Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Rio de Janeiro
2010
Marlise Eugenie D´Icarahy
Rio de Janeiro
2010
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
dc
CDU 159.964.2
__________________________________ ___________________
Assinatura Data
Marlise Eugenie D´Icarahy
Banca Examinadora:
___________________________________________
Profª Drª Rita Maria Manso de Barros (Orientadora)
Instituto de Psicologia da UERJ
____________________________________________
Profª. Drª. Heloisa Caldas
Instituto de Psicologia da UERJ
____________________________________________
Profª Drª Ana Maria Rudge
Faculdade de Psicologia da PUC- Rio
Rio de Janeiro
2010
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho ao meu irmão e aos meus três analistas: cada um tão decisivo
Quero agradecer aos professores Ana Maria Rudge e Heloisa Caldas, por
quem tenho grande admiração profissional, por terem aceitado fazer parte da banca
examinadora deste trabalho ao qual me dediquei de modo tão intenso. Gostaria de
registrar também minha enorme alegria pelo privilégio de ser orientanda da
professora Rita Maria Manso de Barros, que me deu espaço para voar e, ao mesmo
tempo, esteve sempre muito próxima.
Esse trabalho é fruto também das análises que conduzi e do incentivo da
professora Vera Pólo que reconheceu, quando me orientou no curso de pós-
graduação a pertinência da hipótese que agora apresento.
Preciso ainda agradecer aos professores e aos colegas desse programa, que
me ajudaram com suas críticas, sugestões e incentivos a chegar aos resultados que
agora apresento.
Desejo também dizer da minha gratidão aos homens que amei e pelos quais
foi amada, em especial a Thuin que, há alguns anos, me indicou o caminho
profissional que agora sigo; e a Gustavo, companheiro que esteve sempre ao meu
lado, neste período de dedicação à dissertação. Sem amor, teria sido impossível
escrever sobre a posição feminina.
Acrescento ainda minha gratidão pela esperança e alegria que meus pais,
tias, tios e avós, cada um com suas paixões, me transmitiram para enfrentar os
desafios e o imponderável que a vida apresenta. Destaco também o apoio constante
de minha mãe.
Agradeço também a Nicolas, Ana, Ian, Petter e Vitor que constantemente me
convocam a voltar à aventura do tentar, do arriscar sem certeza prévia.
Aos amigos queridos, meu reconhecimento sincero porque é junto deles,
também, que rio das dificuldades e comemoro as conquistas.
RESUMO
INTRODUÇÃO ....................................................................................... 9
3.10 A catástrofe 86
Introdução
1
Livre tradução de: Entonces, la fantasía de paliza y otras fijaciones perversas análogas sólo serían unos
precipitados del complejo de Edipo, por así decir las cicatrices que el proceso deja tras su expiración (FREUD,
1919/ 2006: 190).
11
de ligação da menina com a mãe no seio da fantasia „bate-se numa criança‟, pode
ser rescrita, utilizando conceitos lacanianos, nos seguintes termos: exame da
presença do Outro materno na fantasia fundamental e, também, no seu matema.
O primeiro capítulo esboça um roteiro lógico da constituição psíquica do
infans, utilizando os conceitos de pulsão de morte, Eros e narcisismo primário. Em
seguida, acompanhamos a constituição de um protótipo de Eu a partir do
investimento libidinal e da linguagem que o Outro materno lhe dirige. Desse
processo decorre a divisão do objeto em familiar e em estranho, esse último
permanece no inconsciente como seu núcleo real, a coisa – das Ding, em torno do
qual o inconsciente se estrutura como uma linguagem.
Seguimos chamando a atenção também para o termo utilizado por Lacan,
no Seminário, livro 5, As formações do inconsciente ((LACAN, 1958/ 1999: 195) de
“lei da mãe”, que diz respeito às letras recebidas do Outro materno.
Estabelecemos uma relação entre a lei da mãe e a Lei do Nome-do-pai, que põe
um limite ao gozo. Para tal, utilizamos o conceito de “sintoma separador” da lei da
mãe proposto por Geneviève Morel (2007-2008) que, no caso da neurose, é a
fantasia fundamental. Consideramos importante distinguir o sintoma separador,
estrutural no caso da neurose, do sintoma como formação de compromisso.
Ainda no primeiro capítulo, estudamos a castração simbólica que transforma
um objeto impossível em um objeto proibido. A castração simbólica é decisiva para
a passagem do proto-sujeito, ou infans, à condição de sujeito dividido, que ocorre
através da metáfora paterna. É no bojo desse processo que a fantasia
inconsciente fundamental se constitui, acoplando à alienação absoluta a que
estava submetido o infans, uma separação em relação ao Outro materno. Nesse
novo processo se constitui o sujeito de desejo e o objeto a. Como veremos, a
fantasia é a síntese inconsciente da posição que a criança assume para satisfazer
ao que supõe ser o desejo e o gozo do Outro. Fechamos esse primeiro capítulo
discutindo a polêmica questão se a fantasia fundamental é um conceito específico
da neurose e da perversão ou se seria possível estendê-lo à psicose, no delírio
paranóico, e apresentamos as três dimensões da fantasia trabalhadas por
Ribettes. Em suma, nesse capítulo, procuramos traçar um roteiro lógico do
desenvolvimento psíquico do bebê desde seu ingresso na linguagem até a
castração simbólica, com a consequente constituição da fantasia fundamental que
o estrutura na neurose.
13
lógica fálica que caracteriza a mulher que ocupa a posição feminina. Lacan aponta
que, se uma mulher está no campo da neurose, apesar do psiquismo ter se
estruturado pelo Édipo, há uma parte dela que permanece regida por uma lógica
sem mediação fálica, portanto, sujeita à ligação com o Outro primordial sem
intermediação do Nome-do-pai.
Se tanto a posição feminina - referida à fantasia - como o aspecto não-toda
da mulher mantém uma proximidade com a posição de objeto do infans frente ao
Outro primordial, interessa-nos observar como essa semelhança pode nos auxiliar
a responder se esse Outro comparece, de algum modo, na fantasia fundamental
de uma mulher. A clínica confirma essa presença pela freqüência com que
mulheres atribuem às mães a responsabilidade pelos seus fracassos e pelas suas
castrações imaginárias. Lacan (1972/ 2003) denuncia que a posição demandante
da mulher em relação à mãe persiste ao longo da vida, como se fosse ela a capaz
de lhe dar o falo. Consideramos crucial, por isso, distinguir o agente da castração
simbólica do agente da castração imaginária nos casos femininos.
Ligamos também a relação mãe/filha anterior ao complexo de Édipo com a
ideia freudiana de catástrofe ou de devastação(Lacan), também presente no que
Freud (1931) chamou de “recalque inexorável. Tratamos da fantasia perversa
masculina e do Édipo invertido, e defendemos a hipótese que a fantasia seja a
própria metáfora paterna. Compartilhamos algumas considerações de Anna Freud
a respeito da fantasia de espancamento, análise que muito nos interessa já que
provavelmente ela foi um dos casos femininos estudados por Freud em 1919a.
Através de seu relato, ressaltamos a importância do objeto a olhar na estrutura
dessa fantasia. Finalizamos o capítulo, com reposicionamento de Freud quanto ao
que ele próprio considerou seu erro na análise de Dora.
Na conclusão, retomamos os pontos principais que a pesquisa descobriu,
tecendo nossas considerações e expondo questionamentos que pretendemos ter a
oportunidade de trabalhar no futuro.
Antes de iniciar os trabalhos, gostaríamos de ressaltar que as citações da
Edição Standard Brasileira da Editora Imago, tiveram alguns de seus termos
substituídos pela interpretação corrente no meio acadêmico desses conceitos em
alemão. Assim, ego foi substituído por Eu; superego, por Supereu; catexia, por
investimento; repressão, por recalque; id, por isso; instinto por pulsão.
15
Esperamos que a leitura deste trabalho traga tanto prazer ao leitor quanto
nos deu criá-lo.
16
1 A constituição do sujeito
2
Livre tradução de: mediante una inferencia retrospectiva [...] la actitud de padres tiernos hacia sus hijos,
habremos de discernirla como renacimiento y reproducción del narcisismo propio, ha mucho abandonado.
17
3
Teorização desenvolvida por Lacan a respeito do momento de organização lógica do Eu de
acordo com as coordenadas de Freud sobre o narcisismo secundário. Lacan (1949/ 1998) O
estádio do espelho como formador da função do Eu.
18
ressurgir o narcisismo que eles próprios tiveram que abandonar por exigência da
realidade” (GARCIA-ROZA, 2008:56).
Assim, para vencer a força da pulsão de morte é sine qua non que aquele
que exerce a função materna invista libidinalmente o corpo da criança, através da
transmissão de significantes que se inscrevem nas bordas de seus orifícios. A
linguagem que a mãe dirige à criança goteja significantes que transformam sua
carne num corpo próprio erógeno. É nesse banho de linguagem que os pais
transmitem, num discurso inconsciente, a escritura de seu desejo. Fala-se do
bebê antes mesmo de seu nascimento: cada mulher e cada homem, muito antes
da existência da carne, “escrevem uma espécie de “script” inconsciente para o filho
que querem ter. “Esse roteiro é uma espécie de expectativa de recuperação da
ferida narcísica” (MANSO DE BARROS, )
Se a pulsão de morte é inata e apenas reforçada pela rejeição que se encontra, ou resulta
por completo dos mandatos mortíferos da mãe, eis uma alternativa que parece ter uma
relevância relativa, de vez que não terá muitas conseqüências clínicas. Efetivamente, não há
amor integral e não ambivalente, e a pulsão de morte jamais deixará de encontrar terreno
para se constituir por identificação com a hostilidade do adulto que se eterniza no Supereu
(RUDGE, 2006:).
4
Livre tradução de el complejo del prójimo (FREUD, 1950[1895]/2006:377); “Complexo do ser humano
semelhante” (FREUD, 1950[1895]/1996:384).
20
Na medida em que não somente o homem fala, mas em que, no homem e através do
homem, isso fala, em que sua natureza torna-se tecida por efeitos onde se encontra a
estrutura da linguagem em cuja matéria ele se transforma, e em que isso ressoa nele
(LACAN, 1958/1998: 695).
5
Letra – Lacan vai definir a letra como „terra do litoral‟, „rasura de todo traço que esteja antes‟ (ANDRÈS in:
KAUFMANN, 1996: 285).
21
Colette Soler (2008) propôs que a divisão do inconsciente ocorre entre uma
parte estruturada como linguagem, saber construído com a articulação significante,
pertencente ao campo simbólico; e outra, que seria o próprio núcleo do
inconsciente, que ela nomeou „inconsciente real‟. Esse último, segundo Soler, é
formado por traços retidos de lalingua. Lalingua é um conceito lacaniano que
sintetiza o enxame de cifras de gozo, letras, pelo qual se foi, precocemente,
invadido.
6
O “inconsciente estruturado como linguagem” é uma formulação de Lacan baseada nos estudos freudianos
sobre as formações do inconsciente. Tema bastante trabalhado no Seminário, Livro 5, As formações do
inconsciente, e nos Escritos, em A instância da letra (LACAN, 1957/ 1998).
22
7
Conceito mais utilizado por Lacan “Inicialmente ligada ao prazer sexual, [...] implica a idéia de transgressão
da lei”(ROUDINESCO/ PLON, 1998:299).
23
linguagem” (JORGE, 2005: 98). Pode- se dizer, por conseguinte, que em torno do
“ponto de real no inconsciente” (JORGE, 2005) ou do “núcleo real do inconsciente”
(SOLER, 2008) se estrutura a outra parte do inconsciente regida pelas leis do
simbólico.
Lacan (1986/1997) considera das Ding um vazio íntimo e, ao mesmo
tempo, externo, ex-timo, em torno do qual a rede significante se tece. O campo
designado como a Coisa permanece como limite entre o real, experiência do sem
sentido, e o simbólico, campo plurívoco. Para a Coisa, não há representação
simbólica possível, há apenas um vazio, núcleo do real, lugar do Outro primordial,
absoluto, miticamente potente e paradoxalmente faltoso que o atrai com uma força
decisiva durante toda a vida, como o lugar topológico da satisfação que, caso não
fosse impossível, seria absoluta e total.
8
Endereço eletrônico nas referências bibliográficas.
ai
Infans: aquele que ainda não fala, que é falado.
24
A lei da mãe, é claro, é o fato de que a mãe é um ser falante, e isso basta para legitimar que
eu diga a lei da mãe. Não obstante, essa lei é, por assim dizer, uma lei não controlada.
Reside simplesmente, ao menos para o sujeito, no fato de que alguma coisa em seu desejo
é completamente dependente de alguma outra coisa, que sem dúvida já se articula como tal,
e que é realmente da ordem da lei, só que essa lei está, toda ela, no sujeito que a sustenta,
isto é, no bem-querer ou malquerer da mãe, na mãe boa ou má. (LACAN, 1958/ 1999:195).
10
Livre tradução de: nous fabriquons dês symptômes séparateurs qui sont en fait l´enveloppe de la seule loi
universelle que reconnaît la pychanalyse, l´interdit de l´inceste (MOREL,2007, 27/8).
25
A teoria de 1958 [...] não dá um status claro a esta lei da mãe, com freqüência retida pela
criança sob a forma de palavras maternas fatídicas, não se trata do significante do desejo da
mãe, é muito mais um traço de seu gozo e de seu excesso de presença junto à criança
12
(MOREL, UERJ, 27-8-2007) .
Podemos mapear três níveis do sintoma como patologia da lei. Em primeiro lugar, o efeito
imposto da linguagem no sujeito faz deste um a-sujeito, em segundo lugar, para se separar
deste efeito imposto que toma a forma de uma “lei da mãe”, o sujeito deve constituir um
sintoma que envolve a interdição do incesto e que é em si mesmo um fator de sofrimento; ele
faz isso com (neurose ou perversão) ou sem o Nome-do-pai (psicose) mas, neste último
caso, não é raro que ele ainda assim se apóie em seu pai; em terceiro lugar, este sintoma
pode, pelo saber-fazer do sujeito (ou graças à sua análise), se tornar o que Lacan nomeou
de sinthoma (MOREL, 2008: 147).
[O] papel que desempenha a fantasia na formação dos sintomas tornar-se-á evidente [...] em
caso de frustração, a libido reveste de investimentos, regressivamente, as posições que
abandonou, às quais, porém, permaneceram aderentes determinadas parcelas da mesma
libido (FREUD, 1916- 1917/ 1996: 375).
13
Livre tradução de: nos deja perplejos el hecho de que la fantasía surgida en la niña tras la represión tenga
igualmente el valor y el significado de un síntoma (FREUD, 1919/ 2006: 199).
14
“A transformação do sadismo em masoquismo parece acontecer por influência do sentimento de culpa que
14
participa no ato do recalque”(FREUD, 1919/ 2006: 191) .
15
Livre tradução de: el complejo del prójimo (FREUD, 1950[1895]/2006:377); Complexo do ser humano
semelhante (FREUD, 1950[1895]/1996:384).
29
16
Em O eu e o isso (1923), Freud trabalha a diferença entre o inconsciente descritivo, que engloba o conteúdo
latente e o recalcado; e o inconsciente dinâmico que só contempla o recalcado.
30
17
O que queres?
18
Desejo pode ser definido como o movimento inconsciente em direção a algo enigmático.
31
19
Livre tradução de: punto de origen entre el significante y la verdad (LACAN, 1966-1967/ inédito).
20
Livre tradução de: Yo la verdad, lo hablo(LACAN, 1966-1967/inédito).
21
Seminário ainda não publicado.
32
22
homem mulher / A mãe criança
_______ _______ ____ ______
$ a $ a
A divisão operada pelo Nome-do-Pai no Outro materno faz com que ela seja
dividida entre mãe - que tem a criança como objeto -; e mulher - objeto da fantasia
de um homem, portanto, ocupante da posição feminina. A posição feminina,
segundo Lacan é aquela na qual, na partilha dos sexos, o sujeito se coloca na
posição de quem não tem o falo e se acopla à fantasia de outro que faz semblant
de tê-lo - posição masculina. Essa distinção que será trabalhada em capítulo mais
à frente.
A divisão da mãe permite à criança sair do aprisionamento absoluto ao lugar
de objeto materno, e criar uma interpretação própria, inconsciente, do falo,
identificando-se ao que na fórmula corresponde à posição do homem. A posição
masculina com a qual a criança pode se identificar se o Outro materno é dividido
em mãe e mulher, corresponde àquela em que o homem, por também ser dividido,
tem uma fantasia e insere, nesta fantasia, a mulher como seu objeto a. Ou seja, a
divisão do Outro materno em duas posições: mulher e mãe, é o que permite a
criança ser atravessada pelo significante Nome-do-pai, também se dividindo em
objeto de gozo dela, por um lado; e em sujeito que deseja a partir de uma falta e
de uma fantasia – como o pai/ homem- por outro. Para tornar-se sujeito desejante,
a criança precisa, por conseguinte, dividir-se, identificando-se em parte ao objeto
que supõe ser aquele para o qual sua mãe se dirige: o portador do falo, na
fórmula, o lugar do homem. Assim, uma vez salvo da posição de objeto de gozo
do Outro pela brecha através do qual o desejo materno lança um enigma, o sujeito
fantasia inconscientemente que o que completaria o Outro materno seria uma
determinada cena.
Portanto, a fantasia fundamental se constitui no momento lógico em que o
proto-sujeito desloca-se da posição exclusiva de objeto a da mãe, para outra na
qual constrói sua interpretação inconsciente daquilo que o Outro desejaria.
Ressaltamos a enorme proximidade conceitual entre fantasia e falo, pois se Jorge
(2006) afirma, como mencionamos antes, que a fantasia é uma resposta ao
22
Livre tradução de: Hombre Mujer A Madre Niño (NOMINÉ, 2000:43).
______ ______ ______ _____
$ / a $ / a
33
Para Lacan (1958/ 1999), na investigação que a criança faz dos porquês
das coisas, o que a criança se empenha em saber é qual é o desejo do Outro. E, é
a sua interpretação desse desejo do Outro que constitui a fantasia fundamental,
fazendo nascer um sujeito dividido e um objeto a, $ <> a. Sujeito dividido e objeto
a surgem, na fantasia fundamental, como posições antagônicas, mas intimamente
ligadas e interdependentes, ambas constituintes da realidade psíquica particular de
cada um.
Lacan codificou a fantasia fundamental em um matema ou fórmula
propugnado ao longo da sua obra:
$<>a
Na qual
$ corresponde ao sujeito dividido pela castração simbólica, ou seja, pelo
complexo de Édipo
a simboliza o objeto a , que é um contorno daquilo que se apresenta
como um vazio íntimo, mas, ao mesmo tempo, externo, “a Coisa”
(das Ding), termo que Freud utilizou para caracterizar o que no
psiquismo carece de simbolização, a saber, o enigma que o desejo
do Outro materno coloca para a criança. O objeto a se constitui como
uma borda frente a esse vazio. Situa-se como uma interseção entre o
que é do campo da própria criança e o que é do campo do Outro
materno. Interseção que é produzida na experiência da operação
psíquica de separação, e que é o produto dessa separação. O objeto
a é também o elemento no psiquismo que causa o desejo e é,
justamente, frente a ele que se constitui um sujeito de desejo.
34
<> indica que existe uma função entre os dois termos, no caso $ e a.
Portanto, o valor de um termo depende do outro. Da forma como
Lacan formulou o matema $ depende de a, porque $ é função de a, e
não o contrário. Logo $ é conseqüência de a.
Lacan divide o símbolo <> em dois, para indicar momentos psíquicos
distintos da constituição do sujeito, a saber, a alienação e a separação:
Assim,
$<>a
O sujeito está eclipsado pela linguagem[...] sendo seu único traço um marcador de lugar ou
sinal na ordem simbólica. [...] o processo de alienação produzindo o sujeito como conjunto
vazio [...] transforma o nada em algo ao marcá-lo ou representá-lo [...] o sujeito lacaniano
está baseado na nomeação do vazio. O significante é o que funda o sujeito (FINK, 1998: 75).
23
Afânise: termo utilizado por Jones, que com Lacan passou a designar “movimento de fading, de
desvanecimento, de eclipse do sujeito” (P. SALVAIN in KAUFMANN, 1996: 10).
36
o que faz parte do Outro materno também faz parte do „Eu real‟ e vice-versa. Se
for um elemento do Eu ou do Outro pertence ao mesmo conjunto no qual se está
alienado.
Assim, na operação caracterizada pelo vel da alienação, o sujeito se funda
submetendo-se ao significante. Ele esclarece que esse V inferior deve ser lido na
fórmula da fantasia fundamental $<>a da esquerda para direita, ou seja, do campo
do $, sujeito dividido, para o objeto a. Ele ilustra a passagem da operação de
alienação para a de separação com o exemplo medieval de „a bolsa ou a vida‟.
Este exemplo indica que se a pessoa, num assalto, escolhe guardar a bolsa, perde
os dois, a bolsa e a vida; e se cede a bolsa porque prefere preservar a vida, não
estará jamais completo. Portanto, para se tornar sujeito, necessariamente, será
preciso alienar algo de si, e o que se perde na operação da separação é o ser,
unidade ôntica, que ficará para sempre decepada.
Ele afirma que o processo de alienação está pautado na operação de
reunião da teoria dos conjuntos, porque o que é do Outro, o significante, passa a
ser do sujeito também. Já no processo de separação, que permanece acoplado ao
primeiro, Lacan adverte tratar-se da operação de interseção. Isso porque se
constituem psiquicamente dois conjuntos distintos, o sujeito e o outro, que têm
como interseção o campo do objeto a, que condensa uma borda erógena que
pertence, na constituição do sujeito, ao campo do Outro, mas também ao mais
intimo desse sujeito. É, portanto, nessa operação que o sujeito tenta recuperar nos
“objetos da pulsão sua parte de ser perdida, identificando-se ao objeto a.”
(MOREL,2007b).
No Seminário livro 10, A angústia ( 1963/ 2005), Lacan admite que o objeto a
é uma libra de carne arrancada do corpo do sujeito, e que esse objeto a ele,
sujeito, supõe localizado no Outro. “Se o que existe de mim mesmo está do lado
de fora, não tanto porque eu o tenho projetado, mas por ter sido cortado de mim,
os caminhos que Eu seguir para sua recuperação oferecerão uma variedade
inteiramente diferente” (LACAN, 1963/ 2005:246).
Portanto, a fantasia fundamental pode ser lida como a tentativa de
recuperar a libra de carne, para sempre perdida através do corte operado pelo
significante Nome-do-pai, na operação de separação. Ainda no Seminário livro 11
Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/ 1998), Lacan trabalha
ainda a etimologia de separar, partindo de se parare, passando por “munir-se do
37
necessário para pôr-se em guarda”, até chegar à palavra em latim que designa
engendrar, „pôr no mundo‟, parir. Assim, mesmo considerando que o desejo é
sempre desejo do Outro, o sujeito atravessado pela operação de separação
inaugura uma diferença entre o Eu e o Outro que „engendra‟, „cria‟, „põe no mundo‟
uma interpretação própria do que seria o desejo do Outro. Interpretação que o
„mune do necessário‟ para sobreviver psiquicamente apartado do Outro.
Então, o efeito da operação de separação, através da qual a criança deixa
de ser, exclusivamente, objeto de gozo do Outro, e se constitui como sujeito de
desejo, seria a fantasia fundamental? No caso da neurose, cremos que sim. A
operação de separação acoplada a de alienação, na neurose, parece indicar
precisamente o momento de constituição da fantasia fundamental.
A realidade material, ou dita objetiva, não é algo comum para todos os sujeitos falantes:
cada sujeito estabelece uma relação com o mundo e com os outros por meio de uma
fantasia particular, advinda para ele no momento mesmo de sua constituição e tendo,
portanto, uma íntima relação com o recalcamento originário (JORGE, 2006:68).
24
Voltaremos a esse ponto no capítulo 3.
39
estrutural, a partir do qual uma repetição rege como uma lei à articulação entre a
sua castração e o objeto causa de seu desejo.
Lacan (1963/1998) faz uma subversão da clássica relação entre sujeito, ativo,
e objeto, passivo. Propõe que o objeto seja o elemento ativo, e o sujeito, o passivo,
já que é o sujeito que se deixa causar pelo objeto a. Longe de ser passivo, apenas
sofrendo a ação de um sujeito, é, pelo contrário, o objeto a, representante da
Coisa, do objeto impossível, e razão da busca incessante do desejo em sua cadeia
metonímica, que o causa.
É o Outro materno que introduz, em seu discurso, pelo valor que dá à palavra
de um terceiro, a direção de seu desejo. Esse terceiro passa a indicar uma posição
lógica de quem porta o falo que falta à mãe, e que se apresenta, portanto, fora da
relação dela com a criança. A partir do discurso materno, a criança detecta a
divisão da mãe em: mãe e mulher, e atribui a um terceiro a posse de algo que sua
mãe deseja. Para Lacan, a importância daquele que desempenha a função
paterna, está diretamente ligada a sua capacidade de direcionar o desejo da mãe
para si, apontando para a criança que é neste limite que esbarra seu desejo.
Desejo, por conseguinte, barrado e para sempre insatisfeito.
É, portanto, o discurso materno que evidencia o valor, por ela dado a palavra
de um terceiro, a quem Lacan nomeia função paterna, elemento simbólico suporte
da metáfora paterna, que transmite a Lei e funda o desejo. A função paterna é
exercida por aquele que é percebido pela criança como possuidor de algo que falta
à mãe e para o qual o desejo dela se dirige. E, é, justamente, aquilo que cada um
supõe ser a resposta à questão do desejo materno que constitui o que Lacan
chama de falo. Se a mãe dirige seu desejo a um terceiro, evidenciando assim a
castração simbólica, tanto dela quanto a da criança, a dialética a respeito da posse
do falo passa a se colocar para a criança. Dito de outra forma, diante da ferida
narcísica instaurada pela castração – que é tanto própria como do Outro-,
evidenciada no fato de que o Outro deseja, o sujeito cria uma fantasia na qual se
localiza frente ao enigma do desejo do Outro. A partir da lógica inconsciente de
questionamento sobre quem detém o falo, a criança cria uma cena na qual o
desejo enigmático do Outro seria satisfeito, através do enquadre da fantasia
fundamental, na qual suspeitamos que o Eu passe a se identificar ao objeto a26.
25
Daí o valor atribuído por Lacan à homofonia, na língua francesa, entre nom, nome, e non, não.
26
Abordaremos essa questão na conclusão do trabalho
42
Tal fantasia é construída em íntima relação com o enigma do desejo do Outro, o Che vuoi?,
cuja questão será respondida pelo sujeito com uma construção fantasística primordial, que
constitui uma verdadeira matriz a partir da qual o sujeito vai desenvolver todas as suas
relações com seus semelhantes e o mundo a sua volta. (JORGE, 2006:64).
O falo entra desde logo em jogo, a partir do momento em que o sujeito aborda o desejo da
mãe. Esse falo é velado e permanecerá velado até o fim dos séculos, por uma razão
simples: é que ele é um significante último na relação do significante com o significado
(LACAN, 1957-1958/ 1999: 249).
O desejo da mãe [...] o objeto de uma busca enigmática que deva conduzir o sujeito, no
correr de seu desenvolvimento, a rastrear esse sinal, o falo, para que então entre na dança
do simbólico, seja o objeto preciso da castração e, por fim, entregue a ele sob uma outra
forma, para que ele faça e seja o que se trata de fazer e ser. Ele o é, ele o faz, mas, aqui,
estamos absolutamente na origem, no momento em que o sujeito se confronta com o lugar
imaginário onde se situa o desejo da mãe, e esse lugar está ocupado (LACAN, 1957-1958/
1999: 249).
44
27
Livre tradução de: “tanto en la histeria como en la obsesión, el tratar de manejar el fantasma de manera que
el Otro aparezca como completo[...]manejar las cosas de modo que el Otro aparezca, por ejemplo, como
dueño y señor de su deseo, lo que equivale también a que quede sin deseo” (MILLER,1984/1986: 37).
45
28
Fantasias originárias (Urphantasien) dizem respeito ao patrimônio universal de fantasias compartilhadas.
46
Se Joyce soube, por sua escrita, remediar a foraclusão do significante paterno, podemos
deduzir de seu voto célebre – o de que os universitários se ocupem dele durante trezentos
anos [o que equivale ao voto de fazer falar de si e de fazer pronunciar seu nome] - que sua
fantasia fundamental, de certa forma, se relacionava com a voz; o que poderia ser enunciado
desta forma: fala-se dele, Joyce (RIBETTES, 1985:121).
Então, o que Lacan propõe como fantasia fundamental seria uma defesa
comum às três estruturas clínicas? Ou dever-se-ia reservar o conceito de fantasia
fundamental apenas para a neurose e perversão, quando é possível sintetizá-la no
matema $<>a29, que caracteriza o modo de constituição específico dessa fantasia
29
“Em 1957, Lacan elaborou com seu grafo do desejo um matema da lógica da fantasia, no qual ele situa o
assujeitamento originário do sujeito ao Outro numa relação que traduz uma questão sem resposta: Che vuoi?:
Que queres? O matema $ <> a formula a relação entre o sujeito do inconsciente, sujeito barrado, dividido pelo
significante que o constitui, e o objeto a, objeto inapreensível do desejo que remete a uma falta originária, um
vazio do lado do Outro” (JORGE, 2006:69).
47
30
(LAPLANCHE e PONTALIS, 2001: 172).
48
A fantasia aparece dentro dessa escrita como a montagem gramatical de uma imagem
essencial, à qual se refere o objeto real da pulsão. Ela representa – para dar uma outra
definição – a estrutura significante da qual se veste o objeto real para suportar o desejo
dentro das suas condições de metonímia (RIBETTES, 1985:114).
31
(RIBETTES, 1985:113).
32
(LACAN apud RIBETTES,1985:113).
49
metonímica do desejo. Não obstante, o desejo ter essa natureza metonímica, ele
é regido por um ponto de gozo, no qual o sujeito se encontra estruturalmente
fixado, “repetição significante, mas também repetição de gozo [pelo que a pulsão
de morte se encontra reatada à cadeia significante] (RIBETTES, 1985:116). O
autor ressalta uma dimensão do objeto a de resto, mas de resto de gozo, real, que
merece ser acrescentada ao presente texto e colocada em relevo: o objeto a é a
“parte que resta não simbolizada do falo [...] restitui a conexão do sujeito com o
real” (RIBETTES, 1985:116). E, é por causa desse resto de gozo que a fantasia
se repete como uma compulsão, que o Eu é impotente para mudar, visto ser ela o
axioma que define o sujeito de desejo, do qual o Eu é apenas uma parte.
Uma vez estudada a preservação de traços do gozo materno, ou da lei da
mãe, dentro da lógica da fantasia, interessa agora investigar se há relação entre o
conceito lacaniano de fantasia fundamental e o estudo de Freud sobre a fantasia
“bate-se numa criança”. E, caso haja equivalência entre as duas fantasias, se na
fantasia freudiana também podemos encontrar traços desse Outro materno. É o
que faremos a seguir.
111
REFERÊNCIAS
FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte. (1929). In: Obras
completas. São Paulo: M. Fontes, 1992. p. 47- 51.
______. Três ensaios sobre a sexualidade (1905). In: ______. Edição standard
brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro:
Imago, 1996. v. 7. p.117-231.
______. O Tema dos Três Escrutínios (1913). In: ______. Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro:
Imago, 1996. v. 12. p.313-325.
______. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). In: ______. Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro:
Imago, 1996. v. 14.p. 323 – 446.
______. Pegan a un niño (1919a). In: _______. Obras completas Sigmund Freud.
Buenos Aires: Amorrortu, 2006. v. 17. p. 174 – 200.
______. O Estranho (1919b). In: ______. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 17. p.
235- 273.
______. A negativa (1925). In: ______. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 19. p.
263-269.
______. Feminilidade (1932). In: ______. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 22.
p.113 - 134.
KEHL, M. R. A Mulher e a lei. In: NOVAES, Ética. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992.p. 261 - 273.
114
KLEIN, M. Amor, culpa e reparação (1937). In: ______; RIVIERE, J. Amor, ódio e
reparação. Rio de Janeiro: Imago, 1970. p. 103-104.
______. O seminário, livro 20: mais, ainda. (1972-1973). Rio de Janeiro: J. Zahar,
1985.
______. Kant com Sade (1963). In: Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. p.
776 - 803.
115
______. O aturdito. In: Outros escritos (1972). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003,
p.448 - 497.
MANSO, Rita M. Barros. O que é ser menina? Alguém ensina? In: NOVAES, M.
H.; DUPRET, L. Educação, cultura e potencial humano. Rio de Janeiro: Revinter,
1999. p. 57-72.
MELO NETO, J. C. Uma faca só lâmina. In: MORICONI, Ítalo. Os cem melhores
poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 187-202.
______. Introduction. In: La loi de la mère. Essai sur le sinthome sexuel. Paris:
Economica Antropos, 2008. p. 1-8.
RUDGE, Ana Maria. Considerações sobre a realidade psíquica. Cad. Temp. Psic,
Rio de Janeiro, n. 2, p. 81- 93, 1996.
______. A mãe no inconsciente. In: O que Lacan dizia das mulheres. Rio de
Janeiro, J. Zahar, 2005. p.87-97.
117