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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Instituto de Psicologia

Lauro Rodriguez de Pontes

Controvérsias, versos e vivências: um passeio psicossocial pela


maconha medicinal

Rio de Janeiro
2017
Lauro Rodriguez de Pontes

Controvérsias, versos e vivências: um passeio psicossocial pela maconha


medicinal

Tese apresentada, como requisito parcial


para obtenção do título de Doutor, ao
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Social, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro.

Orientador: Prof. Dr. Ronald João Jacques Arendt

Rio de Janeiro
2017
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

P815 Pontes, Lauro Rodriguez de.


Controvérsias, versos e vivências: um passeio psicossocial pela
maconha medicinal / Lauro Rodriguez de Pontes. – 2017.
101 f.

Orientador: Ronald João Jacques Arendt.


Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Psicologia.

1. Psicologia Social – Teses. 2. Maconha - Aspectos sociais – Teses.


3. Subjetividade – Teses. I. Arendt, Ronald João Jacques. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III.
Título.

es CDU 316.6

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou


parcial desta tese, desde que citada a fonte.

___________________________________ _______________
Assinatura Data
Lauro Rodriguez de Pontes

Controvérsias, versos e vivências: um passeio psicossocial pela maconha


medicinal

Tese apresentada, como requisito parcial


para obtenção do título de Doutor, ao
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Social, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro.

Aprovada em 27 de março de 2017.

Banca Examinadora:

_________________________________________
Prof. Dr. Ronald João Jacques Arendt
Instituto de Psicologia - UERJ

_________________________________________
Prof.ª Dra. Marcia Oliveira Moraes
Universidade Federal Fluminense - UFF

_________________________________________
Prof.ª Dra. Heliana de Barros Conde Rodrigues
Instituto de Psicologia - UERJ

_________________________________________
Profª Drª Ana Claudia Monteiro
Universidade Federal Fluminense - UFF

_________________________________________
Prof.ª Dra. Prof.ª Drª Laura Quadros
Instituto de Psicologia - UERJ

Rio de Janeiro
2017
DEDICATÓRIA

À Ísis e Miguel: Vocês são meu ar, meu mundo, meu coração, minha vida.
À Eliana, minha mãe, o meu reconhecimento por tudo que você fez, faz e fará, que
jamais cabeira em palavras. Sem você eu não teria chegado até aqui.
AGRADECIMENTOS

Nos quatro anos vividos para a construção desse trabalho, foram inúmeras
pessoas que perpassaram o caminho da minha escrita. Agradeço em primeiro lugar
a estes, que não serão citados nominalmente aqui, mas que contribuíram de alguma
forma para a realização dele.
Em uma ordem cronológica, agradeço novamente a minha querida professora
e amiga Solange Souto, por me ensinar no ano de 2009 que para ser professor eu
tinha que fazer mestrado e doutorado, pronto Sol, finalmente acabei a missão!
Ao meu orientador e amigo, Ronald Arendt, que com toda sua amplitude de
pensamento abraçou minhas ideias e o tema desse trabalho me dando a liberdade
que precisava para desenvolver a pesquisa. Mais uma vez, não tenho palavras para
descrever tamanha gratidão pelo acolhimento, carinho e paciência. Sua calma e
paciência será sempre uma inspiração no meu caminhar.
Aos colegas do programa de pós, pela troca intelectual e papo de alto nível
nas reuniões de grupo.
A Cris, por ter me dado o presente mais lindo que recebi durante toda essa
jornada: o Nosso Miguel!
A minha família: Ao meu irmão Rodrigo, a Tatá, aos meus tios, a Regina e
Milton (in memoriam).
Em especial a minha tia Maria, pelas sempre boas energias positivas e
otimismo.
Meus amigos, todos, numa feliz e longa lista, por todas as trocas e vivências,
nesses transformadores quatro anos de pesquisa.
A Ruth, pelo trabalho nos bastidores, sempre facilitando minha vida desde o
início da pesquisa.
A Karen Belarmino pela ajuda na revisão da tese, num trabalho incrível de
transformar meus pensamentos complexos em texto inteligível.
Aos amigos Beto Ferreira e Gleicy Souza, pelo apoio nas transcrições e por
estarem no meu lado desde o início até o fim de todo o processo.
A todas as pessoas das associações: REDE Compromisso, APEPI,
CULTIVE!, REFORMA e em especial aos amigos formados na ABRACannabis, o
epicentro de toda a vivência dessa narrativa. Grandes pessoas!
Ao Pedro Zarur, Ricardo Nemer, Emilio Figueiredo, Henrique Neves, Virginia
Carvalho, Margarete Brito e aos outros caminhantes próximos que foram tão
fundamentais, muito obrigado pela acolhida e oportunidade de estar com vocês.
Esse trabalho não existiria sem vocês!
Por último as mães e pais das crianças que pude seguir durante a pesquisa.
Obrigado por me mostrar a face do amor mais puro em meio a tantas dificuldades.
RESUMO

PONTES, Lauro Rodriguez de. Controvérsias, versos e vivências: um passeio


psicossocial pela maconha medicinal. 2017. 101 f. Tese (Doutorado em Psicologia
Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2017.

Este trabalho descreve a experiência de uma pesquisa em psicologia social,


acompanhando de forma muito próxima as controvérsias da utilização da maconha
como remédio por crianças que sofrem com crises convulsivas constantes como
sintoma das mais variadas doenças infantis. Como consequência, acaba por seguir
suas construções e interações psicossociais ao longo do tempo. Os caminhos são
descritos e percorridos em meio a minha própria experiência ao longo de todo tempo
de pesquisa no campo vivencial.

Palavras-chave: Maconha. Psicologia social. Práticas de pesquisa. Subjetividade.


Epilepsia. Cannabis. Saúde.
ABSTRACT

PONTES, Lauro Rodriguez de. Controversies, Verses, and Experiences: a


psychosocial walk through medical marijuana. 2017. 101 f. Tese (Doutorado em
Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

This paper describes the experience of a research in social psychology,


closely following the controversies of the use of marijuana as a remedy for children
suffering from constant seizures as a symptom of the most varied childhood
diseases. Therefore, it eventually follows its constructs and psychosocial interactions
over time. The paths are described and traversed during my own experience
throughout all the time of research in the experiential field.

Keywords: Marijuana. Social psychology. Research practices. Subjectivity. Epilepsy.


Cannabis. Health.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Manchete do jornal .......................................................................... 47


Figura 2 - A flor da maconha à esquerda e um zoom ótico de 100x à direita .. 50
Figura 3 - A marcha da maconha de 2015 ....................................................... 59
Figura 4 - A marcha da maconha de 2015 ....................................................... 59
Figura 5 - A marcha da maconha de 2015 ....................................................... 60
Figura 6 - A marcha da maconha de 2015 ....................................................... 60
Figura 7 - Livro Raro brasileiro de 1958 sobre maconha. ................................ 70
SUMÁRIO

GERMINAÇÃO – INTRODUÇÃO .......................................................... 10


1 VEGA - A CANNABIS ........................................................................... 29
1.1 O contato com as mães e crianças .................................................... 29
1.2 Relatos de casos ................................................................................. 36
1.2.1 Sofia, Margarete e Marcos..................................................................... 37
1.2.2 Clárian, Cidinha e Fabio ........................................................................ 38
1.2.3 Gilberto Castro....................................................................................... 42
2 FLORAÇÃO - A VIDA NO CAMPO – TECENDO AS INTERAÇÕES E
OBSERVANDO AS CONTROVÉRSIAS ............................................... 45
2.1 Maio verde ............................................................................................ 54
2.2 A marcha da maconha......................................................................... 57
2.3 A marcha da maconha de 2015 .......................................................... 58
2.4 O Dia da Panelada ............................................................................... 61
2.5 A boa contaminação – experiência contaminada promissora ......... 66
3 MANICURA - VERSOS E VIVÊNCIAS COSTURADAS COM MACONHA
............................................................................................................... 68
3.1 Mas afinal, a maconha é boa para que? ............................................ 81
3.2 Aspectos legais ................................................................................... 83
CURA – FINALIZANDO ........................................................................ 89
REFERÊNCIAS ..................................................................................... 94
ANEXO A - Doenças que podem ser tratadas ou ter seus sintomas
atenuados por meio da Cannabis .......................................................... 97
ANEXO B - Canabinóides e suas aplicações ...................................... 100
10

GERMINAÇÃO – INTRODUÇÃO

Meus versos são como semente


Que nasce arriba do chão;
Não tenho estudo nem arte,
A minha rima faz parte
Das obras da criação
Patativa do Assaré

Germinação é o início, é o processo de crescimento de uma planta a partir de


um corpo em estado de vida latente. Ela se define como a emergência da existência,
o desenvolvimento das estruturas essenciais, manifestando a sua capacidade para
dar origem ao ser vivo sob condições ambientais favoráveis. É com essa definição
que eu quero iniciar as primeiras linhas deste trabalho.
Nesse primeiro momento, gostaria de colocar que essa tese versa sobre
Maconha em seus contornos, cores e interações. A Cannabis, nome científico mais
conhecido do mundo, tem uma enormidade de nomes e apelidos carinhosos, outros
pejorativos, construídos ao longo dos anos de seu contato com a humanidade. A
referência ao nome será livre ao longo desse texto. Uma planta com múltiplas faces,
com múltiplos significados em múltiplas culturas, jamais teria apenas um nome. Seu
nome, aliás, é uma forma de construção da identidade, positiva ou negativamente.
Botanicamente, a maconha é um vegetal natural que nasce de sementes como
qualquer outro e que foi domesticado (cultivado), como os outros vegetais, pelo
homem na mesma época em que a humanidade foi deixando de ser nômade.
Chamada de Cannabis sativa, cânhamo, maconha e tantos outros nomes, é uma
planta que, segundo as leis humanas, é proibida de existir. No entanto, pelo
interesse dos próprios humanos, nela persistem e insistem.
Esse é, portanto, um trabalho de observação, experiências individuais,
coletivas e muito aprendizado desconstrutivo de paradigmas e construtivo de novas
olhares, muito mais enriquecidos de conhecimento e saber multidisciplinar. Foram
três anos e meio numa relação muito afetivamente próxima, muitas vezes, com a
fronteira fluida e flexível. É sobre como ela se constitui em todas as instâncias, sobre
a sua permeabilidade no exercício de sua prática do existir em conjunto com os
humanos. É também sobre como ela é percebida, sentida e entendida e sobre como
11

essas interações se dão e são constituídas, sempre com a visão da prática


experiencial. De todo modo, esse texto escrito foi baseado em meu olhar, em minha
vivência, desde o meu primeiro contato com o tema até os resultados
temporalizados, sempre numa narrativa vívida.
Minha narrativa começa ao fim da minha pesquisa de mestrado. Diante da
decisão de emendar uma pesquisa na outra, percorri caminhos que tecem conexões
entre minhas experiências, a prática acadêmica e a materialidade versada no
contato direto. Ao começar a escrever o tema, que apresentei no projeto para o
doutorado, me deparei com uma percepção que não havia tido antes sobre meu
modo de ver o mundo e as coisas nele contidas. Meu olhar básico possui uma
inquietude em forma de pergunta: há outra forma, diferente e/ou melhor, de se fazer
isso ou aquilo? Essa forma questionadora havia ficado evidente na dissertação
sobre a prática do ato de burlar dentro da tecnologia da informação, mas só no
momento em que eu resolvi abandonar a continuidade do tema que me dei conta
disso.
Em agosto de 2014, percebi que falar sobre a deepweb1, talvez o maior
símbolo do fazer diferente em termos tecnológicos, exigiria um grau de envolvimento
que me faria desrespeitar valores éticos pessoais intransponíveis. Assim, comecei a
pensar em seguir uma outra linha de pesquisa. Um dia, lendo notícias on line, cliquei
em uma matéria em um jornal on line, sobre um grupo multidisciplinar que fazia uma
produção de extratos à base de maconha plantada domesticamente e de forma
secreta para ser usado como remédio para crianças com crises convulsivas. A cada
parágrafo lido da reportagem, ia crescendo em mim a certeza de que havia
encontrado um caminho: a temática da maconha sendo vista como remédio, em
especial atenuando significativamente quadros de crises epiléticas em crianças, seu
cultivo, extração e produção à margem da legalidade e o mais importante: os
resultados fantásticos de recuperação dessas crianças e de outros pacientes com
outras enfermidades.
O tema era muito caro, pois além de conter um ato de burla perante o
instituído em termos legais, sempre fui apaixonado por psicofarmacologia,
estudando por conta própria o efeito das drogas exógenas no organismo humano,
tanto do ponto de vista bioquímico quanto nas afetações sociais que elas promovem.

1
Refere ao conteúdo da Internet que não faz parte da internet pesquisável por mecanismo de busca.
12

Além disso, fiz uma pós-graduação em hipnose clínica, cursos em terapia naturais e
tenho formação em terapia ortomolecular, que me permitiram entender melhor o
funcionamento bioquímico do cérebro.
Segui, desde o primeiro contato, de muito perto vivenciando parte do
processo que, no momento em que me aproximei, estava construindo o próprio
corpo e estrutura institucional. Acompanhei as propostas e as pessoas por trás das
propostas. É tudo apenas um grande olhar. Um olhar pacífico e atento, descritivo e
apaixonado. O olhar de quem já esteve dentro, fora, entre, através e além de. Esse
olhar se traduz em palavras, produzindo esse trabalho.
Estar com um trabalho a ser construído dentro de um tempo limitado por
prazos me causa a sensação de que essa tese é uma parte do meu ser posta em
palavras. Só assim consegui caminhar para desenvolvê-la, só assim, afetando-me
profundamente e quebrando paradigmas pude ter forças para escrever. Tantos
foram os pensamentos, associações, experiências que a priori não pareciam estar
relacionadas com a construção do texto vivo, pulsátil, híbrido em minha própria
realidade e percepção. Esse é o resultado das ideias de um psicólogo clínico que
quis, dez anos depois de formado, voltar para a academia, passando por toda
conformação textual e metafórica na função mecânica da palavra até as
sincronicidades dos contatos e encontros experimentados na jornada.
Os desdobramentos psicossociais e os relatos dos participantes constituem a
base estrutural desse trabalho. Já saliento aqui que todos os citados autorizaram o
uso do seu nome e narrativa. Para quem não é envolvido no assunto sobre a
maconha de alguma forma, tenho a pretensão de que, ao final da leitura dessa tese,
terei ajudado a transformar e ampliar sua sabedoria sobre o tema. Assumo aqui a
clara intenção de desconstruir o instituído através do pensamento moderno reinante
que prevaleceu, inclusive em mim, até começar a me embrenhar nas controvérsias
presentes. Aqui será exposto e descrito, da forma mais sensível e rica possível, toda
a complexidade da Cannabis através de suas interrelações, transpasses, versos,
frases, ideias, construções tangenciais, congruências e engendramentos.
Numa coincidência extremamente feliz, que me deu mais certeza de estar no
caminho certo da pesquisa, o assunto maconha medicinal ganhou corpo e mais
espaço depois que um documentário chamado "Ilegal" foi lançado em outubro de
2014. Esse filme relata a dificuldade de um casal de Brasília para conseguir importar
extratos de maconha sem haver na legislação nada que falasse sobre o tema. Nele
13

é possível ver o drama das famílias que, usando a internet, buscavam informações
sobre as doenças dos filhos e davam sempre com a cara na maconha. A confluência
dos movimentos desse documentário, a busca de familiares sobre novos
tratamentos para doenças sem remédio dos seus filhos, o movimento dos
cultivadores e ativistas da causa da descriminalização, as dificuldades burocráticas
junto aos órgãos reguladores governamentais e as brechas legais que permitem a
produção de peças jurídicas embasadoras do direito à vida e à saúde e o apoio de
um grupo de médicos estudiosos que enfrentam a políticas dos conselhos fizeram
todo o engajamento junto ao tema criar um volume de representatividade que
culmina, até o presente momento, na liberação de autorização judicial para ao
plantio individual de três famílias com crianças, cuja maconha é o principal remédio.

O início do processo

Comecei a tentar o contato com o grupo que na reportagem foi denominado


como “Rede Compromisso”, grupo de cultivadores caseiros que passou a doar uma
parte de sua produção de consumo próprio para servir de matéria prima para
confecção do extrato medicinal. É, através dos engendramentos psicossociais que
esse a partir desse grupo se constrói uma consistência social ativista que mais tarde
culminará com a fundação da ABRACANNABIS, entidade criada para promover o
apoio às pesquisas e ao cultivo individual e coletivo. Após achar o jornalista e
explicar meus anseios a ele, fiz contato por e-mail com o advogado que fora
entrevistado. Ele aceitou me receber para conversarmos e, assim, comecei a
jornada que se materializa nessa escrita. Foi um caminho tortuoso, mas em sua
maior parte grato de surpresas. O início, passado o frio na barriga depois dos
primeiros encontros com os membros da Rede Compromisso, foi de grande
aprendizado em minhas relações pessoais. Recebi apoio de quem não esperava, de
pessoas que eu julgava não aceitar nem falar sobre o tema, como as gerações mais
antigas da minha família e outros conhecidos, que foram, de fato, deixando de
manter contato comigo pelo preconceito enraizado e endurecido. Uma dessas
pessoas, por radicalismo olfativo, por conta do "ódio" ao cheiro da planta, excluiu-me
das redes sociais e dela eu nunca mais ouvi falar. Isso aconteceu mesmo depois de
eu ter tido a paciência para mostrar que com tecnologia o cheiro pode ser suprimido
ou que existem outras formas de se ingerir maconha sem ser com fumaça.
14

Meu caminho, no entanto, estava decidido e foi fortalecido pela boa recepção
do meu orientador e, posteriormente, da banca de qualificação. Tudo foi motivado,
também, por aquele momento síncrono, em que o assunto estava tomando o corpo
social e simbólico, diante da gravidade do estado de saúde das pessoas que podiam
se beneficiar do uso da planta como remédio. As informações não paravam de
chegar sobre o uso da Cannabis em outros países, as pesquisas avançando e o
número de doenças tratáveis com a maconha, resgatando o sentido que ela sempre
teve diante da humanidade.
O grupo Rede Compromisso surgiu da iniciativa de plantadores individuais,
conhecidos como growers, que cultivam, com técnicas botânicas, para seu próprio
consumo uma maconha com qualidade e livre das contaminações e deteriorações
da maconha vendida pelo tráfico. Eles não participam, portanto, da cadeia de
problemáticas de eventos associados à chamada guerra às drogas. Os growers se
reuniram e criaram essa rede com a proposta de atender uma enorme demanda de
pacientes acometidos com doenças graves, que têm na maconha a fonte da
medicina que pode atenuar várias doenças e seus vários sintomas. Esse grupo,
embora secreto é composto de pessoas que se articulam de uma maneira tal que
permite o contato com eles, mediantes a uma abordagem pelos profissionais do
direito, que acabam por ser a parte visível do grupo. As enfermidades que têm o
foco direto da atuação da Rede são as que causam dores crônicas, as doenças
degenerativas de todos os tipos e origens e quadros de epilepsia, em especial,
nesse caso, em crianças e jovens, não excluindo pacientes adultos, que são
medicados por anos com remédios alopáticos paliativos. Embora a maconha tenha
mais de quatrocentas substâncias químicas e dessas mais de sessenta
canabinóides em sua composição2, os dois principais compostos são o
tetrahidrocanabinol, conhecido como THC e o canabidiol, da sigla CBD. Cada uma
delas tem uma forma de atuar no corpo e agem sempre em conjunto, em proporções
de quantidades diferentes.
A partir da doação de parte da colheita dos cultivadores, é feito um extrato
oleaginoso da maconha por meio de cepas botânicas ricas em CBD. O CBD atua
diminuindo consideravelmente e, em outros casos, cessando completamente as
crises convulsivas, independente da doença que cause essas crises, que muitas

2
Informação disponível em: http://brasilescola.uol.com.br/drogas/maconha.htm
15

vezes chegam à casa das dezenas de vezes por dia. As propriedades medicinais da
planta, no entanto, não provocam os efeitos colaterais que os remédios alopáticos
causam no restante do cérebro. Sem o efeito colateral de depressão do sistema
nervoso central, causado pelo medicamento alopático por exemplo, o cérebro pode
fisiologicamente voltar a fse desenvolver de forma mais plena. Assim, há uma
melhora imediata das comorbidades e consequente aumento na qualidade de vida
dos enfermos.
Uma das problemáticas permeadas aqui decorre do fato de que todo esse
processo é ilegal. No Brasil, plantar maconha ainda é crime, mesmo que seja
apenas para o fim medicinal. Entretanto, os resultados práticos, a rapidez na
melhora das crises, principalmente e justamente nas crianças, somados a toda
gama restante de doenças que podem ser melhoradas ou atenuadas em seus
sintomas através da ingestão do extrato, motivam o grupo a se manter mesmo na
clandestinidade. Movimentos paralelos que tentam demarcar mudanças na
legislação e lutam em eventos sociais coletivos, como nas marchas da maconha
pelo país ou em audiências públicas no congresso nacional, defendendo os growers
que são denunciados e presos, enquadrados como traficantes de drogas, são
situações presentes em todo o processo e constituem boa parte da narrativa dessa
tese. O grupo é multidisciplinar em suas formações, mas único em sua ideia original:
luta para dar conta da demanda dos pacientes pelos extratos da planta e pela
descriminalização do plantio individual e coletivo no país, acreditando que vale a
pena questionar e mudar as leis para ajudar na saúde dos pacientes.
A cada reunião dos grupos de que eu participava, tinha mais certeza de
estarmos no caminho certo e de que esse trabalho poderia fazer alguma diferença
prática no sentido de esclarecer e elucidar com informações o assunto maconha
perante os leigos. Além disso, constituir-me como pesquisador num projeto de
esclarecimento informacional recheado com as premissas esperadas pela
orientação do trabalho com a vibração da TAR3, tornou-se um desafio interessante.
Isso porque a forma múltipla de entender as relações que a TAR possui é, em minha
opinião, a melhor fonte de referencial teórico e acadêmico capaz de permitir
repensar o paradigma das drogas e suas tentativas de controle, consumo e

3
A Teoria Ator-Rede (TARé uma corrente da pesquisa em teoria social que se originou na área de
estudos de ciência, tecnologia e sociedade na década de 1980. Seus principais autores Bruno
Latour, John Law dentre outros. Ela procura desfazer a dicotomia entre o social e o natural e entre
atores humanos e não-humanos.
16

articulações psicossociais que se produzem dentro desse contexto. O argumento


científico, via pesquisas sobre a química dos componentes, a descoberta de
sistemas endocanabinóides inerentes ao organismo humano acerca do uso
medicinal, partindo de uma droga que possui toda uma simbologia recreacional
subentendida e com várias pré-conceituações construídas sobre manobras políticas
de controle e propaganda, é, em reflexão conceitual, um atravessamento não
moderno diante de uma prática constituída ultra limitante de se entender a maconha
apenas como droga.
O que legitima minha fala aqui são os efeitos práticos do uso para a
diminuição das crises convulsivas das crianças (o que por si só já deveria encerrar
discussão dicotômica sobre certo ou errado e permitir, no mínimo, pesquisas bio-
quimico-fisio-farmacológicas) como também o grito pela liberdade da autotutela
como meio de garantir direitos fundamentais à saúde. Entendendo por autotutela o
conceito jurídico "da autopreservação, inerente a todas as formas vivas, e as
aplicações do Direito Natural, nome dado ao conjunto de costumes utilizados por
uma sociedade e aplicados coercitivamente pela estrutura moral daquela mesma
sociedade" (PINHEIRO; SILVA,; MENDES, 2010). Logo,

O exercício da Autotutela é um corolário dos direitos e garantias


fundamentais da Constituição da República, para que mesmo através da
Autotutela se possa garantir a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, conforme definidas no art. 5º e
seguintes da CRFB. Aplicar a Autotutela na defesa dos direitos
fundamentais explicitados na Constituição da República não se constitui ato
ilícito, pois a lei não pode declarar ilícito aquilo que a Constituição da
República declara como direito. (PINHEIRO; SILVA,; MENDES, 2010)

Acompanhar o tecer desse processo da luta pela modificação das leis


instituídas, tendo como argumento crianças com saúde fragilizada e acompanhar
como se dão os enactments, por exemplo: como argumentos jurídicos nos pedidos
de habeas corpus são pensados a favorecer o pedido mediante a conceitos
científicos e em outras ações legais sobre o uso, porte ou plantio da maconha, em
conjunto com os argumentos biológicos, fisiológicos, farmacológicos e medicinais da
planta integral. A proposta é jogar tintas fortes no emaranhado do tema. A maconha
está presente entrelaçando-se conosco desde o início de nossa civilização e possui
controvérsias ancestrais, dos primeiros registros de uso na Ásia central há dez mil
anos até a contemporaneidade. Ela se conecta como um actante superativo numa
rede de instâncias múltiplas. Esse trabalho é composto por toda a descrição do que
17

acompanhei e todos os processos com os quais tive contato. Isso engloba seguir as
mães em suas lutas diárias, no que tange as dificuldades de uma criança que requer
cuidados diferenciados; acompanhar seus engajamentos junto às dificuldades que a
burocracia coloca para conseguir autorização legal para importação dos extratos;
observar a necessidade de representatividade junto à sociedade no enfrentamento
dos preconceitos com o remédio de maconha dado aos filhos; observar os
resultados, as preocupações e as problemáticas dinâmicas do dia-a-dia, as
interfaces de entendimento, buscando uma forma de falar isso para a academia.
Trago, também, todas as consequências do problema escolhido como objeto de
pesquisa. Tudo que eu vivenciei para conseguir produzir o olhar e a narrativa,
minhas participações como ouvinte ou atuante, as conduções, os desdobramentos
possíveis, as controvérsias que regem o campo e meu posicionamento e as
expectativas junto a cenários futuros possíveis. A quantidade de material a que tive
acesso ao longo da pesquisa foi uma das maiores dificuldades que encontrei, não
pela escassez e sim pelo excesso. Já na finalização, descobri mais dois livros ótimos
que não consegui usar aqui por conta do prazo. A maconha possui uma temática
multidisciplinar, que em lugares do saber dos quais menos se espera há uma
produção de material de estudo.
Olhei com mais proximidade e sentimentos as crianças e seus familiares, e os
adultos que também se beneficiam dos seus efeitos. Pude notar a luta contra o
preconceito travada contra, muitas vezes, os próprios parentes e amigos próximos,
desconstruindo paradigmas e exibindo os resultados, transformando a falta de
conhecimento latente sobre o tema em esperança de dias melhores. Acredito ter
produzido minha legitimidade como pesquisador por falar de um lugar "de dentro".
Pude sentir uma multiplicidade de sentimentos que, por mais que escrevesse, não
conseguiria traduzir em palavras. Mesmo que a academia me permitisse a entrega
de uma tese multimídia, com texto, um documentário e entrevistas em vídeo, roteiro
para uma peça de teatro ou filme, exposição de trabalhos artísticos com a temática,
mesmo que eu usasse todas as formas de expressão existentes em que eu pudesse
expressar a minha experiência e vivência, ainda assim faltaria algo. Recorro aqui ao
expediente das fotos para dar algo a mais do que a forma apenas textual e reúno,
nos anexos, documentações e recortes pertinentes à ideia de totalidade de
entendimento possível.
18

Para isso, a escrita está segmentada em pedaços que se conectam. Eu dividi


a tese nas etapas do nascimento e desenvolvimento da planta até a hora de sua
colheita. A introdução começa na germinação da semente, quando ela sai da
potência latente para a atitude de vida. Após a introdução, a planta entra no estado
vegetativo, conhecido como Vega. Nesse estado, ela se desenvolve, cresce, cria
seu corpo, fortalece-se. Aqui está o capitulo que fala sobre o referencial teórico-
prático, no qual vou discorrer a parte mais acadêmica da tese. Nele utilizo a Teoria
Ator-Rede, como base para pensar toda a parte prática do trabalho. Toda minha
narrativa é feita sob o canvas da TAR, como foi no mestrado, passando pelos
conceitos teóricos e referendando colocações da pesquisa teórica e de campo.
Coloco logo depois do referencial teórico-prático, o meu passeio pelas entrevistas e
o mergulho nos contatos diretos com os personagens que compuseram essa tese:
os ativistas, as mães e os pacientes, as contrapartidas e as relações
contextualizadas. A próxima etapa é a da floração. Nessa fase, toda a capacidade
medicinal da planta se desenvolve, abrindo as flores, que carregam todos os
princípios ativos da planta. Nesse capítulo, discorro sobre toda minha experiência
vívida no campo como pesquisador participativo e efetivo. A parte seguinte é a
Manicura, que é a colheita das flores, em que a planta dá a vida para ajudar ou
alegrar o ser humano. É um capítulo sobre as controvérsias que a maconha tece ao
longo do tempo. Também aqui está o capitulo que fala sobre as propriedades da
planta em todas suas potencialidades históricas, medicinais e industriais. Além
disso, exponho aqui as questões sócio-políticos, técnicos e seus engendramentos
sociais, passando pelas explicações biológicas, fisiológicas e médicas dos efeitos da
maconha e suas implicações atuais no mundo. Finalmente vem a cura, o final do
ciclo. Nele, a planta é colocada num processo semelhante à maturação. Sem luz
direta e num lugar bem ventilado, ela amadurece para ficar pronta para ser
consumida e/ou utilizada para fabricação dos insumos. Esse é o capítulo final da
tese. Esse texto contém boa parte do meu tempo de vivência e foi feito com dor e
amor, como tudo que é bem feito na vida.

Uso da linha teórico-prática e metodologia utilizada

Aos olhos de quem está acostumado com a forma acadêmica convencional,


esse texto e sua estrutura narrativa causam um enorme estranhamento. A teoria
19

base que sustenta essa forma e método é relativamente nova e oferece um novo
olhar, uma nova reflexão sobre os processos psicossociais que constituem nossa
existência. É nesse capítulo que irei referenciar teoricamente minha escrita. Aqui
estão contidas as premissas acadêmicas que sustentam o resto do texto, que, por
opção consciente, está escrito de forma direta, com poucas citações diretas, porém
completamente influenciado e contaminado pela Teoria Ator Rede.
A Teoria Ator-Rede (Actor-Network Theory, TAR ou ANT) se inicia pelo
trabalho desenvolvido por um grupo multidisciplinar de antropólogos, sociólogos e
engenheiros franceses e ingleses associados, dentre os quais Bruno Latour, Michel
Callon e John Law e muitos outros. Apesar da Teoria Ator-Rede ser considerada um
método, “ela na prática alcançou o estatuto de uma teoria, quer pelas ambições do
seu método (abolição do pensamento dualístico) quer pela sua reconceitualização
sistemática de práticas de pesquisa, que envolvem uma nomenclatura extensa e
original” (WILKINSON, 2004, p.2). É preciso entender as relações dos humanos e
das coisas como uma rede e “seguir as coisas através das redes em que elas se
transportam e descrevê-las em seus enredos” (LATOUR, 2004, p.134). O
personagem principal é o Ator e “Ator é tudo que movimenta, deixa traço, produz
efeito, referindo-se a pessoas, lugares, coisas, animais, objetos, máquinas, etc., tudo
que é humano e não-humano” (LATOUR, 2001, p. 143).
Cada um desses atores possui seus lugares e expressões de diversos e
distintos pontos, criando amarras pontuais, como nós nessa rede totalmente
interconectada e perpassada que se conecta às outras redes, formando outras
maiores e sub-redes menores e pontuais, sempre com acesso ao resto da rede,
estruturando uma mega nuvem fluida de conexões. Michael Callon diz que na teoria
ator–rede, a noção de rede refere-se a fluxos, circulações, alianças, movimentos, em
vez de remeter a uma entidade fixa. Assim, ocorrem conexões em pequenos grupos
como em cada núcleo familiar ou de trabalho e grandes conexões muito mais
complexas (bairros, vizinhança e sociedades em geral).

“Valendo-se da denominação de actante para designar tanto humanos


quanto não humanos, a ANT objetiva abandonar a ideia de substância para
destacar a ideia de agência, ação. Com isso, coloca-se em foco o fato de
que os actantes acontecem na medida em que habitam o mundo, que se
vinculam aos demais elementos desse mundo. Ou ainda, eles são mais
autônomos quanto mais conectados estão. Em outras palavras, quanto mais
vínculos se estabelecem, mais sua existência pode ser vista no mundo, e,
assim, pode ser acompanhada em seus efeitos por aquele que quer
investigá-los.” (TSALLIS, 2009, p. 8).
20

Devemos entender sociedade com essa noção de redes humanas e não


humanas conectadas entre si. O estabelecimento delas leva ao desenvolvimento
das relações presentes entre o homem e o meio. Dessa maneira, o primeiro contato
com a teoria ator rede para quem nunca ouviu falar causa estranhamento. É
necessário se abster das relações de causa e efeito pontuais e expandir o olhar,
tentando ir além do dicotômico, percebendo as nuances e complexidade das
interações psicossociais.

"Uma rede de atores é simultaneamente um ator, cuja atividade consiste em


fazer alianças com novos elementos, e uma rede, capaz de redefinir e
transformar seus componentes" (CALLON, 1986,p. 93, apud MORAES,
2004, p.323).

Observar a sociedade e suas interrelações sobre essa ótica é desconstruir o


pensamento dicotômico. Numa das orientações para escrita da tese, a frase
"maconha é planta", comumente dita pelos ativistas, foi desconstruída. Nas palavras
do meu orientador: "não convence a afirmação de que a maconha é planta. Se você
usa a Teoria ator-rede como referência, não dá para utilizar a Natureza e Cultura
como argumentos. O que interessa é como ela se conecta com uma rede de
instâncias que fazem/produzem sentido. O que faz fazer (e o que impede que este
fazer se faça)”. Então, com essa diretriz de construção, a ideia de um não humano
como a maconha disparando uma série de ações, com suas múltiplas facetas e
engendramentos com os humanos e outros não humanos é a base referenciada da
construção dessa tese, no filtro aplicado ao olhar da prática e dentro da proposta da
teoria. O texto versa a maconha não como a maconha em si, apenas como a planta
que é, mas como todas as relações, símbolos, significados, afetos, controvérsias
produzidas com, através e todas as outras proposições que couberam no recorte de
campo. Dessa forma, consigo propiciar uma melhor percepção daquilo que
pesquisei e segui desde agosto de 2014, quando tive primeiro contato com o tema,
até a entrega desse texto finalizado.
Para Latour, em uma visão fundamental sobre a TAR, não há distinção entre
Natureza e Sociedade. Essa visão se contrapõe ao princípio moderno de polos
separados e opostos – de um lado natureza (o discurso simplório de que maconha
é, apenas, uma planta), que é tão rica em objetividade quanto é simplória, e de outro
uma sociedade colocada acolá, subjetiva e estanque. Ele também se desfaz de
qualquer discurso que verse sobre pureza e assimetria, afirmando que natureza e
21

sociedade não estão jamais separadas por diferenças de qualquer tipo. O que fica
mais claro em todo seu trabalho desde o início é que para se valer da ciência,
devemos entender o que compõe o fazer ciência. Os sujeitos e coisas que
acontecem e são pelo meio, pelas interações. Fazer ciência é transitar entre
natureza e sociedade, não delimitando fronteiras entre elas, o que não nega a
existência individual de ambas, porém ambas não existem isoladamente, somente
em instâncias que fazem sentido entre si. A natureza e a sociedade se performam
pelo conjunto de práticas de mediação entre atores humanos e não-humanos.

“O conhecimento, portanto, é corporificado em várias formas materiais. Mas


de onde ele vem? A resposta da teoria ator-rede é que ele é o produto final
de muito trabalho, no qual elementos heterogêneos – tubos de ensaio,
reagentes, organismos, mãos habilidosas, microscópios eletrônicos,
monitores de radiação, outros cientistas, artigos, terminais de computador, e
tudo o mais – os quais gostariam de ir-se embora por suas próprias contas,
são justapostos numa rede que supera suas resistências. Em resumo, o
conhecimento é uma questão material, mas é também uma questão de
organizar e ordenar esses materiais. Este então é o diagnóstico da ciência,
na visão ator-rede: um processo de «engenharia heterogênea» no qual,
elementos do social, do técnico, do conceitual, e do textual são justapostos
e então convertidos (ou «traduzidos») para um conjunto de produtos
científicos, igualmente heterogêneos”. (LAW, 1992, p.3).

Um trabalho científico que use a TAR como referencial teórico deve procurar
acompanhar o processo do qual o tema se constitui na sua tradução da produção
dos eventos, pela construção do saber científico e suas heterogeneidades com a
sociedade. Para Latour (1994, p.138), “os modernos não estavam enganados ao
quererem não-humanos objetivos e sociedades livres. Apenas estava errada sua
certeza de que essa produção exigia a distinção absoluta e a repressão contínua do
trabalho de mediação”. A rede que se forma a partir dessas traduções, conexões e
mediações não se estabiliza se definindo. Há sempre o desdobramento dos objetos
instáveis ou não-encaixáveis. Os chamados híbridos são humanos e não-humanos
com mobilidade e conexão entre si em contínua-ação, produzindo inúmeras
realidades possíveis ou o que mais tarde Latour, elaborando de outra forma, vai
traduzir como os modos de existência. Os híbridos se aprimoram à medida que
fazem tais conexões com outros elementos, tornando-se mais autônomos.
As formas como estabeleci os contatos, as conexões com o que já havia sido
instituído, as alianças que fui formando para ir me aproximando dos grupos,
principalmente no início do trabalho, produzindo novos híbridos utilizáveis por mim,
todas foram pensadas na prática, na lida do dia a dia, pelo viés da TAR. Estar a par,
22

em contato, em experiência, produzindo a troca entre os pontos, que podem ser


humanos e não humanos, não importa, e fazendo as conexões que, pela dinâmica
dos acontecimentos, vão se desenrolando. Dessa forma, esse referencial mostra
como estabeleci as alianças, como reconheci os antagonistas e como tudo se
conformou até a necessária entrega do texto final. O protagonismo da maconha
medicinal, em função da urgência, do estado de necessidade 4 das pessoas que
encontram na maconha o seu melhor remédio.
Moraes (2010, p.26) relata o caminho percorrido no campo de pesquisa como
sendo desde o início “tomada pelo problema de como intervir num certo cenário
levando em conta o referencial do outro”. Senti essa necessidade desde o primeiro
contato com os grupos que segui. A vontade daqueles que plantam tanto para
consumo próprio quanto para também contribuir cooperativamente para o remédio
ser produzido; a percepção da dor e da inimaginável sensação de ser pai ou mãe e
ver seu filho convulsionando, sempre próximo à fronteira da vida, sabendo da
condição crônica que os acompanhará pela caminhada da existência de ambos; a
sensação de impotência dos cientistas pesquisadores, diante da proibição do cultivo,
que não permite sair da clandestinidade; e poder fazer algo que não só diz respeito
a si mesmo, como também interrompe a cadeia de eventos ligados à
comercialização ilegal do tráfico. Ainda citando Moraes (2010, p. 42), coloca:

“Trata-se de afirmar a pesquisa como uma prática performativa que se faz


com o outro e não sobre o outro. A expressão ‘PesquisarCOM’ tem a
dimensão de um verbo mais do que de um substantivo. Indica que para
sabermos o que é cegar é preciso acompanharmos este processo em ação,
se fazendo, na prática cotidiana daquelas pessoas que o vivenciam. O
pesquisar com o outro implica uma concepção de pesquisa que é engajada,
situada. Pesquisar é engajar-se no jogo da política ontológica.”

Ao entrar em contato com o grupo, logo no início da pesquisa, percebi que


seria impossível não me engajar, não ser um nativo no campo. Uma postura
ideológica e identitária deveriam existir, não porque o grupo exigisse, mas por mim,
para que eu sentisse a completude, a afetação máxima possível em meu ser. Senti-
me compelido a ser parte daquilo, por mensurar o tamanho do
processo/projeto/evento/ momento que estava me dispondo a pesquisar. Encontrar,

4
Estado de necessidade é uma causa especial de exclusão de ilicitude, ou seja, uma causa que
retira o caráter antijurídico de um fato tipificado como crime. No Brasil, está previsto no artigo 23-I
do Código Penal e exemplificado no artigo 24 do referido código. Também se tornou o nome de um
documentário produzido pela APEPI, sobre a luta das mães e pais poderem fazer seu auto cultivo
do remédio.
23

a priori modernamente, a possibilidade de uma planta proibida e criminalizada ser a


fonte de um remédio para uma doença grave é algo grandioso. Tive que, nesse
sentido, fazer um grande esforço para aceitar que, apesar de todo peso temático
associado descrito acima, precisava manter o olhar acadêmico e usar conceitos
equilibrantes para pensar as contradições, entender que a minha visão sobre o tema
não era a única e produzir olhares que dessem espaço a outros ângulos possíveis.
Para isso, usei o que Tsallis e Viegas (2011, p. 301) em seu texto escrevem ao
pensar o que Viciane Despret, filósofa e psicóloga, autora do grupo da TAR,
propõem no seu conceito de versões:

"Uma versão se conta, se propõe, entra em acordo ou desacordo com


outras; ela pode transformar, ela pode traduzir, ela pode ser negociada –
tornar às vezes negociável o inegociável. Ela se cultiva no mundo, faz o
mundo existir e se transforma na relação com o mundo. As versões se
inscrevem no tempo de uma história, que elas prolongam, transformam,
retornam ou articulam; elas se inscrevem também num espaço de uma
cartografia de nossos saberes: os lugares podem ser os mais diversos: o
laboratório, as instituições médicas, as terras distantes dos antropólogos, a
política, as instituições da cultura, os coletivos que são estudados pela
sociologia". (TSALLIS; VIEGAS, 2011)

Nesse prisma, o que eu produzisse como saber pela prática vivencial devia
ser tomado como uma das visões possíveis a partir e ao final de um olhar de
apropriação pessoal. A realidade, seus objetos pulsantes devem reconhecer a
coexistência de outros tantos ainda que contraditórios ou controversos. Não por isso,
saberes e versões deixam de ser ou se tornam válidos, mas sua compreensão se dá
no reconhecimento da existência da produção de múltiplas realidades possíveis,
oriundas das práticas e vivências que se localizam dentro do que pode ser
compreendido e acompanhado. Reconhecer isso me trouxe paz, dentro de um
momento de crise de criação, em função da quantidade de material colhido no
campo e a sensação de infinitude, pois cheguei à fronteira do campo como
descrição de um modus vivendi múltiplo, como em conjuntos matemáticos que
contêm subconjuntos dentro de conjuntos maiores, porém cada um com a
complexidade de um universo inteiro em si.
Para Despret (2001, p. 44), a versão de algo é mais fluida e exibe facilmente
os engendramentos presentes no processo. A visão de algo é limitante e definidora,
faz com que o recheio que deve ser cremoso se torne endurecido. Impõe verdade,
uma instância ontológica falsa ou limitada do que se é ou estar. A noção de versão
possibilita construir um olhar a partir do ocorrido, novo de certa forma. Nada é
24

preexistente aos perpasses que se vivencia naquilo que constitui o conteúdo da


versão. Assim, a pluralidade de possibilidades de modos pode coexistir numa
mesma realidade. É possível haver a realidade e as construções (versões) dessa.
Ainda em Viegas e Tsalis (2011, p. 300):

A autora propõe que os saberes produzidos na prática científica sejam


entendidos como versões e isso significa que o saber dos cientistas acerca
dos fenômenos da realidade e seus objetos de estudo coexistem com
outros tantos sob o regime do acordo, da contradição e da controvérsia.
Conseqüentemente, os saberes como versões não perdem o seu caráter de
conhecimento válido, mas podem ser entendidos como possibilidades,
como construções sobre a realidade (produtores de realidades), como
práticas que, dependendo da tradição da qual são herdeiras, serão mais ou
menos privilegiadas em determinada época.

Traçando um paralelo com o processo de construção de um fato/objeto


proposta por Latour em seu livro "A esperança de Pandora", onde o autor analisa as
diferenças de construção do discurso científico com os objetos da ciência, tendo
como parâmetro a realidade desses estudos e sua relação os fatos sociais. Latour
analisa o processo de construção de um fato/objeto produzido pela ciência e
defende a tese de uma natureza socialmente construída dos fatos científicos. Ao
compreender de forma mais ampla essas produções dos fatos cientificos, a
esperança reside em perceber que não há um conflito entre a ontologia e a
epistemologia. No caso da maconha ocorre uma inversão e os fatos científicos
construídos à época da promulgação da proibição da maconha foram só ignorados,
mas também postos de lado e contraditos sem nenhum argumento técnico. O ponto
de vista que prevaleceu sobre o assunto se valeu apenas da força política dos
órgãos de fiscalização e controle, que tinham forte lobby junto às instâncias
decididoras da ONU. A construção política, então, foi sobreposta ao pensamento e
produção científica da época, visto que os estudos sobre os efeitos da maconha
foram ignorados e desconsiderados sem nenhum argumento contrário que não fosse
a vontade dos representantes.
Não me parece que os cientistas possuíssem, portanto, o conhecimento da
necessidade das articulações políticas para que seus trabalhos fossem levados em
consideração e que, a maconha assim, não fosse colocada no mesmo saco que o
ópio e a cocaína. Talvez eles acreditassem por demais na letra fria do texto científico
como verdade incontestável. Eles acreditaram que a pesquisa embasada pelos
dados quantitativos e a experiência prática deles eram suficientes para satisfazer a
demanda teórica das políticas. Não foi. Olhando para o ocorrido, percebe-se a força
25

política não aliada à ciência e a passividade ou impossibilidade reativa das


combinações entre as grandes corporações e o poder vigente à época, que não se
diferem em nada do que vivemos hoje. Paralelamente, o encadeamento das ações
legais dos advogados atuantes juridicamente na causa antiproibicionista em
conjunto com as mães das crianças que usam o óleo de maconha junto poder
púbico fez com que fosse permitido o habeas corpus que, pela primeira vez na
história do Brasil, dá o direito à família de cultivar maconha em casa, garantindo que
a polícia não poderá agir contra isso. Duas semanas depois, outra família recebeu a
mesma prerrogativa. Além disso, a farmacêutica do grupo conseguiu a autorização
junto à UFRJ para a captação de recursos com o objetivo de comprar os gabaritos e,
assim, medir a quantidade dos princípios ativos da maconha nos óleos que as
crianças consomem. Como existia um Habeas Corpus, ela pôde fazer a extração do
óleo dentro do laboratório de farmácia da UFRJ. Dessa forma, também pela primeira
vez, a maconha entrou na universidade pela porta da frente. Não se faz ciência sem
política. Nas reuniões da AbraCannabis, muitas vezes escutei a frase: “você
domestica a planta e a planta te domestica”. Essa fala me remeteu à outra, que já
tinha ouvido nas reuniões sobre a TAR que frequentei no programa de pós-
graduação, o que me levou à colocação de Latour em seu livro “A esperança de
Pandora”: “... Veremos como Pasteur fez seus micróbios enquanto os micróbios
faziam seu Pasteur.” (LATOUR, 2001, p. 29).
No capítulo em que narro a vivência no campo, discorro sobre como me tornei
ativo e participativo como membro da associação e no apoio possível às mães. Fui
deveras surpreendido por visões diferentes das instituídas como convencionais
sobre o uso da maconha numa imensa gama de situações que foram mudando e
moldando minha forma de pensar. Felizmente essa contaminação toda é
promissora, referenciando (DESPRET, 2001 apud MORAES, 2010), temos:

O mal-entendido promissor é aquele que produz novas versões disto que o


outro pode fazer existir. O mal-entendido promissor, em outros termos, é
uma proposição que, da maneira pela qual ela se propõe, cria a ocasião
para uma nova versão possível do acontecimento (DESPRET, 2001, p.
328).

As múltiplas faces que a maconha possui gritam em cada um dos cenários e


interlocutores e suas percepções individuais. Dentro do grupo de mães e pais das
crianças, por exemplo, existem aqueles que desejam apenas a função-remédio da
planta. Acaba havendo um choque de percepções com os outros, o que provocou
26

mtas vezes situações constragendoras. Percebi uma mágoa dos growers com esse
discurso, uma vez que eles se sentem explorados por quem pensa assim, pois na
hora de recorrer para ter o remédio que eles fazem doando parte de suas próprias
plantações esses pais buscam ajuda e depis criticam outro uso que não seja o
medicinal. Outros, que nunca haviam fumado, acabaram por descobrir na maconha
outra função medicinal, que é a de auxiliar no alívio da dureza da realidade do dia-a-
dia da doença de sua criança e seus desdobramentos, encontrando na maconha um
substituto para o álcool e ansiolíticos alopáticos utilizados como formas de alívio da
tensão cotidiana. Nas áreas de conhecimento, há profissionais com o mesmo
discurso proibicionista, mas por conta de interesses materiais, por suas parecerias
com a indústria farmacêutica, que visa isolar os componentes e patenteá-los, como
remédios alopáticos, reproduzindo o discurso legalista e cientificista moderno. Os
pesquisadores mais sérios, que visam à saúde e ao saber, afirmam com muita
clareza a necessidade do chamado efeito-comitiva, que é a integralidade da planta
no preparo do remédio. Ou seja, a maconha, quando tem seus componentes
isolados, não produz o mesmo efeito. É necessário o uso da planta de forma integral
para produzir o extrato. O que vai fazer diferença nas quantidades é o tipo da planta
utilizado. Existem mais de mil e novecentos tipos diferentes de maconhas, cada uma
com sua dosagem dos componentes em proporções diferentes, gerando efeitos
diferentes de acordo com a dose. Isso significa que há um vasto universo a ser
pesquisado e entendido. À medida que a descriminalização, liberação, comércio e
pesquisa, nessa ordem, crescem no mundo, novidades vão surgindo.
Todos os saberes adquiridos por mim produziam desdobramentos e
conflitavam com o que eu via e ouvia no "mundo lá fora". Assim, há uma
multiplicidade produtiva de realidades, as quais resultam dos eventos práticos,
oriundos dos saberes instituídos, que entendo que vão sendo lapidados através das
interações psicossociais.
Ao elaborar o sentir, continuo em Despret (2001) e as emoções,
desconstruindo a definição platônica, que perdura por séculos, de que a razão está
na cabeça e as emoções estão no corpo, de que a razão domina a emoção ou de
que a emoção é mais feminina e a razão, mais masculina, Despret vai além. Para
ela, tanto a emoção quanto a razão são da ordem do social, do cultural, não está
aqui ou acolá, mas vem e nos afeta de fora para dentro. As emoções se distribuem
não como uma coisa interna ao ser, contudo circulam entre e através de. Elas são
27

instâncias que circulam, somos infectados por emoções, como uma doença, a nossa
revelia. Como essas emoções nos afetam? Essa perspectiva deve ser sempre
individual, para respeitar o sentir como referencial na construção do ser. Sentimos
em nós e sentimos com o outro.
No campo, em contato com as mães, isso fica muito claro. A dor e o medo
das doenças vão surgindo à medida que sintomas vão aparecendo. Nas crises
convulsivas, o início é a ansiedade pelo fim. A doença da criança vai desenhando na
alma das mães e pais sem se preocupar com a forma. Os planos das famílias vão
dando lugar ao senso do possível. Ao mesmo tempo, cada pequena vitória, cada
coisa que para quem não vive a realidade deles é corriqueiro ou pouco expressivo,
ganha um vulto de dimensões grandiosas. A maconha, em quase todos os quadros,
traz alívio e uma esperança enorme, desconstruindo tudo o que se sentia ou se
pensava sobre a planta. Convido à reflexão diante do seguinte cenário: descobrir
que seu filho ou filha tem um quadro crônico, sem cura prevista, e que sua vida deve
ser toda adaptada para viver esse novo modo, passando anos, às vezes décadas,
na manutenção e contenção de sintomas superagressivos. Ao experimentar um
novo remédio, um bom pedaço dessa realidade muda, abrindo novas perspectivas,
trazendo novas esperanças.
As emoções provocadas por essas experiências não existem em si. Elas são
sempre contextualizadas na prática, nos exercícios de tê-las. Não são emoções
descontextualizadas. Como em um jogo de futebol que o placar não condiz com o
que aconteceu durante a partida. Vários elementos compõem a situação que
desenha o placar distorcido. É o resultado de um conjunto de fatores que se
construiram, somando todos os eventos como torcida, juiz, pressão do estádio,
regras e posição no campeonato, relação entre os jogadores fora do campo,
situações de treino, pagamentos em dia, premiações por resultados e um sem
número de agentes de influência que produzem o placar. Espera-se que o jogador
mais veterano tenha mais controle emocional que um jovem recém-subido das
categorias de base, embora o contrário possa acontecer. Nada pode ser previsto
com a certeza que os modernos fantasiam ter. Toda emoção é decorrente do quadro
instituído.
Seguir os atores me fez saber, portanto, de que maneira a minha pesquisa
poderia ser viabilizada. Fez-me perceber qual o melhor caminho para trabalhar,
conhecendo as minúcias, indo ao encontro do cotidiano, que está bem relatado na
28

parte do contato com os pais e mães. Todas as etapas do processo estão bem
vividas, respaldadas e detalhadas.
A maconha, como não humano, é a produtora das instâncias não sociais que
constituem o social em que ela está inserida (LATOUR, 2005). Seu papel como atriz
mudou muito ao longo dos anos, ora como protagonista da saúde e bem-estar, ora
marginalizada como algo daninho. Essa forma-tema se desdobra para a própria
noção de indivíduo ou coisa: a maconha é constituída pelo local, pelo temporal, pela
técnica, pelo urbano, pelo rural, pelo ocidente, pelo oriente e por todas as suas
diferenças, pelos coletivos por onde ela passa e perpassa.
29

1 VEGA - A CANNABIS

And no one show us to the land


And no one knows the wheres or whys
But something stares and something tries
And starts to climb towards the light
Echoes - Pink Floyd

O período vegetativo ou Vega é a fase em que a maconha somente cresce,


sem dar os frutos, ou melhor, flores. Nessa altura do cultivo, a maconha se
desenvolverá e crescerá para florescer bem na próxima etapa. Importante nessa
fase é o fotoperíodo, ou seja, a luz. Trago a narrativa do contato com as mães e todo
o arcabouço principal desse texto. É a parte em que relato o que colhi como
experiências mais marcantes na trajetória da construção da tese.
O campo foi, para mim, muito forte e mexeu profundamente comigo.
Potencializou-me, cativou-me e transformou-me. À medida que fui descobrindo os
outros efeitos medicinais e seus usos, foi se fortalecendo essa certeza e minha
postura foi sendo moldada. Nesse meio termo, descobri que iria ser pai novamente.
O contato com a dor daqueles pais de crianças tão pequenas junto com minha
experiência de já ser pai de uma adolescente saudável e o incomensurável
momento de uma gravidez me causaram momentos marcantes e motivadores junto
ao contato afetivo que o campo havia se transformado.

1.1 O contato com as mães e crianças

Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares o


Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça.
E. J. Couture

A reportagem que me aproximou do tema, tocou-me pela burla presente no


desafio das instituições e legalidade do tema. O fato determinante, no entanto, foi
descobrir ali o uso para produção de um remédio capaz de atenuar uma terrível
doença, que quando ocorre em crianças é ainda mais chocante e parece nos doer
mais na compaixão e na projeção afetiva que fazemos.
30

Após o contato inicial com os membros da Rede Compromisso, eu consegui,


através deles, conhecer algumas mães durante a fundação da AMA+ME. A primeira
criança que vi foi o Pedrinho. Sua mãe relata o seu caso assim:

Ao nascer, ele sofreu de hipertensão pulmonar que lesionou seu cérebro,


mas os problemas só foram aparecer aos três anos de idade. Ele começou
a sofrer as crises epiléticas severas, que o fizeram regredir bastante em
tudo que ele já tinha aprendido em toda sua vida. Foram administrados
vários neurolépticos que não surtiam efeitos nas convulsões. Até que um
desses medicamentos desencadeou uma alergia medicamentosa chamada
de “síndrome de Stevens-Johnson”, que o fez entrar em mal convulsivo e o
deixou com sequelas graves. Por conta disso, ele ficou em coma induzido
por três meses em uma UTI no rio de Janeiro. Quando despertou do coma,
ele estava muito debilitado, perdeu a capacidade da fala e de andar e assim
ele foi para casa. Eu vivia amargurada achando que o destino dele seria
para sempre aquele martírio, até que tive conhecimento do extrato da
maconha, que um grupo de Ativistas estava fabricando. Então, eu procurei e
entrei em contato com essa rede e eles me cederam o óleo da maconha.
Foi como se meu Pedro estivesse bebendo vida! Pedro melhorou muito a
fala, aprendeu mais palavras e começou a interagir com toda a família e
também voltou a andar e se alimentar bastante, pois o efeito colateral bom
da maconha é abrir o apetite e as convulsões DESAPARECERAM. Já faz
mais de 2 anos que ele não tem convulsão nenhuma. Assim, sei que a vida
dele pode ser prolongada e também voltei a dormir tranquila sem o medo de
antes. Estamos muito felizes!

Não é que a maconha seja mágica, mas ao administrá-la, podem-se diminuir


os anticonvulsivantes que desligam também outras áreas do cérebro. Assim, é como
se a criança religasse seu desenvolvimento físico e cognitivo. Como já foi dito, sabe-
se, através de estudos preliminares, que a maconha atua na constituição dos tecidos
cerebrais.
Nesse mesmo evento conheci outras mães e conversei com elas. Percebi,
nesse primeiro contato, como a realidade delas é muito mais dura do que a já difícil
tarefa de cuidar de um filho sem os comprometimentos que as enfermidades
causam. É importante frisar aqui que a convulsão, crise convulsiva ou crise epilética
pode ser resultado de quadros infecciosos, problemas associados ao período de
gestação, ao momento do parto ou como comorbidade e sintomas associados a
síndromes genéticas raras. Ainda quero levar em consideração, para essa reflexão,
a especificidade de cada organismo. Mesmo crianças com diagnósticos idênticos
possuem um espectro de comprometimento muito amplo para generalizá-las. Desse
modo, caímos no que já foi dito aqui: a necessidade de se encontrar a cepa
especifica da maconha e sua dosagem para cada criança. Isso só é possível de ser
realizado por meio de pesquisas muito aprofundadas. Para aprofundá-las, é
necessário descriminalizar o uso da planta.
31

Durante as reuniões semanais da AbraCannabis, pude me aproximar da


associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (APEPI) por
meio dos seus diretores, um casal cuja a filha é portadora da síndrome genética
CDLK5. Através deles, pude acompanhar outros pais e mães com filhos que tinham
crises convulsivas como sintoma dos problemas de saúde e para os quais a
maconha despontava como uma esperança de diminuição das crises, da melhora e
da recuperação parcial da parte cognitiva da criança. Passei a seguir essas mães,
além de participar da organização da AbraCannabis. Coloquei-me à disposição,
junto ao grupo da APEPI, para fazer um trabalho coletivo com essas mães, numa
espécie de grupo de apoio, que acabou gerando algumas reuniões temáticas
mensais no ano de 2016. Foram momentos marcantes para mim como pesquisador,
visto que pude ver de perto as dificuldades encontradas por esses pais e mães
lindando com toda a dificuldade de desenvolvimento dos filhos e tendo que manter a
vida ao mesmo tempo. Projetava em, simultaneamente, minha própria vida, medo e
angústia por passar por uma outra gravidez e ser pai novamente. Tocar a própria
vida era algo a que todos, sem exceção, pareciam já estar adequados e resignados.
As dificuldades na logística e no cotidiano eram muito parecidas. As singularidades
determinavam a especificidade de cada núcleo familiar. Havia pais que contavam
com a ajuda da família para cuidar da criança, outros se desdobravam para poder
pagar cuidadores, profissionais de saúde de atenção especial, tudo visando
melhorar o desenvolvimento. Quase todas as famílias associadas à APEPI tinham
como referência clínica o Instituto Estadual do Cérebro, que possui um a equipe de
neuropediatras que receitam a maconha como remédio. Nas reuniões que
coordenei, recebi relatos dolorosos e inspiradores de pessoas abnegadas, de um
amor encantado, que tocam suas vidas se equilibrando com essa realidade
dificultada. Um dos relatos que me marcou foi o de um casal que, nas palavras
deles: "se furar um pneu, o dia se desmonta", fazendo referência à falta de tempo
total para sair de uma rotina extenuante de trabalho, cuidado e tratamento da
criança. Toda sua agenda é amarrada com um compromisso atrás do outro,
revezando e encaixando os horários com a agenda do parceiro. Outros optaram pela
mãe parar de trabalhar para cuidar da criança. Isso numa narrativa simplória de
pessoas que possuíam um poder aquisitivo médio. Há relatos de dificuldades
maiores, como os de mães que foram abandonadas pelos pais das crianças, cujas
famílias não dão nenhum suporte. A tecnologia da informação, através do uso de
32

redes sociais por celular acabou virando um lugar de desabafo entre as mães com
relatos sobre o estado dos filhos quando internam no hospital. Ser internado é
recorrente nessas enfermidades dos casos das crianças. Muitas vezes, uma simples
gripe pode levar uma delas ao CTI direto. Os relatos são sempre recheados de
emoção, com um espírito de esperança e sentimento de se estar indo para mais
uma batalha. Elas ficam uma na torcida da outra, mandando desejos de melhora,
mtas vezes religiosos e vibram mto qdo elas tem alta. Cada etapa vai sendo
mostrada, com fotos e vídeos inclusive
Ainda há mães pobres e invisíveis, que têm filhos com problemas da mesma
ordem, mas sequer têm diagnóstico fechado, por não terem acesso aos exames ou
a um atendimento descente no sistema de saúde. Um caso atendido pela Rede
Compromisso me serviu de exemplo. Uma avó que cuida da neta, moradora de uma
das regiões mais pobres da cidade, relata que só na rua dela tem mais, pelo menos,
três casos de crianças com crises convulsivas que nem sequer estão no rol das
estatísticas da saúde. São pessoas invisíveis à sociedade, que têm doenças
invisíveis ao sistema de saúde público insensível.
Mesmo as famílias com um pouco mais de poder aquisitivo relatam ter que
vender bens para poder comprar o óleo importado. Um tratamento pode chegar a
quinze mil reais por mês. Isso deveria ser custeado pelo SUS, que não o faz, num
roteiro surrealista. A importação, além de burocrática, é caríssima. A ANVISA
permite importar, mas não permite o plantio e pesquisa no território nacional. Não há
resposta para dar quando se pergunta o porquê de algo poder ser importado, mas
não pode ser produzido. Recorrer à justiça também não adianta, porque, mesmo
como mandados de segurança, mesmo com ordem de prisão de secretário, não se
consegue a liberação de forma alguma. Raros são os casos em que se conseguiu.
Mesmo assim, é um caminho árduo e de muita frustração para quem tem a
existência já dificultada. Esse é o motivo principal por que a AbraCannabis e a
APEPI lutam, pelo direito ao cultivo individual e coletivo.
Não bastando toda a dificuldade que essas famílias passam e o preconceito
geral que elas experimentam do olhar ignorante perante o problema dos filhos, eles
ainda são desrespeitados por quem deveria acolhê-los com olhar mais tenro.
Infelizmente, ainda poucos são os médicos que se interessam em se informar sobre
o uso da maconha como remédio para crise epilética. Quase toda família tem um
relato de um atendimento no qual, no momento em que se questiona o uso da
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maconha, o médico se coloca na posição oposta à do seu juramento sobre o cuidar


do enfermo, chegando a ameaçar a família, dizendo que se os pais insistissem em
maconha, eles parariam de atender a criança, por exemplo. Outros dizem que o uso
medicinal é mentira. Dizem que é apenas interesse dos maconheiros, que querem a
liberação e que são contra, usando como argumento todo o arcabouço já dito aqui
sobre os mitos ensinados. Isso significa que a desinformação e o preconceito são
presentes, também, em quem deveria dar todo o apoio e fazer uso de todos os
recursos existentes quando o que existe não funciona. A própria sociedade em
geral, ao ouvir a palavra maconha, já se recusa a debater. Existem nas próprias
famílias pessoas que se afastaram por conta do uso do extrato de maconha pelas
crianças.
Todas as ONGs do país que fazem o papel da Rede Compromisso, mas que
cobram mensalidade para fornecer o óleo, não mudam a narrativa comum a todas
as mães. Os áudios que ouvi, relatando as doenças e o grau de melhora com o uso
do óleo do extrato de maconha, são impressionantes. As crianças, em sua maioria,
estão na fronteira entre a vida e a morte. O óleo, nas palavras de uma mãe da
Paraíba: "ressuscitou meu filho, permitindo a ele fazer coisas que nunca fez na
vidinha dele...". Nas narrativas das histórias, mudam os personagens e os
tecnicismos das doenças, mas o restante é muito semelhante: quando o óleo é dado
à criança, ela floresce, renasce num sopro de esperança e tem aumentada sua
qualidade de vida. Isso é feito na clandestinidade, com óleos feitos de forma muito
artesanal, sem controle farmacológico algum e que, mesmo assim, surtem efeito
enorme. Podemos vislumbrar, a partir disso, como seria se a maconha pudesse ser
pesquisada sem os interesses comerciais atrapalhando. O futuro, daqui para frente,
pode ser brilhante ou obscuro. Tudo fica à mercê da caneta da lei.
Em janeiro de 2017, a Associação ABRACE, que faz e distribui, com a ajuda
de uma mensalidade, o óleo da maconha chamado "Esperança", lançou na web uma
rádio online, com relatos de familiares sobre o efeito do óleo nas suas crianças. Eles
resumem o sentimento e a emoção que me tocou e motivou a escrever essa tese. É
emocionante ouvi-los. A dor e o grito que apela pelos filhos dessas mães que lutam
para cuidar de crianças necessitadas de uma saída para diminuir seus sofrimentos é
a mosca na sopa da política proibicionista. Essa mesma associação foi a primeira a
conseguir autorização judicial para produzir o óleo de forma coletiva, como
associação.
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No final de 2016, quando o assunto tomou a grande mídia, por conta de um


trabalho de intensa divulgação e a obtenção dos habeas corpus que permitiam o
cultivo, a sociedade, em pequena proporção, passou a admitir que a maconha possa
ser usada como remédio. Admitia, no entanto, apenas para isso, sem nenhuma
vinculação à liberação ou à descriminalização. Há inclusive alguns pais de outras
associações pelo país que defendem isso: afastar a pesquisa científica da figura do
uso não medicinal. Desconsiderando a estrutura fitoterápica da planta, o efeito
comitiva e mantendo o preconceito instituído. Por outro lado, também colhi relatos
de pessoas que romperam seus paradigmas, informando-se e entendendo o lugar
da maconha na história e mudando seus conceitos e valores, saindo de críticas ao
ativismo pela causa. Junto aos religiosos mais conservadores também há um
movimento de aceitação do desenvolvimento do remédio, mas sem acatar o uso não
medicinal.
Há casos em que a criança foi desenganada, com expectativa de vida
reduzida ou a morte muito próxima como único caminho inevitável. — "Não há uma
mãe que não pensou em dar fim à própria vida perante o desespero... " — foi uma
das frases que ouvi nas oficinas de pais de que participei. Ter ido ministrar o curso
de história e cultivo em São Paulo me permitiu ouvir uma das histórias mais bonitas
e inspiradoras desse trabalho. Uma senhora, que passou a cuidar do sobrinho neto,
que hoje tem dez anos, requerendo a guarda dele. Samuel ou Samuka, apelido
carinhoso pelo qual ele é chamado, e sua mãe de amor Cleuza construíram uma
relação de confiança e afeto que enchia os olhos de quem os conhecia ali, naquele
grande teatro onde foi ministrado o curso. Seu olhar era de quem parece já ter
sofrido muito, pela doença e pela carência que foi atenuada pela forma tão doce
com a qual sua mãe o tratava. Em uma conversa rápida, ela me contou que teve
uma irmã viciada em cocaína e presa, grávida de dois meses. Quando a filha dessa
irmã nasceu, ela a trouxe para casa até que ela saísse da prisão. Ela acabou
morrendo na cadeia quando a menina tinha três anos, então sua irmã a criou.
Essa sobrinha é a mãe do Samuel, a quem nunca se aproximou afetivamente,
a quem nunca foi vinculada. O pai o abandonou e próximo de ele completar dois
anos, a mãe, que já não era próxima, surtou e foi embora para outro estado, viver
outro relacionamento. Assim, ela o encontrou com a resistência baixa, muito mal
cuidado, com sinusite, magro e debilitado. Poucos dias depois, ele desenvolveu uma
febre pela manhã e, à noite, entrou em coma, vítima de um vírus que ocasionou uma
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encefalite, deixando ele em coma por quarenta dias e o fazendo acordar surdo-mudo
e sem os movimentos. Ao fazer um exame para avaliar o nível de audição, ele foi
anestesiado e ministraram a medicação errada. Em vez de cinco gotas do
medicamento infantil, deram a ele cinco mililitros do medicamento para adultos. Por
isso, ele ficou mais uma semana em coma e, como sequela, restou a epilepsia
refratária de difícil controle. Nenhuma medicação até hoje funciona para crises que
são graves e que o fizeram perder vários dentes, ter cortes e pontos por cair durante
as crises. Por muito tempo, sua tia-avó procurou alternativas, pensou até em
procurar um índio para encontrar uma planta que pudesse ajudar. Passando noites à
procura na internet, em todas as pesquisas, ela chegava à maconha. Muito receosa,
mas vendo Samuka morrendo aos poucos, ela entrou em contato com o um grupo
que fornecia o óleo em São Paulo. Nas primeiras gotas, ele teve uma grande
melhora, que, obviamente, não era a cura, mas que proporcionou, aos pouquinhos,
um grande alívio, em conjunto com as terapias de recuperação dos movimentos e
cognição. Ela foi convidada a assistir ao nosso curso em parceira com a associação
CULTIVE!, e ganhou de uma pessoa algumas sementes e clones. Aprendeu a
plantar e cuidar das plantas. Ela me narrou essa história com emoção aflorada e
disse: "hoje tenho guarda definitiva e um processo de adoção. Não sei quanto tempo
mais vou viver, mas viverei por ele".
A luta das mães acaba por dar a elas uma nova esperança e uma sensação
de estar fazendo parte de algo grandioso, gerando orgulho e um sentimento de
realização de algo maior. O casal brasileiro que recebeu, pela primeira vez na
história, o direito de plantar maconha no território nacional criou um precedente para
que outros consigam o mesmo direito. Todos os envolvidos acabam passando por
mudanças paradigmáticas internas profundas. Acompanhei as narrativas desses
familiares, em sua maioria as mães, que se auto apelidaram de “Mãeconhas”.
Em julho de 2016, eu fui convidado pela Margarete Brito, presidente da
APEPI, para participar de um grupo de apoio às mães e pais das crianças com
doenças graves. Essas reuniões ocorreriam no prédio dela ou em algum outro lugar
a partir de agosto. No primeiro mês, ela me pediu para ceder a entrada de uma
terapeuta que estaria presente e trabalharia nessa reunião. Nosso contato foi muito
interessante para perceber e captar todo o aspecto emocional associado às
questões e à vivência experimental especial desses pais e mães com as crianças.
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É quase óbvio que essas pessoas não possuem um espaço de desabafo.


Praticamente, nenhuma tem tempo nem sequer para poder fazer terapia ou se auto
cuidar, nas palavras de uma das mães. Não se pode fazer absolutamente nada fora
de uma agenda extremamente rígida e planejada, porque senão tudo desanda. Esse
tipo de vida é muito estressante e muito difícil de ser levada. Ter um filho ou uma
filha com algum tipo de doença, da qual não se tem ideia do prognóstico, é tornar
tudo muito mais difícil e doloroso. Finalmente, em se tratando da narrativa de cada
casal ou de cada mãe que estava lá, eram praticamente as mesmas dificuldades.
Falavam de como foi difícil a adaptação, de como não se esperava que aquilo
pudesse acontecer daquele jeito e do quanto a doença foi uma surpresa. Porque
tudo depende de como a criança reage de acordo com os remédios. Relatavam
sobre como é doloroso ver o próprio filho ou a própria filha sofrendo daquele jeito. A
sensação de impotência que talvez seja, de todas as sensações, a mais repetida na
narrativa desses pais, no sentido de assistirem aos filhos daquele jeito. Para mim,
que estava ali como observador, doía muito e me fazia, de certa forma, mal pensar
que eu tinha um bebê recém-nascido e que, por enquanto, não tinha passado por
aquilo. Isso me gerava tranquilidade e, ao mesmo tempo, um medo danado de
acontecer alguma coisa com ele no futuro, visto que em algumas pessoas, as
doenças se desenvolvem a partir dos três, quatro anos de idade. Existem relatos de
crianças que até completarem essa idade viviam normalmente, sem nenhum tipo de
problema. A partir daí começou um desencadear de crises e uma perda de
desenvolvimento cognitivo. As doenças acabam aparecendo e a tentativa de
diagnóstico, ou de algum entendimento do que está ocorrendo, vai se fazendo.
Então, todo o sacrifício e desespero são incutidos nas famílias. Tudo isso piora
muito no caso das famílias menos assistidas. Há famílias que têm recursos
financeiros, o que torna a vida menos dificultosa, mas não significa que a torne fácil.
Ainda há, entretanto, aquelas famílias que, além de tudo, não têm recursos e vivem
com essas crianças.

1.2 Relatos de casos

Escolhi, em meio a tantos casos que pude acompanhar, três histórias que
considero simbólicas, pois foram escritas com palavras dos próprios que vivem a
situação da dificuldade de saúde. São os dois casos de famílias que conseguiram
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receber o habeas corpus que permite o auto cultivo do remédio de seus filhos: a da
Margarete, do Rio de Janeiro e o da Cidinha, de São Paulo, além do relato do
Gilberto Castro, portador de esclerose múltipla e usuário medicinal de São Paulo. A
transcrição é integral e a fala está contornada para dar ciência de que a escrita é
das pessoas que gentilmente me relataram o caso e autorizaram sua publicação no
texto da tese.

1.2.1 Sofia, Margarete e Marcos

Hoje, minha filha Sofia tem 8 anos, mas, com apenas um mês de idade, ela
teve a primeira crise convulsiva. Foi quando se iniciou para mim uns dos maiores
sofrimentos da minha vida, que era dar drogas para aquele bebe tão pequenininho,
tão delicado, tão lindo.
Eram drogas e mais drogas, todas lícitas, de tarjas preta, vermelha, amarela,
de todas as cores. Em algumas épocas, a Sofia tomava cinco anticonvulsivantes de
uma só vez. Um dos efeitos mais brandos desses medicamentos era a perda de
campo visual, sem volta, irreversível.
As drogas eram tão fortes que a médica dela dizia que se ela mesma tomasse
a metade daquela dosagem, dormiria três dias sem parar. Ela nos explicava que o
uso de drogas é questão de custo-benefício. Sofia, no entanto, além de dopada,
continuava a ter o mesmo número de crises convulsivas. Logo, minha filha tinha
apenas o custo que, diga-se de passagem, era muito alto.
Eu e o pai dela nunca caímos na zona de conforto. Acho impossível que
alguém em situação semelhante fique indiferente.
No final de 2013, pelas redes sociais, descobrimos que maconha também
poderia ser remédio. Não pensamos duas vezes, parece piada, mas traficamos.
Fomos para as ruas junto com dezenas de outras famílias, gritamos e conseguimos
regulamentar o acesso à maconha para uso medicinal no Brasil, mas somente
através de produtos importados. É preciso avançar mais!
Hoje, junto com o extrato de maconha, Sofia toma apenas um
anticonvulsivante em dose muito baixa. Ela está ótima, menos dopada, sorri mais,
está presente, com menos hipotonia e quase sem crises. Enquanto a maioria das
famílias está preocupada com a escolha de universidades nas quais seus filhos
poderão estudar ou com quantas línguas eles irão aprender, nós só queremos que
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nossos filhos não tenham convulsões, que eles possam sorrir, olhar e comer. E
nisso não pode haver polêmica.
Com a repercussão do uso medicinal da maconha, recebi e recebo inúmeras
mensagens de pessoas em estado extremamente vulnerável, que precisam da
maconha para amenizar seus sofrimentos. Isso me faz mais forte para continuar
lutando, além de ressignificar Sofia na minha vida. Isso significa dizer que tudo se
explica quando uma situação que parece ser um problema se torna uma ferramenta
de solução para centenas de outras pessoas. É quase um prêmio para mim.

1.2.2 Clárian, Cidinha e Fabio

Clárian Felício de Carvalho, nascida no dia 08 de maio de 2003, apresentou


sua primeira crise convulsiva aos cinco meses e meio de idade. Eu nunca tinha visto
uma convulsão antes. Foi uma crise severa, levando-a a um mal súbito com parada
respiratória. Foi traumatizante.
Começamos a viver um dia de cada vez. Foi uma crise atrás da outra,
internações frequentes com status epiléticos e paradas respiratórias. Passamos a
viver num hospital. Ouvíamos de médicos que minha filha não andaria e nem falaria.
Sentimo-nos na escuridão, sem ter um diagnóstico ou a esperança de uma possível
cura.
Seu diagnóstico só foi concluído em dezembro de 2013, quando ela tinha dez
anos, pela UNICAMP. Foi indicado que minha filha tinha síndrome de Dravet, uma
mutação genética no gene SCN1A. A doença consiste em uma forma severa de
epilepsia, caracterizada por convulsões contínuas e de difícil controle, com mais de
uma hora de duração. Os vários tipos de crises levam ao status epilético com
iminente risco de morte súbita. A síndrome de Dravet se caracteriza como severa
nem sempre pela quantidade de crises, mas pela intensidade das crises, podendo
ser fatal. A maioria das crianças com a mesma síndrome não chegam à
adolescência. A Cannabis está mudando essa realidade.
Clárian teve grandes atrasos cognitivos e motores, com grande esforço para
começar a falar e andar. Durante esse período, ela foi tratada com coquetéis de
anticonvulsivantes como Gardenal, Trilepital, Depakene, Valpakene, Keppra,
Frisium, Topiramato e outros. Sempre tentávamos substituir um pelo outro ou
sempre aumentávamos a dose, o que mudava sua personalidade e fazia com que
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ela se comportasse como se não estivesse presente, com um olhar sem contato com
o ambiente.
Os efeitos colaterais dos anticonvulsivantes são horríveis. Eles causam
irritabilidade, sonolência, deixam-na sem capacidade de falar e entender, provocam
flacidez muscular e geram refluxo gastroesofágico. Fazendo tratamento com
medicamento contínuo por dois anos: apneia no sono, intoxicações e outros graves
efeitos colaterais resultaram em onze pneumonias, duas atelectasias, nódulos na
tireoide — tratados, até hoje, com o hormônio Levoid — e inúmeras paradas
respiratórias. Quase a perdemos várias vezes. Clárian ficava doente o tempo todo.
Foram inúmeras internações prolongadas que nos separavam da família. Meu outro
filho só nos via aos finais de semana, dentro de um quarto de hospital.
Criança com síndrome de Dravet não transpira. Eu tinha, portanto, que andar
sempre com uma garrafa de água para molhar seu pescoço, cabeça, braços e nuca,
a fim de evitar uma crise generalizada, pois, como não tinha o equilíbrio da
temperatura do corpo, a ausência da sudorese também desencadeava as
convulsões.
O Trilepital desencadeava mais crises generalizadas, o Depakene deixou a
minha filha sem andar por quase um mês. Ela apenas se arrastava. Devido a uma
intoxicação no fígado e rins, que resultou em comprometimento renal com risco de
evolução, ela precisou de outro tratamento com uso contínuo de antibiótico por um
ano. Tivemos de mudar as drogas muitas vezes, até chegarmos a uma combinação
de quatro anticonvulsivantes: Keppra, Gardenal, Frisium e Topiramato, que, após
oito anos de tentativas frustradas, reduziram um pouco as crises. Esses
medicamentos, no entanto, deixavam-na dopada e seu desenvolvimento ficava
estacionado. Além disso, havia o risco de reações adversas, que podem abarcar
cegueira, distúrbio de personalidade, falta de concentração, confusão mental,
problema cognitivo, agressividade, autoagressão, alteração na marcha,
embotamento das emoções e depressão respiratória, complicações renais, falta de
interação social, falta de equilíbrio, ausência de sudorese, entre outras.
Tenho buscado incansavelmente, por dez anos, uma solução para tirar minha
filha do risco de morte, tentando obter alguma qualidade de vida para ela e um alívio
para nossa família que sofre junto.
Em meados de 2013, numa das buscas por alguma luz, quando eu não
aguentava mais ver a epilepsia roubar a infância de minha filha, assisti a uma
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matéria sobre Charlote Figi. Ela era uma menina do Estado do Colorado, nos
Estados Unidos, que na época tinha seis anos de idade e a mesma síndrome de
minha filha. Charlote Figi estava sendo tratada com a Cannabis medicinal. A
reportagem mostrava o antes e o depois do estado da menina. Os resultados eram
surpreendentes.
Foi como uma luz cheia de esperança para mim, pois eu me deparava com o
primeiro caso de melhoria incrível da síndrome de Dravet. Antes, a maioria dos
casos levava ao óbito. Minha vida, desde o nascimento de Clárian, era cercada pelo
medo de minha filha morrer.
Empenhei-me na busca desse óleo de Cannabis medicinal. Entrei em contato
com RealmofCaring, Fundação dos Stanley Brother’s, os americanos responsáveis
pela produção do óleo que estava salvando a Charlotte. Depois, entrei em contato
com Revivid, outra empresa americana que hoje tem fornecido óleo de Cannabis
para crianças no Brasil. Fui no IV Simpósio de Cannabis Medicinal CEBRID
UNIFESP com o Dr. Elisaldo Carlini, em São Paulo. Entrei, também, em contato com
Dra. Tisha Siler — médica pediatra da Califórnia que administra o óleo de Cannabis
em crianças. Busquei informações com Dr. Franjo Grotenhermann — médico alemão
estudioso em Cannabis —, com a GW Pharm — laboratório que fabrica epidolex —,
com a ANVISA, solicitando o direito ao cultivo, com CREMESP, com Dr. Drauzio
Varella, com o SENAD, com o senador Cristovão Buarque, com a Fundação Daya e
Mama Cultiva. Fui até o Chile com o apoio do Cesec e participei da oficina de
extração do óleo de Cannabis. Contatei advogados, neurocientistas do Brasil —
como o Renato Filev e o Renato Malcher —, ativistas, fármacos, neurologistas —
como Dr. Eduardo Faveret e Dra. Maria Teresa Chamma. Levei minha filha ao Rio
de Janeiro para participar de uma pesquisa de célula tronco com minicérebro para
síndrome de Dravet no Hospital D’or com Fabrício Pamplona e Steve Rhens. Meu
marido participou de cinco audiências públicas no Senado da SUG8 para falar sobre
a Cannabis Medicinal. Enfim, bati em todas as portas que pude encontrar após
inúmeras buscas por um alívio.
Comecei a ler várias matérias e artigos sobre o cannabidiol, busquei muitas
literaturas sobre o assunto e consegui importar ilegalmente uma seringa de óleo de
Cannabis, rico em CBD, em abril de 2014, produzido pela empresa norte-americana
Hempmeds. O resultado que obtivemos foi maravilhoso. O que antes era impossível
aconteceu: Clárian passou os primeiros dezessete dias sem nenhuma crise. No
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entanto, quando soube que, pelo peso e idade de minha filha, eu teria que usar três
seringas por mês para mantê-la sem crises, com o custo de quinhentos dólares cada
uma, descobri que seria impossível manter a saúde e a qualidade de vida de minha
filha, devido a minha realidade financeira. Eu não dispunha de US$ 1.500 por mês
para manter a Clárian sem crises convulsivas.
Foi nessa época, após terminar o óleo de Cannabis rico em CBD importado
dos Estados Unidos, quando minha filha voltar a convulsionar, que, felizmente,
conheci a “Rede”, um grupo filantrópico secreto, que faz a doação do óleo de
Cannabis para a minha filha. O óleo é produzido artesanalmente pela Rede, a partir
das flores da Cannabis da cepa Harletsu e THCA, na qual há maior concentração de
diferentes cannabinóides, o que faz com que ocorra o chamado “efeito comitiva” -
ação em vários sistemas do organismo. Ele é produzido com a cepa mais indicada
de Cannabis, a HarleTsu, que é uma variedade da planta com maior teor de
Cannabidiol e com THCA. Clárian usa o óleo artesanal há dois anos e um mês,
sempre doado sem atrasos nas entregas e na quantidade suficiente para seu peso e
crescimento. As mudanças aconteceram como um milagre, fazendo a minha filha se
conectar com o mundo e melhorando a vida da família inteira. Cada detalhe era um
motivo de celebração pela vida de minha filha. Obtivemos os resultados
extraordinários relatados a seguir:
- Redução em 80% a 90% das crises: passou de dezesseis crises convulsivas
a uma ou duas por mês;
- Nenhum efeito colateral, a não ser sono e choro na fase de adaptação ao
remédio;
- Transpiração pela primeira vez, aos onze anos de idade, após três meses de
uso do CBD;
- Melhoria incrível de sua cognição (de acordo com o relatório da psicóloga
que a acompanha há 7 anos). Hoje, minha filha conversa normalmente;
- Melhora no equilíbrio. Hoje, ela sobe escadas sozinha e consegue correr
sem ser interrompida por um tombo no primeiro passo;
- Capacidade de pular, o que antes era impossível. Ela obteve melhora dos
tônus musculares;
- Ausência de apneia sono. Hoje, ela dorme profundamente durante a noite;
- Maior foco na escola
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- Melhora no comportamento autista proporcionado pela síndrome


(autoagressão, agressividade conosco e outras pessoas, pouca interação social,
comportamento repetitivo);
- Construção de frases dentro do contexto da realidade do que se passa;
- Melhora na marcha;
- Interação com os colegas da escola;
- Início de alfabetização na escola, o que antes era impossível;
- Capacidade de montar um quebra cabeça de até sessenta peças.
Todas essas melhoras foram percebidas pela psicóloga que a acompanha há
6 anos, pela professora e diretora da escola. Conseguirmos diminuir quase 50% das
doses dos medicamentos convencionais.
Eu só queria ter conhecido essa planta há onze anos. Isso poderia ter evitado
sequelas que minha filha irá carregar por toda uma vida.
Sr. Juiz, eu, como mãe, peço a sua ajuda para que minha filha possa ter uma
vida digna e ser feliz, pois a forma mais cruel e desumana de se tratar o ser humano
é com o preconceito, a intolerância e a rotulação das pessoas.
Eu tive duas opções: mudar-me para outro país para salvar a minha filha com
a cepa correta da maconha ou usar ilegalmente no Brasil. Por questões financeiras a
aquela seria impossível. Restou-me, portanto, optar por manter a minha filha viva
ilegalmente, o que já era melhor do que perdê-la legalmente.
Depois de onze anos de incansáveis buscas por um alívio, encontrei-o. Por
isso, só quero ter o direito de escolher o melhor tratamento para minha filha, com a
cepa correta da Cannabis e com o auto cultivo.
Maria Aparecida Felício de Carvalho (mãe da paciente Clárian Felício de
Carvalho, portadora de Síndrome de Dravet, paciente de Cannabis Medicinal feito
artesanalmente no Brasil.).

1.2.3 Gilberto Castro

Meu nome é Gilberto. Tenho 40 anos e esclerose múltipla comprovada em


1999 (EMRR) cid g35.
Antes da doença, eu não era maconheiro convicto. Já tinha fumado um ou
outro, mas eu gostava mesmo de whisky, cerveja e churrasco. Após o primeiro surto,
em 1999, que me deixou muito mal e por muito tempo, uma vez que não procurei
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logo ajuda medica, tive as sensações insuportáveis dessa doença. Mesmo que a
enfermidade seja controlada, fica-se ainda muito mal e por muito tempo. Demoraram
alguns anos até que eu conseguisse ficar razoavelmente acostumado com as
limitações de coordenação e de sensibilidade que me foram impostas.
Neste meio tempo, em todas as visitas ao médico, relatava para ele todos os
sintomas, até que um dia um deles olhou para mim de uma forma diferente, inclinou-
se e disse em voz baixa: “ fumar um baseadinho vai te ajudar.”.
Depois disso, comecei a fumar direto! Assim, houve a transformação. Ficou
muito mais fácil aguentar os efeitos e as sensações da doença, que eram a
dormência completa no corpo, movimentos estranhos e dessincronizados,
formigamentos, tonturas e sensações de pressão em lugares aleatórios pelo corpo,
calor e frio. Quando eu fumava, a dormência não alterava muito, mas minha pressão
arterial foi amenizada, as mudanças de temperatura, alteradas, as tonturas pararam
e os formigamentos ficavam mais suportáveis. A vida ficou colorida de novo e,
apesar de estar sem trabalhar por não conseguir mexer no mouse, comecei a dar
aulas de computação gráfica.
Foi aí que comecei a melhorar. Depois de um bom tempo, sem nenhum outro
surto, voltei a trabalhar e estabilizar minha vida, na medida do possível. Permaneci
sem surtos. Seis anos depois, eu e a medicina achamos até que eu tinha me livrado
da doença. Por conta disso, fiz uma tatuagem, devido a uma promessa feita a mim
mesmo no hospital.
Eu morava em São Paulo, mas pelo stress, correria e baixa qualidade de vida,
resolvi, junto com minha ex-esposa, migrar para o Mato grosso do Sul, onde foi bem
gostoso de viver.
No entanto, assim que que cheguei, após aproximadamente um ano sem a
maconha, infelizmente, em 2009, tive outro surto. Isso aconteceu porque eu não
conhecia bem a região e não sabia onde encontrar a planta. Como eu já tinha
conhecimento suficiente da minha condição, corri para a farmácia e me
automediquei com cortisona. Depois disso, fui para o médico. Esse surto não gerou
sem muitas sequelas, pois me tratei rápido. Acabei conseguindo o esquema de um
beck por ali e tudo se estabilizou. A única sequela que tive foi uma soma a um
problema que eu já tinha, uma moderada perda de movimentos da minha perna
direita.
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Tive mais um tempo de paz. Em 2011, mudei-me novamente para outra


cidade, maior e com mais infraestrutura. Novamente, fiquei sem a maconha. Até
então, eu ainda não tinha ligado os fatos ainda.
Como um relógio, depois de mais ou menos sete meses sem a erva, em
agosto, houve outro surto. Mediquei-me rapidamente mais uma vez e fui ao médico,
que nesse momento me receitou um remédio que só podia ser adquirido somente
por meio do Estado. Infelizmente, as lesões físicas, nessa ocasião, foram maiores.
Fiquei quase sem andar e me sentia muito mal com todas as fortes sensações da
doença, que são todas as que eu sentia anteriormente: mais espasmos, dores,
choques insuportáveis, tontura, visão dupla e turva, e uma lista gigante de sintomas
diferentes e horríveis.
Nesse surto, já com mais experiência, depois de medicado, fui o mais rápido
que pude atrás da Cannabis. Agora, a diferença de estar com e sem a planta é
gigantesca. A Cannabis faz parar completamente os espasmos e os choques,
principalmente um que sinto no pescoço, que se assemelha a uma machadada.
Considero que esses dois sintomas são os piores. Com a Cannabis, eles somem
como mágica. Parece que nunca existiram. Eu posso dormir bem, e todas as outras
sensações, que não somem, são bastante aliviadas, o que torna a minha vida social
muito fácil.
Parece que Cannabis foi feita para esclerose múltipla. É impressionante! No
primeiro trago, a alegria e a paz voltam. Esse último surto está ruim de superar,
mesmo agora que já se passaram alguns anos, mas vou seguindo, uma vez que
estou andando e trabalhando.
Ninguém comenta nada sobre isso, mas existem estudos que vão além do
que temos divulgado em nossas mídias. Já confirmei a confiabilidade deles com um
amigo neurocientista. Alguns desses estudos, por exemplo, estão no site
http://www.cannabismd.net/. Na parte dedicada à esclerose múltipla, há várias
pesquisas. Uma delas comprova que a Cannabis ajuda a diminuir a frequência e a
intensidade dos surtos da esclerose múltipla do tipo recorrente remitente, o mesmo
do qual eu sofro. Só existem provas de benefícios dessa planta, que nunca matou ninguém.
O que posso dizer? Legaliza, por favor e logo! Agradeço a todos que vivem e trabalham
comigo, aos amigos do Growroom, que foram e estão sendo muito companheiros nessa
época difícil.
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2 FLORAÇÃO - A VIDA NO CAMPO – TECENDO AS INTERAÇÕES E


OBSERVANDO AS CONTROVÉRSIAS

Quando entrar setembro


E a boa nova andar nos campos
Sol de primavera – Beto Guedes

A flora ou floração é o período em que a planta abrirá suas flores. Tudo aquilo
da força que foi potencializada na Vega agora fluirá para o crescimento da flor.
Conhecida, também, por Bud ou camarão, é a flor que contém as substâncias que
produzem efeitos medicinais. Aqui a planta vai para um ciclo de luz e outro de
escuridão. Nessa etapa do texto, floresce também toda a experiência por mim vivida.
É nessa fase que as emoções serão traduzidas em palavras, numa tentativa de
conseguir passar o turbilhão de vivências, sentimentos e transformações que vivi
durante essa pesquisa.
Os primeiros encontros e a aproximação com o grupo Rede Compromisso
foram lentos e graduais, algo esperado, tendo em vista as questões de segurança e
exposição dos membros. Depois de ir ao encontro do Emilio em seu escritório e com
minhas credenciais a negociação não foi difícil para me embrenhar no grupo. A
internet, com as redes sociais facilitou também ele me conhecerem e confiar. Ficou
muito óbvio que eles me pesquisaram antes de abrir seus encontros à minha
presença. Aos poucos, aprendendo a controlar meu ímpeto pessoal de fazer apartes
em conversas alheias, fui conquistando a confiança deles pelo caminho possível que
era começar a fazer parte do trabalho. O discurso de todos é uníssono: todo mundo
deveria plantar para se conseguir o acesso gratuito e universal, pois basta plantar
para ter. Realmente, tendo podido acompanhar todo o processo com vários
plantadores, tudo parecia ser muito simples mesmo. A questão é que há uma
relação direta com o tráfico de drogas. Eles alegam que plantar faz com que não
seja mais necessário comprar dos traficantes, com isso não se participa da cadeia
de eventos que compõe o tráfico. Além disso, a qualidade e o tipo de maconha pode
ser controlado, sendo que na maconha oriunda do tráfico isso não é possível e a
qualidade é baixa porque há uma enorme distância entre a produção e o consumo.
Para cada enfermidade há um tipo de maconha diferente. Plantando uma mãe pode
descobrir qual a cepa que tem o melhor efeito na enfermidade do seu filho. A
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maconha de um doente de dor crônica não é a mesma de uma criança com


convulsão de difícil controle. O plantio também é visto como um ato de resistência
legal e é prerrogativa para se obter o salvo conduto de licença para plantar
legalmente. Percebi o tamanho do universo que estava me propondo a conhecer e,
logo em seguida, que eu teria que mergulhar na experiência de viver o ativismo.
Após alguns almoços combinei de visitar a casa do Ricardo em sua casa na região
litorânea fluminense. Conversamos por algumas horas e ali foi meu primeiro
mergulho na história de alguém envolvido na causa descriminalização, segue o meu
relato da nossa conversa de um dia inteiro. Todo relato descrito aqui foi autorizado
por ele.
"Assombração só aparece para quem tem medo!". Com essa frase, Ricardo
definia para mim que sua grande defesa era o ataque. Não temer, enfrentar,
responder a tudo sempre com a postura libertária de igualdade e de justiça para
todos. Uma história de vida que resume bem o que essa tese tenta transpor em
palavras. Algumas conscidências em nossos caminhos facilitaram a conversa. Ele
veio de família pobre, era morador de comunidades humildes do Rio e conheceu os
múltiplos lados da vida carioca. Seus caminhos foram percorridos à sua maneira até
que ele se tornasse o advogado ativo e combativo pela legalização do cultivo
individual da Cannabis. Sempre com muita firmeza, Ricardo me contou sua história
de vida e como a maconha foi se tornando para ele o remédio capaz de proporcioná-
lo a capacidade de se acalmar e de tocar, assim, sua vida, ainda de forma agitada e
enérgica, o que é perceptível em sua fala. Sua origem era muito humilde e ele foi
“criado pelas ruas”. O advogado percebeu nas vivências, quando ainda não tinha
sequer concluído o Ensino Fundamental, que conhecimento é poder. O evento
disparador de mudança em sua vida foi um assalto, com trocas de tiro, que quase o
matou. Daí em diante, ele cursou o supletivo e, depois, trabalhou para se sustentar
enquanto frequentava a Faculdade de Direito. Hoje, Ricardo é advogado anti-
proibicionista e membro fundador da REFORMA, um corpo jurídico que tem vários
advogados, que atuam na defesa gratuita de plantadores e usuários nos quais o
Estado exerceu seu poder da letra da lei, em muitos estados do país. Deparei-me
com a narrativa sobre o preconceito racial associado a figura do usuário. Ele viu a
segregação que o policial aprende, no ciclo vicioso da pobreza e exclusão social,
sendo executada várias vezes. "Os primeiros a serem revistados são sempre os
negros. Ser negro é ser suspeito para a polícia". Essa realidade é realmente norma
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não escrita no procedimento da polícia. Em outras duas entrevistas com dois amigos
que são da polícia militar do Rio, foi-me confirmada essa orientação, com a
justificativa "de que é assim porque é só olhar para as estatísticas e ver que o perfil
do criminoso ou o traficante padrão é negro ou pardo" nas palavras de um dos
policiais, que, por razões óbvias, pediu para que eu não o identificasse nessa tese. A
imprensa reforça isso fazendo distinções linguísticas claras quando um traficante de
uma região pobre é pego ou quando um traficante da zona sul, branco e de classe
média é preso. Isso fica notório no exemplo de duas manchetes de um mesmo
veículo de comunicação na internet, exibidas a seguir:

Figura 1 – Manchete do jornal

Esses dois policiais também narraram que, ao abordar um usuário de


maconha em flagrante, é seguido o protocolo. No entanto, muitas vezes alguns
delegados ficam irritados com a prisão de usuário, pois isso apenas exige esforços e
não significa nenhuma mudança. Esses delegados consideram, portanto, que têm
coisas mais importantes para tratar. Outros fazem o oposto: discriminam e fazem
todos os tramites para mandar, muitas vezes, um jovem que estava fumando um
cigarro de maconha para as nossas já superlotadas cadeias, colocando, assim, esse
jovem com tipos indistintos de criminosos. Felizmente, isso mudou com a vitória do
próprio Ricardo e de outros advogados que conseguiram formalizar o pedido de
Habeas Corpus.
A narrativa do Ricardo seguiu riquíssima em histórias vividas por ele ao longo
da vida. Foi bastante proveitoso ter conversado por tantas horas com ele. Suas
experiências não só com a maconha, mas também com a forma social com a qual os
mais pobres são tratados pelo estado, com a corrupção da polícia, com o mercado
negro de armas, que é o principal lucrador da manutenção da proibição, geraram
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nele uma enorme revolta e foram as responsáveis pela sua postura atuante na luta
antiproibicionista. " É uma guerra em que o traficante entra com o lucro, a polícia,
com o lucro e a sociedade, com os corpos" - disse ele.
Dessa forma, ele se aproximou do movimento, estudando as técnicas de
plantio e engajando-se através do site growroom. Ele narra que o assunto da página
na Internet sempre foi sobre cultivo, mas as perseguições atingiam os growers e se
fez necessária uma ação de assistência jurídica, que ele e outros advogados
criaram. Nessa conversa, entendi a origem do grupo Rede compromisso como algo
que fluiu entre os growers, que ao saberem da necessidade do remédio, perceberam
que, além de ajudar, essa era uma forma original de ativismo e conscientização, que
hoje virou a bandeira da AbraCannabis. É justamente no growroom que tudo teve
origem, em que todos se conheceram e passaram a trocar ideias e conhecimentos.
O pai do Ricardo, que sofria com o câncer, foi um dos primeiros a ser medicado com
o óleo para atenuar os sintomas da doença e ter um pouco mais de qualidade de
vida. Depois desse dia, todo passado na casa do Ricardo, consegui entender os
aspectos sociais que a rede também possuía. Eles se reuniam não só para produzir
o óleo, mas também por conta de uma forte amizade e companheirismo. Durante
toda a pesquisa, as relações e desentendimentos aconteciam. Alguns eram
surpreendentes, mas a maior parte eram de questões ideológicas sobre a postura do
grupo em relação ao que ocorria em outros cenários. A cada evento ocorrido que
merecia um debate no grupo, as discordâncias apareciam e eram resolvidas
conversando ou quando não havia consenso por votação. As vezes o clima ficava
mais exaltado, a ponto de algumas vezes acontecerem discussões mais acaloradas
e até rompimentos, mas como regra, a máxima entre eles era sempre a mesma:
“nós brigamos, discutimos e quase chegamos a nos agredir fisicamente, mas depois
fumamos um e fica tudo em paz", nas palavras do Ricardo, o Brave — seu apelido
junto ao grupo. A maconha tem uma espécie de arquétipo de apaziguar os ânimos e
num grupo multidisciplinar tao heterogêneo como esse, observei um bom tato social
de ambas as partes para tentar retornar a harmonia nas relações depois de
desentendimentos mais sérios.
A conversa com o Ricardo ampliou muito minha percepção sobre o tema.
Passei a entender o tamanho da complexidade do assunto. Ele me orientou a fazer
contato com o Pedro, outro grower, que mora na região da grande Tijuca e que, em
sua casa, faz a produção do óleo medicinal. Pedi para conversar com ele e, se
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possível, ver uma produção. Primeiramente, ele me recebeu, para uma conversa de
aproximação em sua casa, de forma semelhante ao Ricardo, algo que era esperado
por mim, dado o tema e a necessidade de preservar sua segurança. Ele me contou
que tudo começou de forma muito artesanal e amadora: engarrafar a erva, coá-las
em pano, tudo muito experimental. A aproximação com os outros cultivadores se
deu nas conversas no fórum do growroom, quando eles começaram a falar sobre o
óleo artesanal e um dos participantes citou o caso de uma menina que sofria de
epilepsia e que estava muito mal. Antes, eles se reuniam para festejar, trocar
experiências e fumar juntos. Nesse momento, isso continuava existindo, mas um
novo evento ficou para sempre marcado. Eles combinaram de fazer a primeira
"panelada" na casa do Pedro: "fizemos dois vidros do óleo bem concentrado e
mandamos para o Paraná, para essa menina, que infelizmente veio a falecer
depois.”. Concomitante a isso, começou-se a criar o discurso da Cannabis medicinal.
Surgiu, então, a história da Repense, que é uma campanha de comunicação,
iniciada em março de 2014, criada para incentivar o debate e a reflexão sobre o uso
medicinal de maconha no Brasil e do Ilegal, curta-metragem que, junto com seu
lançamento, iniciou a campanha. Então, eu mesmo concluí: “todo mundo deve fazer
uma coisa. Há pessoas aqui que plantam muito bem. Devemos trabalhar juntos.
Vamos montar uma rede.".
Daí em diante, eu, dois médicos e Emilio tivemos alguns encontros em sua
casa. Por meio de trocas de mensagens com outros cultivadores e da convivência,
as arestas foram lapidadas. Um desses médicos, que pediu para que seu nome não
fosse divulgado, viajava muito e estava estudando profundamente a questão
medicinal da maconha. Orientava, assim, as técnicas que aprendia nos cursos sobre
o tema dos quais participava em suas viagens internacionais. Ele, sozinho, custeou
os equipamentos mais adequados para aumentar a eficácia da extração e a
qualidade do produto final. Um item essencial, por exemplo, é uma manteigueira
elétrica utilizada com a finalidade de fazer extratos oleosos. Ela cozinha o Kfir, que é
a maconha extraída das flores, com gelo seco e com o óleo veículo do extrato por
doze horas e, ao final, o remédio está pronto. Esse médico também ensinou técnicas
de esterilização dos materiais de uso. Os caminhos das vidas foram se cruzando e,
nesse ínterim, ele reencontrou uma amiga de faculdade, cuja filha sofre com crises
convulsivas. Isso o levou para as reuniões técnicas no Instituto Estadual do Cérebro.
Em paralelo a essa situação, a procura pelo extrato aumentou. Ele percebeu que a
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Rede não conseguia dar conta da demanda. Pelo fato de o remédio ser de uso
contínuo, teria de haver uma produção contínua. O grupo, portanto, vê a
necessidade de criar uma associação para lutar pelo direito ao cultivo. Pedro fala
também sobre a confusão entre vício e necessidade.

Quem cultiva precisa da coisa, precisa da erva a um ponto de se dedicar a


estudar e cultivar. Isso não é vício. É uma necessidade. Eu, por exemplo,
sempre fingi que meu fumo era recreativo, mas, de fato, eu preciso. Tenho
artrose, meu lado esquerdo é todo comprometido, meu lado direito também:
joelhos, tornozelos, ombros... Só o cotovelo ainda está bacana. E as costas
também doem. Eu não vivo tomando Tylenol, ando de bicicleta para cima e
para baixo, faço meu Pilates para lidar melhor com as dores e conheço
pessoas assim, amigos que tiveram pólio igual a mim e as pessoas que
vivem de remédio. Elas ficam trocando experiências de uso desses
medicamentes, e, às vezes, surgem falas do tipo: ‘ah, eu já estou no
Tramal.’. Nunca tomei Tramal na minha vida. A maconha é meu remédio,
sem efeitos colaterais das alopatias.

Nossa conversa seguiu e entendi ali que existe um mercado do óleo, que é
feito, muitas vezes, com prensado, ao qual, em casos de emergência ou de
angústia, muitas mães e pacientes acabam recorrendo. Com ele, aprendi também
sobre a estrutura básica da planta, como a flor produz as resinas que contêm os
princípios ativos, por exemplo. Passei, então, a entender melhor os métodos de
extração. Dei-me conta, além do mais, do tamanho do universo da maconha e de
seus detalhes, que só podem ser vistos de perto. Conheci o tricoma, "o segredo da
planta": uma espécie de gota paralizada no tempo, com textura de resina, que é a
morada do THC e do CBD, como na figura abaixo: à esquerda, a flor inteira, e à
direita, um zoom em microscópio ótico numa parte da flor.

Figura 2 - A flor da maconha à esquerda e um zoom


ótico de 100x à direita

Estrutura dos "pelinhos", que, na verdade, são os chamados


tricomas, fonte dos princípios ativos da planta.
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Aprendi, também, nessa conversa que cada pessoa vai encontrar sua dose e
sua espécie de planta. A Harletsu, que é mais aceita para o controle das crises
convulsivas, às vezes não funciona para uma determinada criança que pode se
adaptar melhor a outra espécie das mais de mil e novecentas que estão, até então,
catalogadas. O assunto se sobre as amenidades e experiências dele com a planta
estendeu mais um pouco, até que me dei por satisfeito e fui embora. Aquela foi a
primeira de muitas visitas a casa do Pedro, pois em 2016 nossas reuniões passaram
a ser realizadas lá.
Em dezembro de 2014, foi marcado um evento da fundação da AMA-ME,
Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal, uma associação
multidisciplinar, que tem apoio da Universidade Candido Mendes, composta por
vários membros do CEBRID, pessoas que participaram do filme “Ilegal” e o grupo da
Rede Compromisso. Fui convidado e compareci. Assinei como fundador. Lá, conheci
a Naiara e o Pedrinho. Esse foi meu primeiro contato real com crianças afetadas por
uma doença que tem convulsão como sintoma. Alguns pontos de conflito com a
visão da Rede Compromisso apareceram já no dia da fundação: a discussão sobre o
isolamento dos componentes da planta, a forma de aproximação com a política em
Brasília do casal protagonista do filme ilegal e outras discordâncias. A postura de
sempre promulgar o cultivo individual e coletivo do grupo entrou em conflito.
Depois do evento, aconteceu algo surpreendente. O grupo Rede
compromisso, capitaneado pelo incansável Ricardo, “legalizou” no jardim de inverno
envidraçado, cheio de plantas e aberto para o céu, que existe no último andar do
prédio onde estava acontecendo a reunião de fundação. Vale ressaltar que, na gíria
entre os maconheiros, falar "legalizar" significa fumar no lugar em que se está, no
momento que for burlando as regras. É o ato de começar a fumar, de acender o
baseado. Pareceu-me uma forma de protesto contra os rumos que a fundação da
AMA+ME estava tomando.
Afastei-me um pouco do grupo por conta das festas de fim de ano e férias de
janeiro. Ao retomar o contato, recebi outro convite. Como na fundação da
associação houve uma cisão ideológica, a Rede Compromisso e outros pais
conseguiram reunir um grupo grande para a fundação da AbraCannabis. Num
domingo à tarde, eu voltei de viagem e fui direto para o Museu de Astronomia de
São Cristóvão, participar dessa outra fundação, mais uma vez, como membro
fundador. O grupo aqui era outro, composto por alguns novos pesquisadores e toda
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a Rede Compromisso, numa proposta de lutar para obter autorização para o plantio
coletivo, com isso constando na ata de fundação e no estatuto da nova associação.
O grande diferencial era o de que a presidência da AbraCannabis foi ocupada
por uma mãe de criança com convulsão crítica, deixando claro o movimento de
união pela causa da descriminalização do cultivo individual e coletivo. A partir dessa
data, houve um período de calmaria no grupo, até que os membros mais ativos
conseguiram alugar uma sala na Cinelândia, bem no coração do centro do rio de
janeiro. Novamente, fui avisado da primeira reunião. A sala estava completamente
vazia, com um ar condicionado central defeituoso, mas havia sido materializada a
instituição AbraCannabis. Combinou-se que seriam realizadas reuniões toda
semana, alternando os dias de terça e quarta-feira, sempre à noite, às 18h30min.
Já na primeira reunião dita oficial, com ata e pauta de trabalho, houve uma
grande divergência entre duas mães: a presidente e outra se estranharam por
razões as quais não consegui entender ou elaborar. O clima não ficou bom. Algumas
semanas depois, a presidente renunciou ao cargo e foi eleito, por aclamação, o
Pedro, que já era quem estava na organização administrativa da associação. Ele,
que é engenheiro elétrico e grower, conseguiu estabelecer uma rotina de grupos de
trabalho e responsabilidades.
A rotina das reuniões era sempre a mesma: marcada para as 18h30min,
começava com a chamada das questões a serem discutidas feita pelo Pedro. Depois
de tudo deliberado, começava a parte sociorecreacional da reunião, na qual quem
era grower apresentava sua erva, sempre num diálogo que, para mim, parecia outra
língua, sobre as técnicas de cultivo. Assim, comecei a entender os tipos e as
técnicas de plantio, em conversas de muito conhecimento técnico sobre o cultivo. As
plantas tinham cheiros e qualidades muito diferentes das maconhas que têm sua
origem no tráfico. A diferença é gritante. Alguns falam que da planta, cultivada,
colhida e tratada, não parece sequer cheiro de maconha, mas aquele, na verdade, é
seu verdadeiro odor.
As reuniões se mantiveram por todo o ano de 2016, até que a sala teve de ser
entregue ao proprietário. Passamos, então, a nos reunir na casa do Pedro, na
Tijuca. O esquema continuava o mesmo, mas agora a reunião passou a ter um
caráter mais intimista. Eu procurava chegar sempre mais cedo, para conversar e
estar presente numa espécie de reunião de bastidores. Muitas discussões
ocorreram, o que é comum num grupo tão heterogêneo, mas esses encontros
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fizeram muitos projetos andarem. Tal qual o site do Growroom, que fez brotar a
semente que geraria a Rede Compromisso e posteriormente a Abracannabis, as
reuniões germinaram projetos importantes como a FARMAcannabis e ratificou
parcerias com a APEPI, a FIOCRUZ, a UFRJ, o Instituto Estadual do Cérebro e a
Farmanguinhos, que ganharam corpo e vulto a partir desses momentos nas noites
semanais. Afloraram, também, as diferenças, as dificuldades e as limitações da
atuação. Os pontos de vista discrepantes, os valores pessoais e morais, os conflitos
sobre a ética junto à planta, a ratificação prática de que nem a Abracannabis e nem
Rede Compromisso venderiam o óleo — assunto firmado nos seus estatutos —
criavam zonas interpretativas sobre outras associações e pessoas que
comercializavam o óleo, mesmo que como associações, com direito, inclusive, a
cobrança de mensalidades.
As reuniões eram por um aplicativo de comunicação via celular e a pauta era,
também, discutida e publicada ali. Um belo fruto, que surgiu das reuniões, foi o curso
de cultivo para as mães, pais e pacientes. Da ideia de ensinar a plantar, criamos um
curso com módulos que abordavam todos os aspectos sobre a maconha. Eu fui
convidado para contar a história da maconha. Dela, fiz uma apresentação que
visava desmistificar a planta. Houve dois cursos, ministrados em finais de semana
de junho e julho de 2016. Eu sempre iniciava as aulas, que começavam às nove da
manhã de sábado e iam até o fim da tarde. Depois da minha parte, os dois doutores
em antropologia, que escreveram suas teses sobre maconha também, falavam de
suas experiências e dos aspectos sociais e culturais da planta. Em seguida, Emílio e
Ricardo explicavam os aspectos jurídicos. Após o almoço, era mostrado todo o
aspecto biológico e botânico da planta, seguido, enfim, das técnicas de cultivo.
Formamos duas turmas cheias no Rio de Janeiro e conseguimos um feedback muito
positivo dos participantes. Em dezembro de 2016, fomos até São Paulo, para além
da fundação da associação coirmã Cultive!, ministrar o mesmo curso, que foi dado
em dois dias — sábado e domingo —, no teatro Sergio Cardoso.
As crianças com crises convulsivas tem seu sofrimento atenuado com o uso
do um extrato feito de maconha. Pela proibição da maconha, esse óleo é feito ainda
de forma clandestina. Só é permitido atualmente a importação. A matéria prima e a
tecnologia para produção do óleo artesanal advém dos plantadores que sempre
cultivaram para eles mesmos, e detém a expertise da produção desse óleo. Eles já
vivem na clandestinidade pois, a maconha é também proibida para uso recreacional.
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Os pais das crianças precisam da ajuda dos plantadores que não tem autorização. O
uso recreativo é inclusive criticado por alguns pais, que precisam da ajuda de quem
sempre plantou na clandestinidade.
Essa controvérsia também aparece na questão da criação das associações,
na primeira fundação que fui, no ato da fundação já aconteceu uma enorme
discordância entre os membros pois, um grupo queria o foco fosse apenas e tão
somente na maconha medicinal. A alegação dele é que pode-se fazer com a
maconha o que se fez com o ópio e a morfina: produzir uma droga controlada sem
com isso descriminalizar sua fonte de matária prima. O problema é que com a
maconha não há produção química. A planta tem o seu melhor funcionamento
quando usada de forma integral a partir do seu extrato completo de todos seus
componentes, sem isolá-los ou produzi-los quimicamente de forma artificial. Há uma
busca por aliados para a promoção do saber científicos e também nas questões
jurídicas. A pesquisa e o desenvolvimento de remédios acessíveis se tornará muito
mais fácil quando a proibição acabar, o que favorece, e muito o uso recreacional,
que não poderá mais ser considerado crime. E não estou aqui entrando no mérito da
legalização ou regulamentação, que são outras instâncias que possuem outros
desdobramentos. Os objetivos das associações são distintos em um primeiro
momento. Mas o avanço de cada lado ajuda o outro. A incongruência da proibição,
independente do uso recreacional ou medicinal, fica cada vez mais evidente e
insustentável, diante da necessidade de se promover a pesquisa nacional.

2.1 Maio verde

O Rio de Janeiro abriga o primeiro evento do calendário nacional do “Maio


Verde”, que celebrou a Marcha da Maconha em várias cidades pelo país. Na
véspera do dia programado da marcha, aconteceu a audiência pública na ALERJ
sobre maconha. A “comissão do cumpra-se!” promoveu o debate sobre prisões de
cultivadores de maconha. Advogados, ativistas e artistas que já foram presos por
porte ou plantio junto aos vereadores simpáticos à legalização debateram com os
delegados que trabalham com o tema diretamente em delegacias especializadas.
Um dos delegados, numa fala surpreendente disse que para a polícia o mais
importante não é prender. Ele reconheceu que a polícia não quer prender o usuário.
No entanto, por conta da letra da lei — um dos pontos é a modificação do texto da
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lei que não separa consumidor-produtor do traficante —, ela fica sempre numa
situação complicada, em função das articulações com os mandatos de busca e
apreensão expedidos por juízes e prisões em flagrante (o “cumpra-se” do nome da
comissão). Um vereador atentou para o fato de que tradicionalmente a repressão às
drogas dá-se sobre as camadas mais pobres da população, mas que a figura do
cultivo caseiro estava levando ao cárcere a classe média também. Um dos ativistas
que cito no texto, na parte das entrevistas, o advogado Ricardo, sugeriu que a
ALERJ instaurasse as audiências de custódia que obrigam o estado a atender com
um juiz qualquer preso em até 24h.
Após o debate, o grupo mais ativo politicamente se dirigiu a um coletivo
cultural para ajudar a preparar as faixas de protesto para a marcha. Fui convidado a
acompanhá-los. O lugar fica em Santa Teresa, que é um bairro bem boêmio e
alternativo do Rio de Janeiro. Era um terreno íngreme que abrigava o que parecia
ser uma entidade coletiva alternativa. Esse espaço é todo feito à mão, como uma
oca indígena feita com as fibras de bambu, integrado perfeitamente ao verde que há
em volta. Do lado de dentro, percebi que estava no quartel general da organização
da marcha da maconha com os principais ativistas da causa pintando cartazes e
faixas, muitas pessoas que eu não conhecia até então e que já estão nessa batalha
há muito tempo. Conheci ativistas conectados apenas à causa da liberação, sem
vínculos com a “Rede Compromisso”, embora os membros da Rede sempre fossem
totalmente ativos pela liberação. Obviamente, todos fumavam muito e, inclusive,
usavam equipamentos para vaporização. Foi a primeira vez que vi esses
equipamentos aqui no Rio. Era o mesmo instrumento que vi nos coffeshops de
Amsterdam., Ele promove a ingestão da maconha sem a combustão do fumo, o que
faz toda a diferença em termos de saúde, pois não leva o calor dessa combustão
para o pulmão e nem os outros gases que surgem em função da queima, como no
tabaco.
Todos estavam trabalhando felizes em clima de confraternização. Após o
término dos trabalhos, tudo foi arrumado e iniciou-se uma “social”, na qual o álcool
era mero expectador. Vi alguns barris de cinco litros de cerveja, que não durariam
dez minutos para um grupo de cerca de vinte cinco pessoas, ficarem quentes e
estarem pela metade mais de quatro horas depois de abertos. A droga recreativa ali
era a maconha, que brotava das bolsas e bolsos de alguns dos participantes, toda
plantada domesticamente por cada um deles e que era coletivizada sem nenhum
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tipo de posse ou limitação. Existia toda uma estrutura de sustentabilidade e de


trocas coletivas de arte. Foi uma noite muito interessante para perceber que existe
todo um lado cultural e emocional ambientado em forma de cultura alternativa. As
pessoas traziam falas, ideias e conceitos muito interessantes. Pude observar ali
duas situações em uma. A primeira que me chamou atenção foi a de como é uma
reunião de amigos onde a principal droga ingerida não é o álcool. Percebi o
comportamento social das pessoas presentes muito mais tranquilo, fluido, como se
cada um ali estivesse com a guarda abaixada, sendo existencialmente cada um em
sua plenitude social, num nível de leveza comportamental bem diferente do álcool.
Ao contrário do estereótipo, todos estavam em pé, conversando o tempo todo, sem
ninguém chapado a ponto de sentar ou dormir. A música era baixa, bem som
ambiente, numa altura ótima para se conversar. O “jantar” foi nesse meio termo:
pizzas feitas ali mesmo, numa cozinha ao lado do espaço principal. Em um
momento, alguém se lembrou de levar um cigarro de maconha para os cozinheiros e
lá ouras conversas aconteciam durante o preparo das pizzas. O clima de respeito,
cuidado e harmonia era uma constante, mesmo quando, mais tarde, chegaram
outras pessoas, tudo fluía muito bem.
Observei que a maconha, como ferramenta de relacionamento social,
funciona de forma muito parecida com o uso do álcool em bares, no que tange à
desinibição social. Como conteúdo individual, entretanto, o comportamento é bem
mais brando do que a excitação que o álcool provoca. É algo mais coletivo e parece
que as pessoas ficam mais afetuosas, conectadas ao outro e ao todo, muito mais
tranquilas e leves, sem agressividade ou verborragia. No lugar da língua enrolada
para falar, um pouco mais de lentidão ao formar as frases e, ocasionalmente, algum
esquecimento do fluxo das ideias. Cabe aqui o comentário de que o álcool e a
maconha não são excludentes. Em vários momentos, nos quais era possível, a
interação dos dois acontecia. O que percebi é que o consumo de um diminuiu o do
outro, assim como se combinam os efeitos, chegando meio que um ponto de
equilíbrio entre a excitação do álcool e a tranquilidade da maconha. Claro que falo
aqui de consumo médio, social e moderado. Nenhum excesso traz boas
experiências. Toda droga recreacional deve ser consumida com moderação.
Pude conhecer e conversar com uma mulher que trabalha em um dispensário
de maconha na Califórnia. Keila é uma brasileira, que morava e trabalhava em
Miami, como tantos outros que moram por lá. Com um filho americano para cuidar,
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recebeu a proposta de gerenciar um dispensário que tinha ótimos growers, mas que
faltava alguém para administrar. Ela conseguiu fazer o dispensário crescer e
começou a viver disso, mudando-se para San Jose, na Califórnia. Hoje, vive uma
vida confortável por lá. Continuei mantendo o diálogo com Keila online. Ela é muito
simpática e acolhedora, e credenciou-me a visitar suas instalações na Califórnia.
Interessante é saber que lá os problemas são outros: pelas leis federais
americanas, atualmente, maconha é proibida. Cada estado, porém, pode legislar
sobre o tema. A Califórnia foi o primeiro estado americano a aprovar o uso medicinal
da maconha, num processo que começou em 1996, com a chamada Proposição
215, a lei que reconhece a existência legal dos dispensários e o direito de cada
município a regulamentar a distribuição de maconha medicinal aos pacientes. Com
isso, cada cidade da Califórnia pode ter sua legislação específica, mais ou menos
liberal. Keila vive em San Adreas, próximo de San Francisco. Seu dispensário já
teve buscas e apreensões federais. Como ela mesma diz: “eles tentam nos enterrar,
mas esquecem de que somos sementes”. Seu estabelecimento recebeu autorização
e ampliação do prazo para a expansão da loja e fábrica de derivados da maconha.
Até dezembro de 2015, sua expansão estaria pronta e fabricaria tudo por conta
própria.

2.2 A marcha da maconha

A Marcha da Maconha é uma manifestação pública, organizada anualmente


em diversos locais do mundo. O propósito é dar voz aos movimentos favoráveis a
mudanças nas leis que proíbem e criminalizam a maconha, propondo a legalização
da Cannabis, a regulamentação de comércio e uso, tanto recreativo quanto
medicinal e industrial. As Marchas ocorrem mundialmente a partir do primeiro final
de semana do mês de maio, inclusive no Brasil. Além da marcha em si, ocorrem
reuniões, caminhadas, encontros, concertos, festivais, mesas de debates, entre
outros eventos. A primeira marcha ocorreu em 1994. Em 2015, mais de quinhentas
cidades do mundo todo fizeram marchas nessa época do ano. No Brasil, a primeira
ocorreu no Rio de Janeiro em 2002. Houve a tentativa de fazer o evento em doze
capitais no ano de 2008, mas falhou devido às decisões judiciais que proibiam a
marcha, alegando apologia ao uso de drogas até formação de quadrilha. A marcha
deveria ocorrer em Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, João
58

Pessoa, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. Nesse ano, houve muitas
confusões, conflitos com a polícia e prisões. Em 2009 e 2010, a Marcha da Maconha
ocorreu pacificamente e sem maiores problemas em várias cidades, como Rio de
Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Em 2011, porém, a justiça voltou a proibir a
Marcha da Maconha em São Paulo, Belo Horizonte e Curitiba, embora ela tenha
ocorrido em Porto Alegre, Rio de Janeiro, Recife, Vitória, Niterói e algumas outras
cidades. Em 15 de junho de 2011, entretanto, o Supremo Tribunal Federal decidiu,
por unanimidade, pela legitimidade da manifestação por meio da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 4.274, entendendo que ela não faz apologia ao uso da droga e
considerando que sua proibição é uma ameaça à liberdade de expressão, garantida
pela Constituição. Desde 2012 a Marcha entrou definitivamente para o calendário de
algumas cidades brasileiras, mas sempre com algum tipo de confusão local em
função da forma com a qual o poder público de cada cidade agia, mesmo com a
decisão do STF sobre a legalidade da manifestação. Consegui acompanhar duas
marchas aqui no Rio.

2.3 A marcha da maconha de 2015

Cheguei à marcha quando ela já estava no meio do caminho em direção ao


Arpoador, acompanhada o tempo inteiro pela polícia. Um carro de som dava o tom e
músicos tocavam seus instrumentos acompanhados do grito de guerra e de algumas
músicas. A participação de políticos é muito comum. Alguns integrantes criticam
essa participação sinalizando o cunho eleitoreiro. O fato é que a representatividade
do ativismo pela liberação ainda é muito pouco significativa junto ao legislativo.
A tropa de choque estava lá desde o início. Os policiais já conhecidos de
outras manifestações estavam fardados, prontos para o conflito físico, o que causou
apreensão nos manifestantes. No entanto, nenhum incidente que mereça ser
pontuado ocorreu.
A escolta policial liberou apenas uma faixa da pista para o carro de som e
para a marcha, mas a maior parte dos manifestantes acabou marchando pela
calçada ou ciclovia.
59

Figura 3 - A marcha da maconha de 2015

Figura 4 - A marcha da maconha de 2015

A Marcha foi encabeçada pelas mães e pais das crianças que usam o extrato
rico em CBD.

5
Todas as fotos foram cedidas gentilmente pela Revista “SemSemente”, a primeira revista brasileira
sobre a cultura canábica.
60

Figura 5 - A marcha da maconha de 2015

Chamaram a atenção pessoas, que não são usuárias e nem tem parentes
doentes, mas que apoiam a descriminalização por consciência.

Figura 6 - A marcha da maconha de 2015

A inevitável comparação com o Uruguai também esteve presente. Pontos


polêmicos embarcaram na manifestação. A legalização do aborto, o ativismo LGBT
61

e feminista e os defensores de liberação de outras drogas pegaram carona, dando


apoio e fazendo suas reivindicações. Era curioso ver os usuários fumando ao lado
de policiais que nada faziam.
Ao final da marcha, quem não dispersou foi para o parque do Arpoador para
uma grande confraternização totalmente legalize. Isso quer dizer que, durante algum
tempo, fumou-se ao ar livre mesmo com a polícia nas cercanias. Fiquei um tempo
colhendo as impressões do grupo Rede, que estava lá em peso. A maioria
considerou a marcha desse ano fraca, criticaram o fato de ser sábado, de ter uma
pista só, de ter faltado engajamento. Outros viam beleza e pediam paciência para as
próximas marchas, com o realismo necessário para se entender o que representa o
processo da legalização no Brasil.

2.4 O Dia da Panelada

Uma semana depois da marcha, numa segunda-feira, fui avisado que no


sábado, na casa de um dos membros, aconteceria a produção do extrato. Cheguei
minutos antes do combinado. Pedro me recebeu da forma carismática e carinhosa
de sempre.
Tudo é feito de forma artesanal e caseira, com o máximo de assepsia
possível. Existem técnicas variadas para extrair os componentes ativos da planta. A
utilizada por eles consiste em colocar as flores da maconha em um saco de tela
microfina, que atua como uma peneira de mícrons de tamanho. Junto das flores,
coloca-se gelo seco (que é CO2 em estado sólido) e sacode-se mecanicamente
esse saco dentro de um recipiente estéril. Eles usavam como recipiente uma caixa
térmica grande. A ação do gelo seco sobre as flores faz congelar e quebrar as
resinas existentes na flor. Essas resinas são os componentes ativos da planta que
passam por essa tela microfina e formam um pó fino que se chama kfir (pronuncia-
se quifír). Esse pó é, então, dissolvido em um óleo de base — pode ser glicerina,
óleo de coco, hemp oil, que é o azeite comestível das sementes de maconha, óleo
de gergelim. Na verdade, qualquer óleo comestível pode ser usado, pois os
componentes são lipossolúveis. Existe um equipamento de cozinha importado
chamado Magic Butter, que é uma manteigueira elétrica. Ela cozinha o pó e o óleo
por 8 horas numa temperatura não muito alta e controlada. Ao final desse processo,
o liquido homogêneo, mas com partículas em suspensão, é envasado em vidros
62

esterilizados de cor âmbar, semelhantes aos usados em tinturas médicas ou


homeopatia. O grande problema aqui é o controle de produção. Como a maconha é
ainda proibida, mesmo para pesquisas no Brasil, não se tem ao certo o controle das
quantidades dos componentes de acordo com a cepa da planta utilizada. Em função
dos cruzamentos genéticos, existem mais de mil e novecentos tipos diferentes de
maconha, segundo o site Leafly*. As variações dos tipos se dão basicamente sobre
seus componentes ativos, seus aromas e sabores.
Todo o saber praticado, portanto, na fabricação dos remédios vem dos
estudos pessoais dos growers (em sua maioria, pessoas que estão há muitos anos
plantando maconha) e da prática sobre o efeito de cada planta. Por exemplo, a
espécie mais usada para fazer o óleo é a “Harletsu”, que é um cruzamento das
espécies Arlequina com Tsunami e que possui um alto índice de CBD em sua
composição — componente mais importante para o controle das crises convulsivas.
O dia da produção é um grande evento para os growers. Eles se reúnem na
casa de alguém (no caso foi na do Pedro, como disse acima) e cada um traz sua
parte de produção e os equipamentos necessários para a fabricação. As flores já
estão devidamente secas e curadas, no ponto certo de extração e uso. Elas
possuem apelidos, são conhecidas como camarões ou Buds. Cada bud é separado
o máximo possível do resto da planta. Eles a chamam de matéria vegetal, no
processo de manicura, que consiste em cortar, com a tesoura, tudo que há na planta
e que não é a flor ou o caule, que a sustenta. Na hora da produção, os buds são
arrancados desse caule. Todos plantam a mesma espécie, pois o objetivo há nove
meses, quando elas foram germinadas, era justamente fazer o remédio para
distribuir para quem precisa. Cheguei na hora combinada e o uso recreacional já
estava a todo vapor literalmente, pois estava disponível o equipamento mais
interessante, o qual eu só havia visto em coffe-shops de Amsterdam: o vaporizador
elétrico. Um equipamento que apenas vaporiza a flor triturada para que se inale a
fumaça branca, levíssima, fria e rica nos componentes. Esse método é o mais eficaz
para se conseguir sentir o efeito imediato e não prejudicar a saúde, pois não há
processo de combustão, consequentemente, não há ingestão de CO2, que existe na
maconha fumada como cigarro de tabaco. O clima é de festa no melhor sentido.
Todos pareciam muito felizes de estarem se reunindo, fumando juntos e fazendo o
remédio. Apenas três pessoas participavam colocando a mão na massa. Pedro me
explicou que é a fim de evitar contaminação. Todos usavam máscaras e luvas
63

cirúrgicas e limpavam todos os utensílios e o local, uma mesa com tampo de vidro
transparente e liso, com álcool 70º. A produção é rápida. A agitação mecânica dos
sacos de tecido dura o “tempo do braço” de quem sacode. Passa-se, então, para
quem está disponível para sacudir até se considerar que já está bom, que todos os
componentes já foram extraídos. Sobra algo muito parecido com maconha já
triturada para fumo, mas sem os componentes que dão o efeito psicoativo.
O produto que está dentro da caixa térmica é juntado e colocado dentro da
manteigueira elétrica. É adicionado a ela o óleo de base. Depois, é só esperar oito
horas de cozimento lento e o óleo estará pronto para o consumo.
Durante a feitura e depois de longas conversas, que misturavam brincadeiras
entre pessoas íntimas e amigas, e assuntos sérios, como a relação com outros
grupos, e articulações político-sociais, foi-se recheando o grupo. Nessa reunião senti
que uma forte amizade e, acima disso, uma identidade de grupo, com apelidos e
histórias, nascia. O mundo chamado por eles de careta é composto por aqueles que
não fumam, mesmo que não tenham nada contra.
Aos poucos, começaram a chegar outros membros, que foram trazendo
material para o preparo e claro, o ingrediente básico. De repente, percebi que a
proposta era também fazer uma reunião para debater os rumos da Rede diante da
dificuldade cada vez maior de atender aos pedidos com a produção limitada em
função da proibição do cultivo.
Capitaneada pelo Pedro e pelo Emílio, a conversa girou em torno de uma
mudança significativa nos rumos da Rede. A proposta agora é que as mães
recebam orientação para que elas mesmas plantem e colham a base para a
produção do remédio. O grupo da Rede daria todo o suporte técnico para que isso
ocorresse. Determinou-se, também, uma reunião com as mães que queiram criar um
lugar próprio alugado em nome delas com o fim exclusivo de plantar e colher o
remédio para cada criança. Cada uma teria um espaço dentro desse imóvel, onde
elas teriam as suas plantas em conjunto com toda a documentação médica e o
histórico das doenças das crianças. A ideia era trazer as mães mais para perto da
produção dos extratos. Eu levantei a ideia do paralelo com as mães da “Plaza de
mayo” e o Emílio acrescentou o paralelo com as mães de maio brasileiras. O Mães
de Maio é um movimento formado por dezessete mães de mortos e desaparecidos
nos confrontos que ficaram conhecidos como "crimes de maio", ocorridos em 2006.
De acordo com entidades de direitos humanos, como o Tortura Nunca Mais, os
64

crimes foram uma resposta de grupos de extermínio — com a participação de PMs


— aos ataques da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). Os crimes
resultaram na morte de quarenta e três agentes públicos. Em represália, ao menos
quatrocentas e noventa e três pessoas foram assassinadas, sendo que a maioria
das vítimas era de jovens negros, moradores das periferias.
Esse grupo trabalha, inclusive, com a perspectiva de dar corpo e
representação aos “desaparecidos da democracia”. Pessoas que, como no regime
militar, também desapareceram, mas já sob o pano da democracia, desde o fim da
ditadura.
Essas mães, com a representatividade do materno, lutam por seus filhos, seja
contra uma doença severa, seja contra o estado violento. A ideia é a produção ser
vinculada totalmente ao processo de fazer o extrato. Todos os caminhos levariam a
uma colheita coletiva da planta de cada criança. Nesse dia, um evento de apoio
aconteceria e chamaria assim a atenção da população, com o objetivo de tentar
conscientizar e mobilizar a sociedade e as entidades públicas. As ponderações
foram diversas. Em uma delas, foi levantada a questão do que tinha acontecido com
o Ricardo, um dos membros mais ativos e combatentes do grupo. Na véspera da
marcha da maconha de São Paulo, a maior marcha do Brasil, a qual vários membros
do grupo costumam ir, a polícia da cidade de Maricá, região dos lagos do Rio,
através de denúncia anônima, invadiu, com mandato de busca e apreensão, a casa
dele. Na casa só estavam sua esposa e sua sogra. Ricardo havia ido para São
Paulo, justamente a fim de participar da marcha. A “tropa de choque” do grupo e
outros articuladores começaram a agir e Ricardo voltou de São Paulo no momento
em que soube do ocorrido. Tudo terminou não com sua prisão, mas com o
recolhimento de todas as suas plantas e seus remédios. Tudo que foi apreendido
não foi devolvido.
Isso deixou todos do grupo apreensivos, em especial os que são casados,
pois esses espelharam uma possível situação em que suas esposas pudessem
passar pelo que a esposa do Ricardo passou. Algumas falas das próprias esposas já
sinalizam um aumento do temor por ter as plantas em casa. Assim, a decisão do
grupo em ensinar as mães a plantar atende a duas demandas enormes: a
possibilidade de atender todos que precisam, visto que esses podem aprender a
plantar seu próprio remédio, com todo o suporte técnico da rede, que ensina,
65

fornece as mudas e dá a planta certa para cada caso; e diminui o risco da exposição
do plantador, que pode reduzir sua quantidade para seu consumo pessoal.
Outra coisa que foi notável nas vezes em que estive no grupo é a lucidez
jurídico-político-social. A ideia de que não se pode mais abrir para ninguém entrar,
uma vez que a produção já não está dando conta da demanda. A condição de
jamais cobrar, para não caracterizar comércio e não possuir equipamentos que
remetam a linha de produção de uma boca de fumo. Depois de todas as
ponderações, o assunto foi ficando restrito a conversas paralelas e Pedro começou
a arrumar o lugar para que a produção começasse. Um aparelho de limpeza a vapor
foi trazido para esterilizar os objetos que seriam usados na produção. Os dois
growers presentes, que começaram a retirar as flores dos galhos, também se
valeram de luvas descartáveis e toucas de cabelo. Vi que em uma sacola havia até
jaleco e avental, mas não foram usados. Talvez pelo método escolhido dessa vez.
Existem várias formas de se produzir a matéria prima do extrato (falarei dos métodos
que existem no capítulo dedicado ás explicações sobre a maconha em si). O método
utilizado foi o do gelo seco: um conjunto de sacolas próprias para extração, feitas de
lona, com fundo feito de uma fina tela-peneira, colocadas umas dentro das outras,
vão triturando os cristais ricos em CBD presentes nas flores da planta, que é de uma
linhagem específica, rica nesse componente. Os cristais congelam pelo contato com
o gelo seco que sai do estado sólido para o gasoso sem deixar resquício no
processo. Assim, o produto final do ato de fechar e sacudir esses sacos, um dentro
do outro, sai pelo fundo da peneira mais fina: um fino pó resinado, que é misturado
num veículo, um óleo que pode ser de coco, de abacate e, se for possível, o óleo
comestível de maconha, chamado de Hemp-oil. É um “azeite” feito das sementes da
maconha, como um óleo de gergelim ou linhaça, importado e rico em ômegas, é
usado na culinária do exterior e não tem efeito psicoativo. Por uma questão de
similitude e origem comum, é bioquimicamente ideal.
Interessante, também, notar a conversa sobre qual matéria prima seria usada,
a mistura e a proporção dos tipos de plantas e seus efeitos em função da
necessidade de quem pede. Todos eles conhecem muito dos tipos e dos efeitos da
cada planta, que tem cada uma a sua denominação. Uma das propostas da reunião
foi catalogar as espécies e suas propriedades. Há um trabalho quase búdico de ficar
raspando e varrendo esse pó, colhendo-o para um recipiente para ser misturado ao
óleo. O procedimento consiste, então, em colocar o óleo, que no caso foram
66

quinhentos mililitros de hemp-oil com cerca de vinte cinco mililitros do pó resinado,


dentro de um equipamento próprio, como uma máquina de fazer manteiga e deixá-lo
por cerca de quatro horas batendo e cozinhando. Ao final, esterilizam-se os vidros
âmbar, semelhantes aos utilizados em homeopatia, e os preenchem com essa
mistura, agora bem homogênea, guardando em lugar seco e arejado. Nesse meio
termo, alguns membros foram indo embora e chegaram outros, na mesma amizade
e parceria percebida no coletivo cultural, na véspera da marcha do Rio. Despedi-me
de todos, agradecendo em especial ao Pedro, e fui embora, marcado por mais essa
experiência tão específica.

2.5 A boa contaminação – experiência contaminada promissora

Para entender a organização do grupo: logo no início, quando o Emilio me


recebeu para me conhecer e assim ter confiança para me apresentar aos demais
membros do grupo, eu percebi que eles faziam uso direto das redes de
comunicação por tecnologia da informação. Eles acumulam, portanto, esses saberes
e trocam experiências há muitos e muitos anos num fórum de discussão na internet,
no qual tudo começou. Foi nesse espaço online que, na verdade, eles se
conheceram e estabeleceram as amizades. Esse grupo deu origem ao que eu
frequento, o qual se reúne para produzir remédios e entregá-los para as pessoas
pertencentes às classes menos privilegiadas.
Imagine que, em nossa sociedade, uma atriz muito famosa, muito querida por
todos, que tenha muita empatia do público, descubra que tem câncer de mama. Ela,
então, se trata com o óleo da Cannabis e passa a ser o rosto de uma associação
que defende a descriminalização e a permissão do auto cultivo. Foi o que ocorreu no
Chile e, por isso, o país está mais avançado nesse sentido, através de projetos
próprios e de duas instituições lá capitaneadas pela atriz Ana María Gazmuri,
famosa por trabalhos televisivos, Ela acabou se tornando o símbolo da luta da
descriminalização da maconha naquele país. São duas as associações: uma
chamada mama cultiva, que faz uma associação das mães que se reúnem para
cultivar e produzir para dar a seus filhos; e a outra associação, a Fundação Daia,
chego a receber motorização da Justiça para plantar seis mil pés de maconha para
produzir pesquisa.
67

A rede, então, dá-se através da amizade desses primeiros cultivadores, que


se estabelece, como ponto de conexão, com uma rede das mães de crianças com
necessidades especiais, que acabam sendo as primeiras consumidoras do óleo
produzido pela Rede. Logo, percebe-se a necessidade da criação de associações a
fim de que se fomente a tentativa de uma liberação para que haja o plantio aqui no
Brasil. Com essa premissa, fundamos a AbraCannabis. Eu ajudei a montar seu site,
www.abracannabis.org.br e escrevemos a seguinte definição:

A AbraCannabis é uma associação formada por equipe multi e


transdisciplinar com atuação nas áreas científica, farmacêutica, médica,
jurídica, artística e humanas (psicologia, antropologia, sociologia, filosofia,
etc.) que tem como foco promover a inclusão social e o respeito aos direitos
humanos, principalmente dos pacientes que utilizam a cannabis medicinal,
através do apoio à pesquisa científica e educação, na representação social,
nas políticas públicas e consultas promovidas pelas agências regulatórias,
além de todo o apoio jurídico aos pesquisadores e pacientes.
A AbraCannabis defende o direito ao cultivo individual e coletivo que cada
pessoa tem de promover sua própria saúde e auto-cuidado.
Nossa entidade é freqüentemente procurada por mães e pais de pacientes
pediátricos com epilepsias refratárias que, a despeito da ineficácia e efeitos
colaterais diversos dos medicamentos tradicionais e grande sofrimento, não
conseguem encontrar alternativas de tratamento e também por pacientes
portadores de dor crônica, independente da patologia associada, doenças
neurodegenerativas (esclerose múltipla, síndrome de Huntington, etc.) e
também por médicos que buscam informações sobre o uso da cannabis
como medicina.
68

3 MANICURA - VERSOS E VIVÊNCIAS COSTURADAS COM MACONHA

Eu sou Jeová teu Deus, eis que te dou toda a planta que há
sobre a terra, e que dá semente nela mesma, para que fazeis
bom uso dela.
Gênesis.

A manicura ou manicure é a etapa final do plantio. Essa é a fase de corte da


flor já desenvolvida e cheia de tricomas. É o estágio de colheita da maconha, por
assim dizer. Aqui faço um apanhado geral, Acompanhando as controvérsias da
Maconha através do tempo.
Desde 1800, quando Napoleão proibiu a Cannabis no Egito por considerar
que ela retirava dos soldados o espírito de luta, a maconha gradativamente foi sendo
posta em uma caixa preta cada vez mais hermética. Toda a mistificação sobre a
planta, os interesses econômicos e políticos tinham o objetivo de construir apenas
um entendimento sem nenhum senso crítico ou científico: a ideia de que maconha
faz mal. Utilizando de todas as prerrogativas já conhecidas de propaganda, muitos
conceitos negativos foram sendo associados a ela: violência, homicídio,
comportamento imoral, tendência a suicídio, relacionamento inter-racial, doenças
mentais. Todo o saber ancestral ou pesquisas eram ignorados face à construção dos
mitos aqui já citados. Isso ocorreu em vários países do mundo, cada um com sua
motivação, mas com esse inimigo comum até 1963, quando um pesquisador
israelense conseguiu isolar um dos princípios ativos da maconha e, assim, abrir a
caixa preta em que ela foi posta, abrindo caminho para pesquisas científicas. Até
hoje, no entanto, esse processo é defasado. Por conta da proibição ainda presente
na maioria dos países, a maconha não pode ser pesquisada a fundo, nem produzida
em larga escala.
Estudos sobre a maconha eram sempre ignorados, desde 1894, quando o
Relatório da Comissão de Drogas da Índia foi publicado. Depois, com as pesquisas
do psiquiatra mexicano Leopoldo Salazar, em 1938, e o relatório do comitê
LaGuardia, em 1944, preparado pela Academia de Medicina de Nova York, por um
pedido da Comissão sobre maconha do prefeito de Nova York Fiorello LaGuardia
(Nova York foi o lugar onde existiam mais salões de fumo de haxixe nos EUA).
Nenhum desses estudos foi considerado para se definir a proibição, apenas as
69

ideias construídas com as propagandas. Assim, mantinha-se a caixa preta bem


fechada e aumentava-se o abismo entre cada trabalho científico publicado e as
reuniões políticas criminalizadoras, se aproveitando do tempo necessário para se
fixar o que a propaganda enganosa ensinava como verdade. A insustentabilidade da
fala científica que a ser desconsiderada perde força política em face ao que já
estava sendo internalizado pelas pessoas, em cada realidade, sob cada forma
particular de ser de cada lugar no mundo, onde a proibição foi sendo imposta. Como
exemplo, há no Brasil a associação à figura do "escravo preguiçoso e sem alma" ou
nos EUA, a figura do "mexicano violento". Formas em que a maconha foi utilizada
como ferramenta de construção de preconceito com etnias.
Aqui também houve o mesmo processo de "encaixapreteamento6" da
maconha. Ela foi proibida no Brasil por decreto em 1932. Os profissionais de saúde
foram contra a proibição, pois a maioria dos medicamentos era fabricada com algum
composto da maconha. Em 1941, foi instituída uma comissão científica para analisar
os usos da maconha no país. A conclusão desse estudo foi de que o uso da erva no
Vale do São Francisco, que era algo muito comum, não prejudicava os
consumidores frequentes. A comissão recomendou que o Brasil devesse se
posicionar contra a proibição e a criminalização do usuário. Nada foi feito com esse
trabalho. Em 1958, o Ministério da Saúde promoveu um amplo debate político. Seu
primeiro exemplar foi dedicado à maconha, intitulado “Cannabis Brasileira”. Também
em 1958 o Serviço Nacional de Educação Sanitária publicou um compêndio
chamado "MACONHA - coletânea de trabalhos brasileiros" um livro de 385 páginas
com todos os trabalhos escritos sobre o tema até então. Organizado pelo presidente
da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes Dr. Décio Parreiras e
também por outros médicos, esse livro é raro, tive a felicidade de ganhá-lo de
presente de um velho amigo já no fim dessa escrita, é rico em pareceres e opiniões
técnicas de várias instituições e profissionais. A comissão concluiu que a produção
científica não ratificava falar em dependência ou em toxicomania de maconha —
termo utilizado na época —, mas, no máximo, em hábito. Como no caso do México e
dos EUA, as autoridades brasileiras ignoraram completamente o relatório da
comissão.

6
Graham Harman define o conceito de caixa preta como qualquer actante tão firmemente
estabelecido que nós podemos desconsiderar seu interior (“We are able to take its interior for
granted”).As propriedades internas de uma caixa preta não contam, na medida em que estivermos
preocupados somente com seu input e output (HARMAN, 2009).
70

Figura 7 - Livro Raro brasileiro de 1958 sobre


maconha.

A delegação brasileira que participou da Convenção Única sobre


Entorpecentes da ONU, dois anos depois, em 1961, reafirmou os perigos alarmistas
sobre a planta e exigiu restrições equivalentes às do ópio. Mais uma vez, a ciência
perdeu para a política.
Para a redefinição mais completa dos Modernos, é necessária a
multiplicidade de conceitos, o pareamento das redes com escopos múltiplos,
agregando peso no que circula nelas. Já vimos que na produção das ciências nem
tudo é científico. No direito nem tudo é jurídico, preso a letra da lei, a interpretação
tem mais peso do que o escrito em si. Aliás, no caso da maconha e suas questões
legais, foi através das interpretações dos termos jurídicos e da letra das leis que
versam sobre a política de drogas do país que os advogados anti-proibicionistas
escrevem suas peças jurídicas para conseguir o histórico Habeas Corpus, abrindo
precedente para os outros e permitindo a algumas mães e pais o plantio de
maconha em casa, mesmo existindo lei federal que proíba tal ação. Cada fluxo
possui uma trajetória própria, com os seus próprios hiatos, forças atuantes e trajetos,
fluindo de forma única no interior das redes e subredes. Dessa forma, deve-se
71

"continuar a seguir a multiplicidade indefinida de redes, mas qualificando as


maneiras, cada vez distintas, que eles têm de se estender" (LAUTOR, 2012, p.80-
90).
A princípio, eu tinha a pretensão de mapear a rede-maconha, mas percebi
que suas sub-redes e cruzamentos tornam o assunto quase infinito. Essa foi uma
das maiores dificuldades dessa tese: saber quando parar de vivenciar o campo.
Escrevendo em tempo real e com a anuência do próprio Latour, que no seu artigo de
2006 nos diz: "uma boa tese é uma tese feita", acabei limitando a minha para fazer
aparecer melhor as interações sociais que me saltaram aos olhos e que foram os
versos e vivências do título, visto que o tamanho do assunto não comportaria
apenas um trabalho.
É a prerrogativa moderníssima utilizada pelas intenções escusas na
manutenção da maconha como instancia proibida e denotada como entidade do mal.
Não se questiona, nem se oferece reflexão ou mediação. O problema (no caso
proposital) do moderno é fazer supor que não existem mediações, que tudo é dado e
não precisa ser questionado nem pensado. É o estado permanente da caixa-preta.
Em minha prática de pesquisa notei que, quanto mais rígida é a forma de pensar do
indivíduo, quanto mais preso em dogmas e verdades absolutas individuais, mais é
difícil convidá-lo à reflexão do contraditório, tamanho o sucesso da demonização
folclórica da maconha.
As primeiras plantas de Cannabis foram domesticadas em torno 12000 A.C.
nas estepes da Ásia Central, em regiões nas quais estão situadas agora a Mongólia
e o sul da Sibéria. A planta está entre as mais antigas cultivadas pela humanidade.
Durante os tempos pré-modernos, ela foi amplamente utilizada para fins espirituais e
de medicina. A ideia de que a Cannabis é uma droga proibida e perigosa é, portanto,
uma construção muito recente. O fato de a planta ser ilegal é uma "anomalia
histórica.", segundo muitos pesquisadores do tema. Existem, também, provas de
que houve uso cultural da Cannabis há 6.500 anos na mais antiga cultura registrada
do período neolítico da China, a Yang Chao. As fibras da planta serviam para
confecção de roupas, redes de pesca e caça, cordas e tudo mais que a tecnologia
da época permitia. Suas sementes eram usadas para a alimentação, em forma de
farinha e outras, a depender dos preparos.
Para os Assírios, a maconha era conhecida pelo nome de Kunubu ou
Kunnapu, que deu origem ao latim Cannabis. A planta era cultivada pela monarquia,
72

que a distribuía para população diariamente, junto com um litro e meio de cerveja.
Esse exemplo ilustra claramente seu uso recreativo, festivo. As propriedades
medicinais da planta são descritas em escrita cuneiforme num dos livros mais
antigos da humanidade, que fazia parte da Biblioteca de Assubarnipal há dois mil e
setecentos anos. Esse livro está conservado e é parte do acervo do British Museum,
em Londres.
A Cannabis tem uma longa história na Índia, descrita em lendas e na religião
hindu. Na literatura indiana, no quarto livro sagrado hindu Atharva Veda, existe a
primeira referência a bebida "bhang", cuja preparação incluía a resina da planta
misturada com manteiga, leite e açúcar. De acordo com os Vedas, a Cannabis foi
uma das cinco plantas sagradas, e um anjo da guarda vivia em suas folhas. Para
eles, a planta é uma fonte de felicidade, doadora de alegria, libertadora, que foi
compassivamente dado aos seres humanos para ajudar a atingir o prazer e perder o
medo. O Bhang era usado para “libertar da aflição” e para “alívio da ansiedade”. A
maconha até hoje está presente na farmacopedia básica da medicina indiana e
chinesa atual.
Nos países de origem islâmica, devido à proibição contida em livro sagrado
sobre o uso do álcool, a Cannabis sempre figurou como a droga recreativa preferida.
A primeira proibição social da maconha ocorreu em 1378 no território onde hoje é o
Egito. Já em 1464 em Bagdá, há o primeiro relato de caso de tratamento e controle
de epilepsia usando haxixe, que é o extrato da resina da planta. Ao Brasil, a
maconha chega por meio dos navios negreiros, pois já era amplamente utilizada nos
países africanos que faziam comércio com o país. Nossa miscigenação disseminou
entre os indígenas e depois entre os brancos o seu hábito de consumo. A planta
teve seu cultivo estimulado pela coroa real e até mesmo a rainha Carlota Joaquina
tinha o costume de consumir chá de maconha no Brasil. Os nomes dados a
maconha indicam isso, já que todos têm origem linguística africana: fumo d’angola,
Gongo, Cagonha, Marigonga, Maruamba, Diamba, Liamba, Riamba e Pango. Este
advém do nome hindu Bhang, que se torna Pang na língua árabe e se converte em
Pango nas línguas africanas.
Embora as grandes navegações só tenham acontecido por conta da
Cannabis, visto que suas cordas e velas eram feitas da fibra do cânhamo bem como
o óleo utilizado para acender lamparinas, a planta esteve desde o início associada à
população de origem africana, sendo que a ampliação de seu uso, atingindo também
73

aqueles de origem europeia, era considerada por autores como Rodrigues Dória
como: ” uma vingança da raça dominada contra o dominador”. Existe todo um
transpasse da estrutura proibicionista no Brasil com a quesão do preconceito racial,
oriundo da escravidão.
Os cultos afro-brasileiros sempre utilizaram a Cannabis. Já no século XVIII, os
relatos sobre os calundus — reunião de negros ao som de tambores- indicavam a
presença da planta, que era inalada pelos participantes, deixando-os “absortos e
fora de si”. Até a década de 30 do século XX, quando são legalizados os
Candomblés e Xangôs, a Cannabis era constantemente apreendida nos terreiros
junto com os objetos de culto. Em 1830, a legislação do município do Rio de Janeiro
passou a punir o uso do “pito de pango”, como era conhecida a Cannabis, com pena
de multa de 5 mil réis ou dois dias de detenção. Essa foi nossa primeira lei
proibicionista à respeito da planta.
Nas décadas de 20 e 30 deste século, são produzidos os primeiros trabalhos
científicos brasileiros acerca do hábito de fumar maconha. Apesar de seus autores
serem, em sua quase totalidade, médicos preocupados em justificar a proibição da
planta, estes tinham um olhar etnográfico sensível, descrevendo com minúcias os
rituais do “clube de diambistas”, nome dado à associação de indivíduos com o intuito
de fumar Diamba. Os diambistas eram, preferencialmente, membros dos estratos
mais baixos da população brasileira, em especial pescadores que se reuniam para
fumar a erva cantando loas a ela. São dessa época os famosos versos: ” Diamba,
sarabamba, quando fumo diamba, fico com as pernas bambas. Fica sinhô? dizô,
dizô”. Termos utilizados pelos diambistas como “fino”, “morra” e “marica” entre outros
são até hoje parte da gíria própria dos usuários.
A distribuição geográfica do consumo da Cannabis na época incluía Alagoas,
Sergipe, Pernambuco, Maranhão e Bahia. Daí, pouco a pouco o hábito se espalha e
a partir da década de 60, com a contracultura, passa a atingir outros estratos sociais.
Atualmente, seu uso é amplamente disseminado entre as camadas médias urbanas.
A população indígena não ficaram imunes à Cannabis. Hoje em dia no Brasil, os
Mura, os Sateré-Mawé e os Guajajaras fazem uso tradicional da erva. Os Guajajaras
têm a planta em alta estima e sua presença na mitologia do grupo atesta à
antiguidade de seu uso, que remeteria à segunda metade do século XVII. A planta é
consumida no contexto xamânico, junto com o tabaco, para propiciar o transporte
místico do pajé e a divinação. No contexto profano, a erva é inalada em grupo antes
74

de trabalhos pesados nos mutirões para dar disposição — indicando que a chamada
síndrome amotivacional, associada à Cannabis possa ser um fenômeno antes
cultural do que uma decorrência dos seus princípios ativos. Os dados jamaicanos
parecem confirmar essa tese, uma vez que nesse país a Cannabis é amplamente
fumada por trabalhadores rurais como estimulante antes de trabalhos pesados e
extenuantes.
Outros nativos das Américas também usam a Cannabis, entre os quais estão
os índios Cuna do Panamá, que já possuíam escrita antes da chegada dos
europeus; os índios Cora do México, e outros. Segundo uma comunicação pessoal
do arqueólogo chileno Manuel Arroyo, foram encontradas pinturas rupestres naquele
país, próximas à fronteira com a Argentina, feitas com tintas cujos pigmentos
indicavam a presença de THC e que foram datadas em 12.000 anos. Isso sugere
não só uma presença pré-colombiana da planta no continente, mas também um uso
mágico-religioso da mesma.
A medicina ocidental começa a usar a maconha no século 19. William
O'Shaughnessy, professor na Faculdade de Medicina de Calcutá, na Índia. receitou
para pacientes que sofriam de raiva, reumatismo, epilepsia e tétano. Além disso,
relatou que a tintura de cânhamo — uma solução de Cannabis em álcool, tomado
por via oral — era um analgésico eficaz, chamando-o de "um remédio anticonvulsivo
do maior valor.". Isso significa que desde 1839 no ocidente já se sabe das
propriedades anticonvulsivantes da maconha. O'Shaughnessy retornou à Inglaterra
em 1842 e recomendou que farmacêuticos a receitassem. Os médicos na Europa e
nos Estados Unidos começaram a prescrevê-lo para uma variedade de condições
físicas.
Soldados que retornam do Egito levaram consigo a Cannabis para a França.
Daí em diante, ocorreram importações regulares da planta. Logo em seguida, já era
possível comprá-la em qualquer farmácia. Artistas e escritores, incluindo Dr.
Jacques-Joseph Moreau, Théophile Gautier, Charles Baudelaire, Victor Hugo,
Honoré de Balzac, Gérard de Nerval, Eugène Delacroix e Alexandre Dumas, criaram
um clube para explorar a Cannabis e aumentar a criatividade. O clube se reuniu
regularmente entre 1844 e 1849 no Hôtel Lauzun, em Paris. A partir da década de
1860 até o início de 1900, várias feiras mundiais tinham exposições sobre haxixe.
Durante a exposição de 1876 na Filadélfia, os frequentadores experimentaram e
fumaram haxixe turco em um primeiro contato. Anos mais tarde era possível
75

encontrar salões para se fumar haxixe legalmente em cada grande cidade


americana, incluindo Nova York, Boston, Filadélfia, Chicago, St. Louis e Nova
Orleans. Mais de 500 salões de haxixe foram abertos somente em Nova York.
Hoje a maconha é tida como uma ferramenta para a redução de danos em
tratamento de dependência química em usuários de drogas pesadas. Em 1889, um
artigo publicado na revista médica The Lancet, já descrevia algo parecido quando
narrava a aplicação da Cannabis como forma de tratamento para a dependência ao
ópio. A planta funcionou como antiemético e reduziu o desejo ao ópio. "Quando pura
e administrada com cuidado, a Cannabis é um dos medicamentos mais valiosos que
possuímos", escreveu o médico britânico John Russell Reynolds, em 1890, no
mesmo periódico. Ele que era o médico da realeza britânica, prescreveu uma tintura
de maconha para a sua mais ilustre paciente, a Rainha Victoria. Nessa época a
maioria das grandes empresas boticárias tinham desenvolvido preparações
farmacêuticas da planta. A sua utilização terapêutica foi bem respeitada e
plenamente estabelecida. A maconha estava disponível de forma legal em quase
todos os países no final do século XIX. Começavam nessa época relatórios médicos
por todo o mundo. Um deles, da Comissão sbre drogas da Índia, com sete volumes,
concluiu que a Cannabis "não produz efeitos prejudiciais sobre a mente"; não leva
"para o crime e a violência"; e que "O uso moderado não produz praticamente
nenhum efeito nocivo". Ele sugeriu o licenciamento comum do cultivo e tributação
sobre as vendas. Nas suas recomendações mais importantes, o relatório da
comissão concluiu que "não é necessária nem conveniente a proibição do cultivo da
Cannabis, de sua fabricação, venda ou uso, seja de forma recreativa ou medicinal".
De acordo com o relatório "proibir ou restringir o uso de uma erva como a Cannabis
só causaria sofrimento e irritação generalizada." As suas conclusões foram
amplamente ignoradas pela comunidade internacional nos anos seguintes. Nessa
época também, passou a rondar o Brasil a ideia de que a Cannabis poderia ter fins
medicinais, como já ocorria na Europa, e poderia tratar doenças como “asmas e
catarros” e “roncaduras e flatos”.
Foi no início do século XX que a maconha foi colocada junto com drogas
refinadas e chamada à conferências mundias sobre saúde, como a de Haia, em
1911, as questões políticas tomaram o lugar do conhecimento empírico e já
científico e ignoraram não só o relato indiano, como todos os outros trabalhos
científicos da época. Comissões sobre drogas de vários lugares do mundo relatavam
76

os efeitos medicinais da maconha e eram ignorados pelos políticos preocupados


apenas em efetivar a proibição, no embrião que daria origem a chamada “guerra as
drogas”, expediente que perdura até hoje na maior parte dos países que ainda
proíbem a maconha e que nunca produziu resultado algum.
Fica claro que o uso da Cannabis sempre foi motivo de discórdia e interesses
na história da humanidade, apesar de seu uso primário sempre ter sido medicinal,
tratando com sucesso uma infinidade de enfermidades. Quando ela passou a fazer
diferença na contextualização socioeconômica, os governos passaram a tentar
aniquilar, sem sucesso, seu consumo, através da proibição. Com o advento da
imprensa e da propaganda, sua instância é conjecturada a factóides, com o aval dos
órgãos competentes e com a anuência ou voz silenciada dos médicos da época.
Assim, a planta é mitologizada com as atribuições dadas a ela que persistem até
hoje em quem não buscou se informar sobre o assunto. Ao passo em que ela é
posta à margem da sociedade, o grande público perde o interesse e esquece
gradativamente de seus usos, outrora tão importantes. Ele passa, assim, a
demonizar o usuário, pejorando sua figura, sempre em associação com questões
negativas para o desenvolvimento do ser e o que a sociedade espera dele.
É claro que cada situação recortada sobre ela daria um estudo aprofundado
sobre o ocorrido, um banquete de interações psicossociais que infelizmente não é
possível analisar aqui. Podemos, no entanto, No trajeto, senti-me como se estivesse
pegando um trem em movimento. A maconha tem sua história e trajetória, e eu me
choquei nessa expressão. O Growroom, A Rede Compromisso, A Abracannabis são
também capturas de realidade em consonância paralela com a história da maconha.
Uma vai atuando na outra, assim como as duas em mim, e todos nós, atados e
atuantes.
Maconha é um anagrama do seu nome mais comum e antigo: Cânhamo.
Sempre foi matéria prima para humanidade. Foi num papel feito de fibras de
maconha que Gutenberg produziu as primeiras 135 Bíblias impressas do mundo,
sendo um desses exemplares parte do acervo da Biblioteca Nacional na Cinelândia,
no centro do Rio de Janeiro.
A maconha sempre foi uma fonte de recursos para indústria de base e
infraestrutura. Na antiguidade, os gregos e, posteriormente, os romanos, usaram
velas e cordas de cânhamo nos seus navios. Já no século XV, cultivada em várias
regiões da Europa e África, o cânhamo continuava a ser a base para confecção de
77

cordas, cabos, velas e material de vedação dos barcos, ou seja, toda estrutura das
grandes navegações, descobrimento das Américas e comercio de especiarias do
oriente foram feitos graças a tecnologia do uso da fibra do cânhamo. A estrutura da
fibra é rígida, porém é elástica, possuindo assim alta resiliência. Somando as
matérias em cada grande navio, perfazia um total de mais de 80 toneladas de
cânhamo.
O óleo do cânhamo também é combustível e era usado como base para
acender as lamparinas que iluminavam as ruas antes da eletricidade ser dominada.
A arte da pintura também contém suas principais obras pintadas em tecidos de fibra
de cânhamo. A palavra Canvas, nome que se dá a tela de pintura é uma variante da
Holanda ao latim Cannabis. O consumo tornou-se massivo a ponto do rei D. João V,
emitir um Decreto-Real em 1656, incentivando à produção de maconha como
política do pais para sustentar a demanda. A maconha só perdeu seu espaço como
fornecedora de matéria prima de base quando a indústria do algodão no século 19 e
a petroquímica do século 20 fizeram um enorme lobby com reportagens pagas em
jornais para que sua produção fosse criminalizada.
A maconha é uma planta sagrada para vários cultos e religiões desde a
antiguidade. O assunto é complexo e vasto para falar de todas as vertentes
religiosas da maconha. Cito aqui dois exemplos rápidos: o rastafarianismo, que foi
fundado na Jamaica na década de 1930 e usa a Cannabis como uma planta de
sacramento ritualístico e com propriedades benéficas ao espírito. Para eles, a
maconha é a Árvore da Vida mencionada na Bíblia, na passagem do livro do
Apocalipse: em 22:2, "... a erva é a cura das nações.". Os membros se reúnem para
discutir a vida de acordo com a perspectiva Rastafári. Eles acreditam que o uso da
maconha ajuda a aproximá-los de Deus, a quem chamam de Jah (pronuncia-se Djá),
permitindo ao usuário acessar as verdades das coisas muito mais claramente.
Embora não seja necessário o uso de Cannabis para ser um Rastafári, alguns a
usam como parte de sua fé, e o ato de fumar é sempre dedicado a Sua Majestade
Imperial Haile Selassie I, um rei etíope. Para eles, a erva é a chave para uma nova
compreensão de si mesmo, do universo e de Deus. É o veículo para a consciência
cósmica". Para a doutrina do Santo Daime, que faz uso ritualístico da ayahuasca
(bebida feita a partir do chá de plantas nativas da Amazônia), a planta é sagrada e
identificada com Santa Maria, a mãe de Jesus. O ritual chama-se consagração e
78

sendo a planta fumada em silencio, exclusivamente durante os rituais, sendo o


cigarro passado sempre no sentido anti-horário, isto é, da direita para a esquerda.
A maconha pode ser cruzada botanicamente entre si, gerando hibridizações
com a intenção de desenvolver plantas com qualidades específicas. A mais usada
pelas crianças, a Harletsu, é uma espécie mista dos cruzamentos de duas outras
espécies, produzindo uma com alto nível de CBD. O site www.leafly.com possui um
enorme banco de dados desses híbridos. Ela é dioica, ou seja, possui versões
macho e a fêmea, botanicamente falando. O gênero Cannabis possui três
subespécies: sativa, indica e ruderalis. O princípio ativo dessa planta é lipossolúvel,
ou seja, dilui e se vincula quimicamente a oleaginosos. Por isso, seu chá, como o de
outras plantas, quase não possui efeito, visto que ela não é solúvel em água. O
principal responsável pelos efeitos da planta é o tetrahidrocanabinol, o famoso THC.
Existe, também, o Canabidiol ou CBD, que dentro das variações híbridas apresenta
níveis altos e é o principal agente contra as crises epiléticas. Existem outros
componentes menos famosos que ainda precisam ser pesquisados mais a fundo,
como o THC-A (a forma nativa do THC, que só se transforma em THC quando
recebe calor num processo chamado descarboxilação), CBD-A, CBN, CBG, THC-V e
outros. Infelizmente e mais uma vez, não posso me aprofundar no estudo de cada
um deles, pois isso daria material para outras teses e em outras áreas do
conhecimento. É importante, entretanto, ressaltar que estamos num momento de
mergulho em pesquisas, nas quais maconha foi descriminalizada e os resultados
preliminares são altamente promissores sobre os efeitos na saúde. Já se descobriu,
por exemplo, que o THC-V é um elemento que ajuda o metabolismo do açúcar,
reduzindo o apetite, contrariando a máxima do usuário que após o uso sente uma
fome enorme, a chamada “larica”. Híbridos estão sendo cruzados para se criar uma
cepa rica em THC-V e usar como remédio capaz de tratar diabetes e pacientes com
obesidade e problemas glandulares.
Em 1988, descobriu-se que possuímos receptores para o THC em nosso
corpo. O que fez os cientistas analisar e concluir que se temos receptores, então
produzimos uma espécie de endocanabinóide. Em 1994, a Anandamida foi
descoberta e, com ela, o mecanismo de ação do princípio ativo da Cannabis no
nosso corpo. A anandamida, palavra que vem do sânscrito Ananda e que significa
felicidade ou êxtase, é um neurotransmissor autônomo presente no nosso cérebro,
que funciona agindo como analgésico e reequilibrador em momentos de estresse do
79

organismo. Ela atua em relação aos endocorticóides que produzimos para suportar
as situações de estresse. O THC presente na maconha tem a estrutura química
semelhante à Anandamida e encaixa perfeitamente no neuroreceptor,
desencadeando a gama de efeitos psicoativos esperados que a planta fornece.
Cabe aqui uma ressalva: toda a substancia que produz alteração no sistema
nervoso central pode ser considerada psicoativa. Café é psicoativo, guaraná, idem e
o CBD, também. As sensações que cada substancia provoca e sua quantidade é
que vão determinar a alteração comportamental e perceptiva do usuário. Quando
alguém ingere café demais, por exemplo, fica superexcitado, fala muito, tem
sudorese e taquicardia. Devemos aqui ser bem precisos e lembrar de Paracelso, em
sua célebre frase: “somente a dose correta diferencia o veneno do remédio.”. Isso
vale para a maconha, para o café, para o açúcar, até para a água. Uma curiosidade:
maconha não possui dose letal, o que praticamente todas as substâncias possuem.
Não há na história da humanidade nenhum registro de morte provocado pela
ingestão de maconha. Em seu livro “Se Liga – O livro das drogas”, Myltainho
Severiano da Silva faz um passeio pela letalidade e mostra que se forem ingeridos
dez litros de água de uma vez só, o risco de morte é eminente por desequilibrar o
processo metabólico em nível celular. A maconha, portanto, é a única substância
que não possui quantidade letal. O autor relata o caso de um estagiário que ingeriu o
THC sintetizado em laboratório numa equivalência a cem cigarros fumados de uma
vez só. Ele ficou mais de dois dias sob o efeito, mas depois foi voltando ao
equilíbrio, sem nenhuma sequela cognitiva. Ainda assim existe uma forma de se ter
uma overdose de maconha: o consumo teria de ser de cerca de 680 quilogramas da
droga em no máximo quinze minutos — o que seria entre vinte mil e quarenta mil
cigarros convencionais de maconha.
Num outro exemplo, dado pela farmacêutica responsável pelo projeto
FARMAcannabis, da UFRJ, a Profa. Dra. Virginia Carvalho 7 aponta que todas as
supostas doenças nas quais a maconha pode influenciar como o disparo de surto
psicótico — um dos mitos inventados pelo Asslinger — são dadas através de relatos
de usuários de maconha de baixa qualidade e contaminada com outros elementos
como metais pesados tóxicos, que podem causar doenças. Não se sabe os efeitos

7
Professora Titular, Toxicologista, PhD., MSc. Laboratório de Bioquímica Aplicada e Toxicologia
Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas Faculdade de Farmácia - Centro de Ciências da
Saúde Universidade Federal do Rio de Janeiro
80

da maconha estudada, plantada com controle botânico, com técnica de pesquisa


farmacêutica. Isso revela que tudo que se afirma até hoje sobre os efeitos nocivos
da maconha é baseado em relatos de pacientes usuários de maconha não estudada
e possivelmente contaminada. A descriminalização pode ajudar a acabar com essa
discrepância, pois permitirá o acompanhamento da semente até o consumo. A
famosa afirmativa moderna: "maconha causa psicose e esquizofrenia." é uma
excelente amostra dos relatos repercutidos por esses usuários. É necessário haver
uma pré-disposição aos quadros e, além disso, a maconha deve ser rica em THC.
Dessa forma, poderia acontecer como hipótese o disparo de um surto. Por outro
lado, uma espécie de maconha rica em CBD, como a que as crianças usam para
frear as convulsões no entanto, é um remédio espetacular para controle de pessoas
que surtam. As duas faces de uma mesma moeda que cai em pé e desconstrói a
informação capenga, desmistificando o instituído.
Há de se pontuar que os efeitos da maconha não podem ser associados
apenas às substâncias presentes na planta. Além delas, são relevantes as
interações de múltiplos fatores envolvidos no processo: o peso corporal de quem do
consumidor da planta e sua condição física, sua idade, seu estado emocional, suas
motivações e atitudes, sua personalidade, seu estado de humor e suas lembranças
de experiências passadas, seus sistemas de crenças e valores pessoais. Outros
elementos que devem ser levados em consideração para os efeitos do uso da
maconha são: a solidão ou a presença de amigos no momento, a existência de uma
ocasião de intimidade afetiva, a presença de música ou de algum estimulo visual, o
motivo que leva a pessoa a usar e outros adjuntos. Até comer manga ou deixar de
comê-la são fatores relevantes para se dar o efeito da maconha, uma vez que se
descobriu que a manga e outras plantas possuem um composto chamado mirceno,
que auxilia na absorção da maconha através da barreira hematoencefálica, o que
aumenta o efeito. Deve-se considerar também que fumar para dormir bem e fumar
com amigos são situações completamente diferentes, por exemplo.
Recentemente, com o advento das pesquisas sobre o fisiologismo da
maconha e sobre a atuação do THC nos neuroreceptores presentes no cérebro,
provou-se a impossibilidade de vício químico à substância devido a certas
características de sua metabolização. Assim, a maconha é comprovadamente uma
substância “não viciante”, no sentido clássico da palavra. No entanto, seu vício
psicológico é sabido, pois é uma droga que altera muito a parte comportamental e
81

emocional do indivíduo. Em um usuário regular, sua supressão pode causar


irritabilidade, suores, ansiedade, alterações de sono ou de apetite.
Apesar de a indústria farmacêutica explorar o potencial da planta, isolando
seus componentes para construí-los de forma artificial, produzindo alopatias a partir
deles, a maconha, por ser botanicamente uma planta, é uma fitoterapia que precisa
ser trabalhada na sua integralidade. Sabe-se do chamado efeito comitiva, que é a
ação conjunta de todos os componentes juntos nas suas quantidades produzindo
determinado efeito. Os benefícios proporcionados — e não estou sequer entrando
no mérito das enormes propriedades industriais — são infinitamente maiores que os
malefícios possíveis.
Eu comecei a captar trabalhos, artigos, livros, publicados apenas em
português, e a numerar as associações que existem sobre maconha no Brasil. Essa
tarefa, no entanto, mostrou-se impossível de ser realizada. Simplesmente, porque
não consegui chegar a um fim ou em um momento que pudesse dizer que não havia
encontrado mais nada. Ao contrário, tive que parar arbitrariamente minha busca, já
que não teria como dar conta de tanta leitura. Há um número quase infinito de
publicações online. Em outubro de 2016, nos sites de venda de livros usados,
encontrei quinhentos e oitenta e cinco livros, novos e usados, sobre maconha. O
número de associações é, também, enorme. Elas são geralmente regionais.
Algumas em âmbito nacional. As páginas institucionais no Facebook são inúmeras.
O foco experiencial desse trabalho é a AbraCannabis, objeto maior do meu campo
de pesquisa. A busca textual no Google Acadêmico pelas palavras marijuana, weed
e maconha apresentam o seguinte número: marijuana: 456000; weed: 1490000;
maconha: 20200.

3.1 Mas afinal, a maconha é boa para que?

Além do já sabido efeito acalmador das crises convulsivas, a maconha virou


esperança também para pacientes de Alzheimer. Pesquisadores da Califórnia
encontraram evidências de que o THC tem potencial para remover a proteína beta-
amiloide, que forma as “placas” no cérebro, responsáveis pela doença. Mais de trinta
milhões de pessoas têm Alzheimer no mundo. Para Parkinson, é uma substância
que atenua ou cessa os tremores de forma incrível. Um dos vídeos que mais
viralizaram durante a escrita da tese foi o de um paciente que parou de usar a
82

maconha para mostrar os efeitos devastadores do Parkinson em seu corpo. Em


seguida, ele faz uso da maconha e mostra o resultado instantâneo. Seu tremor
cessa. Isso não significa que a maconha cure a doença, mas só o fato de diminuir o
sintoma do tremor devolve ao paciente a qualidade de vida perdida para a
enfermidade.
A maconha demonizada é coisa dos séculos XIX e XX. Antes disso, ela
sempre tinha sido vista e tida como remédio. A planta é integrante da farmacopeia
das medicinas indiana, chinesa e está nos manuais de homeopatia. Na maior parte
da história, a maconha é atuante junto à medicina justamente como remédio. Já em
1843, há o artigo de um médico irlandês que descreveu o uso para tratar convulsões
nos primeiros anos de vida da criança. Convulsão é sintoma de inúmeras doenças.
Quantos morreram ou sofreram ao longo desses anos por conta do preconceito e da
proibição de pesquisas? O doutor Raphael Melcholan8, conhecido pelo seu trabalho
no isolamento, na elucidação da estrutura e na síntese total do Δ9-
tetrahydrocannabinol, o princípio ativo principal da maconha e pelo isolamento e a
identificação dos canabinoides endógenos anandamida, precisou traficar maconha
em sua mochila para conseguir pesquisá-la e só assim se conseguiu isolar o THC.
Sem as desobediências às leis injustas, muitas vezes não se faria ciência,
não se descobriria o potencial terapêutico da maconha, essa tese se baseia na
observação e acompanhamento justamente desse ato de burlar o instituído para se
conseguir algo que não seria possível pelos meios convencionais. O possível
potencial terapêutico da maconha é imenso e precisa ser respeitado e estudado. O
único caminho para isso é a descriminalização, pois nenhuma instituição de
pesquisa pode plantar, extrair e avaliar componentes da planta enquanto isso for
considerado crime. Existem outras doenças que já têm comprovação científica para
tratamento ou alívio de sintomas com o uso de derivados da Cannabis. A esclerose
múltipla, por exemplo, pode ter os sintomas da doença atenuados pela planta, uma
vez que ela não tem cura e é progressiva. Ela diminui a inflamação das células e
melhora o controle motor de braços e pernas ao aliviar os espasmos musculares
causados pela doença.
Para dor, a maconha é um capitulo a parte. Ela é objeto antigo de estudo da
ciência como analgésico para dores fortes e crônicas. Os efeitos colaterais da

8
É Professor de Química Medicinal na Universidade Hebraica de Jerusalém em Israel.
83

Cannabis, além do mais, são bem menos graves que os da morfina, por exemplo,
substância derivada do ópio. Um dos estudos mais recentes, publicado em outubro
passado no “The Journal of Pain”, comparou duzentos e quinze fumantes
experientes que fumavam 2,5 gramas por dia de maconha com não fumantes, entre
os anos de 2004 e 2008. Todos sofriam de alguma dor crônica não relacionada ao
câncer. Ao final, os fumantes relataram menos dor, melhora no humor. O uso da
planta para esses fins é ancestral. Não houve nenhum risco aumentado de efeitos
adversos em comparação aos não fumantes.

3.2 Aspectos legais

Comparada com a opinião que temos de nós mesmos, a


opinião pública é uma débil tirana. É o que um homem pensa
de si mesmo e eis o que determina, ou pelo menos indica, o
seu destino.
Henry David Thoreau

A leis brasileiras precisam ser repensadas. Descriminalizar a maconha é


respeitar o direito individual de gerir a sua própria saúde. Não existe no código penal
o crime de autolesão, um suicida que fracassou não vai preso. Na hipótese do
usuário de maconha, ele só estaria fazendo "mal" a si mesmo. É contraditório punir o
usuário. Já vimos que a repressão a maconha é, no Brasil, relacionada à tentativa
de extinguir elementos da cultura africana. Até pouco tempo, falar de maconha era
considerado crime de apologia às drogas. Eu, portanto, sairia da defesa dessa tese
preso. Tudo precisa ser revisto e repensado. A maconha em sua forma recreativa é
punível pela herança cultural judaico-cristã, que gera penas para mecanismo de
prazer proibidos. A relação da maconha com os escravos deu manutenção a uma
carga de preconceito enorme. A associação do uso com etnias é uma prática de
perversidade social incrível. Apesar disso, foi instalada, em 1783, a Real Feitoria do
Linho-Cânhamo no país. Os anúncios em jornais sobre as propriedades medicinais
eram comuns, mas foram rareando até o fim da segunda década do século XX. A
partir dos anos 40 do mesmo século, surgem matérias pagas apontando a maconha
de maneira negativa e rica de factoides, nos mesmos moldes do que ocorria nos
EUA.
84

Além do desrespeito ao direito individual, o argumento da proibição é o de


que proibir previne. Ora, não precisa ser psicanalista para saber que o que é
proibido atrai. Numa fala do advogado André Barros9, ativista da causa da maconha
no Rio, que acompanhei num numa manifestação pela legalização, foi feita a
reflexão do conceito de proteção e lei. Qual a função da lei? Proteger o cidadão de
algo danoso a ele ou aos seus. Ele citou o exemplo da pena por homicídio, que visa
preservar o direito à vida, tornando crime tirar a vida de outra pessoa. Mencionou
ainda o crime de furto ou roubo, que visa proteger o direito ao patrimônio e
propriedade individual e privada. A lei antidrogas tem o mesmo princípio, proteger a
saúde. A subversão lógica está aí, visto que atemporalmente a maconha sempre foi
uma planta medicinal. Proibir a maconha por uma lei que visa proteger a saúde é
negar o acesso ao remédio a quem precisa. Logo, a luta e a defesa que se faz
através do ativismo é para se ter direito à saúde e à pesquisa, para se conseguir
aprofundar tecnicamente o conhecimento sobre a planta. O paradoxo é que essa
luta pela saúde esbarra na lei que defende a saúde.
O Brasil é um Estado democrático de direito. Isso significa que o próprio
Estado é submisso às leis que determina. Na monarquia, o rei não se submete às
leis que inventa. No Estado de direito a premissa é a preservação da ordem jurídica
e o controle do abuso de poder por partes do Estado, nas figuras de seus
representantes. Assim, o povo e o governo são regidos pela mesma ordem jurídica,
ou seja, a lei é para todos. As exceções a essa regra teórica é a questão da vontade
da maioria. Henry Thoreau (1849), em seu famoso livro, “Desobediência civil”, fala
sobre a maioria se sobrepujar em relação à minoria. Para ele, o desejo da maioria
da sociedade não se justifica por ser mais certo, justo ou calmo para que uma
minoria legitime sua vontade. Ele diz que é por uma questão de força física que a
maioria se sobrepõe à minoria. É um enorme risco social que uma maioria oprima ou
se manifeste escrevendo leis injustas que desrespeitem interesses minoritários. Por
essa razão, existe o direito de desobedecer, que é quase um fundamento jurídico no
Brasil. O direito de discordar não consiste em baderna. Podemos usar como
exemplo o direito à greve de trabalhadores contra práticas injustas ou defasagem
salarial.

9
Advogado. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Prof. de Direito Civil e do Consumidor
na Pós-Graduação da Escola Paulista da Magistratura, na Escola Superior da Advocacia e na
Escola Paulista de Direito. Professor e Coordenador da Pós-Graduação em Direito Civil, Negocial e
Imobiliário da Rede de Ensino LFG.
85

Durante meu trajeto no campo, fiz cursos sobre o cultivo, história e direito
sobre a maconha. A seguir segue uma adaptação textual da apresentação do
advogado Emilio Figueiredo sobre os aspectos jurídicos do cultivo doméstico de
Cannabis para fins terapêuticos.
A Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961 da ONU prevê que “o uso
médico dos entorpecentes continua indispensável para o alívio da dor e do
sofrimento e que medidas adequadas devem ser tomadas para garantir a
disponibilidade de entorpecentes para tais fins”. A Convenção ainda menciona
expressamente o uso medicinal da Cannabis, afirmando que “o uso da ‘Cannabis’
para fins que não sejam médicos ou científicos deverá cessar o mais cedo possível”.
Já na lei brasileira sobre Drogas, encontramos o seguinte trecho: “ficam proibidas,
em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a
exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas
drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar”. A prerrogativa
por que tanto lutamos está prevista no seguinte trecho: “pode a União autorizar o
plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo
exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo
predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas
supramencionadas”. O Decreto que regulamenta a Lei sobre Drogas afirma que é
competência do Ministério da Saúde “autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos
vegetais dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, exclusivamente para
fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante
fiscalização, ressalvadas as hipóteses de autorização legal ou regulamentar”.
Contudo, a ANVISA, agencia nacional de vigilância sanitária, subordinada ao
Ministério da Saúde não autoriza o cultivo de Cannabis para fins medicinais por
enquadrar tal vegetal na lista de plantas que podem originar substâncias
entorpecentes e/ou psicotrópicas, de modo que “não poderão ser objeto de
prescrição e manipulação de medicamentos alopáticos e homeopáticos”. Assim, a
Convenção Internacional reconhece que o uso médico da Cannabis continua
indispensável para o alívio da dor e do sofrimento. A Lei sobre Drogas prevê que a
União Federal pode autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais
considerados proibidos. O decreto dispõe que é competência do Ministério da Saúde
autorizar, e a ANVISA não tem procedimentos para autorizar por considerar a
Cannabis absolutamente proscrita.
86

O fato de a ANVISA não regulamentar a autorização para fins medicinais da


Cannabis, indo contra o tratado internacional e a lei vigente, não pode ser
considerada empecilho para realização do cultivo pessoal para fins medicinais.
Devemos ainda considerar que a ANVISA apenas tem competência para
regulamentar a produção e a circulação de produtos que sejam destinados à
dispensação, que é o “ato do farmacêutico de orientação e fornecimento ao usuário
de medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, a título remunerado ou não”.
A saúde, sendo um direito fundamental reconhecido pela Constituição Federal e o
indivíduo, detentor de sua autonomia, não pode ser impedido de cultivar algo dentro
de sua casa que sirva para incrementar a sua saúde e não causa qualquer tipo de
dano a terceiros. O cultivo de Cannabis proibido é aquele que ofenda a saúde
pública, considerando a finalidade da norma penal. Contudo, no caso do cultivo
pessoal para fins medicinais, a saúde individual é contemplada de maneira concreta.
Logo, essa situação não pode ser criminalizada por uma omissão na
regulamentação por parte do poder público. Não deve haver restrições ao cultivo
doméstico para fins medicinais, como ser aceito apenas algumas moléstias. Tal
cerceamento vai contra a definição de saúde adotada pela Organização Mundial da
Saúde: “a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não
consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”. Portanto, se o cultivo
doméstico de Cannabis é um incremento no bem-estar físico, mental e social, ele é
um cultivo para fins medicinais.
O mesmo raciocínio vale para quem cultiva para atender à saúde de um ente
querido, como a mãe que cultiva para cuidar do filho, ou o filho que cultiva o remédio
para melhorar a saúde do pai. Em ambos os casos, mesmo visando atender
terceiros, não há o intuito ou dolo (o especial fim de agir) de lesar a saúde de quem
recebe a Cannabis para fins medicinais, de modo que a saúde pública é fortalecida
com tal prática. O cultivo doméstico de Cannabis não pode ser alvo de
regulamentação restritiva da ANVISA, pois ela não é competente para violar o lar
das pessoas e dizer o que pode e o que não pode ser cultivado por aqueles que
apenas querem fomentar a própria saúde. Não reconhecer o direito ao cultivo
medicinal doméstico é criminalizar quem está apenas buscando cuidar da própria
saúde e, ainda, é determinar que o cidadão seja refém de uma ação estatal de
cuidado com a saúde que não é suficiente para atender às suas necessidades.
Cultivar em casa a Cannabis medicinal é o novo paradigma da saúde pública no
87

Brasil e no mundo. Um caso emblemático é o da Justiça Federal do Pará, que


rejeitou uma denúncia de tráfico internacional de drogas por importação de
sementes em um caso de um marido que admitiu ter importado as sementes para
tratar o câncer da esposa. Na decisão, o magistrado reconhece “a finalidade altruísta
e humanitária que moveu o denunciado ao adquirir as sementes no Reino Unido,
qual seja, para o exclusivo fim medicinal, em face à grave moléstia que foi sua
esposa acometida”.
Devo, também, registrar aqui a decisão inédita e histórica que ocorreu no dia
17 de novembro de 2016. A 14ª Vara Federal do Rio de Janeiro concedeu um
Habeas Corpus, um salvo-conduto, a Margarete Brito, mãe de uma criança que tem
convulsões provocadas por uma síndrome genética que afeta seu desenvolvimento.
O Documento a protege, assim como seu marido, Marcos, de uma eventual ação
policial contra a família. A decisão foi realizada e já tramita o processo que pede
autorização de plantio da Cannabis de forma definitiva. Existe, portanto, desde o dia
17 de novembro de 2016, uma autorização legal para que a maconha seja cultivada
no país. Segue o texto da decisão que merece o destaque aqui.

Trata-se de pedido de HABEAS CORPUS PREVENTIVO impetrado por


Vanildo José da Costa Júnior, em favor de Margarete Santos de Brito e
Marcos Lins Langenbach contra o Chefe da Polícia Civil do Estado do Rio
de Janeiro, na pessoa do delegado Carlos Augusto Leba e/ou a Polícia
Militar do Estado do Rio de Janeiro, na pessoa do CMT Geral, Wolney Dias
Ferreira. O presente writ tem por finalidade evitar o irreparável prejuízo aos
pacientes quanto ao constrangimento ilegal e eventual ameaça sofrida por
seu direito de cultivar o vegetal Cannabis Sativa, para uso específico no
tratamento de sua filha Sofia. Para instrução do pedido, encontra-se
acostado aos autos toda a documentação referente ao processo que tramita
na 14ª Vara Federal do Rio de Janeiro, processo n° 0085473-
23.2016.4.02.5101, em que pleiteiam a permissão do plantio de substância
ilícita (fls. 57/75). À fl. 282, foram juntados laudos médicos prescrevendo a
mencionada planta no tratamento da menor, com comprovada eficácia. A
vasta prova acostada aos autos revela que a criança Sofia necessita do uso
frequente da planta Cannabis Sativa para aliviar seu sofrimento e ajudar na
cura da doença que lhe é acometida. Em outros países, como nos Estados
Unidos, já adotaram o uso da maconha para combater determinadas
doenças e dores. Estudos recentes já revelaram que o uso planta com
acompanhamento médico apresenta propriedades medicinais que podem
ajudar a combater doenças entre as quais a da criança que se pretende
proteger. Os pacientes ingressaram com processo na 14° Vara Federal
objetivando a permissão do plantio da Cannabis Sativa para fins medicinais.
A presente medida se faz necessária para garantir a qualidade de vida da
criança conforme estudos e documentos juntados. O artigo 28 da Lei
11.343/2006 não autoriza a prisão em flagrante considerando que o preceito
secundário da norma não prevê penas privativas de liberdade. Entretanto, o
receio dos pacientes em eventual apreensão de quantidade expressiva e
possível capitulação em sede policial de delito mais gravoso autoriza a
concessão da presente medida. Desta forma, concedo o SALVO-
CONDUTO em favor de Margarete Santos de Brito e Marcos Lins
88

Langenbach, a fim de que as autoridades encarregadas, Polícia Civil e/ou


Polícia Militar, sejam impedidas de proceder a prisão em flagrante dos
pacientes pela produção artesanal de Cannabis Sativa para fins medicinais,
bem como fiquem impedidas de apreenderem os vegetais mencionados até
decisão definitiva que tramita no processo número 0085473-
23.2016.4.02.5101 da 14° Vara Federal do Rio de Janeiro. Dê-se ciência ao
Ministério Público da presente decisão.

Depois dessa decisão, que abre um precedente, até o fim da escrita dessa
tese, mais dois salvo-condutos foram conseguidos. As outras duas famílias que
conseguiram esse direito residem uma no Rio de Janeiro e outra em São Paulo.
Entidades coletivas, como a Abracannabis, A cultive!, De São Paulo, e a ABRACE,
da Paraíba, estavam em vias de pedir o habeas corpus para fazer um cultivo
coletivo, que pode padronizar as plantas e, assim, permitir um controle mais
adequado da produção do remédio. A tese precisa ser finalizada, mas a luta pelos
direitos individuais e pela liberdade continua.
Encerro esse tópico sobre questões legais com algumas frases que servem
bem para exprimir o que se vive hoje sobre a legalidade:
"Acredito que um indivíduo que viola uma lei que a sua consciência lhe diz
que é injusta, [...] está na realidade a exprimir um grande respeito pela Lei."
(Martin Luther King J)
"Tal como é dever de todos os homens obedecer a leis justas, também é
dever de todos os homens desobedecer a leis injustas." (Martin Luther King
Jr)
"A lei nunca tornará os homens livres; cabe aos homens fazer leis livres.
São os amantes da lei e da ordem que respeitam a lei quando o governo a
viola." (Henry David Thoreau)
"Uma lei injusta é em si uma espécie de violência. A prisão pela sua
desobediência é-o mais ainda." (Mahatma Gandhi)
"A liberdade legítima é um espaço de ação de acordo com a nossa vontade,
dentro dos limites traçados a nossa volta pelos iguais direitos dos outros.
Não digo ‘dentro dos limites da lei’, porque a lei muitas vezes não é mais do
que a vontade de um tirano, o que será sempre desde que viole direitos
individuais." (Thomas Jefferson)
"Não há forma de governar homens inocentes. O único poder que o governo
tem é o de deter criminosos. Bem, quando não há criminosos suficientes,
este os cria. Este decreta tantas coisas como crime que se torna impossível
aos homens viver sem violar leis." (Ayn Rand)
"Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o
direito." (Georges Ripert)
"Duas coisas me enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto
mais intensa e frequentemente o pensamento delas se ocupa: o céu
estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim." (Immanuel Kant)
"Get Up Stand Up, Stand Up for Your RIGHTS!" (Bob Marley)
89

CURA – FINALIZANDO

“Eu já ultrapassei a barreira do som,


Fiz o que pude às vezes fora do tom,
mas a semente que eu ajudei a plantar já nasceu!
Além, depois dos velhos preconceitos morais
Dos calabouços, bruxas e temporais
Onde o passado transcendeu há um reinado de paz!”
Raul Seixas

A cura é a última etapa do processo da produção da maconha. Depois de


colhida, ela é colocada para secar e curar, fazendo as transformações químicas dos
seus componentes. Ao final, ela está pronta para ser usada da forma que convier.
Como já escrevi, minha relação como campo foi muito além da que seria a de
um mero observador. Participei ativamente e até hoje, escrevendo essas linhas,
estou envolvido com a luta para que a descriminalização ocorra. Impossível seria
não provar dos sabores além dos saberes num campo tão fértil de recursos em
ambos os sentidos. É uma equação simples. Os ativistas, quase todos, são
cultivadores também. Sempre plantaram sua própria erva, para seu consumo,
saindo do mercado negro e consumindo algo com qualidade e procedência, além de
poder escolher o tipo e o efeito. Sempre fui uma pessoa ansiosa e sempre tive uma
dificuldade imensa para dormir. Sou daquele tipo que, ao encostar a cabeça no
travesseiro, desperta num turbilhão de pensamentos. Levo em média cinquenta
minutos para pegar no sono, às vezes mais.
Como diria o ditado: “quando em Roma, faça como os romanos”. Numa das
primeiras reuniões a que fui convidado, fumar era algo tão normal quanto beber um
copo d'água. Num misto de ficar sem jeito e de muita curiosidade sobre a qualidade,
o cigarro rotativo chegou a minha mão. Foi como se, na verdade, eu nunca tivesse
fumado tamanha a diferença de sabor e efeito. O cheiro, a textura, o gosto residual,
tudo era diferente do prensado ao qual sempre tive acesso. Naquela noite, já em
casa, dormi de forma espetacular, um sono bom, nem leve nem pesado, mas
revigorante. E o melhor: nenhuma ressaca ou efeito colateral. Isso me ajudou, sem
dúvida, na interação e no entendimento de como é o modus operandi da vida do
usuário. Todos ali, de alguma forma, fazem o uso para se sentir melhor. Quase
90

todos têm alguma questão de ordem comportamental ou fisiológica em que a


maconha ajuda, atenuando os sintomas ou regulando, como nos mecanismos de
ansiedade aguda. Poderíamos então concluir que o uso da maconha na forma
recreacional é, portanto, uma busca por uma sensação de bem-estar e prazer.
Segundo a organização mundial da saúde (OMS), a definição de saúde é "um
estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de
afeções e enfermidades”. Ora, se o usuário recreacional está buscando bem-estar
físico e mental, ele está, sob essa ótica, promovendo a própria saúde. Assim
podemos pensar, num cenário possível que todo uso intenciona ser medicinal,
promovedor de estado de saúde, por definição. Como também foi dito, a diferença
entre o veneno e o remédio é a dose. Os efeitos em mim foram benéficos, vivo
menos ansioso e durmo melhor, desacelero o pensamento, existo de forma mais
tranquila. Sinto-me uma pessoa melhor, em maior consonância com o meu redor.
Mantendo o senso crítico apurado, entretanto, devo salientar que a maconha tem um
efeito colateral que pode auxiliar quem precisa, como em casos de quimioterapia e
distúrbios alimentares, mas é muito ruim para quem já é acima do peso ou tem
tendência a engordar, por conta da famosa larica. A larica é o nome dado à
sensação de fome quase sempre presente do meio para o final da "onda" da
maconha. Por definição, ela é uma fome muito intensa e altamente sensorial. O
funcionamento fisiológico da larica já foi desvendado em uma pesquisa da escola de
medicina de Yale, publicada na revista “Nature". Os pesquisadores descobriram que,
sob a ação da maconha, os neurônios que normalmente “desligam” a fome ao sentir
saciedade, passam a estimular ainda mais a voracidade do usuário, enganando o
sistema de alimentação do cérebro. Por outro lado, ainda precisamos avançar em
pesquisas, pois um estudo recente sobre outro componente ativo presente na
maconha, o THC-V, ou tetrahidrocanabivarina, tem potencial de aceleração do
metabolismo, diminuição do apetite e ajuda a regular o açúcar no sangue. Há muito
o que se conhecer e pesquisar. O prognóstico futuro é promissor para várias
doenças.
Ainda vai levar algum tempo até que a maconha seja desmistificada. Existe
um descompasso de temporalidade entre a existência humana e os acontecimentos
e mudanças sociais. Quando achamos absurdo haver ainda hoje preconceitos
raciais, culturais, religiosos e discussões sobre temas espinhosos sociais como
aborto e uso de drogas, não podemos deixar de levar em consideração que o
91

"tempo social" é muito diferente do tempo humano. Se considerarmos cem anos um


tempo de vida humano possível, embora difícil de atingir, podemos perceber que é
muito pouco quando pensado para mudanças sociais profundas. No século XIII, a
Inquisição religiosa matou milhares de pessoas. Hoje, mais de setecentos anos
depois, ainda se mata em nome da religião. O tempo social é outro. Gerações
endurecidas em conceitos e valores precisam ser ultrapassadas para que as novas
venham a ampliar as mudanças nesses temas dissonantes. Mesmo o álcool, droga
tão popular no mundo todo, é proibido em países dos Emirados Árabes e lá há
tráfico de álcool e de outras drogas. Burlar regras que ferem a vontade individual ou
coletiva é parte constituinte do processo de estabelecimento de mudanças em leis
ou costumes que precisam ser mudados.
Como último evento na narrativa dessa tese, escolhi o mais simbólico, do
ponto de vista da luta e da seriedade do projeto: o dia em que a maconha entrou
pela porta da frente da universidade pública. Com o habeas corpus da Cidinha, mãe
paulista que também conseguiu o ter seu direito respeitado, e com o projeto de
pesquisa da professora doutora Virginia Carvalho, no dia 21 de janeiro de 2017,
fomos até o laboratório de farmácia da Universidade Federal do Rio de janeiro, no
campus da Ilha do Fundão, com mais de duzentos e setenta gramas de maconha da
espécie Cindy99 colhida, participar da extração por gelo seco do kfir e do cozimento
na manteigueira para a fabricação do óleo. Tudo foi devidamente filmado e feito
dentro dos princípios e das técnicas farmacêuticas. A atividade começou pela
manhã e a professora recolheu amostras para análises e registro. Foi uma bela aula
prática, na qual as pessoas da Cultive! puderam aprender sobre a confecção para
produzir em São Paulo. A presença da ilustre motivadora também deve ser
registrada, já que Clariam nos brindou com sua presença, acompanhando todo o
processo da confecção do seu remédio.
Considerando as controvérsias do uso da maconha do ponto de vista social,
há uma grande variedade de respostas em função dos novos e resgatados saberes
sobre ela (numa espécie de redescoberta do contato possível e não daninho) e
também um certo consenso sobre a necessidade de se pesquisar mais já que a
prática do uso demostra resultados incríveis. A pesquisa esbarra na proibição do
cultivo, pois não há pesquisa sem produção. Para produzir é necessária a
descriminalização do plantio. O que atende aos pedidos dos usuários medicinais e
também atende aos usuários recreativos. Através da ilegalidade (o plantio e
92

produção escondidos) ou da legalidade burocrática (a importação do extrato a


preços proibitivos para grande parte da população), vai se produzindo um corpo
sustentador do argumento pró-legalização. A sociedade vai sendo posta numa
posição incômoda, visto que a importação sendo liberada mediante a requisição
sendo legal, não faz sentido não permitir que organismos de pesquisa na saúde
nacionais não possam fazer sua própria produção para pesquisa e desenvolvimento
do extrato, que por ser fitoterápico já possui tecnologia pronta para a extração e não
possui outra matéria prima que não seja a própria planta.
Assim a razão e o significado do uso da maconha imputada como uma falha
ou fraqueza, seja física ou moral, psicológica ou cultural, política ou social. fica em
um nível ultrapassado pois a maconha se desloca desse lugar crítico e finalmente
pode ser retirada da proximidade de outras drogas que tem outras histórias e outros
efeitos. É necessário que se saia do arcabouço arcaico de que o uso da maconha é
respostas a crises ou a algum tipo de necessidade individual ou ainda do conceito
de que ela é usada por falta de saúde, afeto, cultura, religião, escola, informação,
dinheiro, família, trabalho , Razão, consciência, liberdade. Todos esses motivos são
até possíveis e cada rede que se estabelece entre o ser e a maconha pode se
desdobrar em um desses viezes. O uso da maconha como drogas ilícita não deve
mais ser visto como defeito ou falha psicológica, perda de referência simbólica ou
desvio moral, de informação errônea, alienação ou falha de regras sociais.
Em outra reflexão que por si só daria um outro tabalho inteiro, não se deve
produzir a assimetria sobre o consumo lícito ou não. Pois a licitude passa por muito
mais instancias que simplesmente o fator saúde ou moralidade. A questão maior que
exige mais reflexão está no uso que é feito. A substância em si não carrega o pode
do dano. O motivo do uso e a quantidade ingerida são os fatores que provocam os
conceitos e constroem as opiniões formadas sobre o tema.
Ao se questionar o uso ou não de uma determinada substância, não se
produz saberes com a devida profundidade do tema. É mais adequado fazer
perguntas mais pragmáticas, questões mais próximas dos modos sobre como o uso
se dá. O que ocorre? Que tipo de experiências têm os que usam as substâncias? No
caso da maconha, esse texto faz um recorte do uso medicinal e comum, estando
muito mais próximo dos que os usuários se perguntam sobre o que a maconha é.
Ainda há muito a se pesquisar sobre os componentes da maconha. Existem
mais de quatrocentos e oitenta e três componentes orgânicos na planta e,
93

atualmente, há cento e onze canabinóides conhecidos, mas há certamente mais a


ser descoberto. Cada canabinóide pode fornecer diferentes níveis de benefício
medicinal. Já se sabe, também, que cada canabinóide funciona melhor quando eles
são combinados entre si. É o chamado "efeito entourage” e é por isso que há
tentativa de isolar o componente CBD. As políticas públicas são, entretanto,
deficientes. Os pacientes mais beneficiados com o uso merecem o acesso seguro a
toda a planta. Se você vive em um único estado, continue a lutar até que todos os
canabinóides sejam gratuitos!
Vivemos sobre versões dos fatos e situações que vão ocorrendo. Sempre
acabamos por escolher a versão que mais se encaixa em nosso gabarito de valores.
O olhar sobre o passado, nos desenhos históricos, ajuda-nos a ter mais certezas
pessoais que sustentam e validam essa construção de valores sobre uma
determinada questão. O nível de complexidade desses assuntos é sempre muito
alto, cabendo a cada um de nós desatarmos os nós, atarmo-nos em nós, pelos nós
da rede que se estabelece, e extrair desse evento espaço temporal nossa
compreensão e defesa de ponto de vista ou tese. Portanto, essa tese, na
profundidade em que consegui mergulhar no tema, foi possível perceber como as
conexões que a maconha vem estabelecendo, construindo cenários e mudando sua
posição de atriz no encenamento. Como uma nova quebra de paradigmas, sendo
vista novamente como remédio, ajudando a dar qualidade de vida às crianças e aos
adultos que se beneficiam dela e tecendo novas redes de significado psicossocial
alinhavadas que se formarão na dinâmica das construções dos eventos significativos
que a maconha pode gerar na nossa sociedade. Também ter a relexão positiva de
que a luta pelo direito individual e irrevogável da liberdade de escolha deve ser
sempre respeitado. A maconha é uma espécie de cavalo vegetal (dentro do
simbólico sobre a importância do cavalo para o desenvolvimento humano), um
elemento que ajuda o ser humano com seus recursos desde os tempos ancestrais e
que não deve ficar jogada no obtuso e infinito buraco do obscurantismo, da
ignorância e do preconceito. Ao contrário, ela merece o respeito e o lugar de
destaque que lhe cabe no hall da fama dos grandes recursos naturais que o planeta
possui e que contribuem para o nosso bem viver.
94

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científicas. Rio de janeiro: Psicotropicus

Lista de sites consultados e utilizados

Transnational Institute disponível em: http://cannabishistory.tni.org/index.htm

Growroom disponível em: http://www.growroom.net

Revista Semsemente disponível em http://www.semsemente.com

ABRACANNABIS - Associação brasileira para Cannabis disponível em


http://www.abracannabis.org.br

APEPI – Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal - disponível


em http://www.apepi.org

Maco Project - disponível em http://macoproject.com/


97

ANEXO A - Doenças que podem ser tratadas ou ter seus sintomas atenuados por
meio da Cannabis

(Retirado do site http://www.metropoles.com/vida-e-estilo/bem-


estar/alzheimer-e-outras-seis-doencas-que-a-maconha-pode-tratar-ou-prevenir

1. Esclerose múltipla:
Alguns pacientes já usavam maconha para aliviar os sintomas da doença, até
que a ciência resolveu investigar se a sensação de bem-estar era apenas pelo efeito
da planta. Em dois estudos diferentes, a conclusão foi a de que essas pessoas não
estavam assim tão erradas.
Em um deles, da Universidade de Tel Aviv, em Israel, a equipe isolou células
imunes de ratos paralíticos que especificamente “atacavam” as células neurais e a
medula. Trataram-nas com CBD e THC. Nos dois casos, as células produziram
menos moléculas inflamatórias, principalmente os tipos mais comumente
relacionados à esclerose múltipla. Outros estudos mostram que a maconha pode
devolver o controle de braços e pernas aos pacientes ao aliviar os espasmos
musculares causados pela doença.

2. Dor:
O uso da Cannabis para controle de dores fortes ou crônicas é objeto antigo
de estudos científicos. Até porque os efeitos colaterais da Cannabis são bem menos
graves que os da morfina, por exemplo, a substância derivada do ópio. Um dos
estudos mais recentes, publicado em outubro passado no The Journal of Pain,
comparou duzentos e quinze fumantes experientes, que usavam dois gramas e meio
por dia, com não fumantes entre 2004 e 2008. Todos sofriam de alguma dor crônica
não relacionada ao câncer. Por fim, os fumantes relataram menos dor, mais bom
humor e nenhum risco aumentado de efeitos adversos em comparação aos não
fumantes.

3. Morte por overdose de analgésicos:


Além de servir como tratamento ou alívio de sintomas, nos Estados Unidos,
em estados onde a maconha é legalizada, o número de mortes por overdoses
causadas por uso de analgésicos diminuiu em quase 25%, segundo um estudo
98

publicado no JAMA Internal Medicine. Cerca de 100 pessoas morrem por dia no país
por abuso de remédios para dor.

4. Enjoo causado por quimioterapia:


Nos Estados Unidos, desde os anos 1980 os médicos podem receitar aos
seus pacientes de câncer e AIDS medicamentos à base de THC sintético para aliviar
as náuseas causadas pela quimioterapia – com nomes comerciais de Marinol e
Cesamet.
Em um estudo do Hospital St. John, em Oklahoma, 38% dos pacientes de
AIDS que tomaram 5 miligramas de Marinol durante seis semanas tiveram mais
apetite e menos enjoos comparado a apenas 8% do grupo do placebo. Em outra
pesquisa, dessa vez na Suíça, os dois medicamentos se saíram melhor para
controlar os vômitos do que os outros existentes para a mesma função.

5. Câncer:
Além de controlar os enjoos, alguns estudos têm mostrado que o CBD e o
THC podem ser eficazes para frear o crescimento de células tumorais. Quem afirma
isso é a Sociedade Americana de Câncer. Pesquisas preliminares feitas em animais
mostram que as substâncias podem prevenir o espalhamento de alguns tipos de
câncer. Testes com humanos estão em andamento.
6. Síndrome do pânico:
Um estudo de 2014 da Universidade de São Paulo publicado no International
Journal of Neuropsychopharmacology investigou os efeitos de agonistas CB1
(similares aos canabinoides naturais) sobre mudanças comportamentais em ratos na
presença de predadores – no caso, um gato vivo.
Concluíram que a substância ajuda a modular o chamado sistema
endocanabinoide e, consequentemente, trazer sensação de alívio aos pacientes da
síndrome. Outra pesquisa da universidade já havia chegado a resultados positivos
também para controle de TOC.
7. Autismo:
O autismo é um dos tópicos mais recentes a entrar no foco dos estudiosos da
Cannabis medicinal. A origem do autismo muitas vezes é parecida com a da
epilepsia, um excesso de ativação neuronal
99

Nas questões psíquicas, seu uso também é amplo. Ela é eficiente para o
controle de ansiedade, insônia, síndrome do pânico, depressão, TOC e outras
enfermidades e quadros emocionais. Para casos de autismo, como mencionado
anteriormente, a maconha atua no controle de excesso de atividade neuronal, com
resultados muito promissores. A planta também pode ajudar e tratar fobias sociais,
síndromes de West, esclerose múltipla, alcoolismo, artrite, asma, arteriosclerose,
fadiga mental, diabetes, depressão, dermatite, fibromialgia, distonia, doença
cardíaca cardiovascular, hepatite, herpes, Doença de Huntington, hipertensão
intracraniana, síndrome de Meige, enxaqueca /cefaleia, osteoporose, tuberculose,
anemia falciforme, lesão Medular, síndrome de Tourette, doença de Wilson e muitas
outras a serem pesquisadas e descobertas.
100

ANEXO B - Canabinóides e suas aplicações

Retirado do fórum de discussão Growroom:


Δ-9-tetrahidrocanabinol (THC)
Propriedades: Euforizante, Analgésico, Anti-inflamatório, Antioxidante,
Antiemético
Canabidiol (CBD)
Propriedades: Ansiolítico, Analgésico, Antipsicótico, Anti-inflamatório,
Antioxidante, Antiespasmódico
Canabinol (CBN)
Propriedades: (Produto da oxidação e decomposição do THC e CBD)
Sedativo, Antibiótico
Canabicromeno (CBC)
Propriedades: Anti-inflamatório, Antibiótico, Antifúngico
Δ-8-tetrahidrocanabinol (Δ-8-THC)
Propriedades: Semelhante ao Δ-9-THC, menos psicoativo, Antiemético mais
estável
Tetrahidrocanabivarin (THCV)
Propriedades: Analgésico, euforizante
Óleos essenciais de terpenóides, seus pontos de ebulição e
propriedades
β-mirceno
Propriedades: Analgésico, Anti-inflamatório, Antibiótico, Antimutagênico
β-cariofileno
Propriedades: Anti-inflamatório, Citoprotetor (mucosa gástrica), Antimalárico
d-limoneno
Propriedades: Canabinóide agonista, Imunopotenciador, Antidepressivo,
Antimutagênico
Linalol
Propriedades: Sedativo, Antidepressivo, Ansiolítico, Imunopotenciador
Pulegona
Propriedades: Intensificador de memória, Inibidor de AChE, Sedativo,
Antipirético
1,8-cineol (eucaliptol)
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Propriedades: Inibidor de AChE, Aumenta o fluxo sanguíneo cerebral,


Estimulante, Antibiótico, Antiviral, Anti-inflamatório, Antinociceptivo
α-pineno
Propriedades: Anti-inflamatório, Broncodilatador, Estimulante, Antibiótico,
Antineoplásico, Inibidor de AChE
α-terpineol
Propriedades: Sedativo, Antibiótico, Inibidor de AChE, Antioxidante,
Antimalárico
terpineol-4-ol
Propriedades: Inibidor de AChE, Antibiótico
p-cimeno
Propriedades: Antibiótico, Anticandidal, Inibidor de AChE
borneol
Propriedades: Antibiótico
Δ-3-careno
Propriedades: Anti-inflamatório
Composição dos flavonóides, fitosteróis, seus pontos de ebulição e
propriedades
apigenina
Propriedades: Ansiolítico, Anti-inflamatório, Estrogênico
quercetina
Propriedades: Antioxidante, Antimutagênico, Antiviral, Antineoplásico
canflavin-A
Propriedades: Inibidor de COX, Inibidor de LO
β-sitosterol
Propriedades: Anti-inflamatório, Inibidor de 5-α-redutase

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