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Rio de Janeiro
2016
José Eduardo Menescal Saraiva
Rio de Janeiro
2016
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
es CDU 316 6
___________________________________ _______________
Assinatura Data
José Eduardo Menescal Saraiva
Banca Examinadora:
_____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Heliana de Barros Conde Rodrigues (Orientadora)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
_____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Anna Paula Uziel
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
_____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Cecília Maria Bouças Coimbra
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________________
Prof. Dr. Francisco Ramos de Farias
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
_____________________________________________
Prof. Dr. Ronald João Jacques Arendt
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2019
DEDICATÓRIA
PREÂMBULO ................................................................................................. 11
1 DELIMITAÇÃO DA PROBLEMÁTICA ........................................................... 19
2 CIÊNCIA, VERDADE E PODER: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ................ 25
2.1 Sobre a busca da verdade ........................................................................... 25
2.2 Por uma ciência socialmente racional ........................................................ 33
2.3 Deixar falar o assombro: por uma história viva da prática
institucional................................................................................................... 38
3 A HISTÓRIA ORAL OU O PREDOMÍNIO DO UNIVERSO SINGULAR DA
MEMÓRIA ...................................................................................................... 44
3.1 A História Oral para além da mera proposição metodológica .................. 44
3.2 História Oral: um pouco de história ............................................................ 46
3.3 História Oral e verdade................................................................................. 47
3.4 Entre fatos e versões.................................................................................... 50
3.5 Subjetividade e memória.............................................................................. 52
3.6 Cartografar multiplicidades: introduzindo os interlocutores-
heterônimos .................................................................................................. 54
4 OS INTERLOCUTORES-HETERÔNIMOS E SEUS RELATOS
SELVAGENS .................................................................................................. 57
4.1 A Sra. P. e a escrita paralisada .................................................................... 57
4.1.1 A Sra. P. e a nostalgia da clínica ................................................................... 65
4.2 A Sra. O. e a prática aterrorizada ................................................................ 68
4.2.1 A Sra. O. e a nostalgia da certeza .................................................................. 85
4.3 O Sr. D. ou o elefante e as formiguinhas .................................................... 89
4.3.1 O Sr. D. e a nostalgia de uma justiça justa ................................................... 101
4.3.2 Abolicionismo, abolicionismos... ................................................................... 104
4.4 A Sra. E. ou a corda que sempre arrebenta para o lado mais fraco ....... 109
4.4.1 A Sra. E. nos meandros de um poder bufão ................................................. 122
4.5 A Sra. R. ou o diamante pra lá de lapidado .............................................. 128
4.5.1 A Sra. R. e uma lapidação mais que necessária .......................................... 141
PRA DIZER ADEUS, OU QUANDO OS FINS NÃO JUSTIFICAM OS
MEIOS .......................................................................................................... 144
REFERÊNCIAS ............................................................................................ 151
11
PREÂMBULO
Situação 1
Situação 2
diligência, afinal a fuga de Luzia ocorrera a partir de uma ação pensada e sugerida
pelos dois.
Devido à impossibilidade de um acordo quanto à questão, ou quanto à
necessidade de expiação da culpa pelo trabalho (mal) realizado – interpretação essa
apontada pelo psicólogo (claro!) no momento da discussão –, a assistente social
decidiu acompanhar os técnicos da FIA na abordagem a Luzia e seu filho. Outra
experiência inesquecível para ela.
Situação 3
Situação 4
etc. –, conferir a intenção dos habilitados e por vezes questionar o fato de não ter
havido ainda a adoção, principalmente se o postulante se mostrar disponível a
acolher crianças maiores e/ou já tiver recusado indicações feitas pelo Juízo. Para
quem aguarda um bebê, vale somente a indicação do serviço social, que segue
rigidamente uma ‘fila’ de postulantes por ordem de data de habilitação.
Essa postulante, detentora de alto cargo jurídico, já solicitava sua segunda
renovação. Havia recusado duas indicações do Juízo e mostrou-se disposta a
concretizar seu projeto adotivo. A dupla designada para esse segundo procedimento
de renovação era formada pela assistente social que acompanhou a requerente
desde sua habilitação inicial, bem como na primeira renovação de dois anos atrás, e
por um psicólogo que substituía a colega que havia participado dos dois
procedimentos anteriores.
A segunda renovação foi rápida e bastante tranquila. Alguns meses depois, a
postulante recebeu a indicação de uma criança abrigada, a quem começou a visitar.
Os contatos se tornaram mais frequentes e a situação se mostrou bastante
promissora, acompanhada de perto pelo serviço social do Juízo e da instituição onde
a criança se encontrava acolhida. Ambas as equipes foram unânimes em concordar
com o pedido de desligamento da criança do abrigo, que se seguiu a alguns meses
de visitas e finais de semana na companhia da postulante.
Algum tempo depois, uma tsunami varre a vara da infância e juventude: uma
denúncia anônima acusava a postulante de torturar a menina, além de mantê-la
confinada em seu quarto. A juíza que recebe a denúncia decide conferi-la imediata e
pessoalmente, invadindo, com força policial e o apoio de alguns técnicos do Juízo, a
casa da postulante. A situação que se apresenta é muito triste: a criança, assistida
apenas por uma empregada, não falava e se recusava a comer, apresentando-se
com vários hematomas no corpo e os olhos bastante inchados. Após exame de
corpo de delito, que confirma os abusos físicos, a criança é imediatamente abrigada
e a postulante é presa em flagrante.
Seguiu-se então uma avalanche de críticas de toda ordem, principalmente
dirigidas ao trabalho de habilitação feito pelas equipes técnicas do judiciário. A
revista Veja da época trouxe na capa uma foto da postulante com os dizeres O
monstro louro, ou algo do gênero. Criou-se uma imensa onda de revolta por parte da
opinião pública; vários programas de rádio e de televisão foram produzidos para
tratar do tema. Alguns dos maiores jornalistas do país manifestaram sua indignação
18
1 DELIMITAÇÃO DA PROBLEMÁTICA
incompatíveis entre si, para a experiência humana, como também pela leitura
ahistórica das noções de objetividade e subjetividade.
No universo constituído de razões objetivistas versus argumentos
subjetivistas, pretendo refletir sobre as (inclusive auto) exigências a que está
exposto o trabalhador psi no contexto judiciário. Mais do que isso, entendo que o
psicólogo oscile de maneira muitas vezes não consciente entre uma dimensão e
outra, ao naturalizar – e consequentemente aceitar sem questionamento – certas
demandas a ele dirigidas.
Podemos caracterizar a expectativa do judiciário em relação ao trabalho da
equipe técnica em geral – e do psicólogo em particular – sob as rubricas da garantia
e da previsibilidade. Garantir determinada configuração e prever ações futuras,
antevendo sua adequabilidade: eis o afiado e reluzente sabre a apontar
ameaçadoramente na direção dos nossos pescoços.
O Judiciário se considera apto a intervir logo que uma suspeita possa pôr em
risco a integridade de crianças e adolescentes, o que se coaduna com o princípio de
proteção integral preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A
fim de viabilizar o cumprimento das determinações contidas no Estatuto, justificar-se-
iam ações enérgicas, de cunho coercitivo e tomadas a priori, como forma de garantir
proteção e salvaguarda à ideia da criança e do adolescente como sujeitos de
direitos. Para tanto, a instância judiciária lança mão do saber dos especialistas,
convocados a fundamentar a pertinência de suas ações. Em casos de suspeita de
abuso, a psicologia é usualmente convocada a responder a perguntas do tipo Houve
abuso?, Quem é o abusador?, Qual a extensão do abuso praticado?, Qual a sua
gravidade?, Que sequelas psicológicas poderá ter imposto à vítima?. Todas essas
indagações são colocadas dentro de uma lógica linear e objetiva, da qual a
psicologia é convocada a participar de forma igualmente neutra e esclarecedora,
num contexto em que se explicitem vítima, abusador e males causados à primeira –
fatos que justificariam a ação enérgica e punitiva da instituição judiciária contra o
suposto adulto criminoso.
Essa realidade, no entanto, coloca a psicologia frente a impasses que dizem
de seus contornos teóricos e de seus limites éticos. Uma das grandes armadilhas
para o trabalho técnico, muito além de qualquer presunção de onipotência para o
discurso e o fazer psicológicos, é definir com quem está a verdade e predizer sua
efetividade. Uma verdade não passível de questionamento e relativização, de forma
21
então efeito de práticas, discursivas ou não, engendradas, por sua vez, por jogos de
natureza econômica e política. De acordo com Foucault (2010c), as práticas forjam o
aparecimento de objetos que, por sua vez, se constituirão em objetos do
conhecimento, donde a necessidade de discursos capazes de explicá-los,
encerrando-os numa lógica conceitual que justifique a manutenção de sua
materialidade. Apesar de deter-se de forma bem acentuada no estabelecimento do
discurso científico e na constituição das chamadas ciências do homem, Foucault não
está movido pelo interesse em fixar padrões de cientificidade, mas em desvelar a
teia política formada por práticas, discursos que as fundamentam e objetos do
conhecimento assim forjados.
Além da análise arqueológica, outra importante fonte de problematização no
pensamento foucaultiano é sua articulação entre saber e poder, ou seja, de como os
discursos de saber imbricam-se com o poder, formando redes de saber-poder. Essa
vertente do pensamento de Foucault, a genealogia do poder, servirá para a
compreensão de como a construção de saberes presta-se a alicerçar poderes
instituídos. Este ponto da análise teórica é fundamental para o entendimento do
Judiciário como uma instituição de propagação e imposição de uma verdade,
constituindo práticas jurídicas que poderão sistematizar e concretizar esse
presumido interesse geral.
As análises de Foucault (1999) disponibilizam valiosos elementos no sentido
de compreender como o nascimento, no século XIX, da chamada “sociedade
disciplinar” ensejou a reforma e a reorganização da ordem jurídica na Europa e no
mundo. A transformação do sistema judiciário, por sua vez, forjou a reforma e
reelaboração da própria lei penal. Como consequência, temos o aparecimento de
uma nova definição de crime e de criminoso: o crime não deve mais espelhar uma
verdade religiosa ou moral, mas designar aquilo que é danoso à ordem social. A lei
penal deve, então, reparar ou impedir o dano causado à ordem social. A reclusão
aparece então no século XIX como o dispositivo de penalização por excelência,
substituindo outras práticas punitivas, e a prisão surge como o espaço de
cumprimento da pena. Entretanto, mais do que simples espaço, nele se institui a
nova forma de penalizar o crime, instituindo também a figura do criminoso como
aquele que perturbou e ameaçou a ordem pública e a paz social.
Podemos verificar a originalidade do pensamento foucaultiano pela sua
constante (metódica) articulação entre o nível das práticas, dos saberes e dos
29
portanto, nasce no bojo da moral, que por sua vez, segundo a reflexão de Nietzsche,
é incompatível com a vida.
Ainda de acordo com Machado (1999), o conceito nietzscheano de “vontade
de verdade” situa no terreno da crença a pretensa verdade contida nas proposições
científicas. Para Nietzsche, é uma simples crença aquilo que funda a ciência, a
crença na superioridade da verdade. Tal crença seria algo como um exercício
metafísico, por criar um mundo à parte, ideal – o mundo dos axiomas e princípios
ditos científicos, com sua regularidade e suas estáveis leis de funcionamento –,
negando assim o mundo em que efetivamente vivemos. Neste raciocínio, a ciência
evidencia a crença metafísica como seu alicerce, bem como a recusa do mundo real
como seu horizonte. A afirmação pelo discurso científico da superioridade desse
‘mundo verdadeiro’, em oposição ao nosso mundo real, seria, no pensamento
nietzschiano, um sintoma de decadência da própria racionalidade.
A ideia de instituição como um campo no qual se realiza um permanente
embate entre forças instituintes e instituídas, presente no arcabouço conceitual da
análise institucional, parece um bom caminho para não somente desvelar a luta
política presente na instituição, mas para escapar de uma certa ‘tendência
negativista’ que pode restar da apreciação de uma instância tão ‘dura’ quanto o
judiciário. Dessa forma, a noção de instituinte versus instituído poderá conferir
inclusive certa positividade à questão institucional, para além do bem e do mal.
Outros conceitos deverão se agregar: análise de implicações, sobreimplicação,
analisador, entre outros, tais como propostos por Lourau (2004a).
Neste sentido, consideramos o próprio Judiciário como campo de intervenção,
através de uma pesquisa que analise a produção de subjetividade oriunda das
exigências institucionais dirigidas ao trabalho do psicólogo em varas de infância.
Para tanto, a ideia é refletir com os próprios psicólogos acerca do horizonte e dos
limites que percebem no que diz respeito às expectativas quanto ao trabalho que
empreendem, às intervenções que realizam e aos documentos técnicos que
produzem.
Para além da burocracia institucional, que sem dúvida tem sua parcela de
responsabilidade na eternização dos feitos judiciários, sobressai-se um importante
fator de indefinição, a prolongar indefinidamente a sobrevida dessas questões-
tornadas-problema no âmbito da justiça: a convivência paradoxal entre um desejo de
verdade, contido na expectativa de investigação objetiva da situação – que apure e
33
Vivemos tempos nos quais a realidade tem sido questionada nas mais
diferentes dimensões da vida. O conhecimento vem sendo cada vez mais desafiado
no sentido de explicar a realidade, estabelecendo as bases de um saber verdadeiro
sobre as coisas do mundo. A ciência, se por um lado tem visto seus pressupostos e
seu instrumental falharem no ideal de explicar e predizer a realidade, tenta,
paradoxalmente, impor seus modelos descritivos e explicativos e seu instrumental de
captação dos fenômenos. Vivemos um mundo de incertezas, em que, talvez
paradoxalmente, a pretensão de certeza permanece, em maior ou menor grau, em
todas as esferas da vida.
A Teoria Ator Rede (TAR) orienta-se pelo questionamento dos modelos
hegemônicos de pensamento, notadamente aqueles que acreditavam ser o
conhecimento em geral – e o científico em particular – apenas o registro de um
mundo tal como se dá, como uma paisagem estática a ser documentada pela lente
de uma câmera fotográfica. No âmbito das chamadas ciências humanas, a TAR
34
mostra sua pertinência ao propor uma simetria entre categorias concebidas pelo
pensamento hegemônico e tradicional como antitéticas, tais como sujeito e objeto.
No dizer de Ronald Arendt (2010, p. 28), ‘’Na TAR, o social não é algo que preceda
ao indivíduo, ambos negociam sua coprodução, a explicação de um pelo outro’’.
Para o autor, traduzir os pressupostos da TAR para a psicologia revela-se uma
oportuna tarefa, uma forma de superar as dicotomias próprias à ciência clássica,
reproduzidas em geral pelas abordagens psicológicas.
A Teoria Ator Rede propõe uma abordagem construtivista no sentido de
rechaçar modelos que pressupõem a realidade como um dado a priori, neutro e
estático, pronto para ser captado pelas ferramentas objetivas das ciências
experimentais. Em se tratando de ciências do homem, tal modelo mecanicista se
torna especialmente reducionista, uma vez que sequer concebe uma interação entre
o indivíduo a ser conhecido (objeto) e aquele que se dispõe a conhecê-lo (sujeito do
conhecimento). Porém, mais do que mera ferramenta metodológica, é a realidade
ontológica o que está em foco, uma vez que a dimensão humana é concebida na
perspectiva da interação. É somente quando concebemos os atores interagindo que
chegaremos ao dado de realidade, uma rede que se estabelece a partir de
diferentes partes em movimento. Essa rede é por definição uma totalidade plástica e
dinâmica, que se modifica à medida que a interação entre os atores assume
diferentes configurações. Ainda de acordo com Arendt (2010, p. 35), ‘’É neste
espaço que os habitantes assinam totalizações parciais que lhes permitem dar um
sentido provisório a suas vidas’’. É quando adquire sentido a proposta de Bruno
Latour de ‘’seguir os atores’’, acompanhar e registrar suas trocas e suas ações
naquilo que possuem de mais propriamente interativo – e, portanto, coletivo.
Longe de afundar o indivíduo num social que descaracteriza sua
particularidade, precisamente essa dicotomia entre indivíduo e social que é posta em
xeque. O resultado é a busca da singularidade, entendida como efeito das trocas e
da ação humana numa rede de significações. Segundo Rosa Pedro (2010, p. 81), ‘’A
ação aqui adquire uma conotação bastante singular, que não reflete diretamente a
intencionalidade de um ator social’’. A autora cita Arendt (2007), para quem ‘’o ator
instaura um modo de ser tendo em vista a rede’’ (Arendt citado por Pedro, ibidem).
O conceito de Rede se configura como um elemento-chave na TAR, uma vez
que supõe a ideia de todo como uma construção a partir da interação de elementos
heterogêneos. Seus elementos – os atores – vão trilhando caminhos altamente
35
4 Latour (idem, p. 14) evoca a expressão caixa-preta, usada em cibernética para designar e
representar comandos complexos a respeito dos quais “não é preciso saber nada, senão o que nela
(a caixa-preta) entra e o que dela sai.”
37
2.3 Deixar falar o assombro: por uma história viva da prática institucional
discurso científico e ‘fatos’ históricos, já que estes últimos adquirem seu status de
‘fatos’ apenas por meio de um discurso que os constitui enquanto tais”. Neste
sentido, sustenta a autora, nós articulamos (construímos) o passado, não o
descrevemos. Para ela, a chamada exatidão científica, com suas pretensões de
aspirar a uma verdade pretensamente universal, denuncia (ou esconde) interesses
políticos específicos. Gagnebin sustenta que o paradigma positivista de estabelecer
uma única verdade da história, ao invés de afirmar a historicidade, na realidade a
elimina do discurso histórico, por destituí-lo de toda uma dimensão processual que
deveria justamente caracterizá-lo.
Interessante a ênfase no caráter processual do fato histórico, bem como a
relativização (histórica!) da ideia de verdade e a defesa intransigente do “caráter
necessariamente retrospectivo e subjetivo da memória em relação ao objeto da
lembrança” (GAGNEBIN, 2007a, p. 41-42). Mas uma questão se apresenta: como
não cair num relativismo estéril e empobrecedor, em que todas as versões se
equivalem sem nenhum dado de realidade que lhes dê amparo? A autora insiste no
fato de que, se o historiador lida com o relativo, não pode haver uma verdade única
sob o pretexto de estabelecer verificações factuais. Entretanto, Gagnebin não
descarta a noção de verdade no fazer histórico, mas igualmente a relativiza. Trata-
se, segundo a autora, de pensar a verdade como própria a um sistema de referência
que explicite a relação de determinado sujeito a um mundo específico de objetos,
uma alternativa tanto ao que chamou de “relativismo apático” quanto ao positivismo
dogmático. Haveria, portanto, uma fragilidade essencial e intrínseca à memória, que,
longe de denunciar sua inadequação ao discurso historiográfico, serviria para
contrariar “o desejo de plenitude, de presença e de substancialidade que caracteriza
a metafísica clássica”. (op. cit.: 44).
O italiano Alessandro Portelli é outro exemplo de historiador oral preocupado
com a verdade de sua prática. Para ele, a questão não se resolve quando
determinamos de antemão uma verdade a ser perseguida e vivenciada, como uma
noção transcendente e externa ao sujeito, pelo simples fato de que, de acordo com o
autor, “até mesmo erros, invenções e mentiras constituem, à sua maneira, áreas
onde se encontra a verdade”. (PORTELLI, 1997a, p. 25). Ainda que conceba uma
diferença entre imaginação e fato, o autor propõe a primazia da primeira nos relatos
de histórias de vida. Trata-se de reconhecer, no trabalho da história oral, a
interferência de “múltiplas abordagens à verdade”, o que estabelece uma
49
Ford Coppola, que, ao filmar “O fundo do coração” (One from the heart, Zoetrope
Studios, 1982), sentiu a necessidade de recriar em estúdio a cidade de Las Vegas,
onde se passaria a história. Quando o estúdio questionou essa decisão, que criava
problemas de várias ordens – além do vultoso incremento nos custos de filmagem –,
indagaram-lhe se a cidade ‘original’ já não seria suficientemente artificial para a
atmosfera que Coppola pretendia imprimir ao filme. A resposta do cineasta, um
notório ‘estourador’ de orçamentos, foi no mínimo intrigante: Coppola simplesmente
retrucou que quanto mais artificial Las Vegas lhe parecesse, mas se sobressairia a
verdade de seu enredo.
Sabe que, como poeta, sinto; que, como poeta dramático, sinto
desapegando-me de mim; que, como dramático (sem poeta), transmudo
automaticamente o que sinto para uma expressão alheia ao que senti,
construindo na emoção uma pessoa inexistente que a sentisse
verdadeiramente, e por isso sentisse, em derivação, outras emoções que
eu, puramente eu, me esqueci de sentir (Pessoa, citado por ALBERTI, op.
cit., p. 161). Grifos meus.
Alberti considera que Pessoa mostra por exacerbação, através de seu “drama
em gente”, a impossibilidade de unificação do que costumamos chamar de eu: “o
que predomina em nossas vidas diárias, memórias, projetos e futuros, é a ilusão de
unidade do eu, que, de tão arraigada, deixa de ser ilusão e passa a ser a coisa
dada” (ALBERTI, 2004, p. 166). A autora considera que esse “esfacelamento do
sujeito” é próprio da Pós-Modernidade. Trata-se de uma grande discussão, que
neste momento não nos compete realizar, mas apenas evocar como forma de
conceder fundamento à ideia dos interlocutores-heterônimos: diferente de Pessoa,
eles têm existência externa; tal como em Pessoa, eles sentem e registram uma
experiência que não se esgota em suas respectivas individualidades, mas se situa
num espaço comum a determinado contexto sócio-político.
O entrevistador, à maneira de um historiador oral – e se não soar demasiado
pretensioso... – é mais do que apenas aquele que colhe dados, ele se faz presente
na experiência, é parte da problemática e assim se coloca desde sempre. Partindo
de hipóteses iniciais, procurei questionar os colegas a respeito de seus processos de
trabalho naquilo que ultrapassa as meras determinações teóricas e técnicas, como
forma de chegar ao registro de um universo institucional repleto de intenções,
ordenamentos e imperativos, um universo que se localiza e presentifica a todo
instante nas relações internas e nas demandas dirigidas às equipes técnicas. Eis o
motivo de tê-las constituído – as relações internas no âmbito do poder judiciário –
como um potente analisador dessas forças de natureza político-institucional.
A seguir, uma apresentação desses depoimentos-trocas, chamados de
relatos selvagens e apresentados na seguinte ordem: A Sra. P. e a escrita
paralisada; A Sra. O. e a prática aterrorizada; O Sr. D. ou o elefante e as
formiguinhas; A Sra. E. ou a corda que sempre arrebenta para o lado mais fraco; A
Sra. R. ou O diamante pra lá de lapidado.
As iniciais dos interlocutores-heterônimos tiveram como inspiração, além da
óbvia formação de palavra, o Sr. K. de O processo, de Franz Kafka, cuja
estupefação diante dos meandros e da arbitrariedade do poder pareceu uma potente
representação da realidade cotidianamente vivida no âmbito interno do Judiciário.
Optamos por apresentar em itálicos os trechos das entrevistas, diferente dos
comentários, registrados em caracteres comuns.
57
Entrevistador: Como você já sabe, essa nossa conversa faz parte da minha
tese de doutorado, onde pretendo refletir sobre incômodos que envolvem
processos de trabalho. Será uma conversa confidencial, que inicio te
perguntando sobre a tua trajetória. Uma coisa importante: não pretendo
psicologizar nada, nem a respeito da problemática que estou enfocando
nem a respeito das pessoas que estou entrevistando. A minha ideia é fazer
uma leitura institucional desses processos de trabalho, desse mal-estar.
Sra. P.: Bom, eu era psicóloga clínica e também atuava na área da Saúde.
Eu tinha um cargo burocrático, mas consegui com o tempo ficar desviada de
função e trabalhei por um monte de anos como psicóloga em um grande
hospital. Eu estava na faculdade, fiz o concurso da Saúde e passei. Passei
a trabalhar na parte burocrática até ser desviada de função e atuar como
psicóloga.
Entrevistador: Seu cargo era de nível médio?
Sra. P.: Sim. Mas nunca houve prova de ascensão, nem tinha havido prova
para o cargo de Psicólogo. Eu estava me preparando para outro concurso,
agora de Psicólogo na Saúde, quando me chamaram para o TJRJ.
Entrevistador: E você fez esse concurso da Saúde?
Sra. P.: Na verdade, nunca abriu. Desde a época da faculdade até o TJ me
chamar, em 2005, nunca houve esse concurso, nem interno nem externo. E
nessa época o nível médio pagava bem, comparado ao cargo de psicólogo
do Município ou do Estado. E ainda aconteceu de eu poder trabalhar como
psicóloga, desviada de função. Eu trabalhei muito em ambulatórios clínicos,
trabalhei em CTI. E eu me sentia enxugando gelo (risos).
Sra. P.: Porque o drama maior era a pessoa ficar esperando uma cirurgia
que não acontecia, a pessoa ficava dias esperando e não chegava ninguém
pra dar uma resposta. Era o que mais pesava. O meu trabalho era mais
humanizar as relações. Mas eu acho que trabalhar num hospital era mais
sofrido do que trabalhar na Justiça.
Entrevistador: Por que você diz isso?
Sra. P.: Pela questão da morte. No TJ há sofrimento intenso, mas as
pessoas estão vivas. No hospital, quando passei a trabalhar no hospital –
porque antes eu atuava mais em ambulatório – eu tive uma experiência
muito difícil de doença na família, estava ainda muito envolvida com isso.
Talvez isso tenha gerado um impacto maior. Nessa época em que eu
comecei a fazer concursos, fiz um pra Saúde de outro município do Rio,
eram duas vagas. Não entrei. Aí logo em seguida teve o concurso do TJ, o
salário era muito bom. Foi o primeiro concurso, mas não consegui passar,
estava com filhos pequenos, era muita matéria de Direito, tudo muito
diferente. Eu fazia um cursinho preparatório e queria questionar o professor.
Ele dizia: “não adianta questionar, vocês têm que decorar!” (risos). Eu até
58
tive uma boa pontuação, mas fiz para a capital e não deu. Mas no segundo
concurso eu fui chamada. Eu nunca tinha atuado na área de psicologia
jurídica. Aí a gente vai aprendendo com um, com outro, fala com a
assistente social, pega relatórios pra ler, vai fazendo. A grande questão pra
mim, que eu fico pra morrer, acontece desde que se criou essas ETICs6
Nosso trabalho demanda um tempo, um número de intervenções, e a gente
não tem tempo pra isso.
Entrevistador: Mas você não acha que a gente tem alguma liberdade para
requisitar esse tempo, caso ache necessário?
Sra. P.: Liberdade a gente tem. Mas a gente não consegue, porque está
aumentando muito a quantidade de processos que a gente recebe.
Segundo, porque todo mundo sabe que são poucos os profissionais, aí cria-
se a ETIC, eu acho um absurdo esses deslocamentos que a gente foi
obrigada a fazer. O que me mata mais é a tal da produtividade. E tem
muitos colegas que não questionam isso. Eu tenho até um exemplo de uma
pessoa que não é da psicologia, é do serviço social. Ela passou por várias
perdas, várias situações difíceis na família, e acabou pirando. Ela largou
todos os processos. Isso cria um problema pra gente: se a gente não
colocar essa pessoa à disposição do NUR, a gente não recebe outro
profissional pra substituí-la. Olha que situação: essa pessoa sempre
trabalhou muito bem, adorava o local de trabalho, teve várias perdas na
família e ainda vai perder a lotação?
Entrevistador: O que você acha disso?
Sra. P.:.Eu acho que é aquela coisa de produzir, produzir, e acaba
passando por cima de tanta coisa! Até nos atendimentos com as partes... eu
acho que isso diz respeito ao próprio sistema da Justiça, são tantas
audiências, as coisas vão passando, às vezes nem se lê o processo direito.
Sra. P.: Uma vez eu fiquei muito frustrada, logo no início. Eu peguei um
caso em que o cara pedia visitação ao filho e estava disputando a guarda.
Ele era completamente doido, se drogava. Ele e a ex-mulher tinham um
relacionamento horrível. O filho tinha dois anos. A avó da criança falava que
o ex-casal tinha um relacionamento patológico, ele era uma pessoa muito
problemática por vários motivos. Eu pensei até em acionar o Conselho
Tutelar pra abrigar essa criança quando o casal voltou a ficar junto.
Entrevistador: Mas do que você está reclamando? Das características do
caso ou do destino que foi dado?
Sra. P.: Ah, do destino que foi dado.
Entrevistador: E qual o destino que foi dado?
Sra. P.: O processo foi arquivado. Não houve uma determinação de
providências, nenhuma sugestão de acompanhamento, nada. E eu tive um
De fato, faz parte do “folclore” das equipes técnicas – folclore esse que é pura
realidade – aquele profissional que declara: “eu faço o que o juiz manda”, como se
não coubesse ao profissional delimitar, na intervenção, os limites e as possibilidades
de seu trabalho. Já tive acesso a casos em que o profissional chegava a aplicar
60
7 Dá-se o nome de assistente técnico ao perito contratado por uma das partes a fim de questionar o
trabalho do perito judicial. Esse técnico contratado pode eventualmente conduzir uma perícia sua,
independente, cujo laudo será apensado aos autos.
62
8 Os chamados desvios de função, apesar de irregulares do ponto de vista administrativo, são uma
alternativa à falta de determinado profissional em um setor. No caso do TJRJ – e imagino que em
outros tribunais – esses desvios eram relativamente comuns antes da chegada dos profissionais de
Psicologia, após o primeiro concurso. A Sra. P. se refere ao desvio de função como uma situação
insegura e desconfortável, na qual o profissional pode ser subitamente destituído de suas atividades
e restituído às funções ou ao setor de origem.
63
formação. Mas aí eu tive filhos e não tinha mais grana pra pagar quatro
vezes por semana.
Entrevistador: Eu acho que não suportaria fazer uma análise quatro vezes
por semana. Era possível de pagar?
Sra. P.: Ela dizia que devia ser quatro vezes e me fazia muito bem assim.
Na época eu podia pagar porque morava com meus pais. Mas com o tempo
foi diminuindo (risos). Depois que eu parei, eu nunca voltei pra fazer a
formação. Mas eu voltei pra análise depois, mas não mais quatro vezes.
Isso era coisa da época, naquela época se fazia quatro vezes, se
interpretava adoidado (risos). Mas formalmente eu nunca me especializei
em psicanálise. Quando eu entrei pro TJ, senti falta de algo que me
possibilitasse trabalhar mais objetivamente. Então procurei um curso de
terapia de família. Eu comecei, mas também não concluí esse curso. Não
consegui escrever a monografia de fim de curso, por isso que te digo que
meu problema não é só com o relatório. Tem uma coisa que eu gosto muito
de trabalhar no TJ é com adoção, eu me sinto cegonha (RISOS). Talvez por
ser o trabalho em que você mais perceba o quanto aquilo pode ser
importante na vida de alguém. Sempre trabalhei na Habilitação. Não que
não possa dar errado, isso acontece. Comigo só deu errado uma vez.
Entrevistador: Só uma?
Sra. P.: Mas lá não são tantos casos quantos são aqui na capital. Só temos
vinte habilitados no Cadastro.
Entrevistador: Só vinte? Entre solteiros e casados?
Sra. P.: É. Mais casados do que solteiros, agora tem aumentado muito.
Acho um trabalho tão interessante, encontrar uma família minimamente
estruturada pra receber uma criança.
Entrevistador: Você ia falar de um caso de adoção que não deu certo.
Sra. P.: Foi de uma pessoa que, por ocasião da Habilitação, queria uma
criança maior (adoção tardia). Encontrou duas meninas, irmãs. Oferecemos,
ela aceitou as duas. As meninas começaram a aprontar e ela não teve
paciência.
Entrevistador: Ela devolveu as crianças?
Sra. P.: Não, ainda estava na fase de aproximação, as crianças não
chegaram a ir morar com ela. Mas mesmo nessa etapa de aproximação, a
gente começou a reparar algumas coisas inadequadas, tipo ela ir ao abrigo
e se encantar com outra criança. Nesse meio tempo, alguém de outra
comarca indicou outra criança pra ela. Quando a gente soube, ela já estava
levando essa outra criança pra casa. Ela ficou com essa outra criança. Só
que depois veio a Carta Precatória da outra comarca, solicitando que a
gente fizesse avaliação (acompanhamento pós-adoção) dela. No início
estava tudo bem, mas aí apareceram algumas dificuldades. A gente
acompanhou, tentou fazer encaminhamentos. Mas aí chegou num ponto em
que ela devolveu essa criança. Me deu uma raiva, uma vontade de
esculhambar (risos).
Entrevistador: Mas você se sentiu mal no sentido de atribuir alguma coisa
a você em relação a esse desfecho?
Sra. P.: Não, acho que isso podia acontecer, foram tantas habilitações que
eu fiz. Eu fiquei com raiva dela (risos). Me livrei do problema da seguinte
forma: a culpa é dela! (risos).
Entrevistador: A equipe onde você está costuma interagir? Faz discussão
de caso?
Sra. P.: Não. Na realidade, a equipe manteve a estrutura separada,
dividindo as várias comarcas que estão sob a responsabilidade da nossa
ETIC. A gente só se encontra eventualmente, mas não consegue sentar
para discutir casos. Mas eu estou mais em contato com as duas colegas
que trabalham diretamente comigo. Acho que tive muita sorte, me dou muito
bem com elas, com quem posso dividir o peso do trabalho. Existe
solidariedade.
Entrevistador: Entre a Saúde e o Judiciário, o que é melhor? O que é mais
suportável? O que te moveu nessa mudança?
65
Sra. P.: No meu caso era desvio de função na Saúde, eu não era
oficialmente psicóloga. Volta e meia havia tentativas de tirar as pessoas
desviadas de função, tinha esse estresse. E numa dessas, teve uma
diretora horrorosa que conseguiu retirar todos os desviados de função. Aí
eu fui para outro setor, era um lugar bom. Mas eu fiquei tão irada, foi na
época do concurso do TJ. E tinha, claro, a vontade de me aposentar com
um salário melhor, né? Fora a segurança, diferente da realidade do
consultório.
Entrevistador: O que você achava que ia fazer no Judiciário?
Sra. P.: Mais ou menos o que a gente faz. Mas não tinha muita noção.
Alguém chegou a me dizer que, caso eu entrasse para o Judiciário, eu teria
que escrever relatórios. Mas eu não pensei que seria tão difícil. Parece que
você está sempre carregando o trabalho. Você sai de férias, deixa relatórios
pendentes. Se tem fim de semana, tem que escrever relatórios, isso é muito
penoso. Na Saúde, não tinha isso. Acabou o expediente, acabou mesmo.
Nosso cargo exige tanto conhecimento! São tantas as situações pra gente
dar conta. Você pega violência, interdição, a parte psiquiátrica.
Entrevistador: muito conhecimento que é exigido?
Sra. P.: Sim.
Entrevistador: Se na Saúde você tivesse um salário melhor e não fosse
desvio de função...
Sra. P.: É claro que eu teria ficado lá (risos).
Sra. O.: Bom, o meu mal-estar é atender abuso sexual. O meu mal-estar
específico é esse. É claro que há outros, como quando a gente percebe que
o juiz quer que a gente dê respostas prontas, como nas varas de família: “a
criança deve ficar com o pai ou com a mãe?” Na minha forma de ver, a
gente tem que dar um apanhado da situação, da dinâmica da família, mas a
decisão caberia ao juiz. Então às vezes é incômodo quando a gente
percebe que o magistrado quer uma resposta pronta.
Entrevistador: No que esse pedido de “resposta pronta” te incomoda?
Sra. O.: É incômodo porque eu acho que a posição do psicólogo não é de
decisão, que é função do magistrado, na minha opinião. A gente não
aprendeu a fazer isso na faculdade. É claro que eu já fiz relatórios com
sugestões em relação à guarda, por exemplo. Mas quando eu faço isso é
porque eu tenho uma convicção sobre o que estou falando, mas não estou
decidindo nem quero decidir nada. A gente sabe que os juízes, na maior
parte das vezes, seguem o que a gente coloca, porque eles não estão a par
da situação. E quando é uma situação em que você percebe que a criança
pode ficar bem com um ou com outro, eu acho que se deve colocar o que se
percebeu sobre a criança naqueles dois contextos, paterno e materno. Mas
a decisão caberia ao magistrado, acho que o mal-estar é esse, tomar uma
decisão, e a gente não está aqui pra isso, a gente está aqui pra assessorar
o magistrado, mas do ponto de vista da dinâmica familiar, da questão
psicológica que envolve aquelas famílias.
Sra. O.: Sem dúvida, acho que sim. Responsabilidade minha como
psicóloga, de saber que sou eu que vou decidir aquela situação pesa sim,
pesa muito. Mas é como te falei,quando eu formo uma convicção (...) já fiz
relatórios em que estava claro que era muito mais adequado para a criança
ficar com um do que com outro. E eu coloquei minha sugestão claramente,
não hesitei não.
Entrevistador: e por que nessas situações não houve incômodo?
Sra. O.: Olha, realmente nessas situações eu nem pensei em incômodo, eu
simplesmente coloquei, sem hesitar. Se eu hesitasse, me sentiria culpada
por não emitir minha opinião técnica sobre o que eu considerava melhor
para a criança, e talvez eu a colocasse numa situação de risco ou algo
parecido, se o juiz tivesse que decidir na hora pelo pai ou pela mãe. Mas
acho que nós psicólogos é que temos que fazer, não é todo mundo que
pode fazer isso não. Mas além da teoria, da técnica, sempre vai uma
questão nossa. Na nossa sugestão sempre vai algo nosso. Mas realmente é
um risco, é uma responsabilidade, eu posso não estar colocando o que é
melhor para a criança.
Entrevistador: pelo que eu entendi, em algumas situações específicas,
parece não ser tão incômodo pra você...
Sra. O.: Sim.
Entrevistador: Mas em outras é. Você poderia fazer uma diferença entre
uma e outra situação?
Sra. O.: Bom, eu tô lembrando muito de casos de família. Numa situação
em que os dois pais eram adequados eu não coloquei com quem a criança
deveria ficar, eu falei da situação da criança com os dois genitores.
Entrevistador: Mas o juiz se irritou com isso?
Sra. O.: Não, não, nunca se irritou, fiquei quase cinco anos em família,
infância e juventude e nunca tive problema. Numa situação de guarda
internacional, a mãe foi pra Itália e depois de bastante tempo queria levar os
dois filhos que tinham ficado aqui. Os dois filhos, de pais diferentes, tinham
ficado um com os avós, outro com o pai. Eu me lembro que o meu juiz
estava inclinado, porque ela tinha um advogado particular, a dar a guarda
pra essa mãe pra ela levar as duas crianças, aliás, uma criança e um
adolescente. Eu me lembro que conversei muito com meu juiz a respeito. Eu
fazia supervisão na época com (cita o nome do profissional). Na minha
sugestão, eu coloquei que as crianças ficassem no Brasil, porque a ida ia
mudar toda a vida delas, além dessa mãe não ter segurança financeira na
Itália, ela me pareceu viver uma situação muito instável por lá. O pai queria
que o filho ficasse com ele, porque já estava há muitos anos. E a filha
pequena estava com a avó materna. Essa avó falava que era para ela levar,
se era isso o que ela queria. Mas na verdade eu sugeri um período pros
dois filhos ficarem na Itália nas férias, em dezembro e janeiro. Mas não era
isso o que ela (a mãe) queria, de jeito nenhum, e o meu juiz estava inclinado
a dar a guarda de vez à mãe. E eu coloquei que não. Ele (o juiz) liberou a
menina pequenininha, mas o adolescente ele manteve a guarda com o pai.
A menina não tinha um pai presente, mas o rapaz tinha. Eu lembro que
nesse processo eu fiquei bastante preocupada com a presença do
advogado, não com a minha posição, mas com a interferência desse
advogado. O juiz seguiu minha posição em um caso, mas no outro ele não
seguiu não. A interferência do advogado é que me preocupou.
Entrevistador: E no que esse advogado foi incômodo?
Sra. O.: Ele manipulava principalmente o adolescente, mandando o
adolescente escrever cartas que ele juntava ao processo, cartas dizendo
que ele não queria mais falar comigo. Cartas em que o adolescente dizia
que queria ir com a mãe. Aqui ele tinha regras rígidas com o pai, lá a mãe
vislumbrava uma liberdade que ele não tinha aqui. Então o advogado fez
72
10
essa manipulação. E depois, no final, ele pediu pro juiz impugnar o meu
laudo, aquelas coisas de sempre. Mas o juiz foi contra, disse que confiava
plenamente na equipe. Esse manipulação me fez sofrer muito, o
adolescente conversava comigo de uma maneira e depois ele estava de
outra maneira. Isso me fez sofrer, mas mantive a posição (risos).
Entrevistador: e no final das contas aconteceu...
Sra. O.: Do juiz liberar a menininha pra guarda materna e a mãe levar pra
Itália. Mas o rapaz não, o juiz liberou pra ele passar todas as férias na Itália
com a mãe, mas a guarda continuou com o pai. Foi essa a decisão.
Entrevistador: Você estava convicta?
Sra. O.: Eu estava convicta.
Entrevistador: E se o juiz desse cabimento ao pedido do advogado no
sentido de impugnar o teu laudo? Como você acha que se sentiria?
Sra. O.: Acho que todos nós ficamos desconfortáveis, eu nunca passei por
isso. Acho que acontece um processo no CRP.
Entrevistador: Só pela impugnação do laudo, não necessariamente o
processo vai parar no CRP.
Sra. O.: Sim, a impugnação é decisão do juiz. O meu juiz foi contra. Como é
que eu me sentiria? (...) deve ser muito desagradável, porque você se
considera uma pessoa em quem o seu juiz confia. Mas sei que isso deve
acontecer comigo um dia, porque acontece com tanta gente...acho que
seria muito ruim, se fosse um processo (no CRP) aí seria muito pior.
Entrevistador: Mas como você se sentiria?
Sra. O.: Como eu me sentiria? (...) Ai, eu me sentiria mal, muito mal (risos).
Porque eu tenho uma coisa de tentar ser muito responsável. Eu fiz
supervisão nesse caso. E eu estando convicta de uma coisa e o meu juiz
ficar a favor do advogado e consentir com o pedido de impugnação do meu
laudo, eu ia me sentir (...) incompetente talvez não, porque eu continuaria
com aquela certeza. Eu ficaria (...) ai, não sei.
Entrevistador: você falou em incompetência...
Sra. O.: É, talvez seja. Mas incompetência na visão dele (o advogado), e ele
não é a pessoa mais adequada para me avaliar. Eu confiaria mais em todo
o trabalho de supervisão que eu tinha feito. Eu me sentiria mal com o juiz,
caso ele aceitasse o pedido de impugnação do laudo, porque eu iria
entender isso como perda de confiança no meu trabalho.
Entrevistador: Quem você entende como o destinatário do seu trabalho?
Sra. O.: O destinatário é o juiz.
Entrevistador: E isso cria algum incômodo pra você?
Sra. O.: Em alguns processos pode ser incômodo, em outros eu me sinto
muito à vontade pra dar uma opinião. Mas incômodo também se refere ao
fato da gente abrir tudo o que a gente levanta dos atendimentos para uma
outra pessoa, o juiz. E olha que eu deixo de colocar muita coisa no relatório!
Coisas que eu considero que não vão fazer diferença na situação específica
que originou o processo. Mas a gente acaba contrariando aspectos de
nossa ética, não sei, coisas que no consultório a gente não faria. E aí a
gente expõe a vida das pessoas num pedaço de papel. A gente expõe a
vida das pessoas pra uma outra decidir sobre a vida delas. Mas é aquela
coisa, se elas (as partes) não conseguiram decidir, vai ter que vir um
terceiro e decidir por elas, não tem jeito. Aí é como se a gente dissesse:
“gente, vamos ter que expor a vida de vocês, já que vocês não conseguiram
decidir a vida de vocês”. Mas na vara de infância é um pouco diferente, ali é
geralmente denúncia de maus tratos, negligência. Aí é diferente, você vê
crianças em situação de risco, sendo maltratadas, você não tem escolha,
você vai ter que proteger de qualquer maneira. Eu já peguei criança com
marca de queimadura, com marca de colher quente, esse processo corria
na Criminal, o pai foi indiciado por crime de tortura. E ele ficou preso,
10 A entrevistada se refere à solicitação que o advogado de uma das partes pode fazer ao juiz, no
sentido de impugnar o laudo psicológico, ou seja, anular, tornar sem efeito as suas conclusões.
Essa solicitação pode ou não ser acatada pelo magistrado.
73
torturou vai ter que ficar preso mesmo. Essas situações talvez não me criem
tanto incômodo. É horrível atender e ver o sofrimento da criança, mas é isso
o que temos que fazer.
Entrevistador: Me deixa retomar uma fala sua. Você me disse que o
judiciário tem que intervir quando as pessoas não conseguem decidir. Você
acha que o Judiciário também tem condições de acolher as pessoas quando
elas podem decidir?
Sra. O.: Acho que isso tem acontecido de pouco tempo pra cá com as
mediações, essa coisa de fomentar a autonomia. O que eu sei de mediação
é a ideia de dar voz às partes, às vezes até antes de constituir um processo
judicial. A ideia é que as duas partes sejam contempladas. Sei que a
mediação está crescendo no Judiciário.
Entrevistador: Mas no teu trabalho, você acha que há um incentivo à
autonomia?
Sra. O.: No geral, não acho que o judiciário fomente autonomia não...
Entrevistador: Então o Judiciário fomenta o quê?
Sra. O.: A história nem é de fomentar autonomia, porque a gente não existia
aqui até há bem pouco tempo. O juiz decidia com base em nem sei o quê.
Imagina ter que decidir uma guarda praticamente sem elementos, era só
uma petição em que o pai falava que a mãe batia na criança, a mãe devia
falar o mesmo do pai e aí ficava difícil de saber quem falava a verdade
(risos). Com a nossa inserção aqui, eu nem sei se querem que a gente
fomente autonomia. O que eles (os juízes) querem é que a gente responda:
“vai ficar com o pai ou com a mãe, pra gente acabar logo com isso?” E aí
não se leva em questão nenhuma autonomia, nem o movimento das partes
de se questionarem.
Entrevistador: E você disse que “ficava difícil saber quem falava a
verdade”. Será esse o nosso papel?
Sra. O.: Não, mas acho que o juiz devia pensar assim, ver quem está
mentindo menos. Mas o papel da gente (...) a verdade (...) essa palavra é
forte pra caramba. Eu não sinto que eu capte a verdade de quase nada, ou
de nada mesmo.
Entrevistador: Como você se sente em relação a isso?
Sra. O.: Ah, é ruim! Mesmo eu tendo te falado que às vezes eu sinto
segurança em sugerir determinada guarda, não é a verdade que está em
jogo, a gente não lida com a verdade. A verdade muda, uma hora é uma
situação, outra hora é outra situação. Talvez seja por isso que cause tanto
incômodo na gente, porque não trabalhamos com verdade e mentira.
Trabalhamos sempre com o improvável, com o que pode acontecer a
qualquer momento. A gente trabalha com o incerto, e acho que isso traz
muita angústia pra gente. Muita, sempre.
Entrevistador: E por quê?
Sra. O.: Ah, sei lá, a gente se pergunta: “será que fiz certo, será que fiz
besteira?” “será que a criança está bem, será que ela está em risco?” Às
vezes a gente se pega pensando em processos, se perguntando como deve
estar a criança. Agora, na CPMA (Central de Penas e Medidas Alternativas)
já aconteceu de eu colocar o “sem contraindicação ao encaminhamento
11
para instituição” , e certa vez aconteceu, eu tinha entrevistado essa
pessoa, não lembro o crime que tinha cometido, acho que com arma, que é
o que mais tem. Esse cara foi para a instituição e depois de um ano
estuprou uma moça lá.
Entrevistador: E você?
Sra. O.: Olha, foi ruim. Os próprios funcionários dessa instituição falaram
“poxa, isso pode prejudicar convênios futuros, ninguém mais vai querer
trabalhar com marginais”, é assim que eles falam. É ruim porque fui eu que
coloquei que o cara podia ir para a instituição, né? Mas, ao mesmo tempo,
na Central de Penas você não faz estudo (avaliação), não tem como fazer
porque a demanda é muito grande. E eu fiquei mal. Não tem como não ficar,
foi uma coisa violentíssima que aconteceu. mas eu acho que a gente está
sujeito a isso, qualquer um de nós pode passar por isso. Não tem como a
gente traçar um perfil de que aquela pessoa que a gente está
encaminhando pode vir a estuprar alguém, ou a roubar, caso não conste
furto no histórico funcional dele. Já aconteceram furtos em instituições.
Graças a Deus, isso acontece muito pouco. Esse foi o mais grave que já
aconteceu.
Entrevistador: Você se sentiu...
Sra. O.: Mal, muito mal, um pouco responsável. Mas vou ser franca com
você: não me senti totalmente responsável porque tenho consciência de
isso pode vir a acontecer. Mas eu me senti responsável: se abrir o processo,
tá lá a minha letra.
Entrevistador: Se você me diz que se sentiu um pouco responsável, eu
posso dizer que pelo menos em parte você achou...
Sra. O.: Que eu podia ter evitado! Sim, eu achei.
Entrevistador: Você também me disse que nesses casos só há um
encaminhamento institucional, porque vocês não têm tempo de fazer um
Estudo. Você acha que se tivesse feito o Estudo...
Sra. O.: Talvez, (...) não, não, eu não poderia ter previsto isso não.
Entrevistador: Você acha que o Judiciário de alguma forma nos ‘empurra’
para nos sentirmos responsáveis por essas coisas?
Sra. O.: Acho que sim. Acho que sim.
Entrevistador: Estou sugerindo essas coisas com base naquilo que você
me diz. Será que existe um Estudo Psicológico que consiga ‘detectar um
estuprador’?? Que consiga antever uma ocorrência de estupro como essa
que houve? Será que existe um ‘psiquismo estuprador’ que possa ser
previamente apontado? Agora, você acha que o juiz tem esse tipo de
expectativa?
Sra. O.: Ah, tem sim! O juiz nem me chamou, não me disse nada. Mas se
ele tivesse me dito algo eu ia me sentir muito mal. Já pensou se ele me
chama e me diz: “você escreveu na ficha do cara ‘sem contraindicação’.
Olha o que aconteceu!” Se o juiz tivesse feito isso, aí eu ia desabar. Já
pensou, o meu juiz dizendo “você foi a responsável!” ? Eu me sentiria,
nossa, muito mal!
Entrevistador: E você se sentiria mal por achar que você tinha a obrigação
de...
Sra. O.: (interrompendo) De fazer aquilo que ele estava apontando. Mas ele
não me responsabilizou pelo que aconteceu, pelo menos não falou comigo.
Nem chamou a equipe. As assistentes sociais também participam desse
processo, mas elas não se posicionam no sentido do encaminhamento.
Somos nós que decidimos por encaminhar a pessoa e passamos para elas
só depois que a gente sugere o encaminhamento institucional.
Entrevistador: Então você me diz que existe uma diferença não somente
em relação à natureza do trabalho, mas também quanto às expectativas que
são criadas tanto para o trabalho do psicólogo quanto do assistente social.
Sra. O.: Sei que em outras CPMAs se trabalha diferente, onde as
assistentes sociais fazem todo o processo sem passar pelo psicólogo. Tem
CPMAs em que os processos são divididos entre os membros das equipes,
e quem pega o processo faz tudo do começo ao fim, não interessa se é
assistente social ou psicólogo. Mas na nossa Central a gente trabalha de
forma integrada.
Entrevistador: Mas na sua Central quem diz que o apenado pode ser
encaminhado para a instituição é o psicólogo...
Sra. O.: Sim, somos nós. Mas trabalhamos juntos, ao contrário de outras
centrais onde os processos são atendidos somente por psicólogo ou
somente por assistente social. Os processos são distribuídos aleatoriamente
entre os membros da equipe.
75
12 A Sra. S. aqui se refere à realização dos estudos técnicos, o que é determinado pelo magistrado e
é sua prerrogativa, decidindo por sua necessidade.
76
13 O servidor do TJRJ é chamado de readaptado quando muda de setor e/ou atividade em função de
determinado impedimento, geralmente ligado a questões de saúde.
77
15 São os chamados bonecos anatômicos, dotados de órgãos sexuais, geralmente uma família toda
– pai, mãe e filhos. São usados nos tais estudos de revelação de abuso e são também objeto de
muitas críticas pelos técnicos contrários a essa abordagem
80
Sra. O.: Sim, sim! Exceto um caso, que eu lembro muito, em todos os
outros eu coloquei que havia indícios. Um único eu coloquei que não,
porque a criança foi muito incoerente, era uma menina já com nove anos e
eu coloquei que não havia indícios. E eu me lembro que fiz supervisão
desse caso e minha supervisora colocaria que sim. Foi o único caso em que
eu não concordei com ela e coloquei no meu relatório que não via indícios
de abuso. Você acredita que esse caso até hoje vem na minha cabeça?
Não sei qual o resultado, qual foi o posicionamento do juiz, a gente quase
nunca fica sabendo. Mas eu me pego perguntando “será que essa menina
estava sendo abusada, e eu coloquei que não? será que o juiz manteve
essa menina na companhia do padrasto (o acusado de abuso) e essa
menina está sendo abusada até hoje?”
Entrevistador: Entendo que você está sofrendo por conta de uma
expectativa que a instituição faz em relação ao seu trabalho e que você
também acaba se fazendo, a de desvelar a verdade factual desses casos.
Acho que aí o psicólogo se torna um pouco investigador, funciona como
parte do processo de apuração da verdade objetiva: “eu preciso desvendar
o que aconteceu, se aconteceu, como aconteceu, quem fez”.
Sra. O.: Mas imagina se depois alguém visse a menina ser abusada e o
processo voltasse pro judiciário. Iriam dizer “mas a psicóloga disse que não
houve abuso”. Se acontecesse isso, eu ia ter certeza de que tinha errado.
Imagina como eu ia me sentir? Eu me sentiria responsável, porque o juiz
seguiu o que eu escrevi e a criança continuou com o padrasto.
16 FOUCAULT, M. “A lei do pudor”. In:_______, Ditos e escritos, volume IX: genealogia da ética,
subjetividade e sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.105
81
Sra. O.: Então não vou mais me colocar num lugar desses droga nenhuma!
(risos). Eu fiquei quatro anos nessa posição, eu tinha que falar, me
pronunciar sobre a existência do abuso.
Entrevistador: Você passou quatro anos na posição de quem se
considerava a única responsável por definir a situação, e aqui definir a
situação quer dizer definir a realidade do abuso e a condenação.
Sra. O.: É.
Entrevistador: E responsável também pelo destino da criança, olha que
arapuca! (risos). Isso é insuportável mesmo!
Sra. O.: É sim! É como se nem a mãe da criança fosse tão responsável
quanto eu pelo destino dela. Nesse caso que te contei, a mãe não
acreditava na filha. A mãe estava com um companheiro que a filha acusava
de abusar dela, e a mãe não acreditava na menina. É como se eu fosse a
única responsável por essa menina.
Entrevistador: Pois é, a menina tem mãe, tem parentes, tem vizinhos, e é
você que...
Sra. O.: Sou eu que sou mais responsável por ela do que todo mundo. É
assim mesmo que me sinto, exatamente assim.
Entrevistador: A minha hipótese é que a gente é colocada nessa posição,
e a gente aceita essa posição! E a gente sofre e às vezes adoece quando a
gente percebe a impossibilidade de corresponder, mas a gente ao mesmo
tempo QUER corresponder a isso.
84
Considero que este pode ter sido outro momento de certo “desprendimento de
si” por parte da entrevistada, que pôde, a partir das reflexões suscitadas pela
situação de encontro vivida, questionar as bases de sua prática através da
introdução de novos elementos de análise, onde antes apenas havia, possivelmente,
a necessidade de corresponder a demandas, além do sofrimento decorrente do fato
de não se considerar altura de expectativas externas. Thomson aponta para o
empoderamento obtido da prática de uma entrevista interativa e intervencionista;
segundo o autor, “refugiados, ou outras vítimas de opressão social e política que
“dão testemunho”, podem se afirmar (empower) à medida que descobrem palavras e
significados para suas experiências e estimulam o reconhecimento público e a
85
Pergunto como ela se sente em relação a isso, e ela diz enfaticamente: “ah, é ruim
né? A gente trabalha sempre com o improvável, com o incerto, e eu acho que isso
traz muita angústia pra gente, sempre”. Quando pergunto por que seria isso tão
angustiante, a Sra. O. responde: “é a angústia do ‘será que fiz certo? Será que fiz
besteira? Será que foi a melhor decisão? Será que a criança está bem ou está em
risco?’ Não dá pra gente ter certeza, né?” A consciência da impossibilidade da
certeza parece se mesclar a uma nostalgia da própria ideia de certeza, evocada
precisamente como uma perda-insuficiência.
A Sra. O. vai se lembrando de outras situações, passando a relatar um
episódio mais ou menos recente, no qual fez o encaminhamento de um apenado em
progressão de pena para inserção no mercado de trabalho. Essa pessoa, cerca de
um ano depois desse encaminhamento, estuprou uma garota. A entrevistada admite:
“Eu fiquei mal”. Ao mesmo tempo em que admite que não teria como prever tal
desfecho, evoca o fato de não poder realizar na CPMA um estudo psicológico
completo de cada caso, “porque não dá tempo, é muita gente”. A Sra. O. parece
justificar aí, na ausência de um estudo completo, o fato de talvez não ter podido
evitar, portanto prever, o ato delituoso cometido posteriormente. Além disso, a
entrevistada ainda atribui essa impossibilidade ao fato de ser o delito do apenado
um simples porte ilegal de arma: “nesses casos, a gente pode até supor que ele
venha a furtar algo, já houve casos de celulares na bolsa de prestadores. São
poucos casos, mas acontecem. Esse caso do estupro é o mais grave que já
aconteceu”. A Sra. O. parece fazer menção a uma subjetividade-estuprador
mascarada no delito cometido, o que confere substrato à identidade delinquente, nos
moldes preconizados por Foucault ao estabelecer a genealogia da ideia de crime e
de criminoso.
Pergunto como a Sra. O. se sentiu. Ela responde, relutando, que se sentiu
mal, sentiu-se responsável (“não totalmente”, ressalvou, “porque tenho consciência
de que isso pode acontecer, mas me senti responsável sim. Se você abrir o
processo, tá lá o meu aval para a ida do cara à vaga de emprego”.). Considero
também que, se ela se sentiu responsável pelo ato criminoso, isso quer dizer que,
em alguma medida, ela também achou que poderia tê-lo evitado.
Nesse momento da entrevista, faço a pergunta mais diretiva, possivelmente,
de todo o encontro: “você acha que a instituição de certa forma ‘empurra’ a gente
para assumir essas responsabilidades?” A entrevistada, hesitante, concorda com
88
minha pergunta-hipótese: “acho que sim”. Eu continuo: você me diz: “eu não pude
fazer um Estudo”. Mas eu te pergunto: será que um Estudo Psicológico completo
poderia identificar precocemente um estuprador futuro? Será que existe um
psiquismo-estuprador passível de ser previamente detectado? Continuo
perguntando: você acha que eles, os juízes, têm esse tipo de expectativa em relação
ao nosso trabalho? A Sra. O. responde que sim, admitindo que teria se sentido muito
mal caso tivesse sido chamada pelo juiz a prestar esclarecimentos sobre o caso.
Depreende-se a obrigação da entrevistada no sentido de corresponder às demandas
do juiz – do seu juiz –, bem como às exigências institucionais. Por falar nisso, o uso
do termo “o meu juiz” é outro aspecto passível de análise, por mais que diga respeito
a um jargão bastante empregado pelos funcionários da Justiça. “O meu juiz” assume
uma conotação de pertencimento particular e subserviência, bem significativo da
realidade que apreciamos. Dá a ideia de que o funcionário trabalha para o juiz, numa
personalização e individualização de relações que deveriam se apresentar em seu
aspecto profissional. Não à toa, a entrevistada emprega seguidamente essa
expressão.
A Sra. O. apontou o fato de, em sua CPMA, somente os psicólogos poderem
afirmar esse tipo de coisa (encaminhar sem contraindicação), de forma que os
encaminhamentos só se dão com o aval da psicologia, o que não ocorre com o
Serviço Social, que costuma passar tal responsabilidade para os psis. A entrevistada
reconheceu que essa forma de trabalhar pode mudar, dependendo do contexto, já
que em outras CPMAs existe uma distribuição processual e de responsabilidades
mais igualitária, na qual tanto psis quanto a.s podem fazer encaminhamentos.
Podemos daí concluir que, pelo menos no contexto analisado, a responsabilidade
por predizer comportamentos fica circunscrita à figura do psicólogo. A entrevistada
reconhece em seguida que muitas vezes nós psicólogos nos achamos detentores de
habilidades que outros técnicos, tais como assistentes sociais, não teriam, o que
pode nos trazer consequências delicadas e problemáticas no âmbito institucional.
Vários momentos da fala da entrevistada me fizeram supor sua
sobreimplicação com a tarefa, para designar um sentimento bastante presente ao
longo de toda a entrevista realizada. Mesmo reconhecendo a pertinência dos
questionamentos propostos, fica claro que a Sra. O. assumia como sua toda uma
série de exigências impostas à prática psicológica na instituição judiciária. A
entrevistada afirma ainda hoje sentir-se desconfortável – e por vezes bastante
89
quem pode, obedece quem tem juízo”. E me lembro de ter ficado chocado
com esse dito.
Sr. D.: Você falou isso e eu me lembrei de outra situação. Ocorreu no
treinamento inicial para os psicólogos, foi o primeiro treinamento e uma
parte dele se deu através de aulas de juízes – uns cinco juízes, de diversas
áreas, vieram falar para essa turma de novos psicólogos e assistentes
sociais. De maneira geral, a experiência foi bastante tranquila, mas teve um
juiz que quis explicar para as pessoas como elas tinham que trabalhar. Aí
ele disse: “vocês têm que ver como é que o juiz com quem vocês vão
trabalhar decide, entender como ele pensa e já fazer o laudo conforme ele
pensa, pra vocês não ficarem frustrados, senão vocês vão escrever uma
coisa, ele vai decidir outra e vocês vão ficar muito frustrados”. Aí lá pelas
tantas, esse mesmo juiz mandou algo assim: “porque é assim. Por exemplo,
comigo. Comigo ninguém bate de frente, porque eu passo por cima”. Aí todo
mundo olhou para as pessoas que iam trabalhar com ele (risos). E logo em
seguida ele falou algo que se mostrou, com o tempo, pelo menos
parcialmente verdadeiro. Ele disse: “vocês podem estar achando que eu sou
o mau, mas na verdade eu tô mostrando pra vocês como é que funciona
aqui”.
Entrevistador: Traduzindo, era como se ele dissesse: “vocês podem achar
que eu sou o mau, mas na verdade eu sou bom, estou advertindo vocês
para evitar que vocês se deem mal”. Era como se nós fôssemos as
formiguinhas, e ele o elefante que esmaga formiguinhas.
Sr. D.: Sim, e é como se ele dissesse, “o que eu estou dizendo é para além
de mim, é próprio desse lugar onde vocês decidiram estar”. Não é que as
pessoas tenham perdido o sono por causa disso, mas essa fala deixou as
pessoas meio desconfiadas.
Entrevistador: Eu até acredito que ele acreditasse que estava sendo
“bonzinho” ali, fazendo uma advertência, né? Algo do tipo: “vejam onde
vocês estão”. Acho que o que o juiz fez foi incluir o componente de medo,
esse medo que pra mim talvez seja o componente mais perturbador do
trabalho no Judiciário. Perturbador, paralisante, antes de mais nada. Me
lembro do momento em que fomos lotados, estou falando da minha leva,
dos colegas que entraram comigo. Estávamos com a então juíza auxiliar
num auditório. Essa juíza, por sinal conhecida por ser tranquila, acessível,
humana, justificava por que os psicólogos da capital não seriam lotados
naquele momento. Nesse dia, somente os colegas do interior foram lotados.
Ela disse que não teve tempo de consultar os juízes a respeito das
carências de profissionais e que por isso não poderia lotar os psis que iriam
atuar na capital naquele momento. Foi quando uma colega, que na época
consideramos inadequada e grosseira, disse diretamente para a juíza,
externando o seu descontentamento: “ah, sei, na verdade você não se
organizou, né?”. Na época consideramos quase uma insolência dessa
colega, que por sinal não era lá muito simpática não. Mas hoje é que
percebo que por trás da inconveniência e da irritação da colega, o que
chocou na reação dela foi o fato de ela ter se colocado no mesmo patamar
que a juíza, ter falado de igual pra igual e ter deixado clara a insatisfação de
ter de sair dali sem saber qual seria a sua lotação. Essa ‘insolência’ chocou
nossa subserviência, entende? Bom, pelo menos a minha subserviência, já
que só posso falar por mim. Mas me lembro que a reação da colega irritou
todo mundo, não só a mim. Me lembro que me choquei até com o
tratamento dado pela colega à juíza, ‘você’, quando a própria magistrada se
dirigia a nós como ‘os senhores’. Ou seja, nós estávamos chegando, mas já
parecíamos bem ‘aculturados’, menos a colega, que acabou por despertar
indignação.
Sr. D.:. Vou aproveitar o que você contou para falar de uma experiência
minha, anterior entrada no Judiciário. Namorei uma menina que fez um
concurso pra Justiça, pra um cargo de nível médio. Ela passou, foi lotada
num cartório e me contava as experiências dela, que ela achava horríveis,
tanto que ela acabou saindo do tribunal. E eu me lembro de uma coisa que
ela falava: “cara, a gente tem que chamar o juiz de ‘doutor’!” e eu dizia: “que
é isso?! Não brinca!” (gargalhadas). Aí uns dois anos depois eu entrei, e
aquelas conversas que a gente tinha voltaram, todo aquele aparato, tudo
aquilo voltado para a figura do juiz. Até acho que tem que ter um aparato, as
coisas precisam convergir pra ele pra funcionarem, mas é incrível como
esse aparato acaba ultrapassando a questão profissional. Tudo converge
para que o juiz tenha uma ascendência sobre tudo e sobre todos ali.
Entrevistador: Você tá me dizendo que é como se toda a estrutura
montada ali servisse para construir a ideia do juiz como essa figura todo-
poderosa...
Sr. D.: Sim, e isso se dá em vários níveis, até nas condições de trabalho,
salários, benefícios, toda uma situação diferenciada que eles têm. Essa
coisa que você falou do medo, que pode se expressar de modos diferentes,
né? Por exemplo, a gente já viu colegas que tiveram como ‘penalidade’
trabalhar longe de casa, bem longe, às vezes em outra cidade... é claro que
isso mete medo. Mas eu queria fazer uma ressalva: apesar de tudo, dessa
estrutura ainda vigente de produção de medo, eu acho que está
melhorando. Apesar de alguns episódios bem recentes (risos),
Entrevistador: Sim, não estou falando de uma realidade absoluta, tudo isso
que a gente tá discutindo é passível de furo, de escape, mas realmente me
causa estranheza que a instituição ainda abra espaço para a existência
desses ‘déspotas quase absolutos’ e para essas relações tão verticalizadas.
Sr. D.: Sim, mas é importante dizer que eu tenho conhecido juízes que têm
estabelecido outro tipo de relação com as pessoas, tanto com os
funcionários – que são administrativamente subordinados a ele – quanto
com as partes que compõem os feitos (as causas) judiciais. Toda a
discussão que os juízes fazem hoje, por exemplo, sobre a ideia de fazer
eleições diretas para o cargo de presidente do TJ. Uma eleição direta é algo
que foge do modelo ainda vigente, daquele pequeno grupo de
desembargadores mais antigos que votam e decidem sozinhos quem vai
presidir a casa. E o TJ do Rio de Janeiro, apesar de ainda não ter
modificado esse modelo, tem se mostrado bem favorável a esse tipo de
possibilidade.
Entrevistador: Tomara... (risos).
Sr. D.: Sim, já há coisas diferentes. Quando a gente entrou, não existia o
18
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e todo um questionamento que hoje
já se faz. Acho que isso cria um arejamento, junto com os próprios
movimentos da sociedade civil.
Entrevistador: Mas eu queria insistir nesse aspecto da produção do medo,
que acaba virando uma linguagem. Pergunto: como essa produção do medo
se reflete no teu trabalho? A mim o medo paralisa, eu tenho que fazer um
trabalho permanente comigo mesmo para continuar móvel, produtivo. Minha
tendência é a paralisação. Era isso a novidade que eu queria incluir no meu
trabalho: essa produção do medo, a construção da covardia no ambiente de
trabalho no Judiciário, como forma de perpetuar um contexto no qual a
autoridade é extremamente verticalizada e opressiva.
18 Órgão de controle do Judiciário: “O CNJ é uma instituição pública que visa aperfeiçoar o trabalho
do sistema judiciário brasileiro, principalmente no que diz respeito ao controle e à transparência
administrativa e processual”. Retirado da página inicial do site do CNJ, disponível em
<www.cnj.jus.br>.
93
Sr. D.: Eu acho interessante. Eu vou tentar pensar isso com você a partir de
dois acontecimentos. De uma maneira geral, eu não tenho a mesma
experiência que você. Mas eu vou falar de duas situações em que eu fui
atravessado não sei se pelo medo, mas por situações opressivas,
despotencializadoras. A primeira foi a única vez em que num ambiente
público, na frente de umas seis pessoas, um juiz gritou comigo.
Entrevistador: (JÁ GRITANDO) ELE GRITOU CONTIGO??!
Sr. D.: Sim, porque houve um mal-entendido com algo que eu
supostamente deveria ter feito, não em termos processuais, mas numa
divisão de tarefas relativa a um evento. Eu não fiz da maneira que
esperavam porque eu não tinha entendido que era pra ser daquela forma.
Nessa reunião, fui interpelado pelo juiz sobre o porquê de eu ter feito como
eu fiz. Eu expliquei que eu não tinha entendido que era pra fazer de outra
forma. E aí foi numa escalada, eu respondi, o juiz foi falar em cima da minha
resposta e aí, pra encerrar o assunto, o juiz deu um berro pra acabar a
história. E foi uma experiência assim, meio esquisita, né? Primeiro porque
não me lembro de outra situação, dentro ou fora do Judiciário, de alguém ter
gritado comigo, muito menos numa situação de trabalho. Depois desse
berro, eu fiquei calado. No início da situação, réplicas e tréplicas minhas não
tinham o intuito de colocar em xeque a autoridade dele, eu só queria
explicar que minha conduta não foi por descaso ou por falta de
responsabilidade.
Entrevistador: Você só queria explicar.
Sr. D.: Isso! Mas era um juiz interessante porque ele falava o que ele
pensava na hora, mas depois esquecia, sem mágoas (risos). A coisa seguiu
seu curso normal. Da minha parte, foi a mesma coisa, o incidente não
trouxe nenhum sentimento negativo que se prolongasse.
Entrevistador: Pois da minha parte traria! (risos).
Sr. D.: Teve naquele momento algo que achei estranho, inadequado,
desproporcional. Mas foi algo que passou, não foi nada que tenha me
marcado não.
Gostaria de destacar, deste momento do relato do Sr. D., uma postura que
me incomodou por considerá-la um tanto contraditória na maneira de avaliar o
incidente “grito do juiz”. Apesar de reconhecer o ineditismo do episódio (“não me
lembro de ninguém ter gritado comigo antes em situação de trabalho”), o
entrevistado se porta, no meu entender, de forma excessivamente condescendente
ao afirmar “tudo bem, sem mágoas”, chegando a realçar a postura do juiz, a quem
considerou como “interessante”. Sem querer criticar o posicionamento do meu
entrevistado (e já criticando...), seria pertinente destacar a forma como a discussão
foi encerrada, com um grito. Um grito que sufocou o que antes se fazia na ordem da
comunicação e da argumentação. Mais do que um mero incidente envolvendo
pessoas específicas e um contexto isolado, tal atitude pareceu perturbadoramente
ilustrativa de certo modo de funcionamento institucional, na qual a figura do juiz se
sobressai em sua imponência e autoridade.
Essa passagem, enfim, me remeteu à teoria foucaultiana da soberania. De
fato, destaco esse componente de medo, tão presente no contexto interno da
94
instituição e tão voltado às interações com a figura do juiz, que parece deter um
poder quase absoluto, soberano.
Foucault (2010a) analisa a questão do poder a partir de técnicas de
dominação, situando sua teoria da soberania no âmbito da monarquia feudal, que
serviu de instrumento para a constituição, consolidação e fortalecimento das grandes
monarquias. Segundo a teoria clássica da soberania, um de seus atributos
fundamentais diz respeito ao direito de vida e de morte, o que equivale a pressupor
vida e morte não como fenômenos naturais, mas localizá-las no âmbito do poder
político. O soberano era então aquele que detinha o poder de deixar viver e de fazer
morrer, e é por poder matar que o soberano exerce seu poder sobre a vida. A essa
primeira configuração do poder – o soberano – seguiu-se, ao final do século XVIII,
outra forma de poder, centrado em técnicas disciplinares, que individualizam e
estabelecem um saber sobre o corpo. Ao lado do poder disciplinar, e a ele
articulado, emerge o biopoder, centrado na ideia de população – e não mais de
indivíduo.
O destaque neste momento é ao que pareceu mesmo uma configuração pré-
disciplinar, que sugere a circulação, nas relações internas do Poder Judiciário, de
um poder com características soberanas. Entretanto, é imperioso apontar o que
Foucault adverte, em seu Seminário Segurança, Território, População (2008) acerca
dos três mecanismos propostos, o legal ou jurídico (arcaico), o disciplinar (moderno)
e o de segurança (contemporâneo): eles não funcionam em justaposições
sucessivas, como se a emergência do seguinte pudesse anular a vigência do
anterior. Nesse tipo de raciocínio por superação, adverte Foucault, perde-se o
essencial no sentido de entender que os mecanismos legais comportam elementos
disciplinares, que por sua vez envolvem um controle de segurança voltado não
apenas para a reforma do indivíduo, mas para o controle das populações: “A
segurança é uma certa maneira de acrescentar, de fazer funcionar, além dos
mecanismos propriamente de segurança, as velhas estruturas da lei e da disciplina”
(FOUCAULT, 2008, p. 14). O autor esclarece que “a soberania se exerce nos limites
de um território, a disciplina se exerce sobre o corpo dos indivíduos e, por fim, a
segurança se exerce sobre o conjunto de uma população” (op. cit., p. 16). Temos
então configurações de um poder que se exerce não através da superação do
modelo anterior, mas por dominância. Cada um desses mecanismos, em sua
emergência, não implica o desaparecimento daquele que seria o seu antecessor;
95
com o aperfeiçoamento das técnicas, o que vai mudar é a dominância, que altera o
sistema de correlação entre os três mecanismos de punição e controle: “os
mecanismos disciplinares não aparecem simplesmente a partir do século XVIII, eles
já estão presentes no interior do código jurídico-legal. Os mecanismos de segurança
também são antiquíssimos como mecanismos” (op. cit., p. 10). Somente nesta
perspectiva, faz sentido a compreensão do Judiciário como o espaço por excelência
das estratégias de poder-saber tipicamente disciplinares, mas que igualmente
comporta estratégias de segurança e controle da população e apresenta traços de
soberania, através da figura do magistrado, a quem se deve respeitar e obedecer de
forma quase absoluta.
Sr. D.: Essa experiência não foi nada que tenha me feito deixar de fazer
nada posteriormente, mas realmente foi algo que, quando eu olho pra trás,
me lembro disso como algo não adequado. Agora, a experiência que tive
bem recentemente, aí sim. Não foi nada ligada ao trabalho, à nossa
atividade fim. Mas ter passado pela experiência em que, sem saber o
motivo, sem ninguém ter olhado nos seus olhos pra dizer nada...
Você está desempenhando seu trabalho, com certo reconhecimento dos
seus pares e até de juízes com quem você trabalha (pausa). Aí alguém vira
pra você, no final de um dia de trabalho, e te diz: “vai pra casa aguardar sua
nova lotação, porque você não vai mais trabalhar aqui”. E você busca
respostas – seja com colegas, seja com juízes que poderiam te dizer o que
estava acontecendo – e não encontra, e ninguém vem te dizer nada. Aí
você fica em casa por uma semana ou dez dias sem saber qual seria sua
nova lotação e depois desse tempo simplesmente sai publicado no Diário
Oficial que você vai trabalhar em outra cidade. Hoje parece uma coisa
tranquila, por incrível que pareça, mas no momento em que eu vivi aquela
experiência foi uma das piores coisas que aconteceram na minha vida. Tive
realmente a impressão de que os caras podem fazer realmente qualquer
coisa com a gente.
Entrevistador: Eu poderia chamar essa tua experiência de kafkiana?
Sr. D.: Totalmente!
Entrevistador: Olha a imagem que eu fiz enquanto você me explicava o
acontecido: me pareceu um ataque que não se consegue identificar de
onde, como se você estivesse num quarto escuro e não pudesse ver nada.
Isso pra mim foi aterrorizante, mesmo. É um ataque que você não sabe de
quem, nem quando nem onde vai acontecer.
Sr. D.: E que você não tem como se defender. Não foi dada nenhuma
19
justificativa, então fica como se essa ‘entidade’, no caso, a Corregedoria ,
pudesse fazer qualquer coisa, sem precisar de justificativa. E eu nem sei
qual a palavra pra retratar aquele momento... eu fiquei tão fraco, que nem
era medo exatamente o que eu sentia. Só pra você ter uma ideia, eu estava
com uma pessoa amiga, que mora em outro estado e com quem eu vinha
me comunicando por skype. Essa pessoa ficou tão preocupada comigo que
ligou pra uma amiga comum nossa, aqui no Rio, pra falar sobre mim e pedir
a essa outra amiga que me procurasse, de tão abatido fisicamente que eu
fiquei. E sem dúvida, foi uma experiência que me fez mudar em relação ao
TJRJ.
Entrevistador: Dentro da nossa experiência no Judiciário, você nunca achou
que esse tipo de arbitrariedade fosse possível? Porque eu vivo assolado por
essa possibilidade, de ser vítima da força bruta no momento em que eu,
conscientemente ou não, contrariar qualquer interesse.
Sr. D.: Não. E os casos concretos que eu conheço sempre envolveram
algum tipo de discussão, de querela, a respeito do comportamento ou do
desempenho profissional. Eu nunca soube de uma punição vinda assim, do
nada – do nada pelo menos oficialmente. Acho até que pode ter tido alguma
coisa, mas nada me foi dito. Em outros casos, por mais absurdos que
pudessem parecer, pelo menos foi dito algo oficialmente a título de
explicação.
Entrevistador: Para mim, você está me fazendo uma descrição da força
bruta. E isso uma coisa que me desarma. É claro que ninguém vai
concordar, seja em que escalão for, com uma arbitrariedade dessa
natureza, ninguém vai dizer ou admitir que isso é plausível. Mas o que faz
questão pra mim é o fato de a instituição, de alguma forma e em algum
momento, ainda abrir espaço para a força bruta. Pra mim isso é muito
perturbador.
Sr. D.: Fora o fato de eu ter sentido o que senti, e o efeito desorganizador
de sofrer algo sem conhecer o motivo. E como é que uma instituição
denominada Justiça pode funcionar sem ouvir? No caso, sem ME ouvir?
Entrevistador: É aquela indagação que a gente se faz e ao mesmo tempo
se acha ingênuo: como a Justiça pode ser injusta? Quando eu digo que a
pergunta pode ser ingênua é porque ela talvez faça menção a uma outra
Justiça, que, essa sim, seria totalmente justa – uma consideração idílica,
pouco realista. Talvez, como resposta à indagação, a gente talvez possa
considerar uma Justiça constituída secundariamente – ou principalmente –
para ser injusta, contrariando todos os nossos ideais. Mas, independente
disso, existe algo próprio à Justiça que a gente espera que se cumpra, sem
dúvida.
um assistente técnico da parte a ser avaliada, indicado por essa parte, claro.
A colega fez uma exposição de motivos falando que era inadequada a
presença do assistente técnico, mencionando o documento do Conselho
Federal de Psicologia que proíbe a presença de assistente técnico na
perícia. O juiz então novamente determina o estudo psicológico com a
presença do assistente técnico; caso contrário, a psicóloga perita, nossa
colega, seria presa. Aí eu não sei se a gente pode falar em “concepção”
acerca do que o perito pode fazer...
Entrevistador: Isso não é mais concepção de nada, é pura força bruta
(risos nervosos).
Sr. D.: É aí onde quero chegar. Porque do que ele entendia que podia ser
feito, ter ou não ter assistente técnico era até secundário, na minha opinião.
Ele não esclareceu com a colega por que deveria ser daquela maneira,
havia apenas algo a ser realizado, da maneira como ele entendia que
deveria ser realizado. Nesse caso concreto, isso moldou a forma como o
trabalho foi realizado, ou seja, a psicóloga realizou o trabalho dela com a
presença do assistente técnico...
Entrevistador: Claro! Ou então ela ia presa! (gargalhadas nervosas!). Eu
acho que esse é o típico exemplo de força bruta...
Sr. D.: Por isso que eu falei que o exemplo junta nosso assunto atual com o
que discutíamos anteriormente.
Entrevistador: Acho até que existem os meandros jurídicos, que, apesar de
estarmos lá, muitas vezes passam batidos pra gente, porque a gente muitas
vezes não os conhece. Acho até que esse juiz quis assegurar que o
procedimento envolvendo o réu não pudesse depois ser questionado ou
mesmo impugnado, anulado, pela ausência do técnico da parte (assistente
técnico). Mas a FORMA como isso se dá é que é o diferencial, é o que
coloca o ato desse juiz no âmbito da força bruta.
Sr. D.: Isso, exato!
Entrevistador: E isso não é pouco, porque uma situação como essa nos dá
a impressão de que no Judiciário não existe instância de comunicação, mas
apenas instâncias de mando, de determinação.
Sr. D.: Mas sinceramente... – e veja como eu preciso acreditar nisso (risos)
–, eu acho que não são experiências majoritárias.
Entrevistador: Controverso isso...
Sr. D.: É como eu disse, preciso acreditar nisso (risos). Mas eu quero
acreditar, do que ouço dizer diretamente, acho que são experiências
minoritárias, o que não quer dizer...
Entrevistador: O que não reduz o seu impacto.
Sr. D.: Sem dúvida. Também não quer dizer que o funcionamento dessa
instituição não seja ainda hoje muito opressivo. É muito visível como o
Judiciário de fato garante direitos, é uma máquina importante para a
sociedade. Mas ao mesmo tempo, é algo que no seu cotidiano ainda é
muito opressivo, sobretudo com aqueles que não se situam numa
determinada faixa da estratificação social. E isso não é algo exclusivo do
ator jurídico, isso somos todos nós, o modo como muitas vezes a gente
atende o usuário. Às vezes a gente atende mal, e não estou falando só de
equipe técnica, basta ver o atendimento dos servidores nos cartórios, por
exemplo. A pessoa chega ao Judiciário sem conhecer nada, sem saber a
quem se dirigir, e fica mais perdida ainda, não há um fluxo institucional que
possa receber e informar essa pessoa. Então não são somente os
operadores jurídicos os agentes dessa violência, dessa opressão. Somos
nós também, às vezes de forma não deliberada.
Entrevistador: Será que você faz menção a uma violência disseminada,
generalizada?
Sr. D.: Talvez a pergunta que eu fizesse fosse a seguinte: até que ponto, de
fato, a gente olha para as demandas que as pessoas trazem? Porque essa
pessoa está sendo capturada na lógica codificada da realidade jurídica que
“corresponde” àquela demanda, então algo da demanda original da pessoa,
das suas expectativas, está perdido. É capturado pela máquina.
99
Sr. D.: Mas eu me refiro a coisas que eram tão “naturais” na época, como o
exemplo de casais homossexuais no procedimento de adoção. Passa por
uma naturalização, não consigo ver neste exemplo a questão do medo.
Entrevistador: Talvez o que eu chame de medo você chame de
conformidade. Submissão pra mim também é medo.
100
Sr. D.: Você usa esse termo, “conformidade”, eu o acho bem adequado. Por
exemplo: na vara onde atuo, diante de alguns pedidos que os
jurisdicionados fazem, quando você sabe que aquele juiz com quem você
trabalha não vai atender aquele pedido, você faz o quê com isso? Isso
acaba moldando o seu trabalho. Mas eu nem sei se é medo. Eu não iria
sofrer nenhuma sanção se eu colocasse no relatório esse pedido, mas eu
de antemão já não coloco, porque é inócuo. Isso vai moldar a experiência
de trabalho. Nem acho que isso seja necessariamente negativo. Nesse
exemplo, eu sei que o juiz considera que aquele tipo de pedido não seria
viável naquela serventia. Eu acho que a gente é muito mais atravessado do
que a gente imagina, ou gostaria, pela engrenagem da máquina judiciária.
Entrevistador: Mas será que pra gente só caberia isso, entrar na máquina?
Sr. D.: Olha, pra mim hoje é o seguinte: não adianta remar contra a maré.
Você pode talvez diminuir o fluxo, ficar um pouco na margem, tentar deter a
velocidade da correnteza. Mas dizer que se pode remar contra a corrente é
muito complicado. Acho que nosso papel é muito mais o de dizer coisas que
não seriam expostas em outro lugar, levantar questões que não
apareceriam em outros espaços. Você como psicólogo tem a oportunidade
de apresentar uma voz que talvez não aparecesse em outro lugar.
: Isso não é muito pouco?
Sr. D.: talvez, pode ser pouco, pode ser uma tolice, mas acho que é um
papel, é um trabalho possível. Vai ter um balizamento diferente, talvez faça
alguma diferença. Porque a gente também pode cometer equívocos por se
achar muita coisa. Por exemplo, em situações específicas, a gente pode
fazer grandes besteiras quando se coloca no lugar de garantidor dos
direitos da infância desprotegida. Simplesmente não dá pra ter tanta clareza
assim a respeito do que é melhor para as pessoas, é bom mesmo que a
gente não tenha essa clareza, a gente pode fazer barbaridades por achar
que tem.
20
Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/62272-justica-restaurativa-o-que-e-e-como-
funciona>.
109
faz questionar a ideia de uma justiça – concebida aqui em sua dimensão de justiça
criminal, mas passível de ser estendida a outras formas – que possa ser justa. Mas
cumpre levar em conta, decerto, que estas ideias, da forma como estão aqui
esboçadas, podem pecar por generalização, uma vez que, da mesma forma que
podemos conceber distintos abolicionismos, também podemos supor diferentes
justiças, coexistindo e afetando-se mutuamente.
4.4 A Sra. E. ou a corda que sempre arrebenta para o lado mais fraco
21
A lei que criou o cargo de Psicólogo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro data de 1996.
O PJERJ realizou até o momento quatro concursos: em 1998, em 2003, em 2012 e em 2014.
110
22
NUR: Núcleo Regional da Corregedoria-Geral da Justiça (CGJ), que lida com situações de
afastamento e procedimentos administrativo-disciplinares de serventuários em geral.
23
Pr eles, a refere-se aos operadores jurídicos em geral – magistrados (principalmente), promotores,
defensores e advogados.146
111
24
Audiências Concentradas são audiências que procuram resolver a situação de crianças em
acolhimento institucional. São realizadas duas vezes ao ano e quase sempre nas próprias
instituições de acolhimento de crianças. Envolvem a participação do Executivo – secretarias de
saúde, de trabalho e emprego, de ação social etc. –, das equipes dos próprios abrigos, dos
conselhos tutelares e do Judiciário, bem como das famílias das crianças, como forma de acelerar a
desinstitucionalização, através, num primeiro momento, da reintegração das crianças abrigadas às
famílias de origem. Caso isso seja impossível, disponibiliza-se a criança para colocação em família
substituta.
112
25
Daquela adolescente que faleceu. Você estava no Sepsi na época. Eu
estava acompanhando a menina nessa época. E aconteceu no recesso do
Judiciário. Ela foi pra uma festa e o namorado a matou. O processo estava
comigo, eu estava atendendo a menina, o namorado, a família toda há
alguns meses, a menina eu atendia toda semana. Eu estava tentando
encaminhar ela pra terapia quando aconteceu esse episódio. O processo
estava todo confuso, com decisões estranhas. Depois dessa tragédia, o juiz
abriu dois processos contra mim, no NUR e na Corregedoria. E aí nós
tivemos que ficar respondendo, eu e a colega com quem eu trabalhava na
época. A gente escrevia as respostas juntas. E ficamos assim por mais de
um ano, o processo ia e voltava, ia e voltava. O processo da Corregedoria
foi mais rápido. A juíza auxiliar da CGJ despachou, mandou pra vocês do
Sepsi, vocês escreveram uma resposta e essa juíza auxiliar rapidamente
mandou arquivar. Mas o processo do NUR não, esse ficou por mais de um
ano. Eu fui transferida e o processo chegava para o NUR onde eu estava,
era uma perseguição (risos nervosos). O funcionário do NUR ligava,
dizendo: “tem um processo aqui, do outro NUR, pra você responder”. Acho
que tem pelo menos umas três respostas minhas. Por fim, o juiz desse novo
NUR para onde fui transferida mandou arquivar, dando uma resposta ótima,
que eu guardo até hoje.
Entrevistador: O que ele diz nessa resposta?
Sra. E.: Ele disse que o processo não cabia, ele meio que questionou até o
outro juiz. Ele mandou arquivar. Mas acho que esses processos não são
administrativos, porque não aparecem no meu histórico funcional. Não sei
de que natureza eles são, até hoje não sei de que tipo.
Entrevistador: Do que eu me lembro da época, o processo estava há
alguns meses com você, que acompanhava o caso. A garota foi
assassinada e você estava sendo responsabilizada por isso. Dá pra gente
dizer que é uma situação kafkiana?
Sra. E.: É, mais ou menos isso. (mais risos nervosos). Eu achei surreal, não
conseguia acreditar.
Entrevistador: O que ele, o juiz que te acusou, dizia que você deveria ter
feito para evitar o desfecho trágico?
25
Sepsi: Serviço de Apoio aos Psicólogos, coordenação dos serviços de psicologia do TJRJ, ligado à
Corregedoria-Geral da Justiça.
113
Sra. E.: Ele disse que eu já deveria ter finalizado a intervenção. Só que o
processo tinha uma série de erros, um deles do promotor, que solicitou que
a guarda da menina fosse pros pais do namorado, onde ela sofria violência
doméstica desse namorado. A própria mãe da adolescente questionava
isso, ela reclamava que tinham retirado toda a autoridade dela com essa
medida de tirar a guarda dela em favor dos pais do namorado. Como
resultado, a menina passou a morar num local onde ela sofria violência
doméstica por parte desse namorado, que culminou com o seu assassinato,
nessa festa.
Entrevistador: Será que ele quis aplacar o próprio desconforto, arrumando
um culpado para esse desfecho? Se o promotor solicitou a mudança de
guarda, foi ele, como magistrado, que concordou com a medida e a
determinou. Para além disso, acho que existiu também a expectativa de que
o seu trabalho pudesse evitar o desfecho. Ou que a decisão judicial só
caberia após a avaliação psicológica. Isso traz a minha primeira questão, a
da expectativa de previsibilidade que é colocada no trabalho do psicólogo
no Judiciário.
assédio moral como “toda ação, gesto ou palavra, praticada de forma repetitiva por
agente, servidor, empregado, ou qualquer pessoa que, abusando da autoridade que
lhe conferem suas funções, tenha por objetivo ou efeito atingir a auto-estima e a
auto-determinação do servidor”26.
Encontramos ainda, numa pesquisa pela internet, reportagens dos meios de
comunicação tratando da questão do assédio moral no meio judiciário. A Revista Isto
É de 04 de abril de 2014, intitulada Assédio de toga27, é um exemplo. A reportagem
afirma que parte dos servidores do Poder Judiciário “tem se deparado com
magistrados autoritários e prepotentes, que perseguem e assediam moralmente os
funcionários”. A revista informa que uma enquete realizada pelo Sindicato dos
Servidores do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro (Sind-Justiça), inédita no
país, revelou que 44,5% dos servidores do TJRJ afirmaram já ter sofrido algum tipo
de assédio moral, ressaltando o número crescente de trabalhadores afastados por
problemas psicológicos. A matéria é pródiga em exemplos de “vítimas”, num quadro
agravado porque os magistrados assediadores, segundo um coordenador do
SindJustiça, “se sentem em uma classe superior, repleta de poder, e têm uma
espécie de garantia de não punição”. Observamos aqui um enfoque mais
propriamente coletivo da problemática, ainda que os exemplos dados e o
direcionamento sejam de cunho personalista e individual, como podemos observar
na diferenciação entre as categorias juízes assediadores e juízes não assediadores.
Mais uma dupla de categorias, juntando-se a outras, tais como abusadores e não-
abusadores, crimonosos e não-criminosos, agressor e vítima, entre tantas outras...
Na mesma matéria, o professor de direito constitucional da PUC-SP Roberto Dias
salienta o embate “entre o servidor e uma pessoa que possui muito mais poder”, o
magistrado, o que caracteriza uma batalha desigual e francamente desfavorável ao
primeiro.
Várias outras matérias tratam da questão, dentro e fora do Judiciário. Neste
último circuito, o escritório de advocacia Juliana e Fernando Gontijo, de Minas
Gerais, informa que trinta e oito tribunais federais e estaduais foram intimados pelo
Conselho Nacional de justiça (CNJ) “a prestarem informações sobre como enfrentam
o problema do assédio moral no âmbito de suas administrações”. Segundo a página
Sra. E.: E nada é feito com isso, e aí a gente fica sozinho, uma sensação
muito ruim, de ficar sozinho.
Entrevistador: Resolvi escrever essa tese para poder falar sobre essa
sensação de medo e de solidão. É interessante pensar como a solidão é um
aspecto que reforça o medo, as pessoas perdem o sentido do coletivo, de
uma experiência que se vive junto. E a gente vai vivendo e “convivendo”
com esse desconforto. Eu nunca entrei de licença psiquiátrica, mas entendo
perfeitamente quando as coisas terminam assim. É muito ruim saber que a
qualquer momento você pode ser vítima de um ataque (uma acusação, por
exemplo, fundada ou infundada) e não vai ter a oportunidade de se colocar,
de se defender. Conheci uma juíza que dizia algo do tipo: “eu detesto
quando funcionário chora. Não suporto choro, não vem chorar perto de
mim”. E é tão cruel isso,porque mal sabe ela – ou talvez ela saiba – que o
choro é decorrência da impossibilidade de se colocar. Entendo o chorar
como uma reação contra a arbitrariedade, contra a impossibilidade de se
colocar de igual pra igual, pelo fato de ser uma relação extremamente
verticalizada e injusta. É claro que aquilo que você não pode expor fica
estrangulado e acaba explodindo na garganta, saindo pela via do choro. E
essa juíza transforma isso numa fraqueza, numa infantilidade daquela
pessoa que na verdade não está tendo a oportunidade de se colocar e de
se defender. Ela sabe que o embate é desigual, afinal é a formiguinha
contra o elefante, certo? Ainda assim, ela interpreta a única reação possível
como uma fraqueza, uma covardia. Quando você se vê impossibilitado do
direito a qualquer reação, você chora, claro!
Sra. E. agora me lembro da minha última “experiência”, quando a juíza
chegou a dizer que as pessoas que choram são pessoas “humanizadas”,
por isso elas choram. Até hoje não entendi o comentário (risos).
Entrevistador: O que ela estaria querendo dizer com isso? Seria uma
crítica?
Sra. E.: Sei lá! (risos).
Entrevistador: E essa tua “última experiência”? Fala um pouco sobre ela.
Sra. E.: Pois é, essa foi a pior. Eu nunca tinha vivido nada parecido. Eu
também já tinha ouvido falar de assédio moral, mas também achava algo
vago. Depois do que vivi, disse para colegas que agora sei o que é assédio
moral, porque até então eu não sabia. Eu sempre tive um sono maravilhoso,
de cair na cama e dormir a noite inteira. Nesse período, que durou dois
meses, eu não dormia, eu acordava de madrugada, tinha pesadelos, eu
tinha uma série de sintomas físicos que eu nunca tinha tido. Eu acordava
29
A entrevistada refere-se ao cartório próprio da serventia, que realiza todo o processamento das
questões judiciais em tramitação. Não se trata, evidentemente, de um cartório de notas, aos quais
recorremos para reconhecimento de firmas, autenticações etc.
30
DIATI: Divisão de Apoio Técnico-Interdisciplinar, da CGJ, que reúne as coordenações de
psicólogos, assistentes sociais e comissários.
120
Entrevistador: E esse é o tipo de terror que não tem apelo popular (risos).
Sra. E. É, não tem.
Entrevistador: Nesse caso que você conta, a sensação de isolamento deve
ser maior ainda porque parece que não interessa a ninguém mais, além
daqueles que estão passando pela situação. É como se não tivéssemos a
quem recorrer, como nos defender.
Sra. E. E acabaram indo para o nosso lugar as pessoas que estavam longe
de casa e que eram mais recentes no tribunal, era uma oportunidade de
remoção. Mas muita gente não quis ir. Ligavam pra gente, todo mundo
queria saber o que aconteceu. As pessoas mais antigas e mais experientes
desistiram de ir.
Entrevistador: E você sabe como está a situação lá hoje?
Sra. E. Olha, não sei, sinceramente nem quero saber. Não tenho ideia.
Entrevistador: Talvez nem esteja tão ruim, depois do que aconteceu.
Sra. E. Talvez. Interessante também é pensar que o cartório também sofria
com ela, mas não fazia nada, sofria calado. A gente reagiu. A gente poderia
ter aceitado também. Mas a gente foi lá e falou demais.
Entrevistador: Acho que foi bom, né?
Sra. E. É, acho que foi bom, só que a gente paga um preço por isso.
Entrevistador: Que preço?
Sra. E. O de ter sido afastado, de ter sido removido. Nós reagimos e fomos
punidos.
Entrevistador: Mas vocês precisavam ter saído daquela situação, neste
sentido não foi uma punição, foi uma acolhida.
Sra. E. Sim, foi bom porque estava enlouquecedor. Neste sentido foi bom,
para os dois lados. (...) mas de alguma forma é uma punição, né?
Entrevistador: Mas por quê? Pela transferência?
Sra. E. É.
Entrevistador: Entendi. Algo como “no final das contas, sobrou para
vocês”.
Sra. E. Isso! Em vez de tirar uma pessoa, tirou onze pessoas. Foi neste
sentido que eu disse que nós fomos punidos.
Entrevistador: Ou seja, pra resolver o problema que UMA pessoa estava
criando, eles removeram ONZE.
Sra. E. Onze pessoas tiveram que ser deslocadas: pra gente ver como essa
relação é desigual. Mas foi um alívio; depois que saí, respirei. Hoje eu sei o
que é assédio moral, porque eu não sabia. A questão física, emocional,
tudo. É enlouquecedor. E acho que as pessoas não dão tanta importância a
isso, acho que deveria ser mais discutido.
Entrevistador: O SindJustiça de vez em quando toca nesse assunto...
Sra. E. Mas a gente ficou sozinha inclusive em relação ao Sindicato. Fomos
lá, só que depois de um tempo percebemos que estávamos sós, o Sindicato
não estava representando a gente.
Entrevistador: Você é sindicalizada?
Sra. E. Sou, acho que todos no grupo eram.
Entrevistador: Pesada essa história, hein? (gargalhadas bem nervosas).
Sra. E. É, bem pesada, você está com um bom material aí.
Entrevistador: A gente pode entender que a juíza teve o seu poder
absoluto UM POUCO limitado, que vocês tiveram por parte da Corregedoria
UM POUCO de acolhida na figura do juiz auxiliar da época...
Sra. E. tivemos sim.
Entrevistador: Mas o problema é esse UM POUCO. Tudo foi um pouco, em
termos de coibir o abuso da arbitrariedade. Para solucionar a questão,
121
Sra. E.: |liás, você está sabendo daquela outra juíza? O pessoal está
penando com ela. Eu soube que ela exigiu a presença dos bebês nas
audiências concentradas! Ela não vai aos abrigos, não faz as audiências
concentradas nos locais. Soube que ela ameaçou com voz de prisão a
assistente social de um abrigo, que não tinha levado os bebês, alguns com
meses de nascidos, à audiência. Tem abrigo com mais de vinte bebês... a
assistente social quis argumentar, dizendo que nunca tinham trazido.
Entrevistador: Ai meu Deus! Para, já chega! (mais gargalhadas nervosas!).
Sra. E.: A assistente social quis argumentar, dizendo que elas nunca tinham
trazido bebês às audiências, até porque um bebê é vulnerável, está
correndo risco quando se desloca, tem que ficar numa sala com um monte
de adultos, a alimentação, tudo isso é muito complicado. A juíza disse para
a assistente social: “Como a senhora não trouxe os bebês? A senhora sabia
que eu posso lhe dar voz de prisão agora?”. A assistente social ficou tão
assustada que ligou para o abrigo e mandou levar os bebês. Além de mil
outros problemas nessa serventia, os abrigos estão ficando abarrotados de
bebês. Parece aquela juíza da situação que eu vivi, que dizia que a gente
queria mandar todas as crianças para adoção. Ela dizia: “vocês querem tirar
as crianças DAS MÃES”, mas eram situações em que NÃO HAVIA MÃES,
as crianças estavam em situação total de abandono. Acusar logo a mim
122
A entrevista com a Sra. E. foi bastante tensa, enfocando temas como medo e
violência. Pareceu clara uma sensação de fragilidade e isolamento da entrevistada,
em função de experiências que evidenciaram o seu terror diante da arbitrariedade
institucional. A impotência advinda do desamparo e da sensação de perigo iminente
foi outro aspecto observado, o que suscita, no dia-a-dia na instituição, desconforto e
tensão, sentimentos que podem se inscrever no próprio corpo, como os sintomas
descritos pela entrevistada por ocasião dos episódios relatados.
A questão da arbitrariedade de magistrados nas relações de trabalho tem sido
bastante debatida sob a rubrica do assédio moral, como algo anômalo e passível de
intervenção até por parte do Conselho Nacional de Justiça. O magistrado Lédio
Rosa de Andrade, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Santa
Catarina, se propôs a investigar essa questão, que no meio jurídico, como ele
mesmo salientou, costuma receber a denominação jocosa de juizite. À questão
proposta pelo desembargador, Por que nós juízes somos arrogantes?, o magistrado
fornece uma reflexão de natureza psicanalítica, bem adequada a alguém que, além
de pós-doutor em Direito, é graduado em Psicologia e doutorando em Psicanálise.
Supõe Andrade a existência, comum a muitos magistrados, de uma visão mítica
sobre o papel do juiz, produto da ideia megalomaníaca de que realmente é possível
fazer justiça. A esse equívoco estariam propensos mesmo os magistrados mais
democráticos e de sensibilidade social, que não estariam isentos de atitudes
autoritárias, excessivamente formais e pretensiosas. Segundo o autor, “essa
condição psíquica pode levar o trabalho do magistrado pela via da neurose, de
realmente querer ter capacidade de corrigir o vazio do Outro, colocar o mundo em
123
ordem, favorecer os desfavorecidos (...). Essa postura também pode ser contraída
pela via da psicose, (...), achando-se um ser superior, um deus ou semideus,
trocando a identidade de um sujeito com nome, data de nascimento e submetido a
conflitos, pela de ser juiz”. (op. cit. p. 1. Grifos do autor).
O magistrado faz apelo à teoria freudiana, que trata de um sujeito constituído
a partir do Ego Ideal, característico de um narcisismo primário; este precisa se
dissolver, para que o princípio do prazer (próprio ao narcisismo primário) possa dar
lugar ao princípio de realidade. Nesse processo, o Ego Ideal se transforma em Ideal
do Ego: “no caso específico dos magistrados, o Ideal de Ego está vinculado a um
trabalho de base mítica: um demiurgo, com a função de fazer justiça”. Ainda de
acordo com Andrade, o Ideal de Ego dos magistrados estaria identificado com a
superioridade de sua função. Ocorre que qualquer atividade humana é passível de
gerar frustrações, às quais, como resposta, o psiquismo cria mecanismos de defesa.
Ora, quando o Ideal de Ego dos juízes, identificado a esse ser superior, não
consegue tolerar as frustrações decorrentes da função de julgar, o resultado seria a
formação da arrogância como um mecanismo de defesa aos limites impostos pela
dureza da realidade. Para Andrade, essa “base mítica” da função e a defesa contra
as frustrações estariam na base do comportamento pretensioso e mesmo agressivo
de alguns juízes, o que explicaria o aparecimento da juizite, vista como uma
resposta psíquica à megalomania de quem realmente se acredita detentor do poder
de julgar. A ênfase psíquica, interna e transcendente das considerações do
magistrado catarinense segue um caminho teórico bem distinto do direcionamento
deste trabalho, mas desperta a atenção ao apontar a dimensão mitológica do ato de
julgar. Em outro artigo, Abuso de poder, Andrade afirma que “o abuso e a condição
de autoridade andam constantemente juntos”, o que abre espaço para uma
compreensão institucional do poder e da autoridade.
É interessante perceber no comportamento autoritário e arrogante de alguns
juízes a marca de certa herança cultural, produto não apenas do status social
conferido profissão, mas também da classe social de onde os magistrados, em
grande parte, provêm. O cientista político Ricardo Costa de Oliveira, professor
associado da Universidade Federal do Paraná, pesquisou as relações entre Justiça
e estruturas de parentesco, observando que instituições como o Judiciário e o
Ministério Público estão atravessadas por interesses e capitais sociais familiares. Em
estudo apresentado no IX Encontro da ABCP (2014), o autor afirmou ter verificado a
124
31
ALMEIDA, Frederico Normanha Ribeiro de. A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da
Justiça no Brasil. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2010. Citado por OLIVEIRA, Ricardo Costa
de.168
125
32
Foucault os chama de ubuescos, fazendo menção ao caráter absurdo e caricato do personagem
Ubu, presente na obra Ubu Rei, de A. Jarry
127
33
Trata-se do prefácio escrito por Foucault para a obra de Debard, M. e Henning, J.-L. Les juges
kaki. Paris, A. Moreau, 1977. Foucault explica que “Les juges kaki é a crônica das audiências dos
oito tribunais permanentes das forças armadas, entre 1975 e 1977” (op. cit., p. 59).
128
Sra. R.: Atendendo. Era o Município, a escola mandava as crianças para lá,
aparecia gente batendo na porta. Até hoje aparece muita gente lá. Não tem
muita vaga. E eu pegava os processos, quer dizer, os casos e atendia. Era
meio estranho, era mais uma espécie de ajuda, porque só vinham pessoas
muito pobres, tinham dificuldade de vir. Fazia também grupos, isso era
muito legal. Grupos de pessoas com HIV, depois fiz grupos de pessoas com
tuberculose, para conscientizar. Fiz também grupos de orientação sexual,
por incrível que pareça (risos).
Entrevistador: Com adultos?
Sra. R.: Sim, com adultos, para conscientizar quanto ao uso de camisinha,
isso dá uma experiência muito interessante. Algumas mulheres casadas
diziam “não posso pedir pro meu marido usar camisinha, se eu pedir ele vai
achar que tô transando fora”. Muito interessante. Eu gosto muito de
trabalhar. Esse foi meu primeiro trabalho direito, fiquei muito entusiasmada.
Aí depois fiz outro concurso, pro Estado. E aí fui trabalhar no CPRJ, o
Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro. Fiquei lá um tempo, não muito. É que
demorou pro Estado me chamar, e antes de ser chamada para esse
segundo concurso, eu já tinha feito o concurso do TJRJ, que também
demorou a me chamar. Eu fui então chamada pro CPRJ (toca o telefone,
estamos numa sala de atendimento). Deixa tocar, nem estamos em horário
de trabalho. Eu fui chamada pro CPRJ, passei só cerca de seis meses. Eu
então fui trabalhar num hospital psiquiátrico, eu gostava muito. Então passei
pra Justiça e entrei aqui onde estou hoje
Entrevistador: E por que a mudança do Município para o Estado?
Sra. R.: Por causa de salário. O Município naquela época pagava muito
pouco, depois foi melhorando. O Estado pagava melhor e a justiça muito
melhor. Mas eu gostava de fazer concurso também, sou “concurseira”. Fiz
um monte de concurso, uma vez fiz pra Magé, tirei segundo lugar e fiz sem
nem saber qual era a matéria. Mas aqui na Justiça demorou pra me chamar,
mas acabou sendo bom. Se tivessem me chamado antes, eu teria sido a
última a escolher. Como, apesar de estar entre os doze primeiros (da
capital) só fui chamada na segunda leva, fui a primeira dessa segunda leva
e aí pude escolher vir pra cá. Nem tinha ainda um setor de psicologia,
éramos só eu e a colega depois de mim. A gente nem tinha lugar pra
atender, nem tinha lugar pra ficar, a gente ficava nos corredores. Eu atendia
de manhã cedo na sala da promotora, ou na sala de audiências. Depois
com o tempo é que a colega batalhou, batalhou, ela tem um monte de
conhecimentos aqui. Aí fomos conseguindo as coisas.
dinheiro certo todo mês. Essa coisa do ter - não ter não dá pra mim. Agora
eu estou satisfeita, gosto muito do meu trabalho aqui.
Entrevistador: Mas se você for comparar as três experiências que você
citou aqui, Município, Estado e Justiça, do ponto de vista da gratificação
profissional, o que você escolheria?
Sra. R.: Aqui. Porque no Município eu ficava meio parada, meio que
largada. Aqui também a gente ficava, pelo menos no começo. Mas quando
eu entrei aqui, era uma deferência com a gente, sabe? Eu achava o máximo
ser chamada em audiência, a primeira pessoa a falar era eu. Apesar do
estresse eu gostava. Não sei se tive sorte com os juízes, muita gente acha
que não. Não sei se porque eu sou mais velha, os juízes sempre me deram
muito cartaz: “vamos escutar o que a psicóloga tem a falar”. No Município
não tinha isso.
34
acabou tudo, naquela hora em que o juiz fica ditando a Assentada , eu virei
pro cara, baixinho, e disse: “você tá se tratando?”. E aí o juiz teve um
ataque na frente de todo mundo, cheio de gente na sala: “doutora, a
senhora é ouvinte. A senhora sabe o que é ouvinte? Ouvinte ouve, não
fala”. E ficou aquele clima horrível, eu fiquei arrasada. Mas a gente só pode
calar a boca das pessoas com trabalho. Ele só me deu um processo depois
de meses e meses.
Entrevistador: Vocês passaram meses sem receber processo?
35
Sra. R.: Sim. Pelo menos eu, com esse juiz, a quem eu era ligada .
Quando ele me deu esse primeiro processo, eu fiz da melhor maneira,
apesar de nem saber direito como atuar. Ele ficou muito impressionado. Aí
tempos depois, em audiência, ele, que era rude, disse “Eu quero dizer pra
todo mundo aqui que estou impressionado com o trabalho da doutora
psicóloga”. Foi uma coisa inesperada. Então a promotora que tinha lá e que
gostava de mim disse: “inesperado não é não, doutor. Ela é uma psicóloga
concursada”. O juiz então disse: “Ah meu Deus. Ela é concursada?!”
Entrevistador: Ele não sabia que você era concursada?
Sra. R.: Não sabia. Ele continuou: “a senhora é concursada?”. Respondi:
“por que o senhor acha que eu estou aqui?”
Entrevistador: Isso aconteceu quanto tempo depois que vocês entraram?
Sra. R.: Sei lá, uns seis meses depois. E ele falou assim (dando uma
entonação peculiar à própria fala, como se reproduzisse a do juiz):
“impressionante, que coisa boa! Quer dizer que temos um diamante bruto
aqui na vara?”. Eu respondi: “olha doutor”, na época eu tinha vinte anos de
formada, “depois de tanto tempo, eu já estou pra lá de lapidada!”. Aí ele
ficou apaixonado por mim! (risos). Foi a minha vingança. Daquele dia em
diante, se ele me chamava pra audiência e eu não estava, ele desmarcava
a audiência. Acho que ele precisava de uma porrada. Com esse fora (do
diamante lapidado) eu lavei minha alma.
34
A entrevistada faz referência à ata da audiência, um resumo de todos os depoimentos colhidos, das
intervenções dos advogados e promotores, bem como da decisão judicial. Este documento, ditado
pelo juiz ao secretário, deve, ao final, ser assinado por todos os participantes da audiência.
35
A entrevistada se refere ao período anterior à criação das ETICs, quando os psicólogos eram
lotados em uma vara de família específica. As ETICs foram criadas no final de 2009.
133
dele. Então eu tive sorte, eu acho. Eu faço o que tenho que fazer, alguns
reconhecem, outros não. Mas isso é serviço público, nem todo mundo
reconhece, a gente vai levando. Mas no início foi bizarro, a gente tinha que
ficar nos corredores, às vezes nem lugar lá tinha, a gente tinha que pedir
licença pra sentar. Só podia ser muita vontade de trabalhar, porque isso
acaba com o psiquismo de qualquer um (risos). Depois foram chegando
outros psicólogos, conseguimos essa sala aqui. E fomos conseguindo nosso
espaço. O pessoal não sabia pra que servia o psicólogo, a gente foi de vara
em vara falando sobre o nosso trabalho. Os juízes foram então aos poucos
mandando processos. Porque antes ninguém mandava e a gente ficava
sem fazer nada. Esse primeiro juiz era meio ríspido, as pessoas entravam
na sala dele e saíam chorando, ele tinha uma fama... Mas no início a gente
ficou meio largado, ninguém sabia pra que servia psicólogo, esse juiz tava
mais era perdido mesmo, eu também estava.
Entrevistador: Imagino como deve ter sido difícil esse início em que você
não sabe o que a instituição espera de você...
Sra. R.: Sim, muito difícil. Uma coisa é você chegar num lugar que já tem
um trabalho estabelecido. E pra saber como escrever um relatório?! A gente
foi quebrando a cabeça! Por exemplo, a gente não colocava referencial
teórico, a gente passou a colocar por causa das porradas que a gente
levou. As pessoas entravam no CRP com reclamação, dizendo que o laudo
não continha referencial teórico, então a gente passou a fazer. A gente foi
aprendendo aos poucos como fazer um relatório.
Entrevistador: Fala um pouco sobre as porradas...
Sra. R.: Muita porrada do CRP. Isso é o pior.
Entrevistador: Por quê?
Sra. R.: Eu tive um processo contra mim no CRP em que eu fiquei seis
anos. Rolou durante seis anos! Uma parte ficou puta com o que eu escrevi,
sempre alguém fica puto, né? Ainda mais naquela época que eu era mais
enfática, meu jeito de ser é enfático, mas hoje procuro não ser tanto. Uma
mulher não gostou do que eu escrevi, entrou no CRP. Quando o CRP aqui
do Rio foi analisar o meu processo, o CRP sofreu uma intervenção. Não
tinha mais CRP aqui, então meu processo ia pro Rio Grande do Sul, ia pra
outros lugares. Então ficou muito demorado. Seis anos depois é que foi ter a
audiência, quando o processo voltou pra cá. Tive que ter um advogado.
Depois disso tudo não deu em nada. Claro, não tinha sentido nenhum
aquela reclamação, mas me consumiu seis anos. Tive que ir na audiência,
foi horrível, mas aí fui inocentada – é assim que se diz? – por todos.
Entrevistador: O que é pior em relação ao CRP? Você disse que nada
fazia sentido.
Sra. R.: Horrível, minha primeira experiência foi horrível. Eu fui super
maltratada no CRP, como se fosse uma bandida. Porque eles também não
sabiam sobre o trabalho do psicólogo na Justiça. Tudo isso foi muito no
início. Eu ia pra lá e ficava duas horas esperando. Aí resolvi arrumar um
advogado, um conhecido meu (identifica-o), todo ricão, todo grandão. Cara,
tudo mudou na minha vida! No primeiro dia que eu fui com ele à audiência,
eu disse que a gente ia esperar mais de três horas. Ele disse: “não vamos
não!”. Depois de dez minutos de espera ele foi logo reclamando e
chamaram a gente rapidinho. Foi impressionante. Mudou totalmente a forma
como me trataram. No dia em que fui prestar depoimento, foi uma coisa
horrível. Me botaram diante de um monte de menininhas. Eu já estava com
meu advogado. Quando me perguntavam alguma coisa que eu não sabia,
eu me virava automaticamente pro advogado. Aí ela, a menininha, dizia:
“não pode se dirigir ao advogado”. Eu questionava, dizendo que só queria
confirmar uma informação, ou data. Ela repetia (faz uma voz enérgica): “não
pode!”. Meu advogado ficou calado. Na segunda vez em que eu me virei pra
ele, ela disse: “a próxima vez em que a senhora se dirigir ao advogado, eu
vou ser obrigada a solicitar que ele saia da sala!”. Assim, como se eu fosse
uma bandida. Aí o advogado, que é poderoso, disse: “experimenta. Por
favor me mande pra fora da sala. E por sinal, qual o seu nome e CRP?”. Aí
134
Entrevistador: Mas você não acha que quando a gente opina a gente
mesmo pode estar reforçando isso? O juiz diz que está seguindo o parecer
técnico e acaba se eximindo das consequências daquilo que ele está
decidindo. O que você acha?
Sra. R.: Acho que sim. Mas se você nunca opina você pode estar fugindo
da sua responsabilidade.
Entrevistador: Fala um pouco sobre responsabilidade. Você sofre muito
com isso?
Sra. R.: No início, muito. Hoje em dia, depois de 14 anos... mas no início,
caraca! Eu passava noites sem dormir. Eu tenho muita responsabilidade, eu
trabalho assim, com muita organização, muito esmero.
Entrevistador: E sofria por quê?
Sra. R.: Sofria porque não queria ser injusta, queria ajudar as pessoas. Hoje
eu parei um pouco de me cobrar isso. Mas quando vejo uma situação entre
pais e filhos voltar ao normal, isso é bem legal. Mas há casos em que a
gente erra, eu errei muitas vezes. Eu só faltava morrer. Mas tem coisas que
136
só o tempo vai dizer. Casos de abuso eu quase que morria no início, até
hoje eu meio que fujo deles. Abuso é muito difícil.
Entrevistador: Mas você acha que dá pra definir quem facilita mais e quem
dificulta mais?
Sra. R.: Às vezes dá. Quando a coisa é mais hard, mais exagerada, fica
mais fácil.
Entrevistador: Mas tem casos muito ambíguos...
138
Sra. R.: Caso ambíguo pra mim é o pior. Aí eu deixo meio em aberto.
Entrevistador: E o processo volta?
Sra. R.: (risos) Volta. Dependendo do juiz, volta sim.
Entrevistador: E quando volta?
Sra. R.: Bom, aí você vai reavaliando a situação e vai firmando uma
convicção.
Entrevistador: E que tal manter a mesma opinião (deixar em aberto, sem
definir quem deve o quê), mesmo que o processo volte?
Sra. R.: (relutando, demora para responder) Quanto mais você conhece o
processo... porque tive um processo que já era a sexta vez que voltava. A
criança tinha meses no início e já estava com cinco anos de idade. Mas aí
criamos outra regrinha: você atua no processo, se o processo voltar você
atua de novo. Se voltar novamente, aí a gente já passa para outro
psicólogo. É bom para ter outra visão. Isso acaba com aqueles casos em
que você fica repetindo e repetindo as mesmas coisas.
Entrevistador: Que tal, nesses tais ‘casos ambíguos’, problematizar a
questão, ao invés de responder com aquilo que a instituição espera que
façamos? Porque às vezes o juiz escreve “laudo não conclusivo”. Não seria
melhor questionar a demanda, ao invés de corresponder a ela? Seria uma
forma também de não assumir essa responsabilidade integralmente nas
nossas costas. O que você acha disso?
Sra. R.: Acho que isso que você fala faz sentido.
Entrevistador: É uma forma de a gente não colar nessa demanda
institucional que se revela excessiva.
Sra. R.: É, mas onde eu trabalho todo mundo opina. Eu tento não ser mais
tão enfática como fui antes. Mas tem casos em que você não pode fugir da
raia. Porque tem casos em que não tenho mais paciência. Mãe que impede
acesso do pai ao filho, por exemplo. Ela diz que o pai alcoólatra. Quando
eram casados, bebiam juntos e socialmente, agora que se separaram o cara
virou alcoólatra? Não vem com esse papo furado, não tenho mais paciência.
“Ah, depois do fim de semana ele devolve a criança suja”, e daí? Foda-se.
Qual a importância disso? O que é mais importante, a criança brincar com o
pai ou voltar limpinha pra casa da mãe? Se o cara foi péssimo marido, é só
não casar mais com ele, já que chegou a essa conclusão. (risos). É uma
sacanagem que está sendo feita com a criança. Nesses casos não
podemos ficar em cima do muro. Dá pra ficar em cima do muro quando o
caso não é tão flagrante, quando os dois são bons, tanto faz para o bem-
estar da criança ficar com um ou com outro.
Entrevistador: E sobre as consequências futuras do que a gente escreve?
Sra. R.: Tudo o que a gente escreve tem consequências futuras, inclusive
pra gente. Não sei.
Entrevistador: Isso te angustia?
Sra. R.: Você tá falando com uma pessoa que já está aqui há quinze anos,
já passei por fases de desespero.
Entrevistador: Eu estou há quatorze, mas ainda sofro bastante.
Sra. R.: Eu só tenho experiência aqui. A vara da infância é difícil?
Entrevistador: Muito!
Sra. R.: Acho que deve ser desesperante, deve ser enxugar gelo. Aqui a
gente também enxuga gelo. Eu não gostaria de fazer vara de infância não.
Entrevistador: Por que ‘enxugar gelo’?
Sra. R.: Lá é tanta coisa envolvendo a criança, tantos problemas sociais,
psicológicos. É falta de tudo, de tudo, de tudo. Não te dá um desespero?
Porque uma coisa é você atuar num caso de visitação, aí a criança começa
a visitar o pai, a coisa melhora. Mas um garoto desse, em conflito com a
lei...sabe, são tantas coisas...é problema familiar, é problema social, de falta
de recursos, de tudo...falta de recurso da sociedade...não sei, acho que eu
ia ficar meio desesperada. Depois o garoto morre... às vezes morre, não
morre?
Entrevistador: Morre.
139
Sra. R.: Pelo amor de Deus! Não aguento isso não. Alguém tava falando pra
mim de um garoto que morreu, outro que sumiu. Uma coisa é você ver uma
mãe chata, que não quer que o filho conviva com a madrasta. “Mas quando
você arrumar um marido, seu filho não vai poder conviver com ele?” Outra
coisa é você ver um garoto... o que você vai fazer por ele? Não sei. O que o
psicólogo faz? Conversa com ele? Eu acho isso desesperante. Acho que o
mais fácil deve ser adoção.
Entrevistador: Eu acho que tudo o que diga respeito a uma expectativa de
previsibilidade (que se imponha ao trabalho psi) é muito complicado. E a
adoção tem muito disso.
Sra. R.: Mas existem expectativas e expectativas. Não sei... uma época eu
tirei as férias da psicóloga que trabalhava com adoção internacional. Eu via
os processos e dizia: “gente, eu quero morar aí”, aquela casa maravilhosa
em Lyon. Aí o cara vem e quer adotar quatro irmãos, fodidos, pretinhos.
Como é que pode? Um de dez (anos), outro de doze, outro de oito... parece
que só estrangeiro quer adotar assim. A gente acha que é uma coisa boa,
mas sabe lá? Isso é mais difícil ainda. Aliás, ninguém sabe nunca. Adoção
ninguém sabe, pode ser que dê certo, pode ser que não.
Entrevistador: Mas você acha que existe uma cobrança por parte da
instituição no sentido da gente saber? Você falava dos casos de abuso,
neles você me disse que sim. Porque eles querem que a gente determine se
houve abuso, quem abusou.
Sra. R.: Ah, muito difícil, é por isso que eu fujo de (casos de) abuso como o
diabo da cruz! Mas acho que não se pode dizer, nem que houve nem que
não houve. Podemos dizer: ‘há indícios’, quando a coisa está muito na cara.
Os casos de abusos me botavam neurótica, eu passava a noite toda sem
dormir. Eu ficava pensando: se eu digo que houve e não houve, eu estarei
impedindo uma criança de ver o pai, isso é horrível. Um pai que não fez
nada vai ser penalizado, e pior, a criança vai ser penalizada por uma coisa
que eu nem tenho certeza. E se eu digo que não houve e o pai volta a
visitar normalmente, e tiver havido? Isso me botava doida. Isso eu resolvi
muito facilmente, não atendo mais abuso (risos). Procuro não atender.
Entrevistador: E as situações ambíguas? Porque a gente tá pensando
assim: abuso, houve ou não houve.
Sra. R.: É muito complicado. Uma vez eu peguei o caso de uma mulher
dizendo que o pai e o avô (da criança) abusavam da criança. Aí eu fui ver: o
pai e o avô eram árabes, e o que ela falava que era abuso eles diziam que
faziam com todos os filhos, com todos os netos. No caso dos árabes,
quando era filho homem, eles gostam de filho homem, eles beijavam o pinto
da criança e diziam: “esse é macho, é macho! Sabe aquela coisa de tirar
foto do filho pelado? Então abuso tem isso, tem que ver o contexto. E ainda
tem a época, na Grécia antiga era comum um rapaz ser iniciado
sexualmente por um homem mais velho, isso lá não era visto como abuso.
Abuso ou não, depende da época, depende do lugar. Nos EUA de hoje os
pais estão com medo até de botar os filhos no colo porque é visto como
abuso. O menininho de seis anos beija a menina de cinco na boca e já é
acusado de abuso. A coisa toda é cheia de facetas.
Entrevistador: Então nesse ponto você concorda que não nos cabe dizer
se houve abuso ou não.
Sra. R.: Até porque a gente não sabe. Se eu estivesse lá na hora e tivesse
visto até falaria, mas eu não estava lá. Quem sabe é a criança e às vezes
nem a criança sabe, a mãe pode ficar falando: “olha, teu pai pegou no teu
peru”, aí o menino repete o que ouviu da mãe. E na verdade quando a mãe
começa a falar ele já está sendo abusado, ele vai se comportar como uma
criança abusada mesmo que não tenha sido, de tanto ouvir que foi. Por isso
essa coisa que agora estão fazendo, como é o nome?
Entrevistador: Depoimento especial?
Sra. R.: Isso! Em vara de família não dá certo, porque tem muito
mais coisa envolvida. Eu já muitos casos de crianças que contaram
um monte de coisas e depois disseram que foi a mãe que mandou
falar. A X (colega que trabalha com Depoimento Especial nas varas
criminais) uma vez colheu um depoimento de uma criança que,
quando tava gravando, contou um monte de coisas que o pai tinha
feito com ela. Quando desligou o equipamento, a criança se virou
para a nossa colega, perguntou se tava tudo desligado e disse: “tia,
era tudo mentira, foi a mamãe que mandou dizer tudo”. A X então
voltou à sala de audiência e pediu para regravar tudo. A mãe quase
que teve um chilique. Neste caso, a mãe não catequizou direito, mas
141
A entrevista com a Sra. R. mostrou, além de seu humor bem peculiar, soluções
criativas para determinadas questões, como o caso do parâmetro relacional, que a faz
privilegiar, em situações de disputa de guarda, o(a) genitor(a) que, de forma generosa, não
egoísta e não autoritária, abre espaço para a convivência da criança como o outro genitor.
Isso evidencia uma preocupação com o bem-estar do filho para além de interesses
particulares ou da necessidade de retaliação contra quem é seu grande inimigo no
momento. Esse parâmetro relacional parece ter emergido da análise das próprias situações
cotidianas de trabalho, assim como outro parâmetro mencionado: o de atuar no processo e,
caso ele retorne ao setor de Psicologia, realizar nova intervenção. No caso de um segundo
retorno, a ideia é distribuí-lo para outro psicólogo, acabando assim com repetições
sucessivas e intermináveis, bastante comuns. O modo de atuação da entrevistada revela
sua singularidade, uma vez que inventa critérios e modos de ação que, apesar de incapazes
de unanimidade, mostram-se distanciados de justificativas exclusivamente cientificistas e
tecnológicas, como no caso da crítica da entrevistada ao depoimento especial.
Isso não impediu que a necessidade de reconhecimento profissional também
aparecesse em diversos momentos do relato da entrevistada, às vezes sob a forma de
uma identificação com os imperativos hierárquicos da instituição, representados na
necessidade de exercitar um status e uma posição exercidos por ocasião da
participação em audiências, por exemplo. Da mesma forma, o relato da Sra. R. deixou
transparecer certo compromisso com uma visão essencialista e especialista da prática
142
psicológica, vista por ela como mais voltada ao universo simbólico do que ao
enfrentamento de questões políticas e sociais.
A Sra. R. se portou de forma bastante sincera e generosa, sem furtar-se às
indagações propostas e sem deixar de posicionar-se a pretexto de manter em
segredo certos meandros de sua atuação. Dejours (2008) aponta uma dificuldade
adicional para o pesquisador em psicodinâmica do trabalho, sua área de atuação: os
trabalhadores, a fim de evitar críticas e possíveis punições, costumam recusar-se a
explicitar as soluções que adotam e que fogem aos padrões estabelecidos,
mantendo um segredo sobre o trabalho real que de fato desenvolvem. O autor
estabelece assim uma diferença entre o que chama de trabalho prescrito e trabalho
real, afirmando ser impossível desenvolver qualquer atividade cumprindo
rigorosamente as especificações estabelecidas. Para Dejours, a prescrição pura e
simples é inaplicável, por desconsiderar forças de outras e várias naturezas,
incidindo sobre o exercício laboral e sobre o trabalhador, que precisa munir-se de
artimanhas que infringem as normas e tornam possível, paradoxalmente, a execução
da atividade e a qualidade desse exercício. Assim, o real do trabalho de dá,
principalmente, pela resistência aos procedimentos estabelecidos; por ser
inaplicável, o prescrito precisa ser fraudado, nas palavras do próprio autor. Adverte
Dejours: “pode-se aqui perceber o paradoxo: para bem fazer é preciso infringir. Mas
no caso de um incidente, é a própria boa vontade do agente que se volta contra ele”
(DEJOURS, 2008, p. 41). O autor se refere a acidentes que porventura ocorram na
execução e que possam desvelar as soluções criativas utilizadas para burlar o
prescrito, prescrição essa que necessita ser burlada exatamente para tornar possível
a concretização de um trabalho de qualidade.
A inclusão desse aspecto da teorização de Dejours se dá pela necessidade
de explicitar a diferença entre a prescrição, firmada pela instituição, e a realidade da
atuação profissional. O autor refere-se, majoritariamente, a funções operacionais;
como exemplos, cita os trabalhadores de usinas nucleares, que têm de
frequentemente desobedecer aos protocolos formais, caso queiram que o reator não
deixe de funcionar nem dê prejuízos. Cita também o exemplo de trabalhadores da
construção civil. Entretanto, Dejours não se furta a considerar que sua reflexão pode
também valer para o chamado trabalho intelectual e a realidade do serviço público.
Gostaria de destacar um aspecto da questão criatividade: nem sempre
trabalhar bem significa obedecer ao protocolo, às ações que são esperadas ou por
143
36
FOUCAULT, Michel. Os intelectuais e o poder. Em Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 2003. (Ditos e escritos, IV).
146
investido, mesmo por aqueles que aparentemente não teriam nele um interesse mais
imediato: “como acontece que pessoas que não têm tanto interesse nele seguem,
abraçam apertadamente o poder, mendigam uma parcela dele?” (p. 45). Deleuze faz
menção a um desejo que pode se manifestar mesmo contra interesses imediatos de
classe ou posição social. Ainda que o poder esteja a serviço dos interesses de uma
classe dominante, considera que se pode desejar de uma maneira mais difusa e
profunda que o interesse imediato. Lembrando Reich, afirma ele que as massas não
estavam enganadas – elas desejaram o fascismo: “há investimentos de desejo que
modelam o poder e o difundem, e fazem com que o poder se encontre tanto no nível
do tira como no do primeiro-ministro, não havendo absolutamente diferença de
natureza entre o poder exercido por um simples tira e o poder exercido por um
ministro” (Deleuze, ibidem).
Refletindo sobre as complexas relações entre desejo, poder e interesse,
Deleuze e Foucault não fazem mais do que aludir à nossa implicação no sentido de
manter forças que ativam os mecanismos do poder, uma vez que desejamos o poder
e trabalhamos no sentido de sua perpetuação. Mas o contrário também é verdadeiro,
uma vez que a reflexão apresentada pelos dois pensadores concebe e propõe um
movimento inverso, aquele que “irrita epidermes e aguça intolerâncias”.
A explicitação dos desconfortos por parte dos interlocutores-heterônimos,
neste trabalho, abriu caminho para uma nova problematização quanto à pesquisa,
tomando como base o ensaio de Vinciane Despret (2011) sobre o segredo na
situação de psicoterapia. A autora aponta o papel do segredo exercido na clínica
como algo que, além de proteger a figura do terapeuta, se constitui como um
instrumento de interiorização do mal-estar, o que forja e engendra a ideia de
psiquismo como interioridade individualizada. A ordem da verdade é então
deslocada para o interior desse indivíduo-mônada. Estendendo sua reflexão para o
campo da pesquisa, Despret, na segunda parte do ensaio citado, problematiza a
questão do anonimato com o que chamou de efeito sem nome, uma estratégia para,
aparentemente, proteger os sujeitos envolvidos no processo investigativo. Relatando
um episódio em que colheu depoimentos de exilados da ex-Iugoslávia, a autora
percebeu que era sua a necessidade de manter anônimos os entrevistados; estes,
ao contrário, sentiam-se valorizados ao sair da condição de sujeitos sem nome e
sem rosto. Despret então conclui que “a ética da confidencialidade, a prática do
segredo têm – principalmente – a intenção de proteger a autonomia do profissional,
147
histórias. Sei muito bem de onde cada relato saiu”37. Entendo o depoimento do
cineasta não como a evocação de um suposto caráter autobiográfico da história, o
que a manteria em sua dimensão individual e localizada, mas como parte de uma
experiência coletiva que costuma ser vivida de forma pessoal e patologizada.
Foi esta a tônica da pesquisa empreendida: desvelar a dimensão coletiva de
uma experiência que costuma ser vivida – e sofrida – de forma particular, como se
somente nos coubesse – ainda que a custo de muito sofrimento, tensão e
eventualmente descontrole e adoecimento – a submissão a imperativos de ordem
institucional. Na pesquisa realizada, o objetivo, analogamente, foi o de retirar
situações aflitivas da esfera isolada na qual costumam ser vivenciadas, restituindo-
lhes o caráter extraindividual e explicitando os jogos de forças que criam suas
condições de possibilidade. Em três dos relatos selvagens aqui apresentados, foi
apontado o aspecto nostálgico observado no discurso dos entrevistados. De acordo
com a Wikipédia38, a palavra Nostalgia, do grego nóstos, reencontro, e álgos, dor,
sofrimento, “é um termo que descreve uma sensação de saudade idealizada, e às
vezes irreal, por momentos vividos no passado associada com um desejo
sentimental de regresso impulsionado por lembranças de momentos felizes e antigas
relações sociais” (grifos meus). De sua etimologia, vemos como a idealização está
presente na evocação nostálgica, donde a escolha do termo nostalgia para designar
alguns incômodos apontados nas entrevistas.
Jeanne Marie Gagnebin, em um despretensioso mas especial escrito (2007b),
discorre sobre o ato de ensinar filosofia. A autora alerta para o que chama de
primeira regra do ensino da filosofia: “não temer os desvios, não temer a errância”
(p. 1). Só assim podemos nos abrir ao novo, àquilo que faz sua emergência a partir
de (e apesar de) programações e expectativas previamente delineadas. As
entrevistas realizadas neste trabalho procuraram abrir esse espaço para o inusitado
das vozes que falavam não para confirmar hipóteses, mas para explicitar a
inquietude de suas vivências, inserindo-as em outros campos e construindo novas
formas de percebê-las e senti-las. De acordo com a autora, “paciência e lentidão são
virtudes do pensar e, igualmente, táticas modestas, mas efetivas, de resistência à
pressa produtivista do sistema capitalista” (op. cit., p. 2). Isso significa não se deixar
37
Retirado de: <http://www.ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/2014-10-17/filme-argentino-
relatos-selvagens-faz-sucesso-com-personagens-fora-de-controle.html>.
38
Encontrado em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Nostalgia>.
149
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Disponível em: <http://lediorosa.jusbrasil.com.br/artigos/121941895/por-que-nos-
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