. 156.

90
filosofia não são proposições reais e não possuem sentido. Elas são um completo nonsense
e a metafísica está superada.

Contudo, o princípio não permitiu manter de pé proposições científicas. O princípio mesmo


parecia não ser capaz de ser verificado pela experiência e, como tal, para ser mantido,
deveria ser assumida sua natureza filosófica.

A ruína do princípio verificacionista e sua permanência como uma espécie de estratagema


de intimidação permaneceu durante tempo razoável até que, após corajosa intervenção de
alguns filósofos, ―começou a aparecer metafìsica nos periódicos profissionais‖, mesmo que
―Os filósofos ainda escrev[essem] sobre esses problemas como se estivessem fazendo
lógica simbólica‖221, como se tivessem de imprimir fórmulas lógicas como emblemas de
legitimação filosófica – ―um tipo de pigmentação protetora‖, mas no caso da filosofia.

Analogamente, mesmo após o paradigma legitimador do modernismo ter entrado em ruína,


a pintura de Rauschenberg adotava ainda a tinta gotejante como emblema legitimador deste
paradigma, como uma espécie de pigmentação protetora222 que permaneceu ainda por um
tempo, o que exemplifica a demora deste paradigma em se dar por vencido. O próprio
Andy Warhol, quando deu a primeira guinada significativa rumo ao que viria a fazer dele
um grande artista norte-americano, pintando a série Antes e depois, acrescentou ―os toques
de pincel que ele julgava serem esperados para uma pintura corresponder a ‗quem nós
somos‘‖, isto é, ―os arremedos de marcas expressionistas‖ 223. O mesmo se deu com Claes
Oldenburg.

A verificabilidade na filosofia era muito semelhante ao modernismo na teoria


artística: proibindo certas coisas, limitando a prática artística aceitável a canais
aceitáveis, definindo o modo como a prática crítica deveria ser estruturada224.

Na filosofia, comentou Danto à época da edição de Após o Fim da Arte, ainda não houve
uma completa recuperação do pensamento frente aos assombros do critério verificacionista.
Danto credita isso às pressões institucionais. De certa forma, ao filósofo seria mais difícil

221
Ibdem, p. 158.
222
Cf. O Mundo da Arte, p. 16-22. (Vale observar que este artigo e A Transfiguração análoga e
curiosamente também utilizam fórmulas lógicas como uma espécie de emblema legitimador do trabalho
filosófico sério, claro e preciso).
223
DANTO, A. Andy Warhol, p. 39.
224
DANTO, A. Após o fim da arte, p. 158.

91
ser aceito no meio filosófico profissional valendo-se da afetada notação lógica e depois
simplesmente ―desistir dos formalismos puramente ornamentais‖ sem que isso signifique
que ele sinta que tenha deixado de acreditar em alguma coisa.

Mais uma vez, a arte parece sugerir a solução. Na medida em que a arte se propôs a seguir
em frente e superar a narrativa modernista, ela se descobriu ser essencialmente conceito. À
filosofia colocada em prática por Danto coube mostrar a natureza sub specie aeterniti da
filosofia, com tudo o que essa natureza implica em termos de uma atividade conceitual-
hermenêutica do todo do mundo. Qualquer compreensão identitária heteronômica,
exclusivista ou normativa é descredencializadora, um momento de obscuridade alienante.
Como Danto parece exemplificar com sua prática e reflexão metafilosófica, é possível nos
desfazermos delas e termos um problema a menos para lidar.

Talvez este paralelo traduza, mais uma vez, que, enquanto na arte há um sentido
progressivo que finalmente chegou ao fim, na filosofia estamos sempre encenando o
despertar, mas que certos elementos que formam este pesadelo, por seu caráter opressivo,
são mais aterrorizantes que outros.

92
CAPÍTULO 3

FILOSOFIA DA ARTE E O DESINCENTIVO À ESTÉTICA

Dispor do conceito de realidade ―só acontece quando se estabelece um


contraste entre a realidade e uma outra coisa — aparência, ilusão,
representação, arte — que separa completamente a realidade e a coloca
a uma certa distância. Na minha opinião, sob muitos aspectos o
Tractatus é o paradigma por excelência de uma teoria filosófica;
nele se estabelece um contraste entre, de um lado, o mundo e, de outro,
sua imagem refletida no discurso‖(...) ―mas estou interessado
em invoca-la unicamente como forma de uma teoria filosófica,
sobretudo porque o que nela existe de filosófico é a imagem que ela
faz das relações entre a linguagem e o mundo, uma relação que de
certa maneira não pode ser representada na linguagem de que trata a própria teoria.
(Arthur Danto)

Morris Weitz e outros dos anos 1970, convencidos dos argumentos de Wittgenstein, abandonam a tarefa
analítica. (...)―A Transfiguração do lugar-comum‖ constitui, neste sentido, uma viragem marcante (e
notável) em relação ao que era dito na época sobre estética, o que explica a agitação causada pelo retorno
de uma forma de essencialismo. Colocando em questão a pertinência da ideia de semelhanças de família

93
como um meio de compreender a particularidade do conceito de arte, Danto se coloca pouco a pouco à
contracorrente. Àqueles estes que duvidam da possibilidade de produzir uma definição necessária e
suficiente, [Danto] responde que uma definição de arte ‗não será fundada sobre uma inspeção direta das
obras‘ e que ignorar o problema, como o fez Wittgenstein, não será constituir uma resposta satisfatória‘.

(Melissa Theriault)

3.1- Introdução
Em escritos de 1981 a 1989, Danto responde negativamente à questão sobre a estética ter
alguma relevância essencial para a arte após o fim da arte. São escritos anti-estéticos.

Na última década do século XX, artigos do filósofo têm como tema central o estatuto da
estética em sua relação com a ontologia das obras de arte. São textos mais brandos, de
transição, que sinalizam para a posição desenvolvida ao final de sua carreira. Mas estes
escritos ainda são relutantes em afirmar qualquer papel essencialista à estética. Comparado
a Após o fim da arte, que reafirma sobre bases ligeiramente distintas o desincentivo à
estética enquanto projeto definicional da arte, o artigo ―A Future for Aesthetics‖ é
certamente mais brando quanto à negação de qualquer papel relevante que pudesse caber à
estética.

Finalmente, importantes textos de sua última década profissional (de 2003 a 2010)
assumem contornos outros e, sob um ponto de vista mais propositivo, Danto passa a revisar
e redescrever conceitos caros à estética, desenvolvendo um novo lugar para ela no interior
de sua filosofia da arte que, parece, sofreu também algumas mudanças. O Abuso da Beleza
não parece ir muito além do impedimento estabelecido pelos escritos anti-estéticos. No
entanto, o artigo Embodied Meanings, Isotypes, and Aesthetical Ideas é categórico ao
afirmar a possibilidade de refundar a estética sobre a ontologia e definição de arte danteana
fornecida principalmente em A Transfiguração do lugar-comum e em Após o fim da arte.
What Art Is, a última obra de Danto, parece ser o solo fértil no qual floresceria toda a
novidade daquele projeto de refundação da estética revista à luz da atualização da definição
da arte como sonho acordado.

94
A seguir, visualiza-se melhor a distinção mencionada. Não a expomos com vistas a
defender categoricamente a existência de fases filosóficas diferentes, como se houvesse
dois Dantos. O intervalo chamado ―Escritos anti-estéticos brandos ou de transição‖ sequer
apresenta uma ruptura suficiente para defender sua autonomia, embora apresente nuanças
relevantes, principalmente naquilo que o mencionado artigo propõe à estética e que, neste
sentido, aponta para o espírito do terceiro intervalo de escritos. Concordamos que uma
defesa categórica de um primeiro e segundo Danto não pode prescindir de uma análise
exaustiva de seu opus. Concedemos que o intervalo intermediário possa ser subsumido pelo
primeiro. No entanto, apresentadas as teses e argumentos centrais de A Transfiguração do
lugar-comum, é no mínimo espantoso o forte contraste destes com as resoluções
encontradas nos escritos da última década filosófica de Danto.

O estatuto da estética no opus danteano

- The Artworld (1964);

- The Transfiguration of the Common-


place (1981);
Escritos anti-estéticos
- The philosophical disenfranchisement of
art (1986);

- Bad Aesthetics Times (1989);

Escritos anti-estéticos brandos ou de - A Future for Aesthetics (1993);

transição - After the End of Art (1997);

- The Abuse of Beauty (2003);

- Embodied Meanings, Isotypes, and

Escritos propositivos Aesthetical Ideas (2007);

- The Future of Aesthetics (2009);

- What Art Is (2010).

95
Não é o ponto aqui afirmar que houve uma mudança radical de filosofia no opus danteano,
nem sequer medir suas minúcias. O que tenha tornado possível acolher a estética em seu
interior parece-nos um excelente projeto, mas que de maneira alguma poderia ser levado a
cabo aqui225.

Interessa-nos analisar e compreender as origens sistêmicas, o contexto, os argumentos e as


conclusões que compõem a principal e mais influente obra do primeiro intervalo do opus
danteano ou do espírito dos escritos anti-estéticos: A Transfiguração do lugar-comum. De
antemão devemos deixar claro que a recusa de a estética se firmar como disciplina capaz de
oferecer uma ontologia e definição satisfatória da arte funda-se nos indiscerníveis e na tese
externalista da percepção a ele subjacente 226. Desejamos mostrar o quão decisivo são os
indiscerníveis para o desincentivo da estética.

Desejamos também que, a partir de outra concepção, há uma possibilidade reservada à


estética nos escritos propositivos, parcialmente ligados ao projeto de fornecer uma filosofia
da arte informativa capaz de fornecer fundamentação à crítica de arte e, por que não?,
também à estética. Há várias passagens que acenam à estética, desde que esta prescinda de
sua pretensão em estabelecer uma essência para a arte. Neste sentido, teremos a
oportunidade não apenas de distinguir tais resoluções, mas também de indagar porque teria
sido necessário que transcorresse todo o opus para que finalmente se pudesse encontrar um
lugar para a estética, lugar este que estaria relativa e embrionariamente disponível e cuja
negligência custou à estética ataques tão corrosivos. Ora, o primeiro grande ataque consiste
em abandonar a estética em nome de uma filosofia da arte.

225
Em 5.2 se verifica a sugestão de que a razão teórica ligada ao desenvolvimento do historicismo (com o
consequente desuso dos indiscerníveis) e a motivação de ordem institucional ligada à prática de crítico de arte
(a qual se esforçou em exercitar o pluralismo) podem ser os pontos de mutação do panorama da estética.
226
Referindo-se posteriormente à filosofia de A Transfiguração do Lugar-comum, o próprio Danto assume
que, se a indiscernibilidade torna obra e coisa perceptivelmente indistinguíveis, então a estética não é capaz
encontrar o elemento ontologicamente distintivo, uma vez que a estética é essencialmente perceptiva. Ver
seção 2.5 mais adiante e DANTO, A. The Future of Aesthetics, p. 110.

96
3.2- Filosofia da arte X Estética Filosófica
Existe uma tendência em identificar como sinônimas a estética e a filosofia da arte. De um
modo geral, estes termos são intercambiáveis. Mas, por muitos motivos, eles não se
equivalem e as razões para isso variam de filósofo para filósofo e, especificamente em
Arthur Danto, estas razões valem uma distinção importante. Em Danto, o fim da arte pôs
fim à ilusória autonomização da disciplina estética e de seu domínio.

Uma das últimas disciplinas estabelecidas no corpo científico da filosofia, a estética sofre
uma situação de fragilidade e ostracismo acadêmico precoce e, como afirma Marc Jimenez,
está ―prematuramente envelhecida‖, ―antiquada e prestes a desaparecer‖ em apenas um par
de séculos de existência. E completa: ―em sua história bicentenária [...], a estética revelou-
se como um insucesso brilhante e repleto de resultados‖ 227 . Ora, parece que a absoluta
heterogeneidade e imprevisibilidade da arte e a subjetividade da sensibilidade humana
contribuem fortemente para esta situação da estética.

Mas o aspecto institucional também deve ser levado em conta. Afinal, o que explica manter
o nome de uma disciplina repleta de nuanças, sub-áreas, correntes e métodos diferentes
cujo crédito tem diminuído consideravelmente?

Um importante comentador dos últimos escritos de Danto, Daniel Herwitz, em seu


compêndio introdutório à estética fornece um esclarecimento muito útil à distinção
específica que estabeleceremos logo mais à frente. Segundo ele,

A estética tem padecido em função da divisão institucional vigente nos


departamentos anglo-americanos de humanidades, que as dividem em dois ramos,
a saber, a filosofia, de um lado, e a reflexão sobre a arte e sobre o belo que
emerge do substrato daquilo que chamamos Artes e Letras, por outro. Essa
bifurcação é um produto do século XVIII em que se estabelece a estética como
um ramo da filosofia, uma ―ciência‖, assim então chamada, e do século XIX, com
a sua formação das disciplinas e formas de conhecimento disciplinares
(Foucault), cada qual voltada para o seu próprio objetivo. Nosso legado é o
desses dois séculos228.

Do ponto de vista filosófico, os séculos XVIII e XIX são centrais para o estabelecimento do
fundamento e do objeto da estética, isto é, da estética como ―gnosiologia inferior‖ e como
―faculdade do conhecimento sensìvel‖ que, tendo se estabelecido ao final do século XIX

227
JIMENEZ, Marc. O que é estética? São Leopoldo, RS: UNISINOS, 1999, p. 9.
228
HERWITZ, Daniel. Estética: conceitos-chave em filosofia. Porto Alegre: Artmed, 2010, p. 9.

97
como padrão do gosto (sensibilidade normativa), ―tinha definido a essência da arte‖ 229.
Deste ponto de vista cumulativo da fundação da ciência estética, o estabelecimento do
domínio artístico como o domínio da estética é a consequência que devemos ser mais
sensíveis.

Daniel Herwitz desenvolve os motivos que subjazem ao estado da estética desde a sua
fundação por Baumgarten (e antes) até os tempos mais recentes. Segundo ele, a distinção
institucional vigente na academia americana estabelece, por um lado, a existência de uma
estética filosófica, dedicada a estabelecer e desenvolver a ciência da sensibilidade humana e
as normas e avaliações estéticas do fazer artístico (fazer este que é por definição diferente
da dimensão da sensibilidade, mas que foi paulatinamente reduzido a ela); e, por outro, a
estética artística, de um modo geral levada a cabo por artistas de todas as artes quando estes
se põem a pensar mais ou menos sistematicamente sobre o fazer artístico, a criação, o papel
do artista, a destinação ou o propósito da arte (ou de sua arte, mais especificamente). Mas
esta distinção revela um juízo depreciativo, uma vez que o tratamento conceitual da
dimensão estética, contudo, só seria plenamente executado pelo filósofo. Segundo Herwitz
(e nisso concordaria Danto), este cenário nocivo é um motivo que levou a estética filosófica
à rápida deterioração de seu stablishment enquanto esfera da sensibilidade e da criação
humana.

A crítica danteana a este aspecto institucional consistiria, em parte, em trazer à tona a noção
mesma de descredenciamento e dizer que tal compreensão, vigente no contexto acadêmico
em que ele mesmo foi formado, submete a arte e os artistas a um aprisionamento alienante,
como se o mundo da arte não fosse capaz de elaborar, refletir e responder ele mesmo às
suas questões autonomamente e, além disso, como se tais questões fossem totalmente
outras que não as da filosofia, que nada lucraria com as reflexões da ―estética artìstica‖.
Assim, vige institucionalmente uma noção cega à dialética da relação entre arte e filosofia.
É como se, definindo a agenda da arte em termos de uma estética filosófica e esta como a
única reflexão suficientemente emancipada, o mundo da arte já estivesse desde o
estabelecimento da distinção para sempre alijado da reflexão autêntica de seu próprio labor.

229
DANTO, A. Duchamp e o fim do gosto, p. 23.

98
Este engodo tende a se reproduzir não apenas no nível das instituições acadêmicas e do
mundo da arte, mas na atmosfera teórica da própria arte e na relação desta com a filosofia.

Enfim, para Danto, esta compreensão de estética filosófica seria responsável pela distância
alienante, ―descredenciadora‖ e pouco cooperativa entre arte e filosofia, tanto institucional
quanto teoricamente. Do ponto de vista do espírito pluralista da filosofia de Danto, a
distinção entre estética filosófica e estética artística faria sentido apenas num contexto
institucional no qual a arte fosse dada como menor. A devida atenção à vida própria do
mundo da arte deveria levar à compreensão de que filosofia e arte estão ambas mutuamente
capacitadas cognoscitiva e politicamente, como que se confundindo. A revisão de
nomenclatura daí decorrente não é mero capricho terminológico, pois reflete as mudanças
ocorridas na relação entre arte e filosofia.

Do ponto de vista conceitual, portanto, quando encontramos o termo ‗estética‘ sendo


tratado como sinônimo de ‗filosofia da arte‘ ambos significam vagamente ―uma reflexão
filosófica sobre a arte e o belo‖ 230 . Há contextos institucionais, contudo, em que um
departamento de ensino ou pesquisa em filosofia faz questão de aludir à distinção
terminológica e inserir ambos os nomes em sua linha de pesquisa ou na ementa de uma
disciplina. Este cuidado não é insignificante nem do ponto de vista teórico mais amplo e,
geralmente, está atento às diferenças de doutrinas de vários filósofos, especificamente.
Outras tantas vezes, contudo, não é isso o que ocorre e ‗Estética‘ é o termo consagrado à
reflexão filosófica sobre temas como a beleza e a arte.

De um ponto de vista mais geral, a ‗filosofia da arte‘ designa uma reflexão que aborda a
arte sob o ponto de vista mais amplo de seus fundamentos e de sua existência. Neste
sentido, há filosofia da arte desde a antiguidade clássica. Por outro lado, ‗estética‘ refere-se
à ―ciência do conhecimento sensìvel‖, cujo objeto máximo é o belo. Não é de se espantar
que em Hegel estética e filosofia da arte não apenas se confundam, mas que também
estejam identificadas de tal forma que o domínio da estética encontre na arte sua expressão
mais adequada. Podemos dizer que esta assimilação decorre da identificação do belo à
esfera da cultura ou, melhor dizendo, do espírito, em detrimento da esfera da natureza. Esta
operação é sacramentada por Hegel, mas já estava disponível na terceira crítica de Kant,
230
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 367.

99
ainda que de maneira não tão radical, uma vez que eventos naturais são belos à maneira da
arte, como se possuíssem algum desígnio. Causa mais espanto em Danto, principalmente
com escritos como Após o fim da arte, que a relação entre o estético e o artístico se deem de
maneira ligeiramente diferente da concepção estética de Hegel 231.

Assim, enquanto ‗estética‘ tem a ver com ser sensìvel, a ‗filosofia da arte‘ se alinha mais ao
ser. Não é justo, portanto, que seja a mesma coisa uma ―reflexão filosófica sobre a arte e
sobre o belo‖. Nem mesmo a arte é necessariamente bela.

O domínio dos fenômenos estéticos e o domínio da arte (enquanto obras ou enquanto


instituição) são descontínuos. O conjunto de coisas belas (ou o conjunto de coisas
classificadas com outros valores estéticos) não é co-extensivo com o conjunto de obras de
arte; nem mesmo as obras que julgamos belas são idênticas a todas as coisas que assim
julgamos. Além disso, nem tudo o que consideramos arte é também (ou por causa disso)
belo.

Do ponto de vista da estética, a arte estaria relacionada ao belo e, portanto, à sensibilidade.


Por outro lado, a filosofia da arte encara seu objeto como artifício, como produto humano.
‗Estético‘ possui também um uso adjetivo que engloba o domínio das obras de arte (e a
instituição arte, parcialmente) e que diz respeito ao conjunto de valores, normas e
experiências artísticas. Este uso adjetivo é como que uma decorrência da identificação da
estética com a arte – e, portanto, ‗estético‘ torna-se sinônimo de ‗artìstico‘. Nesta acepção,
‗estética‘ conota – mais uma vez – uma parte da filosofia, destacada do objeto e
posicionada numa posição descredenciadora, alienante.

Mas após o fim da arte, ―a estética [não] é para a arte o que a ornitologia é para os
pássaros‖ 232 . A recredencialização da arte frente à filosofia significa, para Danto, uma
vitória ontológica em que foi provado ser possìvel ―fazer arte evadindo aos limites da
estética‖, isto é, sem aspirar a qualquer qualidade estética específica, como a beleza – que
vingou como finalidade da arte por força das narrativas que a dominaram externamente.

231
A distinção entre o belo natural e artístico em Danto e em Hegel são imprescindíveis para o estado da
estética segundo a filosofia danteana, fortemente influenciada por Hegel em sua última fase.
232
Relembra Arthur Danto a boutade que Barnett Newman dirigiu a Susanne Langer. Cf Apud DANTO, A.
The Philosophical Disenfranchisement of Art. New York: Columbia University Press, 1986, p. X.

100
Ora, o auspício desta vitória consiste no afastamento de qualquer noção sensorial do núcleo
definicional da arte – afastamento este que ―Duchamp tornou central em seu
empreendimento‖, isto é, a ―distinção [de Duchamp] – que tenho [eu, Danto, tenho] como
essencial – entre objetos estéticos e obras de arte‖233. A ontologia é o núcleo duro da arte.

O reconhecimento disso [(―que a beleza na verdade não poderia constituir


nenhum atributo definidor da arte‖, que algo pode ―ser arte sem ser belo‖)], pode-
se dizer, permite traçar uma linha nítida entre a estética tradicional e a filosofia da
arte, hoje na verdade prática da arte‖234.

O essencial é perceber que a preferência pelo termo ‗filosofia da arte‘ – e não ‗estética‘ –
para designar o pensamento danteano sobre a arte está amparado na noção de qualidade
artística, estabelecida por Duchamp em detrimento dos imperativos de qualidade estética,
tais como a integridade dos materiais, a pureza dos meios, a pertinência do tema, a
equivalência perceptiva mimética ou a beleza. Se a arte tem sua própria filosofia, a reflexão
danteana é uma espécie de filosofia da filosofia da arte ou, como propõe Virginia Aita235 (e
a esta interpretação se alinham as conclusões do capítulo anterior), é um discurso de
segunda ordem.

Duchamp tinha ―uma agenda filosófica parcialmente voltada para a separação entre o
estético e o artìstico‖ e, por isso, não tinha ―a intenção de reduzir obras de arte a objetos
estéticos, à maneira de Kant ou Schopenhauer‖ 236 . Duchamp propõe a distinção que
encontra na filosofia de Danto um feliz encaixe, quase que feito au demand. Assim,
segundo a visão de Danto, Duchamp teria demonstrado que ―a estética na verdade não é
uma propriedade essencial à arte, nem a define [...;] o que Duchamp fez foi demonstrar que
o projeto devia, antes, discernir como a arte deveria ser distinguida da realidade‖ 237. A
filosofia é solicitada para tratar de um assunto ontológico já posto pela arte, e é neste
momento filosófico da arte que a sua história chega ao fim e ―As questões podem ser
exploradas pelos artistas que nela estão interessados, e pelos próprios filósofos, que agora
podem começar a fazer filosofia da arte de um modo que produzirá respostas‖238. É preciso
que os filósofos abdiquem do pressuposto heteronômico e autoritário de legislar e definir a
233
DANTO, A. Após o fim da arte, p. 93.
234
Ibdem, p. 92.
235
AITA, V. Arthur Danto – narrativa histórica sub specie aeternitatis, p. 150n.
236
DANTO, A. Duchamp e o fim do gosto, p. 93.
237
DANTO, A. Após o fim da arte, p. 125.
238
Ibdem, p. 126.

101
arte para que seja possível ultrapassar a aparente impossibilidade de definir a arte. A
inépcia dos filósofos analíticos da arte wittgensteinianos se funda na compreensão tácita de
que a aproximação da filosofia com a arte deve se dar através da estética compreendida
como domínio da sensibilidade. Mais especificamente, o fracasso da filosofia analítica
wittgensteiniana deve-se à procura infrutífera de qualidades estéticas em obras que,
segundo Danto, estariam provando ser ineficaz qualquer inspeção perceptiva e heterônoma.

Toda esta compreensão heteronômica, alienante, descredencializadora e não dialética


captura a intenção, criatividade e significado artísticos na normatividade da qualidade
estética.

No artigo Duchamp e o fim do gosto, Danto defende que o efeito do ataque que Duchamp
faz à redução das qualidades artísticas às qualidades estéticas

[...] não significa que a era do gosto (goût) tenha sido sucedida pela era do mau
gosto (degoût). Significa antes que a era do gosto tem sido sucedida pela era do
sentido, e a questão central não é se algo é de bom ou mau gosto, mas sim o que
significa. É verdade que Duchamp tornou possível usar formas e substâncias que
realmente induzem ao repulsivo, que agora passou a ser uma opção. Mas exercer
essa opção é inteiramente uma questão do que o artista pretende transmitir com
isso. Poderia ser acrescentado que é uma opção, antes que um imperativo, induzir
ao tipo de prazer associado à beleza. Isso também pode ser uma escolha dos
artistas para os quais o uso da beleza tem um significado 239.

Com efeito, o cognitivismo e objetivismo estético e sua destinação normativa estão


impedidos – ―A arte é um conceito essencialista‖, reafirma Danto em Após o fim da arte240.
―As considerações estéticas, tendo atingido seu clìmax no século XVIII, não se aplicam
essencialmente ao que devo me referir como ‗arte depois do fim da arte‘‖ e ―a conexão
entre a arte e a estética é uma questão de contingência histórica, e não parte da essência da
arte‖ 241 . A relação não alienante possível entre arte e filosofia é fornecida agora pela
própria arte autoconsciente de sua natureza ser, sobretudo, conceitual: ―é como se a arte
estivesse acenando para filosofia‖ outra relação possìvel através de obras recentes 242 .
Assim, ―a teoria estética clássica não poderia ser invocada com uma ‗arte depois do fim da
arte‘ precisamente porque ela parecia desprezar completamente a qualidade estética‖243. Em

239
DANTO, A. Duchamp e o fim do gosto, p. 21-22. (Grifos nossos).
240
DANTO, A. Após o fim da arte, p. 216.
241
Ibdem, p. 28.
242
DANTO, A. The Philosophical Disenfranchisement of Art, p. X.
243
DANTO, A. Após o fim da arte, p. 95.

102
consonância com a conclusão do capítulo anterior, a recredencialização da arte enquanto
autonomia real significa o descredenciamento da estética filosófica e um desafio duplo à
filosofia na medida em que a arte pós-histórica ―possui sua própria filosofia‖ e inviabiliza o
modus operandi do discurso estético vigente.

Não há, no pleno sentido da palavra, qualquer estética em Danto – e não deve haver
qualquer estética normativa para o mundo da arte pós-histórico. Como tal, só pode haver
uma filosofia da arte e só podemos chamar Danto de um filósofo da arte.

Ora, se o cerne da arte é uma questão ontológica – entre arte e realidade – e a diferença
entre obra de arte e coisa ―não pode ser sensìvel porque não pode ser estética‖244, parece ser
razoável que concluamos (i) que a filosofia da arte é o tratamento conceitual desta
ontologia e (ii) que a noção tácita de estética em Danto se resume à condição de ser
sensível, formando aquilo que ele chama de senso estético e que, se resumindo em um
sentido interno parecido com o senso de humor, é ainda sensível e parece ser composto por
consciência e apreciação fundadas em emoções 245. Danto entende por estética ―a forma
como as coisas se mostram, juntamente com as razões para preferir uma forma de mostrar-
se em detrimento de outra‖246. Em outras palavras, estética é tanto sensibilidade quanto
reflexão normativa desta. Assim, é natural que, sendo a estética algo de sensível para
Danto, seu correlato direto seja a percepção. Entretanto, se a arte chegou a seu fim, a
faculdade da mente a qual respondem conteúdo e meios de apresentação não é a percepção,
mas o juízo247.

Tenhamos em vista esta compreensão de estética em Danto, pois trabalharemos com ela.

Podemos concluir, portanto, que em Danto a saída consiste em salientar a distinção entre
estética e filosofia da arte. A verdade é, pois, que Danto não tem uma estética realmente –
embora vários textos de comentadores qualifique sua reflexão como ―the aesthetic of
Arthur Danto‖ e o chamem de ―esteta‖, tomando como sinônimos os temos ‗estética‘ e

244
RAMME, Noeli. A estética na filosofia da arte de Arthur Danto, p. 88. In: Artefilosofia, Ouro Preto, n.
5, julho 2008, p. 87-95.
245
DANTO, A. A transfiguração do lugar comum, p. 152-159.
246
DANTO, A. The Future of Aesthetics, p. 103. [Grifos nossos].
247
DANTO, A. Após o fim da arte, p. 217.

103
‗filosofia da arte‘ no pensamento danteano248. É verdade que às vezes o próprio Danto usa
os termos de maneira displicente. Mas não se trata de um uso irresponsável pois, no limite,
os problemas dos quais Danto se ocupa são relativos aos problemas da filosofia da arte,
uma vez que, para ele, sendo a estética tradicional compreendida segundo a noção da
percepção ou de um sentido externo suplementar, não encontramos em sua principal obra
dedicada à definição de arte um desenvolvimento pleno das questões estéticas. Tal
desenvolvimento significaria uma aposta nas capacidades da estética, assim compreendida,
de dar cabo às questões suscitadas pela arte contemporânea. Com efeito, a ausência de um
desenvolvimento positivo dos temas tradicionais da estética significa a ausência quase
completa desta no pensamento danteano sobre a arte 249. Como vimos, a questão da arte
contemporânea é ontológica.

Como investigar o estatuto da estética frente ao mundo da arte se, além de ausente na
reflexão danteana sobre a arte, a estética está interditada e o filósofo ele mesmo afasta a
alcunha de ‗esteta‘ ao se nomear ‗filósofo da arte‘? Para nosso alento e esperança, Danto dá
pistas de uma possibilidade de desenvolver um novo estatuto para a estética que esteja em
sintonia com o credenciamento simultâneo de arte e filosofia (segundo Danto, possibilitado
pela autoconsciência da arte)250. Com efeito, assim como há uma distinção a ser feita entre
estética e filosofia da arte, estabelecida a teoria da arte danteana (sua ontologia, história e
crítica), há também uma distinção entre uma estética tradicional – interditada à essência da
arte – e uma estética cogente com o significado artístico e à qualidade artística da obra.
Neste sentido, portanto, a estética possível é tanto um discurso quanto uma dimensão de
sensibilidade atenta às conquistas estabelecidas pelo mundo da arte – é o domínio desta
sensibilidade. O belo artístico e natural não serão dimensões da sensibilidade governadas

248
É o caso, por exemplo, de David Carrier em Danto‟s Aesthetic: Is it Truly General as he Claims? (In:
ROLLINS, Mark. Danto and His Critics, Second Edition, Willey-Blackwell, 2012, p. 232-247) e de Jerry O.
Fodor em Déjà vu All Over Again. How Danto‘s Aesthetics Recapitulates the Philosophy of Mind (idem, p.
55-67).
249
Nos escritos de seu último terço de vida intelectual, Danto de fato passou a escrever sobre temas
tradicionais da estética e seu lugar no cenário artístico contemporâneo. No fim das contas, o que esta
dissertação pretende é oferecer uma interpretação deste movimento de anulação da estética e posterior
abertura de espaço, mesmo que do ponto de vista dos estetas tradicionais este espaço signifique uma
possibilidade restrita e não autônoma.
250
Cf. DANTO, Arthur. O Descredenciamento Filosófico da Arte. Belo Horizonte: Autêntica, 2014 –
principalmente o capítulo IX.

104
pelos mesmos princípios, mas por significados diferentes e, portanto, a chamada estética do
significado251 seria um discurso que não teria se esquecido do ser da arte.

3.3- “A arte na era da teoria”252: ontologia, definição e história da arte


Comparativamente ao passado, a arte a partir de Duchamp, Rauschenberg, Liechtenstein,
Warhol e outros, se aproximou muito do mundo, mas de uma maneira diferente. Não se
trata da mimese pura e simples, mas de um tipo de contato em que a equivalência
perceptiva não se dá pelos mecanismos tradicionais de imitação. Ela se parece, antes,
digamos, com um desvio ou realocação da coisa mesma para o lugar da obra. Nem mesmo
a técnica de representação pictórica – cuja arte mimética definiu uma agenda progressiva
no passado – é mais necessária. A rigor, técnica alguma é necessária. A obra não é criada a
reboque do mundo, ao qual visa; antes, ela se apropria dele. Aos objetivos da mimese se
deve o equívoco categorial dos pássaros com as uvas de Zeuxis 253 . Mas a questão da
aparência a partir de um ponto de partida da indiscernibilidade não possui o mesmo quadro
ontológico. Não se trata mais de saber ―como aproximar a representação de seu motivo?‖;
trata-se, antes, de ―como distinguir coisas tão iguais sabendo que, a rigor, pertencem a
classes distintas?‖.

Tampouco sabemos também para onde marchará a arte (ou mesmo se o fará). E como estas
investidas de Duchamp, Liechtenstein, Rauschenberg, Warhol, soaram ousadas demais aos
intelectuais mais ―tradicionais‖, a questão de o que pode fazer a estética, frente à
imprevisibilidade do percurso e heterogeneidade das obras, nos coloca diante da delicada
questão do que devemos fazer dela, já que, como discurso filosófico sobre a arte e o belo,
ela parece completamente dispensável e ultrapassada. Pode a estética (ou filosofia da arte)
definir a arte e confiar no poder preditivo e generalidade de seu discurso? Esta parecia ser,
com efeito, a questão em jogo entre os filósofos da arte do ambiente anglo-saxão.

251
DANTO, A. Embodied Meanings, Isotypes, and Aesthetical Ideas, p. 123. In: Global Theories of the
Arts and Aesthetics. Journal of Aesthetics and Art Criticism, v. 65, n. 1, 2007, p. 121-129.
252
Alusão à expressão cunhada por Noël Carroll. Cf. Essence, Expression, and History. In: ROLLINS,
Marc. Danto and His Critics, p. 99.
253
―Confundir uma obra de arte com um objeto real não é uma proeza tão grande quando uma obra de arte é o
objeto real com o qual alguém se confunde‖ (Cf. DANTO, A. O mundo da arte, p. 17).

105
[...] a própria teorização de Danto sobre a arte ocorreu contra o pano de fundo da
negação neo-wittgensteiniana de que a arte poderia ser definida. [...] Neste
contexto, a questão que naturalmente surgiu foi: se não há uma definição
essencial para a arte, então de que maneira nos referiremos àquilo que é arte e
àquilo o que não é? A resposta dos neo-wittgensteinianos: por meio das
semelhanças de família254.

A arte contemporânea, ao contrário da arte de vanguarda, não quis revolucionar nossa


maneira de ver a arte. Se isso ocorreu, se deve antes à revolução operada no modo como
compreendemos a arte. Conforme nos informa Noël Carroll, foi preciso romper com a
compreensão vigente em seu contexto para que uma nova filosofia da arte pudesse ser
erguida. Vamos, então, à querela analítica.

3.4 – O contexto analítico em torno da definição da arte

3.4.1- Wittgenstein e a estética


A despeito de seu profundo contato, admiração e até incentivo financeiro a alguns artistas
de Viena, a estética filosófica nunca foi o objeto de estudo de Wittgenstein. Mas é
certamente o profundo interesse pessoal e humano pela arquitetura, música, poesia e
escultura que o levou a dar preleções sobre este tema. A não centralidade da estética
filosófica no pensamento wittgensteiniano não é mera coincidência e não ocorre somente
em sua filosofia. Isto é recorrente na filosofia analítica ainda hoje (embora tenha ganhado
relativa importância a partir da década de sessenta) e, como vimos na seção anterior, isso se
deve a ordens distintas de causas. Em Wittgenstein, o aparecimento tardio da estética
imprime sobre ela formas já definidas de um pensamento maduro.

Melissa Theriault inicia sua análise acerca da herança de Wittgenstein para a estética
analìtica e para Arthur Danto lembrando que ―as origens da filosofia analìtica são marcadas
por uma rejeição da estética filosófica‖:

A filosofia analítica nascente deixa intencionalmente de lado a estética. Ela


admite que é tolice procurar uma regra para determinar a significação de um

254
CARROLL, Noël. Essence, Expression, and History, p. 93-4.

106
símbolo estético. Ela espera somente trocar estas regras por signos mais simples,
aquelas da ciência e da linguagem ordinária 255.

Deste ponto de vista, a estética não goza de autonomia, pois os termos e conceitos de seu
estatuto e discurso são remetidos a outros domínios, nos quais um tratamento linguístico
operará uma tradução redutora. É uma espécie de descredencialização – desta vez interna à
própria filosofia.

Em Wittgenstein a estética não sofre de uma visão tão redutora, mas é profundamente
influenciada por sua concepção de filosofia. As suas análises da estética (que valem
também para a ética, para a lógica e para a religião), se encontram especialmente na obra
Ética, Psicologia e Religião: Palestras e Conversações 256 , um conjunto de preleções
ministradas por Wittgenstein já na fase madura de sua carreira filosófica – portanto, após a
consolidação do Tractatus Lógico-philosophicus, das Investigações Filosóficas e dos
legados destas obras. A despeito das rupturas e continuidades 257 entre o Tractatus e as
Investigações, nas Palestras podemos notar a proeminência de algumas divisas centrais
da(s) filosofia(s) de Wittgenstein, tais como a doutrina do dizer e do mostrar, a função
terapêutica da filosofia, a combinação destas noções à dos jogos de linguagem e a crítica ao
projeto essencialista através da noção de semelhanças de família.

Decisivas não apenas para o tratamento que Wittgenstein dá à estética, a teoria


wittgensteiniana258 influenciará enormemente o debate filosófico acerca da arte. Dentre tais

255
GOODMAN; ELGIN. Esthétique et connaissance (pour changer de sujet). Combas : L'Éclat, 1990, p. 90,
Apud THERIAULT, Melissa. Arthur Danto ou L‘art en boite. Paris: L‘Harmattan, 2010, p. 16.
256
WITTGENSTEIN, L. Estética, Psicologia e Religião: Palestras e Conversações. São Paulo: Cultrix, 1970.
257
Cf. por exemplo a obra Wittgenstein, , de Anthony Kenny. Wiley-Blackwell, 1 edition, 2005. O Prof. Dr.
Werner Spaniol (FAJE), em material de estudos internos à faculdade que leciona, apresenta sucintamente os
itens de continuidade e de ruptura entre o Tractatus e as Invenstigações: continuidades: (a) persistência no
silêncio, (b) a doutrina do dizer (sagen) e do mostrar (zeigen), (c) a função terapêutica da filosofia
(aprofundada ainda mais nas Investigações), (d) a convicção de que a linguagem é o objeto e a fonte de
problemas e mal entendidos para a filosofia (no Tractactus, devido às analogias indevidas entre forma lógica
aparente e real, e nas Investigações, entre gramática de superfície e de profundidade), (e) a ideia segundo a
qual a linguagem ordinária está bem como está (§98; #5.5563); rupturas: (a) abandono da motivação positiva
de conhecer a forma lógica das proposições, (b) a filosofia não é um sistema, mas se aproxima da realidade
através da linguagem e consiste, pois, em problemas conceituais (ainda que verdadeiros labirintos de
linguagem), (c) conceber uma pluralidade de significados através da noção de jogos, (d) não há regra positiva
e nem simetria perfeita entre pensamento, linguagem e mundo (e) posição sintética entre as posições
behaviorista e instrospeccionista (antiga querela entre empirismo e psicologismo acerca do significado) e,
finalmente, (f) um ataque brutal e sistemático da noção de jogos de linguagem ao paralelismo perfeito entre
pensamento, linguagem e mundo (§96), estabelecido pela teoria pictórica.
258
Se assim podemos chamar um conjunto de conceitos e ideias mais ou menos coerentes.

107
influências, podemos apontar a crítica penetrante a qualquer pretensão científica da
filosofia, inclusive as analíticas ou linguísticas contemporâneas. Em decorrência disso, há o
desvio do interesse de alguns filósofos, que passam a dedicar seus trabalhos a reflexões não
definicionais.

É sabido que o ímpeto místico de Wittgenstein nunca foi o elemento de maior sucesso entre
seus herdeiros e interlocutores. A doutrina do silêncio expressa no Tractatus, por exemplo,
é solenemente ignorada pelos positivistas lógicos que, ainda assim, desenvolveram
amplamente a semântica ali presente (mesmo que muitos a julgassem extravagante).
Quanto à análise da estética filosófica, pode-se perceber a influência de noções como a de
jogos de linguagem, semelhanças de família e da filosofia como terapia linguística.

Não é nosso desejo fazer exegese destes conceitos já tão difundidos e exemplarmente
interpretados, mas pretendemos determinar o conteúdo da estética em Wittgenstein para
mostrar o lugar que ela ocupa em sua filosofia, bem como a especificidade do juízo
estético. Para isso, apresentaremos como eles foram assumidos na compreensão
wittgensteiniana da estética.

A linguagem como jogo é uma das noções mais influentes do segundo Wittgenstein. Ela foi
proposta na primeira parte das Investigações Filosóficas, dos parágrafos 1 a 25. Podemos
tomar como expressão paradigmática do jogo de linguagem

Pensa nas ferramentas numa caixa de ferramentas [...]. Tão diferentes quanto são
as funções destes objetos são as funções das palavras. (E há semelhanças em
ambos os casos).

E o que nos confunde nas palavras é a sua aparente identidade quanto à forma,
quando as ouvimos ditas ou as encontramos escritas ou impressas. Então a sua
aplicação não nos aparece tão claramente. E em especial quando fazemos
filosofia!259

Assim, extraindo algumas conclusões, podemos selecionar alguns aspectos relevantes ao


nosso interesse e dizer que tal concepção confere à linguagem autonomia, uma vez que
tudo se resolveria dentro da própria linguagem. A linguagem não exige uma justificativa

259
WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. § 11. In: WITTGENSTEIN, L. Tratado Lógico-
Filosófico; Investigações Filosóficas. 6ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2015.

108
ulterior, não é necessário buscar fundamento nem de correspondência nem de finalidade no
mundo. Com efeito, não devemos buscar uma explicação, mas uma descrição do jogo de
linguagem em função da exigência do problema em questão. Em última instância,
justificação, explicações e razão de ser devem ser diluídos em uma descrição compreensiva
de uma forma de vida260.

Sobre a forma de vida (que será muito importante para Danto), Wittgenstein diz que a
linguagem é uma atividade tal como andar, comer, beber, jogar 261. Neste sentido, aprender
uma linguagem é aprender uma forma de vida, uma atividade, é reagir a um treinamento.
Com efeito, ensinar uma linguagem é um tipo de adestramento 262 . Assim, falar não é
reflexivo no sentido de sempre pensar no jogo, pois é quase sempre ação263. Uma vez que o
jogo de linguagem seria constituído por denotação, reações e ações ligadas à fala 264 , a
interpretação desta noção como algo estritamente comportamental é, enfim, parcial. A
solução encontrada por Wittgenstein à antiga querela entre empirismo e psicologismo
acerca do significado opera uma espécie de síntese lógico-pragmática que não se deixa
resumir nem pela posição behaviorista nem pela instrospeccionista, atualizações das
posições antigas. Esta síntese é, bem entendida, o cerne de uma forma de vida.

Entretanto, outra característica importante do jogo de linguagem é que, assim como os


jogos, ele não é perene. As suas regras são flexìveis e arbitrárias. ―Jogo‖ é um conceito
mutável e impreciso265. Daì fazer todo sentido a exortação ―Não pense, mas olhe!‖ 266, pois
ela pretende nos demover da procura por uma essência e da expectativa de que um modelo
universal deva ser confirmado por fatos individuais através da recorrência de uma
caracterìstica comum: ―Não diga ‗deve haver algo comum...‘, mas olhe se já algo comum a
todos‖267.

Finalmente, a relação entre jogos de linguagem e semelhanças de família. Assim como


ocorre com o termo ‗jogo‘, ‗linguagem‘ tem aplicações e significados diversos. Não há uma

260
Cf. Investigações § 109, 217, 211 e §240-2.
261
WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Op. Cit. § 25.
262
Ibdem, § 5.
263
Ibdem, § 23.
264
Ibdem, § 6.
265
Ibdem, § 23, 18, 81 e 497.
266
Ibdem, § 66.
267
Ibdem, § 66.

109
essência comum, mas ―uma complicada rede de semelhanças que se cruzam e se
sobrepõem‖, semelhanças de todo tipo e sem regras pré-definidas268. Assim como entre os
membros de uma família, há semelhanças de vários tipos. O uso das palavras, como os
jogos, formam uma família, ou famílias de famílias269.

Ora, a partir do que expusemos, é possível apresentar (também sinteticamente) a crítica à


noção de precisão terminológica e sua relação com o projeto analítico-filosófico de
definição, bem como apresentar a noção wittgensteiniana de filosofia como terapia.

Entre os § 65 e 78 se concentra o ataque à noção de que a precisão terminológica e a


essência garantiriam a uniformidade linguística. Esta é uma noção cara ao atomismo lógico,
que exige que proposições estejam alinhadas com fatos e funda esta pretensão sobre a
aposta na correspondência isomórfica entre linguagem e mundo. São alvos desta crítica o
primeiro Wittgenstein, Frege, Russell, Moore e Schlick. A noção de jogos de linguagem é
um ataque frontal aos conceitos basilares do correspondencialismo. De um modo geral,
todos estes filósofos fundam a correspondência direta entre proposição e fato através de
compreensão da linguagem como algo dotado de uma essência atemporal e universal – o
que garantiria, então, a uniformidade dos termos e proposições da linguagem. Além disso, o
significado de um termo deve ser preciso e designar sempre e inequivocamente a mesma
coisa270. O significado não deve variar no tempo e nem de casos para caso, e devem então
ser constante. Assim, uma linguagem assim conectada ao mundo possui conceitos que
exprimem essências subjacentes a fatos distintos.

O segundo Wittgenstein opõe as semelhanças de família às essências constantes e combina


as semelhanças de família aos jogos, dizendo que os jogos não têm uma essência e que as
regras que possuem ocorrem também em outros casos que não são jogos 271 . Esta não
especificidade essencialista e o caráter difuso dos jogos dá à crítica de Wittgenstein uma
arma poderosíssima e um aspecto muito sofisticado. A essência não se deduz da recorrência
do termo; ela não aponta para nada comum entre casos distintos. Deve-se reconhecer a

268
Loc. Cit.
269
Ibdem, § 67, 108 e 66.
270
Em Wittgenstein não chega a ser um problema que na linguagem ordinária os termos tenham significados
imprecisos, vagos ou ambíguos. Para todos os demais, que apostam no caráter depurado de uma linguagem
formal artificialmente criada, isso será um problema e cada um tentará contorna-lo à sua maneira.
271
Ibdem, § 23.

110
diversidade no emprego das palavras: há tantas causas quantas maneiras de usar um termo.
Não há identidade essencial no referente, mas regras que variam de acordo com o jogo e
seu tempo. Ao invés de constância, há uma forte disjunção. Dizemos que duas coisas são
brancas não por terem algo em comum, mas porque a cor de ambos os objetos se situam no
âmbito de um mesmo termo. A linguagem não está correndo atrás de fatos do mundo a
procurar uma característica comum a que pudesse chamar de essência e designar por um
termo. Não há uma essência a ligar dois casos distintos, mas dois casos por detrás de um
termo. Fatos do mundo recaem sob a mesma regra semântica272.

A partir desta crítica fica fácil perceber o quão descreditada se torna a proposta de uma
definição essencialista e verdadeira, a-histórica, impermeável a contrafações.

O que restaria à filosofia seria desempenhar sua função terapêutica. Assim como no
Tractatus, Wittgenstein continua concordando que a filosofia não é científica nem na
explicação nem na auto-justificação metodológica. Ademais, a filosofia não fornece uma
explicação total da realidade. Ela se interessa pelas formas lógicas, pelo a priori linguístico.
No entanto, o Wittgenstein da maturidade vai além de Russell e do Wittgenstein do
Tractatus ao afirmar que a filosofia não é científica sequer no método. Ela não é positiva
(não cria hipóteses nem teorias), mas é terapêutica: não explica nada, visa apenas
esclarecer nosso pensamento 273 . O único sentido no qual ela deve ser científica é no
compromisso com o fatual e, como tal, ela mantém contato com o mundo e o mundo da
vida empiricamente274. No entanto, como se trata do Wittgenstein das Investigações, o a
priori da linguagem deve ser encontrado como que a posteriori, isto é, não se deve
explicar, mas descrever275. Não se deve descobrir a regra de um jogo de linguagem, mas
reconhecer suas aplicações.

Para o Wittgenstein da maturidade, os empiristas lógicos teriam inserido a lógica no lugar


errado, pois a investigação deve ser a posteriori e não deve ser levada a cabo por uma
linguagem perfeita em substituição à ordinária. Também não seria correto dizer que esta

272
Ibdem, § 350.
273
Ibdem, § 109-119.
274
Ibdem, § 108-9, §116-7, § 124-27.
275
Ibdem, § 109.

111
concepção de uma investigação filosófica a posteriori é científica, pois os jogos de
linguagem impedem de evadir o domínio empírico, do que já temos dado à vista276.

Assim, reconhecidos os males causados pela linguagem na vida, nas ciências e na filosofia,
a função terapêutica da filosofia se justifica pela importância de eliminar ou resolver
problemas277. Proposital e arbitrariamente estreita, a terapia é tanto o antídoto quanto o
alimento dos males do intelecto278. Mas o valor dela deve ainda assim ser reconhecido, pois
se a linguagem é o meio através do qual se dá a compreensão que permeia toda nossa vida,
a função terapêutica da filosofia torna-se mais radical que antes.

Tendo em vista os significados das importantes noções acima apresentadas, retomemos a


questão da estética em Wittgenstein e vejamos como eles se relacionam com ela, seja do
ponto de vista da experiência, do estatuto, do juízo estético ou da pretensão de a estética
estabelecer uma definição da arte.

Antes de tudo, vale esclarecer que em Wittgenstein observamos aquela ambiguidade


terminológica em torno do termo ‗estética‘ que Danto tanto deseja afastar. Entretanto, o
contexto deverá determinar quando ‗estética‘ significará a experiência sensual e de sentido
místico que obtemos com a contemplação de uma obra de arte; e quando significará o
conjunto de todas as sentenças que procuram exprimir proposições acerca da arte (algo
mais próximo a uma estética filosófica, portanto). Estas conotações não tem caráter
exclusivo, embora qualquer tentativa de articular filosoficamente o indizível redundará em
contrassenso. Contudo, é importante nos atermos quando o termo é empregado no sentido
experiencial ou no sentido discursivo e disciplinar.

Ora, o silêncio é fundante para que possamos compreender a estética em Wittgenstein, e a


doutrina do dizer (sagen) e do mostrar (zeigen) é o cerne desta divisa. Tocando a questão
cardinal da filosofia enfrentando a relação entre proposição e fato – entre linguagem e
mundo -, Wittgenstein concluiu que há, por um lado, o que pode ser dito (gesagt) pela
linguagem e, por outro, ―o que não se pode dizer por proposições mas apenas ser

276
Ibdem, § 132-33.
277
Ibdem, § 109.
278
Embora muito diferente do que era compreendido por filosofia em Platão, Descartes ou Kant, também é
filosofia o que Wittgenstein faz porque permanece geral, fundamental e independente.

112
‗mostrado‘ (gezeigt)‖279. Assim, os únicos e autênticos problemas dizem respeito à ordem
dos fatos (isto é, do que é o caso) e, portanto, àquilo que pode ser dito pelas ciências
naturais. ―Existe no entanto o inexprimìvel. É o que se revela, é o mìstico‖280. Frente às
ciências naturais caberia à filosofia apenas uma função terapêutica que, por meio de uma
análise linguística, mostraria a estrutura da linguagem e, portanto, do mundo (ela não o faz
a partir de fora porque, afinal, utiliza a linguagem – e de forma extrapolada).

A distinção que Wittgenstein opera entre o domínio epistemológico e linguístico do dizível


e o domínio propriamente místico destoa da compreensão do místico advinda de Agostinho
e Schopenhauer. Em debate com Moore, Russell, Frege e Brentano, no Wittgenstein do
Tractatus a distinção está fortemente marcada por um paradigma lógico-semântico,
enquanto nas Investigações Filosóficas a divisa é pragmática. O místico é aquilo que pode
apenas ser mostrado ou intimamente contemplado. Não há uma completa cisão entre ambas
as dimensões, mas uma espécie de complementaridade, compreensiva apenas do ponto de
vista do quadro total de sua filosofia.

A religião, a ética, a lógica e a estética dizem respeito a valores, não a fatos. Assim, a
estética refere-se àquilo que, a despeito da solução completa de todas as questões positivas
da ciência, permaneceria inalterado: o sentido da vida. É o que nos confirma Hans Glock no
Dicionário Wittgenstein: ―assim como a lógica, a ética e a estética baseiam-se em uma
experiência MÍSTICA: admirar-se não de como o mundo é, mas antes que ele seja.
[Quando se tem essa experiência, vê-se] o mundo de fora, como um ‗todo limitado‘‖ 281. A
experiência estética parte, portanto, de um ponto de vista sub specie aeterni, pois ―Mìstico
é sentir o mundo como um todo limitado‖ 282 e buscar dotá-lo de sentido. O truque da
estética (da ética e da religião) é possibilitar dar sentido à vida contemplando-a como uma
unidade espaço-temporal exterior fixada num eterno presente. Uma vez que ―A solução do
enigma da vida no tempo e no espaço está fora do tempo e do espaço‖283; que a estética é
transcendental, pois não está fundada em fatos (os quais não podem ser mudados e, em si,

279
WITTGENSTEIN, L. Cartas a Russell, Keynes y Moore. Madri. Taurus Ediciones, p. 68. Apud CONDÉ,
Mauro Lúcio Leitão. Wittgenstein: Linguagem e Mundo. São Paulo: Annablume, 1998, p. 60.
280
WITTGENSTEIN, L. Tratado Lógico-filosófico, §6.522, p. 141. In: Tratado Lógico-filosófico.
Investigações filosóficas. 6ª edição. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2015.
281
GLOCK, Hans- Johann, Dicionário Wittgenstein, p, 139. (Grifos do autor).
282
WITTGENSTEIN, L. Tratado Lógico-filosófico, §6.45, p. 140.
283
Ibdem, §6.4312, p. 140.

113
não possuem valor); que está fundada, isso sim, sobre valores determinados pela vontade,
que constitui o limite do mundo e é indizível, deve-se concluir que a contemplação estética
implica a felicidade. A felicidade é o produto da experiência estética. A infelicidade é uma
questão categórica – o mundo do infeliz assim o é porque (diferente do mundo da pessoa
feliz) se funda sobre fatos e se inscreve neste domínio, no qual tudo é indiferente a qualquer
mudança e à determinação da vontade e do valor 284.

A experiência estética, como ―produtora‖ de felicidade, consiste em transcender ao mundo


dos fatos e aos ditames da vontade. Na ―contemplação estética, escapamos à dominação da
vontade (aos nossos desejos), uma vez que nossa consciência se preenche com uma única
imagem‖285 e temos, portanto, ―percepção do mundo sub specie aeterni, isto é, a sensação
de estar fora do tempo e do espaço e de contemplar a essência do mundo‖286. Como tais
experiências são místicas, transcendentais, indizíveis, elas não cabem no discurso, embora
fundantes do ponto de vista humano. Se a experiência estética é transcendental e se seu
lugar – só tardiamente definido na filosofia wittgensteiniana – se apoia sobre o domínio do
indizível, conclui-se também que ao artista é conferida a honrosa tarefa de exprimir
(mostrar) o sentido sub specie aesterni da vida, tocar o coração da experiência humana e
causar em nós uma visão do místico. O sentido não é dito; o maior dos valores não é
expresso; ele é mostrado. Cabe ao artista articulá-lo e exprimi-lo esteticamente287. Como
místico, mais vale aquilo para o qual o artista aponta – e que, portanto, se relaciona com o
silêncio místico – do que aquilo de que ele por ventura se valha para fazê-lo. O sentido que
nos falta pode ser encontrado na arte, que nos levará a intuí-lo experimentando o mundo
como um todo posto à distância. O místico na arte é uma promessa de felicidade.

Dito isso, é de se esperar que a dimensão discursiva da estética filosófica sofra a imposição
de algum limite. A restrição imposta ao discurso estético se refere à proeminência do
místico, que ela não pode dizer. Do ponto de vista filosófico, a estética filosófica ainda
pode se concentrar em outras dimensões da experiência artística, desde que não tente
exprimir o sentido em proposições, pois seria um contrassenso. Entusiasta e conhecedor das

284
Cf. Ibdem, §6.43 ss.
285
GLOCK, Hans- Johann. Dicionário Wittgenstein, Op. Cit. p, 139.
286
Ibdem, p. 12.
287
A experiência mística, a vida moral e a lógica partilham desta posição de estarem para além do mundo,
mas cada uma delas possuem em Wittgenstein especificidades e importâncias diferentes.

114
artes, Wittgenstein estava ciente da possibilidade de se aproximar da arte através de outras
modalidades e julgava necessário esclarecer as valências de cada um destes meios. Dizer
que nossa relação com a arte dá-se apenas em relação ao místico não só é parcial, como é
também inconsistente. Podemos tanto experimentá-la como fazer glosa sobre elas: ―em
grande parte, a apreciação estética reside não em simplesmente gostar ou desgostar de uma
obra de arte, mas antes em entendê-la ou em caracterizá-la‖288. Ou seja, Wittgenstein não
restringe a arte aos domínios exclusivos da experiência e do gosto. Ele reconhece a
necessidade de um discurso especializado (específico de uma forma de vida) e bem
definido sobre a arte e suas manifestações. Segundo ele, uma apreciação que consista
estritamente em um prazer ou desprazer subjetivos é cega para as demais possibilidades de
experiência artística, tenta reduzir a experiência às vicissitudes da vontade e é
completamente vazia de significado.

O que fora dito no Tractatus acerca das proposições estéticas não possuírem conteúdo
denotativo continua valendo, pois elas pretendem tratar (avaliativamente) como objeto de
gosto propriedades musicais, plásticas e outras. Contudo, o que interessa agora são ―os
jogos verbais em que [as palavras] aparece[m], não a forma das palavras‖ 289. Há o que
poderíamos chamar de jogos de linguagem do gosto. Neste jogo, deve-se estar atento à
crítica não essencialista da linguagem. Assim como em qualquer outro, no jogo do gosto o
que importa não são as peças, mas as regras utilizadas em cada época diferente 290 . A
despeito de ter o mesmo nome sempre, o gosto é um jogo de linguagem e, como tal, refere-
se àquelas atividades humanas circunscritas num tempo e espaço específicos, dotadas de
valores relativos e que constituem um modo de vida. É Wittgenstein quem nos diz: ―a
expressão jogo de linguagem deve realçar o facto de que falar uma língua é parte de uma
atividade ou de uma forma de vida‖291. Portanto, ―É interessante comparar a multiplicidade
das ferramentas da linguagem e dos seus modos de aplicação‖ 292, pois ―quando se fazem

288
GLOCK, Hans- Johann. Dicionário Wittgenstein, Op. Cit. p, 140.
289
WITTGENSTEIN, L. Estética, Psicologia e Religião,§ 5.
290
Ibdem, § 5.
291
WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Op. Cit. § 23.
292
Ibdem, § 23.

115
juìzos estéticos na vida real, adjetivos estéticos como ‗belo‘, ‗lindo‘, etc., dificilmente
desempenham qualquer função‖293.

Segundo Wittgenstein, ordinariamente estes adjetivos estéticos possuem um caráter


interjetivo. Radicalizando, Wittgenstein diz que o adjetivo ―belo‖ que alguém não versado
nas artes aplica na sentença ―Que belo quadro‖ equivale à interjeição ―Oh!‖ – e, portanto,
não se trata do uso estético do termo294. Diferentemente, uma linguagem estética adequada
se aproximaria de um discurso artístico especializado ou de connoisseur, em que os
adjetivos estéticos quase inexistem, pois são substituídos por adjetivos artísticos
específicos à área em questão. Ora, o exercício que nos força a atentar para elementos
específicos de uma obra corresponde àquilo que Wittgenstein chamou de ver-com-um-
aspecto, que consiste em ver uma cara, reparar ―na sua semelhança com uma outra‖ e, ainda
que não tenha mudado, vê-la ―de outra maneira. A esta experiência chamo ‗reparar num
aspecto‘‖295. Por isso é que se diz sobre uma figura assim vista que ―Interpretamo-la e
vêmo-la como a interpretamos‖296. Na música, um discurso estético cogente deveria dizer
―‗Atentem para esta transição‘, ou ‗Esta passagem é incoerente‘‖; acerca da poesia, o mais
adequado seria dizer: ―Seu uso da imagem é preciso‖ ou impreciso. Assim, em um jogo de
linguagem estético formado por adjetivos artìsticos ―as palavras então usadas se aparentam
mais a ‗certo‘ e ‗correto‘ (tal como são estas palavras empregadas na linguagem corrente)
do que a ‗belo‘ ou ‗adorável‘‖297. Diferente do discurso ordinário, no jogo do gosto o objeto
do discurso são obras já constituídas sobre as quais os adjetivos e as análises possuem um
significado específico determinado pela forma de vida artística específica. Assim, referir-se
à arte apenas através de adjetivos estéticos demonstra uma inaptidão para o jogo e um
completo desconhecimento da linguagem e da forma de vida artística.

Neste sentido, poderíamos dizer que há um paralelo entre a distinção adjetivos estéticos e
adjetivos artísticos em Wittgenstein, e a distinção entre estética e filosofia da arte, em
Danto. Em tempo, analisaremos este paralelo.

293
WITTGENSTEIN, L. Estética, Psicologia e Religião: Palestras e Conversações, § 8.
294
Ibdem, § 8.
295
WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas, § 3.
296
WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas, § 6.
297
Ibdem, § 8.

116
Retornando à questão em disputa, fica claro que uma definição tradicional da arte está
completamente fora de propósito desde este ponto de partida. Ela não só é inviabilizada
porque são vários os jogos de linguagem. Como a arte diz respeito a valores, ela transcende
o mundo dos puros fatos. Definir arte é desnecessário e constitui a tarefa mais infrutífera,
indigna e delirante que a filosofia poderia buscar. A única tarefa que resta à estética
filosófica é fazer terapia das formas de vida imbricadas nos termos e proposições de um
jogo de linguagem do gosto. Ainda que a agenda essencialista seja uma proposta fracassada
e impedida, resta à filosofia ainda a louvável função de analisar (sem pretensões logicistas
ou essencialistas) as diferentes funções que os adjetivos estéticos adquirem e desempenham
nos diferentes jogos de linguagem do gosto de cada época. Para que este papel terapêutico
seja cogente, seguindo esta advertência metodológica a filosofia não deve legislar sobre a
atividade artística. Isto significa que o discurso artístico é primário em relação à estética
filosófica, que deve reconhecer sua primazia e anterioridade? Esta parece ser, entretanto, a
consequência a ser obtida no pensamento de Arthur Danto. Antes, vejamos como Morris
Weitz leva adiante importantes divisas da filosofia wittgensteiniana.

3.4.2- Morris Weitz como herdeiro negativo de Wittgenstein


O papel da teoria na estética298, de Morris Weitz, era uma das maiores expressões do anti-
essencialismo em estética na época em que Arthur Danto se pôs a refletir sobre a arte pela
primeira vez. Neste artigo, Weitz revoga a pretensão de se oferecer uma teoria capaz de
determinar a natureza da arte através de uma definição clássica pautada em condições
necessárias e suficientes, e, portanto, advoga contra a ideia de que a arte possua uma
essência que, uma vez identificada, a distinga da não-arte. Além da viabilidade do
essencialismo, ele critica também a presunção de que teorias estéticas são necessárias ―para
qualquer compreensão da arte e da nossa correta avaliação artìstica‖. Assim como
Wittgenstein negou a possibilidade e a necessidade do essencialismo, Weitz também o fez
na teorização filosófica acerca de uma pretensa essência da arte. Uma terapia do discurso
estético e uma posição quietista acerca de qualquer ímpeto cognoscitivo da estética

298
Artigo originalmente publicado em The Journal of Aesthetics and Art Criticism, XV (1956), p. 27-35.

117
filosófica caracterizará a proposta de Weitz, uma vez inviabilizada esta teoria nos moldes
tradicionais.

Morris Weitz e outros, convencidos dos argumentos de Wittgenstein, concluem que tentar
edificar uma teoria do ponto de vista essencialista é um completo nonsense. Se há uma tal
essência na arte, ela está para além do que a filosofia pode acessar e, portanto, não figura
nem figurará em qualquer ―proposição‖ teórica da estética. Danto não está convencido
desta inviabilização, pois acredita que ―é possìvel determinar definitivamente se
obedecermos à condição de que se aplique os critérios apropriados‖299. Segundo Melissa
Theriault,

A Transfiguração do lugar-comum constitui, neste sentido, uma viragem marcante (e


notável) em relação ao que era dito na época sobre estética, o que explica a agitação
causada pelo retorno de uma forma de essencialismo. Colocando em questão a pertinência
da ideia de semelhanças de família como um meio de compreender a particularidade do
conceito de arte, Danto se coloca pouco a pouco à contracorrente 300.

Como ainda nos lembra Theriault, este retorno ao essencialismo não deixou de soar
infrutífero àqueles que tinham visto fracassar várias teorias diante de obras, correntes e
movimentos cada vez mais vigorosos em sua inventividade e força contestadora. A resposta
de Danto à evasiva wittgensteiniana consistirá, primeiro, em rechaçar que o questionamento
essencialista ―que é a arte?‖ deva ser dissolvido e, depois, afirmar que a possibilidade de
uma teoria da arte ―‗não será fundada sobre uma inspeção direta das obras‘‖301.

Weitz's Anti-Essentialism302 de Stephen Davies apresenta de forma crítica a argumentação


de Morris Weitz, definitivamente uma das mais importantes vozes anti-essencialistas da
filosofia analítica herdeira de Wittgenstein, contra a qual Arthur Danto abertamente se opõe
em A Transfiguração do Lugar-comum, fazendo parte do contexto mesmo desta obra.
Nesse artigo é reproduzida esquematicamente a mesma estratégia e intuição definicional
que Danto propôs para superar o anti-essencialismo, mas Davies sequer cita as

299
THERIAULT, Melissa. Arthur Danto ou L‘art en boîte. Paris: L‘Harmattan, 2010, p. 18.
300
Ibdem, p. 18-9.
301
DANTO, A. La Transfiguration du Banal, 1989, p. 24. Apud THERIAULT, Melissa. Arthur Danto ou
L‘art en boîte, p. 19.
302
DAVIES, Stephen. Weitz's Anti-Essentialism In: LAMARQUE, Paul; OLSEN, Stein (ed.). Aesthetic and
the Philosophy of Art: the analytic tradition. Oxford: Blackwell, 2004, p. 63-68.

118
contribuições de Danto303. De modo muito similar, a conclusão a que Davies chega é que a
argumentação de Weitz não interditou todas as vias possíveis de um plano essencialista de
filosofia da arte.

Com efeito, Weitz advoga contra a justeza da questão da natureza da arte e defende os
benefícios de substituir este por outros questionamentos não-fundacionalistas. Segundo
Weitz, todas as dificuldades congênitas das teorias estéticas se devem unicamente à
pressuposição de que a arte possui uma essência e que esta se revelará numa fórmula
composta por condições necessárias e suficientes. Esta pressuposição viciaria logo de saída
a lógica interna do conceito de arte: ―A teoria estética tenta definir o que não pode ser
definido no sentido requerido‖304. Analisando as teorias formalistas de Cliver Bell e Roger
Fry (figuras que Danto também irá retomar em seus escritos), Weitz acrescenta ainda que é
ilegítimo pretender que possamos generalizar os princípios descritivamente encontrados em
uma forma de arte (a pintura, no caso) para outras formas distintas. Tratar-se-ia de mais
uma subversão da lógica interna de cada uma das formas de arte (pintura, escultura, música,
poesia) propor uma fórmula baseada apenas em uma delas e fazer abstração da
especificidade das demais. Não parece indevido afirmar que este argumento de Weitz é um
desdobramento da máxima presente no §66, ―não pense, mas olhe‖ 305 . Esta exortação
pretende desviar-nos da tendência de hipostasiar o pensamento em essências fixas em busca
de satisfação da ―ânsia de generalidade‖.

Weitz nega que as teorias formalista, emocionalista, intuicionista, organicista e voluntarista


sejam teorias adequadas, primeiro, porque elas se auto-anulam, pois todas elas pretendem
oferecer uma descrição completa das características definidoras da arte; além disso, são
rivais e não admitem tradução inter-teórica. Atacando especificamente cada uma destas
teorias, a teoria formalista de Bell-Fry seria circular e insuficientemente caracterizada; a
303
Weitz's Anti-Essentialism, publicado pela primeira vez em 1991, saiu também em um manual de estética
da editora Blackwell em 2004. A principal obra de Danto sobre ontologia de obras de arte e definição da arte,
A Transfiguração do Lugar-comum, foi publicada nos Estados Unidos em 1981 e dialoga diretamente com
Weitz e outros. É de surpreender como, dada a agenda do artigo e as conclusões de Danto, este não tenha sido
citado sequer rapidamente – principalmente porque Danto adota exatamente a estratégia de apelar a outra
―sorte particular de propriedades‖ que não as ―propriedades perceptìveis intrìnsecas às obras de arte‖
(palavras de Davies). A que atribuir este lapso? Inépcia do método danteano, insuficiência de espaço para
desenvolver a argumentação, conflitos extra-filosóficos? Talvez Davies tenha se restringido a focar
exclusivamente na argumentação negativa de Weitz.
304
WEITZ, M. Op. Cit.
305
WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas, p. 227-8.

119
teoria intuicionista de Croce seria não suficiente; o organicismo de Bradley é demasiado
amplo quanto aos limites da arte; e o voluntarismo (Parker) e o intuicionismo estariam
fundados sobre erros conceituais crassos. Além disso, nenhuma destas teorias atende ao
princípio verificacionista, pois nenhuma fornece um meio de interpretar como as condições
que estabelecem poderiam ser empiricamente comprovadas. Assim, as afirmações das
teorias estéticas não possuiriam valor-verdade, não seriam informativas. Elas são apenas
―definições honorìficas de ‗arte‘‖, redescrições subjetivas do conceito.

Mas Weitz considera que a verdadeira crítica que ele tem a fazer às estéticas tradicionais
consiste em dizer que

a teoria estética é uma tentativa logicamente vã para definir aquilo que não pode
ser definido, de determinação das propriedades necessárias e suficientes daquilo
que não tem propriedades necessárias nem suficientes, de conceber o conceito de
arte como fechado quando o seu próprio uso exige a sua abertura306.

Fiel à interdição mística wittgensteiniana – ou ao limite do sentido das proposições307 –,


Weitz propõe que nos afastemos da questão ―o que é arte?‖ e, em vez disso, que a
substituamos pela questão ―que tipo de conceito é arte?‖, transformando a questão central
da filosofia da arte analítica numa análise semântico-pragmática sobre ―a relação entre o
uso de certos tipos de conceitos e as condições sob as quais eles podem ser correctamente
aplicados‖308. Seguindo as indicações de Wittgenstein, tudo o que deve importar ao filósofo
analítico da arte é o uso do termo ‗arte‘. Weitz deixa claro a filiação direta de seu método
às orientações do Wittgenstein das Investigações:

O meu modelo, neste tipo de descrição lógica ou filosófica, deriva de


Wittgenstein, e foi também ele que, na sua refutação da teorização filosófica no
sentido de construção de definições de entidades filosóficas, equipou a estética
contemporânea com um ponto de partida para qualquer progresso futuro. Na sua

306
WEITZ, M. Op. Cit.
307
WITTGENSTEIN, L. Tratado Lógico-Filosófico, §6.54 ―Acerca daquilo de que se não pode falar, tem de
se ficar em silêncio‖; ou, na versão que ficou consagrada no Brasil, ―Sobre aquilo que não se pode falar, deve-
se calar‖.
308
WEITZ, M. Op. Cit.

120
nova obra, Investigações Filosóficas, Wittgenstein coloca como questão
ilustrativa, a questão de saber o que é um jogo 309.

Analogamente, saber o que é arte consistiria em ser capaz de esclarecer os usos do termo
‗arte‘; consistiria numa espécie de competência explicativa do termo e seu uso.

Ora, dado que as circunstâncias de uso do termo ‗arte‘ são sempre ―reajustáveis e
corrigìveis‖, não é possível criar uma lista completa e acabada de todas as circunstâncias de
uso do termo. Reconhece-se a dinâmica do termo arte, não de sua estrutura teórica,
histórica, crítica e até mesmo sociológica. Weitz está, com isso, seguindo a crítica do
segundo Wittgenstein ao correspondencialismo. Por isso, ‗arte‘ é um conceito aberto, não
possui condições necessárias e suficientes, porque estas seriam definitivas, invariáveis e
unívocas. Termos com estas características são possíveis apenas na lógica e na matemática,
exemplos de linguagens bem formadas e com regras logicamente bem comportadas.
Segundo Weitz, ‗arte‘ está mais próximo a um termo normativo e empiricamente
descritivo, e qualquer tentativa de fechar o conceito será arbitrária e artificial. Mais uma
vez, a questão pela natureza da arte deveria ser substituída por questões factuais, questões
nas quais podemos recorrer a áreas extras filosóficas para estabelecer uma resposta que
consistisse e informativas. Assim, ―o que é a arte?‖ não possui uma resposta porque não é
uma pergunta séria, enquanto que ―É Finnegan's Wake de Joyce um romance?‖ o é, pois o
‗sim‘ ou ‗não‘ que requer necessita apenas da definição (já tradicionalmente assentada) das
propriedades definidoras de um romance e da decisão de ampliar ou não os limites deste
conceito.

Esta questão da arbitrariedade e circularidade se coloca tanto do ponto de vista de uma


tradição crítica assentada quanto do ponto de vista do estabelecimento inaugural de um
cânone. Sem titubear, Weitz assume que o que está em jogo é uma decisão de ampliar ou
não o conceito de ‗romance‘ (seu uso), não de encontrar empiricamente propriedades
definidoras. Neste sentido, fica difícil saber como, para além da arbitrariedade e da
circularidade, o próprio Weitz escaparia à crítica – que ele mesmo direcionou a outros – de
que o termo ‗arte‘ não seria uma mera redescrição enaltecedora, um termo honorìfico

309
Ibdem.

121
deliberadamente dedicado a algo – uma mera interjeição, conforme chama Wittgenstein310.
Esta crítica torna-se ainda mais poderosa se levamos em consideração que Weitz não
pretende contar com qualquer intuição geral que possa servir como guia. É possível que
―obras‖ compartilhem caracterìsticas mas que não sejam ambas obras? É possìvel
responder a isto sem apelar para questões não factuais?, ou Weitz sequer previu esta
objeção? É forçoso que só existam tais propriedades empiricamente verificáveis e que, para
além delas, só nos restaria uma decisão de incluir ou não certos exemplares na extensão do
conceito? Parece absolutamente trivial que decidamos ampliar as regras de aplicação do
conceito para abarcar algo que em tudo seja semelhante a uma obra consagrada, mas que
não é de maneira alguma uma obra. A qualquer custo devemos manter que se trata de uma
questão de decisão?311 Assim, seja do ponto de vista das dessemelhanças, seja do ponto de
vista das semelhanças (quase) absolutas, o ―critério‖ proposto por Weitz parece ser,
respectivamente, arbitrário e trivial. E isso se deve, antes, à pretensão de abdicar-se de uma
noção mais clara do que é arte.

O principal conceito tomado de Wittgenstein por Weitz é o de semelhanças de família.


Com efeito, esta é uma noção atuante em Weitz e uma das poucas coisas que ele poderia
assumir ser mais ou menos ―universal‖. Assim como no conceito de ‗arte‘, subjaz a cada
uma das formas específicas de arte a mesma lógica. Entretanto, a despeito da interpretação
de Danto, a argumentação de Weitz não apela à forma lógica indutiva. ―É Eles eram muitos
cavalos, de Luiz Rufatto, um romance?‖ corresponderia a ―Podemos adicionar n+1 à
categoria romance?‖, em que ‗Eles eram muitos cavalos‘ corresponde a ‗n+1‘ no momento
em que esta obra veio a público, e todos as demais obras literárias deliberadamente
classificadas anteriormente como romances seriam, digamos, R 1, R2, R3, Rn. Tomando as
características do romance como um conjunto mais ou menos recorrente e ao menos
parcialmente partilhado, seria possível estabelecer uma relação lógica na qual, sendo Eles
eram muitos cavalos = K, se A é similar a B, que é similar a C, que é similar a D, ..., e se A
é similar a K, então K é um romance. O argumento possui a forma ‗Algum A é B, algum B

310
Wittgenstein já havia chamado a atenção para o significado interjetivo que certos juízos de gosto possuem
quando usados confusamente, como se tratassem de adjetivos estéticos autênticos.
311
Embora Danto se recuse a concordar com a força deste critério para a natureza da arte, ele salienta o
aspecto político que compõe o mundo da arte. Conforme vimos no capítulo anterior, o aspecto político é
importante tanto extensional quanto intencionalmente.

122
é C, algum C é D, Algum D é n... Logo, Algum A é n‘, sendo o compartilhamento de
algumas características, mas não todas, o elo unificador desta série assimetricamente
unificada. O compartilhamento de tais características centrais estabeleceriam as
semelhanças de família em uma estrutura disjunta, tal como queria Wittgenstein. Ser uma
narrativa ficcional (ou pelo menos preponderantemente ficcional), esboçar personagens e
diálogos, possuir um enredo sequencial e progressivo são características de um romance
segundo Weitz. Reconhecer uma obra como romance significa ―reconhecer, descrever e
explicar aquelas coisas a que chamamos ["romance"] em virtude de certas
similaridades‖312. Segundo Weitz:

o que está em causa, não é um exame factual acerca de propriedades necessárias e


suficientes mas uma decisão sobre se a obra examinada é ou não similar a outras
obras, em certos aspectos, a que já chamávamos "romances", e se,
consequentemente, se justifica ou não o alargamento do conceito de modo a
abranger este caso novo313.

Entretanto, ainda que a argumentação central de Weitz seja formalmente válida, para Danto
ela não é sólida, pois para Danto não é o caso que seja a similaridade o elo garantidor das
semelhanças de família da arte. Danto parece compreender tal critério como uma espécie de
razoável compartilhamento de uma característica observacional ou perceptiva. Vejamos
como Weitz pretende estabelecer a verdade desta proposição.

―Os estetas podem estabelecer condições de similaridade, mas nunca condições necessárias
e suficientes para a correta aplicação do conceito‖ 314 . Dado o caráter expansivo e
empreendedor da arte, fechar o conceito em condições necessárias e suficientes é
impossível e ridículo, pois, segundo Weitz, excluiria no domínio mesmo da arte as suas
possibilidades e criatividade. (Desnecessário dizer que há aí uma confusão de domínios, na
qual compreende-se ingenuamente que o ―metabolismo‖ da dimensão artística é alimentado
ou depende da chancela filosófica. Para Danto, é metodologicamente crucial a ideia
segundo a qual a autoafirmação da arte se concretiza através de energias internas). Para
Weitz, o dever do esteta deve ser o de elucidar o conceito ‗arte‘, elencando algumas obras

312
WEITZ, M. Op. Cit.
313
Ibdem.
314
Ibdem.

123
exemplares para o propósito específico, descrevendo e interpretando as propriedades que
elas compartilham, à maneira de um conceito ou teoria para uma classe aberta de objetos. O
esteta deve sempre tomar cuidado para que ―um critério correto de reconhecimento‖ de
membros de uma classe fechada não se torne um critério recomendado de avaliação para
supostos membros de uma classe aberta.

Assim, sendo a elucidação a função da estética, seu dever é transformar o teor normativo da
questão ―X é uma obra de arte?‖ em uma questão descritiva através da adoção daquilo o
que Weitz chama de critério de reconhecimento. Tal critério não pretende oferecer as
condições necessárias e suficientes sob as quais a questão acima seria descritivamente (isto
é, corretamente) aplicada. Antes, ele toma as condições de semelhança disponíveis como
um conjunto logicamente qualificado para responder à questão. Weitz chama a este
conjunto de ―feixe de propriedades‖, isto é, elementos disponìveis que nos permitem
descrever adequadamente algo como uma obra de arte. Segundo Weitz, o critério de
reconhecimento elenca elementos e relações distinguíveis para artefatos atualmente
presentes. Os elementos e relações tomados numa teoria excluem todos os seus opostos,
mas nenhum deles é definitivo, trans-histórico, válido univocamente. Nenhum critério de
conhecimento é necessário ou suficiente, individual ou conjuntamente, embora sem a
presença de ao menos um é impossível descrever algo como arte315. Difícil não dizer que o
efeito mais relevante (e talvez almejado) da teoria de Weitz seja tornar difusa e pulverizada
a metafísica presente nas filosofias essencialistas da arte. Parece ridículo defender a
existência de um ―feixe de propriedades‖ no lugar de um conjunto de propriedades
necessárias e suficientes, se é logicamente necessário que ao menos um critério de
reconhecimento esteja presente para descrever algo como arte.

De um ponto de vista mais amplo, no entanto, a estética de Morris Weitz merece receber
uma atenção maior por parte dos debatedores interessados nos temas que ela toca. Os
argumentos que Weitz apresenta em seu famoso artigo não são todos igualmente fortes, e

315
―Se nenhuma das condições estivesse presente, se não estivesse nenhum critério presente para reconhecer
algo como uma obra de arte, não iríamos descrever esse algo como uma obra de arte. Mas mesmo assim
nenhum desses critérios, nem mesmo uma colecção deles, é necessário ou suficiente‖. Ora, ―ao menos um‖ é
equipolente com ―pelo menos um‖ e ―nenhum é‖ é contrário de ―Algum é‖. Com efeito, por substituição, que
‗exista pelo menos uma caracterìstica‘ é, sim, um critério necessário. É necessária ao menos uma
característica para que algo seja tratado como obra de arte, mesmo que descritivamente. WEITZ, Morris. O
papel da teoria na estética. Op. Cit.

124
nem soariam iguais para todos os seus leitores, mas certamente merecem uma leitura atenta,
principalmente pelo que diz na última parte de seu artigo, quando defende a relevância do
debate estético, principalmente do aspecto valorativo das teorias estéticas. É comum que
um filósofo não cite com frequência um filósofo inimigo – há aqueles que sequer
mencionam. Ultrapassar um oponente nas ideias às vezes leva a uma espécie de
menosprezo de seus argumentos mais fortes, chegando muitas vezes a caricaturar suas
ideias. Isso tem razões ocultas variadas – destituição, negação, escamoteação, simulação de
ineditismo ou apenas abertura de espaço para o necessário ―parricìdio‖. É muito
interessante notar que a ideia de que a chamada dimensão valorativa da estética possua, na
visão de Weitz, uma relevância inultrapassável para discussão da excelência extra-
descritiva da arte e daquilo que a torna humanamente tão estimulante, arrebatadora,
humanamente valiosa, não foi devidamente avaliada por Danto, que se interessou e se
interessa enormemente por arte em função do que ela nos diz do ser humano. Vale lembrar,
neste tocante, que ‗estética‘ em Danto é essencialmente o que Weitz chama de discussão
sobre o uso valorativo do termo ‗arte‘ (ou seja, um debate estético sobre a arte neste viés),
enquanto que ‗filosofia da arte‘ se identifica, em Danto, com a análise descritiva do termo
‗arte‘ em Weitz. Assim, há uma forte disjunção em Danto, uma maior demarcação, com
efeitos impeditivos; em Weitz esta disjunção não chega a cindir a investigação teórica sobre
a arte em duas, uma das quais é uma investigação autêntica e a outra um puro discurso
vazio de sentido e sem qualquer aplicação. Weitz aplicou a terapia às pretensões da estética
até o limite daquilo que é possível a ela verificar. Danto, ao contrário, levou às últimas
consequências o impedimento das pretensões da estética àquilo que ela não pode verificar.

Segundo Weitz, ―Compreender o papel da teoria estética não é concebê-la como uma
definição, logicamente condenada ao fracasso, mas lê-la como sumários de recomendações
feitas com seriedade destinadas a atender de determinadas maneiras a certas características
da arte‖ 316 . Assim, o uso valorativo do termo ‗arte‘ não torna qualquer discurso
necessariamente falso pelo único motivo de ser este discurso uma extrapolação do aspecto
descritivo. A estética não deixa de ser relevante só porque falha em descrever por completo
a essência da arte. Citando Weitz:

316
WEITZ, M. Op. Cit.

125
se tomarmos as teorias estéticas literalmente, todas elas falham, mas se as
reinterpretarmos em termos das suas funções, como recomendações sérias e
defendidas por meio de argumentos para nos concentrarmos num certo critério de
excelência na arte, veremos que a teoria estética está longe de ser inútil 317.

Creio que Danto poderia ter se dado conta disso desde o início de sua carreira como
filósofo da arte, não apenas no terço final dela quando, assumindo que ―enquanto houver
diferenças visìveis em como as coisas se parecem, a estética é inevitável‖ 318 e que ―a
estética é realmente um significado artìstico‖319, propõe finalmente que a estética pode
encontrar um lugar no conceito de arte e exercer um papel inultrapassável para aquelas
obras que preferiram exercitar valores como a beleza, o grotesco, o repulsivo, o abjeto,
dentre outros, num contexto de arte plural e fazendo deste contexto artístico algo realmente
pluralista.

Em todo caso, parece que tanto Danto quanto Weitz estão seguindo a sugestão de
Wittgenstein segundo a qual é necessário distinguir entre um uso especializado – e,
portanto, qualificado – do termo estética de outro, não especializado e pautado em reações
subjetivas, locuções vazias. Enquanto a estética descritiva, isto é, a análise descritiva do
termo ‗arte‘ em Weitz, se pretende redimida das pretensões essencialistas e do nonsense
metafísico porque centrada na noção de semelhanças de família, embora ainda se abra à
possibilidade de discutir o uso valorativo desde que se deflagre seu aspecto de discurso
laudatório, Danto defende que exatamente esta esfera discursiva da filosofia da arte como
teoria essencialista é possível porque reconhece na arte uma dimensão teórica não
totalmente inerente no suporte artístico como uma propriedade de objetos, mas que relegou
(ao menos num primeiro momento) tudo o mais ao domínio daquilo que deveria ser
esquecido, porque ultrapassado. Weitz e Danto discordam de maneira quase subalternada,
mas subjaz a esta divergência a ideia de uma revisão no quadro mais amplo da reflexão
filosófica sobre arte. A crítica wittgensteiniana ao projeto definicional do essencialismo
levou Weitz a aceitar a análise descritiva pautada em semelhanças de família como a única
possível, e a estética tradicionalmente entendida como humanamente importante; e levou
Danto a um movimento de negação da estética tradicional como discurso literal e a uma
317
WEITZ, M. Op. Cit.
318
DANTO, A. The Future of Aesthetics, p. 104.
319
Ibdem, p. 113.

126
procura por outra possibilidade de uma essência na arte. É como um eco ao §6.52 do
Tractatus; é como se houvesse uma distinção entre fato e valor operando. Para Weitz, as
questões da estética tem resposta se descrevemos a arte ―sob a condição de estarmos
perante uma espécie de artefacto, feito por seres humanos, com engenho e imaginação, que
inclui no seu meio público sensual [...] certos elementos e relações distinguíveis‖320; e as
questões honoríficas da estética apenas tocam esta que é uma das questões do sentido da
vida, a arte, mas permanecendo sem resposta final em termos de uma essência fixa dita.

Contudo, permanece de pé a possibilidade de contra-argumentar Weitz contestando que a


arte não possa ter condições conjuntamente necessárias e suficientes de qualquer tipo.
Segundo Stephen Davies, mesmo que concedamos que os limites entre obra e não-obra são
obscuros, não é impossível uma definição essencialista de arte. Com efeito, Davies
compreende que Weitz apenas ―está negando a possibilidade de uma definição essencial em
termos de uma sorte particular de propriedades; isto é, em termos de propriedades
perceptìveis intrìnsecas às obras de arte‖321. Contudo, há uma diferença considerável em
afirmar que nenhuma definição essencialista é possível e pressupor que a propriedade
intrínseca adequada que deveria subjazer a todas as obras seja uma propriedade sensível.
Antepor esta pressuposição à conclusão negativa acerca da possibilidade de se definir a arte
é ainda e finalmente mais grave do ponto de vista metodológico. Seria como pressupor uma
falsa causa para um efeito nulo. Uma definição essencialista seria falsa tão somente em
razão da falsidade da pressuposição de que a arte deveria estar como que coberta
universalmente por uma apresentação sensível exclusiva e evidente – ―que poderia ser
qualquer coisa material e acessível a observações comparativas imediatas‖322. Se a estética
filosófica não pode oferecer uma definição essencialista da arte, isto se dá em função de sua
inaptidão perceptiva e, no entanto, a filosofia da arte enquanto investigação fundamental se
mostra como caminho viável.

Na visão de Davies, o que Morris Weitz faz é se opor à possibilidade de filosofias


essencialistas da arte a partir de uma herança wittgensteiniana. As razões dadas por Weitz
para esta conclusão são filosóficas, mas não há dúvidas de que um desânimo geral acerca

320
Loc. Cit.
321
DAVIES, Stephen. Weitz's Anti-Essentialism, p. 67; Idem.
322
DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum. p. 26.

127
do estado da arte contemporânea possa ter pontuado sua conclusão. ―Quando parece que
tudo pode se tornar (ou ser declarado) arte, a ideia de que algo é uma obra de arte porque
compartilha com outros de seu tipo uma essência comum parece ser implausível". Desde
que, na arte contemporânea, se pode apresentar uma peça musical como 4'33", de John
Cage, ou "O Vazio", de Yves Klein, então é mais ou menos automático que Weitz
concluìsse que se ―nem mesmo a 'artefactualidade' é uma condição necessária para a arte‖,
então não há condição necessária, e, consequentemente, na falta desta condição, "não pode
haver condições conjuntamente necessária e suficiente para que algo seja uma obra de arte
e, assim, nenhuma definição essencial para a arte" é possível 323. Além disso, mesmo uma
propriedade causal (caso fosse possível determinar alguma) é uma "propriedade não
essencial, pois pode sempre ser rejeitada ou ignorada pela arte do futuro" 324. Como o apelo
às características valorativas é arbitrário e não essencial, a ideia wittgensteiniana de
semelhanças de família assume a função descritiva possível e desejável. Stephen Davies
ainda comenta que os "argumentos anti-essencialistas são frequentemente acompanhados
pelo comentário de que, na medida em que nós podemos identificar referências para a arte
mesmo desconhecendo uma definição essencial, a definição é desnecessária" 325.

Oferecendo uma breve descrição da recepção dos vaticínios wittgensteinianos na filosofia


analítica da arte, Stephen Davies comenta rapidamente sobre como Maurice Mandelbaum e
George Dickie lidam, principalmente, com as noções de semelhança de família e a
distinção entre fato e valor.

Maurice Mandelbaum, no artigo Family resemblances and generalizations concerning


the arts (1965), é um dos primeiros a se contrapor a Morris Weitz, afirmando que a
propriedade definicional da arte seria mais facilmente encontrada se compreendida como
algo imperceptível tal como uma propriedade relacional de objetos, práticas, pessoas.

323
DAVIES, Stephen. Weitz's Anti-Essentialism, p. 64.
324
Ibdem, p. 64.
325
DAVIES, Stephen. Weitz's Anti-Essentialism, p. 64. Segundo Davies, W. B Gallie, John Passmore, Paul
Ziff e William Kennick, além de Weitz, fazem esta mesma alegação.

128
Embora Mandelbaum "não tenha pronunciado nenhuma definição, ele indicou a direção na
qual tal definição deveria ser procurada"326.

Para Davies, George Dickie não teria assumido a noção de semelhanças de família,
introduzida por Wittgenstein em 1953, mas atacado seu uso na reflexão sobre a arte, já que

esta semelhança de família nunca poderia explanar como a primeira obra de arte
foi qualificada como tal. Mesmo que a maioria das obras de arte fossem obras de
arte em virtude de sua similitude com a arte precedente, ainda poderia haver
alguma obra de arte original a qual lhe faltasse predecessoras artísticas. A
explicação da qualificação destas obras de arte recentes com o status de arte não
pode se basear no critério de semelhança 327.

A digressão na qual a semelhança de família se envolve mostraria sua incompletude. Isto


ficaria claro, segundo Stephen Davies, com a apresentação de A Fonte por Duchamp: "se
dois urinóis são iguais em sua aparência, como pode a semelhança entre as obras de arte
explicar como este urinol é uma obra de arte sem com isso mostrar que os demais urinóis
são também obras de arte?"328 Segundo Davies, George Dickie teria aceitado, por um lado,
a crítica inicial segundo a qual a arte não possui uma essência necessária e suficiente e, por
outro, a explicação positiva que Weitz oferece com a aplicação do critério de semelhanças
de família. Neste sentido, George Dickie se concentra na exortação de Weitz para que
"olhemos e vejamos que falta uma essência para a arte". A objeção de Dickie consiste,
entretanto, em afirmar que Weitz é muito liberal quanto à abrangência do termo obra de
arte. Ora, se qualquer uso do termo 'obra de arte' é legítimo, qualquer conflito quanto ao
que é e o que não é arte é legítimo, tornando absolutamente instável o terreno o qual
gostaria de estabilizar ao introduzir a noção apaziguadora de 'semelhanças de família' 329.

Segundo Davies, a inviabilidade de uma definição essencialista não estaria estabelecida


nem mesmo aceitando a ideia segundo a qual o limite entre obra e não-obra é difuso: "A
instrução de Weitz para 'olhar e ver' se as obras de arte compartilham uma propriedade
326
DAVIES, Stephen. Weitz's Anti-Essentialism, p. 68. O Mundo da Arte, artigo que debutou Arthur
Danto na estética em 1964, antecede o trabalho de Mandelbaum, mas igualmente não avança qualquer
definição, tão somente traça as linhas gerais por onde depois Danto encaminhará sua filosofia da arte.
327
DAVIES, Stephen. Weitz's Anti-Essentialism, p. 64-5.
328
Idem. Escusado dizer que esta é a questão que levanta Arthur Danto quando propõe o problema da
indiscernibilidade em arte.
329
DAVIES, Stephen. Weitz's Anti-Essentialism, p. 65-6.

129
essencial comum indica que ele [Weitz] pensa que uma propriedade essencial seria uma
propriedade perceptível em todas e cada uma das obras de arte" 330. Mas isso só indica, em
última instância, que

ao negar a possibilidade de uma definição essencial, Weitz está negando a


possibilidade de uma definição essencial em termos de uma sorte particular de
propriedades; isto é, em termos de propriedades perceptíveis intrínsecas às obras
de arte. De fato nenhuma propriedade intrínseca perceptível é essencial para que
algo seja uma obra de arte, embora cometa um engano ao afirmar [...] que
nenhuma definição essencial da arte é possível331.

Em última instância, o mérito incontestável do artigo de Weitz é, segundo Davies, ter


"convencido a todos que as obras de arte não podem ser definidas em termos de suas
propriedades perceptíveis intrínsecas. De modo particular, definições de 'obra de arte' em
termos de objetos que possuem certa propriedade estética, tal como beleza, parecem ser
abandonadas" 332 . Ora, ao que parece, Danto encontrou um lugar seguro para seu
essencialismo, mesmo acatando (e endossando) o impedimento às propriedades perceptivas
como meio seguro a uma definição essencialista.

3.4.3- O escopo do projeto de definição essencialista de Danto


Sabemos que a tese do fim da arte em Danto impõe questões acerca das fronteiras entre arte
e filosofia. Se tais fronteiras inexistem, a distinção entre ambas torna-se desnecessária. Por
outro lado, tal tese impõe um efeito também demolidor às fronteiras entre arte e vida,
tradicionalmente definidas pela estética filosófica. O ―desafio Wittgenstein‖, isto é, a
influência da crítica wittgensteiniana à pretensão de a filosofia oferecer uma definição
tradicional para a arte, ressoa especialmente provocativo à filosofia da arte de Danto.

A questão é que muitos teóricos analíticos anteriores a Danto assentiram ao impedimento


que Wittgenstein impusera à tarefa de definir a arte filosoficamente. Especialmente para
Danto, uma impossibilidade de definir a arte, nestes termos, impossibilitaria uma definição

330
Ibdem, p. 66.
331
Ibdem, p. 67.
332
Ibdem, p. 68.

130
também da filosofia333. O desafio wittgensteiniano, conforme figura nas obras de Arthur
Danto sobre a arte, pode ser resumido nos termos do filósofo: ―A tese de Wittgenstein,
como a entendo, é a de que não é nem possível nem necessário formular uma definição da
arte‖334, pois a arte, pressupõe Wittgenstein, exclui a possibilidade de qualquer critério e,
portanto, de qualquer conjunto de condições necessárias e suficientes que satisfaça ao
pretenso princípio de homogeneidade compatível com os termos arte ou obras de arte. Para
Danto, a crítica iniciada por Wittgenstein e desenvolvida por vários de seus séquitos coloca
em questão o pressuposto de que a arte é um conceito fechado335. Com vimos, eles negam
que a arte suporte um princípio de homogeneidade capaz de fechá-la em um conjunto
qualquer de condições. Segundo eles, as evidências empíricas corroboram exatamente o
contrário, dando suporte à afirmação de uma absoluta heterogeneidade, anomalia e
imprevisibilidade na classe de obras de arte. Segundo o que vimos, até mesmo Danto está
de acordo com a ideia segundo a qual a classe de obras de arte é disjunta. Entretanto, ainda
segundo Wittgenstein, tudo o que a experiência nos mostra é que a arte não forma um
conceito à maneira essencialista, porque nenhum dos termos deste jogo possui
uniformidade linguística, precisão terminológica e constância de significado. Verifica-se,
antes de tudo, uma pluralidade de usos e significados ainda pertinente à tarefa terapêutica
da filosofia. As únicas sentenças informativas acerca da arte são aquelas que contam com
predicados artísticos (não estéticos) e que são asseridas numa forma de vida conhecida e
estável. A esfera realmente decisiva da arte – o valor, o místico – permanece fechada à
estética filosófica.

Embora este não seja o ponto final para Danto, ele também concorda – à sua maneira – que
a experiência realmente nos incentiva a seguir em frente com o projeto essencialista apenas
na medida em que a abandonamos em nome de algo mais perene e anterior. Neste ponto, a
objeção de Danto consiste em perguntar, retoricamente, se ―Não poderia ser um tipo de
conjunto completamente diferente, com uma estrutura que os filósofos não captaram: um

333
Cf. DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 103.
334
Loc. Cit.
335
Como é possível que uma obra pertença a um autor sem parecer com as obras deste, a arte sob o ponto de
vista do reconhecimento é um conjunto aberto. Mas do ponto de vista do critério causal, a arte é um conjunto
fechado. Cf. A Transfiguração do lugar-comum, p. 106.

131
conjunto logicamente aberto para poder comportar objetos sem caraterìsticas comuns?‖ 336.
Obviamente, esta característica não seria corretamente descrita por um predicado
monádico. A escolha de um predicado com esta característica só pode vir de uma
pressuposição equivocada. É por isso que Danto afirma ―que não se pode formular um
critério perceptual‖337, pois não chegaremos a elaborar qualquer definição ―se limitamos os
elementos da definição às propriedades perceptìveis‖338 – segundo Danto, as investidas da
estética, porque vinculadas à percepção, não possuem acesso a qualquer meio autêntico de
definição. Neste sentido, a similitude não pode ser qualificada como característica central
porque exige o domínio de uma habilidade falha. Nenhum termo observacional é capaz de
acessar relações. Com efeito, Danto se opõe à maneira como Wittgenstein compreende a
seleção das propriedades relevantes que contarão a favor da classificação ou definição da
arte. Esta não precisa ser preconceituosa o bastante para julgar que pode ter somente
predicados perceptivos figurando entre seus termos teóricos, como se a coisa mais relevante
da pintura fosse seu aspecto visual e, em geral, a arte se deixasse resumir em pura empiria e
tudo de filosoficamente relevante acerca dela devesse se dar empiricamente.

Segundo Danto, somente uma definição que, abdicando de um conjunto de condições


necessárias e suficientes, considerasse como propriedades relevantes elementos
perceptìveis concluiria ―que é impossìvel haver generalizações ou definições sobre obras de
arte‖339 em vista de coisas dessemelhantes de todas as anteriores. Não está claro como
sequências de obras de arte ―tradicionais‖ poderiam ser menos dessemelhantes entre si do
que sequências entre obras e obras-coisas (coisas que são obras embora se pareçam mais
com coisas). Neste sentido, a metodologia dos indiscerníveis produzirá um efeito
argumentativo poderosíssimo ao analisar estruturalmente (como exemplares de um todo de
classes) objetos empírica e perceptualmente equivalentes cujas todas as propriedades
disponíveis em um podem ser verificadas em outro, mas que, a despeito disso, não se
deixam reduzir à mesma classe, ainda que a descrição aponte para pretensas ―semelhanças
de famìlia‖ entre ambos.

336
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 104.
337
Ibdem, p. 108.
338
Ibdem, p. 110.
339
Loc. Cit.

132
De um modo geral, a resposta de Danto a Wittgenstein é bastante simples e segue a regra de
contra-argumentação para estruturas formalmente válidas: proceder de maneira tal que ao
menos um item que a princípio se encaixaria na descrição rival, exatamente por possuir
todas as características prescritas por ela, mas ainda assim restarem outras não previstas
inicialmente por ela, acaba por contradizer tal afirmação. A solidez desta operação se funda
sobre o acordo com o princípio lógico dos indiscerníveis de Leibniz (do qual parece ser um
desdobramento), bem como com a obediência aos princípios lógicos da não contradição e
da identidade – embora não se trate, obviamente, de uma questão de identidade numérica,
do contrário a contra-argumentação sequer seria necessária. Contudo, assim como a noção
de jogos de linguagem em Wittgenstein, os experimentos de pensamento envolvendo
indiscerníveis servem ao mesmo propósito de percorrer os inúmeros caminhos dos
significados de ‗arte‘ e nos levam à mesma não homogeneidade a que apontava a noção
wittgensteiniana de jogo com relação especificamente à arte.

Mesmo discordando do acabamento anti-essencialista, as ideias de pluralidade de usos e


significados propostas pelos jogos de linguagem artísticos parecem reverberar em Danto,
embora ele ainda acredite na agenda essencialista e deva ser capaz de identificar e
estabelecer um termo tão amplo e flexível que expresse o conceito de arte e abarque a
totalidade desta classe de elementos tão distintos. Danto procura neste termo a
característica da pluralidade, tanto lógica quanto temporal. Tal termo deve conter uma
estrutura tal que dê suporte a uma essência dinâmica da arte. Desenvolvendo a intuição
segundo a qual obras de arte são veículos representacionais 340 , Danto propõe que o
significado (aboutness) seja este predicado relacional cuja flexibilidade é capaz de refletir a
pluralidade artìstica e cuja semântica relacional reflita a contento a lógica do termo ‗arte‘.
Parcialmente análogo à análise por semelhanças de família, a característica central da arte
deve possuir uma estrutura assimétrica, mas amplamente exemplificada. Assim, se alguma
competência linguística se faz necessária, esta deveria se revelar na posse um conceito de
história da arte, dos debates travados, das questões em jogo, de se participar da forma de
vida em que ela é produzida, que reflete e da qual é uma representação. Estes itens saturam
a percepção de algo como uma obra de arte. Assim podemos compreender a passagem que
nos diz que
340
Como vimos nos capítulos anteriores, este desenvolvimento é um desdobramento sistêmico.

133
Ver algo como arte exige nada menos do que isso: uma atmosfera de teoria
artística, um conhecimento da história da arte. Arte é o tipo de coisa que depende,
para sua existência, de teorias; sem teorias, uma tinta preta é apenas uma tinta
preta e nada mais341.

Fora da forma de vida da artística, a sentença ‗uma tinta preta é apenas tinta preta e nada
mais‘ pode ser interpretada literalmente em um aspecto de materialidade totalmente distinto
do materialismo pressuposto pela narrativa modernista a que a análise danteana desta
afirmação costuma relacionar. A análise danteana é contextualizada, remete sempre à
questão da identidade da pintura na maneira como a compreendeu o modernismo.

Segundo Leonidas Hegenberg342, definir é introduzir uma notação nova para que sirva de
abreviação para uma nota anterior. E a legitimidade desta introdução é medida através da
possibilidade de poder expandir a nova notação de volta à nota anterior de modo unívoco.
Uma definição é bem sucedida quando consegue traduzir o termo em questão sem deixar
restos. Assim, uma definição se assemelha ora a uma tradução ora a uma inserção
terminológica, e, numa linguagem bem formada, deve contribuir para a formação de um
sistema. Esta é uma noção bastante ortodoxa do que seja uma definição e é mais largamente
usada em sistemas formais bem comportados. Uma definição da arte não contará apenas
com termos lógicos. Ora, os termos não-lógicos do vocabulário comum podem ser teóricos
(isto é, não observacionais) ou descritivos (isto é, referenciais). Como os primeiros são não-
empíricos e indispensáveis às generalizações, leis e teorias all inclusive, eles afastam a
observação direta do Homem comum, embora devam se ligar às observações corriqueiras
de alguma maneira. Os últimos são observáveis, designam o mobiliário do mundo, mas
envolvem sempre nomes para descrições – estas sim, seriam mais básicas. Neste sentido,
uma sentença observacional é uma ―sentença cujos termos descritivos são todos termos
observacionais‖343, isto é, envolvem descrições de coisas observáveis através de inspeção
direta. Em qualquer notação, uma descrição linguística perfeita seria aquela em que um
item pudesse ser caracterizado por um grupo de propriedades necessárias tais que a
344
conjunção destas, e somente destas propriedades, fossem também suficientes .
Obviamente, o escopo e a ambição de cada projeto definicional impactam no nível de
341
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 202.
342
HEGENBERG, Leonidas. Definições: termos teóricos e significado. São Paulo: Cultrix, Ed. USP, 1974,
capítulo 1- Preliminares.
343
HEGENBERG, L. Definições, p. 18.
344
HEGENBERG, L. Definições, p. 44.

134
minúcia descritiva almejada e sua interpretação sobre o papel necessário e/ou suficiente
desempenhado pela conjunção (ou não) das propriedades elencadas.

Voltando à questão em torno do termo ‗arte‘, na medida em que é inviável uma definição
deste termo através de propriedades descritivas intrínsecas às obras, uma definição cujos
termos se refiram a propriedades extrínsecas relacionais é um projeto viável. Conforme
Hegenberg salienta, há quatro tipos de relações possíveis para os termos de uma definição:
reflexivas, simétricas, transitivas e de equivalência 345. Ora, uma vez que Wittgenstein –
através da noção de jogo de linguagem e semelhanças de família – fez crer que o termo
‗arte‘ ―contém uma lógica profundamente relacional‖ e, neste sentido, ―se uma coisa
somente pode vir a ser uma obra de arte se satisfizer uma relação qualquer com uma coisa
qualquer, o fato de uma pessoa ser capaz de identificar objetos como obras de arte não
prova que ela domina o conceito de arte‖346, pois sua identificação deve captar propriedades
que constituam a obra, coisa que as definições da arte como ‗imitação‘, ‗forma
significativa‘ ou ‗ser uma expressão‘ não são capazes de fazer, pois são predicados
monádicos 347 . Dominar o termo ‗arte‘ no sentido de saber aplicá-lo em situações
comunicacionais diversas também não parece dar conta do conceito de ‗arte‘. Neste
sentido, argumenta Danto, a aplicação da noção de ‗semelhanças de famìlia‘ toma por
―fenotípico‖ aquilo que é ―genético-institucional‖, apresentando como totalmente
perceptual aquilo que o uso corriqueiramente conhecido do termo estabelece como sendo
fatores sensivelmente indisponíveis e essencialmente ambíguos e que, com efeito, não

345
‗Ser pai de‘ não é uma relação reflexiva, mas ‗é igual a‘ (identidade) é reflexiva, pois todo objeto é igual a
si. Assim, em uma reflexividade: xRx. O termo ‗ama‘ não é simétrico, embora ‗é irmão de‘ o seja, portanto se
xRy então yRx. A expressão ‗é maior que‘ é transitiva, pois se xRy e yRz, então xRz. Com efeito, uma relação
é de equivalência se é simultaneamente reflexiva, simétrica e transitiva, tal como ‗paralelo a‘, ‗é igual a‘.
346
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 112.
347
A imitação é um conceito intensional (sem extensão, pois pode-se imitar algo que a rigor não exista), mas,
por isso, é não-relacional. Diferentemente dos espelhos, imitações não são cópias, pois ―imagens especulares
exigem, lógica e conceitualmente, originais, ao contrário das imitações‖ (A Transfiguração do lugar-comum,
p. 118) e também não demandam necessariamente um exemplar na história. No que tange ao sentido e
referência das imagens imitativas, a representação visual exige semelhança com aquilo o que denota, no caso
de ser verdadeira. A representação por imagem ou a imitação requerem uma relação projetiva entre imagem e
sua denotação. Tem de estar corretamente relacionados. As representações possuem, pois, um conceito
pictural e um conceito designativo. Cf., a propósito dos demais conceitos analisados, a argumentação de
Danto n‘A Transfiguração do lugar-comum, p. 110-121.

135
conseguem expressar de maneira adequada os vínculos relacionais de transitoriedade entre
as obras348.

A exortação ―Olhe e veja‖ não dá conta do problema da definição e, mesmo do ponto de


vista wittgensteiniano de uma pulverização do projeto definicional, não se afasta a questão
do reconhecimento, pois a questão da característica subjacente às obras vai além das
habilidades recognitivas. Além disso, como poderiam funcionar – sem petição de princípio
– as habilidades recognitivas quando a questão é saber o que é arte e não se isso é arte?

Como diria Wittgenstein, é uma tendência de um velho modo de pensar tentar


definir a arte a partir das propriedades das obras, sendo a artisticidade algo que
estaria apenas nos objetos, como de fato estão as propriedades estéticas. No
entanto, Duchamp mostrou que a arte não está só nas obras, mas que ela é um
sistema de produção e circulação de objetos, no qual interagem também o artista
e o público. Mostrou também que, no Ocidente, essa relação é também mediada
pela teoria349.

A dissociação entre artístico e estético nos mostra o aspecto institucional-cultural da arte.


Termos relacionais seriam os únicos capazes de apontar quais dentre os ―objetos
indiscerníveis teriam a chance de ser obras de arte levando em conta os vários tipos de
relações entre eles e seus criadores‖ 350. Assim, uma definição adequada não deve se firmar
sobre nada que implique uma relação que se deva verificar através de ―intuição ou de uma
simples inspeção direta‖ 351 . Além disso, a análise de Danto ao menos tem o mérito de
afastar a reação como critério definidor único. Segundo Danto, sua definição não deve
envolver necessariamente um predicado relacional em seu definiens, mas antes apenas
aquele tipo de relação que ―é peculiar à classe de coisas a qual pertencem as obras de arte e
sobre à qual é possìvel desenvolver teorias filosóficas‖352.

Assim, ‗arte‘ é um termo não ordinário, dotado de lógica relacional assimétrica e


claramente não-observacional (leia-se não-perceptivo). Com Hegenberg, poderíamos dizer

348
Noéli Ramme confirma que a interpretação que Danto faz do conceito wittgensteiniano de semelhanças de
famìlia tem ecos da crìtica de Maurice Mandelbaum e se funda em um mal entendido. Segundo ela, ―A tese
essencialista de Danto tem algo em comum com uma crítica feita por Mandelbaum a Weitz e a Wittgenstein.
A crítica de Mandelbaum consiste em dizer que eles se concentraram apenas em qualidades aparentes dos
jogos ou das obras e não levaram em conta os seus aspectos relacionais‖. Entretanto, o aspecto
comportamental público também é perceptível e isto não é o mesmo que ver. Cf. RAMME, Noéli. É possível
definir ‗arte‘?, p. 208-9. Revista Analytica. Rio de Janeiro, vol. 13, nº 1, 2009, p. 197-212.
349
RAMME, Noéli. É possível definir „arte‟?, p. 209.
350
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 112.
351
Ibdem, p. 113.
352
Ibdem, p. 114.

136
que é um termo técnico especializado. O termo em questão será caracterizado
identificando-se propriedades singulares (não observacionais) a ele e somente a ele,
formando-se gênero e diferença específica (a saber, que a arte é um veículo de significado e
que incorpora tal significado). Sem tais propriedades, não se pode chamar algo de arte; e é
suficiente que ambas estejam presentes para que algo seja caracterizado como tal. Junto de
Wittgenstein – mas diferentemente dele –, a apreciação filosófica da arte deve se basear em
adjetivos artísticos.

Neste sentido, poderíamos dizer que há um paralelo entre a distinção adjetivos estéticos e
adjetivos artísticos em Wittgenstein, e a distinção entre estética e filosofia da arte, em
Danto. Já Noéli Ramme havia notado a possibilidade de relacionar Wittgenstein e Danto
através da noção de ver-como, que em Wittgenstein corresponde ao critério visual de
apresentação (Darstellung) de algo que não é meramente visto, mas interpretado enquanto
tal. Segundo Ramme, ―a noção de ver-como de Wittgenstein poderia ser usada para essa
estética revisionista que Danto diz ser necessária para entender a arte contemporânea‖353.
Esta relação seria útil na medida em que a interpretação é o princípio ontológico de
instauração de obras de arte e ―O ver-como entendido como ver com significado daria conta
da noção de interpretação de Danto, que é a de ver a partir de uma teoria‖ 354 . Como
também nota Ramme, ―quando ouvimos uma música alguém pode dizer: ―ouça isto assim!‖
e então finalmente ouvimos algo que não tìnhamos escutado antes‖ 355, exatamente como
Wittgenstein determina o uso dos adjetivos artísticos. Assim, não só esta relação conceitual
existe e é útil, como revela a afinidade entre os pensadores em considerar decisivo que em
arte nossa prática discursiva consiste muito em ver com aspectos – aspectos estes que são
compartilhados no discurso e sobre os quais fazemos um convite a que o interlocutor se
posicione a partir de um ponto de vista não disponível ordinariamente.

Entretanto, contra Morris Weitz, tratar do valor estético não é o melhor papel que resta à
filosofia e nem de longe é o único – seria, talvez, o último356. Contra o papel descritivo da
estética em Wittgenstein e, principalmente em Weitz, a maioria das obras desde a década de

353
RAMME, Noéli.Op. Cit., p. 94. (Exploramos no capítulo cinco o que seria esta estética revisada).
354
Loc. Cit.
355
Loc. Cit.
356
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 151.

137
sessenta do século passado não tem nada de especialmente estético para ser apreciado.
Aquelas que têm, necessitam de uma revisão na noção de ‗ver arte‘. Neste sentido, Danto
dá seguimento à intuição wittgensteiniana da distinção entre fato e valor, dizer e mostrar e,
por extensão, entre predicados estéticos e artísticos. Mas como o que confere à arte sua
identidade e essência não é o princípio externo e heterônomo do valor estético, a análise
filosófica do quociente artístico não precisa ser nem descritiva nem normativa. ―Arte ruim
ainda é arte‖. Nem mesmo a crìtica de arte precisa desmerecer uma obra por faltar-lhe
qualidade estética ou por ser artisticamente ruim357.

Segundo Danto, abordar a arte através das semelhanças de família não apenas constitui uma
falsa evasão ao projeto essencialista, mas incorre também no problema de não ser capaz de
fornecer explicações conclusivas a qualquer intervenção minimamente cética, tanto interna
quanto externa ao conjunto de obras de arte identificadas como tal, pois ―Se o que
transforma A Fonte numa obra de arte fossem somente qualidades que ela tem em comum
com os urinóis, a pergunta pertinente seria o que faz dela, e não os demais urinóis, uma
obra de arte‖358. Segundo Noël Carroll, a noção de semelhança de família aplicada à arte
soa a Danto como imprecisa e demasiado ampla. Nem mesmo de um ponto de vista
funcional ela desempenharia o papel de um critério e, portanto, ela é incapaz de
―estabelecer quais tipos de semelhança são significantes e quais outras não são‖ 359 .
Segundo Carroll, a crítica de Danto à viabilidade da aplicação da noção de semelhanças de
família como estratégia não essencialista consiste, por um lado, em negar que tal aplicação
constitua uma alternativa real ao essencialismo pautada não em propriedades intrínsecas,
mas em características relevantes e, por outro, em alegar que tal aplicação parece pecar por
petição de princípio.

Posta nestes termos, a indiscernibilidade como questão da arte pretende assumir a


anterioridade necessária à crítica do impedimento anti-essencialista de Wittgenstein. Não
estando Wittgenstein e Weitz imunes aos indiscerníveis, é preciso que façam aquilo a que
se negam: dizer o que é arte! Wittgenstein e Weitz não parecem possuir uma resposta à

357
Noéli Ramme chama atenção para estas especificidades entre estes filósofos. Cf. Artefilosofia, Ouro Preto,
n. 5, p. 87-95, jul.2008, p. 90-1.
358
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 150.
359
CARROLL, Noël. Essence, Expression, and History, p. 94.

138
questão dos indiscerníveis e, por absurdo, confundiriam arte e objetos comuns.
Possivelmente eles evadiriam a questão ou proporiam sua dissolução. Com este panorama
de diferenças, o melhor que poderia acontecer para o projeto filosófico de Danto é esta
evasão face aos indiscernìveis, pois seu ―encaixe‖ quase providencial enquanto método de
análise (cujo espírito é análogo ao objeto analisado) e de contra-argumentação se solidifica
em uma filosofia da arte bastante original.

Neste sentido, destaca-se o aspecto relativo à oposição de Danto à confiança excessiva de


Wittgenstein e Weitz nos aspectos empíricos da arte. A questão de fundo é que os
wittgensteinianos estão certos do que a experiência lhes dá, mas – e mesmo por isto –
concluem que a arte não mostra como a estética poderia defini-la oportunamente. Arthur
Danto não discordaria disso. Entretanto, contrariamente a Weitz, Danto parte de um
background que o permite manter-se atento à decisiva sutileza não mimética da arte
contemporânea e, ao mesmo tempo, ir além desta espécie de obrigatoriedade metodológica
que a positividade dos fatos parecia ter para os filósofos analíticos da arte.

Assim, podemos concluir que em Danto a escada pela qual a definição da arte ascende não
precisa ser trilhada de volta, pois ―talvez não faça mesmo parte do domìnio do conceito que
uma pessoa seja capaz de identificar seus exemplos‖ 360 . Diz Danto: ―tampouco uma
definição de jogo pode nos capacitar a reconhecer jogos‖ 361 . O caráter profundamente
abstrato da definição de arte em Danto – e todo o consequente prejuízo para a estética –
deve-se à compreensão do caráter profundamente ontológico desta agenda definicional,
responsável também por atrair inúmeras críticas quanto ao seu caráter distante daquelas
reações que a arte nos causa e que a torna tão humanamente interessante. Este talvez seja o
ônus de se propor oferecer uma filosofia imune ao terreno sensível-perceptivo tido como
problemático. Neste sentido, definir é parte importante e imprescindível de um plano de
filosofia como projeto interpretativo, mas nem por isso a definição se torna a razão e o
destino do filosofar, tal como julgaram os empiristas lógicos em relação ao projeto de
terapia da ciência. Conforme mostramos anteriormente, a investigação filosófica consiste
num trabalho interpretativo e, neste sentido, ‗interessam-nos os conceitos e suas posições
entre uma totalidade de conceitos‘.
360
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 108.
361
Ibdem, p. 108.

139
Concluímos também que definir a arte não se trata de competência linguística, nem de
reconhecimento e nem de gesto ostensivo. Basta saber que obras de arte, além de possuírem
significado, incorporam tal significado e de maneira específica dizem algo a respeito
daquilo que são. Ora, como a estética é na maior parte das vezes compreendida por Danto
como algo fundado sob o signo da percepção, sua extrema dependência das propriedades
intrínsecas das obras a afasta não só do ofício definicional e interpretativo da arte, mas
também a impossibilita dizer sobre os poucos aspectos sensoriais e intrínsecos daquelas
obras que permitiriam uma abordagem estética – mesmo porque, segundo Danto, a arte não
é mais unanimemente regida por regras estéticas. Radicalizando o caráter abstrato da
definição essencialista oferecida, a necessária depuração de critérios epistemológicos das
condições apresentadas pela ontologia da arte é inviável à estética. Esta, se ocorre, é fruto
de uma concessão da filosofia da arte cuja concepção menos radical afirma ―que há uma
estética específica para obras de arte e mesmo uma linguagem especial para apreciá-las‖362.
No quinto capítulo traçaremos alguns apontamentos acerca de uma nova possibilidade para
o estatuto da estética.

Dado o contexto esboçado acima, podemos compreender o esforço interpretativo e


definicional de Danto como (i) um trabalho fortemente pautado por uma compreensão
linguística (uma tradução ou hermenêutica do conceito de arte, nos moldes mais amplos
vistos no Capítulo Um), (ii) que visa (até certo ponto) uma definição tradicional
essencialista (que busca condições conjuntamente necessárias e suficientes; marcadamente
intensional; que pretende delimitar a conotação do conceito de arte) e (iii) teórico-
conceitual (isto é, não perceptual; uma ontologia em sentido estrito, capaz de desviar-se das
objeções céticas acerca da identificação entre o conceito e sua materialidade). Entretanto,
mesmo posicionando a filosofia da arte danteana no contexto do debate filosófico acerca da
possibilidade de definição da arte e salientando o contexto histórico da arte que inspirou sua
filosofia, ―não está garantido que sua teorização incorra na forma essencialista que ele
espera‖363 . Ainda assim, almejar uma filosofia da arte ao mesmo tempo essencialista e
historicista, capaz de responder não só aos desafios da arte pós-impressionista (e neste
sentido ultrapassar os neo-wittgensteinianos e os críticos de arte), mas também de

362
Ibdem, p. 151.
363
CARROLL, Noël. Essence, Expression, and History, p.95.

140
reescrever toda a história da arte364 (e neste sentido figurar no hall dos grandes filósofos e
críticos da arte de todos os tempos), foi decisivo para dar à estética (compreendida segundo
a noção que estipulamos na seção anterior) o destino que teve, principalmente nas obras
compreendidas entre os dois primeiros decênios da carreira de Danto.

O produto de um esforço assim caracterizado é a afirmação de que a arte alcançou o fim de


sua história porque conheceu por si sua própria natureza, e isso é a conquista decisiva que
faltava à filosofia da arte. Esta reflexão filosófica acerca da arte reconhece o aspecto (não)
estético da arte contemporânea e não tenta legislar sobre a sua aparência à maneira
tradicional das filosofias centradas na mimese, da estética do gosto ou de quaisquer
narrativas da era tradicional da arte. Ela reconhece também nesta expressão o fim de uma
história de autoconhecimento e perseguição de sua própria identidade, da qual se pode
concluir que a arte é um significado incorporado – o que gera à filosofia uma ontologia das
obras de arte e uma definição da arte, ao mesmo tempo relacionada aos contextos de cada
expressão em cada tempo histórico e, ainda assim, fortemente marcada por um
essencialismo.

Em que pese as consequências desta empresa investigativa-definicional para o escopo deste


trabalho, tanto o aspecto essencialista da definição quanto o historicista oferecem objeções
fortíssimas a qualquer tipo de discurso estético acerca da arte. A negação da estética se
funda sobre eles. Quer compreendamos a estética enquanto disciplina filosófica por
excelência acerca do tema arte, quer a compreendamos sob o ponto de vista da
sensibilidade pretensamente central à arte, a estética encontra-se descredencializada,
ultrapassada, insensível ao que realmente interessa. Com efeito – e é importante que se diga
–, deve-se tomar como verdadeiro tanto que a metodologia dos indiscerníveis é
consequente, quanto que a arte chegou ao seu fim.

A admissão programática (isto é, verdadeira desde o ponto de vista interno ao pensamento


danteano e para os efeitos esperados por este projeto de pesquisa) das premissas da filosofia
da arte de Danto e seus efeitos sobre o estatuto da estética é duplamente útil para a
economia de nossa investigação. Com o intuito de pensar o estatuto da estética frente à arte

364
Mesmo que ―A história perten[ça] mais à extensão do que à intenção do conceito de arte [...]‖. DANTO, A.
Após o fim da arte, p. 217.

141
contemporânea, tomamos a leitura que Arthur Danto realiza da arte mais recente (sem
dúvida um interlocutor importante acerca deste tema) e, como efeito, assumimos que obras
de arte são significados incorporados e que esta autodescoberta é a condição sine qua non
não apenas para a identidade de obras perceptualmente indiscerníveis de meras coisas reais,
mas principalmente para o fim da história da arte lida progressivamente. Mais
especificamente acerca da dimensão da filosofia da história da arte, para que cumpramos
com o propósito que aqui nos delegamos, deve ficar claro que assumimos como
programaticamente verdadeira que, tendo a arte chegado ao seu fim porque expressou a
posse de seu conceito e identidade, tal fim rompe com a possibilidade de haver uma estética
nos moldes tradicionais. Para que possamos tratar do estatuto da estética após o fim da arte
é preciso comprar a premissa que afirma a descontinuidade histórica da estética.

Tomaremos isto como um dado, mas estamos cientes de que é possível (e talvez necessário)
impetrar críticas ao desincentivo da estética, mesmo do ponto de vista de uma análise
interna ao sistema danteano.

Restringindo-nos ao espaço que aqui nos cabe, nosso propósito é apenas determinar, neste
capítulo, qual impacto teria a teoria da arte sobre a estética, caso fossem verdades suas
proposições mais centrais. Pretendemos demonstrar que a centralidade dos indiscerníveis
para a filosofia da arte conduz à ontologia e definição que sacramenta o desincentivo e
afastamento radical da estética filosófica enquanto teoria da arte.

Além do mais, será esta assunção programática dos pontos centrais da teoria da arte de
Danto que permitirá, como efeito secundário, apontar o que teria mudado para que a
estética pudesse ser readmitida no interior de seu pensamento na última fase de sua carreira.
Ademais, haverá a vantagem adicional de podermos criticar elementos importantes da
filosofia danteana a partir de dentro, nos valendo, para isso, das alegações que o próprio
Danto fornece para justificar a oscilação de uma negação completa da estética a uma
afirmação (ao menos parcial) dela.

142
3.5- Conclusão
Nossas análises mostraram as origens sistêmicas, o contexto, os argumentos e as
conclusões de A Transfiguração do lugar-comum, cujo cerne é o método dos indiscerníveis
e o problema da indiscernibilidade em arte. Este método declara a morte da estética, que
deve ser abandonada em nome de uma filosofia da arte. A estética filosófica deve
abandonar sua pretensão em estabelecer uma essência para a arte. Neste sentido, a distinção
entre estética e filosofia da arte aponta para o abandono da pretensão descredenciadora da
estética enquanto disciplina normativa, cujas narrativas se resumem a tentativas
subsequentes de submeter ou reproduzir uma lógica estrutural segunda a qual a arte e os
artistas são destituídos da capacidade reflexiva necessária ao acontecimento artístico. A
crítica danteana à estética chama atenção para o dinamismo da relação entre Arte e
Filosofia, oferecendo oportunidade para que possamos refletir sobre as práticas e teorias
que circundam a Arte. Acima de tudo, conceber a abordagem ontológica como a mais
adequada pretende ser um modelo mais adequado para a relação entre Arte e Filosofia, pois
compreende que apenas esta abordagem é capaz de abarcar as mudanças ocorridas no
mundo da arte. Segundo Danto, a abordagem estetizante é desviante e descredencializadora.

A beleza, como conceito central que baliza a relação da estética filosófica para com a Arte
cai por terra, uma vez que tal conceito normativo e teleológico não mais se aplica. Não
apenas a Arte após o fim da arte desprezou a qualidade estética. Ao mostrar que este
estatuto independe de qualquer gratificação estética imposta como norma a priori, ela
tornou pueril a recusa da estética clássica em assumir como arte o pop, o minimalismo, o
dadaísmo de Duchamp e outros.

Há indicações fortes de que é na questão da indiscernibilidade em arte e sua ressonância em


filosofia que reside a prova final de que o fator realmente decisivo para a Arte é a
conceptualidade, perceptualmente inacessível. Danto propõe que o desafio da filosofia da
arte é oferecer a compreensão correta do papel instaurador das teorias para a arte. A estética
filosófica, porquanto centrada em uma noção perceptual, está sistematicamente
impossibilitada de travar batalha no campo da ontologia. Toda a filosofia da arte de Danto
procurou romper com a estética retiniana e com qualquer orientação olfativa da arte,
inclusive as abordagens epistemológicas da filosofia analítica. Sugerimos que o debate

143
metodológico no qual se insere A Transfiguração do Lugar-comum tem na figura de
Wittgenstein um generative thinker decisivo tanto para o círculo de interlocutores próximos
a Danto quanto para o próprio Arthur Danto. Além de alguns paralelos interessantes quanto
à terminologia e aos compromissos teóricos, observamos que a noção de jogos de
linguagem é uma das maiores contribuições de Wittgenstein. A pretensão de fornecer um
espelhamento perfeito entre linguagem e mundo no Tractatus é também bastante influente,
inclusive para Danto, que a toma como modelo de filosofia e de projeto interpretativo-
filosófico, identificável nas Transfigurações. A intenção genérica de Wittgenstein de
delimitar a fronteira entre a linguagem e o mundo repercute em Danto como o projeto de
estabelecer transcendentalmente o limite entre as teorias ontologicamente decisivas para
arte e a percepção de objetos artísticos365.

Muitos desafios e interdições se impuseram no caminho deste projeto conceitual. Morris


Weitz, legítimo representante da crítica wittgensteiniana ao essencialismo, aplica a noção
de jogos de linguagem exemplarmente, concluindo que nenhuma definição é possível, já
que ao ―olharmos e vermos‖ se a arte (atual e passada) manifesta-se no sentido de
confirmar os traços necessários e suficientes estipulados pela teorização filosófica,
confirmamos apenas a inaptidão preditiva das teorias estéticas. Noutro ângulo, William
Kennick reafirma que a estética filosófica não é capaz de oferecer qualquer teoria capaz de
nos tornar epistemologicamente capacitados a reconhecer obras de arte. Danto ultrapassa
estas objeções, em parte, assumindo que são verdadeiras – embora parciais. O escopo da
filosofia da arte danteana é fornecer uma definição essencialista do conceito de arte
fundada sobre uma ontologia da obra de arte. Neste sentido, admitir que a estética é inapta
para definir a arte é apenas uma face do problema e não oferece a Danto qualquer ônus.
Conforme foi mostrado, a discussão não passa pelo terreno da epistemologia. Qualquer
definição da arte deveria abdicar do verificacionismo, fugindo da tentação de tomar a
identificação sensível de obras atuais como o tribunal empírico da teoria. Assim como não
é possìvel definir por observação o que é ‗jogo‘, a ontologia e a definição de obras de arte
devem perseguir as regras travadas, estabelecidas e praticadas no interior deste mundo. Aí a
importância também da análise danteana da relação entre Arte e vida. A investigação

365
Apoiamos nossa análise no artigo de Nöel Carroll: Essence and Expression: Danto‟s Philosophy of Art.
In: ROLLINS, Mark. Danto and His Critics, First Edition, Willey-Blackwell, 1993, p. 79-106.

144
danteana dá seguimento, nos termos da tradição wittgensteiniana, à análise a posteriori dos
limites a priori da nossa compreensão do conceito de arte.

Resta agora desenvolver a hipótese segundo a qual reside nos indiscerníveis a razão última
para a inacessibilidade perceptual da arte.

145
CAPÍTULO 4

INDISCERNÍVEIS COMO DISPOSITIVO ANTI-ESTÉTICO

―Não existem fatos, apenas interpretações‖

(Nietzsche)

―O que tento lhe traduzir é mais misterioso,


se enreda nas raízes mesmas do ser,
na fonte implacável das sensações‖
(J. Gasquet sobre Cézane)

―A arte é a ideia da obra, a ideia que existe sem matéria‖

(Aristóteles)

146
4.1- Teoria Transfigurativa da arte
Os indiscerníveis e a pós-história da arte são duas das mais influentes contribuições de
Arthur Danto à filosofia da arte, e seus desdobramentos conceituais podem ser subsumidos
na noção de transfiguração, teoria danteana da arte que exerce enorme impacto sobre o
estatuto da estética. Podemos dizer que a filosofia da arte de Danto, em seu esforço para ser
uma justificação teórica da habilitação da arte a partir de si, nos fornece uma sequência
progressiva de imagens da arte em que as expressões artísticas estão às voltas com a
questão de sua identidade e, a cada época, a arte catalisa as energias de autoconhecimento
na sua própria história, oscilando nas doses de heteronomia, exterioridade e alheamento,
mas que finalmente se autocredencia e se liberta, pois elevou ao nível derradeiro e
inultrapassável da abstração a sua identidade filosófica. A capacidade de a arte ter
finalmente alcançado a tão perseguida autoconsciência através da formulação autônoma de
sua identidade na forma do problema filosófico mais radical pôs fim à procura histórica
pela identidade da Arte e requisitou um método capaz de revelar a sua especificidade.
Segundo Michael Gerald Lafferty:

É a tentativa de Danto de responder a essa pergunta filosófica [dos indiscerníveis


em arte] que o leva à técnica que ele usa ao longo de A Transfiguração do Lugar
Comum: "foi essa percepção que me equipou com o método que uso em meu livro".
O método referido é a comparação de conjuntos de homólogos indiscerníveis 366.

Posta em perspectiva, a filosofia da arte danteana soa como uma epopeia essencialista, um
Bildungsroman do espírito da arte. A autosuperação da arte é a ultrapassagem da
corporeidade pela identidade subjacente, da matéria pelo espírito, da observação pela teoria,
enfim, da percepção pela interpretação. Danto defende a ideia segundo a qual todas as
teorias filosóficas e narrativas históricas que operam o descredenciamento
(disenfranchisement) da arte devem ser causticamente criticadas, desincentivadas e
abandonadas367.

366
LAFFERTY, M. Danto‟s Theory of Art, p. 71; DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 26.
367
Apontamos para o paralelo entre esta postura crítica de Danto com relação à estética e a tarefa terapêutica
da filosofia, conforme fora proposto por Wittgenstein. Interessante notar também que, tendo a arte alcançado
seu fim, as narrativas de Greenberg e Vasari são imediatamente postas em perspectivas pela não narrativa
danteana, que vê nestas narrativas pretéritas elementos importantes para a hermenêutica mais completa da arte
antes da era do fim da arte. O mesmo não ocorre com a estética, que não gozou desta imediata
―instrumentalização‖, mesmo depois de constatadas sua relativa utilidade e a contingente presença em obras

147
A Transfiguração do lugar-comum não possui a elaboração mais pungente do aspecto
histórico da definição da arte, mas a ontologia e definição que oferece já apresentam uma
clara tendência neste sentido. Segundo Noël Carroll, uma filosofia da história da arte
antecede à teoria filosófica da arte propriamente dita, pois ―a filosofia da história da arte de
Danto nos forneceria motivos independentes para acreditar que uma teoria, tal como a
proposta n‘A Transfiguração, é imune a reviravoltas históricas‖368. Neste sentido, o poder
preditivo da teoria da arte de Danto seria garantido (ou pelo menos estaria amparado) por
uma filosofia da história da arte pressuposta. Noéli Ramme constata que o ―conceito
filosófico da arte aparece como uma consequência da sua visão sobre o desenvolvimento da
história da arte‖, e, por isso, para que a tese não seja inconsistente, ―é fundamental para a
tese [do fim da arte] de Danto que as duas caixas [Brillo e Brillo Box] sejam visualmente
369
idênticas‖ . Contudo, podemos interpretar o movimento contrário se efetivando
também370. De um ponto de vista mais amplo, porém, cremos poder compreender a teoria
da arte de Danto como um amálgama de essencialismo e historicismo – uma teoria
controversa, mas nem por isso menos instigante 371. Aqui deve ficar claro que o aspecto
técnico-teórico dos indiscerníveis e o percurso da história da arte produzirá frutos teóricos
de natureza tal que fará da estética algo desnecessário e caduco. Neste sentido, importa-nos
mais avaliar o significado das teses centrais da filosofia da arte de Danto para o estatuto da
estética do que avaliar se e como se acomodam as teses conflituosas do historicismo e do
essencialismo. Porquanto o significado, a interpretação, a teoria, o contexto cultural e
qualquer outro elemento abstrato não perceptível seja o núcleo duro da arte, a questão da
indiscernibilidade em arte e o método filosófico equivalente é a questão decisiva para nós.

Em ―The Future for Aesthetics‖ encontramos a evidência que corrobora esta afirmação.
Neste artigo Danto avalia que ―Algumas vezes disse que se os objetos indiscerníveis eram

de arte da pós-história. Contudo, não significaria a utilização das narrativas antes do fim da arte uma
afirmação ou admissão indireta da relevância da estética?
368
CARROLL, Noël. Essence, Expression, and Historicity, p. 96.
369
RAMME, Noéli. A estética na filosofia da arte de Arthur Danto, p. 87.
370
―Reconhecidamente, identificar obras de arte a partir do conhecimento de fundo que um artista possui a
respeito da história da arte levanta o problema da circularidade, mas não tenho certeza se esta é uma
dificuldade insuperável‖. CARROLL, N. Essence, Expression, and History, p. 104.
371
O desenvolvimento desta compreensão nos levaria a um aprofundamento da questão desta relação tensa,
que é de fato uma grande questão, mas não nos mantém no caminho de nossa análise.

148
perceptivelmente iguais, eles devem ser esteticamente parecidos também‖ 372 . Como tal,
circunscrita à questão dos indiscerníveis, a solução possível encontra-se em uma dimensão
inacessível à estética.

Assim, iniciaremos apresentando a especificidade dos indiscerníveis enquanto método de


filosofia da arte e a definição que é capaz de gerar. Tanto quanto possível, salientaremos
sua relação com o aspecto histórico da arte. Esperamos com isso estabelecer os elementos
basilares que contaram para o afastamento da estética. O historicismo da teoria
transfigurativa da arte contou com um desenvolvido mais amplo a partir de meados de
1986, com a publicação de The Philosophical Disenfranchisement of Art, mas que obteve a
expressão mais acabada apenas com After the End of Art, publicado em 1997. A
Transfiguração do lugar-comum, entretanto, é a obra que consagrou Danto no cenário da
filosofia da arte, e nela está o problema e o método dos indiscerníveis exemplarmente
desenvolvido.

4.1.1- Indiscernibilidade e Indiscerníveis: características e relações com a


definição de arte
Primeiramente, é preciso esclarecer que ‗indiscernìvel‘ pode ser:

(i) Um problema filosófico. Aliás, o problema filosófico por excelência. Como tal,
figura na filosofia e figurou na arte, que recentemente alcançara sua
autoconsciência. Neste sentido, indiscernibilidade designa melhor a indiscernibilia,
isto é, a característica problemática de indeterminação da identidade de um objeto
devido ao compartilhamento parcial de propriedades relacionais (ou não) deste
objeto com outro;
(ii) Um método filosófico. Dado um caso suficientemente qualificado de
indiscernibilidade, este método consiste basicamente em explorar as possibilidades
ontológicas e/ou semânticas operando comparações entre pares de objetos
indiscerníveis (no sentido i) e perseguindo estruturalmente aquela propriedade
diferenciadora. Os experimentos mentais – a criação de pares de objetos

372
DANTO, A. The Future of Aesthetics, p. 110.

149
indiscerníveis – são um aspecto técnico essencial deste método. Neste sentido, o
método dos indiscerníveis possui um paralelo com o método de definição por
divisão, ou da divisão dicotômica373.

Assim, acerca da indiscernibilidade (isto é, dos indiscerníveis enquanto problema


filosófico), Michael G. Lafferty nos informa que subjaz a ideia segundo a qual ―qualquer
objeto material pode ter uma contraparte indiscernìvel‖. Os vários pares de indiscernìveis
analisados provariam ―que é possìvel generalizar isso em um princìpio que abrange todos
os aspectos físicos dos objetos‖, ainda que isto seja improvável ou quase contra intuitivo.
Ainda segundo Lafferty, do ponto de vista do método, a pretensão de universalidade desta
tese se deixa perceber na medida em que ela subjaz a todos os experimentos mentais e se
aplica também a sons, ações e textos374.

Acerca do método, Lafferty afirma que é necessário esclarecer uma ambiguidade.


Primeiramente, ele nos instrui que, ―embora o termo ‗indiscernibilidade‘ remonte a Leibniz,
Danto utiliza este termo em um sentido comum enquanto Leibniz está concernido com a
constituição ontológica de objetos‖ 375. Apesar disso, o uso danteano não é inconsistente
com a lei leibniziana da identidade dos indiscerníveis 376 . Quanto às propriedades
manifestas, dois objetos podem ser indiscerníveis, mas completamente distintos enquanto
contrapartes. Segundo Lafferty, manter que dois objetos são indiscerníveis não nega (1) que
são objetos distintos ontologicamente e (2) que bem pode haver um meio filatélico ou
científico de distingui-los377. John A. Fisher, outro importante comentador do método dos

373
Iniciado por Platão e Aristóteles (no Sofista e nas Categorias, respectivamente), este método tem na árvore
de Porfírio um exemplo bastante conhecido de aplicação. O método da divisão foi posteriormente
desenvolvido pelos primeiros estoicos e pelos medievais. Inspirou várias taxionomias, como a do britânico
Carl Von Linné e da do naturalista John Ray. Era muito usual nos séculos XVI e XVII e foi muito utilizado
por Leibniz (que de fato foi o primeiro filósofo a desenvolvê-lo exaustivamente), Christian Wolff e até por
Gotlob Frege.
374
LAFFERTY, Michael Gerald. Danto‟s Theory of Art, p. 77.
375
Ibdem, p. 76. Discordamos, entretanto, que a agenda de Danto não seja ontológica, pois ele mesmo declara
que procura esclarecer quando há arte e então fixar condições necessárias e suficientes para obras de arte.
376
Cf. DANTO, A. A Transfiguração do Lugar-comum, p. 75-7.
377
Em Indiscernibility and Perception, Danto afirma explicitamente que ―não há nenhuma conexão entre o
que as técnicas da ressonância molecular podem mostrar e o significado das pinturas‖, ―E a quìmica não vai
muito longe em diferenciar entre os quadrados vermelhos indiscerníveis com os quais comecei A
Transfiguração do lugar-comum‖. Assim, ―Nada neste sentido pode ocorrer entre quadros vermelhos
indiscernìveis, e em razão disso era/é filosoficamente tão excitante trabalhar com pinturas monocromáticas‖.
Cf. DANTO, A. Indiscernibility and Perception. British Journal of Aesthetics, Vol. 39, No. 4, October
1999, p. 322-3. Lafferty parece, então, se equivocar quanto às possibilidades ontológico-distintivas possíveis

150
indiscernìveis, confirma que ―não é necessário que haja uma indiscernibilidade
absoluta‖378, no sentido de não ser possível separar dois objetos em qualquer propriedade
ou qualidade, em qualquer sentido – e esta é uma consequência importante para a saúde do
método e da definição que ele fornece.

Em segundo lugar, acerca do aspecto técnico do método, devemos notar que uma
característica dos objetos que povoam os experimentos mentais dos indiscerníveis é que
eles são, em sua maioria, retirados de nossa vida cotidiana. Estas ‗coisas meramente reais‘
(descrição tão criticada – e merecidamente criticada – por Joseph Margolis379, Lafferty380,
Serge Grigoriev381, dentre outros), entretanto, também possuem uma história, uma razão
qualquer; possuem significados ligados ao mundo da vida e interpretações contingentes a
este mundo. Isto é o que também afirma Lafferty: ―Uma interpretação é também necessária
para distinguir a obra de arte do indiscernível produzido acidentalmente: como no caso de
O Cavaleiro Polonês de Rembrandt e o splat de pintura indiscernìvel‖382. Danto passou a se
dedicar de fato às questões concernentes às questões levantadas por estas observações a
partir do inìcio da década de noventa, o que fez com que a expressão ‗mera coisa real‘ fosse
substituìda por ‗objeto do Lebenswelt‘, ou por ‗arte comercial‘, por exemplo, passando a
levar em consideração o ‗espìrito objetivo‘, não apenas o absoluto383.

às ciências. Que uma obra seja etiquetada (labeled) para que seja tornada discernível, antes é necessário que
identifiquemos tal objeto como uma obra de arte.
378
FISHER, John Andrew. Is There a Problem of Indiscernible Counterparts?, p.468. In: The Journal of
Philosophy, Vol. 92, No. 9 (Sep., 1995), p. 467-484.
379
Cf. MARGOLIS, J. Farewell to Danto and Goodman. British Journal of Aesthetics, Vol. 38, No. 4,
October 1998; e A closer look at Danto‘s account of art and perception. British Journal of Aesthetics, vol. 40,
n. 3, July, 2000.
380
Loc. Cit.
381
GRIGORIEV, Serge. Living Art, Defining Value: Artworks and Mere Real Things.
ContemporaryAesthetics.http://www.contempaesthetics.org/newvolume/pages/article.php?articleID=303&sea
rchstr=Grigoriev
382
LAFFERTY, M. Danto‟s Theory of Art, p. 77.
383
Quatro escritos de Danto se destacam a este respeito: A Future for Aesthetics, publicado no The Journal
of Aesthetics and Art Criticism, Vol. 51, No. 2, Spring, 1993, p. 271-277; Embodied Meanings, Isotypes,
and Aesthetical Ideas. Global Theoryes of the Arts and Aesthetics. Journal of Aesthetics and Art Criticism,
Vol. 65, No. 1, 2007, p. 121-129; Andy Warhol: Arthur Danto, publicado em 2009 pela Yale University
Press; e, finalmente, em sua última obra, What Art Is, publicada pela Yale University Press em 2010. Esta
transformação terminológica é, na verdade, expressão de uma transformação maior ocorrida na filosofia da
arte de Danto, da qual trataremos oportunamente na próxima seção.

151
Conforme Virgìnia Aita afirma, ―O que torna a teoria da arte o corolário da sua filosofia é a
384
homogeneidade do método, qual seja, o ‗método dos indiscernìveis‘‖ , cujas
características são todas incompatíveis com a estética. Acerca da indiscernibilidade, cremos
já ter sido suficientemente explorado no primeiro capítulo, que analisou a gênese,
características e relações do problema dos indiscerníveis para com a arte. Aqui
exploraremos alguns aspectos técnicos e teóricos do método dos indiscerníveis, o modo
como suas conclusões se relacionam com a teoria da arte decorrente e os impactos
negativos desta teoria no estatuto da estética.

Destacaremos quatro aspectos técnicos e três aspectos teóricos relativos ao método dos
indiscerníveis. Tecnicamente, este método opera criando e analisando experimentos
mentais (thought-experiments ou Gedankenexperimente); procede à maneira de argumentos
transcendentais; sua estratégia repercute o subtracionismo wittgensteiniano e, neste sentido,
inclui cláusulas ceteris paribus. Teoricamente, o método dos indiscerníveis apela ou
pressupõe teses como a da distinção entre arte e realidade, obra de arte e suporte e, por isso,
a teoria da arte dele decorrente possuirá uma natureza marcadamente abstrata ou ―formal‖.

4.2- Aspectos técnicos do método dos indiscerníveis


Iniciemos tratando do primeiro aspecto técnico: a comparação de pares de indiscerníveis. A
Transfiguração do Lugar-comum significou uma ampliação exponencial da técnica de
comparação de conjuntos de contrapartes indiscerníveis em arte iniciada no artigo O
Mundo da Arte, no qual constam apenas dois pares destes. Consta naquela obra pouco
385
mais de vinte e três exemplos de contrapartes indiscerníveis e algumas outras
comparações e analogias. Segundo Lafferty, a finalidade desta numerosa lista de Danto é
―explicar aspectos de sua filosofia da arte tal como ela é incorporada no conceito de mundo

384
Loc. Cit.
385
Ver listagem em LAFFERTY, M. p. 71-2. O número total de pares de indiscerníveis pode variar. Para
Richard Wollheim, por exemplo, o conjunto formado pelos estranhos exemplos envolvendo Menard e
Cervantes, Erle Loran e Lichtenstein, as ilustrações de J e K e, finalmente, a novela não ficcional de Truman
Capote, um relatório preparado em um distrito e uma peça de jornalismo investigativo ―diferem de maneira
crucial, talvez de diversas maneiras, daqueles outros casos selecionados para ser material para os
experimentos mentais propriamente ditos". WOLLHEIM, Richard. Danto‟s Gallery of Indiscernibles
Counterparts?, p. 30. In: ROLLINS, Mark. Danto and His Critics. Blackwell Publishers. Cambridge, 1993,
p. 28-38.

152
da arte‖386. Richard Wollheim é enfático ao afirmar que "O propósito maior da filosofia de
Danto [...] é ser apoiado pelos vários experimentos mentais‖387.

4.2.1- Experimentos mentais


Experimentos mentais (thought-experiments) ―são dispositivos da imaginação usados para
investigar a natureza das coisas‖ e seu ―desafio filosófico primário [...] é simples: como
podemos aprender sobre Realidade apenas através do pensamento?‖ 388 . Ora, reside na
filosofia danteana uma forte negação da percepção, e o amplo desenvolvimento de pares de
indiscerníveis parece ter por objetivo responder àquela que é, segundo Danto, a questão
mais básica de sua filosofia da arte, qual seja, a questão ontológica ―quando há arte?‖. Os
experimentos mentais em Danto são bastante diversos e, neste sentido, não se encaixam em
uma única taxonomia. Há comparação de pares de indiscerníveis com finalidade
construtiva, ―servindo como uma espécie de ajuda heurìstica‖, e há outras que visam
destruir proposições que soam equivocadas para Danto389.

Assim, Richard Wollheim revela que subjaz ao conjunto argumentativo formado por mais
de vinte comparações de pares de indiscernìveis a pressuposição de que ―se o
experimentador é capaz de imaginar que algo é tal e tal, isto é prova o bastante de que algo
é possìvel‖390. Não por acaso, Danto afirma, acerca da instauração/transfiguração de obras
de arte, que ―os limites da interpretação, assim como os da imaginação, são os limites do
conhecimento‖ 391 . Os limites da ontologia e definição que tais experimentos pretendem
definir devem ir tão longe quanto forem os limites da imaginação – que, de alguma maneira
são os limites da criatividade artística.

Assim, a respeito deste pressuposto, Wollheim avança uma forte crítica segundo a qual os
indiscerníveis, enquanto operados através de experimentos mentais, incorrem em uma falha
dialética gravíssima: não apresentar os objetivos da experiência de pensamento, não

386
Loc. Cit.
387
Ibdem, p. 28.
388
Cf. o verbete ‗Thought Experiments‘ na Stanford Encyclopedia of Philosophy.
https://plato.stanford.edu/entries/thought-experiment/#TypThoExpTax First published Sat Dec 28, 1996;
substantive revision Tue Aug 12, 2014. Último acesso em 06/12/2016.
389
Loc. Cit.
390
Ibdem, p. 31.
391
DANTO, A. A Transfiguração do Lugar-comum, p. 193.

153
explicitar as premissas implícitas e, como tal, violar intuições e suposições básicas acerca
da natureza da arte e do mundo capaz de comportar sua existência. Além disso, Wollheim
critica a negligência de Danto quanto à capacidade imaginativa e as diversas crenças de seu
interlocutor, que são minimizados, e o consequente papel meramente coadjuvante que será
conferido ao expectador de arte.

O principal desafio dos experimentos mentais é determinar se eles nos ―permitem adquirir
novos conhecimentos sobre o domìnio pretendido sem novos dados empìricos‖. ―Em caso
afirmativo, qual a proveniência das novas informações, se não do contato com o domínio de
investigação em causa?‖392. Eduardo Coutinho Lourenço de Lima afirma que a percepção,
não sendo essencial, desempenha um papel fundamental, no sentido de que deve ―realçar
por contraste o que é essencial para uma teoria da arte‖393. As críticas de Richard Wollheim
apontam exatamente no sentido da displicência com que são apresentados os experimentos
mentais. Na medida em que a empiria é o conteúdo da imaginação, a narração em que são
apresentados os experimentos mentais predispõe o interlocutor num sentido específico, mas
não completamente avaliado por ele em vista do objetivo mais amplo da ficção que lhe é
oferecida, que pretende desviá-lo de um tipo específico de respostas. Entretanto, os
experimentos mentais, segundo Wollheim, ―em virtude de seu caráter obstinadamente
perceptivo, [...] não têm poder para nos mostrar o outro lado da questão‖394.

Neste sentido, Wollheim afirma que na medida em que ―nem ‗arte‘ nem ‗obra de arte‘ são
conceitos perceptivos‖, estes conceitos – ao contrário do que pensa Danto – ―não possuem
um conteúdo intelectual claro‖ e também não contam com ―condições determinadas para
sua aplicação‖395. Compreender como função dos experimentos mentais o esclarecimento
de um conteúdo conceitual cognitivo determinado seria um erro. Os experimentos mentais
que comparam pares de indiscerníveis deveriam buscar estabelecer as suposições de
aplicação deste termo, pois é possível que ele se aplique mesmo quando as condições de

392
‗Thoughts experiments‘: STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY. Idem.
393
LIMA, Eduardo Coutinho Lourenço de. A percepção após a interpretação na filosofia da arte de
Danto, p. 104. In: Artefilosofia, Ouro Preto, n. 5, jul. 2008, p. 96-107.
394
WOLLHEIM, R. Danto‟s Gallery of Indiscernibles Counterparts?, p. 34.
395
Ibdem, p. 33.

154
aplicação falham396. Segundo Wollheim, são suposições gerais de aplicabilidade para o
conceito ‗arte‘ e ‗obra de arte‘ que (i) objetos que sejam feitos com a intenção de serem
obras de arte, por isto mesmo, se distinguirão dos demais que não gozam desta intenção e
(ii) que obras de arte possuam intenções distintas entre si se manterão como
individualmente distintas 397 . Wollheim admite que tais suposições são aproximativas,
gerais e sempre aprimoráveis. Entretanto, elas são basicamente as mesmas suposições de
Danto, que atestam uma intencionalidade na arte. Mas é coisa absolutamente diferente
supor que ―a arte ou obras de arte possam existir em um mundo no qual a mão e a mente
regularmente não deixam qualquer traço distintivo nos objetos que produzem‖ 398. Assim,
Wollheim argumenta que o conceito de intencionalidade deve ser mais consequente e
levado a cabo por experimentos mentais mais gerais e que apresente já de saída o seu
objeto, suas suposições quanto a este objeto de estudo e quanto ao mundo no qual ele
deveria existir. Assim como está, a filosofia da arte de Danto abandona a intencionalidade
em sua característica mais efetiva para a arte.

Neste sentido, Wollheim adverte para o possível engano do projeto filosófico de


interpretação conceitual de Danto, que se quer fundado sobre os experimentos mentais de
pares de indiscerníveis. Tal projeto parece conceber a arte de maneira inaplicável, particular
e irreal399. Segundo ele, obras de arte e objetos comuns podem ser no máximo parcialmente
indiscerníveis. Obviamente, isto constitui um problema para Danto – qual seja, que a arte
não se auto-credencializou, não alçou ao nível do conceito, não chegou ao seu fim, já que
não apresentariam uma indiscernibilidade absoluta.

396
Wollheim esclarece que há dois tipos de conceitos que experimentos mentais testam: de um lado, há
aqueles conceitos cujo conteúdo intelectual é claro e determinado e, portanto, por possuírem condições de
aplicabilidade claras, os experimentos mentais obterão resultados conclusivos. Conceitos perceptivos e
geométricos como ‗azul‘ ou ‗triângulo equilátero‘ seriam deste tipo. De outro lado, conceitos cujo conteúdo
intelectual é difuso ou indeterminado não possuem condições de aplicabilidade de um tipo informativo mas,
isto sim, suposições de aplicabilidade sobre as quais podemos apoiá-lo. Segundo a tradição, o significado de
um conceito pode ser interpretado como sendo sua aplicação. Assim, as suposições de aplicabilidade serão
mais assertivas no primeiro caso.
397
Além destas duas suposições, Wollheim tenta avançar uma terceira: que os objetos artísticos em questão
sejam feitos por pessoas experimentadas em tal atividade e, como tal, que os materiais que os compõem
recaiam dentro de limites assentados. Ibdem, p. 33.
398
Ibdem, p. 34.
399
Ibdem, p. 32.

155
Com efeito, a crítica mais ácida de Wollheim consiste em afirmar que a compreensão dos
indiscerníveis como indistinção perceptualmente absoluta depõe contra as intuições mais
básicas acerca da arte – intuições que o próprio Danto toma como pressuposto. A insistente
discrepância com que Danto insistia em caracterizar a relação entre percepção e teoria
incomoda frequentemente seus interlocutores. O comentário de Garry Hagberg acerca do
debate em torno da relação entre percepção e descrição na esteira do repúdio do último
Wittgenstein ao atomismo linguístico e a qualquer teoria fundada sobre dados dos sentidos
é endereçada também a Danto. Segundo Hagberg, ―Dizer da imagem do pato-coelho que
primeiro vemos algo basicamente não analisado e que só então lhe conferimos uma ou
outra [qualidade] é insistir na distinção – lógica e psicológica – entre percepção e
descrição‖400. Segundo Hagberg, a coisa mais correta a ser feita no contexto mais atual
deste debate seria negar a viabilidade de tal distinção. Neste sentido, a distinção entre obra
de arte em oposição à mera coisa real, proposta por Danto, incorre no mesmo deslize de
―fingir que ‗movimento corporal‘ não é, em si, uma descrição que tem seu uso dentro de
contextos específicos de geração de significado‖. Assim, tal distinção, como aquela entre
obra e mera coisa, pretende ―que a percepção bruta do movimento ocorra primeiro e que
sua interpretação descritiva se siga daí‖.

No caso estético paralelo somos apresentados a um modelo conceitual


engenhosamente desenvolvido de contrapartes indiscerníveis [no qual] devemos
presumir que primeiro vemos a mera coisa e depois sua interpretação descritiva
se segue. Mas "mera coisa" não é uma expressão mais descritivamente inerte do
que "movimento corporal"; e acreditar que se trata de uma expressão
interpretativamente vazia é esconder nos indiscerníveis precisamente as
categorias epistemológicas conservadoras contra as quais a luta foi realizada 401.

Ao solicitar que imaginemos dois objetos indiscerníveis, Danto pode ter em mente: (a)
objetos são indiscerníveis por inspeção superficial – neste sentido, são inicialmente
indiscerníveis; (b) objetos são absolutamente indiscerníveis, não importando o quanto
possamos aprender ou olhar para eles. Além disso, não fica claro se a indiscernibilidade
deve se manter mesmo após determinadas as identidades dos objetos. Por isto é que

400
HAGBERG, Garry. Art as Language: Wittgenstein, Meaning and Aesthetic Theory. Ithaca: Cornell
University Press, 1995, p. 148.
401
Ibdem, p. 149.

156
Wollheim questiona a suficiência do curso histórico e das intenções como traços distintivos
seguros para uma filosofia da arte como a de Danto. Assim, esta ambiguidade quanto ao
significado de ‗indiscernìveis‘ seria a razão da relutância em Danto em abandonar a posição
externalista402 quanto à relação entre percepção e conceito (isto é, quanto ao conteúdo não
conceitual da percepção, como preferem os filósofos contemporâneos da percepção).
Generalizar o externalismo subjacente aos indiscerníveis, além de forçoso, seria fechar
todas as demais possibilidades em um só caminho imaginativo – e isto é uma transgressão
tanto da intencionalidade quanto da sua instanciação no suporte da obra. Wollheim
argumenta que seria preciso refazer os experimentos mentais levando em consideração as
informações e crenças possíveis que o interlocutor possua a respeito da arte e – no caso de
ela parecer muito próxima de outras coisas – do que faz com que algo seja uma obra de
arte. Como Danto é ―geralmente indiferente àquilo que se dá na mente do experimentador‖,
o desprezo por tudo o que é taxado como ―retiniano‖, e a obrigatoriedade de sua suspensão
para os efeitos conclusivos esperados nos experimentos mentais dos indiscerníveis,
impossibilitam que o interlocutor (o imaginador, expectador de arte) possa se valer de ―uma
diferença entre dois objetos que, de inìcio, ele não poderia ter se dado conta‖ 403. Ora, como
a objeção danteana a tudo o que é retiniano é radical, a solução apontada por Wollheim se
daria no sentido de compreender os indiscerníveis como sendo apenas parcialmente
indiscerníveis – não são universalmente possíveis, não são instâncias atualmente existentes,
são suscetíveis a inspeção perceptiva e podem ser marcados (labeled) de forma tal a
estabelecer epistemológica e ontologicamente a distinção.

Com efeito, Danto seria obrigado a concordar com cláusulas internalistas. Neste sentido,
ele deve aceitar que, em alguma medida, há infiltração teórica na percepção para que a
indiscernibilidade não colapse na negação da existência da classe de obras de arte ou na

402
Compreendendo por ‗teoria‘ coisas como ‗crença‘ (belief) ou ‗informação‘, questiona-se se a teoria por
infiltrar a percepção. A posição segundo a qual percepções são permeadas por crenças ou informações chama-
se internalismo. A posição que responde negativamente chama-se externalismo. Embora não seja uma postura
externalista hard, parece correto que Wollheim classifique a posição de Danto como externalista, por três
razões: Danto estaria seguro da evidência que as experiências de pensamento oferecem no sentido de garantir
que não há diferenças sutis ocultas que se abririam apenas ao escrutínio cuidadoso. Em segundo lugar, há o
truísmo acerca da dupla função da interpretação (compreensiva e atributiva) ser disjunta da percepção, pois
―podemos interpretar dois objetos de maneira distinta sem conceder a qualquer diferença visìvel‖. Em
terceiro lugar, a crença na modulação do ver ou da mente (ver-como) permite afirmar que a cognição
encapsula a percepção.
403
Ibdem, p. 35.

157
impossibilidade de sua definição. Ora, o que para Danto significa um problema, para nós é
ocasião de crítica e uma possibilidade de reabilitação da estética.

4.2.2- Cláusulas ceteris paribus


Observamos particularmente que o método dos indiscerníveis – especificamente seus
experimentos mentais – contém cláusulas ceteris paribus404 em pelo menos dois sentidos
desta técnica argumentativa: A Fonte e um mictório indiscernível exemplificam
argumentações recorrentes em Danto, em que pares de indiscerníveis são postos em
paralelo de maneira tal que as propriedades elencáveis de ambos os objetos se equivalem e,
concorrendo ambos em determinar qual deles é um elemento da classe de obras de arte,
uma vez que não são idênticos, a melhor maneira de chegar a uma conclusão seria elencar
todas as ―evidências‖ disponìveis e indagar, ceteris paribus, qual é a mais provável. O
efeito desta cláusula embutida neste tipo de comparação de indiscerníveis conduz o
interlocutor de Danto exatamente para aquilo que ele crê ser o quid artístico. Com isto, fica
claro que o que torna algo arte não é uma propriedade perceptivelmente acessível. Tal
cláusula desempenha um papel fundamental nos indiscerníveis no sentido de dispor o
interlocutor à conclusão desejada.

Por outro lado, buscando responder à objeção que William Kennick faz ao fraco poder de
recognição e identificação epistêmica das definições de arte, Danto chama atenção à
necessidade de ―aprende[r]mos a dominar o princípio que nos capacita a construir pares de
objetos ontologicamente distintos mas perceptualmente indistinguìveis‖ e lança mão de um
contra-argumento indiscernível que vista nos manter concentrados na essência recém
descoberta da arte e conter a evasão motivada por posições contrárias. É o caso do depósito
de mercadorias de William Kennick, onde haveriam obras de arte e objetos relacionados a
arte, versus o ―depósito exatamente igual ao que Kennick descreveu‖, de Danto, onde tudo
o que no depósito de Kennick é arte, neste seria uma mera coisa e vice versa. Danto
constrói este contra-argumento para rebater os wittgensteinianos e ―lançar por terra toda
análise do conceito de arte que pressuponha a relevância absoluta da capacidade de

404
Cf. BAGGINI, Julian; FOSL, Peter S. As ferramentas dos filósofos. São Paulo: Loyola, 2012, p. 101-2.

158
reconhecimento‖ 405 , seja ela representada pela figura da emulação, da imitação, da
satisfação estética ou outra qualquer, pois nenhuma delas seria capaz de responder à
―questão de saber por que ele [o homem enviado ao depósito de Danto] acertou, já que,
ceteris paribus, poderia ter errado‖406 a seleção de obras de arte a partir da aplicação de
qualquer destes conceitos recognitivos como critério distintivo. A cláusula aí inserida nos
incita a conceder que a percepção é ontologicamente irrelevante sem, entretanto, esclarecer
de que maneira ela poderia não ser. Apenas a afasta como um todo.

O método dos indiscerníveis de Danto parece um desdobramento da análise de Wittgenstein


acerca da ação voluntária no debate com empiristas e psicólogos. Danto, entretanto, leva às
últimas consequências o escopo desta análise, que consistiu na comparação entre
movimento corporal e ação voluntária, ao introduzir uma barreira através da qual qualquer
resposta que apelasse ao sensorial estaria já de saída afastada.

Assim como em A Transfiguração do lugar-comum, em Analytical Philosophy of Action a


construção de contrapartes indiscerníveis ocorre como método para determinar quando um
movimento corporal é corretamente descrito como uma ação voluntária e quando não passa
de mero movimento corporal. Este debate remonta a Wittgenstein e é atualizado na filosofia
da arte de Danto de uma maneira eminentemente diferente da postura do vienense.
Analogamente à questão wittgensteiniana, que pergunta ―o que resta se subtraio do fato de
que levanto meu braço o fato de que meu braço se ergue?‖ (IF §621), o caso de
movimentos indiscerníveis do braço erguidos de Cristo na pintura de Gioto na Capela
Arena de Pádua sugere a Danto interpor a questão correspondente:

A diferença entre uma ação básica e um mero movimento corporal é comparável


em muitos aspectos às diferenças entre uma obra de arte e uma simples coisa, e a
pergunta subtracionista poderia ser equiparada com outra, em que a questão é
saber o que resta quando se subtrai o quadrado vermelho de tela da obra intitulada
Quadrado vermelho407.

Em Wittgenstein, a questão se refere a ―revelar o agir real, o agente real‖, sugerindo que
podemos extrair da experiência da ação a vontade (o que estou certo de querer) e seu
conteúdo (o que quero). A noção de vontade como divisa para a ação remonta às

405
DANTO, A. A Transfiguração, p. 109.
406
Loc. Cit.
407
Ibdem, p. 38. (Grifos do autor).

159
influências de Schopenhauer sobre o primeiro Wittgenstein, que foi finalmente revelada
paradoxal e contemplativa uma vez que a distinção entre a vontade fenomênica (o mundo é
inerte à ética e independente de minhas ações) e a vontade transcendental (única
responsável pela conexão entre linguagem e realidade através de uma indicação ostensiva
mental) conduziria a primeira a ser impotente e a última a ser apenas uma conexão não
contingente, mas afastada do mundo da vida, presa a si. O Wittgenstein da maturidade ataca
a noção empirista segundo a qual ―a vontade é uma experiência‖ (neste caso, algo que nos
escapa) e a noção transcendental da vontade como uma ―força mental inefável‖ (e neste
caso é apenas um acompanhamento mental da ação). Segundo Wittgenstein, qualquer
tentativa de identificar o fenômeno especìfico da vontade definindo ―o agir real como algo
na experiência, faz com que ele nos apareça como mero fenômeno, como algo produzido e
não como o motor imóvel da ação‖408. Daí parecer interessante a posição transcendental.
―Mas a ideia de que a imagem empirista torna absurda a noção de agente é o único motivo
por detrás dessa alternativa transcendental, que situa o agente real além da experiência‖ 409.
Uma vez que ―há experiências envolvidas em ações voluntárias‖, isto é, agir envolve uma
experiência, conclui-se que ―Não resta coisa alguma na experiência se subtraìmos da
experiência de levantar o braço a experiência de o braço se erguer‖ 410 . A experiência,
contudo, não é o agir real. A volição não é um evento mental anterior nem um
acompanhamento da ação, ela é a própria ação. Mas como o pensamento, que é linguagem,
é sempre público, a diferença entre um movimento voluntário e outro não voluntário não é
mental, mas contextual. Assim, se a distinção não se resolve por algo adicional, então a
vontade não é a fonte de nossas ações voluntárias. A vontade não é a ―relação executiva
que temos para com nossos atos fìsicos‖ 411. Empirismo e transcendentalismo se apoiam
sobre uma falsa suposição: a vontade não é nem algo que me ocorre mas que não controlo e
nem o ―provocar imediato e não causal‖ (IF §613), ―a vontade não é nem voluntária nem
involuntária‖. Não há querer querer; querer não nomeia o ato da vontade.

Ora, tal como a pergunta ―subtracionista‖ é proposta por Danto, ocorre uma inversão do
termo que figura como minuendo: enquanto em Wittgenstein subtrai-se ‗do fato de que

408
GLOCK, Hans. Dicionário Wittgenstein, p. 381.
409
Loc. Cit.
410
Ibdem, p. 382.
411
Loc. Cit.

160
levanto meu braço‘, em Danto deve-se subtrair ‗o quadrado vermelho de tela da obra
intitulada Quadrado vermelho‘, sugerindo retoricamente que o resto é algo não
perceptualmente disponível. Contudo, assim como em Wittgenstein, qualquer tentativa de
identificar o ―quid real da arte‖ com algo na experiência faz com que ela se equivalha a
mera coisa real, ou a qualquer caracterìstica dada. ‗Arte‘ não pode ser um fenômeno
porque, como ações, não são coisas que simplesmente ocorrem, são algo que fazemos e,
portanto, envolveria intencionalidade. Este conceito foi, aliás, a noção pela qual o
Wittgenstein da maturidade iniciou sua crítica ao empirismo e ao transcendentalismo. Para
fugir dos altos preços do mito do dado e do psicologismo, Wittgenstein apelou para a divisa
contextualista na esperança de que o domínio público da prática linguística fosse
discernível o bastante. Em Danto, a identificação do aspecto distintivo em algo que
transcende à experiência de objetos indiscerníveis imporá ao seu discurso e método esta
característica e o levará a acusar a resposta wittgensteiniana equivalente em filosofia da arte
de não sobreviver a um exemplo de indiscernibilidade como Os hebreus atravessando o
mar vermelho e O estado de espírito de Kierkegaard, ou às conclusões do experimento
mental dos depósitos de mercadorias.

Se Danto está correto em afirmar que ―uma obra de arte é um objeto corpóreo mais y‖, ele
talvez tenha boas razões para rebater a acusação daqueles que compreendem sua teoria da
arte como institucionalista. Entretanto, sua teoria é conduzida a um nível que alijará talvez
permanentemente os aspectos perceptivos e os conceituais, que é aquilo que faz da arte o
que ela humanamente é e que a torna tão arrebatadora e socialmente relevante. Isto nos leva
a tratar rapidamente da estrutura transcendental do método dos indiscerníveis.

4.2.3- Argumentos transcendentais


Ora, Noël Carroll confirma as conclusões que outrora obtivemos: o método dos
indiscernìveis é mais que técnica, ele tem origem ―na convicção metafilosófica de Danto
segundo a qual a filosofia em geral é gerada por problemas de indiscernibilidade
perceptiva‖ e, por isso, ―problemas filosóficos não podem ser tratados por observação

161
empìrica‖412. Daí se extrai a consequência ontológica segundo a qual mesmo depois de
estabelecidos ou resolvidos, eles são imunes à empiria 413 . Em função desta convicção,
perderiam força as alegações do ―ceticismo acerca da definição da arte [,] baseado na
suposição que a arte não pode ser essencialmente caracterizada em virtude de propriedades
manifestas ou perceptìveis‖414. Eis aqui a questão-chave para que possamos compreender o
método dos indiscerníveis em Danto.

Exemplos de indiscernibilidade pululam na filosofia, especialmente na filosofia analítica. O


conhecido experimento mental do cérebro na cuba, proposto por Hilary Putnam 415, coloca
em cheque as nossas possibilidades de justificar que o mundo, tal como o experimentamos,
seja realmente assim, pois, não dispondo de um ponto de vista direto sob o qual julgar se
"somos cérebros em recipientes ou não", então talvez esta seja a nossa situação atual e não
a saibamos. Assim, a questão não é saber a partir de qual ponto de vista julgar nossa
situação atual, mas saber como podemos julgar nossa situação atual. Trata-se de uma
questão de indiscernibilidade. Este experimento retoma o problema clássico da filosofia
envolvendo o mundo externo, e seu teor o coloca ao lado da alegoria da caverna e do gênio
maligno, dentre outros. Assim, enquanto o realismo metafísico afirma o caráter
completamente independente da realidade em face às nossas habilidades cognitivas e o
"realista metafísico esforça-se por se livrar das características experienciáveis dos objetos,
que são dadas à mente, a fim de focalizar sua atenção apenas nas características
independentes da mente"416, já está posto, desde o início, a lacuna entre nossas crenças e o
mundo e a possibilidade de erro sobre a qual viceja toda sorte de ceticismo. Putnam procura
responder assumindo como dado a experiência dos cérebros comuns e dizendo que as
proposições do experimento mental fariam sentido apenas num mundo tal como o que elas
descrevem. O erro de Putnam, como é óbvio, consiste em evadir à indiscernibilidade
recorrendo a um ponto de vista direto não disponível.
412
CARROLL, N. Essence and Expression: Danto‟s Philosophy of Art, p. 80. In: ROLLINS, Mark (ed.).
Danto and His Critics. Cambridge: Blackwell, 1993, p. 79-106.
413
Desenvolvemos as razões metafilosóficas e o escopo filosófico geral destas conclusões nos capítulos um e
dois, mas analisaremos nas seções subsequentes a sua relevância no campo da filosofia da arte e
desenvolveremos suas consequências neste campo.
414
Loc. Cit.
415
Cf. PUTNAM, Hilary. Reason, Truth, and History. Cambridge University Press, 1982, chapter 1, p. 1-21.
416
As análises da relação entre ceticismo, realismo metafísico e argumentos transcendentais foram retiradas
de FRANGIOTTI, Marco Antônio. Argumentos Transcendentais e Ceticismo. In: Luiz Henrique Dutra -
Cesar Mortari. (Org.). Nos Limites da Epistemologia Analítica. Florianópolis: NEL/EDUFSC, 1999.

162
Ora, na medida em que obra e coisa são tomadas como perceptualmente indiscerníveis,
parece razoável dizer (como o fizemos) que Danto – assim como Wittgenstein – toma como
verdadeiro o fato de que temos experiências. O problema é que elas não são conclusivas:
para Wittgenstein, tudo o que as experiências perceptivas de obras de arte nos ―fornecem‖ é
que não estamos aptos a propor teorias informativas sobre a arte; para Danto, nada nas
experiências perceptivas de obras de arte nos permite definir estas últimas. Contudo, resta
ainda defender se ―a passagem da percepção de qualidades sensìveis à identificação de uma
obra de arte é vulnerável a críticas céticas a respeito do estatuto artístico de uma suposta
obra, que tenha uma mera coisa como sua idêntica contraparte‖ 417. Talvez seja precipitado
afirmar que em A Transfiguração do lugar-comum o recurso ao atomismo lógico do
Tractatus ―unicamente como forma de uma teoria filosófica‖ 418 seja, na verdade, uma
estratégia que buscaria garantir ou estruturar – à maneira de Wittgenstein e de Leibniz! – a
correspondência entre as proposições e análises da filosofia da arte e as obras; mas é certo,
entretanto, que nenhuma proposição da estética tradicional é capaz de vencer o desafio
subentendido. A convicção segundo a qual é possível gerar proposições informativas acerca
da arte força a evasão do solo do sensível, um terreno já tido como problemático porque
não conclusivo e instável.

Segundo Marco Antônio Frangiotti, ao menos na epistemologia, ―A resposta ao cético deve


começar lidando com a concepção realista metafìsica‖ 419. Ao seu ver, ―se concebermos que
os argumentos transcendentais operam numa base realista metafísica, o máximo que eles
podem fazer é extrair do cético um compromisso que não abala suas dúvidas" 420 sobre as
crenças empíricas na medida em que o apelo à inescrutabilidade cognitiva do mundo em si
permite que ele assuma que experiências do mundo são indispensáveis e proposições acerca
de crenças devem ser tomadas como verdadeiras sem que isso o force a tomar como
provadas as crenças empíricas sobre a realidade por detrás da aparência.

Com efeito, torna-se evidente o motivo mais profundo da figuração dos indiscerníveis no
debate filosófico da arte:

417
LIMA, Eduardo Coutinho Lourenço. Op. Cit., p. 102.
418
Cf. DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 130 ss.
419
FRANGIOTTI, Marco Antônio. Opus cit., p. 89.
420
Loc. Cit.

163
Além disso, uma vez que tais exercícios filosóficos começam confrontando
fenômenos que, embora sejam categoricamente distintos, não são menos
perceptivelmente indiscerníveis, os referidos exercícios são imunes a
admoestações neo-wittgensteinianas de que os filósofos nunca poderão isolar as
supostas fronteiras conceituais com base em propriedades manifestas ou
perceptivas421.

Segundo Carroll, o que caracteriza o método e argumentação de Danto como transcendental


é que, dados pares de indiscerníveis perceptuais (―reais‖ ou imaginários), como tais objetos
possuem identidades distintas, perguntar-se então como isso é possível?, o que deve ser o
caso para que isso se torne possível? ―A tarefa da teoria torna-se então a de iluminar a
distinção em questão‖. ―Isto é, uma teoria da arte deve explicar como uma distinção
relevante é possìvel‖422. Concordando com Wollheim, Fisher, Lafferty e as interpretações
clássicas acerca do papel argumentativo desempenhado pelos indiscerníveis na filosofia da
arte de Danto, Carroll reafirma que esta filosofia é estabelecida paulatinamente pelos
argumentos embutidos nos experimentos mentais, que induzem a postulação de condições
necessárias e suficientes ao estatuto da arte e que, em todos os casos, ―a forma da
argumentação é transcendental‖. Tal forma transcendental poderia ser posta da seguinte
maneira: dada a indiscernibilidade estrutural entre dois objetos, um dos quais é uma obra de
arte e o outro não, quais razões tornam possíveis este contraste? Ora, segundo Carroll, o
cotejamento estrutural entre objetos indiscerníveis, aliado ao questionamento das razões
que tornam possível este contraste, geram a condição que estabelecerá o almejado limite
ontológico entre obras de arte e meras coisas reais.

Dito de outra forma, se as fronteiras entre arte e vida não podem ser finalmente eliminadas,
o significado (isto é, que obras de arte tem um sobre que, que elas possuem um componente
semântico) é uma condição necessária à arte. Sabemos que o significado artístico é
composto por elementos teóricos variados, mas que podem ser resumidos em duas ordens
de características: as essencialistas e as relativas à história da arte. Assim, podemos afirmar
que o chão sobre o qual se sustentam as reivindicações transcendentais dos indiscerníveis
(se elas são ao menos justas) é aquele da atmosfera teórica e conceitual da arte, do mundo
da arte, na medida em que este é formado pela história, teoria, crítica e filosofia da arte.
Em última instância, este mundo da arte é aquilo ao qual uma obra indiscernível de um

421
CARROLL, N. Essence and Expression: Danto‟s Philosophy of Art, p. 81.
422
Ibdem, p. 80.

164
objeto aponta e que a torna possível e que diferencia arte e não arte. Uma atmosfera teórica
que atribui identidade é tudo o que uma obra de arte ―possui‖.

É possível resumir a filosofia analítica da arte danteana como um conjunto de


compromissos inter-relacionados: obras de arte são sobre algo a respeito do qual
expressam um ponto de vista [obras de arte são representações sobre
representações] através de metáforas as quais as obras não apenas possuem mas
sobre as quais, através de elipses retóricas, solicitam interpretações as quais, por
sua vez, devem ser constrangidas historicamente423.

Estabelecida a ontologia, a definição das obras de arte como significados incorporados


irromperá sintetizando-a. Assim, a forma transcendental sugerida pelos indiscerníveis
consiste em indagar qual é o assunto da obra X no tempo ty. Caberia à estética possível a
habilidade de articular seus conceitos a partir da relação deste significado com a maneira
como ele é incorporado no suporte ou qualquer contraparte da obra e a relação disto com as
reações estéticas.

Finalizando as observações acerca dos aspectos técnicos do método dos indiscerníveis, vale
dizer que não apenas a natureza abstrata dos indiscerníveis, mas o projeto essencialista ao
qual ele serve depõem contra a estética424. Em que pese a verdade de ser o método dos
indiscerníveis inexoravelmente essencialista, pelas incursões metafilosóficas que fizemos
anteriormente, fica claro que esta seria a estratégia natural e que guardaria a maior
afinidade com expressões características da pintura e da escultura cuja novidade era sua
semelhança ululante com objetos do mundo. Com o que até aqui expomos, desejamos que
fique claro que ―focando na teoria, Danto selecionou uma caracterìstica proeminente da arte
contemporânea e a projetou de volta em toda a história da arte‖425. Mas este efeito é ainda
acompanhado de outro, que de certa forma o sustenta, e pode ser resumido pela ideia
segundo a qual o significado dos eventos que tomam corpo na história da arte, tendo
superado o de outros, tem impacto sistemático e irreversível no mundo da arte.

423 Ibdem, p. 89.


424 Neste sentido, Noël Carroll denuncia um vìnculo ―vicioso‖ entre os indiscernìveis em arte, o método de
contrapartes indiscernìveis em filosofia e o essencialismo: ―supor que o advento de indiscerníveis é o
momento decisivo na conversação artìstica acerca de ‗Qual é a natureza da arte?‘ é pré-julgar qualquer debate
em favor de uma teoria essencialista‖. Um essencialismo que torna irrelevante a participação da estética. Cf.
Op. Cit., p. 98.
425
Ibdem, p. 99.

165
4.3- Aspectos teóricos do método dos indiscerníveis
O método dos indiscerníveis discute teses como a da distinção entre arte e realidade, obra
de arte e suporte. Tal discussão é efetivada argumentando a favor da tese segundo a qual
sem teorias não há obras de arte. Com efeito, a teoria da arte decorrida deste método e seu
objetivo teórico associará às obras de arte uma natureza muito próxima à dos objetos
ficcionais.

4.3.1- Os limites entre arte e realidade


―Sempre que ocorre um perìodo de profunda mudança cultural, esta se revela antes de tudo
na arte‖ 426 , como se esta fosse um grande instrumento de previsão. Assim, ―Todos os
períodos revolucionários começam tendo que forçar as fronteiras artísticas‖ para, na
sequência, passar às fronteiras sociais e, ao fim deste período, transformar a sociedade.
Contrariando o poeta, a arte faz algo acontecer. A década de 1960 ―Foi uma década em que
uma após outra as fronteiras cederam e foram eliminadas. Logo no começo da década,
rompeu-se a fronteira entre a arte culta e a arte popular, uma forma de superar a distância
entre a arte e a vida‖427. Neste espìrito, as questões ―o que é a dança?‖, ―o que é a música?‖,
―o que é a pintura?‖ indagavam ―onde e de que maneira devia passar a linha que separa a
arte da vida‖428. O Fluxus, como muitas outras vanguardas, ―se dedicou a ‗ultrapassar o
hiato entre arte e vida‘‖429. Esta energia implosiva é dinamizada por questões filosóficas
autocredenciadoras – o que põe em jogo também os já comentados limites entre arte e
filosofia430.

Com efeito, assim como na relação entre o Romantismo e a Revolução Francesa e a


vanguarda russa de 1905-1915 e o slogan de Aleksandr Ródtchenko de trazer a arte de
volta à vida, as lutas feministas e de gênero e por direitos civis da população afro-

426
DANTO, A. Andy Warhol, p. 27.
427
Ibdem, p. 27.
428
Ibdem, p. 55.
429
Ibdem, p. 53.
430
Conforme vimos no primeiro capítulo, sendo a ontologia o núcleo duro da Arte (pois a verdadeira questão
para ela é a questão ‗que sou eu?‘), a proposição de obras readymades qualifica a Arte como possuindo sua
própria filosofia e, portanto, suscita a indagação acerca dos limites entre Arte e Filosofia.

166
americana seriam a expressão social e cultural de uma revolução prefigurada no mundo da
arte. O espetáculo de variedades The Exploding Plastic Inevitable, criado por Warhol,
representa bem ―a volatibilidade da mudança que assinalou os anos 60‖ a que o próprio
Warhol inicialmente teve de se adaptar quando se mudou para Nova Iorque da qual ele, de
certa forma, se tornou uma espécie de avatar. Com efeito, ―A arte pop esteve presente na
ruptura do espírito modernista e no despontar da era pós-moderna em que vivemos‖431. No
campo da arte, Robert Rauschenberg, Jasper Johns, Claes Oldenburg, Cy Twombly, dentre
outros, estiveram entre os precursores desta revolução.

As combine paintings de Rauschenberg eram literalmente objetos reais, tais como camas,
mas sempre transfigurados por tinta tracejada displicentemente espalhada ou painéis do
―tamanho de um quadro expressionista abstrato‖, funcionando como ―coloração protetora‖
ou emblemas legitimadores, ―como se a tinta pintada bastasse para transformar a realidade
em arte‖ 432 e a tornar significativa. Jasper Johns tinha por tema formas do Lebenswelt:
números, letras, mapas, alvos. Temas do lugar-comum, facilmente reconhecíveis e cujas
representações constituem uma instanciação imediata da coisa representada, não
importando a beleza da forma como são pintados. ―Johns descobriu uma maneira de
transformar a realidade em arte, no sentido de que seus temas superaram a diferença entre
representação e realidade‖433. As garatujas de Twombly, embora tão incipientes quanto o
balbuciar é com relação à fala, ―não são nunca arbitrárias‖ 434. Os painéis de tiras cômicas
pintados por Lichtenstein poderiam ser incluídos nesta classe de obras que transcendem e
violam os limites entre arte e realidade: ―Os objetos criados por Lichtenstein não são
imitações, mas novas entidades‖435. Também Claes Oldenburg criou uma genuína cama
real que é uma obra de arte. Seja por meio de ícones, seja por tinta espalhada, estes
exemplares de obras de arte operam a já comentada vitória na ontologia e revelam seu
duplo pertencimento. Esta ideia de vitória remete a um progresso cumulativo e de um télos
interno à história da arte como uma sequência evolutiva de debates e conquistas. O triunfo

431
DANTO, A. Andy Warhol. p. 56.
432
Ibdem, p. 32.
433
Ibdem, p. 33.
434
Ibdem, p. 33.
435
Ibdem, p. 16.

167
ontológico de tal episódio recente consiste, em parte, em propor um objeto real cuja
experiência perceptiva nos predispõe a classificá-lo através dos meios usuais.

Foi preciso combater também o limite institucional. The Store, de Oldenburg, parecendo-se
mais com um depósito do que com uma galeria, era (além de um caminho para a fama),
―uma crìtica institucional do ambiente de preciosismo dos museus e galerias‖, e ―foi um
modo de estreitar a separação entre a arte e a vida‖436. Desnecessário dizer do papel crucial
da crítica dadaísta à classe responsável pela guerra.

O afã de Warhol em se tornar uma celebridade, um ícone, uma figura pública, mais que ser
reconhecido como artista, também seria um ingrediente de superação dos limites entre arte
e vida. Participando do meio artístico da época e, segundo Danto e seus biógrafos, seguindo
as sugestões de Emile de Antonio, Warhol teria percebido a ordem e a guinada necessária à
arte que desejava. ―A ordem era: pinte o que somos. A guinada, a intuição do que somos.
Somos um tipo de gente que almeja a felicidade prometida pela publicidade, fácil e
barata‖437. A obra de Warhol será ―a tragédia do lugar-comum‖438: felicidade enlatada e
morte prematura. A compreensão transfigurativa presente na filosofia de Warhol propõe
―Elevar ao nìvel do conceito a compreensão corriqueira‖439, transpor os limites arte-vida
através da transfiguração do espírito objetivo em espírito absoluto. Esta compreensão não
está literalmente expressa em A Transfiguração do lugar-comum, mas já se encontra
presente aí e os escritos posteriores, embora apresentem descontinuidades, em muitos
aspectos representam aprofundamentos. Em 1993, Danto afirma que

As caixas Brillo de Harvey pertencem ao espírito objetivo dos Estados Unidos em


meados de 1960. Em certa medida, o mesmo ocorre com as caixas de Warhol. Mas
as caixas de Warhol, sendo sobre o espírito objetivo, são absolutas: elas trazem o
espírito objetivo à consciência de si440.

Uniformidade, repetição e, em certa medida, até mesmo a monotonia presentes na arte pop
(principalmente de Warhol) tornaram mais próximas arte e vida. O caráter repetitivo e
imediatista dos ícones da cultura pop pulverizaram a hierarquização valorativa do mundo
da arte. Ao impor ―um emblema de igualdade polìtica ‗entre as obras‘‖, Danto argumenta

436
Ibdem, p. 64.
437
Ibdem, p. 39.
438
Ibdem, p. 71.
439
DANTO, A. A Future for Aesthetics, p. 111.
440
Ibdem, p. 111.

168
que se torna impossível defender filosoficamente qualquer ideia como a de bom gosto ou
que envolva juìzos de valor. Ao mesmo tempo, tais ìcones representavam a ―forma de vida
que os artistas pop celebravam‖: um ideal liberal que prega que ―Uma lata de sopa de
tomate Campbell é sempre igual a qualquer outra. Não importa quem você é, nunca poderá
ter uma sopa melhor que a do seu vizinho‖ 441. O que Danto talvez reconheça em tudo isso é
a expressão de um certo patriotismo, característico da sociedade estadunidense. Contudo,
trabalhos como a série 129 morrem acabam expressando, com toda sua insistência mórbida
e estilizada, a banalização da morte, um ―mundo esvaziado de ocorrências, o vazio em azul-
claro‖442.

Vale uma indicação acerca da maneira com que Danto traça seus comentários sobre a
relevância filosófica da arte pop e outras correlacionadas. Transitando sempre entre dois
mundos, os comentários de Danto buscam evidenciar, ao mesmo tempo, as relações entre a
cultura pop, do jazz às campanhas publicitárias, e aproximar comparativa e
equivalentemente a bela arte e a pop art, mesmo que deixe escapar sempre e
propositalmente ―o forte americanismo que a caracteriza‖.

Por parecer-se mais com coisas da vida do que com algo que tradicionalmente se entendia
por arte e com os efeitos esperados dela, ―a lata de sopa Campbell invalidou [...] todo o
cânone da estética filosófica, e de um golpe definiu sua época. Ela era, como disse De
Antonio, quem nós somos‖ 443 . Esta fórmula fornece ao mesmo tempo uma resposta
filosófica (interna à arte, como Danto quer fazer crer) à questão igualmente filosófica ―o
que torna arte estes exemplares do Lebenswelt?‖. O que todos têm em comum é que eles
―remetem aos ‗pequenos contratempos humanos‘. [...] Mas, em conjunto, projetam uma
imagem da condição humana, e é por isso que são arte‖444.

Em resumo, lembrando o que Carroll nos diz a respeito da concomitância entre Warhol e os
indiscernìveis em arte, é interessante lembrar que esta descoberta ―se dá num tempo em que
os filósofos estavam abandonando a ideia de que propriedades manifestas não úteis à

441
DANTO, A. Andy Warhol. p. 63.
442
Ibdem, p. 69.
443
Ibdem, p. 62.
444
Ibdem, p. 43-4.

169
distinção entre arte e não arte‖445 e ela torna inviável os métodos usuais até então e seus
respectivos comprometimentos teóricos. Assim, para que não se apaguem os limites entre
arte e filosofia definitivamente, urge que seja traçada uma linha que delimite o que é
próprio da filosofia e da arte. Neste sentido, os experimentos mentais propostos pelo
método dos indiscerníveis são uma maneira jocosa e filosoficamente instigante de ―jogar
com as armas do inimigo‖ ao mesmo tempo que defendem ―a hipótese segundo a qual a
fronteira entre obras de arte e coisas reais consiste no fato de que obras de arte possuem
significado enquanto meras coisas reais não‖ 446 . Assim, quanto ao limite entre arte e
realidade ou entre arte e vida, o limite ontológico-metafísico será o aboutness. Por outro
lado, quanto à relação arte e filosofia, podemos dizer que a discursividade, o tratamento
teórico-conceitual e a ausência de história são as características presentes na filosofia e que
a diferenciarão da arte, uma vez que ambas possuem indiscernibilidade, têm visão sub
specie aeterni, são autoconscientes e envolvem representação e interpretação.

4.3.2- Contraparte material: princípios, teses e seu papel na teoria


Avaliado por Lafferty como uma ―tentativa bem-sucedida de esclarecer o debate‖, o artigo
Is There a Problem of Indiscernible Counterparts?, de John Andrew Fisher, foca na questão
das contrapartes abordada pelo método dos indiscerníveis e subdivide esta questão em três
afirmações distintas:

(A) Toda coisa real pode ter uma contraparte indiscernível que é uma obra de arte;
(B) Toda obra de arte pode ter uma contraparte indiscernível que é uma obra de
arte diferente e, por último;
(C) Toda obra de arte pode ter uma contraparte indiscernível que é uma coisa
comum447.

Ao cotejar obras de arte e meras coisas reais indiscerníveis este conjunto de sentenças
remonta à referida reversibilidade dos readymades salientada por Duchamp. Juntas, estas
afirmações formam aquilo que Fisher chamou ―a tese ampla da indiscernibilidade‖ 448. O
problema posto em movimento por esta tese seria, pois, o de determinar ―Qual teoria da
445
CARROLL, N. Essence, Expression, and History, p. 94.
446
Ibdem, p. 82.
447
FISHER, John Andrew. Is There a Problem of Indiscernible Counterparts?, p. 470. In: The Journal of
Philosophy, Vol. 92, No. 9 (Sep., 1995), p. 467-484.
448
Ibdem, p. 470.

170
arte poderia explicar a verdade das alegações ‗A‘ e ‗C‘?‖. Segundo Fisher, nenhuma teoria
da arte disponível é geral o bastante para abarcar tais alegações. A tese ampla da
indiscernibilidade depõe contra ―a visão de que as obras de arte são adequadamente
apreciadas e definidas unicamente por suas propriedades perceptuais, independentes das
relações contextuais que possam ter‖449. Além disso, tal tese se opõe à teoria institucional
da arte.

Fisher contesta também a universalidade e consistência das alegações ‗A‘, ‗B‘ e ‗C‘, pois,
sendo elas extraídas de casos de indiscernibilidade, sua plausibilidade é debitária do
advento da arte conceitual e dos readymades de Duchamp e, portanto, são particulares e
temporalmente circunscritas. Ela possui uma plausibilidade relativa, portanto. Entretanto,
supomos ser válido lembrar que Danto parece afirmar, antes, que o aspecto conceitual
artístico fora finalmente revelado por Duchamp, Warhol e outros, não que sua teoria busque
extrapolar os princípios relativos a um curto período de tempo ou sugeridos por autores
cuja conexão à época não se encontrava suficientemente sedimentada. A pretensão de
Danto foi realmente erigir uma teoria válida em todos os ramos e tempos da arte, de tal
forma que ―se qualquer das [suas] ideias não se aplicar a todo o universo da arte
considerarei esse fato como uma refutação‖ 450.

Michael Lafferty propõe uma distinção ―diacrônica‖ entre as alegações ‗A‘ e ‗C‘. Na
reivindicação ‗A‘, a coisa real é anterior à obra de arte; em ‗C‘, ao contrário, a obra é
anterior à coisa ordinária. Esta distinção tem o mérito de assegurar que ‗A‘ e ‗C‘ são
afirmações distintas e não analíticas. Ela pretende se sustentar a partir da constatação de
que o sujeito de cada uma das sentenças, se verdadeiras, é tomado como causa daquilo com
o quê é comparado. Ela revela a carga conceitual embutida na terminologia danteana, e,
portanto, denuncia qualquer pretensão de construir uma filosofia da arte ―chapa branca‖.
Segundo Lafferty, seria preciso ainda introduzir o seguinte esclarecimento acerca da
primeira alegação: ―cada representação pode ter uma contraparte indiscernìvel que é

449
Ibdem, p. 471. Conforme diz Fisher, ―a visão que Crispin Sartwell chama de ‗formalismo crìtico‘ e
Gregory Currie chama de ‗empirismo estético‘‖ e, como tal, a elas se opõe a tese ampla da indiscernibilidade.
450
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, Prefácio, p. 27.

171
simultaneamente uma representação e uma obra de arte‖ 451. O que Lafferty pretende com
estas distinções é averiguar se as alegações tidas como centrais por Fisher quanto à teoria
das contrapartes realmente refletem os compromissos adotados por Danto em sua teoria da
arte, e, mantidas as observações que aqui assinalamos, acreditamos que não apenas as
alegações de Fisher procedem como os princípios indicados por Lafferty também.

Neste sentido, cremos não ser adequada a conclusão radical que Fisher pretende retirar das
três teses que ele mesmo propôs serem centrais à filosofia de Danto. Uma conclusão que
negligencie o aspecto de possibilidade 452 presente naquilo que seria a tese ampla da
indiscernibilidade se justifica apenas se Fisher não presta a devida atenção à importância do
vínculo causal e do contexto histórico na teoria da arte de Danto. Somado a isto, a forma
transcendental com que se dá a argumentação por indiscerníveis impede que a distinção
cronológica proposta por Lafferty adquira o efeito cáustico que ele pretende – embora
permaneça útil para revelar os aspectos que acima mencionamos. Esta forma argumentativa
pretende, antes de tudo, traçar o caminho possível que uma obra de arte percorre para
merecer este título e, como tal, como uma coisa aparentemente idêntica percorre uma trilha
distinta. Ela pretende delinear o percurso conceitual que determina a ontologia da obra, os
meios que fizeram dela o que ela é. Assim, o que torna possível a não diferenciação
perceptiva de objetos distintos é a ambiguidade ontológica que os perpassa. O itinerário que
esta teoria esboça pretende dirimir exatamente esta ambiguidade. Segundo ela, obras de arte
são instauradas por conceitos e interpretação próprias da atmosfera artística, do mundo da
arte. Na verdade, a própria filosofia danteana pretende fornecer a teoria que sustente a
modalidade de tais objetos indiscerníveis em mundos distintos tornados possíveis. Que
Fisher afirme que não há nenhuma teoria da arte ampla o bastante não passa de uma
maneira retórica de negar que Danto seja capaz de sustentar adequadamente a interpretação
que ele propõe de sua filosofia da arte.

Entretanto, uma acusação mais séria consistiria em atacar a indiscernibilidade como


característica essencial para obras de arte ou para a argumentação a respeito da essência

451
LAFFERTY, Michael Gerald. Danto‟s Philosophy of Art. p. 73-4. (Contra Lafferty, não fica claro, por
exemplo, como uma sentença possa ser uma obra de arte, embora ela seja com certeza um veículo de
significado ou até a expressão proposicional da interpretação de uma obra).
452
―Todo x pode ter...‖ Cf. as teses ‗A‘, ‗B‘ e ‗C‘ de Fisher acima expostas.

172
perceptualmente indiscernível destas. As acusações são relevantemente diversas, mas tendo
em vista a teoria da contraparte, elas argumentam que, se teorias da arte como a de Danto
compartilham com outras o fato de tomarem um elemento como essencial para a
qualificação de um objeto como obra de arte, e se este elemento falha, a admissível
existência de mundos possíveis nos quais pelo menos um objeto muitíssimo similar a este
não partilha deste elemento torna falsa a pretensão de estabelecer uma identidade
inequívoca ao objeto neste mundo atual e torna tal propriedade em questão uma
propriedade não-essencial a ele.

Há, contudo, a possibilidade de traçarmos uma crítica inteiramente nova endereçada à


teoria de contrapartes embutida nos indiscerníveis. Neste sentido, um alvo sensivelmente
crítico seria a dualidade de substâncias com que parece se enredar a teoria da arte danteana.
Em A Transfiguração do lugar-comum Danto nos encoraja a pensar que, assim como o
conceito de pessoa em Strawson, obras de arte são compostas por significado e corpo, ao
qual se incorpora. Nesta teoria, obras de arte são radicalmente indiscerníveis por qualquer
meio perceptivo, mas tal dimensão perceptiva inegavelmente existe e, sendo inarredável, ao
menos parcialmente possui tal consistência de res percipient. Resta saber se esta dimensão
se deixa subsumir pela substância interpretativa ou conceitual da obra, pois esta, como
Danto defende, não se deixa reduzir àquela outra dimensão. Ora, se a indiscernibilidade
apela para as teses identificadas por Fisher e, portanto, não é particularmente circunscrita, é
possível que defendamos que há algo mais essencial? Está autorizada a suposição de que é
absolutamente muda a dimensão perceptiva? Está suficientemente fundamentada a intuição
segundo a qual a dimensão conceitual, ‗sendo aquilo que muda quando o conteúdo
perceptivo permanece inerte‘453, seja tomada como ontologicamente determinante e mais
essencial do que a dimensão perceptiva, à qual restaria permanecer no dualismo como uma
excrecência indesejada? É lìcito que se proponha uma ―eliminação‖ de tudo o que recaia
sobre a alcunha da percepção uma vez identificado o elemento conceitual da arte? Mesmo
que a dimensão perceptual das obras seja anexada à interpretação após a identificação
artística da obra, por que manter que percepção e interpretação são ontologicamente

453
A versão original seria: ―Entendo por percepção o que permanece imutável entre obras quando a
interpretação é diferente‖. Cf. DANTO, A. Indiscernibility and perception: a reply to Joseph Margolis.
British Journal of Aesthetics, vol. 39, n. 4, October, 1999, p. 324-5.

173
distintas? Se a indiscernibilidade é essencial, admiti-la em sentido absoluto redunda em
abdicar da definição como ela se caracterizou. Se, por outro lado, ela não é tão marcante,
então ela não é absoluta, é permeada por marcas distintivas (intencionais ou não). Neste
caso, a indiscernibilidade não se manteria, pois poderíamos distinguir obras e meras coisas.
É preciso abandonar, ad absurdum, tal dualismo. É preciso uma nova resolução quanto à
solubilidade do problema dos indiscerníveis. Do ponto de vista dos compromissos teóricos
mais basilares de Danto, apresentados no primeiro capítulo deste trabalho, compreender a
indiscernibilidade como o centro e a característica definidora da Filosofia já sugeriria que
os indiscerníveis são, em última instância, insolúveis – ao menos enquanto são mantidos.
Se compreendermos, contudo, que a solução da indiscernibilidade consiste na identificação
do significado da obra, por um lado e, por outro lado, no resquício perceptivo residual, o
dilema que envolvia obra de arte e mera coisa teria se resolvido por meio desta distinção.
Dramaticamente, tal distinção encaminha ao paradoxo assinalado. Sua solução apresenta
percepção e interpretação (ou significado) como duas naturezas distintas e faz uma forte
sugestão ao abandono da dimensão perceptual como algo dispensável, ontologicamente
irrelevante, resquício defectível e indesejável à teoria da arte. Isto, contudo, não dissolve tal
dimensão e, portanto, não afasta o problema. O dilema que se impõe: se a
indiscernibilidade é insolúvel, há duas substâncias radicalmente distintas; se, ao contrário, é
solúvel, não há indiscernibilidade e tampouco há dualidade a ser mantida, mas deve-se
admitir, portanto, uma espécie de permeação entre interpretação e percepção.

Ad absurdum, deve-se abdicar desta espécie de dualismo de substâncias. Entretanto, o que


parece ter ocorrido na filosofia da arte de Danto foi uma deflação da importância dos
indiscerníveis em favor de uma guinada ou uma reviravolta no sentido de um discurso cada
vez mais historicizado. Tanto o método dos indiscerníveis quanto a guinada ao historicismo
possuem contornos igualmente hostis à ―estética tradicional‖, mas pelo menos este
compromisso de manter contextualizado o discurso da arte possibilitou um lugar restrito à
estética enquanto intenção possível de algumas obras.

Seguindo um refinamento da alegação original de Danto (segundo a qual obras de arte têm
contrapartes indiscerníveis) fornecida por John Andrew Fisher no mencionado artigo, e
selecionando seis exemplos dentre os vinte e três pares de indiscerníveis fornecidos em A

174
Transfiguração do lugar-comum, Michael G. Lafferty pretende demonstrar como os
exemplos de contrapartes de indiscerníveis apoiam, ao mesmo tempo, os seis princípios
identificados por ele e as três alegações afirmadas por Fisher.

Os seis princípios subjacentes à filosofia da arte de Danto identificados por Lafferty são:

(1) a arte é o resultado do esforço humano do artista;

(2) obras de arte adquirem uma história e uma proveniência;

(3) as obras de arte incorporam significado (elas são expressivas), e tal


significado é resultado da intenção do artista;

(4) o significado envolve um assunto, sobre o qual o artista projeta um ponto de


vista por meio de elipses retóricas;

(5) obras de arte requerem interpretação e, finalmente,

(6) são produzidos e interpretados dentro de um contexto histórico 454.

Assim, Lafferty propõe que os princípios um e dois acima acompanham as teses (B) e (C)
de Fisher, e que ambos são sustentados pela análise de Danto acerca do par de
indiscerníveis envolvendo o Retrato de Madame Cézanne, de Lichtenstein, e o diagrama de
Loran. Da mesma forma, os elementos estabelecidos por Danto na análise dos pares de
indiscerníveis envolvendo a instalação Laundry Bag, de Kuriloff, e sacos de lavar roupas,
bem como a novela experimental Metropolis Eighty em comparação à lista telefônica de
Manhattan de 1980 e Retrato de Madame Cézanne frente ao diagrama, permitiriam
fornecem base aos princípios de número três e quatro de Lafferty e à tese (A), proposta por
Fisher. Oferecem os elementos para promover a aproximação do quinto princípio às teses
(A) e (C) exemplo da Laundry Bag e os sacos de lavar ordinários, juntamente com o par de
indiscerníveis O Cavaleiro Polonês (de Rembrandt) e a obra acidental indiscernível
daquela, além do caso da Metropolis Eighty e a lista telefônica de Manhattan de 1980. A
coleção de nove objetos indiscerníveis apresentada e discutida por Danto no primeiro
capítulo de A Transfiguração do lugar-comum permitiria a Lafferty propor o sexto e último
princípio a par da tese (B)455.

Com o primeiro princípio, Lafferty parece querer dizer que, ao contrário do natural, o
engenho humano – no qual se encontra a arte – é cultura, possui um significado e, em certo

454
LAFFERTY, M. G. Danto‟s Philosophy of Art, p. 74-5.
455
Ibdem, p. 88-92.

175
sentido, um propósito. Neste sentido, o segundo princípio aponta para a história causal
(aparentemente) única de cada artefato cultural e que compõe seu ser. O terceiro princípio
adentra o campo mais propriamente artístico, toma este campo como algo que possui um
significado próprio e, de uma maneira que lembra Susane K. Langer, propõe que os
artefatos artísticos não apenas possuem significado e propósito, eles os expressam. O quarto
princípio diz mais especificamente que obras de arte são artefatos cujo significado e
propósito expresso são instaurações da intenção do autor e, como tal, apresentam o ponto
de vista individual dele acerca de algo. Assim, este conteúdo deve ser interpretado para que
seja adequadamente identificado, fruído e avaliado – isto é o que propõe o quinto princípio.
Por último, exige-se que tal interpretação, para que seja correta, se efetive no contexto
cultural em que se enfeixam artefatos e interpretações com o mesmo emblema.

Esta interpretação proposta por Lafferty trilha o caminho da teoria danteana da arte através
de um viés cultural e não se afasta muito das interpretações consagradas desta teoria.
Conforme relembra Noël Carroll,

a teoria da arte que Danto propõe na Transfiguração mantém que um X é uma


obra de arte apenas se (a) X tem um assunto [...], (b) acerca do qual X projeta uma
atitude ou ponto de vista [...], (c) através de uma elipse retórica (geralmente uma
elipse metafórica), (d) a qual, por sua vez, engaja a audiência [a participar
interpretando a obra] e (e) em que as obras em questão e suas interpretações
requerem um contexto de história da arte [...]456.

Há, entretanto, uma divergência de Lafferty para com Noël Carroll, que estaria
confundindo os conceitos de retórica e elipse. Segundo Lafferty, a crítica mais famosa de
Carroll, segundo a qual a teoria da arte de Danto envolve circularidade, se vale desta
confusão. Cito Lafferty:

[Para Carroll,] Danto acredita que a pintura de Lichtenstein é tanto elíptica como
retórica: algo omitido que tem de ser preenchido pelo espectador, e a omissão em
si é um dispositivo de persuasão. É o único conceito proposto por Danto que
oferece identificar uma diferença substantiva entre arte e não-arte: oferece uma
solução potencial para a busca de uma definição de arte sem empregar um
argumento circular. Tendo este ponto sido atingido, Carroll não tem razão para

456
CARROLL, N. Essence, Expression, and History. p. 80.

176
afirmar que o argumento de Danto se baseia em uma circularidade viciosa. É a
forma como uma obra de arte apresenta o seu conteúdo que permitirá Danto para
distinguir a arte e não-arte457.

Noéli Ramme confirma o teor e os itens desta teoria. Conforme afirma,

são condições para que um objeto seja considerado uma obra de arte: 1) ter um
conteúdo semântico [...]; 2) projetar um ponto de vista sobre aquilo que é; 3)
[fazê-lo] por meio de elipses retóricas (metáforas); 4) ser objeto de uma
interpretação [...]; e 5) essa interpretação deve ser historicamente localizada num
mundo da arte pertinente458.

À parte as críticas ácidas que dirige a cada uma das condições fornecidas por Danto em A
Transfiguração do lugar-comum, Carroll crê poder colocar o próprio Danto em perspectiva
e, em função do caráter eminentemente conceitual da arte contemporânea, afirmar que ele
―é realmente o crìtico par excellence da arte na era da teoria‖459.

Interpondo o método dos indiscerníveis (e as análises que dele fizemos) entre as três
alegações identificadas por Fisher e os seis princípios acima citados, teríamos o supra sumo
da filosofia da arte danteana.

4.3.3- Externalismo perceptual, o pressuposto tacitamente operante dos


indiscerníveis
Inúmeros críticos protestam – legitimamente – contra a enorme reticência e carência de
uma reflexão exaustiva de Danto acerca da experiência perceptiva ou de uma análise
fenomenológica da experiência artística460. Como poderia afastá-la sem se debruçar sobre
tema tão importante para o tipo de arte e era artística que edificou uma filosofia?

457
Cf. LAFFERTY, M. G. Danto‟s Philosophy of Art, p. 91 e 123 ss. Pode-se notar que tal crítica apoia a
tese mesma de Lafferty e de Fisher segundo a qual os conceitos propostos por Danto como centrais à
identificação correta de contrapartes como obras de arte devem pertencer a um local teórico específico.
458
RAMME, Noéli. A estética na filosofia da arte de Arthur Danto, p. 91n.
459
CARROLL, N. Essence, Expression, and History. p. 99.
460
Principalmente se levamos em consideração que a filosofia da percepção tornou-se um campo de intensa
dedicação de vários filósofos analíticos desde meados do século passado e que, por outro lado, Danto foi
orientado por Merleau-Ponty quando viajou à França para doutorar-se.

177
Mas há, sim, em Danto uma posição tácita e, no entanto, bem definida quanto à percepção e
sua relação com conceitos. A passagem a seguir é emblemática:

Não há diferença perceptiva entre elas [duas obras indiscerníveis], como estou
usando a noção de percepção. Entendo por percepção o que permanece imutável
entre obras quando a interpretação é diferente. Como pode alguém dizer que
interpretação permeia percepção quando, ainda que percebamos quadrados
vermelhos apesar de tudo, não percebemos The Red Dust, pois o que estamos
vendo é The Israelites crossing the Red Sea? Como pode alguém acreditar que os
visitantes estão percebendo The Red Dust quando estão percebendo uma obra
completamente distinta, que, por acaso, se parece com ela? Podemos perceber o
que não é o caso, dando assentimento a uma proposição falsa?461

Perguntado sobre os conteúdos que compõem a experiência perceptiva, Danto tende a


responder que, embora contendo representações – sendo a arte dependente de uma
atmosfera conceitual e, portanto, possuindo ela um significado que é representação de
representações (interpretação), que se destaca do mundo da vida porque é sobre o espírito
objetivo – , a percepção de obras de arte não dispõe internamente de um elemento
conceitual distintivo. Entretanto, as experiências perceptivas comuns que temos de objetos
como sendo tal e tal dependem de crenças que possuímos e que nos são transmitidas desde
tenra infância. Assim, Danto afirma que, na vida cotidiana, qualquer excrecência perceptiva
que não se encaixe nos esquemas conceituais que guiam nossa percepção é facilmente
ignorada. Mas a essência da arte não é uma questão ordinária e a percepção de obras não
ocorre com simples vista-d‘olhos. Levado às últimas consequências, admite-se que o
conteúdo da percepção é não-conceitual.

Richard Wollheim esclarece que Danto entende por ‗teoria‘ algo que engloba conceitos,
‗crenças‘ (belief), ‗informação‘ ou interpretação e, portanto, é mais amplo que o uso
costumeiro. Danto exige que a definição da arte não disponha apenas de termos teóricos
(não observacionais e não perceptivos) em seu definiens. Sendo, pois, internalista a posição
segundo a qual percepções são permeadas por crenças ou informações, o externalismo
responde negativamente à relação co-substancial de percepção e conceitos. Parece correto
que Wollheim classifique a posição de Danto quanto à relação entre percepção e conceito
como externalista: primeiro há a enorme segurança na evidência que as experiências de
pensamento oferecem no sentido de garantir que não há diferenças sutis ocultas que se
abririam apenas ao escrutínio cuidadoso. Em segundo lugar, há o truísmo acerca da dupla
461
DANTO, A. Indiscernibility and perception, p. 324-5. (Grifos nossos).

178
função da interpretação (compreensiva e atributiva) ser disjunta da percepção de forma a
não ser apenas essencial e radicalmente diferente, mas também completamente diferente,
uma vez que ―podemos interpretar dois objetos de maneira distinta sem conceder a
qualquer diferença visìvel‖462.

Tal como propõe Gareth Evans, ver X com propriedade Q se deve às informações possuídas
pelo sujeito e, neste sentido, ―informações ‗saturam‘ o pensamento, ou pensamentos são
baseados em informações‖ 463 . Em última instância, pensamentos são conformados
transcendentalmente pela crença do sujeito de como o mundo deve ser para que o perceba
da forma tal como o percebe. Para Evans, ao perceber algo os sujeitos reúnem (gather)
informação acerca do mundo, as quais transmitem e organizam através da comunicação.
Evans chama de sistema informacional a sedimentação destas informações num lugar-
comum (platitude) em que se situam a percepção, a comunicação e a memória e em cuja
transação entre crença e sensibilidade o sujeito é tido como receptor de dados sem conteúdo
objetivo que devem ser capaz de determinar a objetividade através de inferências instáveis.
Adotando também uma postura confiabilista internamente justificável, apenas a semelhança
entre eventos pode ser tomada como informação relevante, pois estariam imbuídos de
significância objetiva previamente consagrada e uma força que dispõe à ação. Assim, a
noção de estar em um estado informacional com tal e tal conteúdo seria uma noção
primitiva preferível à noção tradicional de estado de crenças porque, sendo ela
independente da crença na veracidade do ―fato‖ (isto é, situar-se neste estado independe da
crença de que ele seja verídico), permite encarar a qualidade de veracidade de percepções
incomuns (alucinações e ilusões) e de narrações fictícias se posicionando em um estado
informacional mais apropriado. A noção de estado de crenças (creio que p) nos força a
afirmar que são verdade aquilo que não o é. Sem embargo, Evans afirma que ―a arte
representacional como um todo está baseada na independência de crença dos estados do
sistema informacional‖464.

Assim, não sendo o significado um objeto do mundo, podemos afirmar que há em Danto
uma postura não-conceitualista acerca da percepção de obras de arte. Na medida em que

462
WOLLHEIM, R. Op. Cit., p. 35-6.
463
EVANS, Gareth. Varieties of Reference. Clarendon Paperbacks, 1982, p. 122. (Tradução nossa).
464
Ibdem, p. 124.

179
‗arte‘ é um conceito não disponìvel na percepção e a interpretação é o processo
ontologicamente relevante para determinar algo como arte, Danto é conceitualista quanto a
este processo, mas não quanto ao outro. Esta evasão configura-se como uma postura
externalista quanto à relação entre interpretação e percepção. É possível afirmar isso em
virtude das análises dos capítulos anteriores e de inúmeras passagens em que fica clara a
ideia segundo a qual a interpretação ou teoria (conteúdo conceitual) é o elemento
ontologicamente relevante.

Se percepção é o conteúdo não conceitual que resta – ceteris paribus – quando o conteúdo
conceitual muda, isto prova inúmeras coisas. Primeiro, subtraindo desta vez o conteúdo
propriamente teórico, é forçoso que restasse uma espécie de conteúdo não conceitual
indefinido e não qualificado. Com efeito, na medida em que Danto pretende defender que
‗nada na percepção nos informa que X é arte‘, o compromisso de Danto com o conteúdo da
percepção dos indiscerníveis possui, desde sempre, uma cara e forte tese quanto à
percepção. A conclusão só poderia ser mesmo que, quaisquer que sejam as incursões feitas
na percepção, elas nunca serão suficientemente informativas para os propósitos
definicionais da sua filosofia da arte. Talvez seja isso o que Danto queria dizer quando
afirmou, em Connections to The World, em A Transfigurações do lugar-comum, em Após o
fim da arte e em inúmeros outros textos (principalmente dos dois primeiros terços de sua
carreira filosófica), que a filosofia só começa de fato quando abandonamos a pretensão de
interpretar o todo da realidade a partir de dentro dela. Se a arte chegou ao seu fim, porque
realizou material e espiritualmente a compreensão de sua natureza metafísica, a localização
entre mundo e representação suprime de uma vez por todas o seu retorno ao amorfismo da
percepção.

Por outro lado, enquanto a interpretação é compreendida do ponto de vista conceitualista,


podemos oferecer uma definição de conceitualismo perceptual capaz de jogar luz sobre o
ponto fulcral de inúmeras críticas sofridas por Danto, seja quanto à sua reticência em tratar
o tema da percepção, seja quanto à posição implícita:

Postura filosófica que diz que em todos os casos o conteúdo de uma percepção
contém necessariamente conceitos que especificam à exaustão ou totalmente cada

180
um dos elementos disponíveis a nível consciente durante a experiência, ao mesmo
tempo, simultaneamente465.

Teorias são coisas que o olho não pode discernir e, mesmo que identifiquemos obras
através de etiquetas (label), esta ação de ―nomeação‖ depende de uma dimensão não
perceptual. As teorias são os limites da percepção. Conteúdos conceituais distintivos
partem ―de cima‖ para baixo, não o contrário. Como tal, qualifica-se a implementação
como externalista, pois eles não estão de nenhuma maneira disponíveis à percepção.
Eduardo Coutinho Lourenço Lima também corrobora esta afirmação. Segundo ele, ―a
percepção não é permeada por interpretação, por ser exatamente o resquício de se ignorar a
interpretação‖466. Se a interpretação permeasse a percepção, estariam excluídos enganos
entre obras e meras coisas, bem como entre obras distintas mas com propriedades
perceptivas idênticas.

Portanto, não sendo imune à indiscernibilidade, qualquer proposta definicional da estética


pautada em termos observacionais ou perceptivos peca por petição de princípio, está
historicamente ultrapassada e é incapaz de realizar o escrutínio ontológico e histórico
necessário através apenas dos recursos perceptivos e (digamos) afetivos de que dispõe. Seja
do ponto de vista da percepção, reação ou apreciação, a estética é incapaz de apresentar
uma definição da arte. Mesmo com a reforma de seu estatuto, tal pretensão estaria
inviabilizada. Qualquer operação estética assim dependente estaria fadada a ser uma
articulação do conteúdo conceitual da arte, imprescindíveis à experiência. Não obstante, tal
conclusão favorece a proposta de reposicionar a estética ―após‖ o estabelecimento do
sistema teórico-conceitual necessário à ontologia e, consequentemente, à experiência
artìstica. A ―apreciação [é] uma função da situação cognitiva do esteta‖ e, de maneira mais
pungente, ―as qualidades estéticas da obra são função de sua própria identidade
histórica‖467. Contudo, não cabe a este trabalho dissertativo desenvolver tal projeto.

465
Tomamos esta definição de GANDARILLAS, Francisco Pereira. Contenido perceptual y la insuficiencia
de la tesis conceptualista. Revista Analytica, Lima, n. 1, vol. 1, 2007, p. 51.
466
Loc. Cit.
467
DANTO, A. A Transfiguração, p. 172.

181
A crítica tradicional endereçada àqueles que professam o não-conceptualismo extremo é a
acusação de dependência do mito do dado 468 . Richard Wollheim apresenta uma outra.
Segundo ele, que a percepção seja incapaz de fornecer uma característica essencialmente
distintiva, não significa que, depois de descoberto, não possamos vê-la como tal. Segundo
Wollheim, tratar como intercambiáveis as afirmações segundo as quais ―podemos
interpretar dois objetos de maneira distinta sem conceder a qualquer diferença visìvel‖ e
que ―percepção é o que permanece imutável entre obras quando a interpretação é diferente‖
somente ocorre em função de uma confusão entre a insuficiência da percepção
(estabelecida em função do não-conceitualismo) e a fraca influência do significado
(externalismo) sobre a percepção. Em segundo lugar, contribui para a sustentação de coisas
tão distintas a distinção ver-que e ver-como. Em terceiro lugar, há a crença na modalidade
do ver ou da mente. Presente no pensamento de Danto, esta tese o teria feito levantar, um
tanto experimentalmente, a hipótese segundo a qual ―a percepção é considerada como
sendo encapsulada pela cognição‖469. Wollheim rebate esta tese lembrando, primeiro, que
ela não se aplica a casos rudimentares em que percepções anormais são disputadas e,
segundo, acusando-a de não cobrir toda a extensão do processo perceptivo pois, do
contrário, a análise seria convincente do início ao fim e não apenas no input – pois no
output há espaço para identificar a penetração de crenças na percepção.

Com efeito, na medida em que as noções da percepção ordinária cumprem bem o papel de
nos fornecer as experiências comuns, tais como cor, forma, volume, profundidade, e outras
experiências proto-proposicionais, proposicionais e mesmo conceituais de tipos não
filosóficos, justifica-se compreender que qualquer experiência fundada sobre esta dimensão
(como a experiência estética) é não-intelectualizada, no sentido de ser sensorial. Por outro
lado, caracterizado como conceitual e externo, a interpretação poderia ser compreendida
como conteúdo intelectualizado 470 . Trata-se de uma doutrina não-conceptualista da
sensibilidade estética. Desta forma, temos a chave de leitura da compreensão de estética
como sensibilidade destituída do conceito de arte, em oposição à filosofia e mesmo à crítica

468
Não por acaso, Margolis dirige esta crítica a Danto. Além desta crítica, pode-se indagar se conteúdos
externos tão racionais são de fato confiáveis e de quais as razões (e de quais tipos, se internas ou externas)
dispomos para defender sua razoabilidade frente ao ceticismo.
469
WOLLHEIM, R. Op. Cit., p. 36.
470
Esta é a crítica realizada por Joseph Margolis: a interpretação é de tal forma hiper-intelectualizada que
torna a experiência artística algo desumanizado, insensível, contra-intuitiva, não fluida.

182
da arte como legítimas hermeneutas da Arte. Tal concepção não-conceptualista da
sensibilidade estética – da qual analisamos o pano de fundo, as origens, as razões e
argumentos – vigorou vivamente pelo menos no primeiro terço do opus danteano.

Neste quesito, vale lembrar a centralidade da rejeição ao conceito de reconhecimento,


exemplarmente apresentada no capítulo quatro de A Transfiguração do Lugar-comum.
Danto pressupõe uma homogeneidade dos domínios da experiência estética, do gosto, da
reação estética, da apreciação estética e da teoria estética – além da normatividade narrativa
da estética. Tal homogeneidade se presume ao solicitar que eles sejam capazes de responder
―se nossas respostas estéticas seriam as mesmas em face de objetos com aparência exterior
idêntica, mas dentre os quais um é uma obra de arte e o outro, ainda que espetacular, é um
objeto comum‖471. Danto argumenta que o caráter distintivo das reações estéticas idênticas
revela que elas não são puras percepções.

Prova de que reações estéticas não são puras percepções reside no fato de que, se estivesse
associada ao senso de beleza ou à faculdade do gosto, seria inato, universal e
universalmente distribuído. Segundo ele, isso é falso. Este senso não é idêntico a um
pretenso ―senso de arte‖, pois sendo a arte histórica, tal excrecência não existe. Talvez a
aproximação com o senso de humor ou disposição de ânimo seja maior, pois tanto este
quanto o senso de beleza são interessados, envolvem desejo de posse do objeto percebido,
são não-moralizantes, sofrem de acrasia, mas são ambos suscetíveis a intervenções
volitivas472. Dedicamos uma seção especialmente para tratar este assunto 473.

Esta cara posição subentendida na filosofia danteana impõe um alto preço à estética,
especificamente às pretensões normativas desta. Ora, se as obras de arte da
contemporaneidade exemplificam radicalmente sua conceptualidade, cuja
indiscernibilidade entre obra e mera coisa é expressão, e esta característica depõe contra as
estéticas centradas na percepção e nas propriedades dos objetos artísticos, as recusas de
tratar detida e abertamente o tema da percepção e oferecer uma teoria defensável para este

471
DANTO, A. A Transfiguração, p. 146.
472
Lembre-se a discussão de Wittgenstein no capítulo três.
473
A seção 5.3 do próximo capítulo esboça a chamada estética do significado fundada sobre a disposição de
ânimo e, neste sentido, aponto para esta possibilidade positiva da estética, distinguindo-a daquela
compreensão perceptivo-sensorial.

183
tema pode ser tomado como uma falha grave. Parte da gravidade reside no fato de Danto
evadir a estética defendendo que o ponto da arte não é perceptivo, mas conceitual.
Entretanto, a maneira através da qual se encaminha este redirecionamento possui uma forte
tese acerca da percepção e sua relação com o domínio da estética. Em outros termos, a
teoria da arte de Danto oferece uma tese forte sobre o conceitual na arte e a maneira como
esta essência se diferencia da concepção rival. No entanto, tal teoria tampouco se propõe
averiguar se é igualmente defensável que percepção e conceito não se relacionem
igualmente na compreensão de estética estipulada (e depois modificada) e na sua própria
versão de filosofia da arte.

4.3.4- Ontologia de Obras de Arte e Ontologia da Linguagem


Danto pretende esclarecer que o tratamento da questão da arte deve ser, antes de tudo,
ontológico, não epistemológico. A história causal de um objeto conforma sua ontologia,
mas tal história, como qualquer outra condição central de sua essência, é inescrutável a
qualquer inspeção epistêmica. Não se trata de sermos capazes de saber se o que
percebemos é ou não uma obra, mas determinar a diferença ontologicamente relevante que
torna um uma representação e o outro uma outra coisa (ou uma representação de outra
ordem). Ora, o uso descritivo da linguagem fornece um modelo excelente com o qual
definir o estatuto da obra de arte.

A ambivalência ontológica das obras de arte (que elas fazem parte do mundo, mas que não
se resumem a ele) confere a elas a mesma consistência ontológica que as palavras. As
palavras da linguagem são veículos semânticos: são parcialmente materiais e, portanto,
externas ao mundo, mas possuem aboutness e, como tal, são parcialmente externas a ele.
Assim o são também as obras de arte. Confirma sua ambiguidade a maneira como Danto
concebe a dimensão perceptual da arte como algo que se poderia mais ou menos facilmente
confundir com outros objetos do mundo e como, por outro lado, a essência intangível de
uma obra se encontra articulada noutra dimensão. Neste sentido, um encaixe bastante
favorável do método dos indiscerníveis para com a ontologia de obras de arte à luz da
linguagem. Esta similaridade de ambivalência entre obra e palavras quanto às suas

184
ontologias, unida ao interesse filosófico pelo hiato entre representação e mundo, diz muito
do lugar de onde fala a filosofia danteana.

Ora, as palavras são internas ao mundo por serem pronunciadas em momentos específicos,
em contextos institucionais determinados, podem assumir ou a forma oral (e, portanto, dar-
se-ão através da propagação de ondas) ou a forma escrita ou gestual ou todas estas em
conjunto, dependem do objetos e condições espaço-temporais adequadas, etc. Mas tal
dependência do seu vir a ser e de sua manutenção denunciam que, enquanto veículo de
significado, de representação, centrado na função descritiva do mundo, as palavras não
podem consistir apenas da materialidade que nos é dado perceber. Se assim fosse, o
significado seria um fato do mundo (um estado de coisas, não uma proposição sobre ele), e
termos e sentenças perceptualmente indiscerníveis seriam idênticos.

Mas como a linguagem, em sua função descritiva, se divide entre aquilo que pode ser dito e
aquilo que não pode ser dito mas mostrado, Danto a compreende como representacional e,
portanto, exterior ao mundo, na medida em que ela ou é sobre fatos ou sobre a forma como
pretendemos representá-lo. ―As palavras se opõem às coisas e as representações se opõem à
realidade‖ 474 , que permanecerá – junto dos fatos – inerte às avaliações semânticas e
filosóficas. Dotando de valor semântico os sons, grafismos, gestos (e contrapartes de obras)
que percebemos, o significado linguístico (e da obra) é o valor que não se deixa resumir ao
domínio espaço-temporal do mundo.

Mais uma vez isto parece encontrar ecos em Wittgenstein. O objeto tractatiano ―constitui a
condição transcendental de possibilidade do estado de coisas‖, e ―jamais deve ser
compreendido estritamente em sentido empìrico‖ 475 , pois os ―Objetos constituem a
substância do mundo‖ 476 , isto é, a condição de inteligibilidade de qualquer proposição
acerca de estados de coisas. Assim como para Wittgenstein ―a essência do objeto não se
constitui de propriedades externas (acidentais), tais como forma e cor‖ 477, o mesmo valeria

474
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 131.
475
CONDÉ, Mauro Lúcio L. Wittgenstein: Linguagem e mundo, p. 70.
476
WITTGENSTEIN, L. Tratado, § 2.02.
477
CONDÉ, M. Opus cit., p. 71. (Assim como a característica empírica dos objetos em Wittgenstein implicou
inúmeras confusões e interpretações divergentes (Weissman, Griffin, Stenius, dentre outros), em Danto
poderíamos indagar em que medida é suficiente afastar qualquer termo referente a propriedades empíricas,

185
para Danto. Obviamente, esta discussão não se resume apenas à teoria pictórica do
Tractatus, mas aqui interessa-nos pontuar o paralelo.

Pretendemos esclarecer que a ―ontologia [de obras de arte] é coerente com a ontologia da
linguagem‖ e que ―a diferença entre realidade e arte [...] reside no fato de que a arte se
distingue da realidade da mesma maneira que a linguagem quando esta é utilizada de
maneira descritiva‖478. Nas palavras do próprio Danto:

as obras de arte são comparáveis às palavras da linguagem porque, apesar de


terem equivalentes em simples coisas reais, dizem respeito a alguma coisa (isto é,
saber a que elas dizem respeito é uma questão legítima). Como classe, as obras de
arte se opõem às coisas reais do mesmo modo que as palavras, ainda que sejam
―de todos os outros modos possìveis‖ reais 479.

Importa dizer conclusivamente que este ―sobre-o-quê‖ distintivo, afastado do sensìvel, da


dimensão empírica, possui um lastro profundo e, analogamente, cumpre a importante
função de fundar a inteligibilidade das obras, o lugar no qual se poderá identificar uma
obra. É sobre o significado que se assentará a identificação semântica proposta por Danto.

Além disso, o significado, como entidade representacional, cumpriu uma importante função
na histórica externa da arte, qual seja, ter servido como primeiro paradigma metafísico que
possibilitou à filosofia tornar-se consciente do conceito de realidade ao possibilitar colocar
a realidade como um todo entre parênteses. Ele teria evoluído de uma função pictórica, à
qual a filosofia da arte fundada sobre a mimese respondeu afirmando ―que a representação
se restringe a estruturas imitativas‖, para finalmente, com o fim da arte, a filosofia poder
responder informativamente ―que, mesmo no caso da arte mimética, o fato de ser imitativa
não quer dizer que exista necessariamente alguma coisa que lhe corresponda‖ 480 .
Correspondência, verdade, falsidade são questões epistemológicas. Enquanto característica
distintiva e não empírica, o significado se constitui como o elemento ontológico definidor
da obra.

perceptivas e similares dotar a interpretação ou a intenção do artista de caráter puramente transcendental e


representacional).
478
DANTO, A. A Transfiguração, p. 136.
479
Ibdem, p. 135.
480
Ibdem, p. 136.

186
4.3.5- A natureza ontológico-metafísica do significado
Dado os propósitos mais amplos do debate definicional no qual Danto se insere, a distinção
entre obra e contraparte material combina os conceitos filosóficos em debate com termos
técnicos e noções próprias ao mundo da arte e já consagradas neste domínio 481. Está em
jogo ser capaz de fixar a identidade da arte em meio à possibilidade difusa de objetos
concorrentes. Mas se a essência de uma obra não consiste em nenhum aspecto de sua
materialidade, qual a natureza desta essência não redutível ao material? Ora, explorar a
iterabilidade (iterability) de obras de arte é um meio tradicionalmente usual entre filósofos
analíticos que buscam determinar a identidade da arte a partir da determinação da
possibilidade ou não de sua reprodução. Tomando a obra de arte como um objeto
complexo, a cada filósofo cabe decidir teoricamente, dada a descrição de cada um dos dois
tipos de componentes, ―quais tipos de possibilidades são relevantes ou decisivas nas
discussões sobre a natureza das obras de arte‖. Assim, ―o interesse [de cada filósofo] na
apreciação estética ou artìstica‖ 482 determinará a seleção dos elementos possíveis como
sendo essenciais para fazer da arte o que ela é. A teoria da arte de Danto fornece sua versão
de como interpretar estes elementos.

481
Conforme vários artistas e docentes de teoria e história da arte já notaram, as análises propriamente críticas
de Danto acerca da obra respeitam os termos tradicionais, partindo sempre deles e, com efeito, tratando as
Brillo Box, A Fonte, etc., apropriadamente como esculturas. Esta atitude conta com a disposição prévia de
Danto, que era artista antes de se dedicar à carreira de filósofo. A pertinência terminológica, além de coerente
com a tese do recredenciamento, favoreceu sua leitura por artistas e o livrou de mal entendidos. Contudo,
Raymond Bayer faz notar que o emprego de termos técnicos na estética e na arte americana remonta pelo
menos ao século XX, citando a literatura de Hemingway e as orientações estéticas formalista, simbolista,
sociológica, experimental e científica como exemplos. Ainda segundo Bayer, já Curt John Ducasse (1881-
1969) insistia ―na distinção a fazer do que é esteticamente relevante e esteticamente irrelevante‖: para
Ducasse, ―o prazer que sentimos perante a beleza dum objeto não tem nenhuma relação com o carácter
histórico, técnico, psicológico ou filosófico desse objeto‖. Embora afirmasse o oposto de Danto, encontramos
em Ducasse um ímpeto que se aproxima bastante ao encontrado em Danto, conforme temos demonstrado.
Ainda segundo Bayer, Ducasse foi um dos primeiros filósofos acadêmicos a analisar a estética do ponto de
vista analítico, possivelmente exercendo relevante influência sobre o pensamento estético estadunidense, pois,
ao que consta de sua biografia, foi realmente pioneiro no estudo analítico da estética, lecionou em importantes
universidades americanas e presidiu diversas instituições, como a American Society for Aesthetics, The
Philosophy of Science Association, Eastern Division of the American Philosophical Association (biênio 1939-
40), além de ter sido cofundador da Association for Symbolic Logic. Cf. BAYER, Raymond. História da
estética. Tradução José Saramago. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, p. 431-2; e SHOOK, John R. (Ed). The
Dictionary of Modern American Philosophers. Vol. 1. Bristol: Thoemmes, 2005, p. 675.
482
Cf. STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY. Verbete: ‗History of the Ontology of Art‘. First
published Mon Aug 29, 2011; substantive revision Tue Jun 7, 2016. Link de acesso:
https://plato.stanford.edu/entries/art-ontology-history/#MappOntoThes

187
Neste sentido, o quadro ontológico fornecido pela filosofia do materialismo
representacional situa a arte num plano tal que as análises realizadas por Danto em A
Transfiguração do lugar-comum e outros textos salientarão o aspecto representacional.

Do ponto de vista da filosofia da arte, seu corolário é uma posição fortemente abstrata
quanto à metafísica do item ontologicamente definidor da arte. A rigor, o significado,
aquele elemento ínfimo que distingue estrutural e individualmente a arte, é de uma essência
subsistente. Tal consistência metafísica o torna cidadão de outra pátria, pois seria causa do
objeto complexo obra de arte, não o seu efeito; é intangível/indestrutível, inteligível,
externo à percepção, imaterial e abstrato. Isto se revela na terminologia adotada por Danto
ao proceder à comparação entre obra, enquanto significado, e contraparte material,
enquanto suporte ao qual se incorpora o significado. Tal distinção é apenas uma
consequência deste objeto metafísico subsistente. Bem entendido, obras de arte são
significados incorporados, mas dada a proeminência ontológica do significado, gostaríamos
de discorrer acerca da especificidade de seu caráter metafísico.

A comparação entre as obras imaginárias Primeira lei de Newton e Terceira lei de Newton,
de J e K, são bons exemplos de como ―a interpretação conforma a obra‖, é a sua causa, pois
a intenção do artista a constitui e dita quais elementos são essenciais à sua materialidade. O
suporte eventualmente material no qual o significado se incorpore 483 é a contraparte
material da obra, cujo significado determina inclusive a especificidade dos materiais. Nota-
se com isso que a percepção cumpre uma função meramente fundamental em relação ao
elemento ontologicamente relevante. A determinação tanto da essência da obra quanto de
sua identidade e interpretação se dá, digamos, ―de cima pra baixo‖, não ―de baixo pra
cima‖, conforme sugeriria uma aproximação perceptiva e epistêmica.

A aplicação da estratégia subtracionista à coleção de exemplares de uma mesma obra é um


outro bom exemplo para classificarmos a posição de Danto quanto à metafísica da obra de
arte. Segundo Danto, quando observamos as várias impressões de um mesmo poema, a
identidade desta obra poética está imune a qualquer intervenção espaço-temporal a que

483
Segundo Danto, instalações como Zone de Sensibilité Picturale Immatérielle (1959-1962), do francês Yves
Klein depõem contra qualquer generalização a respeito da necessidade da obra ser sempre instanciada num
objeto.

188
estão sujeitos seus exemplares e, portanto, o poema existe em outro lugar que não seu
exemplar físico. Neste sentido, ―O poema está para a classe de seus exemplares assim como
a forma platônica está para seus exemplos, pois Platão admitiu que a destruição dos
exemplos não afeta a forma – as formas são logicamente indestrutìveis, porque eternas‖ 484.
O significado é um eidos platônico, ontologicamente alheio ao seu suporte.

Subjaz aí também a ideia (ainda que nebulosa) segundo a qual o significado, enquanto
verdadeira essência da obra, uma vez criado, independe da existência de objetos materiais –
até mesmo porque nem toda obra consistirá ou é obrigada a possuir um suporte material
fixo. Quando finda uma performance, mantemo-nos falando a seu respeito, ainda que não
esteja atualmente disponível. Consequentemente, a audição que Roquentin faz de One of
These Days explicita que, ao confrontar a materialidade da contraparte lógica da obra ao
significado, revela-se que as ―obras de arte como tais escapam às contingências radicais da
existência e subsistem numa esfera especial e superior‖ 485. Porque materiais, os arranhões
do disco não são parte da música One of These Days. Mas não é este o caso de Hún
Jörð... (literalmente, Mãe Terra), do grupo islandês Sigur Rós, em que os vários ‗cliques‘
em loop (uma espécie de ruìdo de ―arranhão lógico‖) e o som de desaceleração rotacional
de disco de vinil ao final da música fazem parte de seu significado 486. Embora obtidos
através de meios físicos, não se tratam da manifestação sonora de um bug do reprodutor de
mídia que executa a canção, nem de qualquer resistência (como um scratch) exercida sobre
disco de vinil que por ventura esteja executando a faixa. Tais ruídos, juntos da estética
musical sombria de ―Hún Jörð...‖, cuja composição se trata de uma releitura imanentista da
oração do Pai Nosso, conferem à canção um sentido um tanto escatológico487.

Além do caráter etiológico, genético, os exemplos fornecidos por Danto confirmam a


imaterialidade do significado, seu caráter intangível. O significado de uma obra, além de
transcender à materialidade, é inerte a qualquer intervenção desta ordem. Antes, é ele quem
pode causar sobre ela determinação, conferindo a ela identidade. O reino da arte é imutável,

484
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 74.
485
Loc. Cit.
486
Broken Light II, Locatelli, de Nicolas Collins, do album "It Was A Dark And Stormy Night" (Trace
Elements Records 1992) exemplifica muitíssimo bem como um fragmento sonoro em looping exerce a função
rítmica, essencial na música.
487
Hún Jörð... é a terceira faixa do álbum intitulado Von, da banda Sigur Rós, lançado em 1997 pelos selos
One Little Indian/Smekkleysa. https://www.youtube.com/watch?v=1dE564e1uz4

189
na medida em que o significado é imune à causação material externa a si: ―posso atirar um
tomate podre no homem que representa o papel de Hamlet, mas não posso fazer o mesmo
com Hamlet‖, ―que sai ileso do ataque, porque na verdade somente os golpes de Laerte
podem atingi-lo‖488.

O paralelo entre poema-texto e forma platônica e seus exemplares identifica em Danto um


platonismo acerca da metafísica de obras de arte, segundo o qual ―uma obra é algum tipo de
entidade abstrata sem localização espaço-temporal‖489. Esta convicção parece estar afinada
com a tese segundo a qual o contraste metafísico entre a realidade e a representação (ou a
aparência, a ilusão) é o solo platônico da filosofia e, portanto, da reflexão sobre a arte.
Surge, pois, a controvérsia acerca da consistência metafísica da existência de uma obra
compreendida nestes termos. Richard Rudner objeta que se uma obra de arte for um objeto
abstrato, ―uma consequência contra-intuitiva é a negação que Beethoven tenha criado a
Quinta Sinfonia‖ – ele apenas a teria descoberto490. Andrew Kania argumenta que, se obras
de arte são objetos abstratos, é impossível afirmar que sejam também criadas, já que objetos
abstratos não podem ser criados. Para ambos, uma obra é um objeto abstrato tal como
números. Não diríamos que Danto está disposto a ceder a esta interpretação.

Lisa Giombini 491 sugere que interpretemos as obras de arte em Danto como entidades
descritas pela tese ficcionalista de Kania 492. Segundo ela, tal doutrina permitiria assumir a
distinção entre obra de arte e contraparte material 493. Embora servindo a propósitos um
tanto distintos494, seu artigo defende a ideia segundo a qual a discussão de Danto acerca da
ontologia de obras de arte é travada no solo da ficção, ou seja, não precisa se obrigar a
descrevê-las como objetos materialmente existentes: ―aceitando honestamente o
ficcionalismo, o argumento [de Margolis] segundo o qual obras de arte tiveram sua

488
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 74.
489
STANFORD. ‗History of the Ontology of Art‘, Loc. Cit.
490
RUDNER, Richard. The Ontological Status of the Esthetic Object, p. 385. In: Philosophy and
Phenomenological Research, 1950, 10 (3), p. 380–388.
491
GIOMBINI, Lisa. On Margolis Farewell Party, p. 117. In: Leitmotiv – 0/2010
http://www.ledonline.it/leitmotiv, p. 108-122. Ultimo acesso em: 5/02/17.
492
Ibdem, p. 109.
493
Ibdem, p. 108-122.
494
O artigo de Lisa Giombini, se insere no debate iniciado por Joseph Margolis e Arthur Danto, aos quais se
seguiram Serge Grigoriev e Kalle Puolakka. As inúmeras críticas direcionadas à filosofia danteana da arte
podem ser resumidas na concepção esquiva de percepção presente em Danto e que, segundo seus críticos, o
teria levado a postular uma teoria afásica, contra intuitiva e completamente insensível à arte.

190
existência suprimida não pode mais ser considerado um movimento falso na concepção da
arte de Danto‖, pois, admitindo que obras não existem de fato (materialmente), desaparece
a força motriz da crítica de Margolis e seus séquitos. Ora, num balanço global entre o que
deve ser explicado e o custo global dos postulados interpretativos, assumir como
meramente especulativa a teoria danteana é altamente oneroso e completamente evasivo.
Cremos não haver qualquer indicação de Danto neste sentido. Esta opção não é nem
forçosa. Antes, tudo o que necessitamos para concluir o oposto é por ele fornecido.
Compreender que ‗ficcional‘ é o mesmo que ‗inexistente de todas as formas‘ é uma
interpretação equivocada e viciada, se choca frontalmente com as convicções e
compromissos da filosofia danteana – além de não ser nada intuitiva. Podemos
compreender a qualidade metafísica do significado como ficcional ou abstrato de maneira
alternativa.

Em resumo, a posição danteana acerca da natureza de obras de arte proclama que:

É tecnologicamente possível construir e perceber múltiplas instâncias de qualquer


veículo/token/exemplar de uma obra, mas é lógica e metafisicamente impossível haver
múltiplas instâncias de qualquer obra, porque obras são abstrações ou types, embora uma
espécie distinta de abstracta495.

Se há alguma necessidade em determinar a correspondência metafísica entre obra e suporte


(significado e contraparte material), diríamos que tal correspondência é de natureza type-
token496.

Admitindo que tout court obras de arte existem, podemos trilhar um caminho de quatro
questões afim de determinar a natureza do significado.

(i) Esta existência é independente da intenção e de objetos espaço-temporais?


(ii) A intencionalidade é fortuita ou criativamente saturada?
(iii) Qual dependência do vir a ser e da manutenção da existência deste objeto?

495
Adaptado da seção ‗4-Mapping ontological theses‘, do referido verbete History of the Ontology of Art.
496
Embora de suma importância para propor a definição de arte como significado incorporado, o caminho de
volta do significado para o objeto que o incorpora e que dilui a indiscernibilidade não está no primeiro plano
de nossos interesses. Enquanto desejamos analisar a densidade filosófica do desincentivo à estética, é
suficiente destacar o alijamento das características sobre as quais Danto compreende estar fundada a estética.

191
(iv) Qual a modalidade de seu vir a ser e manutenção? 497

Segundo Danto, a intenção do artista é criadora, pois é ela que estabelece o significado da
obra e, neste sentido, a interpretação correta dela. Diversamente, para Meinong, por
exemplo, a existência de ficcionais (como abstracta) independem de qualquer intenção –
artistas não criam, apenas selecionam os abstracta que compõem a obra. Para Andrew
Kania, a intenção nada cria e, portanto, ficcionais possuem existência difusa.

A ―obra‖ Sem título, de J, demonstra que a ação intencional do artista é sempre saturada,
sempre instaura um objeto, não importa se a obra é boa ou má.

Com efeito, o vir a ser do significado é historicamente dependente da intenção do autor.


Contudo, uma vez criado, ele se mantém existindo independentemente de qualquer ação do
autor. Assim, tal objeto possui uma dependência histórica mas não constante. Como para
Kania esta relação sequer existe, porque tal objeto não é atual, não há manutenção.

Os exemplos de Pierre Menard e Miguel Cervantes e de dois autores que criam duas obras
indiscerníveis corroboram a afirmação segundo a qual o significado é um tipo de objeto de
dependência rígida do autor, pois mesmo que dois autores escrevessem histórias idênticas
independentemente, seriam histórias com autores diferentes – a intenção do autor conta na
identidade de cada uma das obras. O caso de Menard possui especificidades, pois não é
independente na medida em que faz parte de sua intenção reescrever Dom Quixote e, neste
caso, é necessário decidir acerca de propriedades divergentes entre personagens ficcionais.
Em todo caso, Danto conclui afirmando a identidade própria do Quixote de Menard,
portanto, a dependência do autor específico.

Embora não categoricamente, podemos sugerir que o significado é um tipo de objeto cuja
manutenção da existência parece independer em alguma medida da atividade intencional
constante e genérica de intérpretes, e ainda menos da existência constante e genérica de
quaisquer exemplares em que possam figurar.

Assim, tal como um objeto ficcional, o significado possui uma dependência historicamente
rígida da intenção do autor e do contexto artístico e histórico no qual se encontra para vir a
497
Adaptado de Amie Thomasson. Fiction and Mataphysics. Cambridge University Press, 1 edition, 2008, p.
90 ss.

192
ser. Se mantém existindo dependendo rigidamente da força representacional própria
adquirida em sua criação e da contraparte à qual incorpora (portanto, tem como causa
apenas uma intenção pretérita específica, nenhum objeto espaço-temporal específico ou
geral é causa sua). Por fim, depende genericamente da atividade intencional humana (o
mundo da arte), neste caso de maneira constante.

Não é, pois, que obras de arte não existam ou que sua característica essencial não se deixe
verificar. Apenas o significado possui uma origem não física e uma existência subsistente
também fisicamente independente.

A obra de arte é uma ―entificação‖ de uma ideia de arte. Ou, melhor dizendo, uma obra de
arte atual é a entificação de uma intenção numa atmosfera artística de um tempo. Danto
endossa a conclusão segundo a qual o significado de uma obra de arte é ontologicamente
primordial em relação a qualquer eventual suporte.

4.6- Conclusão
Nossas análises mostraram as origens sistêmicas, o contexto, os argumentos e as
conclusões de A Transfiguração do lugar-comum, cujo cerne é o método dos indiscerníveis
e o problema da indiscernibilidade em arte. Este método declara a morte da estética, que
deve ser abandonada em nome de uma filosofia da arte. A estética filosófica deve
abandonar sua pretensão em estabelecer uma essência para a arte. Neste sentido, a distinção
entre estética e filosofia da arte aponta para o abandono da pretensão descredenciadora da
estética enquanto disciplina normativa, cujas narrativas se resumem, segundo Danto, a
tentativas subsequentes de reproduzir uma lógica estrutural segunda a qual a Arte e os
artistas são destituídos da capacidade reflexiva necessária ao acontecimento artístico. A
crítica danteana à estética chama atenção para o dinamismo da relação entre Arte e
Filosofia, oferecendo oportunidade para que possamos refletir sobre as práticas e teorias
que circundam a Arte.

Cai por terra o belo como noção normativa e concepção metodológica operante. Tal
conceito não mais se aplica. A arte após o fim da arte não apenas prescinde e despreza a
qualidade estética, ela torna pueril a recusa da estética clássica em reconhecer o pluralismo
ao mostrar que o estatuto artístico independe de qualquer gratificação estética imposta

193
como norma a priori. Vimos tanto como a prática artística a partir de Duchamp refutou a
normatividade da estética quanto o tratamento analítico que Danto dá a este movimento de
recredencialização da arte. A fonte filosófica mais profunda desta recusa, podemos dizer,
consiste finalmente na inversão da polarização entre o sensível e o inteligível na obra.
Recusa-se acima de tudo a compreensão segundo a qual a arte está aprisionada e submissa
ao sensível ou ao material. É neste sentido, pois, que Danto buscou de alguma forma
construir na filosofia da arte uma equivalência do ―lema da filosofia da ciência que diz que
não há observações sem teorias‖498. Este é um mote recorrente na filosofia da arte danteana.
Em O mundo da arte, diz-se que ―Ver algo como arte requer algo que o olho não pode
repudiar – uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento da história da arte: um
mundo da arte‖ 499 ; e que ―É o papel das teorias artìsticas, hoje como sempre, tornar o
mundo da arte e a própria arte possìveis‖500.

Os indiscerníveis em arte são a prova final de que o fator realmente decisivo para a Arte a
partir de Duchamp e Warhol é sua conceptualidade. Danto propõe que o desafio da filosofia
da arte é oferecer a compreensão correta do papel instaurador das teorias para a arte. A
estética filosófica, porquanto centrada em uma noção perceptual, está sistematicamente
impossibilitada de travar batalha no campo da ontologia. Toda a filosofia da arte de Danto
procurou romper com a estética retiniana e com qualquer orientação olfativa da arte,
inclusive as abordagens epistemológicas da filosofia analítica. Sugerimos que o debate
metodológico no qual se insere A Transfiguração do Lugar-comum tem na figura de
Wittgenstein um generative thinker decisivo tanto para o círculo de interlocutores próximos
a Danto quanto para o próprio Arthur Danto. Além de alguns paralelos interessantes quanto
à terminologia e compromissos teóricos, observamos que a noção de jogos de linguagem é
uma das maiores contribuições de Wittgenstein. A pretensão de fornecer um espelhamento
perfeito entre linguagem e mundo no Tractatus é também bastante influente, inclusive para
Danto, que a toma como modelo de filosofia e de projeto interpretativo-filosófico nas
Transfigurações. A intenção genérica de Wittgenstein de delimitar a fronteira entre a
linguagem e o mundo repercute em Danto como o projeto de estabelecer

498
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 174.
499
DANTO, A. O mundo da arte, p. 20.
500
Ibdem, p. 22.

194
transcendentalmente o limite entre as teorias ontologicamente decisivas para arte e a
percepção de objetos artísticos.

Muitos desafios e interdições se impuseram no caminho deste projeto conceitual. Morris


Weitz, legítimo representante da crítica wittgensteiniana ao essencialismo, aplica a noção
de jogos de linguagem exemplarmente, concluindo que nenhuma definição é possível, já
que ao ―olharmos e vermos‖ se a arte (atual e passada) manifesta-se no sentido de
confirmar os traços necessários e suficientes estipulados pela teorização filosófica,
confirmamos apenas a inaptidão preditiva das teorias estéticas. Noutro ângulo, William
Kennick reafirma que a estética filosófica não é capaz de oferecer qualquer teoria capaz de
nos tornar epistemologicamente capacitados a reconhecer obras de arte. Danto ultrapassa
estas objeções, em parte, assumindo que são verdadeiras – embora parciais. O escopo da
filosofia da arte danteana é fornecer uma definição essencialista do conceito de arte
fundada sobre uma ontologia da obra de arte. Neste sentido, admitir que a estética é inapta
para definir a arte é apenas uma face do problema e não oferece a Danto qualquer ônus.
Conforme foi mostrado, a discussão não passa pelo terreno da epistemologia. Qualquer
definição da arte deveria abdicar de qualquer verificacionismo, fugindo da tentação de
tomar a identificação sensível de obras atuais como a corte empírica da teoria. Assim como
não é possível definir jogo por observação, a ontologia e a definição de obras de arte devem
perseguir as regras travadas, estabelecidas e praticadas no interior deste mundo. Aí a
importância também da análise danteana da relação entre Arte e vida.

Concluímos, pois, retomando a ideia segundo a qual uma ontologia essencialista da


linguagem serviu como modelo para a teoria transfigurativa da arte pretendida por Danto.
Este modelo concentra seu foco nas regras, não nos objetos, permitindo que o campo da
percepção (tido por Danto como problemática) seja posto de fora da discussão, mesmo que
os passos seguintes rumo à ontologia de obras de arte pressuponham uma posição definida
e tacitamente operante acerca da relação entre percepção e conceito. Os indiscerníveis –
enquanto problema e método – seriam impossíveis sem tal posição externalista. Neste
sentido, todo nosso esforço se deu no sentido de apresentar e analisar alguns dos elementos
mais decisivos para a interdição da estética como disciplina normativa ou narrativa da arte,

195
reunidos sob a figura dos indiscerníveis, conforme indicação do próprio Danto. O método
dos indiscerníveis é comprometido com um projeto essencialista hostil à estética.

Assim, seria impossível à estética enquanto reflexão sobre o belo e a arte permanecer de pé
frente às exigências de um projeto de teoria marcado pelo abstrato, pela negação de tudo o
que é sensorial, do registro do perceptivo, das reações emocionais, do pathos. Os
experimentos mentais operam sempre no sentido de estabelecer a divisa entre estes
domínios, introduzindo inclusive cláusulas ceteris paribus que nos direcionam para as
condições de possibilidade da arte em casos de indeterminação da identidade de objetos
equivalentes perceptualmente. Definir que obras são significados incorporados ou que
possuem um conjunto de condições necessárias e suficientes é o ápice deste método; mas é,
por outro lado, o declínio da estética filosófica. Qualquer método estético fundado sobre o
perceptual é conceitualmente cego e metodologicamente insuficiente.

Como vimos, parece justificado afirmar que a estética não disponha de meios próprios
sobre os quais poderia fundar bases sólidas. Seja do ponto de vista sistemático, meta-
reflexivo, seja do ponto de vista dos compromissos específicos da filosofia da arte
danteana, a estética está desamparada.

Mas isso significa que base alguma poderia servir à refundação da estética, mesmo alheias?
Ou, desviando de uma heteronomia disciplinar, estaria mesmo vedada uma revisão radical
da concepção fundante da estética a fim de torná-la operante novamente desde a base?
Talvez haja na fórmula do ver como a intuição para uma estética em nova chave.

196
CAPÍTULO 5

O LUGAR DA ESTÉTICA NA TEORIA

A lei seca da arte é esta: 'Ne quid nimis', nada além do necessário.
Tudo o que é supérfluo, tudo aquilo que podemos suprimir
sem alterar a essência é contrário à existência da beleza.
(José Ortega y Gasset)

prazer
da pura percepção
os sentidos
sejam a crítica
da razão
(Paulo Leminski)

5.1- Introdução
Em vista do que até aqui apresentamos, era de se esperar que a estética não figurasse em
nenhuma posição de destaque nas frentes filosóficas de análise da arte. Esperamos ter
ficado claro não apenas a aversão à estética, mas principalmente as razões mais
fundamentais em função das quais uma certa compreensão da estética já estaria desde o
início afastada. Na filosofia da arte de Danto, a estética é sistematicamente alijada do
tradicional lugar de destaque.

Após o fim da arte é a obra que consagrou a filosofia da história da arte de Danto e, nela,
encontramos resoluções muito próximas do espírito de desincentivo à estética que

197
identificamos em A Transfiguração do lugar-comum, embora tais resoluções possuam
razões ligeiramente distintas naquela obra.

A estética sofre um verdadeiro desincentivo, pois se ―A estética não faz parte da definição
da arte‖ 501 , e ―a estética não é a questão da arte, qual seria o ponto da estética?‖ 502 .
Contudo, em seus últimos escritos, diz-se que ―enquanto houver diferenças visìveis na
aparência das coisas, a estética é inevitável‖503. Porquanto predomina em Danto uma forte
tendência em marcar o aspecto conceitual, teórico, abstrato e analìtico do conceito de ‗arte‘,
esta declaração soa surpreendente na medida em que expressa um externalismo
enfraquecido e a concessão de uma maior relevância quanto à função da estética. Tal
declaração ainda vincula a estética a algo de perceptivo e sensorial, mas concede que a
dimensão estética permaneça, em alguma medida, importante para a arte e, neste sentido, os
termos perceptivos e experienciais pertinentes à estética tornariam esta disciplina melhor
qualificada para o tratamento da dimensão equivalente na arte.

Tomando a questão ontológica como a questão autêntica da arte, qualquer aspecto


perceptivo ou sensorial é apenas uma manifestação fugidia, secundária, externa e por vezes
obscura de algo mais essencial que explica e subjaz ao perceptivo num universo de
possibilidades infindáveis de manifestação artística. Toda a filosofia da arte de Danto
analisada por nós pode ser compreendida como um esforço para retirar a estética do
protagonismo filosófico-interpretativo acerca da arte e reajustá-la à realidade do mundo da
arte atual, no qual a atualização final do conceito de arte não apenas desobrigou que as
obras tenham de acatar a qualquer imperativo estético pré-estabelecido, mas também
removeu de sua essência qualquer compreensão sensorial. Devido à autonomização
filosoficamente mais autêntica que a arte poderia realizar (do ponto de vista danteano), a
estética enquanto disciplina normativa acerca do estatuto filosófico e da narratividade
sensível de obras de arte estaria finalmente acabada. A arte sabe o que é e o que pode
querer retratar. A autoconsciência – expressa em obras na forma dos indiscerníveis – é a
libertação final alcançada pela arte.

501
DANTO, Arthur. The Future of Aesthetics, p. 112.
502
Ibdem, p. 113.
503
Ibdem, p. 104.

198
Mas desde que concedemos que o pluralismo seja uma consequência do fim da arte – e
esta, uma consequência da conceptualidade da arte – , por que não poderíamos
compreender desde o inìcio que ―a estética realmente é um significado artìstico‖ 504 e,
portanto, a arte pode ser também estética (embora não no sentido puramente clássico)? Não
seria mais convincente aceitarmos o caráter não-normativo do pluralismo pós-histórico se
ele ampliasse os horizontes de legitimidade da arte além dos crivos da arte conceitual? Isto
nos abriria um campo investigativo totalmente novo.

5.2- Balanço da estética no Opus danteano - inestética


Ora, postos em perspectiva os escritos de Arthur Danto sobre arte, pode-se observar uma
oscilação no estatuto da estética. O contexto em que se dá o afastamento da estética
resume-se basicamente a dois: quanto ao projeto ontológico-definicional da arte e quanto ao
projeto de uma crítica da arte após o fim da arte.

São características dos ―escritos anti-estéticos‖505 de Danto ideias como estas:

não se pode recorrer a considerações estéticas para chegar a uma definição de


arte, pois precisamos de uma definição prévia para identificar as reações estéticas
apropriadas a obras de arte em contraste com meras coisas reais 506.

(...) a reação estética pressupõe a distinção e, portanto, não pode simplesmente ser
incluída na definição de arte507.

Em Após o Fim da Arte encontramos posição semelhante:

Mas a teoria estética clássica não poderia ser invocada com uma ―arte após o fim
da arte‖ precisamente porque ela parecia desprezar completamente a qualidade
estética: foi precisamente nos termos da estética clássica que a recusa em chama-
la arte se fundou508.

Estas passagens mostram que o que está em jogo é precisamente o estabelecimento de uma
ontologia e definição da arte. Este projeto tem a pretensão de ser o encaixe filosófico
perfeito ao momento e significado do mundo da arte da época. Ele pretende ser cogente

504
DANTO, A. The Future of Aesthetics, p. 113.
505
Sobre a distinção pedagógica do opus entre escritos anti-estéticos, brandos ou de transição e escritos
propositivos Cf. seção 3.1 do capítulo três.
506
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 151.
507
Ibdem, p. 175.
508
DANTO, A. Após o fim da arte, p. 95.

199
teórico e, digamos, institucionalmente. Seria incoerente, contraproducente e até mesmo
antipático que Danto, no contexto filosófico, crítico e artístico que frequentava, se
esforçasse por manter de pé a estética formalista/clássica – embora haja elementos que, se
desenvolvidos, possibilitariam realocar os desígnios da estética filosófica como um todo.

Embora os escritos dos últimos vinte anos da carreira filosófica de Danto desenvolvam
conceitos da estética e questões relativas à relação destes conceitos com a ontologia de
obras de arte, a presença de juízos ambíguos acerca do estatuto da estética, e certo aceno à
possibilidade de reassentar a estética sobre novas bases, remonta pelo menos à
Transfiguração, obra na qual Danto sopesa e admite ―que há uma estética especìfica para as
obras de arte e mesmo uma linguagem especial para apreciá-las‖ e que ―ambas parecem
estar envolvidas no conceito de arte‖509, embora não de maneira essencial – entendendo
com isso que a questão do autoconhecimento é ainda a questão motriz da arte e que,
dirimindo a estética de seu programa definicional, ela pode ter um papel a desempenhar.
Ora, se a arte após o fim da arte viceja no recém-conquistado e inalterável campo do
pluralismo, a completa articulação deste território histórico-conceitual do mundo da arte
contemporânea carece de uma conexão mais detalhada dos conceitos de arte (como
significado incorporado ou, mais recentemente, como sonho acordado) e de estética.

Neste sentido, embora obras-chave do primeiro terço do opus danteano já possuam germes
importantes desta virada à possibilidade da estética, uma articulação exaustiva daquilo que
podemos chamar de estética revisionista ou estética do significado é cronológica e
sistematicamente inviável até pelo menos a última década do século vinte, quando Danto
passou a tratar de maneira mais detida o estatuto da estética e de sua relação com a
ontologia das obras de arte. Nesta fase, o estético é compreendido ainda como algo
essencialmente descentralizado e não universal, mas reconhece-se, por outro lado, o seu
aspecto retórico, isto é, o papel mediador de qualidades estéticas para a apresentação do
significado de uma obra; a relevância singular da estética se verifica tanto em algumas
expressões artísticas particulares quanto no jogo artístico que algumas qualidades estéticas
desempenham ao ajudar a compor o significado global de algumas obras de arte
contemporânea. No artigo The Future of Aesthetics, Danto pondera que ―a redescoberta

509
Loc. Cit.

200
da estética deve passar pela redescoberta do papel desempenhado pelas qualidades estéticas
em apresentar significados por meios visuais. Ontologicamente, a estética não é essencial à
arte – mas retoricamente ela é central‖510. Ainda assim – e de maneira mais forte – , afirma-
se: ―Não quero negar que possa haver arte cujo ponto central é estético‖ e que pode
―exist[ir] sem dúvida um componente estético em muitas obras tradicionais e mesmo na
arte contemporânea511.

Nestes textos ―de transição‖ identifica-se um tom mais brando quanto à negação da estética,
bem como uma resiliência maior ao tratar temas caros à sua tradição, embora eles estejam
sempre em cotejamento aos conceitos e agenda do próprio Danto. Este intervalo no opus é
uma espécie de desenvolvimento da posição consolidada ao final de sua carreira,
transitando da completa negação da relevância da estética no que diz respeito à retórica da
sensibilidade e da viabilidade do projeto definicional que constituiu sua agenda
descredenciadora na era da arte, para admitir ao final que seu ―esforço foi para romper com
a estética da forma de Kant-Greenberg, e, no seu lugar, desenvolver uma estética do
significado‖512.

Inclusive, em Andy Warhol: Arthur Danto desenvolve-se uma estética dos readymades, à
qual – segundo Danto – as Brillo Box e outras obras do estilo devem seu sucesso filosófico,
de público e de crítica. Esta estética pop consistiria na praticidade interpretativa típica de
isotipos, na uniformidade visual, na previsibilidade, na repetição, na vulgaridade das cores,
na igualdade política, na captura do patético e do pitoresco humano e no efeito de
banalização que exercem sobre o expectador, que se sente representado na obra, ‗porque ela
diz do que nós somos‘ e, assim, transfigura o banal peculiar ao seu tempo na pura
espiritualidade. Segundo Danto, a estética pop

remet[e] aos ‗pequenos contratempos humanos‘[...]. Falam de barrigas flácidas,


de dores nas pernas, de cicatrizes na pele, de cabelos crespos que se quer alisar ou
de cabelos lisos que se quer ondular, e coisas semelhantes. Para tudo isso os
anúncios [apropriados como arte] oferecem uma solução 513.

510
DANTO, A. The Future of Aesthetics, p. 116.
511
Ibdem, p. 113.
512
DANTO, A. Embodied Meanings, Isotypes, and Aesthetical Ideas, p. 123.
513
DANTO, A. Andy Warhol, p. 44.

201
―O mundo projetado pelos expressionistas abstratos era o mundo dos que tinham feito suas
pinturas‖ 514 , este era o mundo da linguagem estética dos expressionistas abstratos. A
estética pop, por outro lado, ―projeta uma imagem da condição humana‖: ―Todos
entendiam as imagens porque elas projetavam o mundo em que todos habitavam‖ 515. Ora, é
surpreendente que possamos encontrar declarações como estas em Danto. Ainda que
tímidas, elas destoam bastante da leitura que tradicionalmente é feita da posição do filósofo
em relação ao tema da estética.

Posto em perspectiva, o estatuto da estética sob o crivo da teoria oscila positivamente na


medida em que se aproximam os últimos escritos. Mas o que explica esta oscilação? E o
que poderia defender que tal oscilação tenha ocorrido apenas de forma tardia? Não
pretendemos afirmar de maneira categórica que Danto mudou radicalmente sua filosofia,
mas devemos notar que algo no interior dela mudou de maneira a tornar possível acolher a
estética. Supomos que Danto abriu mão de algo e, contudo, ainda que não possamos
afirmar a existência de uma estética em Danto em sentido forte, a reflexão deste filósofo
acerca das relações entre o significado artístico e a estética fornece elementos interessantes
para a reflexão acerca do papel e da relevância da estética como um todo.

Vimos que a estética, interpelada sob o ponto de vista dos indiscerníveis e toda sua carga
filosófica, jaz desacreditada no baú das tentativas malogradas de teorizar a arte. Neste
sentido, o compromisso essencialista do método danteano, as teorias que acionam, o estilo
argumentativo e as conclusões fortemente abstratas a que chegam, caracterizam bem os
escritos inestéticos. Dispensável dizer que tais conclusões mereçam fundamentos vindos da
história da arte – também por isso Danto sempre recheia de exemplos suas análises. A
ontologia da arte significou o fim do projeto definicional da estética, assim como o fim da
arte significou o fim da estética como narrativa normativa. Assim, podemos dizer que é
exatamente a influência determinante do método dos indiscerníveis o fator mais decisivo
para o desincentivo à estética que, relativamente afirmada ao fim de sua carreira, aponta
para os indiscerníveis como sendo o elemento o qual Danto teria cedido. A paulatina saída
de cena deste método não é o único termômetro que possuímos para detectar a oscilação
quanto ao estatuto da estética. Como vimos, dispomos de um forte precedente teórico para
514
Loc. Cit.
515
Loc. Cit.

202
propor tal afirmação 516 . Entretanto, o que teria motivado o abandono do método dos
indiscerníveis?

É a partir desta concessão que se articulam os demais fatores que contribuem para a
reavaliação do lugar da estética na teoria da arte danteana em sua última versão. Ora,
conforme notou Carroll, isso se deveu a uma presença mais expressiva de Hegel 517, que
teria levado Danto a adotar um espírito argumentativo hegeliano quanto à filosofia da
história da arte518. Acompanhando o percurso do opus danteano, cujos escritos passaram a
se associar mais estreitamente à sua carreira de crìtico de arte, é ―natural‖ que Danto
buscasse desenvolver o contextualismo e pluralismo que fundaram sua perspectiva de
crítica da arte a partir de uma filosofia que se caracteriza pela forte tese historicista. A
julgar pelo meio no qual Danto buscara se estabelecer como interlocutor e arauto do novo
paradigma que proclamara (o pluralismo pós-utópico da arte), a estética hegeliana lhe
pareceu a melhor filosofia para trazer à baila temas como o pluralismo, a crítica não
normativa, o contextualismo, o descredenciamento, a leitura retrospectiva da história da
arte autocredenciada, a relação arte, cultura e política, etc.

Assim, destacamos dois fatores para a oscilação quanto ao estatuto da estética: um


elemento relativo ao desdobramento de sua teoria e outro elemento de ordem
―institucional‖ (isto é, relativo à sua prática engajada como crìtico de arte):

1. Do ponto de vista do desdobramento de sua teoria, destaca-se um crescimento


inversamente proporcional do historicismo a custo do enfraquecimento (ou em
detrimento) do método dos indiscerníveis.
 Com efeito, estejam os fatores históricos desempenhando um papel na definição
da arte ou apenas efetivando o desenvolvimento de uma filosofia da história da
arte e de uma crítica da arte, esta movimentação revela uma contextualização da
filosofia da arte de Danto.

516
Relembrando: ―Algumas vezes disse que se os objetos indiscernìveis eram perceptivelmente iguais, eles
devem ser esteticamente parecidos também, mas eu já não acredito que isso seja verdade, principalmente por
causa de ter trazido uma melhor filosofia para comportar o assunto‖. Cf. DANTO, A. The Future of
Aesthetics, p. 110.
517
CARROLL, N. Danto‟s New Definition of Art and The Problem of Art Theories, p. 388.
518
CARROLL, N. Essence, Expression, and History, p. 96.

203
2. Quanto ao engajamento nas instituições museológicas, de periódicos influentes na
cultura e no mundo da arte, destaca-se o comprometimento com o pluralismo no
campo da crítica de arte.
 Com efeito, obtendo sucesso como filósofo da arte, Arthur Danto foi convidado
para atuar como crìtico e, de 1989 a 2009, se engajou nesta ―segunda carreira‖
com todas as suas energias de ex-artista e de filósofo da arte 519 . Escreveu
periodicamente durante vinte anos para o The Nation, foi curador de diversas
exposições520, ministrou diversas palestras, conferências, seminários, tanto para
filósofos quanto para artistas, críticos e o mundo da arte em geral (seis dos onze
capítulos de Após o fim da arte se originaram da 44ª Mellon Lectures in Fine
Arts, de 1995). Coube à filosofia da arte de Danto ultrapassar o trabalho
conceitual e ir ao encontro da realização de uma agenda crítica atenta às
variadas possibilidades de expressão artística, nos mais variados meios e
modalidades, capaz de travar um debate em um contexto de diversidade
cultural, política, socioeconômica e de perspectivas.

Uma vez que a agenda anti-retiniana e essencialista teria cedido lugar paulatinamente à
tarefa contextualista com fortes tendências a considerar a leitura das especificidades do
mundo da vida, parece razoável concluirmos que é este o quadro geral da reavaliação da
relevância da estética sob o ponto de vista de importância retórica e de seu papel relativo.
Ademais, o aceno esperançoso ao desenvolvimento de uma estética do significado, cujo
desdobramento final consagraria a experiência de sonhos acordados (awekeful dreams),
privilegiaria uma teoria mais adequadamente alinhada ao estatuto e às conquistas recentes
encampadas na história da arte.

Inicialmente irrelevante porque destituída de qualquer fator ontologicamente definidor, a


estética, após a revisão, permaneceria irrelevante neste sentido e estaria colocada numa
condição cuja relativa importância somente é obtida porque suas bases estariam fundadas
sobre conceitos alheios ao seu domìnio especìfico. Ora, a ideia segundo a qual ―a arte,
considerada em sua mais elevada vocação, é e permanece para nós uma coisa do

519
DANTO, A. Intelectual autobiography, p. 55. In: AUXIER, Randall E.; HAHN, Lewis Edwin. The
Philosophy of Arthur C. Danto. Chicago, Illinois, Open Court, 2013, p. 1-70.
520
Dentre as quais, a mais famosa provavelmente é The Art of 9/11.

204
passado‖521, somada ao caráter sensorial da estética, indica os caminhos da solução desta
questão. Todavia, a tarefa de alinhar corretamente a função epistemológico-cognitiva da
estética ao solo ontológico e histórico da arte é uma tarefa distinta daquela.

5.2.1- Pluralismo pós-histórico, mundo da vida, era da estética


De maneira um tanto quanto presunçosa, Danto afirma que ―A dificuldade com as grandes
figuras do cânone da estética, de Platão a Heidegger, não consiste em que eles tenham sido
essencialistas, mas, antes, em que entenderam a essência erradamente‖ 522. Esta essência,
inicialmente identificada com o conjunto de condições de identificação, que depois foram
compreendidas como conceitos hegelianos de conteúdo e meios de apresentação, ―são
el[a]s própri[a]s conceitos históricos, embora a faculdade da mente a qual respondem não
seja a percepção, mas [...] o juìzo‖ 523 . Reconhecendo que a ―história pertence mais à
extensão do que à intenção do conceito de arte‖, ―a extensão do termo ‗obra de arte‘
encontra-se agora inteiramente aberta‖ e vivemos, desde o fim da arte, ―em um tempo em
que tudo é possìvel para os artistas‖524. Nas palavras de Carroll, ―A filosofia da arte de
Danto supostamente garante que não haverá contraexemplos à sua filosofia da arte
provenientes do futuro da arte‖525. Foi preciso que a arte chegasse a seu fim, ou que ela
fosse a expressão de sua conceptualidade mais definitiva, para que pudesse ter início uma
filosofia da arte verdadeiramente essencialista. Assim, a filosofia da arte de Danto dedicada
à historicidade da arte é uma outra versão – muito próxima do espírito daquela filosofia
baseada na indiscernibilidade – de crítica à estética.

Esse fim da arte inaugurou a era do pluralismo ontológico, um pluralismo do conceito de


arte. Se, do ponto de vista do conceito extensionalmente compartilhado pela classe, a arte
de Warhol e Duchamp repercutiu radicalmente em tal concepção de forma a implicar que,
sendo aceitos como arte os seus readymades, ―não mais se poderia dizer quais eram as

521
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de estética I. 2 ed. São Paulo: Edusp, 2001, p. 35. Apud
DANTO, A. Após o fim da arte, p. 164.
522
Ibdem, p. 214.
523
Ibdem, p. 217.
524
Ibdem, p. 219.
525
CARROLL, N. Essence, Expression, and History, p. 96.

205
obras de arte pela observação, nem, consequentemente, se poderia chegar a uma definição
pela indução sobre casos‖; do ponto de vista da relação do conceito de arte com seu
progresso histórico, tal evento significou um marco de descontinuidade na era da fruição
imediata, do bom gosto, da satisfação estética, da arte do gênio, da aura, pois o que agora
nos é solicitado é o juízo acerca da relação entre o significado da obra e sua incorporação.
Assim, fim da arte é indeterminação de qualquer item perceptivo como norma para
produção, interpretação ou apreciação da arte. ―Após Duchamp, poder-se-ia em princípio
fazer arte de qualquer coisa. A era da terebentina e do gosto tinha chegado ao fim. A era de
encontrar uma definição de arte para substituir a baseada no prazer estético tinha
começado‖526. Do ponto de vista da normatividade narrativa da estética que vigorava ―na
arte na era da arte‖, em um perìodo pós-histórico os artistas gozam de total liberdade
criativa, técnica, temática e de materiais.

Em O Mundo da Arte, Danto afirmou categoricamente que ―o pós-impressionismo


celebrou uma vitória na ontologia‖527. Já neste artigo foi dito que ―ver qualquer coisa como
arte requer alguma coisa que o olho não pode discernir‖ 528 . Assim, tudo é possível na
medida em que restrições a priori sobre o modo como um trabalho artístico deveria ser
apresentado se tornaram histórica e ontologicamente caducas. Neste sentido, pretendemos
em nosso trabalho dar ênfase ao aspecto teórico ligado à ontologia, ainda que o aspecto
histórico da arte tenha recebido grande atenção de Danto pelo menos desde The
Philosophical Disenfranchisement of Art (1986) e, finalmente, em After the End of Art
(1997). Aqui, assumimos programaticamente a tese, pressuposta por Danto, de que a
história da arte se dá em um sentido progressivo e cumulativo rumo à autoconsciência por
meio da auto-possessão de sua identidade. Como vimos, a proposição de obras
indiscerníveis de coisas reais é a expressão adequada da autenticidade filosófica da arte
que, autocredenciada, demonstra ter chegado ao seu fim. Seguimos parcialmente a sugestão
de Carroll, para quem ―A força e fraqueza da filosofia da arte de Danto deve ser acessada
por sua própria conta, separadamente da filosofia da história da arte‖ 529. Interessa-nos a
dupla disjunção – conceitual e histórica – operada no mundo da arte, em sua teoria, crítica e

526
DANTO, Arthur. Marcel Duchamp e o fim do gosto, pág. 24.
527
DANTO, Arthur. O Mundo da Arte, p. 16.
528
Ibdem, p. 20.
529
CARROLL, N. Essence, Expression, and History, p. 99.

206
história. A arte liberta dos ditames perceptivos significa, para o mundo da arte enquanto
atmosfera teórica que envolve obras de arte e sua natureza, um crivo nas ―leis‖ que
governam criação, fruição, apreciação e circulação da arte, isto é, uma descontinuidade e
uma renovação deste ambiente teórico. Quanto à acumulação teórica no tempo, o fim da
história da arte significa o fim de narrativas cujas sentenças ditavam a regra de vigência da
arte e também o rumo de seu progresso.

Para mim, foi graças à pop que a arte mostrou qual era a questão propriamente
filosófica sobre si mesma [a identidade da arte posta em indiscerníveis]. Esta
questão jamais poderia se impor enquanto alguém pudesse ensinar o sentido de
―arte‖ por meio de exemplos, ou enquanto a distinção entre arte e realidade
parecesse perceptual [...]530.

Tendo a arte chegado ao seu fim, ―todas as formas [de arte do passado] são nossas‖ 531.
―Uma coisa não é mais certa do que outra. Não há mais uma direção única. Na verdade, não
há mais direção‖532. Tendo a mosca conseguido escapar do descredenciamento e sair da
garrafa, caberia a ela ―saber aonde ir e o que fazer, contanto que isso a mantivesse fora das
garrafas do futuro‖533. A estética está desincentivada a retomar qualquer plano normativo.
O fim da arte é o inìcio de uma ―notável disjunção da atividade artìstica transversalmente a
todo setor‖, ―compreendida em termos da disjunção aberta de meios‖ e de motivações
artìsticas, ―internalizada nas obras de arte‖ e que ―bloquearam a possibilidade de uma
narrativa desenvolvida e progressiva mais aprofundada do tipo exemplificado por Vasari e
Greenberg‖534. Propõe-se que nada possa ser mais libertador do que conhecer claramente
sua identidade. ―A era pós-narrativa proporciona um imenso menu de escolhas artísticas, e
em sentido algum impede que um artista faça todas as escolhas que quiser‖ 535. Liberada das
narrativas estéticas, a arte pluralista pode ser o que quiser. Tudo pode ser arte e nenhuma
arte precisa ser estética.

Contudo, ―O que não é possìvel é estabelecer uma relação recìproca com estas obras do
mesmo modo como fizeram aqueles em cujas formas de vida essas obras tiveram o papel

530
DANTO, A. Após o fim da arte, p. 138.
531
Ibdem, p. 220.
532
Ibdem, p. 139.
533
Ibdem, p. 145.
534
Ibdem, p. 163.
535
Ibdem, p. 165.

207
que tiveram‖536. Não podemos viver uma forma de vida que não é a nossa e, neste sentido,
o que não podemos é estabelecer uma relação com a arte pertencente a outras formas de
vida a partir de uma maneira historicamente consciente que não seja a nossa. Tudo o que
podemos saber (ou até mesmo simular) do barroco ou de qualquer outro período e de sua
estética se dará em termos de passados futuros. Não obstante, tudo o que podemos imaginar
dos tempos futuros respondem aos limites cognitivos e racionais de nossa imaginação, isto
é, ―representar[ão] a visão do futuro [a partir] do nosso próprio tempo‖537. Retomando uma
distinção de A Transfiguração do lugar-comum, a arte do passado permanece para nós
como opaca, embora nos seja transparente a liberdade sem precedentes propiciada pelo
período pós-histórico.

Apenas a estética não teria se libertado com o advento deste período. As modalidades da
história, em seus aspectos de possibilidades e impossibilidades, a descredenciam
duplamente. Somente nos textos da última década Danto acenará para uma liberdade
também para a estética e não apenas da arte libertando-se dela.

Já em A Transfiguração do lugar-comum Danto admitia que ―o ‗objeto estético‘ não é uma


entidade platônica eternamente fixa, uma incessante felicidade além do tempo, do espaço e
da história, eternamente presente para a deslumbrada apreciação dos especialistas‖ 538 .
Apreciar é exercitar uma função interpretativa cognitiva de saber que X é uma obra e
possuir informações sobre ela. Mas, na medida em que a estética é compreendida como um
discurso típico de um período artístico passado,

também que as qualidades estéticas da obra são função de sua própria identidade
histórica, e talvez seja necessário rever completamente a avaliação de uma obra à
luz da informações obtidas sobre ela: é possível até mesmo que a obra não seja o
que se pensava dela a partir de informações históricas erradas 539.

Não apenas a história (um mundo da vida determinado), enquanto sistema referencial,
condiciona as reações estéticas possìveis ao tornar ―quase impossìvel imaginar qual seria a
reação das pessoas ao mesmo objeto em outro tempo e em outro lugar‖540. Ela condiciona
ontologicamente obras e coisas idênticas ao impor que elas ―tem de ser distintas, uma vez

536
Ibdem, p. 224.
537
Ibdem, p. 224.
538
DANTO, A. A transfiguração do lugar-comum, p. 172.
539
Ibdem, p. 172.
540
Ibdem, 174.

208
que não podem se referir às mesmas questões‖ e ao mesmo tempo e contexto 541. A visão é
histórica, ―porque as representações visuais pertencem a formas de vida elas próprias
relacionadas historicamente uma à outra‖ 542. Mesmo a ―percepção artìstica é totalmente
histórica. E [...] a beleza artìstica é também histórica‖ 543. Parece que isto explica Danto ter
passado a analisar o sistema de valores historicamente condicionado que explica e está na
base do design das caixas Brillo, de James Harvey (a exemplo do artigo A Future for
Aesthetics). Também fica claro porque o conceito de matriz de estilo proposto em O
Mundo da Arte é um artifício enrijecidor e igualmente anistórico. As diferenças de
modalidades quanto às impossibilidades do futuro e as impossibilidades do passado são
assimétricas e estruturam a historicidade do ser humano. Esta estrutura é profundamente
vivencial em Danto e se efetiva no compartilhamento de uma forma de vida, que tem de ser
socialmente compartilhada, cultural e historicamente transparente enquanto vivenciada.

Ora, se ―imaginar uma obra de arte é imaginar uma forma de vida na qual ela desempenha
um papel‖, a ontologia deste exercìcio de experimento mental acerca de um tempo histórico
da arte revela que ―A abordagem de obras de arte segundo aspectos puramente estéticos foi
pensada, sobretudo pelos modernistas, como um meio de despi-las do enraizamento em
formas de vida e tratá-las por si mesmas‖544. A própria ideia segundo a qual a arte deve
acatar a normas estéticas e/ou buscar ser fonte de experiências estéticas; ou o paradigma
segundo o qual a filosofia da arte é definida como uma espécie de análise estética são
compreensões historicamente condicionadas, narrativas lidas sob a ótica a-histórica que,
afinal, comprometem a compreensão da arte mais recente. Assim, a forma de vida em que
―obras de arte são feitas por suas qualidades estéticas‖ caducou, revela-se que ―a beleza
artìstica desempenh[ou] um papel‖ historicamente contingente e, talvez, ideologicamente
determinado.

Em qual aspecto algo como a beleza artística desempenharia um papel relevante na forma
de vida plural da arte pós-histórica? Chama atenção a dualidade do estatuto da estética
quanto aos efeitos pluralistas e históricos do fim da arte: ―a resposta à questão de saber se a

541
Loc. Cit.
542
DANTO, A. Após o fim da arte, p. 222.
543
Ibdem, p. 183.
544
Ibdem, p. 225.

209
estética sobrevive na era do pluralismo é sim e não‖. Se compreendemos a experiência
estética como o exercìcio de um gosto experimentado, a resposta é não. Mas ―é sim se
estamos pensando na maneira como qualidades estéticas diferentes, muitas delas
contraditórias com o gosto como interpretado por Kant e Greenberg, são internas ao
significado das obras de arte‖ 545 . Esta avaliação avança muito além do contexto do
desincentivo histórico da estética e partilha da ideia (presente, como indicamos, em A
Transfiguração do lugar-comum) segundo a qual o momento pós-histórico da arte produz
uma descoberta de pluralidades de qualidades estéticas para além do ‗belo‘. Se a arte se
autonomizou da obrigatoriedade descredencializadora de ser bela inserindo na obra a
autoconsciência de sua natureza através do domínio de seu conceito e do significado da
obra, então qualquer tentativa futura de reabilitação da estética a partir deste diagnóstico
deverá combater a hierarquização de predicados estéticos e a interpretação destes como
normas da ação criativa ou da crítica de arte.

Uma vez estabelecido o significado da obra como a qualidade artística à qual a distinção
entre experiências estéticas artísticas e naturais requisitava sem, entretanto, conseguir
responder a contento, a missão de refundar a estética poderia ser efetivada se se edificasse
tal projeto sobre a distinção entre o estético e o prático no sentido de dirimir a pretensão de
serem ―o fundamento defectivo da disciplina‖546.

Fatalmente, esta tarefa não é cumprida pela estética exemplificada por Greenberg, para
quem os artistas pós-impressionistas abstratos são meros garotos maus. Segundo Danto,
estética e crìtica da arte ―poderiam ser novamente conectadas somente por uma estética
revisionista como disciplina à luz das mudanças na prática crítica que foram impostas pela
revolução da década de 1960‖547.

5.2.1.1- Danto versus Greenberg

A noção de estética atacada por Danto assume estrategicamente, em Após o fim da arte, a
forma da crítica de Clement Greenberg. Uma vez que o impressionismo abstrato foi

545
DANTO, A. Embodied meanings, isotypes, and aesthetical ideas, p. 126.
546
DANTO, A. Após o fim da arte, p. 95.
547
Ibdem, p. 104.

210
ultrapassado pela pop e por outros movimentos análogos, e Greenberg seria o mais
importante crítico daquela expressão artística tão influente, é importante ter em mente o
esforço empreendido por Danto para capturar a relevância filosófica e o significado crítico
da pop e expressões artísticas relacionadas. Até certo ponto, temos na referida obra uma
atualização da crítica à estética estabelecida em A Transfiguração do lugar-comum.

Conforme lembra-nos Noéli Ramme, ―a estética clássica, no sentido kantiano, foi


apropriada por Greenberg para defender a arte do expressionismo abstrato‖ mas, como
―Danto não concorda de modo algum com a ideia de que o papel do crìtico é julgar a
qualidade estética‖548, o crítico deve ser um intermediador do juízo intelectual ao qual a
arte nos convida.

Similar à compreensão de Rosalind Krauss 549 acerca do fundamento kantiano da crítica de


Greenberg, Danto também indica princípios da terceira crítica apropriados pelo crítico
estadunidense: ―‗A Analìtica do Belo‘ serviu como o grande texto da teoria estética nos
tempos modernos, especialmente, pelo menos na América, no pensamento crítico e na
prática de Clement Greenberg‖550. Não sendo a beleza um atributo nem necessário nem
único àquilo que a arte pode desejar expressar, e porque o termo ‗arte‘ demonstrou ser
absolutamente conceitual, a aplicação que Greenberg faz de Kant é parte de um tempo
histórico ultrapassado cuja atmosfera teórica destoa completamente deste esquema.
Também a reação não teórica e o prazer não mediado colapsam com a compreensão
danteana do que é arte e da maneira adequada de se fazer crítica de arte contemporânea.
Não apenas os princípios kantianos subsumidos por Greenberg se chocam com o esquema
conceitual danteano, como a própria noção (a)histórica revelada em Greenberg é
diametralmente oposta à de Danto.

Sabe-se que a oposição de Danto à crítica com base na reação deve-se ao fato da crítica de
Greenberg apropriar-se de dois princípios da estética kantiana 551 . Desta forma, a ideia
segundo a qual apenas o juízo experimentado do crítico (enquanto experiência da

548
RAMME, Noéli. A estética na filosofia da arte de Arthur Danto, p. 90.
549
Cf. KRAUSS, Rosalind. Uma visão do modernismo. In: FERREIRA, Gloria; MELLO, Cecilia Cotrim de
(org.). Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Funarte, Jorge Zahar Editor, 1997, p. 163-174.
550
DANTO, A. Embodied Meanings, Isotypes, and Aesthetical Ideas, p. 123.
551
Cf. DANTO, A. Após o fim da arte, p. 95 ss.

211
experiência artística) pode vaticinar acerca da qualidade artística de uma obra baseia-se na
relação kantiana entre juízo do belo e a aplicação de regras; segundo Danto, em Greenberg
o juízo crítico opera na suspensão da regra. Diferentemente da proposta danteana,
entretanto, Greenberg mantém a coerência interna de seu pensamento com as bases
kantianas ao propor que é decorrência do princípio da autoridade da experiência que o bom
e o ruim em arte não possa ser objeto de uma proposição, de uma regra segundo a qual
pudéssemos diferenciar o bom e o ruim – o crítico assenta seu juízo sobre bases a priori,
mas não conceituais, pois não é possível disputar logicamente acerca da beleza. Somente a
afecção como bom ou ruim poderia fazê-lo 552 . A resposta crítica em parte depende da
criação artística, do que o artista fará com a obra – ―é só esperar para ver o que acontece – o
que o artista faz‖.

Ora, esta ideia soa totalmente despropositada para Danto. Primeiro porque o juízo do belo,
como uma reação a uma experiência perceptiva, não é nunca independente de conceitos –
concedendo que é lìcito interpretar ‗regras‘ como conceitos danteanos. Afirmar que o belo
em arte não é conceitualmente mediado é contrassenso ainda maior. Experimentar algo
como arte significa dizer que esta experiência não pode abdicar da informação e
interpretação de algo como arte. Por conseguinte, a fórmula crítica que Greenberg retira da
noção kantiana segundo a qual ―belo é aquilo que agrada sem conceito‖ conduz à conclusão
equivocada segundo a qual o bom gosto é consequência do olho experiente – ―o olho
experiente tende sempre para o definitiva e positivamente bom na arte‖ 553. A conclusão, daí
retirada, de que o juízo crítico acerca da qualidade estética e das predições acerca do futuro
da arte é infalível é uma conclusão falsa e politicamente perniciosa. Sendo ―a mesma
divergência lógica que separa o estético do prático separa a arte de qualquer coisa útil‖ 554,
as fronteiras entre arte e vida estariam mantidas e ela não teria nada a ver com questões
práticas. Assim, a arte, sob o julgo da estética clássica/kantiana, torna-se conservadora e
rechaça toda pretensão artística que soe instrumental. O purismo da crítica de arte de
Greenberg assenta-se sobre a distinção entre o artístico e o prático, entre o estético e o útil

552
Ibdem, p. 99.
553
Apud DANTO, Arthur. Após o fim da arte, 95.
554
Ibdem, p. 96.

212
e, finalmente, coroa a noção segundo a qual a obra deve ser estética para ser arte
propriamente.

O segundo princípio deriva de um ideal de pureza da razão: a estética é segregada do


prático, porque expressa uma finalidade sem fim. Assumindo a universalidade tácita do
juízo do belo, tal juízo seria incompatível com o lucro, com a praticidade ou qualquer outro
meio ou tema que não o da pura sensibilidade. As ideias de universalidade subjetiva e de
sensus communis teriam levado Greenberg a afirmar que ―toda a arte é uma só e a mesma
coisa‖, tentando com isso ―demonstrar que não havia diferença em nossa experiência
estética do abstrato em contraposição à arte representacional‖, defendendo a experiência da
arte abstrata de qualquer inespecificidade estética 555 – um esforço por enquadrar a
vanguarda modernista em uma narrativa estetizante. Com efeito, o juízo pressupõe abertura
de espírito, por que é preciso experiência acumulada de todo tipo de arte; pressupõe
desinteresse, pois deve-se ―estar seriamente interessado em arte [e] estar seriamente
interessado no bom em arte‖, não importando o tipo de arte especìfica556. Ora, abdicando de
conceitos e assumindo que experiências estéticas são não proposicionais, é difícil conciliar
Greenberg e Danto. É difìcil conceber como ―‗o olho experimentado‘ pode[ria] separar o
bom do ruim na arte de qualquer tipo, independente do conhecimento específico das
circunstâncias da produção na tradição a que ela pertence‖ 557. A narrativa de Greenberg se
encaixa perfeitamente naquilo que Danto chamou de estética de uma narrativa
historicamente condicionada.

Subjaz aí a ideia de que os críticos de arte tiveram seu gosto confirmado unanimemente
dentro de certos limites e, desta forma, já que existe um consenso de gosto, ou um senso
estético (que os críticos, como grupo, exemplificam), o público deveria abrir suas mentes às
sugestões dos críticos, ousar o bastante, e – principalmente – apenas abrir os olhos para que
sejam inundados por beleza pré-conceitualizada558. Assim configurado o padrão de gosto
em Greenberg, não haveria (como sugere Kant) divergência real quanto a juízos de gosto.
―A qualidade em arte não é só uma questão de experiência privada‖, se as sugestões dos

555
Ibdem, p. 96.
556
Ibdem, p. 97.
557
Loc. Cit.
558
Cf. Op. Cit, p. 99.

213
críticos forem seguidas e as pessoas abrirem os olhos e a mente, ousando o bastante,
avançarão juízos universais sobre o belo em arte, provando tal uniformidade do gosto 559.
Eis a caricatural figura de Greenberg, tão fechado à teoria e demasiadamente confiante na
experiência.

Danto critica os efeitos nocivos que a adoção da ideia segundo a qual o bom em arte não é
algo circunscrito apenas a um tempo ou estilo. Dentre estes efeitos está uma cegueira
histórico-crìtica, pois ―Nada do que acontecia na arte abstrata antes de Pollock preparou a
passagem para este, principalmente no sentido de uma apreciação crítica‖560 . E quando
Pollock foi notado por Greenberg, este teve de alguma forma que rever seus conceitos.
Destaca-se também a oscilação da reputação do crítico junto com a do artista. Além disso,
mantém e preserva a rigidez do sistema de produção e mercantilização artística, sempre em
busca de ―novidade‖. Destaca-se também a profunda divergência da postura que se
convencionou chamar de colonialismo cultural, presente na interpretação que Greenberg
deu ao modernismo, em relação à tendência multiculturalista a que encaminha o pluralismo
e contextualismo de Danto. Felizmente, muitos artistas demonstraram sua qualidade a
despeito do paradigma da experiência retiniana.

Ainda que a análise da crítica e compreensão da estética em Após o fim da arte não fuja ao
escopo deste trabalho, podemos notar como esta obra ainda carrega bastante dos elementos
que depõem contra a centralidade da estética quando abordada do ponto de vista normativo
e definicional, ao mesmo tempo que esta obra avança no projeto de uma filosofia da arte
informativa e fundante de uma prática crítica cogente.

5.3- O projeto de uma estética do significado


Tendo a filosofia danteana assumido interesses, formas e feições novas com a publicação
de Após o fim da arte e, paralelamente, com o envolvimento de Danto com crítica e
curadoria, a aproximação esquemática do estatuto da estética nestes dois momentos nos
forneceu a confirmação do espírito geral que caracterizou o desincentivo à estética, ao

559
Ibdem, p. 98.
560
Ibdem, p. 100.

214
mesmo tempo em que confirmou o lugar que ocupa a estética com relação à arte quando
nos propomos a interpelar esta última por meio dos indiscerníveis em vista de uma teoria
transfigurativa da arte e todo o teor ontológico-definicional que a caracteriza.

O deslocamento metodológico que se deixa perceber em Após o fim da arte e depois rompe,
em boa parte, com a chave de leitura que tão radicalmente afastou a estética, negando a ela
qualquer lugar ou função. Conforme Danto afirma, entretanto, a mudança que possibilita a
estética uma importância e estatuto contingente ―torna a questão da estética mais irrelevante
que nunca‖561. Inicialmente irrelevante porque conceitualmente desviante, noutra ocasião a
estética estaria em pior situação porque faria parte de um espírito já ultrapassado e
cumpriria um papel subalterno. Em todo caso, qualquer possibilidade de a estética gozar de
uma importância e lugar contingentes é acenada por Danto somente a partir de 1993 e,
como tal, seu estatuto estará a reboque da ontologia da arte na era do fim da arte. Se é real a
possibilidade de haver ―uma estética específica para as obras de arte e mesmo uma
linguagem especial para apreciá-las‖, e se é o caso de a estética ―ser útil para se abordar
alguma espécie de arte‖562, não como a expressão de uma norma satisfeita, mas como uma
acomodação perfectível de significado e incorporação e o prazer daí advindo, a estética terá
encontrado seu lugar no significado da obra. Pretende-se, pois, que a experiência estética
renovada seja uma função da arte. Danto assume finalmente que

A estética não se tornou irrelevante quando o Modernismo terminou na década de


sessenta, mas o tipo de qualidade estética pressuposta pela teoria Kant-Greenberg
certamente desapareceu, abrindo espaço para o que poderíamos chamar de um
pluralismo de qualidades estéticas563.

O detalhe que depõe contra Greenberg e Kant, seu generative thinker, consiste na
―incapacidade de reconhecer que há um conjunto quase ilimitado de qualidades estéticas‖,
isto é, em manter uma teoria que combate o pluralismo, mesmo que seja o de gosto 564. O
aceno e incentivo que Danto faz à possibilidade de uma estética do significado que rompa
com o formalismo estabelece que qualidades estéticas são internas ou externas ao
significado da obra, a depender da relação entre este e a contraparte material. E se esta
tarefa é exequível, a sugestão de estabelecer que ideias estéticas (kantianas) possam ser

561
DANTO, A. The Future of Aesthetics, p. 110.
562
DANTO, A. Após o fim da arte, p. 95.
563
DANTO, A. Embodied Meanings, Isotypes, and Aesthetical Ideas, p. 123.
564
Idem, p. 124.

215
significados incorporados (danteanos) é uma tarefa viável e sensivelmente mais expressiva
do ponto de vista do trabalho de fundamentação e da novidade de campo investigativo e
interpretativo que seria inaugurado565. A estética específica para as obras após o fim da arte
é centrada em seu significado; a linguagem especial para apreciá-las é aquela da
fenomenologia da linguagem, da pluralidade de predicados estéticos possibilitados pela
análise da linguagem ordinária. O critério de aplicação e abertura do número quase
ilimitado de qualidades estéticas é o significado de cada obra, que abre, para cada uma
destas obras, um novo mundo: ―Na arte, cada nova interpretação é uma revolução
copernicana‖ 566 . Contenta-nos vivamente que esta possibilidade esteja aberta a um
desenvolvimento futuro.

Reação e experiência estéticas são também contempladas. Goza-se o sentido da obra em


jogo com sua apresentação. Entretanto, ―A faculdade de reagir [esteticamente a obras de
arte] não pode ser associada aos chamados cinco sentidos‖ 567 – a estética não é fundada
sobre a pura empiria, não está circunscrita aos dados brutos dos sentidos. É um gozo pelo
juízo, trata-se de um ver-como. Considerando que Danto compreende por estética ―a
maneira como as coisas se apresentam, juntamente com as razões por preferir uma maneira
de apresentação em detrimento de outra‖568, esta compreensão fenomenológico-intencional
parece compartilhar parcialmente de uma base perceptiva ou sensível (embora não
sensorial) tal qual é expressa na compreensão segundo a qual ―a arte não pode ser sensível
porque não pode ser estética‖569. A experiência estética de uma obra é uma função da
interpretação. Neste sentido, se diz que as ideias estéticas kantianas reinterpretadas são o
complemento à discussão sobre a qualidade artística 570 . Assim, a compatibilização
necessária entre ideias estéticas e significados incorporados deve optar pela afirmação da
superioridade do belo artístico, da objetividade das qualidades estéticas bem como do

565
Contudo, este não é o escopo desta dissertação.
566
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 191.
567
Ibdem, p. 154.
568
DANTO, A. The Future of Aesthetics, p. 103. (Seria esta ―maneira como as coisas se apresentam‖ de
Danto paralela ao Darstellung (apresentação) wittgensteiniano?).
569
RAMME, N. Op. Cit., p. 88.
570
DANTO, A. Embodied Meanings, Isotypes, and Aesthetical Ideas, p. 127.

216
significado, deixando ―claro como qualidades estéticas podem contribuir para o significado
que o trabalho possui‖571.

Assim como em Andy Warhol, em Embodied Meanings, Isotypes, and Aesthetical Ideas
Danto reapresenta a descrição daquilo o que seria a estética pop, desta vez exemplificada
pela artista ucraniana Agnes Eperjesi, cuja obra possuiria qualidades estéticas comparáveis
à das obras de Warhol:

As obras de 1961 de Andy Warhol que mencionei acima são portadoras de ideias
estéticas – apesar de terem apenas qualidades estéticas que pertencem à
publicidade barata. Elas transmitem os pequenos vexames da carne, e a promessa
de que por alguns dólares nossa tez será clara, nosso cabelo vai crescer
exuberante e que o amor e a felicidade virão finalmente. O que Agnes Eperjesi
descobriu nas embalagens de produtos de consumo são retratos da sociedade na
qual esses produtos são utilizados. Eles são retratos readymade, ou melhor,
readymades assistidos, como seu humor melancólico deixa claro572.

Reação e experiência estética como funções da interpretação se deixam compreender


melhor através do modelo fornecido pelo estado de ânimo ou humor, não dos sentidos
tradicionais. Não se tratando exatamente de reações imediatas, seu solo não é o da mera
experiência sensível. Nelas captamos um significado apresentado de modo desviante,
elíptico, cuja qualidade estética visada não precisa se dar de maneira literal (um
―pensamento bonito [...] não precisa ter nada a ver com a beleza das palavras‖ 573) e cuja
experiência consiste em uma espécie de Stimmung (mood – estado de ânimo), ―no qual uma
experiência estética se dá a sentir‖574.

A diferença [entre o senso estético baseado sobre o modelo dos cinco sentidos
clássicos ou sobre o humor] está no fato de que o senso de humor consiste em
parte numa reação a certas coisas porque elas são engraçadas. O riso, quando
provocado por uma coisa ou uma ação cômica, é um excelente exemplo do que
chamo de reação, embora haja, é claro, outras modalidades de reação 575.

571
Ibdem, p. 128.
572
Loc. Cit. (A isto se liga o fato de, sendo sobre o espìrito objetivo, a arte versa sobre coisas que ―Todos
entendiam (...) porque elas projetavam o mundo em que todos habitavam‖).
573
Idem, p. 127.
574
DANTO, A. A Future for Aesthetics, p. 114.
575
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 153. Nesta obra, Danto opta pela terminologia sense of
humor para designar o modelo alternativo sobre o qual fundar a estética em sua modalidade de reação;
enquanto prefere moodted aesthetic sense para se referir à afecção ou disposição interna a um estado de ânimo
específico. O dicionário Merriam-Webster apresenta uma definição consequente do vocábulo ‗mood‘: 1) um
estado mental consciente ou emoção predominante (sentimento); a expressão de uma disposição ou emoção

217
Assim, ―a faculdade de reagir não pode ser associada aos chamados cinco sentidos‖ porque
é preciso compreender algo como cômico, isto é, a reação estética é de fato uma reação
cognitiva. Ela ―pressupõe um processo cognitivo que não é necessário para a reação a
meros objetos‖, a saber, a distinção entre arte e mera coisa real 576. Não apenas é preciso
certa atmosfera artística para perceber algo como arte; qualquer atitude estética necessita
também desta atmosfera, de uma teoria da arte, da informação de que o objeto que causa tal
atitude é uma obra. Assim, ―Ter senso de humor é quase como ter uma filosofia‖ 577. Na
medida em que cada interpretação instaura uma obra distinta; que a compreensão de cada
obra é uma revolução copernicana e que há obras cujo significado nos dispõe num certo
estado de ânimo, esta afecção se funda de fato em uma filosofia.

Danto está pensando em Heidegger e a sua proposta segundo a qual o estado de ânimo
torna manifesto o ser do sujeito num dado momento, como este se sente, a abertura de seu
comportamento, tal como a ansiedade ou a angústia 578. Segundo Danto, a análise de Sartre
sobre a náusea acompanha este sentido. Danto se apoia também sobre o Livro II da
Retórica, que propõe que ―As emoções são as causas que fazem alterar os seres humanos e
introduzem mudanças nos seus juìzos, na medida em que elas comportam dor e prazer‖,
pois ―Os fatos não se apresentam sob o mesmo prisma a quem ama e a quem odeia‖. Neste
sentido, pois, é necessário que o orador não apenas profira um discurso demonstrativo,

tal como feita especialmente na arte ou literatura. 3b) um estado mental receptivo que predispõe à ação; 3c)
uma atmosfera ou contexto distinto, uma aura‖. (Cf. https://www.merriam-webster.com/dictionary/mood ). O
uso de Danto do termo é no sentido substantivo de uma disposição ou afecção. Relaciona-se com o sentido
pretendido para o senso estético para ‗to be in a mood‘: ―sentir um desejo por algo ou por agir‖, ―estar no
espìrito para algo‖ (estar disposto). Compreendemos que a tradução de ‗mood‘ por ‗disposição de ânimo‘
expressa melhor o sentido pretendido por Danto dentro de sua terminologia filosófica: é um estado emocional
consciente, relacionado à Arte, pode ser razão para ação e compõe o sentido de uma obra. Além disso,
acompanha o vernáculo da língua inglesa e está de acordo com o vocabulário filosófico inglês consagrado, no
qual este termo designa os modos de configuração de um silogismo categórico (Cf. AUDI, Robert. The
Cambridge Dictionary of Philosophy. Cambridge University Press, 1999, p. 895).
576
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 174-5.
577
Ibdem, p. 154. Isso nos remonta ao Capítulo 1, que trata do fundamento da filosofia sobre o problema da
indiscernibilidade e propõe-se que a distinção e disputa filosoficamente interessante entre pessimismo e
otimismo, autenticidade e inautenticidade, aparência e realidade, etc, se pode travar apenas a partir da visão
sub specie aeternitatis na qual consiste.
578
Loc. Cit.

218
―mas também que o orador mostre possuir certas disposições e prepare favoravelmente o
juiz‖579, cumprindo a importante função persuasiva de direcionar alguém a uma conclusão.

A estética de uma obra é plural, variada, e pretende dispor alguém num estado de ânimo,
fazê-lo experimentar certa afecção. Assim, o estado de maravilhamento e terror
(Bewunderung und Ehrfurcht) ante o céu estrelado ―é um estado de ânimo no qual se
experimenta o sublime‖580. Trata-se de ―usar a estética [neste sentido] para transformar ou
confirmar atitudes‖581, rompendo com a lógica da retórica estética como sendo apenas a
disposição para a calma contemplação e ampliando esta retórica no sentido de uma
disposição cuja função na arte emancipada descobre novos papeis para estética e a
enriquece de sentidos, não apenas a transforma. A estética do significado está ligada tanto
ao mundo da arte atual e seu funcionamento como a realidade humana e ao mundo da vida.

Danto assumidamente deve a Peirce 582 e a Heidegger a compreensão da experiência da


beleza como algo humano e, ao mesmo tempo, a estética estar ―liberta de sua tradicional
preocupação com a beleza‖583, de maneira a poder ser realmente lida como um significado
artístico – mesmo que ―muito da arte feita atualmente não tenha como objetivo fornecer
experiência estética‖ (e nem mesmo a maior parte da arte feita no curso da história tenha
tido este objetivo)584. Ainda assim, a estética pode ser um significado internamente plural
em seu domínio e buscar atender à pluralidade da experiência humana. Há tanto qualidades
estéticas quanto obras cujos significados pretendam dispor o observador a um estado de
ânimo ou ação através de estratagemas imagéticos incorporados.

Diz Danto: ―Considero justo que quando há um elemento estético intencionado na arte, ele
seja compreendido como um significado a qualquer que seja o ponto desta obra‖ 585 ,
polìtica, social ou economicamente. Por isso se diz que a ―estética é mais ampla do que se

579
ARISTÓTELES. Retórica, Livro II, 1377b - 1377a. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005. 2ª
ed. revisada. Vol. VIII, Tomo I. (Grifos nossos).
580
DANTO, A. A Future for Aesthetics, p. 114.
581
Ibdem, p. 116.
582
―Haverão várias qualidades estéticas disponìveis‖. PEIRCE, C. S. Pragmatism as a Principle and Method
of Right Thinking: The 1903 Harvard Lectures on Pragmatism, ed. Patricia Ann Turrisi. Albany: State
University of New York Press, 1997, p. 213. Apud DANTO, A. A Future for Aesthetics, p. 114.
583
Ibdem, p. 115.
584
Ibdem, p. 113-4.
585
Ibdem, p. 113.

219
tem sido tradicionalmente reconhecido‖ 586 . Conforme mostra a análise das qualidades
estéticas dos readymades assistidos de Eperjesi e do design das Brillo Box, deve-se
―reconhecer que há um conjunto quase ilimitado de qualidades estéticas‖ equivalentes a
predicados estéticos tais como ―belo‖, ―saboroso‖, ―delicado‖, ―grunge‖, ―sujo‖. A regra
que os comanda é posta em termos de ser interno ou externo o papel de uma qualidade
estética em função do significado de uma obra. Na obra de Jacques Louis David Marat
Assassiné, a beleza deste trabalho contribui para seu significado e, portanto, trata-se de um
caso de beleza interna: ―a beleza de Marat parece com a beleza de Jesus e o significado da
pintura é que Jesus/Marat morre para a visão do espectador, que deve reconhecer o
significado do sacrifìcio seguindo este imperativo‖587. O mesmo é dito em The Future of
Aesthetics, no qual é proposto que, embora a obra esteja lá, com seu assunto, sua
interpretação sobre ele e uma mensagem de exortação, e nós conheçamos o sentimento de
compaixão ao identificar a causa de sua morte, ―nos é quase vetado hoje em dia termos este
sentimento uma vez que não fazemos parte da realidade histórica à qual pertence aquela
pintura‖ 588 . ―A beleza da obra subscreve a metáfora entre Cristo e Marat‖, possui um
sentimento político e direciona a uma ação também política. Mas não é o caso apenas que
―a apreciação seja uma função da situação cognitiva do esteta‖, ocorre também que ―as
qualidades estéticas da obra são função de sua própria identidade histórica‖ 589 . Por
operação do juízo, o despertar político e seu poder transformador ressoam ainda hoje590.

Sem dúvida, esta nova concepção abre inúmeros questionamentos acerca do universal em
arte. O aprazível em arte está circunscrito apenas a uma narrativa historicamente
condicionada? Sabemos que Danto defende que a arte pode fazer algo acontecer591. Mas o
poder que uma obra tem de ser uma razão para ação se restringe apenas o circuito interno

586
DANTO, A. Embodied meanings, Isotypes, and Aesthetical Ideas, p. 125. Mais ampla inclusive do que
o próprio Danto foi capaz de reconhecer anteriormente.
587
Ibdem, p. 125-6.
588
DANTO, A. A Future for Aesthetics, p. 115.
589
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 172. Em Após o fim da arte, p. 183: ―A percepção
artìstica é totalmente histórica. E, conforme meu ponto de vista, a beleza artìstica é também histórica‖.
590
DANTO, A. A Future for Aesthetics, p. 115. Pode ser chamada uma operação do juìzo ―[...] reconhecer e
analizar [as relações entre o estado de ânimo intencionado e o significado da obra] e notar como ele contribui
para o significado da obra‖ assim como o é a interpretação da relação entre o significado e sua incorporação
(Cf. Após o fim da arte, p. 215-7).
591
Como exemplo, tome-se a discussão do Descredenciamento filosófico da arte, especialmente o primeiro
capítulo.

220
das metáforas e elipses que contém? Obras com propósito político tão específico e
historicamente circunscrito como Marat Assassiné são realmente representativas da
característica perecível dos poderes que uma obra tem de ser motivo para ações ou para
estados de ânimo? Em todo caso, se para reagir adequadamente a uma obra de arte deve-se
compreender seu significado, não está claro porque esta operação – necessária em todo
tempo e contexto do mundo da arte, ao menos no mundo da arte após o seu fim – se
adequadamente executada, não pode dar vazão a estados de ânimo e emoções tão vivas e
autênticas quanto à época em que a obra surgiu ou a estados de ânimo e emoções
equivalentes em outro mundo da vida ou condição humana. Em outros termos, como
explicar que ainda nos emocionamos tão logo compreendemos Guernica e outras tantas
obras que julgamos atemporais? Não é justo que nos disponhamos a agir motivados pelo
sentido de vida que uma obra nos forneça, ainda que seu contexto não se aproxime do
nosso apenas por algum tipo de equivalência?

Estas não são questões cujas respostas nos dispomos a desenvolver e interpretar aqui. Está
claro que esta concepção embrionária, além de obviamente instigante e promissora, merece
um desenvolvimento crítico detalhado em outro trabalho. Buscamos nesta seção apenas
esboçar a intuição da estética do significado no sentido de destacar sua novidade frente à
chamada estética da forma. Podemos dizer que um de seus pontos mais fortes é a
imunidade à indiscernibilidade e, com isso, sua contiguidade ao estado do mundo da arte e
da vida. Todo o escopo cognitivista deste projeto deve-se à pretensão de edificar uma
filosofia da arte informativa.

221
6- CONSIDERAÇÕES FINAIS
O projeto de edificação de uma teoria filosófica da arte que se pretenda informativa e
fundada sobre termos teóricos não observacionais, mas que não prescinda do estado da arte,
sua história e elaborações próprias, tem como consequência imediata o abandono e o
descrédito da abordagem estetizante que vigorou pelo menos até o modernismo. Contra os
projetos de eliminação, redução ou substituição da filosofia por uma atividade científica e
responsável, e mesmo contra o silêncio resignado e cético, a pretensão de a filosofia ser
informativa sustenta-se sobre a atenção emancipadora às elaborações próprias do mundo da
arte combinadas a uma revisão da natureza e destinação da própria atividade filosófica ou
ao seu melhor posicionamento teórico e metodológico perante as especificidades do tema
de estudo. Neste sentido, a estética filosófica pautada em atributos sensíveis e articulada
por termos essencialmente observacionais é desviante ontológica e metodologicamente.
Nem sua linguagem nem sua concepção fundante são capazes de captar a especificidade da
arte.

Neste sentido, Danto levanta uma forte objeção a todos aqueles filósofos cuja abordagem à
arte se resume a uma pretensão de que ela deva ser algo sempre e exclusivamente sensorial.
Para que seja cogente, a filosofia da arte deve ser capaz de abordá-la de forma a captar a
essência que ultrapassa e funda suas manifestações. Assim, poderíamos dizer que a
natureza das artes visuais, a despeito do nome, não é que ela seja essencialmente algo

222
ligado ao sentido da visão, mas um significado que demanda interpretação e que se articula
nas profundidades ontológicas do sentido, ao qual a ocorrência figurativa, não figurativa (e
outras tantas) devem sua razão de ser.

O teste de fogo para a edificação de tal discurso são os indiscerníveis. De fato, a estratégia
possui uma riqueza e densidade filosóficas impressionantes: funcionam como desafio e
como método. De um lado, ela mantém de pé a crítica danteana ao paradigma sensorial
operante nas filosofias analíticas de sua época – e das quais, de certa forma, ele pretendia se
destacar. O próprio Danto deve ser capaz de superar este desafio. Seu pior oponente,
entretanto é o ceticismo teórico quanto à viabilidade de a filosofia teorizar a arte e quanto à
identificação teoria-obra, uma vez elaborada a teoria. Aquele filósofo que se mostre capaz
de ultrapassar o desafio se credencializa, possui um paradigma suficientemente emancipado
para tratar da arte.

De outro lado, uma vez que os indiscerníveis, por suposto, interditam a dimensão sensorial
como não-informativa e inessencial, o exercício da filosofia danteana sobre a agenda dos
indiscerníveis exclui qualquer apelo explicativo a esta dimensão. Com efeito, o preço pago
por tentar evadir às objeções do ceticismo através de um novo paradigma é o
estabelecimento de uma reflexão preocupada fundamentalmente com a ontologia. De certa
forma, esta parece ser uma consequência coerente (além de desejada). De fato, se ao voltar
a atenção ao estado do mundo da arte concluímos que a arte não tem de se parecer com
nada do que antes denominamos arte; se seus objetos não tem de responder a qualquer
padrão respeitoso óbvio que o desvie dos objetos comuns; se parece não haver qualquer
regra visual à qual a arte deva se adequar, nem uma missão de bem aventurança a cumprir;
então a grande questão à qual devemos inicialmente buscar resposta (se possuímos uma
compreensão tradicional de filosofia) parece ser ‗o que é a arte?‘, ou melho, ‗quando há
arte?‘.

Com efeito, tudo o que antes se compreendida com sendo parte da estética, seus domínios,
conceitos, categorias e toda a edificação teórica, histórica e institucional aglutinada sob este
conceito, torna-se uma visão desviante e interditada. Uma vez que a arte é antes de tudo
conceito, a abordagem filosófica mais pertinente é a filosofia da arte, que teria acesso em
primeira mão à sua essência, que é significado incorporado. A crítica de arte se funda sobre

223
esta ontologia e consiste em uma interpretação não valorativa das relações entre o
significado e sua articulação na obra. A verdadeira crítica de arte na era contemporânea é
uma hermenêutica pluralista. Recentemente apenas é que podemos dizer de uma
possibilidade da estética, ainda que refundada sobre as bases teórico-ontológicas da
filosofia da arte. Esta estética do significado, apenas parcialmente emancipada, porque
fundada sobre um solo ontológico alheio, procura articular, quando possível, categorias
como reação, fruição, prazer ou desprazer à maneira de atitudes proposicionais
epistemologicamente orientadas por significados. Mas aquilo que é essencial às reações
guiadas por significados está distante de si e, neste sentido, a estética possível estaria
distante três graus do núcleo filosófico da arte.

Ora, ao compararmos as visões que Danto oferece quanto ao tema da relação entre arte e
estética, percebemos aspectos muito específicos, ligados, sobretudo, à maneira como
compreende o fazer filosófico. Neste sentido, seria interessantíssimo apresentar as
especificidades de sua aproximação de Hegel e da estética do significado, não apenas para
diversificar o debate do pensamento danteano, mas também da estética/filosofia da arte
como um todo, no qual uma posição como esta catalisa uma maior quantidade de conceitos
e de debatedores, atualizando o debate acerca da relação entre materialidade e significado,
sentidos e ideia, sentimento e razão, concretude e abstração, e, obviamente, entre percepção
e conceito. Tal abordagem tornaria mais denso e complexo a aproximação de Danto dos
filósofos germânicos do idealismo, mais do que o tradicional debate com os ―continentais‖.
A capacidade e riqueza deste debate em torno da filosofia de Danto é algo que permanecerá
como promessa, ao menos por hora.

De maneira alguma nossa intenção aqui foi desenvolver este debate. Ele demanda outro
empreendimento acadêmico. Tanto quanto possível, buscamos esclarecer como a filosofia
da arte de Danto opera o afastamento paulatino da estética, metodológica e teoricamente. A
relação entre estética, arte e filosofia da arte é um tema já consagrado no pensamento de
Arthur Danto – a este tema oferecemos aqui uma contribuição que, ainda que longamente
desenvolvida, compreendemos incompleta, falível e perfeitamente aperfeiçoável.
Esperamos ao menos que o transcurso de leitura que nos acompanhou até aqui tenha ao
menos compartilhado conosco a amplidão dos problemas envolvidos no tema escolhido,

224
ainda que não tanto algumas das soluções. A responsabilidade sobre tais soluções e as
escolhas teóricas que as influenciaram são todas nossas, e sobre elas mantemo-nos abertos a
sugestões e críticas. O tema escolhido é repleto de controversas e de pontos pouco
explorados e, no momento de escolha do problema a ser abordado, nunca está inteiramente
clara a amplidão e a complexidade na qual estávamos prestes a nos enredar. É claro,
entretanto, que o estilo de escrita e reflexão danteana possui a forma de uma trama.
Conceitos apresentados em textos e questões distintas se intercruzam. Às vezes eles se
solicitam mutuamente. Este aspecto que se relaciona à densidade do pensamento danteano
tem impacto sobre a forma de registro de pesquisa a seu respeito. De certa forma, a
tentativa de colocá-lo em uma sequência mais linear torna a escrita mais alongada. A isto se
soma a densidade e complexidade natural de nosso problema-objeto. Tanto quanto possível
buscamos aplainar a escrita e cortar passagens de menor impacto para a abordagem e
recorte previamente definidos.

Identificado os indiscerníveis como a causa maior do afastamento da estética como


abordagem insuficiente, centramos nossa análise sobre esta questão, trazendo à baila seus
fundamentos metafilosóficos (que, modestamente, acreditamos ser uma discussão pouco ou
raramente trabalhada no âmbito da academia brasileira), sua inserção no debate filosófico
mais próximo e as especificidades teórico-metodológicas decisivas no afastamento da
estética. Gostaríamos de ter fornecido um quadro mais amplo dos filósofos envolvidos
neste debate, dentre os quais contam ―analìticos e continentais‖. Por motivos de
exequibilidade e espaço disponível, isso não foi realizado. Entretanto, o horizonte no qual
se inseririam está aberto. É no horizonte metafísico do materialismo representacionalista
que vislumbramos uma possibilidade de superar a divisão (tão criticada) entre percepção e
descrição – ainda que insuficientemente desenvolvida. É possível, ainda, retomar este
debate para desenvolvê-lo, mostrando suas controvérsias internas, não apenas suas soluções
finais.

A existência subterrânea de uma posição externalista perceptiva nos indiscerníveis é uma


das críticas mais importantes levantadas. O fato de os indiscerníveis serem teoricamente
carregados por uma posição operante e insuficientemente tratada é decisivo para impedir
qualquer pretensão de a estética filosófica se apresentar como discurso legítimo da arte. É

225
claro que este descredenciamento é, em boa parte, consequência do fim da arte – a que o
externalismo está combinado. Mas o término de uma história progressiva se confirmaria
apenas por força de uma superação do retiniano, do apego olfativo aos pigmentos e da
significância sempre outra quando o aspecto perceptualmente acessível é o mesmo.
Compreendemos que a maneira como a discussão acerca dos elementos definicionais
relevantes de obras de arte é encaminhada conduz à conclusão indesejada (ou ao menos não
completamente discutida) do afastamento da estética. Interpretar a estética como uma
dimensão eminentemente perceptual porque ligada ao sensorial e regida por conceitos
observacionais, além de pressupor que a tarefa da filosofia seja definicional e, como tal,
deve ser regida por conceitos unicamente teóricos, além de restritivo e demarcatório é
também bastante esquemático. Acenamos humildemente à possibilidade de, retomando o
contexto metafilosófico e sistemático mais amplo e originário, incrementar o debate com a
metafísica do materialismo representacionalista, cuja uma das conclusões afirma que
―Perceber é, ipso facto, interpretar‖592. Segundo ela, a interpretação é ativada diretamente
ao menor constrangimento perceptivo. Contudo, a efetivação desta possibilidade à exaustão
permanecerá suspensa.

A defesa de um projeto de definição da arte no modelo dos indiscerníveis parece ter o alto
preço do dualismo de substâncias segundo o qual a natureza abstrata do conceito e
significado de arte é irredutível à natureza perceptiva da contraparte material. Parte da
caracterização do perceptivo, do sensível, de qualquer aspecto ligado ao material envolve
mais uma vez a alegação de que tal dimensão é opaca, muda. Ora, como tudo aí parece
permanecer o mesmo (conforme mostrariam os experimentos mentais de
indiscernibilidade), o domínio conceitual que a ultrapassa em natureza e em possibilidade
de determinação seria mais essencial que ela. A Transfiguração do lugar-comum mantém
ressonância com a estrutura metafísica ampla que trazemos de outros textos de Danto, na
qual matéria e representação, relacionadas, concorrem como elementos fundamentais para
formação do quadro total do ser. Linguagem, pessoas (ens representans) e obras são
entidades que exemplificam, cada um à sua maneira, com dimensões e proporções distintas,
esta composição básica. Na arte, conta certa combinação elíptica de representações
exclusivas. Assim é, pois, que a linguagem que descreve adequadamente obras de arte seria
592
DANTO, A. Connections to the World, p. 253.

226
formada por predicados O (que basicamente são conceitos teóricos, isto é, interpretações
que jogam luz sobre o substrato material da obra), enquanto que a linguagem adequada ao
mundo da vida está em outro nível descritivo cujas representações não tangenciam
causalmente nenhuma obra e, portanto, não constitui o significado ou a interpretação da
obra. Contudo, é uma questão distinta determinar se tal descrição interpretativa é capaz de
superar a distância ceticamente suscetível entre o conceitual e o perceptivo de maneira a
descrever adequadamente como um significado se corporifica de fato na corporeidade.
Desta vez, o desenvolvimento da filosofia da arte no sentido de um hegelianismo mais
aberto, por um lado, bem como o desenvolvimento do sistema de filosofia da representação
originalmente concebido, por outro lado, se apresentam como bons elementos para um
debate mais amplo e consequente acerca da relação entre arte e conceito, tanto na ontologia
quanto na apreciação, mas também quanto ao papel da filosofia e à posição que ocupa a
arte frente à filosofia e à história das produções do espírito humano. Temas caros à
estética/filosofia da arte teriam a oportunidade de revisão e atualização, trazendo Danto
para um debate em que, via de regra, ele não figura.

Tal como configurada n‘A Transfiguração, as condições imprescindíveis para a apreciação


estética de uma obra ocorram apenas quando preenchida corretamente a exigência de saber
que se trata de uma obra, dotada de tal e tal significado ao qual reagimos adequadamente593,
juntamente com o caráter determinante de teorias para que uma obra seja vista 594 e com o
fato de as nossas crenças epistêmicas envolvidas no prazer estético deverem ser
ontologicamente constrangidas, parecem impor o alto ônus da hiper-intelectualização. É
preciso saber que algo é arte, saber qual seu significado e reagir de maneira coerente. Ora,
neste sentido, nos termos de um debate acerca dos mecanismos conscientes de percepção e
reação a uma obra, a posição de Danto parece afirmar que é necessário mais que uma
capacidade primária de fornecer razões para que se pudesse afirmar que se está a perceber
uma obra. Perceber e reagir à arte são de uma natureza tal que um trânsito fácil entre
estética e obra está inviabilizado, haja vista a sobreposição complexa de representações
envolvidas nas obras. Para perceber uma obra é necessário um esquema conceitual, um

593
Que ―a apreciação seja uma função da situação cognitiva do esteta‖. Cf DANTO, A. A Transfiguração do
lugar-comum, p. 172.
594
DANTO, A. O mundo da arte, p. 20.

227
aparato teórico – seja ele historicizado ou analítico. Parece claro que a posição de Danto
afirma que a percepção de obras de arte é sempre mediada por conceitos, e conceito muito
específicos. Conceitos cuja natureza deve ser abstrata, teórica e não observacional. À
estética faltam os fundamentos ontológicos necessários à proposta de um destino para a
arte, a um sentido para o fruir artístico e, neste sentido, o expectador de arte que não está
suficientemente informado dos debates e conceitos que compõe a atmosfera do mundo da
arte recente não é capaz de interpretar corretamente uma obra e, consequentemente, de fruir
qualquer significado estético possível. Estas parecem ser condições bastante exigentes
impostas à apreciação estética. Elas exigem um nível de erudição próximo a de um
connoisseur e um padrão de interpretação de obras de arte circunscrito aos limites
propostos pela filosofia da arte danteana. Esta crítica tem fortes consequências para o
projeto de edificar uma estética do significado. Se fará necessário discutir qual
interpretação técnica se dará à noção fundante de significado. Será necessário determinar
também se significados incorporados são aparatos sofisticados. O que significa dizer que a
compreensão da arte requer um mínimo de teoria da arte? Qual o limite deste mínimo? A
arte abre precedente para Danto hiper-intelectualizar um aparato conceitual necessário para
ter experiência de uma obra? Mais uma vez, o principal problema remonta a uma forma de
dualismo entre o esquema conceitual proposto como adequado e o conteúdo a ser captado
por ele através de uma aplicação falível. Ora, por mais que o conceito de arte se apresente
como específico e fundante, a extensão pura e simples de tais conceitos como condições
cognoscitivas para a estética não parece estar imune nem à acusação de ser uma
interpretação restritiva, nem de apelar à crença que há dados brutos os quais esquemas
conceituais devem captar.

O projeto de uma estética do significado possui duas faces bastante distintas, embora
complementares: de um lado, a fundamentação disciplinar da estética sobre a ontologia de
obras de arte; de outro, a interpretação das experiências estéticas como uma função desta
ontologia. Há, portanto, dois grandes desafios. O primeiro deles consiste em superar os
altos cimos impostos pela ontologia da arte derivando ou aproximando dela um modelo
epistemológico adequado à estética. O segundo, por consequência, consiste em forjar um
modelo de experiência estética cognoscitivamente condicionada que não seja
excessivamente intelectualizada. Um debate com a fenomenologia poderia render bons

228
frutos em ambos os vieses do projeto, principalmente porque o tão criticado conceito de
significado (a exemplo da crítica canônica de Quine) seria mais bem aproveitado se
aproximado à noção de significância. Há já um debate caudaloso envolvendo analíticos,
fenomenólogos, hegelianos e filósofos ―hìbridos‖ que fazem esta aproximação em
epistemologia, filosofia da mente e estética. O projeto é promissor e, ainda que
embrionário, insere Danto em um debate com uma intuição original. Há nele certa
excentricidade, mas esta parece ser uma marca de toda ideia filosófica original, e é algo que
dificilmente os filósofos poderiam reivindicar não serem.

229
7- REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

AITA, Virgínia. Arthur Danto – narrativa histórica sub specie aeternitatis. ARS, São
Paulo, vol.1 no.1, 2003, p. 144-159. http://dx.doi.org/10.1590/S1678-53202003000100012

ALCARAZ LEÓN, María José. La teoría del arte de Arthur Danto: de los objetos
indiscernibles a los significados encarnados. Universidad de Murcia: Departamento de
Filosofía y Lógica, 2006. Tese de doutorado. Repositório:
http://hdl.handle.net/10803/10823 . Último acesso em 06/05/2017.

ANDINA, Tiziana. Arthur Danto: philosopher of pop. Newcastle: Cambridge Scholars


Publishing, 2011.

ARISTÓTELES. Metafísica: livro 1 e livro 2. Tradução Vicenzo Cocco. São Paulo: Abril
Cultural, 1979.

________. Retórica, Livro II. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005. 2ª ed.
revisada. Vol. VIII, Tomo I.

AUDI, Robert. The Cambridge Dictionary of Philosophy. Second edition. Cambridge


University Press, 1999.

AUSTIN, John L. Sentido e percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

BAGGINI, Julian; FOSL, Peter S. As ferramentas dos filósofos. São Paulo: Loyola, 2012.

BAYER, Raymond. História da estética. Tradução José Saramago. Lisboa: Editorial


Estampa, 1995.

CARRIER, David. Danto‟s Aesthetic: Is it Truly General as he Claims? In: ROLLINS,


Mark. Danto and His Critics. Second Edition. Willey-Blackwell, 2012, p. 232-247.

________. Danto as systematic Philosopher or comme on lit Danto en français. In:


ROLLINS, Marc. Danto and His Critics. First Edition, Willey-Blackwell, 1993,p. 13-27.

230
CARROLL, Noël. Essence, Expression, and History. In: ROLLINS, Mark. Danto and
His Critics. First Edition, Willey-Blackwell, 1993, p. 79-106.

________. Danto‟s New Definition of Art and The Problem of Art Theories. In: The
British Journal of Aesthetics. 37.4 (Oct. 1997), p. 386-392.

COLLINS, Nicolas. Broken Light II, Locatelli. (In COLLINS, Nicolas. It Was A Dark
And Stormy Night: Trace Elements Records. 1992). [Obra musical].

CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. Wittgenstein: Linguagem e Mundo. São Paulo: Annablume,
1998.

DANTO, Arthur C. Após o fim da arte. Tradução de Saulo Krieger. São Paulo:
Odysseus/Edusp, 2006.

________. Andy Warhol: Arthur Danto. Tradução de Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify,
2012.

________. A transfiguração do lugar comum: uma filosofia da arte. Tradução de Vera


Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

________. Connections to the World: The Basic Concepts of Philosophy. First Edition.
University of California Press, 1997.

________. Duchamp e o fim do gosto: uma defesa da arte contemporânea, p. 23, In:
ARS (São Paulo), São Paulo, v. 6, n. 12, p. 15-28, Dec. 2008. Access on 10 Apr. 2017.
Available from http://dx.doi.org/10.1590/S1678-53202008000200002.

________. Embodied Meanings, Isotypes, and Aesthetical Ideas. In: Global Theories of
the Arts and Aesthetics. Journal of Aesthetics and Art Criticism, v. 65, n. 1, 2007, p. 121-
129.

________. Indiscernibility and Perception. A reply to Joseph Margolis. British Journal


of Aesthetics, Vol. 39, No. 4, October 1999, p. 322-3.________. The Body/Body Problem:
selected essays. Los Angeles: University of California Press, 1999.

231
________. O mundo da arte. Tradução de Rodrigo Duarte. Revista Artefilosofia, Ouro
Preto, n.1, p. 13-25, jul. 2006.

________. Reply to Sue Spaid. In: AUXIER, Randall E.; HAHN, Lewis E. (editors). The
Philosophy of Arthur Danto. Chicago: Open Court, 2013, p. 208-213.

________. The Future of Aesthetics, p. 110. In: HALSALL, Francis; JANSEN, Julia;
O‘CONNOR, Tony (ed). Rediscovering Aesthetics: Transdisciplinary Voices From Art
History, Philosophy, and Art Practice. Stanford, California: Stanford University Press,
2009, p. 103-116.

________. The Philosophical Disenfranchisement of Art. New York: Columbia University


Press, 1986. (DANTO, Arthur. O Descredenciamento Filosófico da Arte. Tradução de
Rodrigo Duarte. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.)

________. What Philosophy Is : a guide to the elements. New York: Harper & Row, 1968.
(DANTO, Arthur. Que és filosofia. (Traductor Miguel Hernandez Sola). 2. Ed. Madrid:
Alianza, 1984)

DAVIES, Stephen. Weitz's Anti-Essentialism In: LAMARQUE, Paul; OLSEN, Stein


(ed.). Aesthetic and the Philosophy of Art: the analytic tradition. Oxford: Blackwell, 2004,
p. 63-68.

DIAS, Maria Clara (org). O que é filosofia? Ouro Preto, MG: IFAC/UFOP, 1996.

DUCHAMP, Marcel. O Ato Criador; O caso Richard Mutt; Sobre os ready-mades.


Utilizamos uma versão eletrônica textualmente idêntica disponível em repositório textual
ligado ao departamento de Artes Visuais da UNB:
http://ipiunb2012.blogspot.com.br/2012/03/leitura-e-discussao-marcel-duchamp.html.

_________. O Ato Criador In: BATTCOCK, Gregory. A Nova Arte. São Paulo:
Perspectiva (coleção Debates), 1986, p.72-74 [original do artigo de Duchamp: 1957];

_________. O caso Richard Mutt. Blind Man, n°2, New York, 1917.

232
_________. Sobre os ready-mades [Lecture at the Museum of Modern Art, New York,
October, 19, 1961]. Published in: Art and Artists, n°1, 4, July 1966.

EVANS, Gareth. Varieties of Reference. Oxford University Press/Clarendon Paperbacks,


1982.

FISHER, John Andrew. Is There a Problem of Indiscernible Counterparts? The Journal


of Philosophy, Vol. 92, No. 9, Sep., 1995, p. 467-484.

FODOR, Jerry O. Déjà vu All Over Again. How Danto‟s Aesthetics Recapitulates the
Philosophy of Mind In: ROLLINS, Mark. Danto and His Critics, Second Edition, Willey-
Blackwell, 2012, p. 55-67.

FRANGIOTTI, Marco Antônio. Argumentos Transcendentais e Ceticismo. In: Luiz


Henrique Dutra; MORTARI, Cesar (Org.). Nos Limites da Epistemologia Analítica.
Florianópolis: NEL/EDUFSC, 1999.

GANDARILLAS, Francisco Pereira. Contenido perceptual y la insuficiencia de la tesis


conceptualista. Revista Analytica, Lima, n. 1, vol. 1, 2007.

GHIRALDELLI JR., Paulo. Entrevista com o Filósofo e Crítico de Arte do The Nation,
Arthur Danto, a Paulo Ghiraldelli Jr. Disponível em:
http://ghiraldelli.files.wordpress.com/2008/07/arthur_danto_entrevista.pdf>. Acesso em: 17
junho 2011.

GIOMBINI, Lisa. On Margolis‟ „Farewell Party‟. Leitmotiv, vol. 0, 2010, ISSN 1720-
3716, http://www.ledonline.it/leitmotiv/Allegati/Leitmotiv-2010-0-Giombini.pdf Último
acesso: (06/05/2017).

GLOCK, Hans- Johann. Dicionário Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

GRIGORIEV, Serge. Living Art, Defining Value: Artworks and Mere Real
Things.ContemporaryAesthetics.<http://www.contempaesthetics.org/newvolume/pages/arti
cle.php?articleID=303&searchstr=Grigoriev> (05/10/2012).

233
________. A reply to Puolakka. Contemporary Aesthetics.
<http://www.contempaesthetics.org/newvolume/pages/article.php?articleID=408&searchstr
=Grigoriev> (05/10/2012).

HAGBERG, Garry. Art as Language: Wittgenstein, Meaning and Aesthetic Theory. Ithaca:
Cornell University Press, 1995.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de estética I. Tradução de Marco Aurélio


Werle. 2 ed. São Paulo: Edusp, 2001.

HEGENBERG, Leonidas. Definição e termos técnicos. Tradução de J. P. Paes. São Paulo:


Cultrix, 1970.

HELFER, Inácio; ROHDEN, Luiz; SCHEID, Urbano (orgs). O que é filosofia? São
Leopoldo, RS: Editora UNISINOS, 2003.

HERWITZ, Daniel. Estética: conceitos-chave em filosofia. Porto Alegre: Artmed, 2010.

JIMENEZ, Marc. O que é estética? São Leopoldo, Rio Grande do Sul: UNISINOS, 1999.

KENNICK, W. E. Theories of Art and the Artworld: comments. The Journal of


Philosophy, vol. 61, No. 19, American Philosophical Association. Eastern Division Sixty-
First Annual Meeting, October, 15, 1964, p. 585-587.

KRAUSS, Rosalind. Uma visão do modernismo. In: FERREIRA, Gloria; MELLO,


Cecilia Cotrim de (org.). Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Funarte, Jorge Zahar
Editor, 1997, p. 163-174.

LAFFERTY, Michael Gerald. Danto‟s Theory of Art. University of Warwick: Department


of Philosophy, 2006. Tese de doutorado. Repositório online:
http://go.warwick.ac.uk/wrap/42211 . Último acesso em 04/12/2016.

LIMA, Eduardo Coutinho Lourenço de. A percepção após a interpretação na filosofia da


arte de Arthur Danto. Artefilosofia, Ouro Preto, n. 5, julho 2008, p. 96-107.

MARGOLIS, Joseph. A closer look at Danto‟s account of art and perception. British
Journal of Aesthetics, vol. 40, n. 3, July, 2000.

234
_________. Farewell to Danto and Goodman. British Journal of Aesthetics, Vol. 38, No.
4, October 1998; e A closer look at Danto‘s account of art and perception. British Journal
of Aesthetics, vol. 40, n. 3, July, 2000.

NUDLER, Óscar (ed.). Los problemas de la filosofía de la filosofía. Madrid: Editorial


Trotta, 2010.

PUOLAKKA, Kalle. Interrupting Danto 's Farewell Party Arrangements: Comments for
Grigoriev. Contemporary Aesthetics.
<http://www.contempaesthetics.org/newvolume/pages/article.php?articleID=392> Último
acesso: (05/10/2012).

PLATÃO. A República: ou sobre a justiça. Tradução de Anna Lia Amaral de Almeida


Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

PUTNAM, Hilary. Reason, Truth, and History. Cambridge University Press, 1982.

RAMME, Noeli. A estética na filosofia da arte de Arthur Danto. Artefilosofia, Ouro


Preto, n. 5, p. julho 2008, 87-95.

________. É possível definir “arte”? Analytica, Rio de Janeiro, vol. 13 nº 1, 2009, p. 197-
212.

ROLLINS, Mark. The invisible content of visual art. Symposium: The Historicity of the
Eye. The Journal of Aesthetics and Art Criticism, vol. 59, n. 1, Winter, 2001.

RÓS, Sigur. Hún Jörð... (In RÓS, Sigur. Von: Little Indian/Smekkleysa. 1997. Faixa 3).
[Obra musical].

RUDNER, Richard. The Ontological Status of the Esthetic Object. In: Philosophy and
Phenomenological Research, 1950, 10 (3): 380–388.

SHOOK, John R. (Ed). The Dictionary of Modern American Philosophers. Vol. 1. Bristol:
Thoemmes, 2005.

235
SPAID, Sue. Being-Here: Representationally Characterized Events or Not… In:
AUXIER, Randall E.; HAHN, Lewis E. (editors). The Philosophy of Arthur Danto.
Chicago: Open Court, 2013, p. 193-207.

STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY. Verbete: Thought Experiments.


https://plato.stanford.edu/entries/thought-experiment/#TypThoExpTax First published Sat
Dec 28, 1996; substantive revision Tue Aug 12, 2014. Último acesso em 06/12/2016.

________. Verbete: History of the Ontology of Art. First published Mon Aug 29, 2011;
substantive revision Tue Jun 7, 2016. Link de acesso: https://plato.stanford.edu/entries/art-
ontology-history/#MappOntoThes

THÉRIAULT, Mélissa. Arthur Danto ou l'art en boîte. Paris: L'HARMATTAN, 2010.

________. Trente ans après La Transfiguration du Banal: Danto, héritier de


Wittgenstein. Canadian aesthetics journal - Greenberg, Kant and Contemporary
Aesthetics. Vol. 14, summer 2008, p. 1-18. Disponível em:
<http://www.uqtr.uquebec.ca/AE/Vol_14/index.html>. Acesso em: 17 maio 2011.

WEITZ, Morris. O papel da teoria na estética. Tradução de Célia Teixeira. Disponível


em: < http://criticanarede.com/fil_teoriaestetica.html>. Acesso em: 2 junho 2011. Artigo
originalmente publicado em The Journal of Aesthetics and Art Criticism, XV (1956), 27-
35. (D‘ OREY, Carmo (org). O Que é a Arte? A Perspectiva Analítica. Tradução de Vítor
Silva e Desidério Murcho. Lisboa: Dinalivro, 2007).

WITTGENSTEIN, Ludwig. Estética, Psicologia e Religião: Palestras e Conversações.


Tradução de J. P. Paes. São Paulo: Cultrix, 1970.

________. Tratado Lógico-Filosófico; Investigações Filosóficas. 6ª ed. Lisboa: Calouste


Gulbenkian, 2015.

236

Você também pode gostar