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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Instituto de Psicologia

José Eduardo Menescal Saraiva

Os psicólogos e seus relatos selvagens: uma cartografia de medos


e inquietações na prática psi no Judiciário

Rio de Janeiro
2016
José Eduardo Menescal Saraiva

Os psicólogos e seus relatos selvagens: uma cartografia de medos e


inquietações na prática psi no Judiciário

Tese apresentada como requisito parcial


para a obtenção do título de Doutor, ao
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Social, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração: Psicologia
Social.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Heliana de Barros Conde Rodrigues

Rio de Janeiro
2016
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

S243 Saraiva, José Eduardo Menescal.


Os psicólogos e seus relatos selvagens: uma cartografia de medos e
inquietações na prática psi no Judiciário / José Eduardo Menescal
Saraiva. – 2016.
157 f.

Orientadora: Heliana de Barros Conde Rodrigues.


Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Psicologia.

1. Psicologia Social – Teses. 2. Cartografia – Teses. 3. Judiciário –


Teses. 4. Ensino médio – Teses. I. Rodrigues, Heliana de Barros Conde.
II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III.
Título.

es CDU 316 6

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou


parcial desta tese, desde que citada a fonte.

___________________________________ _______________
Assinatura Data
José Eduardo Menescal Saraiva

Os psicólogos e seus relatos selvagens: uma cartografia de medos e


inquietações na prática psi no Judiciário

Tese apresentada como requisito parcial


para a obtenção do título de Doutor, ao
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Social, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração: Psicologia
Social.

Aprovada em: 28 de março de 2016.

Banca Examinadora:

_____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Heliana de Barros Conde Rodrigues (Orientadora)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

_____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Anna Paula Uziel
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

_____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Cecília Maria Bouças Coimbra
Universidade Federal Fluminense

_____________________________________________
Prof. Dr. Francisco Ramos de Farias
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

_____________________________________________
Prof. Dr. Ronald João Jacques Arendt
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro
2019
DEDICATÓRIA

À memória de meu pai, José Saraiva de Souza.


À minha mãe, Maria José Menescal, grande incentivadora de todas as horas.
AGRADECIMENTOS

Neste momento em que dá vontade de sair enumerando todas as pessoas


que já cruzaram meu caminho (em todas as épocas e eras!), controlo (a contragosto)
a euforia e os excessos (que antes de exagerados, seriam até apropriados) para
enumerar alguns desses partícipes-cúmplices:
Murilo (e Flora Rosa, nossa pequena e peluda noctívaga-perambulante,
zanzando pela casa e varando as madrugadas, nem aí pro meu sono!), pela magia
da convivência.
Minha família – irmãs, irmão, cunhado, cunhada, sobrinhos –, sempre um
porto seguro, um amparo. À minha mãe, pelo amor e incentivo, aos quais nem
sempre consigo retribuir.
Heliana, minha grande amiga-incentivadora-orientadora Heliana Conde. Sua
presença se espraia por todo este trabalho. Sua generosidade, sua torcida, suas
observações, sugestões e palavras doces (às vezes nem tanto!) são o que levo de
mais precioso desta experiência. A você que não desistiu de mim. Sem você (e vá
me perdoando o lugar-comum...) teria sido impossível.
Kalina, minha prima queridíssima e grande amiga de muitos (e grandes)
carnavais, pela presença desde sempre na minha vida, ainda que geograficamente
distante. Além do mais que luxuoso auxílio na chiquérrima versão para o inglês do
Resumo desta tese.
Santiago Offenhenden, que de forma muito generosa e amiga fez a bela
versão do Resumo em espanhol. Sou grato a Santiago e a sua mulher, Mariana
Paranhos, uma amiga muito querida.
Meus interlocutores-heterônimos, que corajosa e generosamente
concordaram em dividir comigo suas experiências (e agruras) de trabalho.
Migas e migos queridxs, presentes na minha história e de alguma forma
também neste trabalho: Preciliana e Luís Renato (looonga história...), Robinson
(amigão e vizinho de porta, que pra me ajudar na tese me presenteou com uma
escrivaninha cinematográfica!), Daniele Bloris (grande parceria de vida, tornada
possível a partir da convivência na vara da infância), Maitê, Júlio (e sua maravilhosa
mamãe Wilma).
Rita e Mário Tadeu, pela inesquecível convivência lá pelas bandas do sertão
dos Inhamuns na remota década de 90 do século passado, dividindo o calor (não
somente o climático, mas também o humano), muriçocas, casa, comida (e as
moscas na hora do almoço!), chope (muitos!), além dos sonhos que dividimos até
hoje.
Amigxs-companheirxs de grupo de pesquisa: Camuri, Aline, Eder, Alice, pela
convivência cheia de afeto e alegria nesses quatro bem vividos anos de doutorado.
Ao Eder, agradeço ainda pela cessão de sua bela tradução do texto de Jean Genet.
Eliana Olinda, por todas as conversas/reflexões/discussões que desaguaram
na concretização deste trabalho; Andreia Pequeno, pelas sugestões e pelo trabalho
em dupla com o Serviço Social desde a época da viji; Érika Reis, que me presenteou
com seu último livro, produto de sua linda tese de doutorado; Lindomar Darós, que
me recebeu de forma tão gentil em sua casa, dando dicas precisas de como
encaminhar o pedido de licença-prêmio ao TJRJ.
Minhas amigas-colegas do Núcleo de Psicologia das varas de família (TJRJ,
comarca da capital): Geórgia Scher, Glícia Brazil, Katia Estol, Lenora Niquet e Sílvia
Freitas, pelo apoio e compreensão integrais.
Meu analista, Luiz Felipe Nogueira, pela presença que tornou possível
elaborar tantas dores (não só de amores...) e delícias.
Professores que tão gentilmente se dispuseram a compor a banca, meu
dream-team: Anna Uziel, Cecília Coimbra, Francisco Farias, Ronald Arendt, bem
como Kátia Aguiar e Rosimeri Dias, que também toparam a parada.
Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, na pessoa do
Juiz de Direito Auxiliar, João Luiz Ferraz de Oliveira Lima, coordenador dos núcleos
regionais da CGJ, pela concessão de quatro meses seguidos de licença-prêmio, o
que me permitiu a dedicação integral à tese nos últimos meses de trabalho.
RESUMO

SARAIVA, J. E. M. Os psicólogos e seus relatos selvagens: uma cartografia de


medos e inquietações na prática psi no Judiciário. 2016. 157 f. Tese (Doutorado em
Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

A prática psicológica no âmbito judiciário é o tema por excelência deste


trabalho. São descritas, inicialmente, algumas situações problemáticas que se
transformaram em questões judiciais no âmbito da vara da infância. Observou-se
que houve, por parte da instituição, uma expectativa de previsibilidade dirigida ao
trabalho do psicólogo, ou seja, a demanda de que a avaliação psicológica pudesse
confirmar ou refutar a ocorrência de determinadas situações reais – como, por
exemplo, o abuso contra crianças –, bem como desvelar ocorrências futuras do
comportamento das partes envolvidas nos processos. Partindo de considerações
teóricas a respeito de ciência, verdade e poder, procuramos cartografar medos,
anseios e expectativas dos psicólogos do Poder Judiciário do Estado do Rio de
Janeiro. Essa construção cartográfica se estabeleceu através dos relatos de cinco
profissionais, chamados de interlocutores-heterônimos, entrevistados com base nas
proposições da História Oral, bem como na perspectiva da pesquisa-intervenção,
nas quais o pesquisador se coloca como parte do trabalho prospectivo. Os relatos
deram ensejo a reflexões de caráter teórico, nas quais foram utilizadas como
referências conceituais a genealogia foucaultiana, a Análise Institucional, a Teoria do
Ator-Rede e a Teoria do Abolicionismo Penal, entre outras. A instituição judiciária foi
analisada com base em sua dimensão histórica e em suas articulações com o poder,
que forjam um espaço profundamente hierarquizado e vertical em seu contexto e
relações internas. Dessa análise, emerge a figura do magistrado, detentor de um
poder quase ilimitado, a quem se deve reverenciar e temer. A pesquisa empreendida
teve como objetivo explicitar a dimensão coletiva de uma experiência que costuma
ser vivida (e sofrida) de forma particular e isolada, como se somente coubesse aos
sujeitos envolvidos – a custo de muito sofrimento, tensão e eventualmente
descontrole e adoecimento – a submissão obediente a imperativos de ordem
institucional.

Palavras-chave: Prática psicológica. Cartografia. Judiciário. Verdade. Ciência.


Pesquisa-intervenção. História oral. Genealogia do poder.
ABSTRACT

SARAIVA, J. E. M. Psychologists and Their Wild Stories : a Map of Fears and


Anxieties in Practice Psi in the Judiciary. 2016. 157 f. Tese (Doutorado em Psicologia
Social). Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2016.

Psychological practice in the judiciary sphere is the main theme of this


research. Initially, problematic situations which have become judicial matters at a
juvenile court are described. It was observed that there is a predictability expectation
from the psychologist practice, i.e. a demand that the psychological assessment
either confirm of refute the incidence of real situations – such as child abuse –, as
well as being an indicator of possible future behavior of the parties involved in the
court cases. We have attempted to chart Rio de Janeiro State Court or Justice
psychologists fears, wishes and expectations taking into account theoretical
framework concerning to science, truth, and power. This cartographic construction
has been built through the accounts of five professionals, called heteronomous-
interlocutors, interviewed based in the Oral History propositions, as well as in the
research-intervention perspective, in which the researcher places himself as a
research participant cohort. The accounts have yielded reflections of Foucauldian,
Institutional Analysis, the actor-network theory, and the Penal abolitionist theory,
among others theoretical perspectives. The judiciary institution was analyzed in its
historical dimension and in its articulations with power, which lead to a highly
hierarchical and vertical environment regarding its internal affairs. Out of this analysis
surfaces the character of the magistrate, who detains a nearly unlimited sort of
power, to whom one should hold in high respect. The study has had the purpose of
eliciting the collective dimension of a practice that is experienced (and suffered) in
an individual and isolated manner; as if it were only up to the subjects involved – at
the cost of much suffering, tension and eventually lack of control and illness – the
obedient submission to imperatives of institutional order.

Keywords: Psychological practice. Cartography. Judiciary System. Truth. Science.


Interventional-research. Oral history. Genealogy of Power.
RESUMEN

SARAIVA, J. E. M. Los psicólogos y sus relatos salvajes: una cartografía de los


miedos e inquietudes de la práctica psi en el Poder Judicial. 2016. 157 f. Tese
(Doutorado em Psicologia Social). Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

La práctica psicológica en el ámbito judicial es el tema por excelencia en este


trabajo. Inicialmente se describen algunas situaciones problemáticas, que se
transformaron en cuestiones judiciales en el marco del juzgado de menores. Se pudo
observar que hubo una expectativa de previsibilidad, por parte de la institución de
justicia, dirigida al trabajo del psicólogo: la demanda de que la evaluación
psicológica confirmase o refutase si determinadas situaciones reales ocurrieron o no
–por ejemplo, el abuso de niños–, así como develar acontecimientos futuros del
comportamiento de las partes involucradas en los procesos judiciales. Partiendo de
consideraciones teóricas sobre ciencia, verdad y poder, procuramos cartografiar
miedos, anhelos y expectativas de los psicólogos del Poder Judicial del Estado de
Rio de Janeiro. Esta construcción cartográfica se estableció a través de los relatos
de cinco profesionales, llamados interlocutores-heterónimos, entrevistados
basándose en las proposiciones de la Historia Oral, así como en la perspectiva de la
investigación-intervención, en las cuales el investigador se sitúa como formando
parte del trabajo prospectivo. Los relatos dieron lugar a reflexiones de carácter
teórico, en las que se utilizaron como referencias conceptuales la genealogía
foucaultiana, el Análisis Institucional, la Teoría del Actor-Red y la Teoría del
Abolicionismo Penal, entre otras. La institución judicial fue analizada basándose en
su dimensión histórica y en sus articulaciones con el poder, que forjan un espacio
profundamente jerarquizado y verticalista en su contexto y sus relaciones internas.
De este análisis emerge la figura del magistrado, detentor de un poder casi ilimitado,
a quien se debe reverenciar y temer. La investigación llevada a cabo tuvo el objetivo
de explicitar la dimensión colectiva de una experiencia que suele ser vivida (y
sufrida) de forma particular y aislada, como si sólo cupiese a los sujetos involucrados
–a costo de mucho sufrimientos, tensión y eventualmente descontrol y enfermedad–
la sumisión obediente a imperativos del orden institucional.

Palabras-Clave: Práctica psicológica. Cartografía. Judicial. Verdad. Ciencia.


Investigación-intervención. Historia oral. Genealogía del poder.
Amigos, a nossa época não está doente, acontece que já viveu tudo; não a
torturem também tentando curá-la, apressem a sua última hora abreviando-a, e
como não é possível curá-la, deixem-na morrer.
‘Que fraco de carências, de enfermidades!’, sois vós próprios que o
confessais e se tendes ainda alguma dúvida abri então os Mistérios e vereis toda a
miséria das vossas enfermidades. Experimentai ‘reformar, então, esta situação à
turca’. Pensais dar-lhe remédio, mas, entretanto, acabais por desagregá-la. Ela já
não tem nenhuma necessidade, tal como um velho enquanto velho não tem
necessidades. É certo que ele se vê abandonado pela sua exuberância juvenil. Mas
justamente não seria velho se ainda a detivesse, e se o que pretendesse remediar
fosse este ‘defeito’ da velhice seria um reformador bem intencionado, à maneira de
Mahmoud II e dos nossos liberais. O velho vai à frente da sua decomposição e sois
vós que quereis rejuvenescê-lo, fortalecer o seu esqueleto vacilante! A nossa época
não está doente, nem pede para ser curada, ela está velha e sua hora já soou.
Max Stirner
Mistérios de Paris
SUMÁRIO

PREÂMBULO ................................................................................................. 11
1 DELIMITAÇÃO DA PROBLEMÁTICA ........................................................... 19
2 CIÊNCIA, VERDADE E PODER: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ................ 25
2.1 Sobre a busca da verdade ........................................................................... 25
2.2 Por uma ciência socialmente racional ........................................................ 33
2.3 Deixar falar o assombro: por uma história viva da prática
institucional................................................................................................... 38
3 A HISTÓRIA ORAL OU O PREDOMÍNIO DO UNIVERSO SINGULAR DA
MEMÓRIA ...................................................................................................... 44
3.1 A História Oral para além da mera proposição metodológica .................. 44
3.2 História Oral: um pouco de história ............................................................ 46
3.3 História Oral e verdade................................................................................. 47
3.4 Entre fatos e versões.................................................................................... 50
3.5 Subjetividade e memória.............................................................................. 52
3.6 Cartografar multiplicidades: introduzindo os interlocutores-
heterônimos .................................................................................................. 54
4 OS INTERLOCUTORES-HETERÔNIMOS E SEUS RELATOS
SELVAGENS .................................................................................................. 57
4.1 A Sra. P. e a escrita paralisada .................................................................... 57
4.1.1 A Sra. P. e a nostalgia da clínica ................................................................... 65
4.2 A Sra. O. e a prática aterrorizada ................................................................ 68
4.2.1 A Sra. O. e a nostalgia da certeza .................................................................. 85
4.3 O Sr. D. ou o elefante e as formiguinhas .................................................... 89
4.3.1 O Sr. D. e a nostalgia de uma justiça justa ................................................... 101
4.3.2 Abolicionismo, abolicionismos... ................................................................... 104
4.4 A Sra. E. ou a corda que sempre arrebenta para o lado mais fraco ....... 109
4.4.1 A Sra. E. nos meandros de um poder bufão ................................................. 122
4.5 A Sra. R. ou o diamante pra lá de lapidado .............................................. 128
4.5.1 A Sra. R. e uma lapidação mais que necessária .......................................... 141
PRA DIZER ADEUS, OU QUANDO OS FINS NÃO JUSTIFICAM OS
MEIOS .......................................................................................................... 144
REFERÊNCIAS ............................................................................................ 151
11

PREÂMBULO

Eu? Mas eu não estou negando coisa alguma! Olho a questão


com bons olhos! Vocês, não eu, têm necessidade dos dados
de fato, dos documentos, para afirmar ou negar. Eu não
saberia o que fazer com isso porque, para mim, a realidade não
consiste nisso, mas, sim, nas almas desses dois, nas quais eu
não posso sequer pretender adentrar, senão até onde eles me
disserem.
Assim é (se lhe parece) - Luigi Pirandello

Situação 1

O psicólogo plantonista foi chamado com urgência à sala de audiências. Na


verdade, aquele era seu primeiro plantão, o que o deixou bastante tenso desde dias
antes. Quase um expediente inteiro transcorrido sem incidentes já o fazia acreditar
que sairia ileso, pelo menos daquela vez. O telefonema do gabinete do juiz fez ruir
suas esperanças, tanto de um dia tranquilo quanto de ter hora certa e determinada
para sair do trabalho, algo bem ansiado por ele e por todos, por sinal.
Importante esclarecer que os técnicos da vara da infância e juventude, tanto
psis quanto assistentes sociais, dão informalmente o nome de plantonista ao
responsável pelos atendimentos extraordinários do dia. Cada dia da semana deve
contar com um técnico de cada setor disponível a essa demanda, que inclui desde
solicitações do gabinete do juiz – participação em audiência, pedido de
esclarecimentos, entrevistas etc. – até qualquer coisa que diga respeito ao
funcionamento do setor, o que inclui desde atendimentos não previamente
agendados até solicitações de outros setores da serventia ou externos, bem como a
responsabilidade pelo funcionamento burocrático-administrativo do próprio setor. Há
uma escala de plantonistas, elaborada sempre com um mês de antecedência pelos
respectivos responsáveis, psi e a.s. Nos dias em que está designado como
plantonista, o técnico não pode agendar atendimentos de processos sob sua
responsabilidade, justamente para estar disponível a demandas extras.
Voltando ao caso, antes que o assustado plantonista neófito pudesse
comemorar o torturante final de seu primeiro plantão sem incidentes, eis que surge
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aquele telefonema, mencionado no primeiro parágrafo. Era uma demanda do


Conselho Tutelar, imediatamente transformada em audiência extraordinária – fora,
portanto, daquelas já marcadas para o dia. Uma mãe solteira havia sido objeto de
uma denúncia anônima, que a acusava de maltratar fisicamente seus dois filhos
pequenos, de seis e sete anos. Caso se confirmasse a tal denúncia, as crianças
seriam enviadas para uma instituição de acolhimento. O juiz pediu ao psicólogo que
ouvisse a mãe (que chamarei de Ana), alguns parentes presentes – entre eles a
própria genitora de Ana – e as crianças, àquela altura já apavoradas com toda a
movimentação em torno deles e já entendendo a gravidade da situação.
O psicólogo procurou fugir do desconforto causado pela solicitação tentando
escapar da própria, que o punha no lugar de um detetive convidado a investigar a
possível ocorrência de um delito. Todas as pessoas presentes foram ouvidas,
incluindo as crianças. Todos negaram as acusações; Ana as atribuiu à maledicência
de vizinhos invejosos. Os dois meninos continuavam em pânico diante da
possibilidade de serem abrigados. O psicólogo redigiu uma Informação – documento
prévio e não conclusivo, no qual se relata o que foi ouvido nas entrevistas, bem
como se formula uma primeira ideia geral do caso –, argumentando pela
impossibilidade de uma compreensão mais detalhada da situação em apenas um dia
de contato. As pessoas envolvidas foram então liberadas e o psicólogo assumiu a
responsabilidade diante daquele caso, que se transformaria numa Representação
Administrativa contra essa mãe, uma vez que os plantonistas assumiam os casos
extras que atendiam, caso se tornassem processos.
No estudo do caso, posteriormente, as várias entrevistas com os envolvidos
trouxeram elementos que de fato sugeriam maus tratos de Ana a seus dois filhos. No
relatório, o psicólogo problematizou a questão, tentando não reproduzir a noção
institucional dos “maus tratos”, para o Judiciário inconcebíveis e justificadores de
sanções que podem chegar à destituição do poder familiar. De fato, uma das
crianças, nas entrevistas, confirmou a existência de alguns castigos físicos pesados
por parte dessa mãe. Caso não fosse devidamente relativizado, o caso poderia,
além de desautorizar Ana como mãe, fazer com que seus filhos entrassem no ciclo
de abrigamento em instituições precárias e impessoais. Como saber o que poderia
ser melhor para as crianças? Até então, nenhum parente se dispunha a receber os
dois meninos. O psicólogo não se furtou a relatar as falas do menino que explicitou
os castigos, deixando aos operadores jurídicos a decisão do caso. O fato é que as
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crianças permaneceram sob a guarda da mãe, que recebeu como medida um


acompanhamento por parte da Escola de Pais do Juízo, setor do comissariado que
trabalha com os casos de violência doméstica observados, acompanhando as
famílias envolvidas por prazos que podem chegar a dois anos.
Dois anos depois, a notícia chega à divisão de psicologia como uma bomba: a
mãe de Ana entrava com um processo contra a filha, exigindo a guarda de seu filho
mais velho e a destituição de seu poder familiar. O menino mais novo havia falecido
em circunstâncias trágicas, devido a um acidente doméstico pouco esclarecido
(negligência?). Difícil descrever o que passa pela cabeça do psicólogo responsável
pelo caso – que simplesmente adoeceu –, bem como por toda a equipe. E se tivesse
ele sugerido, à época, a imediata retirada das crianças da convivência com a mãe,
exercendo sim um poder de polícia que se revelou depois mais do que necessário e
adequado à situação? E se tivessem tentado os dois setores, psicologia e serviço
social, uma alternativa ao abrigamento, através da insistência ou mesmo da
imposição da guarda provisória dos meninos a algum familiar, já que nenhum
parente se mostrava, por ocasião dos estudos realizados, disposto a “se meter” no
caso? A vivência da tristeza e a mistura de impotência e incompetência resultantes
são de fato, como na canção do Chico (Cálice), uma bebida amarga de beber.

Situação 2

Outra situação de plantão, dessa vez envolvendo os dois plantonistas,


psicólogo e assistente social, chamados conjuntamente à sala de audiências. Uma
jovem mãe, de vinte anos, fora retirada das ruas pela FIA (Fundação para a Infância
e Adolescência) com o filho recém-nascido. Luzia (vamos chamá-la assim) esmolava
com o bebê nos braços, ao relento e sob o sol do verão carioca. Luzia era
reincidente, já que se acumulavam situações em que tinha sido vista e abordada
pelos técnicos da FIA com crianças muito pequenas e nem sempre suas filhas – mas
de parentes ou vizinhos –, em situações de mendicância. A juíza estava decidida
pela institucionalização da criança, Luzia deveria deixá-la no judiciário e ir embora.
Seria aberto um procedimento judicial de negligência contra a mãe, que poderia,
claro, perder seu filho para o Estado. Quando chegamos à sala de audiências, a
jovem dava um escândalo daqueles, acuada num canto e recusando-se a entregar a
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criança. Procuramos mediar a situação e, com muito custo, conquistamos sua


confiança, levando-a junto com o bebê a uma sala de atendimento.
Com mais custo ainda, apresentamos à juíza uma alternativa que nos ocorreu
e pareceu razoável: a de enviar Luzia e o bebê a uma instituição acolhedora de
famílias, de forma a manter mãe e filho juntos. Pensamos em um plano de longo
prazo, no qual a jovem pudesse ser assistida pelo Estado através de sua inclusão
em programas sociais, bem como manter-se longe das ruas, sem colocar seu filho
em situação de risco e sem sofrer o risco de perdê-lo para a adoção – ou a morte.
Foi uma luta e um (bom) embate, uma vez que a magistrada, apesar de convicta a
princípio, mostrou-se bastante sensibilizada com a situação e por fim concordou com
a alternativa que lhe apresentamos. Não éramos ingênuos, é claro que a
possibilidade de essa moça contrariar toda a expectativa formada em torno dela – e
que não era dela – e simplesmente fugir do abrigo era sempre uma ameaça.
Decidimos manter a aposta, e assim foi feito. A juíza, em tom jocoso, avisou aos dois
técnicos que, caso Luzia abandonasse o abrigo, faria questão de pessoalmente “dar
uns bons puxões de orelha” em ambos.
No dia seguinte, a bomba: Luzia abandonara a instituição para onde havia
sido levada, pulando o muro e levando consigo o bebê. Desconforto geral, sensação
de (ir)responsabilidade. A juíza pediu a presença dos dois técnicos, a fim de cumprir
sua promessa e distribuir os puxões de orelha. O psicólogo preferiu não se
apresentar para o sacrifício, apesar daquela sensação – que teimava em resistir a
qualquer reflexão de ordem adulta e racional – de trabalho mal feito. Tal sensação
chegou a contaminar os dois técnicos, que se envolveram numa conversa tensa e
desconfortável, para não dizer ríspida. É como se procurassem, ainda que de forma
velada, definir quem tinha maior porção de responsabilidade pela solução
apresentada – e consequentemente pelo desfecho do caso.
Alguns dias depois, outra notícia sobre o caso. Os técnicos da FIA haviam
conseguido localizar Luzia com um bebê, possivelmente seu filho, na porta de uma
agência bancária na Tijuca, na mesma situação de mendicância. Uma abordagem
imediatamente é pensada. Em contato com a FIA, soubemos do horário em que a
Kombi se dirigiria ao local; a assistente social prontificou-se a participar da
abordagem e convidou o psicólogo a ir junto, coisa que este último recusou-se a
fazer. Seguiu-se a isso outra conversa um tanto ríspida entre os dois técnicos, na
qual a primeira chegou a cogitar certa obrigação que teriam ambos de acompanhar a
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diligência, afinal a fuga de Luzia ocorrera a partir de uma ação pensada e sugerida
pelos dois.
Devido à impossibilidade de um acordo quanto à questão, ou quanto à
necessidade de expiação da culpa pelo trabalho (mal) realizado – interpretação essa
apontada pelo psicólogo (claro!) no momento da discussão –, a assistente social
decidiu acompanhar os técnicos da FIA na abordagem a Luzia e seu filho. Outra
experiência inesquecível para ela.

Situação 3

Um caso de habilitação para adoção. Uma mulher jovem e sozinha


apresentou-se ao judiciário com uma demanda de acolhimento de três crianças, que
já visitava há algum tempo em uma instituição. Mostrava-se de antemão vinculada
aos três, afirmando já senti-los como filhos. As três crianças contavam, à época, com
nove, seis e quatro anos de idade. Jovem, muito bem situada profissional e
socialmente, Maria (seu nome aqui) parecia convicta do amor que sentia pelas
crianças e do desejo de adotá-las, não hesitando em nenhum momento em
concretizar esse projeto.
Durante a habilitação, as equipes de psicologia e serviço social procuraram
refletir com Maria acerca das implicações de uma decisão desse porte, envolvendo
três crianças que passariam a fazer parte de sua vida de forma definitiva, caso se
consumasse o acolhimento. Maria mostrou-se, em todo o processo, decidida a
realizar a adoção. Habilitada, intensificou suas visitas às crianças que, diga-se de
passagem, dificilmente encontrariam pessoa ou casal que se dispusesse a adotá-las
conjuntamente. A princípio, desconfiamos das intenções de Maria e certa
‘psicologização’ inicial de suas intenções foi inevitável, como se quiséssemos
patologizar seu projeto adotivo – e consequentemente desmerecê-lo. Maria mostrou-
se firme e tranquila quanto aos questionamentos, que finalmente atribuímos a uma
necessidade preconceituosa da própria equipe técnica diante de uma relação afetiva
que fugia ao habitual; patologizar o projeto da requerente seria nossa reação a uma
disponibilidade que contrariava os padrões de uma maternidade adotiva “normal”.
Feita essa autocrítica, a equipe pôde detectar em suas próprias considerações uma
postura preconceituosa e normalizadora, da qual o pleito de Maria obviamente se
distanciava.
16

Todo o processo, entre habilitação, intensificação das visitas, finais de


semana na casa de Maria e o definitivo desligamento dos meninos do abrigo em que
viviam foi acompanhado de perto pelas duas equipes, bem como pelos técnicos da
instituição de acolhimento. Mesmo depois de dada a sentença de adoção, o
acompanhamento prosseguiu, trabalhando pequenos estranhamentos de parte a
parte e dificuldades da recém mãe em relação ao comportamento das crianças, algo
comum quando falamos do acolhimento de crianças maiores. Maria se mostrava, à
medida que o tempo passava, cada vez mais vinculada aos filhos, por sua vez
gradativamente se inserindo e adaptados à família extensa de sua mãe adotiva.
Mesmo as resistências por parte de alguns familiares à nova situação não pareciam
abalar nossa jovem mãe, que se desdobrava entre o trabalho e suas tarefas
domésticas junto aos três filhos, inseridos na rede particular de ensino e já
cumprindo algumas atividades extracuriculares.
Quando tudo parecia completamente normalizado e Maria nem mais recebia
acompanhamento por parte da equipe do judiciário, sobrevém o furacão: Maria
comparece ao Juízo da infância disposta a desistir da adoção, alegando uma
insuportável incompatibilidade com as crianças e apresentando um atestado
psiquiátrico, no qual recebia um diagnóstico de ‘bipolaridade’, jamais mencionado
anteriormente. Durante as entrevistas, as equipes tentaram lembrá-la de suas
responsabilidades diante de uma decisão já transitada em julgado, produto de
iniciativa e desejo seus – a adoção. Determinada a abrir mão das crianças, admitiu
estar grávida e vivendo novo relacionamento afetivo: seu noivo não aceitava as
crianças de forma alguma.
Até onde podemos saber do caso, a adoção foi revogada e Maria entregou as
crianças de volta para o Judiciário. O atestado apresentado e o diagnóstico nele
contido talvez tenham sido definitivos nesse desfecho, que deixou as duas equipes
técnicas inconformadas e estarrecidas.

Situação 4

Em mais um procedimento de habilitação para adoção, uma mulher solteira


comparece ao judiciário para cumprir os procedimentos de renovação de sua
habilitação, realizada há cerca de cinco anos. Nessas situações, as entrevistas têm
o objetivo de, além de confirmar os dados pessoais – endereço, telefones, trabalho
17

etc. –, conferir a intenção dos habilitados e por vezes questionar o fato de não ter
havido ainda a adoção, principalmente se o postulante se mostrar disponível a
acolher crianças maiores e/ou já tiver recusado indicações feitas pelo Juízo. Para
quem aguarda um bebê, vale somente a indicação do serviço social, que segue
rigidamente uma ‘fila’ de postulantes por ordem de data de habilitação.
Essa postulante, detentora de alto cargo jurídico, já solicitava sua segunda
renovação. Havia recusado duas indicações do Juízo e mostrou-se disposta a
concretizar seu projeto adotivo. A dupla designada para esse segundo procedimento
de renovação era formada pela assistente social que acompanhou a requerente
desde sua habilitação inicial, bem como na primeira renovação de dois anos atrás, e
por um psicólogo que substituía a colega que havia participado dos dois
procedimentos anteriores.
A segunda renovação foi rápida e bastante tranquila. Alguns meses depois, a
postulante recebeu a indicação de uma criança abrigada, a quem começou a visitar.
Os contatos se tornaram mais frequentes e a situação se mostrou bastante
promissora, acompanhada de perto pelo serviço social do Juízo e da instituição onde
a criança se encontrava acolhida. Ambas as equipes foram unânimes em concordar
com o pedido de desligamento da criança do abrigo, que se seguiu a alguns meses
de visitas e finais de semana na companhia da postulante.
Algum tempo depois, uma tsunami varre a vara da infância e juventude: uma
denúncia anônima acusava a postulante de torturar a menina, além de mantê-la
confinada em seu quarto. A juíza que recebe a denúncia decide conferi-la imediata e
pessoalmente, invadindo, com força policial e o apoio de alguns técnicos do Juízo, a
casa da postulante. A situação que se apresenta é muito triste: a criança, assistida
apenas por uma empregada, não falava e se recusava a comer, apresentando-se
com vários hematomas no corpo e os olhos bastante inchados. Após exame de
corpo de delito, que confirma os abusos físicos, a criança é imediatamente abrigada
e a postulante é presa em flagrante.
Seguiu-se então uma avalanche de críticas de toda ordem, principalmente
dirigidas ao trabalho de habilitação feito pelas equipes técnicas do judiciário. A
revista Veja da época trouxe na capa uma foto da postulante com os dizeres O
monstro louro, ou algo do gênero. Criou-se uma imensa onda de revolta por parte da
opinião pública; vários programas de rádio e de televisão foram produzidos para
tratar do tema. Alguns dos maiores jornalistas do país manifestaram sua indignação
18

com o trabalho técnico realizado, explicitamente responsabilizado pela indicação da


criança a uma pessoa desequilibrada. Ricardo Boechat, em seu programa de rádio,
manifestou o interesse de “entrevistar o psicólogo que considerou essa mulher apta
a adotar uma criança, eu queria muito falar com essa pessoa”. Intenção parecida
apontou Zuenir Ventura em crônica no Jornal O Globo.
“Como podem habilitar uma psicopata?”; “que trabalho é esse com adoção?”
O termo psicopata nunca foi tão utilizado, sua verdade nunca foi tão anunciada,
naturalizada e propagada. Vários meios de comunicação garantiram que a
postulante tivera uma habilitação meteórica, conseguindo quase que imediatamente
a indicação de uma criança em função de seu status jurídico. Colegas do próprio
Judiciário criticaram o trabalho de habilitação, considerando inconcebível a
habilitação de uma “psicopata”. Uma colega chegou a dizer, em reunião interna dos
psicólogos do TJRJ, que até sua filha, que não é psi e trabalhava como voluntária da
Suípa (sociedade protetora dos animais), havia recusado o pedido de adoção
formulado tempos atrás por essa mesma postulante: seu pedido de um gato preto
não castrado levantou suspeitas quanto aos reais objetivos daquela adoção, uma
vez que esse tipo de solicitação é comum em casos de pessoas que utilizam animais
em “trabalhos” de macumba...
Um psicanalista postulando a adoção, ao ser entrevistado na época desses
acontecimentos, se disse “muito espantado” com a incapacidade da equipe técnica
do Juízo em “detectar psicopatia”. A psicóloga que o entrevistava, muito surpresa,
quis saber como ele conseguia semelhante proeza. Sua resposta: “com uma só
entrevista eu não consigo não, mas a partir da segunda já dá pra sentir se se trata
de um psicopata”. O que mais nos resta a fazer a não ser desejar ardentemente a
companhia do colega psicanalista, destinando ao eminente freudiano todos os casos
de habilitação para adoção e mais outros tantos que apareçam, quem sabe todos?
19

1 DELIMITAÇÃO DA PROBLEMÁTICA

...uma forma de justiça ligada a um saber em que a verdade


era posta como visível, constatável, mensurável, obedecendo a
leis semelhantes às que regem a ordem do mundo, e cuja
descoberta detém perante si mesmo um valor purificador. Esse
tipo de afirmação da verdade deveria ser determinante na
história do saber ocidental.
Michel Foucault

As quatro situações descritas acima têm o intuito de exemplificar alguns dos


dilemas e impasses vividos pelo psicólogo no Poder Judiciário. Podem ser tomadas
como analisadoras1 das expectativas criadas pela instituição quanto ao trabalho
psicológico, explicitando (ou sugerindo) o alcance esperado desse tipo de
intervenção. Arrisco a consideração de que, ainda que existam em maior ou menor
grau em todos os campos de inserção do profissional de psicologia, é no Judiciário
que tais expectativas (quando não exigências) encontram seu campo mais fértil.
Um lugar-comum no trabalho do psicólogo no judiciário diz respeito à ideia de
que a psicologia, ao adentrar nos tribunais, representaria a inserção do componente
subjetivo no espaço do direito, no qual, por sua vez, imperaria uma exigência de
objetividade. Esta ideia-crença, disseminada e repetida por colegas que atuam na
área – repetida e disseminada, a meu ver, de forma quase sempre acrítica –,
pressupõe a oposição e o embate entre duas perspectivas absolutas e antitéticas: a
subjetiva (entendida como o espaço do sensível e da singularidade, talvez o do
desejo, da experiência irredutível a generalizações e antecipações) e a objetiva
(lugar daquilo que seria visível e passível de registro e mensuração).
O embate resultante da oposição objetivismo versus subjetivismo costuma
produzir um desconforto considerável para o profissional, objeto de uma opressiva
exigência no sentido da medição e da classificação, algo entendido como inviável
para o ‘especialista em subjetividade’ que acredita ser. Tal oposição torna-se
questionável não somente por apontar dois caminhos, aparentemente opostos e

1 Importante conceito da Análise Institucional, o analisador é qualquer aspecto potencialmente


disjuntivo, ou seja, que pode trair a dimensão não natural – portanto, construída – da realidade
institucional: “acontecimento, indivíduo, prática ou dispositivo que revela, em seu próprio
funcionamento, o impensado de uma estrutura social”. (RODRIGUES & SOUZA, 1987, p. 29).
20

incompatíveis entre si, para a experiência humana, como também pela leitura
ahistórica das noções de objetividade e subjetividade.
No universo constituído de razões objetivistas versus argumentos
subjetivistas, pretendo refletir sobre as (inclusive auto) exigências a que está
exposto o trabalhador psi no contexto judiciário. Mais do que isso, entendo que o
psicólogo oscile de maneira muitas vezes não consciente entre uma dimensão e
outra, ao naturalizar – e consequentemente aceitar sem questionamento – certas
demandas a ele dirigidas.
Podemos caracterizar a expectativa do judiciário em relação ao trabalho da
equipe técnica em geral – e do psicólogo em particular – sob as rubricas da garantia
e da previsibilidade. Garantir determinada configuração e prever ações futuras,
antevendo sua adequabilidade: eis o afiado e reluzente sabre a apontar
ameaçadoramente na direção dos nossos pescoços.
O Judiciário se considera apto a intervir logo que uma suspeita possa pôr em
risco a integridade de crianças e adolescentes, o que se coaduna com o princípio de
proteção integral preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A
fim de viabilizar o cumprimento das determinações contidas no Estatuto, justificar-se-
iam ações enérgicas, de cunho coercitivo e tomadas a priori, como forma de garantir
proteção e salvaguarda à ideia da criança e do adolescente como sujeitos de
direitos. Para tanto, a instância judiciária lança mão do saber dos especialistas,
convocados a fundamentar a pertinência de suas ações. Em casos de suspeita de
abuso, a psicologia é usualmente convocada a responder a perguntas do tipo Houve
abuso?, Quem é o abusador?, Qual a extensão do abuso praticado?, Qual a sua
gravidade?, Que sequelas psicológicas poderá ter imposto à vítima?. Todas essas
indagações são colocadas dentro de uma lógica linear e objetiva, da qual a
psicologia é convocada a participar de forma igualmente neutra e esclarecedora,
num contexto em que se explicitem vítima, abusador e males causados à primeira –
fatos que justificariam a ação enérgica e punitiva da instituição judiciária contra o
suposto adulto criminoso.
Essa realidade, no entanto, coloca a psicologia frente a impasses que dizem
de seus contornos teóricos e de seus limites éticos. Uma das grandes armadilhas
para o trabalho técnico, muito além de qualquer presunção de onipotência para o
discurso e o fazer psicológicos, é definir com quem está a verdade e predizer sua
efetividade. Uma verdade não passível de questionamento e relativização, de forma
21

a deixar claro o ilícito praticado e o seu autor, justificando a necessidade da


penalização. De forma análoga, o trabalho de habilitação para adoção costuma
gerar nos operadores jurídicos uma grande expectativa quanto ao futuro da
empreitada. Assim, situações subsequentes envolvendo problemas reais de
adaptação entre postulantes e crianças, bem como insucessos em colocações
realizadas, costumam criar enorme desconforto e sensação de fracasso na equipe,
quando não mesmo acusações veladas (ou explícitas!) de incompetência
profissional. Ou seja, podemos depreender que uma determinada demanda, de
cunho institucional, ‘cala fundo’, para dizer o mínimo, na postura sobreimplicada2 dos
bravos e zelosos profissionais da garantia que nos tornamos, ciosos e lamentosos
de previsões malsucedidas.
A quem considerar que a problemática explicitada acima é uma questão
localizada, resultante de uma equipe técnica mal formada teórica e tecnicamente,
em conjunto com operadores jurídicos ávidos consumidores de séries policiais da tv
norte-americana, lembramos a proposta da “pesquisa dos cérebros” analisada por
Rodrigues (2008), na qual uma tentativa de mapear ondas cerebrais de
adolescentes envolvidos em ilícitos penais, empreendida por uma equipe de
neurocientistas do Rio Grande do Sul, desvelou uma pretensão quase delirante de
eugenia: sua intenção aberta era a de predizer, controlar e coibir futuras ações
criminosas em indivíduos considerados “adolescentes homicidas”, portanto
potencialmente perigosos à ordem social.
Sobressai, das questões levantadas, uma exigência comumente imposta ao
trabalho do psicólogo: a previsibilidade. Prever ações, atuar sobre a virtualidade
dos comportamentos, ser o guardião da normalidade e incidir não sobre aquilo que
se faz, mas sobre o indivíduo que se concebe. Quando afirmei, no início desta
exposição, que os profissionais psi costumam oscilar entre um subjetivismo e um
objetivismo, me referi a exigências impostas de fora e também autoimpostas ao
trabalho técnico, que, sob o verniz da neutralidade, traem as motivações de cunho

2 A proposta da Análise Institucional envolve a análise de nossas implicações no fazer técnico e na


realidade institucional. A sobreimplicação, em contrapartida, diz respeito ao que Lourau (2004)
denominou de “inflação de implicacionismo”, na qual o técnico encontra-se impossibilitado, por um
excesso de ativismo, a analisar suas implicações no fazer institucional: “a sobreimplicação não só
produz sobretrabalho, estresse rentável, doença, morte e mais-valia, como também cash-flow –
benefício absolutamente nítido consagrado ao reinvestimento e, portanto, ao crescimento indefinido
da empresa-instituição (LOURAU, 2004, p. 195).
22

histórico-político que engendraram e forneceram condições de possibilidade às


chamadas disciplinas humanas.
Um segundo aspecto do trabalho do psicólogo no universo judiciário,
igualmente produtor de desconforto, diz respeito às relações internas de poder e
hierarquia institucionais, nas quais se destaca a figura do magistrado como detentor
do poder de mando e de veto, que algumas vezes incide sobre o próprio trabalho
psicológico.
Como forma de introduzir e exemplificar esse segundo aspecto, evoco um
documento oficialmente produzido por psicólogas do Ministério Público, criticando a
Resolução do Conselho Federal de Psicologia que veta aos psicólogos a inquirição
de crianças no âmbito judiciário. Nesse documento (cheio de referências e
impregnado de lógica jurídica, seja nos termos utilizados, seja na própria redação do
texto), as psicólogas criticam o CFP, pondo em questão sua legitimidade para
disciplinar as práticas profissionais dos psicólogos e questionando o veto a eles
lançado. Consideram as técnicas que os profissionais que intentam inquirir crianças,
alijados de sua liberdade de ação, estariam sendo prejudicados em seu exercício
profissional pelo órgão que deveria proteger sua prática.
Entendo como possível e profícuo questionar determinações do CFP, bem
como indagar acerca da legitimidade do próprio sistema Conselhos. Entretanto, as
autoras do citado documento apelam a um suposto direito de trabalhar com
liberdade, ignorando qualquer instância de reflexão e deliberação coletivas quanto à
prática profissional. O termo liberdade, por sinal, talvez nem seja adequado ao caso,
uma vez que a inquirição de crianças teve início a partir de uma necessidade – e
posterior determinação – não dos psicólogos, mas dos operadores jurídicos, que se
arvoram a estipular o alcance da prática psicológica. A medida judicial do Ministério
Público que derrubou o veto do CFP
inquirição de crianças pode ser outro exemplo de que a liberdade dos
psicólogos – de gerir suas práticas e de pensar de forma autônoma quanto aos
limites éticos de sua atuação – não está efetivamente sendo respeitada.
O posicionamento dessas profissionais no sentido de rejeitar uma
determinação de seu órgão de classe e assimilar uma imposição externa à profissão,
mais do que uma ameaça à autonomia técnica, sugere uma postura de aceitação
passiva. As psicólogas, fazendo menção a uma pretensa liberdade de ação,
parecem, na verdade, advogar a tese do “me deixa ser livre pra fazer o que me
mandam”, numa grande inversão da ideia de autonomia e liberdade.
23

Posto o exemplo acima, chegamos à tal segunda questão que pretendo


enfocar no meu trabalho. Percebe-se, nos trabalhadores do Judiciário em geral e
nas equipes técnicas em particular, uma passividade e um movimento no sentido de
corresponder às expectativas e determinações que lhes são dirigidas pelos
chamados operadores jurídicos, representados por magistrados (principalmente) e
promotores.
Uma das afirmações mais presentes nos círculos internos do judiciário,
formado pelos servidores desse poder – entre os quais se inclui o psicólogo – é a
máxima “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, algo que me produziu um
grande desconforto e ‘choque de realidade’ logo que passei a integrar o quadro de
psicólogos da instituição. Trata-se de dito que sem dúvida faz menção à figura de
autoridade máxima, representada pelo juiz, que deve ser obedecida de forma total e
acrítica.
Observa-se nas relações internas do Judiciário uma grande verticalização das
relações, formando uma hierarquia rígida e centrada na figura do magistrado. Em
outras palavras, observa-se no contexto institucional a construção da ideia do juiz
como a figura todo-poderosa, a quem se deve não apenas obedecer, mas temer.
Podemos observar todo um aparato institucional que é montado nessa direção,
desde o conjunto de fatores diferenciadores à disposição dos magistrados –
vencimentos, reajustes, sistemática de férias e benefícios diferenciados – até o
respaldo institucional que chega a se assemelhar a um poder absoluto, ao qual o
conjunto de servidores precisa apenas anuir e adaptar-se.

Tenho como hipótese a ideia de que existe no judiciário um trabalho


sistemático de produção do medo, como forma de forjar uma adaptação e a
aderência a tal sistemática, que, obviamente, nos remete à questão da circulação do
poder no âmbito institucional. Essa questão, quando enfocada no âmbito interno,
costuma receber a denominação de assédio moral – uma das principais causas de
afastamentos do trabalho para tratamento de saúde nos judiciários de todo o país.
No TJRJ, ainda que haja certa atenção por parte do sindicato da categoria
(SindJustiça), a questão não parece receber por parte dos órgãos oficiais uma
atenção específica, nem ser integrada ao circuito visível das estratégias
institucionais.
Uma dimensão importante da questão do medo parece ser também a solidão,
como um aspecto que reforça o medo e instiga a uma experiência de isolamento e
fragilidade, uma vez que se perde a dimensão coletiva, de algo que se vive junto e
24

acomete a todos. Isolados, sem instância de recurso disponível, tudo parece


depender da concessão particular desse ou daquele magistrado, o que explica a
ansiedade que acomete a todos por ocasião de uma simples troca de juiz. As
perguntas, nesses casos, são: quem está vindo? Como vai ser agora?
Entendo a instituição judiciária como multifacetada e sobredeterminada,
sujeita inclusive a influências e pressões dos movimentos sociais e da sociedade
civil organizada, dentro do que se considera como um regime democrático de direito.
Entretanto, percebo que é no âmbito das relações internas que o judiciário revela
sua face mais retrógrada e conservadora.
O trabalho estará focado na fala dos próprios psicólogos do Judiciário, através
da apresentação de fragmentos de entrevistas realizadas com alguns colegas do
TJRJ. Nesses diálogos, procuramos abordar questões que são motivo de
insatisfação e ansiedade, o que, por sua vez, abre espaço para discussões teóricas
que se sucedem de forma múltipla, tendo como temas principais o judiciário como
instância de exercício de poder. A ideia é desvelar essa função à medida que
avance a discussão sobre o fazer profissional, de forma a revelar essas
sobredeterminações – nada técnicas, mas de natureza política – em circunstâncias
práticas, próprias ao cotidiano de quem as vive e com elas é diariamente
confrontado.
Posso situar como objetivo cartografar os desconfortos sentidos pelos
profissionais psicólogos na instituição judiciária, de forma a desvelar o modo como
as relações de poder se presentificam e desdobram na instituição. Para tanto, nada
melhor do que ouvir dos próprios atores os registros de suas práticas cotidianas,
situadas, portanto, numa dimensão política e coletiva, para além das meras
necessidades e sentimentos personalistas e psicologistas.
As entrevistas foram pensadas e concretizadas tendo como inspiração o
universo conceitual da História Oral, objeto de discussão do próximo capítulo. Das
falas dos psicólogos, vamos elegendo aspectos a serem problematizados na
intenção de estabelecer um caleidoscópio de situações e sentimentos em que os
sujeitos envolvidos saiam da condição isolada, de ser individual, e passem a compor
um conjunto no qual a ênfase seja de fato a dimensão coletiva – e, portanto, externa,
finita, modificável e compartilhável – da existência.
25

2 CIÊNCIA, VERDADE E PODER: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Apoiado na necessidade de estabelecer uma interlocução com o pensamento


crítico, de forma a questionar os pressupostos tradicionais do trabalho pericial e
transformar a força massificadora e classificatória presente nas demandas
institucionais, procurei agregar pensadores e teorias que podem contribuir na
desconstrução da expectativa de verdade na ciência e na prática psicológica, bem
como fornecer elementos no sentido de redimensionar as forças instituídas para a
manutenção do status quo.
Análise Institucional, Teoria Ator Rede, Foucault, Nietzsche, Stengers são
alguns desses interlocutores, cujas ideias procurei destacar e articular em seus
aspectos fundamentais. A intenção foi, além de estabelecer uma interlocução com
esses pensadores, explicitar as bases conceituais da presente investigação. Em
capítulo subsequente, discuto elementos da História Oral, outro potente interlocutor.

2.1 Sobre a busca da verdade

A questão da verdade é um dos pontos fundamentais nas análises


epistemológicas e na filosofia das ciências. Apesar de não ser minha pretensão
realizar um trabalho de natureza epistemológica, me interessa no universo da
epistemologia o caráter de verdade conferido às proposições das disciplinas ditas
científicas, discurso esse que representa o auge daquilo que no pensamento
ocidental ficou caracterizado como o predomínio da racionalidade.
Roberto Machado, ao empreender sua reflexão sobre o assunto, destaca a
dimensão normativa do discurso científico, uma vez que a ciência “é o lugar próprio
do conhecimento e da verdade e, como tal, é instauradora de racionalidade”
(MACHADO, 1981, p. 9). Neste sentido, a ciência representa o ápice do
pensamento, cujo refinamento confunde-se com o triunfo da razão sobre todas as
outras formas de constituição do pensamento, vistas como obstáculos, na forma de
preconceitos e crendices, ao definitivo acesso ao pensamento lógico-formal.
Machado elege como interlocutor em sua reflexão epistemológica a filosofia
de Georges Canguilhem, para quem a epistemologia é a análise da cientificidade.
Para o primeiro, o que torna instigante o pensamento de Canguilhem é a ênfase na
questão histórica, a fim de empreender sua análise de cientificidade. No entender de
26

Machado, Canguilhem, ao lado de outros teóricos da cientificidade como Gaston


Bachelard, postula a ciência não como um objeto naturalmente dado, mas como
construção sócio-histórica.
Ainda que desconstrua a ideia de pensamento como a pura representação
das coisas do mundo, como faria supor uma epistemologia de cunho positivista,
Machado reafirma a crença de Canguilhem no sentido da ciência como o lugar
próprio da verdade: “Uma tese pouco explicitada, mas característica da
epistemologia de Canguilhem, é que só no interior da ciência tem sentido colocar a
questão da verdade” (MACHADO, 1981, p. 20). O erro, algo que os positivistas
deplorariam como uma distorção a ser superada, é valorizado no pensamento de
Canguilhem como um passo necessário na direção da verdade. Interessante pontuar
que, para o epistemólogo francês, que rechaçava o caráter de universalidade
pretendido por setores do pensamento científico, a ciência não reproduz, mas
produz sua própria verdade. Ainda que devidamente contextualizada, regionalizada
e acentuada em sua dimensão de construção social, Canguilhem é igualmente
explícito ao propor que somente à ciência cabe produzir conhecimento: é somente
através dela que é possível definir verdade, conhecimento e razão (MACHADO,
1981).
Encontramos em outros autores a ênfase no conhecimento como uma construção
socialmente engendrada. Boaventura de Sousa Santos evoca as figuras ambíguas da
Gestalt Clássica para destacar o caráter igualmente ambíguo da percepção visual, com
a consequente relativização da verdade que tal ideia implica: se temos uma figura
visualmente ambígua, qual das imagens formadas seria a verdadeira? Talvez ambas, ou
nenhuma delas. Para este autor, o exemplo dado é ilustrativo de uma crise vivida no e
pelo pensamento científico tradicional: “Estamos no fim de um ciclo de hegemonia de
uma certa ordem científica. As condições epistêmicas das nossas perguntas estão
inscritas no avesso dos conceitos que utilizamos para lhes dar resposta” (SANTOS,
2008, p. 19).
A ciência moderna, em seu modelo ainda dominante, desconfia dos indícios
de nossa experiência imediata, que considera ilusória. Apoiando-se no modelo das
matemáticas, a ciência se assenta na ideia de que conhecer é quantificar, cabendo
ao método científico um trabalho de redução da complexidade: “conhecer significa
dividir e classificar para depois poder determinar relações sistemáticas entre o que
se separou” (idem, p. 28), explica o autor, explicitando o caráter atomista e
27

especializado das disciplinas científicas. Santos destaca ainda a dimensão causal do


conhecimento científico, que aspira à formulação de leis com o intuito de,
pressupondo a regularidade do mundo, dar-lhe um sentido com vistas à predição do
comportamento futuro dos fenômenos. Ou seja, a ciência moderna, tal como
pretende a instância jurídica em relação à psicologia, possui um cunho atomista,
universalista, quantificador e preditivo.
À crise mencionada por Santos, que atinge o chamado paradigma dominante
da ciência, corresponde a ascensão de novo modelo epistêmico, desta vez liberto
definitivamente das amarras de cunho positivista que têm dominado o pensamento
científico desde o século XIX. Tal transformação paradigmática, que Santos entende
como a ascensão de uma “ciência pós-moderna”, deverá revolucionar não somente
nossa concepção de ciência, mas também a concepção de mundo ainda em voga.
No novo modelo em constituição, acredita Boaventura Santos que deixará de
fazer sentido a distinção entre ciências naturais e ciências sociais, com as disciplinas
progressivamente abandonando suas trincheiras em favor de uma perspectiva cada
vez mais transdisciplinar. Entre outras mudanças, que o autor chama de hipóteses
de trabalho, a distinção hierárquica entre conhecimento científico e conhecimento
vulgar tenderá a desaparecer (SANTOS, 2008).
A arqueologia foucaultiana, em contrapartida, não se interessa em definir o
nível de cientificidade presente em determinado sistema de pensamento, mas em
explicitar as condições históricas e políticas que tornaram possível a emergência
desse saber. Para Foucault, somente no âmbito das práticas discursivas será
possível acompanhar o nascimento das ciências do homem, não importando se se
constituem ou não como ciências. No caso das ciências humanas em geral e da
psicologia em particular,
Foucault observou que foi a criação do hospital – primeiro como simples local
de confinamento, depois como instância de tratamento – que tornou possível a
emergência da categoria do louco como doente mental; de forma análoga, foi o
nascimento da prisão como instituição e da pena como reclusão que deu ensejo ao
aparecimento da figura do delinquente, aquele que necessitaria, a partir desse
momento, permanecer recluso e fora do convívio social.
A arqueologia de Michel Foucault procura desfazer nossas ilusões
metafísicas, uma vez que questiona a adequação de determinado discurso a um
objeto específico e previamente constituído. A realidade – e a verdade – torna-se
28

então efeito de práticas, discursivas ou não, engendradas, por sua vez, por jogos de
natureza econômica e política. De acordo com Foucault (2010c), as práticas forjam o
aparecimento de objetos que, por sua vez, se constituirão em objetos do
conhecimento, donde a necessidade de discursos capazes de explicá-los,
encerrando-os numa lógica conceitual que justifique a manutenção de sua
materialidade. Apesar de deter-se de forma bem acentuada no estabelecimento do
discurso científico e na constituição das chamadas ciências do homem, Foucault não
está movido pelo interesse em fixar padrões de cientificidade, mas em desvelar a
teia política formada por práticas, discursos que as fundamentam e objetos do
conhecimento assim forjados.
Além da análise arqueológica, outra importante fonte de problematização no
pensamento foucaultiano é sua articulação entre saber e poder, ou seja, de como os
discursos de saber imbricam-se com o poder, formando redes de saber-poder. Essa
vertente do pensamento de Foucault, a genealogia do poder, servirá para a
compreensão de como a construção de saberes presta-se a alicerçar poderes
instituídos. Este ponto da análise teórica é fundamental para o entendimento do
Judiciário como uma instituição de propagação e imposição de uma verdade,
constituindo práticas jurídicas que poderão sistematizar e concretizar esse
presumido interesse geral.
As análises de Foucault (1999) disponibilizam valiosos elementos no sentido
de compreender como o nascimento, no século XIX, da chamada “sociedade
disciplinar” ensejou a reforma e a reorganização da ordem jurídica na Europa e no
mundo. A transformação do sistema judiciário, por sua vez, forjou a reforma e
reelaboração da própria lei penal. Como consequência, temos o aparecimento de
uma nova definição de crime e de criminoso: o crime não deve mais espelhar uma
verdade religiosa ou moral, mas designar aquilo que é danoso à ordem social. A lei
penal deve, então, reparar ou impedir o dano causado à ordem social. A reclusão
aparece então no século XIX como o dispositivo de penalização por excelência,
substituindo outras práticas punitivas, e a prisão surge como o espaço de
cumprimento da pena. Entretanto, mais do que simples espaço, nele se institui a
nova forma de penalizar o crime, instituindo também a figura do criminoso como
aquele que perturbou e ameaçou a ordem pública e a paz social.
Podemos verificar a originalidade do pensamento foucaultiano pela sua
constante (metódica) articulação entre o nível das práticas, dos saberes e dos
29

poderes. A ideia de criminoso e de crime como ameaça à ordem é correlata a todo


um conjunto de transformações econômicas que acabaram por varrer da Europa o
feudalismo, instituindo um regime mercantilista que em seguida desaguaria no
sistema capitalista tal qual hoje o conhecemos.
Na nova ordem econômica, necessário se fazia preparar o seu terreno,
modificar relações de trabalho e de vida, formar a força produtiva para erigir e
manter o novo sistema em ascensão. Isso significava arrebanhar, trazer para as
cidades – que não sem motivo pouco a pouco perdiam seus muros de contenção e
limite – toda essa horda de indivíduos que se tornariam a força motriz da nova forma
de produzir riqueza. Ou seja, houve a necessidade de fixar grandes contingentes de
pessoas – desocupados de toda ordem, que vagavam pelas cidades em
transformação – em força de trabalho, formando a nascente população operária.
A nova materialidade da riqueza, baseada em mercadorias, máquinas,
estoques e oficinas, estava a exigir mecanismos de proteção contra a pilhagem e a
depredação. Estamos falando de condições concretas de possibilidade para o
nascimento da sociedade disciplinar: “trata-se de uma forma de poder, de um tipo de
sociedade que classifico de sociedade disciplinar por oposição às sociedades
propriamente penais que conhecíamos anteriormente. É a idade do controle social”
(FOUCAULT, 1999, p. 86).
O controle necessitava adequar-se aos novos tempos. Foucault, evocando
Bentham, cita o “panóptico” como a ilustração por excelência desse novo controle,
uma utopia de vigilância permanente exercida sobre os indivíduos. Esse novo
modelo de vigilância passa a ser exercido através de um saber construído sobre a
figura do vigiado, saber esse não mais regido pelo imperativo do testemunho, de
apurar o que de fato ocorreu com o indivíduo – ou o que ele fez –, mas se ele se
conduz conforme as regras – entra em cena a virtualidade de seu comportamento,
para além da conduta real e concreta desse indivíduo (FOUCAULT, 1999).
Nessa nova configuração, o poder se exerce como um saber, não mais
ordenado em torno da observação – como o inquérito –, mas dirigido ao exame dos
indivíduos. Essa articulação saber-poder deu ensejo ao aparecimento de um saber
sobre o homem, as ciências humanas. O saber do panóptico se constituiu em torno
da norma, daquilo que é correto, normal, donde a adequação de substituir o
inquérito pelo exame como instrumento de obtenção da verdade. No dizer de
Foucault, o panóptico é uma utopia social que se realizou.
30

Foucault põe em análise mais um importante aspecto dessa nova penalidade,


que passa a ser exercida como um controle – no sentido da domesticação – sobre a
conduta dos indivíduos. A vigilância se desloca do crime para a figura do criminoso;
melhor dizendo, o indivíduo passa a ser vigiado não somente pelos seus atos, mas a
vigilância passa a incidir sobre a virtualidade de seu comportamento. É o nascimento
do criminoso como categoria (anti) social. Torna-se então social e politicamente
justificada a técnica do exame e a figura do especialista que irá conduzi-lo. O poder
torna-se basicamente judiciário, se bem que igualmente exercido por outras
instituições de controle, passando a cumprir a função de corrigir virtualidades.
A necessidade do controle sobre a virtualidade do comportamento, mais do
que sobre a conduta manifesta, é que dará ensejo à figura do técnico, convidado a
operar, inclusive no universo judiciário, como um especialista em virtualidades. A
exigência dirigida ao psicólogo, de forma velada ou não, no sentido de estabelecer
garantia (previsões) sobre situações futuras diz desse controle sobre a virtualidade
do comportamento, instaurado por ocasião do advento da sociedade disciplinar.
Refletindo sobre o fenômeno das depredações de máquinas e patrimônio,
comuns no início do capitalismo industrial, Foucault chega à ideia de crime como
perturbação da ordem pública, economicamente, e não juridicamente, engendrada:
suas razões são de ordem econômica e política, não jurídicas. Foucault propõe uma
teoria das práticas e dos discursos – que firmarão as condições de possibilidade
para o nascimento das teorias do sujeito – bem como uma história da verdade, tanto
aquela estabelecida a partir da história das ciências quanto uma outra, construída
sobre as práticas judiciárias. A história, nesse sentido, é o desvendamento das
formas pelas quais foram sendo progressivamente criadas relações entre práticas,
discursos e verdade.
Foucault (1999), na primeira de suas conferências realizadas na PUC carioca,
toma de empréstimo a Nietzsche a ideia do conhecimento como algo inventado e
não natural. Neste sentido, conhecimento e mundo a conhecer são duas realidades
distintas, que se encontram não em harmonia ou numa relação de continuidade,
mas de poder e de oposição, o que cria rupturas entre as duas categorias: somente
dessa forma é possível a constituição de um conhecimento sobre as coisas. Em
suma, só há possibilidade de conhecimento a partir de seu rompimento com o
mundo das coisas, algo que não se dará sem efeitos penosos. Foucault (1999, p.
21) atribui à filosofia de Nietzsche a concepção de uma maldade radical do
31

conhecimento: “Atrás do conhecimento, há uma vontade, sem dúvida obscura, não


de trazer o objeto para si, de se assemelhar a ele, mas ao contrário, uma vontade
obscura de se afastar dele e de destruí-lo”.
Nietsche, de acordo com a leitura foucaultiana, rompe com a ideia de unidade
e de continuidade entre conhecimento e mundo, opondo essas duas instâncias
numa relação de conflito e de violência. Uma vez rompida a naturalidade, a
unificação e a adequação do conhecimento em relação ao mundo a se conhecer,
Nietsche afirma, de acordo com Foucault, o caráter perspectivo do conhecimento.
Todo conhecimento é parcial, oblíquo; assemelha coisas entre si criando identidades
arbitrárias: “O conhecimento esquematiza, ignora as diferenças, assimila as coisas
entre si, e isto sem nenhum fundamento em verdade. Devido a isso, o conhecimento
é sempre um desconhecimento (FOUCAULT, 1999, p. 25, grifos meus). Percebemos
nessa passagem o rompimento com qualquer forma de metafísica, essencialismo ou
universalismo.
Roberto Machado (1999) é outro autor que também se debruçou sobre a
questão da verdade no conhecimento e na ciência, utilizando-se, tal como Foucault,
da filosofia de Nietzsche. Para Machado, o pensador alemão critica abertamente a
ideia de verdade como um valor superior, situando a moral como fundamento da
racionalidade e negando a esta última qualquer pretensão de acesso privilegiado ao
conhecimento das coisas do mundo. Nietzsche, na contramão de sua época, situa a
verdade como mentira e postula a aparência como única realidade, entendendo a
moral como uma demonstração de fraqueza.
Machado considera Nietzsche um crítico da redução da filosofia a uma teoria
do conhecimento, afirmando ser este um aspecto do ideário de certeza. A questão
da verdade, portanto, não pode ser resolvida apenas no contexto da teoria do
conhecimento, que se encontra impregnado de moral: “Mesmo quando os filósofos
parecem preocupados com a certeza e a verdade, é sob o encantamento da moral
que se encontram”3. Machado entende que Nietzsche propunha a possibilidade de
uma posição fora da moral a que seria necessário aceder, algo para além de bem e
de mal. Pelo fato de a ciência nascer no bojo de valores, que perdem sua dimensão
de construção histórica para criar um falso verniz de verdade, o filósofo alemão
desprezava a moral, situando-a no espaço da falsidade. A questão da verdade,

3 Nietzsche, citado por MACHADO (1999).


32

portanto, nasce no bojo da moral, que por sua vez, segundo a reflexão de Nietzsche,
é incompatível com a vida.
Ainda de acordo com Machado (1999), o conceito nietzscheano de “vontade
de verdade” situa no terreno da crença a pretensa verdade contida nas proposições
científicas. Para Nietzsche, é uma simples crença aquilo que funda a ciência, a
crença na superioridade da verdade. Tal crença seria algo como um exercício
metafísico, por criar um mundo à parte, ideal – o mundo dos axiomas e princípios
ditos científicos, com sua regularidade e suas estáveis leis de funcionamento –,
negando assim o mundo em que efetivamente vivemos. Neste raciocínio, a ciência
evidencia a crença metafísica como seu alicerce, bem como a recusa do mundo real
como seu horizonte. A afirmação pelo discurso científico da superioridade desse
‘mundo verdadeiro’, em oposição ao nosso mundo real, seria, no pensamento
nietzschiano, um sintoma de decadência da própria racionalidade.
A ideia de instituição como um campo no qual se realiza um permanente
embate entre forças instituintes e instituídas, presente no arcabouço conceitual da
análise institucional, parece um bom caminho para não somente desvelar a luta
política presente na instituição, mas para escapar de uma certa ‘tendência
negativista’ que pode restar da apreciação de uma instância tão ‘dura’ quanto o
judiciário. Dessa forma, a noção de instituinte versus instituído poderá conferir
inclusive certa positividade à questão institucional, para além do bem e do mal.
Outros conceitos deverão se agregar: análise de implicações, sobreimplicação,
analisador, entre outros, tais como propostos por Lourau (2004a).
Neste sentido, consideramos o próprio Judiciário como campo de intervenção,
através de uma pesquisa que analise a produção de subjetividade oriunda das
exigências institucionais dirigidas ao trabalho do psicólogo em varas de infância.
Para tanto, a ideia é refletir com os próprios psicólogos acerca do horizonte e dos
limites que percebem no que diz respeito às expectativas quanto ao trabalho que
empreendem, às intervenções que realizam e aos documentos técnicos que
produzem.
Para além da burocracia institucional, que sem dúvida tem sua parcela de
responsabilidade na eternização dos feitos judiciários, sobressai-se um importante
fator de indefinição, a prolongar indefinidamente a sobrevida dessas questões-
tornadas-problema no âmbito da justiça: a convivência paradoxal entre um desejo de
verdade, contido na expectativa de investigação objetiva da situação – que apure e
33

restitua a suposta materialidade dos fatos –, e a impossibilidade empírica de


concretizar o ideal de estabelecer a verdade e reproduzi-la tal qual se teria dado no
passado.
Importante ressaltar que a questão não se resolve apenas com o embate
entre denúncias verdadeiras x denúncias falsas, discussão que tem aparecido com
relativa frequência na dita literatura especializada, na forma de estudos sobre
(supostas) falsas denúncias de abuso. Entendo que este enfoque não põe em
análise a problemática nem favorece a sua desconstrução; ao contrário, compactua
com a ilusão de investigar e ter acesso a uma verdade, tomada como dado
apriorístico a ser alcançado.
A ideia, consequentemente, é também mostrar como a inviabilidade empírica
de estabelecer algo tão desejado quanto impossível, a verdade factual, pode estar
forjando o caráter de vitaliciedade de muitos processos de suspeita de abuso sexual
contra crianças e adolescentes em tramitação nos juízos da infância e da juventude.
Nesse espaço, é comum dizer-se “esse processo vai correr por aqui até a criança
completar dezoito anos”, numa clara alusão ao impasse (ou ao impossível) que
subjaz à investigação pretendida.

2.2 Por uma ciência socialmente racional

Vivemos tempos nos quais a realidade tem sido questionada nas mais
diferentes dimensões da vida. O conhecimento vem sendo cada vez mais desafiado
no sentido de explicar a realidade, estabelecendo as bases de um saber verdadeiro
sobre as coisas do mundo. A ciência, se por um lado tem visto seus pressupostos e
seu instrumental falharem no ideal de explicar e predizer a realidade, tenta,
paradoxalmente, impor seus modelos descritivos e explicativos e seu instrumental de
captação dos fenômenos. Vivemos um mundo de incertezas, em que, talvez
paradoxalmente, a pretensão de certeza permanece, em maior ou menor grau, em
todas as esferas da vida.
A Teoria Ator Rede (TAR) orienta-se pelo questionamento dos modelos
hegemônicos de pensamento, notadamente aqueles que acreditavam ser o
conhecimento em geral – e o científico em particular – apenas o registro de um
mundo tal como se dá, como uma paisagem estática a ser documentada pela lente
de uma câmera fotográfica. No âmbito das chamadas ciências humanas, a TAR
34

mostra sua pertinência ao propor uma simetria entre categorias concebidas pelo
pensamento hegemônico e tradicional como antitéticas, tais como sujeito e objeto.
No dizer de Ronald Arendt (2010, p. 28), ‘’Na TAR, o social não é algo que preceda
ao indivíduo, ambos negociam sua coprodução, a explicação de um pelo outro’’.
Para o autor, traduzir os pressupostos da TAR para a psicologia revela-se uma
oportuna tarefa, uma forma de superar as dicotomias próprias à ciência clássica,
reproduzidas em geral pelas abordagens psicológicas.
A Teoria Ator Rede propõe uma abordagem construtivista no sentido de
rechaçar modelos que pressupõem a realidade como um dado a priori, neutro e
estático, pronto para ser captado pelas ferramentas objetivas das ciências
experimentais. Em se tratando de ciências do homem, tal modelo mecanicista se
torna especialmente reducionista, uma vez que sequer concebe uma interação entre
o indivíduo a ser conhecido (objeto) e aquele que se dispõe a conhecê-lo (sujeito do
conhecimento). Porém, mais do que mera ferramenta metodológica, é a realidade
ontológica o que está em foco, uma vez que a dimensão humana é concebida na
perspectiva da interação. É somente quando concebemos os atores interagindo que
chegaremos ao dado de realidade, uma rede que se estabelece a partir de
diferentes partes em movimento. Essa rede é por definição uma totalidade plástica e
dinâmica, que se modifica à medida que a interação entre os atores assume
diferentes configurações. Ainda de acordo com Arendt (2010, p. 35), ‘’É neste
espaço que os habitantes assinam totalizações parciais que lhes permitem dar um
sentido provisório a suas vidas’’. É quando adquire sentido a proposta de Bruno
Latour de ‘’seguir os atores’’, acompanhar e registrar suas trocas e suas ações
naquilo que possuem de mais propriamente interativo – e, portanto, coletivo.
Longe de afundar o indivíduo num social que descaracteriza sua
particularidade, precisamente essa dicotomia entre indivíduo e social que é posta em
xeque. O resultado é a busca da singularidade, entendida como efeito das trocas e
da ação humana numa rede de significações. Segundo Rosa Pedro (2010, p. 81), ‘’A
ação aqui adquire uma conotação bastante singular, que não reflete diretamente a
intencionalidade de um ator social’’. A autora cita Arendt (2007), para quem ‘’o ator
instaura um modo de ser tendo em vista a rede’’ (Arendt citado por Pedro, ibidem).
O conceito de Rede se configura como um elemento-chave na TAR, uma vez
que supõe a ideia de todo como uma construção a partir da interação de elementos
heterogêneos. Seus elementos – os atores – vão trilhando caminhos altamente
35

móveis, sujeitos a reconfigurações sucessivas que adquirem diferentes formas e


conotações. Nas palavras de Pedro, ‘’trata-se de uma configuração altamente
instável e dinâmica, com trocas intensas entre os vários pontos, conexões e atores.
Na rede, cada elemento simultaneamente um ator, cuja atividade consiste em fazer
alianças e arregimentar outros atores’’ (ibidem).
Com a TAR, estamos imersos num universo de incerteza, em que as
realidades são múltiplas e mutáveis. De acordo com Rosa Pedro (2010, p. 84), ‘’a
Teoria Ator-Rede retirou o caráter supostamente estável, determinado, dos
elementos que fazem a realidade, enfatizando sua localização histórica, material e
cultural. (...) As realidades tornaram-se múltiplas’’. É a própria ideia de verdade como
dado apriorístico, único e absoluto, apreensível pelos instrumentos de uma ciência
supostamente neutra e exata, o que está sendo colocado em questão. A aposta da
TAR é numa ciência que, longe de apenas registrar e medir a realidade, acaba por
criar novas versões do mundo. Assim, ampliamos o leque de possibilidades para um
real concebido em sua dimensão plástica, como uma construção sempre sujeita a
transformações e questionamentos. Nesta perspectiva, os objetos técnicos perdem
sua dimensão de meros instrumentos, tornando-se agentes (actantes).
A ciência, então, produz realidades, instáveis e móveis, como decorrência de
sua ação sobre seus objetos, bem como da interação desses objetos entre si. Trata-
se de cartografar esse movimento a partir da interação dos atores envolvidos: ‘’A
cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o
desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de
outros mundos.’’ (ROLNIK apud PEDRO, 2010, p. 88). Rosa Pedro nos adverte que
a atividade do cartógrafo, ao questionar a pretensa neutralidade científica, institui um
campo de trabalho que alia as dimensões epistemológica, política e ética. Perdemos
bastante da inocência quanto a um conhecimento como cópia fiel da realidade, mas
adquirimos uma ideia de conhecimento como produtor de realidades – distintas,
díspares, plurais.
Bruno Latour propõe uma quase indistinção entre o saber e o contexto no
qual este se encontra inserido: o próprio rumo das descobertas e dos avanços
científicos estaria em relação direta com o tempo e o espaço onde se inserem! Desta
forma, não somente os estudos científicos e o saber dos pesquisadores seriam os
responsáveis pelos rumos e pelas próprias consequências das descobertas, mas
todo um plano não material, não humano, envolvendo desde a produção, o
36

marketing, a documentação técnica e até os acionistas e compradores estariam


envolvidos nos rumos das pesquisas, em seus achados e em sua configuração final
(LATOUR, 2000). Seria como uma abordagem de prospecção arqueológica, em que
todos os percalços relativos à busca do sítio arqueológico – incluídas aí as
dificuldades de acesso, as intempéries e até as invasões e saques anteriores à
descoberta do local – são considerados e contribuem para o rumo final dos achados
e de sua própria interpretação.
Latour adverte: trata-se de uma abordagem que se dá pela porta de trás, a da
ciência em construção, e não pela entrada oficial, a da ciência estabelecida. O autor
se utiliza de interessante imagem para ilustrar seu pensamento, o desenho de um
Jano bifronte, no qual a face esquerda seria a da ciência pronta e a direita a da
ciência em construção. Nas palavras de Latour (2000, p. 16),

incerteza, trabalho, decisões, concorrência, controvérsias, é isso o que


4
vemos quando fazemos um flashback das caixas-pretas certinhas, frias,
indubitáveis para o seu passado recente. Se tomarmos duas imagens, uma
das caixas-pretas e outra das controvérsias em aberto, veremos que são
absolutamente diferentes. São tão diferentes quanto as duas faces, uma
vivaz e outra severa, de Jano bifronte.

O sociólogo francês refere-se a uma dessimetria entre a ciência em progresso


e seus resultados finais: é como se o pesquisador tateasse no escuro, sem ideia da
configuração que terão os seus resultados. Consequentemente, o controle das
variáveis e de todas as fases do processo surge muito mais como ideário do que
propriamente como uma verdade da pesquisa. Na construção de uma nova
máquina, Latour (2000, p. 27) atenta para o fato de que “nenhuma das razões pelas
quais ela funcionará depois de acabada ajuda os engenheiros enquanto eles a estão
construindo”.
Significativa contribuição a esta discussão nos é dada por Isabelle Stengers
(1989), ao analisar o trabalho da geneticista Barbara McClintock, trabalho esse
qualificado pela primeira como a “ciência no feminino”. Segundo Stengers, as
pesquisas de McClintock a colocaram numa espécie de limbo, desprezada que foi
por seus colegas masculinos. E que ciência seria essa, que se faz no feminino?
Stengers evoca a polêmica intelectual no universo epistemológico, correspondente à
contraposição de duas tradições distintas, representadas por Hume e Kant: “O ideal

4 Latour (idem, p. 14) evoca a expressão caixa-preta, usada em cibernética para designar e
representar comandos complexos a respeito dos quais “não é preciso saber nada, senão o que nela
(a caixa-preta) entra e o que dela sai.”
37

de conhecimento racional designa um conhecimento despojado ao máximo de


julgamento, compilação de ‘puros fatos’ a partir dos quais deveriam ser marcadas
regularidades empíricas, ser construídas generalizações logicamente válidas. Ou
então é preciso reconhecer que não há ‘fato científico’ sem o ‘homem’ que coloca as
questões, que sempre já interpreta, que os fatos portanto sempre são, desde o seu
recorte, ‘impregnados de teoria’.” (STENGERS, 1989, p. 5). Ao analisar o trabalho da
geneticista, a epistemóloga francesa percebe que McClintock dirige sua pesquisa
por uma terceira vertente: nem fatos puros, nem fatos construídos pelo homem-
pesquisador, mas o próprio material estudado colocando o problema, com uma
história para contar que é preciso aprender a decifrar (STENGERS, 1989). De
acordo com a própria McClintock, caberia ao cientista se contentar em deixar falar o
material.
Esta outra vertente epistemológica propõe colocar em suspensão os saberes
preestabelecidos, de forma a deixar vir à tona o material em sua singularidade, algo
como uma “prática ‘naturalista’ da ciência, uma prática que não age por meio de um
julgamento geral que recorta um objeto de maneira normativa, definindo a priori do
que ele deveria ser capaz, a que tipo de questão deveria responder, mas se dirige a
uma realidade intrinsecamente dotada de significado que é preciso decifrar e não
reduzir ao estatuto de ilustração particular de uma verdade geral.” (STENGERS,
1989, p. 6).
Interessante a autora francesa situar tal postura epistemológica como uma
ciência no feminino, o que equivale a deixar em suspenso todo um arcabouço
intelectual pré-fabricado, com o intuito não generalista, mas particularizador, de
deixar aflorar a singularidade daquilo que é estudado. Para Barbara McClintock, o
milho não é uma entidade a ser genericamente representada em direção a uma
verdade igualmente geral. Para a geneticista, cada grão de milho contaria uma
história única, não passível de representar o milho como entidade geral e
massificada. No dizer da própria Stengers (1989, p. 6), “E dizer ‘o milho’ já é dizer
demais, para Barbara Mcclintock cada grão aberrante devia ser compreendido em si
mesmo não como representante ‘do’ milho, mas naquilo em que, justamente, é
diferente”.
Os ideais de racionalidade da ciência tradicional, na compreensão de
Stengers, só aparentemente são abstratos, pois correspondem àquilo que podemos
chamar de “prática social” das ciências, por dizerem respeito a um ideal normativo,
38

com todas as consequências de natureza ética e política decorrentes de paradigmas


disciplinares uniformizantes. Para a epistemóloga, McClintock realizou um percurso
inverso, o de trabalhar a singularidade de um ser visto em seu próprio contexto.
Seria um fazer ciência no singular, donde sua dimensão mais propriamente feminina,
na compreensão de Stengers. Para a autora, tal virada epistemológica evidenciaria
não apenas a participação feminina no fazer científico, mas marcaria de forma
definitiva a própria história das ciências. A autora nos alerta para o fato de que tal
modelo NÃO seria “a descoberta de uma ‘outra’ razão, mas a exploração daquilo
que a razão pode, se for libertada dos modelos disciplinares que a normatizam.”
(STENGERS, 1989, p. 10). Ainda de acordo com a pensadora francesa, seria um ato
de resistência, uma tentativa de resistir à “irracionalidade social” das ciências.
Acolher as singularidades: a proposta de Stengers, apoiada nos pressupostos
delineados pela geneticista McClintock e sua ciência no feminino, nos pareceu
bastante sedutora no sentido de construir uma cartografia nem tanto das práticas,
mas dos incômodos e impasses vividos por psicólogos que atuam no Poder
judiciário do Estado do Rio de Janeiro. A ideia inicial foi a de compartilhar
experiências e desconfortos, de forma a repensá-los e – por que não? – transformar
o que num primeiro momento está sendo vivido como paralisia e impossibilidade em
potência de ação e criação.

2.3 Deixar falar o assombro: por uma história viva da prática institucional

Sempre tive em mente ouvir os colegas psicólogos do TJRJ a respeito das


inquietações que me fizeram iniciar esta pesquisa de doutorado. O objetivo seria
tentar saber deles como reagem e se comportam diante de situações que considero
extremamente problemáticas. Mais que problemáticas, situações que poderiam estar
na raiz de certos processos de indisposição e até mesmo de adoecimento de
profissionais que muitas vezes conduziam seus trabalhos em outras instituições de
forma mais tranquila e produtiva. Eu quis, desde o princípio, ouvir os indispostos, dar
voz aos descontentes (entre os quais me incluo), fazer emergir um
descontentamento muito pouco mencionado ou problematizado.
Outro importante fator de reflexão diz respeito ao que costumo chamar de
Psicologia da Predição, uma expectativa de predizer e antecipar ações futuras que
sempre associei ao universo acadêmico norte-americano, que reencontrei no
39

trabalho como psicólogo do TJRJ. Certamente, um dos fatores a me por em contato


com essa realidade foi possibilitado, ironicamente, pela assinatura de canais de TV a
cabo, onde pude acompanhar vários seriados da televisão estadunidense.
Curiosamente, o espaço institucional no qual costumam se dar esses embates é
quase sempre o espaço jurídico – mais precisamente, o Judiciário –, em que o
profissional psi, psicólogo ou psiquiatra, é figurinha fácil nas tramas que exploram o
desvendamento de crimes hediondos e o tratamento dispensado aos “psicopatas”
autores de tais atrocidades. Mesmo tendo em vista o caráter ficcional dessas
narrativas, algo sem dúvida importante a se levar em conta, considero que esses
seriados espelham uma realidade, ou uma tendência, presente no social. São
produtores desse sujeito que é ao mesmo tempo perito psi e investigador, além de
antecipador de comportamentos futuros e desvendador da verdade na elucidação de
crimes.
Algumas intervenções psicológicas típicas do meio jurídico sempre me
soaram incômodas. Refiro-me a ações extremamente naturalizadas nesse universo,
como, por exemplo, os estudos de revelação de abuso. Trata-se de realizar uma
intervenção com a criança supostamente vítima de abuso sexual e seus familiares,
no sentido de revelar ou desmentir a ocorrência do abuso. Resumindo: nessas
situações, cabe ao psicólogo atestar a realidade de um suposto abuso, muitas vezes
cometido anos antes do estudo levado a cabo. Tal prática coloca o profissional de
psicologia diante de graves dilemas de natureza ética, que sempre me soaram
profundamente desconfortáveis: como afirmar a ocorrência de um evento
supostamente ocorrido no passado? Como garantir a verdade desse evento, se nos
baseamos em discursos, na memória das crianças envolvidas e em interesses
outros, de adultos muitas vezes interessados em culpabilizar os acusados? Mais do
que isso, me surpreendeu a postura frequentemente acrítica dos colegas envolvidos
nesse tipo de prática, aceitando esse tipo de demanda sem questionamento e
contribuindo para criar a ideia de uma psicologia mágica, transcendente e
policialesca.
Outra prática, o chamado Depoimento Sem Dano (DSD) – ou depoimento
especial, como foi posteriormente batizado, recebeu por parte do CFP uma sanção,
revogada por uma subsequente Ação Civil do Ministério Público. Antes de o veto do
Conselho Federal se tornar realidade, tive a oportunidade, junto com a colega do
TJRJ Eliana Olinda Alves, de redigir uma Moção de Repúdio à participação do
40

psicólogo nessa prática. Tal moção foi apresentada no VI Congresso Nacional de


Psicologia, realizado em Brasília pelo CFP em junho de 2007, sob o tema “Do
discurso do compromisso social à produção de referências para a prática:
construindo o projeto coletivo da profissão”. Desse evento, participamos eu e a
citada colega na qualidade de delegados do CRP-05. A moção, aprovada por
unanimidade na Plenária de encerramento do Congresso, fez parte de todo um
movimento no sentido de aprofundar a discussão sobre a participação do psicólogo
em procedimentos do gênero, o que culminou com a Resolução do CFP proibindo a
prática, que considero bem mais detetivesca do que psicológica.
Ainda como forma de refletir sobre a participação de psicólogos na inquirição
de crianças – o que, de resto, tem sido objeto de apreciação e questionamento em
vários países europeus, bem como na África do Sul e na Austrália –, redigi com
Eliana Olinda Alves um artigo (2009) que procurou situar a prática do DSD como
uma nova tecnologia de escuta de crianças, com o fim de dar substrato ao
especialismo psi, voltado à espetacularização, à produção de provas objetivas e,
consequentemente, ao Judiciário como o lugar da punição e da aplicação da pena.
O depoimento especial, além de poderosa ferramenta de revitimização que solidifica
posições estereotipadas – a da criança vítima, a do adulto abusador –, reduz a
prática psicológica à posição, eticamente bastante desconfortável, de averiguação
da verdade objetiva, voltada a asseverar a ocorrência de fatos passados: “a prática
do DSD parece combinar proteção, vigilância, punição e controle” (SARAIVA e
ALVES, 2009, p. 109).
Outro exemplo a ser apontado é o do exame criminológico, estabelecido pela
Lei de Execução Penal (LEP, de 1984). Por esse exame, uma equipe formada por
psicólogo, psiquiatra e assistente social – que devem compor a chamada Comissão
Técnica de Classificação – tem de afirmar a adequação do preso à possibilidade de
progressão de regime, do fechado ao semiaberto e deste ao aberto. Tal afirmação
implica, ora indireta ou por vezes explicitamente, garantir a “boa conduta” futura do
detento que retorna gradativamente ao convívio social. Em artigo publicado na
Revista Mnemosine, do Departamento de Psicologia Social e Institucional da UERJ,
Bandeira, Camuri e Nascimento (2011) analisam os imperativos da prática do exame
criminológico, desvelando as expectativas de predição que subjazem à sua
demanda no universo jurídico. As autoras situam essa prática no movimento próprio
à sociedade disciplinar, baseada na produção da verdade como estratégia de
41

controle social. O exame seria o instrumento a ligar a o exercício de poder e de


controle sobre os corpos a uma produção de saber que lhe dá substrato, marcando
a passagem de uma sociedade de soberania para uma sociedade disciplinar,
constituída, esta última, por uma tecnologia do aprisionamento, um conjunto de
práticas que constrói a realidade da delinquência e cria a figura do delinquente.
Vemos aqui a psicologia sendo convidada, como disciplina, a atuar na
disciplinarização dos corpos e na produção de uma subjetividade delinquente,
através de um controle normalizante, classificatório e punitivo, além de igualmente
preditivo. Amparando-se no pensamento foucaultiano, Bandeira, Camuri e
Nascimento (2011) desvelam a genealogia do especialismo adaptado à realidade
criminal. A participação do psicólogo na Comissão Técnica de Classificação, objeto
de reiterados questionamentos por parte dos psicólogos que atuam na justiça penal,
é denunciada como mais um aspecto da visão positivista que confere ao exame
criminológico o poder garantidor de expectativas futuras quanto ao comportamento
do apenado. De acordo com as autoras, o princípio individualizador da pena,
preconizado pela LEP, deveria envolver políticas concretas no sentido de reinserir
socialmente o apenado; basear essa reinserção apenas em um exame é pura
prognose, “pois a psicologia, bem como as demais ciências humanas, não tem como
predizer comportamentos” (BANDEIRA, CAMURI e NASCIMENTO, 2011, p. 33).
Importante lembrar que, diante da realidade prisional brasileira, caótica e
perversamente seletiva, é quase um escárnio falar em individualizar penas e
promover reinserção social: “questões como avaliar o mérito do condenado, a
presunção acerca da delinquência futura, a crença no conceito de individualização
da pena e o exame criminológico como capaz de prever comportamentos se
configuram, a nosso ver, como mitos da execução penal” (idem, 2011, p. 34).
Bandeira, Camuri e Nascimento apontam ainda um importante aspecto,
responsável pela pressão dos operadores jurídicos no sentido da manutenção do
exame criminológico e da participação do psicólogo nesse dispositivo. As autoras
citam Salo de Carvalho, para quem o exame forneceria aos juízes criminais
“argumentos ao julgamento, permitindo aos magistrados ‘boa-consciência’,
caracterizando sua isenção de responsabilidade pelo ato de dar sentença”
(CARVALHO apud BANDEIRA, CAMURI e NASCIMENTO, 2011, p. 35).
Observamos movimento análogo em varas de família e de infância e juventude,
cujos magistrados costumam apoiar-se nos relatórios psicológicos como forma de
42

não se responsabilizarem pelas consequências de suas decisões, num claro e


pouco disfarçado tirar-o-corpo-fora, uma forma individualista de lidar com a grande
pressão institucional no sentido de fixar resultados e garantir sua efetividade.
Desconheço a realidade da prática psicológica nos Estados Unidos da
América. Porém, a julgar pelo que apresentam os seriados de TV, podemos concluir
que o aspecto preditivo é parte mais que integrante desse universo. Percebe-se,
nesses programas, a dimensão inata concedida ao psiquismo e ao comportamento
em geral, passível, portanto, de mensuração e antecipação. Ainda que não seja
prudente generalizar o direcionamento político da psicologia norte-americana a partir
de uma única fonte, importante se faz evocar a revista virtual Journal of Forensic
Psychology, que publica artigos e resenhas de pesquisas que aludem, desde os
títulos, a termos como predicting dangerously, predicting recidivism e correrelatos, o
que deixa claro, pelo menos para a publicação citada, o seu ideário teórico e ético-
político.
O objetivo das entrevistas realizadas é o de construir um esboço da história
dos inadaptados, tentando explorar o mal-estar e a indisposição diante de um
trabalho psicológico com o qual a produção de certezas parece estar intimamente
relacionada – mais do que em qualquer outra possibilidade de prática psi, em minha
opinião. O convite aos colegas se deu sob a forma de “gostaria de falar com você a
respeito de processos de trabalho, para o trabalho de campo de minha tese de
doutorado”. No início, durante as primeiras entrevistas, tratei de explicar as bases
em que se dá meu trabalho e a hipótese de que o mal-estar pode também ser
consequência de certa exigência de previsibilidade presente na instituição judiciária,
o que seria fator de angústia e inadaptação. Percebi, com o tempo, ser mais
adequado falar do trabalho genericamente, pelo simples motivo de que explicitar
essa hipótese suscitava em alguns entrevistados a necessidade de confirmá-la.
A opção pelos inadaptados é intencional, no sentido de fazer aflorar um
incômodo que pelo menos deveria ser de todos. A amostra é deliberadamente
viesada: nunca pretendi estabelecer um coeficiente de inadaptação que justificasse
numericamente uma hipótese aventada de antemão. Os relatos colhidos podem ser
considerados como histórias de vida e de prática profissional, nos quais elementos
de desconforto e inadequação possam ser explicitados e explorados. Essa é a ideia
inicial. Das entrevistas já realizadas, decidi descartar aquelas em que queixas em
relação às condições de trabalho aparecem como o elemento principal, quando não
43

exclusivo. Considero que discursos do tipo “Como posso trabalhar sem


computador?”, “Olha só o tamanho desta sala de atendimento!” dizem respeito a
aspectos igualmente significativos, mas que fogem aos rumos e aos objetivos
inicialmente propostos. Procurei privilegiar relatos de tom mais propriamente
pessoal, nos quais os narradores manifestaram sua implicação quanto às tarefas e
às exigências institucionais.
44

3 A HISTÓRIA ORAL OU O PREDOMÍNIO DO UNIVERSO SINGULAR DA


MEMÓRIA

A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda,


e como recorda para contá-la.
Gabriel García Márquez

3.1 A História Oral para além da mera proposição metodológica

As reflexões em História Oral se configuram como um poderoso interlocutor


no sentido de delinear um universo ético e político para questões de pesquisa.
Trabalhar com narrativas pessoais evoca um sentido absolutamente particular a
esses relatos. Mas como envolver essas falas individuais numa perspectiva coletiva?
Como conferir-lhes representatividade e relevância? Acredito que os teóricos da
história oral trabalham essas questões num sentido que propõe a superação de
antinomias como individual versus coletivo, história versus memória. Além disso,
interessou-me bastante a forma como a história oral situa as noções de fato histórico
e de verdade, bem como o esforço de alguns autores no sentido de estabelecer o
papel do sujeito na história, o que dá margem à emergência do ponto de vista dos
excluídos e dos perdedores.
Araújo & Fernandes (2006) procuram traçar uma história do movimento que
culminou na emergência da história oral a partir da historiografia contemporânea.
Esse movimento eclodiu na França, no final da década de 20 do século passado, a
partir da criação da Escola e da revista Annales d’Histoire Économique et Sociale,
tendo à frente pensadores como Marc Bloch e Lucien Febvre. O objetivo era o de
estabelecer uma crítica à história positivista, que estabelecia o fato histórico a partir
do relato dos grandes nomes e da demarcação de fontes documentais consideradas
fidedignas. A história era então escrita através da visão dos vencedores. Com os
Annales, a proposta envolvia a ideia de fato histórico como “o produto de uma
construção ativa de sua parte [do historiador] para transformar a fonte em
documento e, em seguida, constituir esses documentos, esses fatos históricos em
problema”. (BLOCH apud ARAÚJO & FERNANDES, 2006, p. 14). O documento
histórico passa a ser encarado como uma construção, pelo fato de ser um vestígio
do passado que necessita ser constituído em fato, algo que só se dará no momento
45

presente. A verdade, nesta perspectiva, adquire a dimensão de versão, e não de


dado apriorístico. Chegamos à ideia de que o historiador escolhe e elege, portanto
constrói suas fontes.
Essa história construída e essa verdade relativizada, concebidas pelos
pensadores dos Annales, possibilitou toda uma série de transformações na
historiografia contemporânea, que culminou em movimentos como a história do
tempo presente, a história vista de baixo, bem como a história das minorias e do
cotidiano. Araújo e Fernandes destacam a importância do movimento dos Annales
para a eclosão de todos esses movimentos subsequentes, que explicitaram o papel
do sujeito na constituição do fato histórico e da própria história. As autoras advertem,
entretanto, que as falas das minorias (operários, indígenas, homossexuais), das
mulheres e dos excluídos não tinham recebido sua real importância por parte dos
Annales nem da historiografia marxista em geral. Trata-se de uma nova história,
tornada possível a partir de toda uma série de transformações que eclodiram no
Ocidente a partir dos anos 60. Estavam em questão noções mais do que
naturalizadas pela história positivista, como a de tempo, de tempo presente como
fato histórico e as relações entre história e memória. Nesse universo, o relato oral
recebe uma ênfase particular, que dá substrato ideia de construção histórica e de
versões diferenciadas, o que representou uma grande virada na prática e nas
preocupações dos historiadores.
A história do tempo presente representou uma crítica ferrenha à concepção
positivista de que não era possível fazer história atual, pois o fato de estar inserido
na época enfocada faria com que o historiador perdesse sua objetividade e
imparcialidade. Porém, se a história trabalha com versões e o fato histórico é uma
construção do historiador, a distância no tempo não o pode proteger de nada: “Este
esforço passou, justamente, pela construção de uma valorização positiva do que era
considerado a ‘fragilidade’ da história contemporânea voltada para o estudo do
passado recente”. (ARAÚJO & FERNANDES, 2006, p. 20). Assim, o que era
considerado como uma fragilidade na historiografia tradicional passa a ser visto
como grande vantagem. A história oral funda-se, precisamente, nesse contexto de
questionamento e mudança de paradigmas.
A valorização do indivíduo e das narrativas biográficas foi consequência direta
da emergência de movimentos como a história oral e as histórias de vida. Mais que
isso, tais movimentos representaram um rompimento com o paradigma positivista.
46

Mais além, representaram a emergência da ideia de memória como fato histórico. O


que se enfatiza aqui não é o ideário de um fato visto como fenômeno per si, mas o
fato como construção daquele que o narra. Isso nos leva à ideia de memória, na
qual o passado é articulado ao presente. As antinomias são então contestadas,
abrindo espaço de valorização do sujeito que narra sua própria história.

3.2 História Oral: um pouco de história

Podemos situar o início formal da história oral com Allan Nevins, da


Universidade Columbia, em 1948. Rodrigues (2002) aponta a relação próxima entre
a tecnologia e a história oral, grandemente facilitada pelo advento do gravador.
Segundo a autora, a história oral se estabeleceu no meio acadêmico norte-
americano com pretensão claramente cientificista, de forma a reproduzir a trajetória
da historiografia como profissão nos Estados Unidos da América. Rodrigues,
apoiada em Ronald Grele, afirma que “a profissionalização [do historiador] ocorreu
nas últimas décadas do século XIX, sob a égide de precisos cânones de
cientificidade: aspirava-se a uma reconstituição do passado como realmente foi”.
(RODRIGUES, 2002, p. 103). Assim, a história oral manteve-se, nos anos 1950 e
1960, como mera técnica auxiliar a serviço da história dos grandes nomes e dos
grandes feitos, permanecendo restrita às elites. Um dos elementos desse uso da
história oral como mera técnica de registro é representado, no dizer de Rodrigues,
por um imperativo arquivístico, que “posicionou a história oral em um espaço de
virtualidades [os arquivamentos dos depoimentos gravados] marcado por tensões,
representando estratégia definida em favor do controle, do apaziguamento e da
delimitação da competência para falar e ser transformado em documento histórico”.
(RODRIGUES, 2002, p. 109).
Rodrigues aponta, em contrapartida, um momento de virada nesse uso da
história oral, uma “expansão não programada” e à revelia dos pioneiros, que
popularizou a nascente técnica e a difundiu para fora dos muros acadêmicos. A
história oral se espalhava por museus, sindicatos e grupamentos humanos variados.
Seus usos passaram a ser os mais distintos, fora do controle do meio universitário e
das associações profissionais. Essa expansão criou uma tensão entre os que
defendiam o emprego da história oral como técnica de uso restrito aos pensadores
acadêmicos e aqueles que passavam a utilizá-la como parte de movimentos que
47

procuravam dar voz aos segregados e condenados à invisibilidade. Os anos 60


certamente contribuíram para o incremento dessa tensão, através da visibilidade
alcançada pelos movimentos de contestação social e política que eclodiram no
mundo ocidental. Rodrigues sustenta que o imperativo arquivístico manteve-se
dominante até os anos 70, quando a disciplina história passou a ser firmemente
questionada pelos ativistas sociais. De acordo com a autora (RODRIGUES, 2002, p.
113), “a esta altura, a história oral não mais se afigura suplente de uma diva. Torna-
se malvada, enfrenta e desafia”. A história oral passa a ser também um instrumento
dos excluídos, até então “dessingularizados sob grandes relatos doutrinários e
organizacionais” (ibidem).
Temos então o que Rodrigues chama de “segunda geração” de historiadores
orais, surgida na virada dos anos 1960 para os anos 1970. Esses grupos se
estabeleceram sob o compromisso ético e político de dar voz aos despossuídos de
toda ordem, incutindo fundamento à militância social. Formaram-se assim dois
grupos distintos, os arquivistas e os ativistas (RODRIGUES, 2002). A autora acredita
que os primeiros não podem prescindir dos segundos, sob pena de comprometer
sua própria existência. Dessa forma, crescem mais e mais os grupos que desejam
conferir à disciplina mais relevância social. Rodrigues chega a se referir aos
historiadores ativistas comunitários como a “contracultura historiográfica”, no intuito
de destacar seu caráter questionador da historiografia oficial e da realidade
socioeconômica vigente.

3.3 História Oral e verdade

A preocupação em questionar a validade de noções como a de verdade,


naturalizada no discurso da historiografia tradicional de inspiração positivista,
encontra-se presente em muitos teóricos da história oral. Gagnebin (2007a) propõe,
antes de definir o que é verdadeiro, analisar a preocupação com a verdade, essa
“vontade de verdade”. Sua hipótese inicial é a de que a verdade do passado – e,
consequentemente, a preocupação com ela – remete mais a uma ética do presente
do que a uma adequação formal entre fato e relato. Desta forma, Gagnebin evoca
Nietzsche e Benjamin para estabelecer sua crítica ao ideal da ciência histórica
positivista. Segundo a autora (GAGNEBIN, 2007a, p. 40), “Ele [Walter Benjamin]
denuncia primeiro a impossibilidade epistemológica de tal correspondência entre
48

discurso científico e ‘fatos’ históricos, já que estes últimos adquirem seu status de
‘fatos’ apenas por meio de um discurso que os constitui enquanto tais”. Neste
sentido, sustenta a autora, nós articulamos (construímos) o passado, não o
descrevemos. Para ela, a chamada exatidão científica, com suas pretensões de
aspirar a uma verdade pretensamente universal, denuncia (ou esconde) interesses
políticos específicos. Gagnebin sustenta que o paradigma positivista de estabelecer
uma única verdade da história, ao invés de afirmar a historicidade, na realidade a
elimina do discurso histórico, por destituí-lo de toda uma dimensão processual que
deveria justamente caracterizá-lo.
Interessante a ênfase no caráter processual do fato histórico, bem como a
relativização (histórica!) da ideia de verdade e a defesa intransigente do “caráter
necessariamente retrospectivo e subjetivo da memória em relação ao objeto da
lembrança” (GAGNEBIN, 2007a, p. 41-42). Mas uma questão se apresenta: como
não cair num relativismo estéril e empobrecedor, em que todas as versões se
equivalem sem nenhum dado de realidade que lhes dê amparo? A autora insiste no
fato de que, se o historiador lida com o relativo, não pode haver uma verdade única
sob o pretexto de estabelecer verificações factuais. Entretanto, Gagnebin não
descarta a noção de verdade no fazer histórico, mas igualmente a relativiza. Trata-
se, segundo a autora, de pensar a verdade como própria a um sistema de referência
que explicite a relação de determinado sujeito a um mundo específico de objetos,
uma alternativa tanto ao que chamou de “relativismo apático” quanto ao positivismo
dogmático. Haveria, portanto, uma fragilidade essencial e intrínseca à memória, que,
longe de denunciar sua inadequação ao discurso historiográfico, serviria para
contrariar “o desejo de plenitude, de presença e de substancialidade que caracteriza
a metafísica clássica”. (op. cit.: 44).
O italiano Alessandro Portelli é outro exemplo de historiador oral preocupado
com a verdade de sua prática. Para ele, a questão não se resolve quando
determinamos de antemão uma verdade a ser perseguida e vivenciada, como uma
noção transcendente e externa ao sujeito, pelo simples fato de que, de acordo com o
autor, “até mesmo erros, invenções e mentiras constituem, à sua maneira, áreas
onde se encontra a verdade”. (PORTELLI, 1997a, p. 25). Ainda que conceba uma
diferença entre imaginação e fato, o autor propõe a primazia da primeira nos relatos
de histórias de vida. Trata-se de reconhecer, no trabalho da história oral, a
interferência de “múltiplas abordagens à verdade”, o que estabelece uma
49

contraposição à ideia de objetividade científica. No entendimento de Portelli, cabe


aos intelectuais o trabalho de interpretação que forneça sentidos àquilo que está
sendo narrado, o que não garante ao intelectual acesso completo à verdade. Neste
sentido, Portelli é taxativo: “A história Oral não mais trata de fatos que transcendem
a interferência da subjetividade; a História Oral trata da subjetividade, memória,
discurso e diálogo” (PORTELLI, 1997a, p. 26). A dimensão dialógica e relacional da
história oral, como trabalhada pelo autor, dá bem a ideia de uma verdade que se
constitui nesse espaço de interação: “aquilo que criamos é um texto dialógico de
múltiplas vozes e múltiplas interpretações: as muitas interpretações dos
entrevistados, nossas interpretações e as interpretações dos leitores”. (idem, p. 27).
Falamos, portanto, de uma verdade igualmente construída e processual, que não
pretende estabelecer uma leitura hegemônica acerca do fato histórico ou da
experiência narrada.
Vale repetir a afirmação, já discutida anteriormente, de que a própria
historiografia tradicional e positivista não está imune a enganos; mais do que isso,
trata-se de considerar a fidedignidade de suas fontes como produto de uma
construção histórica. Como bem ressaltou Gagnebin (2007a), o fato histórico e suas
fontes não são dados a priori, e sim o produto de um discurso que os constituiu
como tais. Rodrigues (2002) parece endossar essa argumentação, ao afirmar que
“nenhuma memória é inocente. Contudo... alguma história o será?”.
Podemos exemplificar a importância da interpretação no tratamento dos
relatos de fontes orais por meio da reflexão de Janaína Amado (2003), que relata de
forma bem humorada uma descoberta feita por ocasião de pesquisa empreendida
sobre a chamada “Revolta do Formoso”, ocorrida no município do Estado de Goiás
nas décadas de 50 e 60 do século passado. Um dos entrevistados fornece um relato
não confirmado por nenhuma outra fonte, além de por vezes contrariar informações
históricas confiáveis e consolidadas. Surpresa, a autora descobre que a história
contada por seu entrevistado reproduz a trama contida no romance de Miguel de
Cervantes, Dom Quixote de La Mancha.
Amado analisa o aparentemente mentiroso relato como um indício da relação
existente entre história e memória: se a primeira encontra-se mais ligada aos fatos, à
segunda cabe reelaborá-los, emprestando-lhes um colorido simbólico e impregnado
das tradições culturais de determinado povo, em determinada época. A autora finda
por concluir, por meio de um trabalho interpretativo, que Fernandes, o autor do relato
50

fantasioso-mentiroso, evocava imagens e símbolos profundamente enraizados na


memória coletiva de sua região e grupo de pertença: “em vez de promover o resgate
histórico da revolta [do Formoso], ele [Fernandes] construiu uma narrativa original,
mesclando acontecimentos verídicos, existentes no movimento, com tramas,
nomenclaturas e simbologias de antigas tradições, assimiladas localmente”.
(AMADO, 2003, p. 33). Desta forma, a autora propõe a interação entre história e
memória; porém, o que num primeiro momento aponta para o que poderíamos
caracterizar como uma interação indissociável, impossível de apartar – pelo menos
no universo das histórias orais de vida –, também sugere, ao mesmo tempo e
contraditoriamente, contraposição e distinção entre o que seriam história e memória.
Afirma ela: “história e memória mantêm tantas relações entre si, que é até difícil
pensá-las separadamente” (idem, p. 30). Esta afirmação, ainda que proponha duas
noções indissociáveis, mantém a ideia de duas realidades – em franca interação,
decerto, mas distintas entre si.

3.4 Entre fatos e versões

“Importa a versão, não o fato”. Encontramos essa afirmação em muitos dos


teóricos da história oral. Mais do que isso, podemos considerar a história oral uma
defesa intransigente da versão, bem como uma proposição crítica à noção de fato
como um dado exterior àquele que o produziu. Mas se essa versão, por mais que
impregnada de todo um imaginário sociocultural, não for compartilhada por mais
ninguém? Não poderíamos propor esse compartilhar como um critério de
legitimidade? Nesta perspectiva, talvez não nos coubesse sequer evocar a noção de
fato objetivo – ainda sustentado por alguns teóricos como uma categoria –, mas de
relatos que adquirem fidedignidade por conta de sua dimensão coletiva,
compartilhados que são por determinado grupo num momento histórico específico.
Fazer equivaler história e memória, eliminando qualquer distinção entre ambas, bem
como conferir legitimidade a determinado fato social a partir de sua dimensão
coletiva, exigiria possivelmente uma verdadeira diluição da história na memória,
abolindo, talvez de forma definitiva, as noções de objetividade e de verdade dos
fatos.
O documentarista brasileiro Eduardo Coutinho reflete sobre o seu ofício a
partir da ideia de verdade, que recebe um tratamento igualmente diferenciado e
51

transgressor. Para ele, um fator que torna o filme documentário um registro


significativo reside na interação entre entrevistador e entrevistado, algo que provoca
um confronto e produz “um diálogo produtivo, em que há, de alguma forma, uma
troca”. (COUTINHO, 1997, p. 166). A fim de tornar esse momento mais fecundo e
surpreendente, Coutinho conta que não costuma iniciar uma entrevista com uma
pauta pré-definida, abrindo um leque de possibilidades que ficariam comprometidas
caso o assunto do diálogo já estivesse de antemão determinado. O cineasta mostra-
se consciente da dimensão assimétrica desse diálogo, uma vez que cabe ao
documentarista, sem o conhecimento prévio do entrevistado, a manipulação da
entrevista durante a etapa posterior, de montagem do material filmado. Isso confere
poder sobre a pessoa do entrevistado, poder esse concretizado, em sua opinião,
pela posse da câmera. Esse instrumento de poder (a câmera), como o chamou
Coutinho, lembrou uma reflexão análoga por parte de Portelli (2001), quando o autor
italiano refere-se ao poder possibilitado pelo uso do gravador e do posterior
tratamento a ser dado ao material gravado.
Transcrição (Portelli) e edição (Coutinho), com a ajuda do gravador e da
câmera, exemplificam a assimetria nessas situações de entrevista. A título de
fidelidade, torna-se necessário destacar que o texto de Portelli assinala “uma
temerosa simetria” (1997a, p. 22) entre as ideias do entrevistador e os relatos do
informante, mas o historiador italiano pretende, nesse momento de seu texto,
denunciar a “ficção de não-interferência” em estudiosos que costumam produzir uma
“textualidade artificial para ampliar a autoridade do discurso histórico” (idem, p. 23), o
que transformaria a proposta de diálogo em dois monólogos, justapostos e
inconciliáveis.
Voltando a Coutinho, temos nas entrevistas de documentário um diálogo
assimétrico e sujeito a manipulações, em que o que está em jogo, segundo o
cineasta, não é a filmagem da verdade, mas a verdade da filmagem (COUTINHO,
1997, p. 167). Considerando-se à vontade para fazer essa afirmação “porque
inclusive a gente não está fazendo ciência, mas cinema” (idem, p. 167), Coutinho
desloca a verdade de seu caráter neutro, positivo e objetivo “para o campo do
imaginário e do subjetivo” (ibidem). Para o documentarista, o resultado de
semelhante abordagem é mais do que uma verdade, mas uma “superverdade”,
produto daquela situação específica. Coutinho entende o set de filmagem como um
espaço artificial, “portanto mais verdadeiro”. Essa passagem me lembrou Francis
52

Ford Coppola, que, ao filmar “O fundo do coração” (One from the heart, Zoetrope
Studios, 1982), sentiu a necessidade de recriar em estúdio a cidade de Las Vegas,
onde se passaria a história. Quando o estúdio questionou essa decisão, que criava
problemas de várias ordens – além do vultoso incremento nos custos de filmagem –,
indagaram-lhe se a cidade ‘original’ já não seria suficientemente artificial para a
atmosfera que Coppola pretendia imprimir ao filme. A resposta do cineasta, um
notório ‘estourador’ de orçamentos, foi no mínimo intrigante: Coppola simplesmente
retrucou que quanto mais artificial Las Vegas lhe parecesse, mas se sobressairia a
verdade de seu enredo.

3.5 Subjetividade e memória

Alessandro Portelli aponta a responsabilidade ética do historiador oral,


compreendida por ele como o compromisso político com a verdade e a honestidade:
“compromisso com a honestidade significa, para mim, respeito pessoal por aqueles
com quem trabalhamos, bem como respeito intelectual pelo material que
conseguimos; compromisso com a verdade, uma busca utópica e a vontade de
saber ‘como as coisas realmente são’, equilibradas por uma atitude aberta às muitas
variáveis de ‘como as coisas podem ser’.” (PORTELLI, 1997b, p. 15). O autor faz
menção a termos como responsabilidade e verdade para justamente destacar seu
caráter plural e relativo, não sem criticar o que chama de “busca farisaica e totalitária
da ciência”. Para ele, a história oral é “uma ciência e arte do indivíduo” (ibidem).
Estamos, portanto, no primado da subjetividade, no qual a memória seria sua mais
perfeita tradução. Isso equivale a uma opção mais do que preferencial pelo passado,
entendido como versão dos fatos, marcado que está pela subjetividade presente de
quem o evoca. Portelli, em seus escritos, preocupa-se em questionar e desmistificar
antinomias tão comuns às chamadas ciências humanas, tais como indivíduo e
sociedade. Por este motivo, tende a evitar o termo “memória coletiva”: apesar de a
memória ser social, ela só se torna concreta quando experienciada pelo indivíduo.
Alerta o autor: “devemos ser cautelosos ao situá-la [a memória] fora do indivíduo”.
(ibidem) Parece claro que ao falar de experiência individual o autor não postula uma
mônada fechada e impenetrável, e sim uma opção pela singularidade da
experiência, num sujeito que produz história, luta e transforma sua realidade. Pelo
fato de cada sujeito ser único e irredutível a qualquer fórmula ou sistema teórico que
53

pretenda uniformizá-lo, “o respeito pelo valor e pela importância de cada indivíduo é,


portanto, uma das primeiras lições de ética sobre a experiência com o trabalho de
campo na história oral”. Se cada pessoa é única no sentido daquilo que pode trazer
quanto a experiências de vida, “cada entrevista é importante, por ser diferente de
todas as outras” (ibidem, p. 17). A memória confunde-se, então, com “o ato e a arte
de lembrar” (ibidem, p. 16).
Portelli preocupa-se em distinguir a história oral das outras ciências sociais,
novamente através de uma crítica aos modelos de ciência ainda prevalentes nessas
últimas. Para ele, as ciências humanas e sociais preocupam-se em abstrair, da
experiência individual, modelos que transcendem o indivíduo e possam ser válidos
para todos. Na história oral, o respeito à singularidade da experiência individual,
concretizada nos relatos e na memória daí advinda, torna-se preceito básico. O autor
preocupa-se em destacar a tarefa de “ouvir aqueles que não foram ouvidos” (ibidem,
p. 18), como forma de dessacralizar os grandes modelos unificadores e as narrativas
hegemônicas. A história oral é, portanto, a história da(s) diferença(s), “uma prática
inquestionavelmente antagonista e contestadora” (ibidem).
O historiador italiano entende a liberdade como a capacidade de realizarmos
nossas próprias escolhas, salientando que a diferença poderá se transformar em
opressão, caso essa liberdade não possa ser vivida e compartilhada por todos.
Surge então outro importante aspecto da história oral como prática e postura ética:
seu caráter dialógico, que torna o trabalho de campo “um experimento em igualdade,
baseado na diferença” (idem, p. 18). O autor cria um interessante jogo de palavras
como forma de exemplificar sua dialética entre igualdade e diferença: “a fim de
sermos totalmente diferentes, precisamos ser verdadeiramente iguais e não
conseguiremos ser verdadeiramente iguais se não formos totalmente diferentes”
(idem, p. 19). Esta passagem, que faz interagir igualdade e diferença, dá a medida
da relação estabelecida por Portelli entre o que se poderia considerar como
individual ou coletivo: uma antinomia a ser superada. A história oral seria, portanto,
uma resposta “metodológica” dirigida a essas falsas antíteses que sempre
caracterizaram as formulações das ciências sociais. Trabalhar com indivíduos,
perseguir a diferença: eis a melhor maneira de se chegar a formulações de ordem
geral (coletivas), nas quais a singularidade da experiência e o respeito às diferenças
possam ser afirmados e respeitados. Em outro momento, Portelli volta a criticar o
que chamou de “ambígua utopia da objetividade” (PORTELLI, 1996, p. 1),
54

defendendo a legitimidade da experiência subjetiva, pessoal e intransferível. Para


ele, é impossível excluir a subjetividade, definida como “o trabalho através do qual
as pessoas constroem e atribuem significado à própria experiência e à própria
identidade”. (idem, p. 2). Aprofundando suas críticas ao objetivismo científico, o autor
acentua a dimensão abstrata conferida à realidade pelas abordagens positivistas,
forjadas na intenção de excluir o subjetivo sob o pretexto de dar destaque a
fenômenos concretos e controláveis (idem, p. 3). A subjetividade é considerada
como a maior riqueza das fontes orais, o que faz Portelli situar a certeza não no fato
em si, mas em seu relato, o que desloca a verdade da certeza pretensamente neutra
de um mundo objetivo para aquilo que é concretamente relatado. Trata-se de uma
“representatividade qualitativa”, estabelecida não numa formulação geral e
unificadora, mas baseada na exceção e na singularidade. Ainda sobre a falsa
antítese entre individual e social, Portelli afirma que “o ato individual das palavras,
em suma, revela e amplia as possibilidades expressivas da langue socialmente
dada” (idem, p. 7). Podemos concluir que se torna muito mais rico e legítimo lidar
com esse real multifacetado e plural do que supor, quanto a ele, homogeneidade e
estabilidade.

3.6 Cartografar multiplicidades: introduzindo os interlocutores-heterônimos

Decidi ouvir meus colegas psicólogos do TJRJ acerca de inquietações que


durante bastante tempo imaginei apenas minhas. A intenção foi a de registrar
práticas, temores e impasses de sujeitos atravessados pelas forças e dinâmica
institucionais, de forma a constituir um documento vivo dessas forças, tentando
entender onde se localizam, como aparecem e repercutem no dia-a-dia do chamado
trabalho técnico no Judiciário.
Assim situado, escolhi cinco das dez entrevistas realizadas e constituí cinco
heterônimos-interlocutores que falaram a respeito de uma realidade coletiva, mesmo
que as tais forças institucionais insistam em sitiá-las, amortecê-las e neutralizar sua
dimensão sobre-individual.
Verena Alberti (2004) produziu uma reflexão sobre a obra de Fernando
Pessoa e seus heterônimos – que somam mais de setenta! –, bastante útil para
ilustrar esse propósito. A autora lembra que o termo heterônimo parece ter sido
cunhado pelo próprio Pessoa no sentido de acentuar o caráter real dessas
55

existências, dotadas de “vida própria” e completa independência em relação ao seu


criador. Pelo menos os principais – Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo
Reis – são portadores de estilos, preocupações, interesses e biografias distintas,
bem como obras literárias específicas.
Pessoa acentua, de acordo com Alberti, a origem mental de seus
heterônimos, que seriam produto de uma “tendência orgânica e constante para a
despersonalização e para a simulação”5. Pessoa explica que tais fenômenos – de
despersonalização e de simulação – não se manifestam em sua vida exterior, mas
“fazem explosão para dentro” (ALBERTI, 2004, p. 156). A despersonalização
defendida pelo poeta, junto com a defesa de uma dimensão de existência outra,
interna e nada prática – portanto desapegada do que poderíamos chamar de senso
de realidade, voltado para o concreto e ligado à experiência empírica –, são
elementos que, de acordo com Alberti, sugerem em Pessoa “o esfacelamento do eu
e a falência da identidade unívoca do sujeito” (idem, p. 165). O gênio português,
através do convívio com suas múltiplas personalidades, estaria denunciando a ilusão
de unidade de todo um universo conceitual personalista e identitário, o que
certamente inclui o pensamento psicológico tradicional. Alberti (2004, p. 167) chega
a supor um “esfacelamento do sujeito” como próprio de uma perspectiva pós-
moderna de existência, caracterizada pela destemporalização, desterritorialização,
bem como pela destotalização do eu, o que estaria denunciando o fracasso da
ilusão subjetivista.
Outro aspecto a se considerar desse “outrar-se”, tão vivo em Pessoa, é a
subversão da experiência de verdade. Apesar de o escritor português afirmar que se
baseia “(...) em dados que são falsos por eu, artisticamente, não saber senão mentir
(...)” (idem, p. 161), Pessoa opera, nessa experiência de desdobramento e
despersonalização, uma mudança de foco na qual verdade e mentira desaparecem
como noções pretensamente unívocas e antitéticas. É o que podemos depreender
de trechos como o seguinte:

Sabe que, como poeta, sinto; que, como poeta dramático, sinto
desapegando-me de mim; que, como dramático (sem poeta), transmudo
automaticamente o que sinto para uma expressão alheia ao que senti,
construindo na emoção uma pessoa inexistente que a sentisse
verdadeiramente, e por isso sentisse, em derivação, outras emoções que
eu, puramente eu, me esqueci de sentir (Pessoa, citado por ALBERTI, op.
cit., p. 161). Grifos meus.

5 Pessoa citado por ALBERTI (2004)


56

Alberti considera que Pessoa mostra por exacerbação, através de seu “drama
em gente”, a impossibilidade de unificação do que costumamos chamar de eu: “o
que predomina em nossas vidas diárias, memórias, projetos e futuros, é a ilusão de
unidade do eu, que, de tão arraigada, deixa de ser ilusão e passa a ser a coisa
dada” (ALBERTI, 2004, p. 166). A autora considera que esse “esfacelamento do
sujeito” é próprio da Pós-Modernidade. Trata-se de uma grande discussão, que
neste momento não nos compete realizar, mas apenas evocar como forma de
conceder fundamento à ideia dos interlocutores-heterônimos: diferente de Pessoa,
eles têm existência externa; tal como em Pessoa, eles sentem e registram uma
experiência que não se esgota em suas respectivas individualidades, mas se situa
num espaço comum a determinado contexto sócio-político.
O entrevistador, à maneira de um historiador oral – e se não soar demasiado
pretensioso... – é mais do que apenas aquele que colhe dados, ele se faz presente
na experiência, é parte da problemática e assim se coloca desde sempre. Partindo
de hipóteses iniciais, procurei questionar os colegas a respeito de seus processos de
trabalho naquilo que ultrapassa as meras determinações teóricas e técnicas, como
forma de chegar ao registro de um universo institucional repleto de intenções,
ordenamentos e imperativos, um universo que se localiza e presentifica a todo
instante nas relações internas e nas demandas dirigidas às equipes técnicas. Eis o
motivo de tê-las constituído – as relações internas no âmbito do poder judiciário –
como um potente analisador dessas forças de natureza político-institucional.
A seguir, uma apresentação desses depoimentos-trocas, chamados de
relatos selvagens e apresentados na seguinte ordem: A Sra. P. e a escrita
paralisada; A Sra. O. e a prática aterrorizada; O Sr. D. ou o elefante e as
formiguinhas; A Sra. E. ou a corda que sempre arrebenta para o lado mais fraco; A
Sra. R. ou O diamante pra lá de lapidado.
As iniciais dos interlocutores-heterônimos tiveram como inspiração, além da
óbvia formação de palavra, o Sr. K. de O processo, de Franz Kafka, cuja
estupefação diante dos meandros e da arbitrariedade do poder pareceu uma potente
representação da realidade cotidianamente vivida no âmbito interno do Judiciário.
Optamos por apresentar em itálicos os trechos das entrevistas, diferente dos
comentários, registrados em caracteres comuns.
57

4 OS INTERLOCUTORES-HETERÔNIMOS E SEUS RELATOS SELVAGENS

4.1 A Sra. P. e a escrita paralisada

Entrevistador: Como você já sabe, essa nossa conversa faz parte da minha
tese de doutorado, onde pretendo refletir sobre incômodos que envolvem
processos de trabalho. Será uma conversa confidencial, que inicio te
perguntando sobre a tua trajetória. Uma coisa importante: não pretendo
psicologizar nada, nem a respeito da problemática que estou enfocando
nem a respeito das pessoas que estou entrevistando. A minha ideia é fazer
uma leitura institucional desses processos de trabalho, desse mal-estar.
Sra. P.: Bom, eu era psicóloga clínica e também atuava na área da Saúde.
Eu tinha um cargo burocrático, mas consegui com o tempo ficar desviada de
função e trabalhei por um monte de anos como psicóloga em um grande
hospital. Eu estava na faculdade, fiz o concurso da Saúde e passei. Passei
a trabalhar na parte burocrática até ser desviada de função e atuar como
psicóloga.
Entrevistador: Seu cargo era de nível médio?
Sra. P.: Sim. Mas nunca houve prova de ascensão, nem tinha havido prova
para o cargo de Psicólogo. Eu estava me preparando para outro concurso,
agora de Psicólogo na Saúde, quando me chamaram para o TJRJ.
Entrevistador: E você fez esse concurso da Saúde?
Sra. P.: Na verdade, nunca abriu. Desde a época da faculdade até o TJ me
chamar, em 2005, nunca houve esse concurso, nem interno nem externo. E
nessa época o nível médio pagava bem, comparado ao cargo de psicólogo
do Município ou do Estado. E ainda aconteceu de eu poder trabalhar como
psicóloga, desviada de função. Eu trabalhei muito em ambulatórios clínicos,
trabalhei em CTI. E eu me sentia enxugando gelo (risos).

A Sra. P. explicita pela primeira vez, e já no início da entrevista, um


sentimento de impotência diante da máquina pública, daí o termo “enxugando gelo”.
Veremos como esse sentimento parece ter grande importância na conduta
profissional da entrevistada. Tal impotência, geradora de frustração, pode estar
também relacionada a determinada contraposição de modelos, que denominarei, ao
final da entrevista, de nostalgia da clínica.

Sra. P.: Porque o drama maior era a pessoa ficar esperando uma cirurgia
que não acontecia, a pessoa ficava dias esperando e não chegava ninguém
pra dar uma resposta. Era o que mais pesava. O meu trabalho era mais
humanizar as relações. Mas eu acho que trabalhar num hospital era mais
sofrido do que trabalhar na Justiça.
Entrevistador: Por que você diz isso?
Sra. P.: Pela questão da morte. No TJ há sofrimento intenso, mas as
pessoas estão vivas. No hospital, quando passei a trabalhar no hospital –
porque antes eu atuava mais em ambulatório – eu tive uma experiência
muito difícil de doença na família, estava ainda muito envolvida com isso.
Talvez isso tenha gerado um impacto maior. Nessa época em que eu
comecei a fazer concursos, fiz um pra Saúde de outro município do Rio,
eram duas vagas. Não entrei. Aí logo em seguida teve o concurso do TJ, o
salário era muito bom. Foi o primeiro concurso, mas não consegui passar,
estava com filhos pequenos, era muita matéria de Direito, tudo muito
diferente. Eu fazia um cursinho preparatório e queria questionar o professor.
Ele dizia: “não adianta questionar, vocês têm que decorar!” (risos). Eu até
58

tive uma boa pontuação, mas fiz para a capital e não deu. Mas no segundo
concurso eu fui chamada. Eu nunca tinha atuado na área de psicologia
jurídica. Aí a gente vai aprendendo com um, com outro, fala com a
assistente social, pega relatórios pra ler, vai fazendo. A grande questão pra
mim, que eu fico pra morrer, acontece desde que se criou essas ETICs6
Nosso trabalho demanda um tempo, um número de intervenções, e a gente
não tem tempo pra isso.
Entrevistador: Mas você não acha que a gente tem alguma liberdade para
requisitar esse tempo, caso ache necessário?
Sra. P.: Liberdade a gente tem. Mas a gente não consegue, porque está
aumentando muito a quantidade de processos que a gente recebe.
Segundo, porque todo mundo sabe que são poucos os profissionais, aí cria-
se a ETIC, eu acho um absurdo esses deslocamentos que a gente foi
obrigada a fazer. O que me mata mais é a tal da produtividade. E tem
muitos colegas que não questionam isso. Eu tenho até um exemplo de uma
pessoa que não é da psicologia, é do serviço social. Ela passou por várias
perdas, várias situações difíceis na família, e acabou pirando. Ela largou
todos os processos. Isso cria um problema pra gente: se a gente não
colocar essa pessoa à disposição do NUR, a gente não recebe outro
profissional pra substituí-la. Olha que situação: essa pessoa sempre
trabalhou muito bem, adorava o local de trabalho, teve várias perdas na
família e ainda vai perder a lotação?
Entrevistador: O que você acha disso?
Sra. P.:.Eu acho que é aquela coisa de produzir, produzir, e acaba
passando por cima de tanta coisa! Até nos atendimentos com as partes... eu
acho que isso diz respeito ao próprio sistema da Justiça, são tantas
audiências, as coisas vão passando, às vezes nem se lê o processo direito.

Considero que a entrevistada, neste momento, manifesta uma queixa


recorrente entre os psicólogos da Justiça, referente a um desconforto acerca do
ritmo e do volume processual do Judiciário, que, de acordo com tais queixas, levaria
a uma produtividade excessiva, vista como danosa, estressante e incompatível com
uma ideia previamente construída de qualidade no trabalho.

Sra. P.: Uma vez eu fiquei muito frustrada, logo no início. Eu peguei um
caso em que o cara pedia visitação ao filho e estava disputando a guarda.
Ele era completamente doido, se drogava. Ele e a ex-mulher tinham um
relacionamento horrível. O filho tinha dois anos. A avó da criança falava que
o ex-casal tinha um relacionamento patológico, ele era uma pessoa muito
problemática por vários motivos. Eu pensei até em acionar o Conselho
Tutelar pra abrigar essa criança quando o casal voltou a ficar junto.
Entrevistador: Mas do que você está reclamando? Das características do
caso ou do destino que foi dado?
Sra. P.: Ah, do destino que foi dado.
Entrevistador: E qual o destino que foi dado?
Sra. P.: O processo foi arquivado. Não houve uma determinação de
providências, nenhuma sugestão de acompanhamento, nada. E eu tive um

6 As Equipes Técnicas Interdisciplinares Cíveis (ETIC) foram criadas pela Corregedoria-Geral da


Justiça (CGJ) através do Provimento CGJ 80/2009, com o intuito de unir em equipes os
profissionais de psicologia e serviço social, que antes atuavam inseridos em varas de família
específicas. A partir de sua criação, os técnicos passaram a servir a várias varas de família, às
vezes – como no interior do Estado em cidades diferentes, o que os obrigou a frequentes
deslocamentos, que antes não aconteciam por estarem eles em lotações fixas. Tal mudança gerou,
no início, um grande mal estar entre os profissionais, que se queixavam da falta de apoio da CGJ
até para cumprir os deslocamentos.
59

trabalhão de fazer várias entrevistas, redigir o laudo e nenhuma menção foi


feita.

A entrevistada parece fazer menção à dimensão burocratizada e pouco


integrada do sistema de justiça, no qual poucas vezes nós, peritos, temos
conhecimento do destino dado aos casos que acompanhamos, salvo nas situações
em que solicitamos o retorno dos autos ao Serviço de Psicologia para posterior
intervenção. Ou seja, não somente as partes perdem a ideia da engrenagem
judiciária como um todo coerente – se é que o é de fato –, mas os técnicos também
não a têm! Esse fato produz uma série de consequências e é indicativo de um
funcionamento que remonta à ideia de uma linha de montagem, com diferentes
setores atuando de forma individualizada e estanque. Perde-se também a
perspectiva de um diálogo entre diferentes equipamentos públicos, impedidos de
interagir e de integrar ações. O diálogo entre as esferas executiva e judiciária resta
igualmente comprometido, quando não totalmente ausente, o que inviabiliza a
integralização das ações, duplica (ou triplica) procedimentos e desgasta as pessoas
envolvidas.

Entrevistador:. Sua experiência sempre foi em vara de família?


Sra. P.: Eu sempre trabalhei em família, infância e juventude.
Entrevistador: Você se sente insegura trabalhando na Justiça?
Sra. P.: Às vezes me sinto. Mas insegura como?
Entrevistador: Pois é, insegura como? (risos)
Sra. P.: Eu me sinto insegura diante de um parecer que eu tenho que dar.
Às vezes a coisa está muito clara pra gente, às vezes não.
Entrevistador: Acho que essa é uma grande questão no nosso trabalho, o
que é demandado pra gente...
Sra. P.: O que é esperado.
Entrevistador: Como você se sente em relação a isso?
Sra. P.: Olha, o juiz quer um parecer, quer que você decida. E isso foi se
constituindo dessa forma, é claro que também depende da equipe, a equipe
pode boicotar isso. Mas de um modo geral, os juízes estão habituados a
isso.

Veremos como o termo boicotar pode adquirir outras dimensões e ser


emblemático de uma contraposição de modelos, anteriormente referida.

Entrevistador: Você disse que se criou uma expectativa...


Sra. P.: Quero dizer que se correspondeu a essa expectativa, não se
questionou essa expectativa.

De fato, faz parte do “folclore” das equipes técnicas – folclore esse que é pura
realidade – aquele profissional que declara: “eu faço o que o juiz manda”, como se
não coubesse ao profissional delimitar, na intervenção, os limites e as possibilidades
de seu trabalho. Já tive acesso a casos em que o profissional chegava a aplicar
60

provas psicológicas específicas, tais como testes de personalidade e até de


inteligência (!), por solicitação direta do juiz a quem se reportava. Outros casos,
esses de fato comuns, dizem respeito à expectativa do cumprimento de ações
específicas, determinadas de antemão pelo magistrado, por ocasião da
determinação do estudo técnico. A Sra. P., ao mencionar situações em que
correspondemos a expectativas dos operadores jurídicos, parece fazer alusão a
esse fato.
Os resultados de tarefismos do tipo “eu faço o que o juiz manda”, algo que já
ouvi de alguns profissionais, considero no mínimo desastrosos, uma vez que se
torna bastante complicado firmar uma argumentação, por melhor fundamentada que
esteja, no sentido da impossibilidade – ética e/ou técnica – de determinada tarefa,
quando um colega, há pouco, realizou exatamente o que agora se argumenta
questionável ou mesmo impossível de realizar.

Sra. P.: Uma amiga minha trabalha na Corregedoria de uma Estatal,


analisando processos administrativos contra funcionários. Ela me contou
que ela e um colega iam fazer um inquérito a respeito de um funcionário
com quem o colega dela já havia trabalhado. Eles tinham que dar um
parecer mesmo, dizer se era caso de suspensão ou de demissão. E eles
não chegavam a uma conclusão. Sabe o que eles fizeram juntos? DOIS
RELATÓRIOS! Um justificava a suspensão, o outro defendia a demissão,
ambos perfeitos, muito bem fundamentados (risos). Mas o interessante é
que o colega da minha amiga deprimiu, quando sentiu que o destino do
colega estava na mão dele (risos).
Entrevistador: E você já se sentiu assim?
Sra. P.: Não. Eu sinto um peso, mas daí a me sentir responsável pelo
destino das pessoas... quem tem que julgar é o juiz, isso é problema dele.
Entrevistador: Eu me identifiquei totalmente com o cara que deprimiu
(risos).
Sra. P.: Sim, rola um peso, pesa sim.

O exemplo da amiga da entrevistada é emblemático da dimensão flutuante da


verdade, que adquire diferentes configurações de acordo com a linha argumentativa
utilizada. Ou seja, estamos no âmbito da versão, construída como uma
argumentação regida por interesses políticos bem específicos. Vinciane Despret
(2011) mostra como o artifício do segredo e da confidencialidade nas ciências
humanas serve a interesses demarcatórios na pesquisa. O que se tenta demarcar,
na realidade, é o espaço de expertise, aquilo que confere a assimetria entre a
realidade do sujeito entrevistado e o saber do pesquisador-detentor do
conhecimento – donde sua dimensão política. A autora aponta o fato de essa
demarcação ser bem mais complicada de realizar no espaço das ciências humanas
– ao contrário das ciências naturais, que não estariam tão “ameaçadas” pelo que a
61

autora denomina de “profano”, o saber do senso comum, constituído a partir da


experiência imediata. A biologia, por exemplo, com suas complexas construções
teórico-conceituais, estaria tão distante do conhecimento usual que não teria como
se deixar afetar ou ameaçar por ele. A assimetria em relação ao senso comum e o
lugar privilegiado da ciência estariam, dessa forma, assegurados, consolidando
supremacia do discurso científico no sentido de explicar a realidade.
No caso específico da Psicologia – ou dos relatórios a que aludiu a
entrevistada, que podemos inserir no mesmo raciocínio –, a expertise que poderia
demarcar um território de saber-poder encontra-se permanentemente contestada,
pelo fato de ser muito mais difícil a essa disciplina distanciar-se do saber comum ou
estabelecer uma verdade única. Encontramo-nos no âmbito da versão,
potencialmente refutável e permanentemente refutada por outras versões e por
diferentes dados de experiência. Considero ser esse um fator constante de angústia
do psicólogo no Judiciário, uma vez que sua especialidade recebe uma demanda
institucional que trata de içá-la à condição de verdade objetiva, passível de
configurar-se em prova pericial. A solidez dessa verdade objetiva parece, entretanto,
desmanchar no ar: outra versão, contrária à anterior, é sempre ameaçadoramente
possível. Deste modo, é o próprio espaço do expert que é posto à prova. Isso fica
claro nas situações, por exemplo, em que o laudo do psicólogo do Juízo é refutado
pelo relatório do assistente técnico7, de conclusões às vezes diametralmente
opostas. Nesses casos, cria-se um conflito de verdades extremamente incômodo,
que remete aos limites do trabalho técnico no sentido de precisamente fixar
verdades!
Como é possível consolidar o lugar do especialista se suas conclusões
podem ser questionadas e refutadas a todo instante? Penso que temos aqui um
grande desafio: o de construir uma prática que questione e analise os imperativos de
verdade dirigidos à prática psicológica.

Entrevistador: Uma vez, durante um evento, eu falei para uma juíza a


respeito do “laudo-sentença”, aquele documento que já decide e define o
destino das pessoas. Muita gente se sente pressionada neste sentido, de
produzir um laudo-sentença. Acho que ela, uma juíza muito sensível,
entendeu a questão como bem penosa para nós.
Sra. P.: embora eu ache que às vezes cabe a nós recomendar algumas
coisas, na área de família. Mas eu acho que é uma conquista isso, implantar

7 Dá-se o nome de assistente técnico ao perito contratado por uma das partes a fim de questionar o
trabalho do perito judicial. Esse técnico contratado pode eventualmente conduzir uma perícia sua,
independente, cujo laudo será apensado aos autos.
62

um trabalho de acordo com aquilo que nossa profissão pode de fato


oferecer.
Entrevistador: Eu queria voltar para um aspecto que você apontou, de que,
quando chegamos ao TJ, já havia uma expectativa criada em relação ao
nosso trabalho.
Sra. P.: A questão lá na minha comarca é que o trabalho começou com uma
pessoa que era técnica judiciária, com formação em psicologia e que
8
passou a trabalhar como psicóloga, desviada de função . Então ela propôs
ao juiz um trabalho, muito antes de haver um quadro específico de
psicólogos no TJRJ. Eu imagino que é quase como um favor que você pede
ao juiz: você numa situação dessas não vai mostrar limites, imagino que
você se preocupe em corresponder ao que é demandado, que você tente
satisfazer às expectativas daquele juiz. Acho que é um fator a ser levado em
consideração.
Entrevistador: Você está sugerindo que essa pessoa, com uma situação
funcional instável (desviada de função), ela não vai apresentar...
Sra. P.: Algo que desagrade! Claro que não.
Entrevistador: E o que você acha que os juízes esperam da gente?
Sra. P.: Os juízes esperam que a gente escreva o que tem que ser decidido.
Pode pegar as sentenças, você vai ver que a maioria delas cita os laudos.
Nosso laudo tem um peso muito grande na sentença que é proferida.

Houve até casos de juízes que, diante de situações polêmicas que


alcançaram as manchetes dos meios de comunicação, afirmaram em entrevistas
públicas fazer “o que minha equipe sugeriu”. O psicólogo então se vê em posição
bem incômoda, entre extremos: por um lado, a invisibilidade institucional; por outro,
o resultado de seu trabalho içado à condição de verdade absoluta, que determina os
rumos que a situação vai tomar e centraliza na intervenção e nos laudos
psicológicos a responsabilidade quase total pelas consequências da ação judicial.

Sra. P.: E você está sentindo esse peso lá na vara de família?


Entrevistador: Estou sentindo esse peso sim; aliás, sempre senti. Acho que
existe um espaço de negociação com o magistrado que pode inclusive ser
muito interessante, entre aquilo que é esperado e aquilo que de fato a gente
pode realizar. O juiz precisa chegar pra você e dizer o que ele precisa,
dentro da engrenagem judicial. E você vai dizer o que você pode, inclusive
do ponto de vista ético. O que eu acho é que algumas pessoas resolvem
isso muito facilmente, no sentido do “o juiz mandou, eu faço”.

Trata-se de um espaço de interação e de informação mútuas, infelizmente


nem sempre exercido, uma vez que a comunicação encontra-se frequentemente
comprometida pela hierarquia e pela pouca acessibilidade, em geral, à figura do
magistrado. Neste sentido, a afirmação “eu faço o que o juiz manda” pode também
ser uma defesa do profissional contra a dificuldade de acesso e de comunicação, no

8 Os chamados desvios de função, apesar de irregulares do ponto de vista administrativo, são uma
alternativa à falta de determinado profissional em um setor. No caso do TJRJ – e imagino que em
outros tribunais – esses desvios eram relativamente comuns antes da chegada dos profissionais de
Psicologia, após o primeiro concurso. A Sra. P. se refere ao desvio de função como uma situação
insegura e desconfortável, na qual o profissional pode ser subitamente destituído de suas atividades
e restituído às funções ou ao setor de origem.
63

âmbito institucional. Além disso, esse tarefismo remonta a uma postura de


submissão, internamente fomentada, na qual a questão hierárquica pode assumir
contornos dramáticos, como teremos a oportunidade de observar nas entrevistas
subsequentes. Não à toa, as ordens judiciais são redigidas na forma do imperativo
afirmativo: “intime-se”, “expeça-se”, “convoque-se”, o que confere à voz do juiz um
poder pretensamente absoluto, inquestionável.

Sra. P.: Pois é, a gente não pode deixar furo.


Entrevistador: Eu considero que o que é de fato exigido de nós é a
certeza. A dúvida, quando você a expõe, dá a impressão de deficiência
profissional. O que você acha? Sra. P.: Estou pensando na minha
dificuldade de escrever relatório, de fechar relatório. Acho que tem muito
disso que você falou. Essa expectativa tem a ver com a minha formação
clínica. Quando você está na clínica, você está sempre abrindo, sempre
desdobrando.
Entrevistador: Eu acredito que a gente precisa eventualmente ser mais
incisivo, até por não ser um trabalho clínico o que a gente faz no Judiciário.
É um trabalho de assegurar direitos, com muitas questões envolvidas, todas
bastante problematizáveis e problemáticas, por dizerem respeito a uma
tutela por parte do Estado sobre a vida das pessoas, a gente está no olho
do furacão. Eu também acho que existem laudos que não dizem
absolutamente nada, que não dão elemento nenhum para o magistrado.
Mas eu também acho que um fator muito penoso para nós é a cobrança de
certeza, e a certeza no sentido da previsibilidade. É a história que você
contou do teu irmão e do colega dele, que escreveram dois relatórios (e
duas conclusões) diferentes para a mesma situação. Você acha que a tua
dificuldade no sentido de “fechar relatório” pode ter relação com isso?
Sra. P.: Tem sim, mas não acho que seja fundamental não. Eu acho que a
minha questão é com o escrever. Eu digo que quando me aposentar não
vou escrever nem bilhete mais (risos).
Entrevistador: E você acha que isso é devido a quê? Seria uma dificuldade
sua?
Sra. P.: Sim, pessoal. Olha, é tanta coisa...
Entrevistador: Cobrança?
Sra. P.: Sim, cobrança por um laudo perfeito, sem buraco. Porque se for pra
fazer de qualquer jeito sai, né? Aí eu fico consertando, arrumando. E nesse
‘arrumar o conteúdo’ eu não consigo concatenar as ideias, (...). Agora, tem
outros fatores (...). por exemplo, muitas pessoas já fizeram o curso de
psicologia jurídica, já vêm pensando uma série de coisas, já chegaram
tendo estudado várias questões. Comigo foi o contrário: estudei pro
concurso e entrei com aquela prática que eu tinha (clínica), fui descobrindo
as coisas no dia a dia. Hoje pra mim fica mais claro entender as coisas e
trabalhar com a especificidade desse campo.
Entrevistador: Já que a gente está falando disso, me fala da tua formação.
Você estudou onde?
Sra. P.: Na Uerj. Desde a faculdade, me encantei pela psicanálise, eu
queria fazer uma formação psicanalítica. Já estava com esse projeto
quando veio aquele problema de saúde na família, de que te falei. Eu até
tentava trabalhar, mas não dava pra fazer mais nada. Quando as coisas
foram melhorando, eu não tinha mais grana pra pagar uma análise quatro
vezes por semana.
Entrevistador: Você ia fazer formação onde?
Sra. P.: Na Rio de Janeiro (SPRJ), na época a analista com quem eu me
tratava era de lá e eu gostava muito dela. Eu fiz cinco anos de análise com
ela, ainda na época da faculdade. Pretendia voltar depois, para fazer a
64

formação. Mas aí eu tive filhos e não tinha mais grana pra pagar quatro
vezes por semana.
Entrevistador: Eu acho que não suportaria fazer uma análise quatro vezes
por semana. Era possível de pagar?
Sra. P.: Ela dizia que devia ser quatro vezes e me fazia muito bem assim.
Na época eu podia pagar porque morava com meus pais. Mas com o tempo
foi diminuindo (risos). Depois que eu parei, eu nunca voltei pra fazer a
formação. Mas eu voltei pra análise depois, mas não mais quatro vezes.
Isso era coisa da época, naquela época se fazia quatro vezes, se
interpretava adoidado (risos). Mas formalmente eu nunca me especializei
em psicanálise. Quando eu entrei pro TJ, senti falta de algo que me
possibilitasse trabalhar mais objetivamente. Então procurei um curso de
terapia de família. Eu comecei, mas também não concluí esse curso. Não
consegui escrever a monografia de fim de curso, por isso que te digo que
meu problema não é só com o relatório. Tem uma coisa que eu gosto muito
de trabalhar no TJ é com adoção, eu me sinto cegonha (RISOS). Talvez por
ser o trabalho em que você mais perceba o quanto aquilo pode ser
importante na vida de alguém. Sempre trabalhei na Habilitação. Não que
não possa dar errado, isso acontece. Comigo só deu errado uma vez.
Entrevistador: Só uma?
Sra. P.: Mas lá não são tantos casos quantos são aqui na capital. Só temos
vinte habilitados no Cadastro.
Entrevistador: Só vinte? Entre solteiros e casados?
Sra. P.: É. Mais casados do que solteiros, agora tem aumentado muito.
Acho um trabalho tão interessante, encontrar uma família minimamente
estruturada pra receber uma criança.
Entrevistador: Você ia falar de um caso de adoção que não deu certo.
Sra. P.: Foi de uma pessoa que, por ocasião da Habilitação, queria uma
criança maior (adoção tardia). Encontrou duas meninas, irmãs. Oferecemos,
ela aceitou as duas. As meninas começaram a aprontar e ela não teve
paciência.
Entrevistador: Ela devolveu as crianças?
Sra. P.: Não, ainda estava na fase de aproximação, as crianças não
chegaram a ir morar com ela. Mas mesmo nessa etapa de aproximação, a
gente começou a reparar algumas coisas inadequadas, tipo ela ir ao abrigo
e se encantar com outra criança. Nesse meio tempo, alguém de outra
comarca indicou outra criança pra ela. Quando a gente soube, ela já estava
levando essa outra criança pra casa. Ela ficou com essa outra criança. Só
que depois veio a Carta Precatória da outra comarca, solicitando que a
gente fizesse avaliação (acompanhamento pós-adoção) dela. No início
estava tudo bem, mas aí apareceram algumas dificuldades. A gente
acompanhou, tentou fazer encaminhamentos. Mas aí chegou num ponto em
que ela devolveu essa criança. Me deu uma raiva, uma vontade de
esculhambar (risos).
Entrevistador: Mas você se sentiu mal no sentido de atribuir alguma coisa
a você em relação a esse desfecho?
Sra. P.: Não, acho que isso podia acontecer, foram tantas habilitações que
eu fiz. Eu fiquei com raiva dela (risos). Me livrei do problema da seguinte
forma: a culpa é dela! (risos).
Entrevistador: A equipe onde você está costuma interagir? Faz discussão
de caso?
Sra. P.: Não. Na realidade, a equipe manteve a estrutura separada,
dividindo as várias comarcas que estão sob a responsabilidade da nossa
ETIC. A gente só se encontra eventualmente, mas não consegue sentar
para discutir casos. Mas eu estou mais em contato com as duas colegas
que trabalham diretamente comigo. Acho que tive muita sorte, me dou muito
bem com elas, com quem posso dividir o peso do trabalho. Existe
solidariedade.
Entrevistador: Entre a Saúde e o Judiciário, o que é melhor? O que é mais
suportável? O que te moveu nessa mudança?
65

Sra. P.: No meu caso era desvio de função na Saúde, eu não era
oficialmente psicóloga. Volta e meia havia tentativas de tirar as pessoas
desviadas de função, tinha esse estresse. E numa dessas, teve uma
diretora horrorosa que conseguiu retirar todos os desviados de função. Aí
eu fui para outro setor, era um lugar bom. Mas eu fiquei tão irada, foi na
época do concurso do TJ. E tinha, claro, a vontade de me aposentar com
um salário melhor, né? Fora a segurança, diferente da realidade do
consultório.
Entrevistador: O que você achava que ia fazer no Judiciário?
Sra. P.: Mais ou menos o que a gente faz. Mas não tinha muita noção.
Alguém chegou a me dizer que, caso eu entrasse para o Judiciário, eu teria
que escrever relatórios. Mas eu não pensei que seria tão difícil. Parece que
você está sempre carregando o trabalho. Você sai de férias, deixa relatórios
pendentes. Se tem fim de semana, tem que escrever relatórios, isso é muito
penoso. Na Saúde, não tinha isso. Acabou o expediente, acabou mesmo.
Nosso cargo exige tanto conhecimento! São tantas as situações pra gente
dar conta. Você pega violência, interdição, a parte psiquiátrica.
Entrevistador: muito conhecimento que é exigido?
Sra. P.: Sim.
Entrevistador: Se na Saúde você tivesse um salário melhor e não fosse
desvio de função...
Sra. P.: É claro que eu teria ficado lá (risos).

4.1.1 A Sra. P. e a nostalgia da clínica

Durante toda a entrevista, tive a impressão de ser a clínica a área de atuação


da Sra. P. por excelência. Vários fatores me despertaram no sentido dessa hipótese,
que discuto aqui com algum destaque pela importância de que se reveste. A Sra. P.
confere bastante peso à própria formação clínica, iniciada ainda na graduação.
Formada, atuou em consultório particular mesmo no período em que se dedicou a
uma função pública burocrática, na qual, desviada da atribuição original, passou a
exercer a psicologia em sua vertente clínica. Além disso, uma observação da
entrevistada me chamou particularmente a atenção: o momento em que a Sra. P.,
falando a respeito de sua dificuldade de redigir relatórios – e a título de estabelecer
comparação entre o trabalho do psicólogo no Judiciário e na clínica – afirma que na
clínica “você está sempre abrindo, desdobrando”, contrapondo esse dado à
necessidade de firmar uma convicção do caso, portanto dar um fechamento a ele,
através do relatório a ser endereçado a juiz. Ou seja, a entrevistada pareceu
contrapor um imperativo de fechamento, que seria inerente à realidade judiciária, a
uma pretensa liberdade de “sempre abrir, sempre desdobrar”, própria da clínica.
Esses dados sugeriram certa indisposição da Sra. P. com os imperativos do
trabalho institucional, e podem nos fornecer elementos para compreender melhor o
seu desconforto com essa realidade. Observamos que incômodos dessa natureza,
66

bem como a menção a supostas liberdades do consultório particular, perdidas a


partir da entrada na vida institucional, são reclamações recorrentes entre os
psicólogos do Judiciário. Mas por que considero esse um potente analisador?
Resolvi chamar esse movimento de nostalgia da clínica, cuja realidade é
frequentemente considerada “superior”, “mais gratificante” ou “mais adequada a uma
investigação psicológica profunda”, entre outros argumentos tão ou mais lisonjeiros.
A Psicologia praticada no Judiciário seria então a “prima pobre”, que jamais se
aproximaria de sua versão nobre, a Clínica – entendida como consultório particular,
é importante salientar –, o que por si só já se configura problemático. Pois bem: a
nobre dama é frequentemente lembrada e contraposta às ‘agruras’ da atuação
institucional, quase sempre apontada como produtora de limites, frustrações e
impossibilidades.
O campo descrito acima pode ser melhor entendido a partir das ideias de
Despret (2011) a respeito da questão do segredo na psicoterapia. Segundo a
autora, a prática psicoterápica opera uma modificação da experiência, uma vez que
o cliente, ao relatar suas questões e sofrimentos, é convidado a dar a essa realidade
uma dimensão de interioridade. Para Despret, o convite ao segredo estabelece um
contexto de intimidade no qual a experiência humana passa a ser traduzida em sua
vertente psíquica, interna, subjetiva. A autora conclui então que, num certo sentido,
o segredo e a intimidade são importantes dispositivos no sentido de estabelecer a
vertente subjetiva. Em outras palavras, o segredo e a intimidade fabricam a
interioridade psíquica: “as pessoas vão orientar sua experiência do mal-estar como
uma experiência psíquica, de problemas mentais, de efeitos de culpabilidade, de
desejo etc.” (DESPRET, 2011, p. 7). Despret cita o etnopsiquiatra Tobie Nathan,
para quem “a teoria dos terapeutas constrói a patologia de que eles cuidam”. (i 8). O
segredo confere então consistência à interioridade, estabelecendo-a como a
verdade do indivíduo.
Continuando sua reflexão sobre o segredo, Despret o situa como um
poderoso dispositivo, uma técnica particular própria ao trabalho terapêutico e
essencial à condução da cura. O segredo cria os sujeitos da interioridade, incitando-
os a localizar seu sofrimento no âmbito da interioridade. O âmbito privado se
solidifica como o lugar da emoção e do afeto, em contraposição à esfera pública,
historicamente construída “como o espaço desafetado da racionalidade” (idem, p.
10).
67

Os “efeitos de verdade” produzidos pelas teorias constituem-se, segundo


Despret, como um poderoso campo político de relações de poder, voltados para a
criação da interioridade psíquica e de práticas de intimidade. O saber técnico surge
como decorrência da construção dessas práticas. Voltando à reflexão sobre o
segredo, Despret defende a ideia de que ele, ao mesmo tempo em que institui a
dimensão da subjetividade como interioridade, dá ensejo à criação de práticas de
cuidados, nas quais o saber técnico vai adquirir sua legitimidade. A autora defende
então a ideia de que o segredo, para além de sua utilidade na constituição da
interioridade, serve para proteger o terapeuta. O segredo torna-se um poderoso
aliado do psicoterapeuta no sentido de firmá-lo como perito, detentor de expertise
teórica e técnica que precisamente ele, o segredo, o impede de revelar. Além de
firmar o espaço de intimidade no setting terapêutico e contribuir para consolidar a
ideia de subjetividade como interioridade, o segredo igualmente legitima a
especificidade do trabalho clínico e da figura do especialista.
Impedido de expor a intimidade que a duras penas lhe foi confiada, o
psicoterapeuta também constrói seu espaço de importância e legitimidade social: “e
isto outro aspecto do saber fundado sobre a prática do íntimo e do segredo: é um
saber privado, de qualquer modo, que protege, ele também, da obrigação de prestar
contas às outras pessoas interessadas pelo caso”. (idem, p. 15).
Chegamos então ao ponto que interessa da reveladora análise de Despret: no
caso da prática psicológica no Judiciário, os profissionais podem estar reagindo mal
a esse espaço de intimidade que lhes foi subitamente tomado a partir da entrada na
realidade institucional. Cria-se então a “nostalgia da clínica”, em que alguns colegas
se fixam, baseados no “eu era feliz e não sabia”, envolvidos que estavam em uma
prática “que só abre, só desdobra” e na qual não necessitavam remeter-se a mais
nada nem ninguém. Os imperativos institucionais acabam por confrontar o
profissional com sua prática, questionada permanentemente – às vezes de forma
agressiva e nada bem intencionada, como quando somos interpelados por
advogados furiosos, dispostos a destruir nosso trabalho pelo fato de terem sido
contrariados os interesses de seus clientes.
Acredito que a nostalgia da clínica pode estar na raiz de um desconforto com
a realidade do trabalho psicológico no Judiciário, forjando, em função desse
desconforto, sintomas que vão “boicotar” – não à toa, o termo foi utilizado pela Sra.
P. em outro trecho de sua entrevista – as demandas institucionais, na forma, por
68

exemplo, da não observância dos prazos processuais. Ou, quem sabe, na


dificuldade de concluir os processos e fechar os relatórios nos limites de tempo
preconizados pelo Juízo.
Acredito que a hipótese acima delineada valha como exercício e como
analisador das possibilidades de reação aos imperativos institucionais, que podem
criar desconfortos muito mais graves do que o puro e simples “boicote” a regras e
prazos. Refiro-me à incidência de sintomas físicos e emocionais de várias ordens,
que têm causado grande número de afastamentos de profissionais, psicólogos ou
não, do trabalho.
A hipótese da nostalgia da clínica não se pretende exclusiva; sequer se
configura num modelo explicativo ou exaustivo da situação enfocada. Tampouco
interpretativa, a reflexão diz mais de um determinado modelo de psicologia e de
prática psicológica – a clínica –, voltada para um espaço específico de atuação – o
consultório particular –, que pressupõe uma clientela igualmente delineada e
diferenciada, as classes alta e média. Podemos considerar que a inserção da prática
psi nos diferentes contextos institucionais – o hospitalar, o jurídico – vem aos poucos
se consolidando e se contrapondo à versão “nobre” do fazer psicológico, que ainda
se apresenta, para muitos, como o modelo de atuação por excelência, higienizado
das impurezas decorrentes das exigências de cunho institucional – e, talvez,
higienizado de outros segmentos sociais tornados clientela. A nostalgia se daria
quando evocamos esse modelo clínico, puro e autoexplicativo, que não necessita
relativizar-se a considerações de terceiros. A nostalgia da clínica – ou seria a
nostalgia do consultório particular? – pode estar relacionada à ideia de impureza
atribuída às demandas institucionais, vistas como impeditivas, frustrantes e
produtoras de distorção nos resultados de um trabalho que, em outro contexto, se
consideraria legítimo e livre de tensões e julgamentos externos.

4.2 A Sra. O. e a prática aterrorizada

Entrevistador: Como eu já te falei, nossa conversa é parte da minha


pesquisa de doutorado, que pretende enfocar os processos de trabalho dos
psicólogos do TJRJ, com seus impasses e problemas. Quero falar sobre
nosso mal-estar nessa instituição. Então, minha primeira pergunta é: qual é
o teu mal-estar no Judiciário?

Decidi iniciar cada encontro de forma diferenciada, seguindo a especificidade


de cada situação de entrevista e optando por não criar padrões preestabelecidos –
69

roteiros – na abordagem aos entrevistados. A ideia foi estabelecer uma interação


única e singular com cada um de meus interlocutores, de forma a facilitar uma
conduta igualmente singular por parte dos entrevistados.
Alistair Thomson (1998) lembra que a História Oral se propõe a ser mais do
que uma metodologia de pesquisa, mas um registro da memória que não pressupõe
um modelo único, “científico”, de apreensão. Neste sentido, não existe uma forma
correta de entrevistar, o que vai variar de acordo com a pessoa que estiver sendo
entrevistada e, principalmente, com a interação que se estabelecer com o
entrevistador. Essas duas figuras – entrevistador e entrevistado – não ocupam
lugares e funções distintos no processo; o relato será o resultado dessa interação,
que, portanto, conterá elementos de ambos. A entrevista configura-se, assim, como
o resultado de uma situação de encontro.
Neste caso, me surpreendeu a resposta tão direta da entrevistada à pergunta,
fazendo menção a um tema que julguei demorasse a aparecer em seu relato.

Sra. O.: Bom, o meu mal-estar é atender abuso sexual. O meu mal-estar
específico é esse. É claro que há outros, como quando a gente percebe que
o juiz quer que a gente dê respostas prontas, como nas varas de família: “a
criança deve ficar com o pai ou com a mãe?” Na minha forma de ver, a
gente tem que dar um apanhado da situação, da dinâmica da família, mas a
decisão caberia ao juiz. Então às vezes é incômodo quando a gente
percebe que o magistrado quer uma resposta pronta.
Entrevistador: No que esse pedido de “resposta pronta” te incomoda?
Sra. O.: É incômodo porque eu acho que a posição do psicólogo não é de
decisão, que é função do magistrado, na minha opinião. A gente não
aprendeu a fazer isso na faculdade. É claro que eu já fiz relatórios com
sugestões em relação à guarda, por exemplo. Mas quando eu faço isso é
porque eu tenho uma convicção sobre o que estou falando, mas não estou
decidindo nem quero decidir nada. A gente sabe que os juízes, na maior
parte das vezes, seguem o que a gente coloca, porque eles não estão a par
da situação. E quando é uma situação em que você percebe que a criança
pode ficar bem com um ou com outro, eu acho que se deve colocar o que se
percebeu sobre a criança naqueles dois contextos, paterno e materno. Mas
a decisão caberia ao magistrado, acho que o mal-estar é esse, tomar uma
decisão, e a gente não está aqui pra isso, a gente está aqui pra assessorar
o magistrado, mas do ponto de vista da dinâmica familiar, da questão
psicológica que envolve aquelas famílias.

A entrevistada se refere à compreensão-padrão acerca da natureza do


trabalho do psicólogo no Judiciário, que seria a de prestar uma assessoria ao
trabalho de julgar. Considero que essa ideia, de resto bastante tradicional, remete a
uma postura convencional e acrítica do trabalho institucional, uma vez que
desconsidera ou minimiza toda uma dimensão política envolvida no ato de julgar.
70

Em um debate envolvendo J. Laplanche e R. Badinter a respeito da pena de


morte na França, Foucault (2012)9 lembra que a justiça criminal se baseia em julgar
o criminoso mais do que o crime. Mais do que puramente aplicar a lei, a justiça se
centra na psicologia do acusado, no sentido da individualização da pena. Este
argumento, uma das teses centrais de obras como Vigiar e punir, se ocupa de
desvendar a genealogia da ideia de criminalidade e de criminoso. Ao processo de
individualizar o crime e, consequentemente, criar a figura do criminoso, foi essencial
a entrada de psiquiatras e psicólogos no espaço judiciário, donde a ideia de
“assessoria” que muitas vezes é repetida como um mantra por nós psicólogos.
Laplanche lembra que o ato de julgar confere ao juiz um grande poder; Foucault
retruca com a ideia de punição inserida em uma tecnologia do comportamento
humano. Como decorrência, a criminalidade torna-se assunto pouco jurídico e mais
propriamente psicológico: “decorre daí um encarceramento de função mista:
terapêutica e preservação social” (FOUCAULT, 2012, p. 82). O juiz necessitaria
assim do psiquiatra (e do psicólogo) “para se garantir”. Badinter considera mesmo
angustiante o ato de julgar, no que Foucault finaliza considerando ser perigoso
deixar os juízes julgar sozinhos, sem se perguntar em nome de quê e de quem eles
julgam: “Que eles se inquietem como nós nos inquietamos por encontrarmos tão
poucos inquietos!” (FOUCAULT, 2012, p. 90). Imbuído desse espírito, resolvi insistir
com a entrevistada no tema incômodo, de forma a “desautomatizar” a discussão e
buscar o caminho da inquietude...

Entrevistador: Mas eu quero insistir na minha pergunta: no que essa


decisão incomoda? Veja bem, não quero te fazer pergunta teórica, eu
queria uma resposta mais pessoal, sua. Ficar nesse lugar de decidir, isso
você já me disse. Mas qual o teu incômodo nisso? Por exemplo, quando o
juiz diz “eu é que decido, mas decido baseado no que a minha psicóloga
falou”. No que isso te incomoda?
Sra. O.: (...) é, me incomoda bastante, mas no que isso me incomoda... é
claro que eles se baseiam no que a gente fala, mas colocar essa decisão
nas nossas mãos, não sei, não é função nossa. Nossa função é de
assessoramento, a decisão é dele, porque senão, qual seria o trabalho
dele? Mas no que me incomoda exatamente (...), engraçado, a gente sabe
que incomoda, mas não sabe por quê (...).
Entrevistador: E se eu te sugerir...
Sra. O.: Isso, sugira! (risos).
Entrevistador: ...Que essa decisão incomoda por remeter a uma
responsabilidade...
Sra. O.: (interrompendo) Sim, é uma responsabilidade.
Entrevistador: Que talvez seja excessiva?

9 FOUCAULT, M. “A angústia de julgar”. In:_______. Segurança, penalidade, prisão. Rio de Janeiro:


Forense Universitária, 2012. (Ditos & Escritos: 8).
71

Sra. O.: Sem dúvida, acho que sim. Responsabilidade minha como
psicóloga, de saber que sou eu que vou decidir aquela situação pesa sim,
pesa muito. Mas é como te falei,quando eu formo uma convicção (...) já fiz
relatórios em que estava claro que era muito mais adequado para a criança
ficar com um do que com outro. E eu coloquei minha sugestão claramente,
não hesitei não.
Entrevistador: e por que nessas situações não houve incômodo?
Sra. O.: Olha, realmente nessas situações eu nem pensei em incômodo, eu
simplesmente coloquei, sem hesitar. Se eu hesitasse, me sentiria culpada
por não emitir minha opinião técnica sobre o que eu considerava melhor
para a criança, e talvez eu a colocasse numa situação de risco ou algo
parecido, se o juiz tivesse que decidir na hora pelo pai ou pela mãe. Mas
acho que nós psicólogos é que temos que fazer, não é todo mundo que
pode fazer isso não. Mas além da teoria, da técnica, sempre vai uma
questão nossa. Na nossa sugestão sempre vai algo nosso. Mas realmente é
um risco, é uma responsabilidade, eu posso não estar colocando o que é
melhor para a criança.
Entrevistador: pelo que eu entendi, em algumas situações específicas,
parece não ser tão incômodo pra você...
Sra. O.: Sim.
Entrevistador: Mas em outras é. Você poderia fazer uma diferença entre
uma e outra situação?
Sra. O.: Bom, eu tô lembrando muito de casos de família. Numa situação
em que os dois pais eram adequados eu não coloquei com quem a criança
deveria ficar, eu falei da situação da criança com os dois genitores.
Entrevistador: Mas o juiz se irritou com isso?
Sra. O.: Não, não, nunca se irritou, fiquei quase cinco anos em família,
infância e juventude e nunca tive problema. Numa situação de guarda
internacional, a mãe foi pra Itália e depois de bastante tempo queria levar os
dois filhos que tinham ficado aqui. Os dois filhos, de pais diferentes, tinham
ficado um com os avós, outro com o pai. Eu me lembro que o meu juiz
estava inclinado, porque ela tinha um advogado particular, a dar a guarda
pra essa mãe pra ela levar as duas crianças, aliás, uma criança e um
adolescente. Eu me lembro que conversei muito com meu juiz a respeito. Eu
fazia supervisão na época com (cita o nome do profissional). Na minha
sugestão, eu coloquei que as crianças ficassem no Brasil, porque a ida ia
mudar toda a vida delas, além dessa mãe não ter segurança financeira na
Itália, ela me pareceu viver uma situação muito instável por lá. O pai queria
que o filho ficasse com ele, porque já estava há muitos anos. E a filha
pequena estava com a avó materna. Essa avó falava que era para ela levar,
se era isso o que ela queria. Mas na verdade eu sugeri um período pros
dois filhos ficarem na Itália nas férias, em dezembro e janeiro. Mas não era
isso o que ela (a mãe) queria, de jeito nenhum, e o meu juiz estava inclinado
a dar a guarda de vez à mãe. E eu coloquei que não. Ele (o juiz) liberou a
menina pequenininha, mas o adolescente ele manteve a guarda com o pai.
A menina não tinha um pai presente, mas o rapaz tinha. Eu lembro que
nesse processo eu fiquei bastante preocupada com a presença do
advogado, não com a minha posição, mas com a interferência desse
advogado. O juiz seguiu minha posição em um caso, mas no outro ele não
seguiu não. A interferência do advogado é que me preocupou.
Entrevistador: E no que esse advogado foi incômodo?
Sra. O.: Ele manipulava principalmente o adolescente, mandando o
adolescente escrever cartas que ele juntava ao processo, cartas dizendo
que ele não queria mais falar comigo. Cartas em que o adolescente dizia
que queria ir com a mãe. Aqui ele tinha regras rígidas com o pai, lá a mãe
vislumbrava uma liberdade que ele não tinha aqui. Então o advogado fez
72

10
essa manipulação. E depois, no final, ele pediu pro juiz impugnar o meu
laudo, aquelas coisas de sempre. Mas o juiz foi contra, disse que confiava
plenamente na equipe. Esse manipulação me fez sofrer muito, o
adolescente conversava comigo de uma maneira e depois ele estava de
outra maneira. Isso me fez sofrer, mas mantive a posição (risos).
Entrevistador: e no final das contas aconteceu...
Sra. O.: Do juiz liberar a menininha pra guarda materna e a mãe levar pra
Itália. Mas o rapaz não, o juiz liberou pra ele passar todas as férias na Itália
com a mãe, mas a guarda continuou com o pai. Foi essa a decisão.
Entrevistador: Você estava convicta?
Sra. O.: Eu estava convicta.
Entrevistador: E se o juiz desse cabimento ao pedido do advogado no
sentido de impugnar o teu laudo? Como você acha que se sentiria?
Sra. O.: Acho que todos nós ficamos desconfortáveis, eu nunca passei por
isso. Acho que acontece um processo no CRP.
Entrevistador: Só pela impugnação do laudo, não necessariamente o
processo vai parar no CRP.
Sra. O.: Sim, a impugnação é decisão do juiz. O meu juiz foi contra. Como é
que eu me sentiria? (...) deve ser muito desagradável, porque você se
considera uma pessoa em quem o seu juiz confia. Mas sei que isso deve
acontecer comigo um dia, porque acontece com tanta gente...acho que
seria muito ruim, se fosse um processo (no CRP) aí seria muito pior.
Entrevistador: Mas como você se sentiria?
Sra. O.: Como eu me sentiria? (...) Ai, eu me sentiria mal, muito mal (risos).
Porque eu tenho uma coisa de tentar ser muito responsável. Eu fiz
supervisão nesse caso. E eu estando convicta de uma coisa e o meu juiz
ficar a favor do advogado e consentir com o pedido de impugnação do meu
laudo, eu ia me sentir (...) incompetente talvez não, porque eu continuaria
com aquela certeza. Eu ficaria (...) ai, não sei.
Entrevistador: você falou em incompetência...
Sra. O.: É, talvez seja. Mas incompetência na visão dele (o advogado), e ele
não é a pessoa mais adequada para me avaliar. Eu confiaria mais em todo
o trabalho de supervisão que eu tinha feito. Eu me sentiria mal com o juiz,
caso ele aceitasse o pedido de impugnação do laudo, porque eu iria
entender isso como perda de confiança no meu trabalho.
Entrevistador: Quem você entende como o destinatário do seu trabalho?
Sra. O.: O destinatário é o juiz.
Entrevistador: E isso cria algum incômodo pra você?
Sra. O.: Em alguns processos pode ser incômodo, em outros eu me sinto
muito à vontade pra dar uma opinião. Mas incômodo também se refere ao
fato da gente abrir tudo o que a gente levanta dos atendimentos para uma
outra pessoa, o juiz. E olha que eu deixo de colocar muita coisa no relatório!
Coisas que eu considero que não vão fazer diferença na situação específica
que originou o processo. Mas a gente acaba contrariando aspectos de
nossa ética, não sei, coisas que no consultório a gente não faria. E aí a
gente expõe a vida das pessoas num pedaço de papel. A gente expõe a
vida das pessoas pra uma outra decidir sobre a vida delas. Mas é aquela
coisa, se elas (as partes) não conseguiram decidir, vai ter que vir um
terceiro e decidir por elas, não tem jeito. Aí é como se a gente dissesse:
“gente, vamos ter que expor a vida de vocês, já que vocês não conseguiram
decidir a vida de vocês”. Mas na vara de infância é um pouco diferente, ali é
geralmente denúncia de maus tratos, negligência. Aí é diferente, você vê
crianças em situação de risco, sendo maltratadas, você não tem escolha,
você vai ter que proteger de qualquer maneira. Eu já peguei criança com
marca de queimadura, com marca de colher quente, esse processo corria
na Criminal, o pai foi indiciado por crime de tortura. E ele ficou preso,

10 A entrevistada se refere à solicitação que o advogado de uma das partes pode fazer ao juiz, no
sentido de impugnar o laudo psicológico, ou seja, anular, tornar sem efeito as suas conclusões.
Essa solicitação pode ou não ser acatada pelo magistrado.
73

torturou vai ter que ficar preso mesmo. Essas situações talvez não me criem
tanto incômodo. É horrível atender e ver o sofrimento da criança, mas é isso
o que temos que fazer.
Entrevistador: Me deixa retomar uma fala sua. Você me disse que o
judiciário tem que intervir quando as pessoas não conseguem decidir. Você
acha que o Judiciário também tem condições de acolher as pessoas quando
elas podem decidir?
Sra. O.: Acho que isso tem acontecido de pouco tempo pra cá com as
mediações, essa coisa de fomentar a autonomia. O que eu sei de mediação
é a ideia de dar voz às partes, às vezes até antes de constituir um processo
judicial. A ideia é que as duas partes sejam contempladas. Sei que a
mediação está crescendo no Judiciário.
Entrevistador: Mas no teu trabalho, você acha que há um incentivo à
autonomia?
Sra. O.: No geral, não acho que o judiciário fomente autonomia não...
Entrevistador: Então o Judiciário fomenta o quê?
Sra. O.: A história nem é de fomentar autonomia, porque a gente não existia
aqui até há bem pouco tempo. O juiz decidia com base em nem sei o quê.
Imagina ter que decidir uma guarda praticamente sem elementos, era só
uma petição em que o pai falava que a mãe batia na criança, a mãe devia
falar o mesmo do pai e aí ficava difícil de saber quem falava a verdade
(risos). Com a nossa inserção aqui, eu nem sei se querem que a gente
fomente autonomia. O que eles (os juízes) querem é que a gente responda:
“vai ficar com o pai ou com a mãe, pra gente acabar logo com isso?” E aí
não se leva em questão nenhuma autonomia, nem o movimento das partes
de se questionarem.
Entrevistador: E você disse que “ficava difícil saber quem falava a
verdade”. Será esse o nosso papel?
Sra. O.: Não, mas acho que o juiz devia pensar assim, ver quem está
mentindo menos. Mas o papel da gente (...) a verdade (...) essa palavra é
forte pra caramba. Eu não sinto que eu capte a verdade de quase nada, ou
de nada mesmo.
Entrevistador: Como você se sente em relação a isso?
Sra. O.: Ah, é ruim! Mesmo eu tendo te falado que às vezes eu sinto
segurança em sugerir determinada guarda, não é a verdade que está em
jogo, a gente não lida com a verdade. A verdade muda, uma hora é uma
situação, outra hora é outra situação. Talvez seja por isso que cause tanto
incômodo na gente, porque não trabalhamos com verdade e mentira.
Trabalhamos sempre com o improvável, com o que pode acontecer a
qualquer momento. A gente trabalha com o incerto, e acho que isso traz
muita angústia pra gente. Muita, sempre.
Entrevistador: E por quê?
Sra. O.: Ah, sei lá, a gente se pergunta: “será que fiz certo, será que fiz
besteira?” “será que a criança está bem, será que ela está em risco?” Às
vezes a gente se pega pensando em processos, se perguntando como deve
estar a criança. Agora, na CPMA (Central de Penas e Medidas Alternativas)
já aconteceu de eu colocar o “sem contraindicação ao encaminhamento
11
para instituição” , e certa vez aconteceu, eu tinha entrevistado essa
pessoa, não lembro o crime que tinha cometido, acho que com arma, que é
o que mais tem. Esse cara foi para a instituição e depois de um ano
estuprou uma moça lá.
Entrevistador: E você?
Sra. O.: Olha, foi ruim. Os próprios funcionários dessa instituição falaram
“poxa, isso pode prejudicar convênios futuros, ninguém mais vai querer
trabalhar com marginais”, é assim que eles falam. É ruim porque fui eu que

11 A entrevistada utiliza o termo instituição no sentido de estabelecimento; trata-se da empresa


aonde o apenado é encaminhado no sentido de sua inserção no mercado de trabalho, por ocasião
da progressão de regime. As equipes técnicas das CPMAs realizam e acompanham esses
encaminhamentos
74

coloquei que o cara podia ir para a instituição, né? Mas, ao mesmo tempo,
na Central de Penas você não faz estudo (avaliação), não tem como fazer
porque a demanda é muito grande. E eu fiquei mal. Não tem como não ficar,
foi uma coisa violentíssima que aconteceu. mas eu acho que a gente está
sujeito a isso, qualquer um de nós pode passar por isso. Não tem como a
gente traçar um perfil de que aquela pessoa que a gente está
encaminhando pode vir a estuprar alguém, ou a roubar, caso não conste
furto no histórico funcional dele. Já aconteceram furtos em instituições.
Graças a Deus, isso acontece muito pouco. Esse foi o mais grave que já
aconteceu.
Entrevistador: Você se sentiu...
Sra. O.: Mal, muito mal, um pouco responsável. Mas vou ser franca com
você: não me senti totalmente responsável porque tenho consciência de
isso pode vir a acontecer. Mas eu me senti responsável: se abrir o processo,
tá lá a minha letra.
Entrevistador: Se você me diz que se sentiu um pouco responsável, eu
posso dizer que pelo menos em parte você achou...
Sra. O.: Que eu podia ter evitado! Sim, eu achei.
Entrevistador: Você também me disse que nesses casos só há um
encaminhamento institucional, porque vocês não têm tempo de fazer um
Estudo. Você acha que se tivesse feito o Estudo...
Sra. O.: Talvez, (...) não, não, eu não poderia ter previsto isso não.
Entrevistador: Você acha que o Judiciário de alguma forma nos ‘empurra’
para nos sentirmos responsáveis por essas coisas?
Sra. O.: Acho que sim. Acho que sim.
Entrevistador: Estou sugerindo essas coisas com base naquilo que você
me diz. Será que existe um Estudo Psicológico que consiga ‘detectar um
estuprador’?? Que consiga antever uma ocorrência de estupro como essa
que houve? Será que existe um ‘psiquismo estuprador’ que possa ser
previamente apontado? Agora, você acha que o juiz tem esse tipo de
expectativa?
Sra. O.: Ah, tem sim! O juiz nem me chamou, não me disse nada. Mas se
ele tivesse me dito algo eu ia me sentir muito mal. Já pensou se ele me
chama e me diz: “você escreveu na ficha do cara ‘sem contraindicação’.
Olha o que aconteceu!” Se o juiz tivesse feito isso, aí eu ia desabar. Já
pensou, o meu juiz dizendo “você foi a responsável!” ? Eu me sentiria,
nossa, muito mal!
Entrevistador: E você se sentiria mal por achar que você tinha a obrigação
de...
Sra. O.: (interrompendo) De fazer aquilo que ele estava apontando. Mas ele
não me responsabilizou pelo que aconteceu, pelo menos não falou comigo.
Nem chamou a equipe. As assistentes sociais também participam desse
processo, mas elas não se posicionam no sentido do encaminhamento.
Somos nós que decidimos por encaminhar a pessoa e passamos para elas
só depois que a gente sugere o encaminhamento institucional.
Entrevistador: Então você me diz que existe uma diferença não somente
em relação à natureza do trabalho, mas também quanto às expectativas que
são criadas tanto para o trabalho do psicólogo quanto do assistente social.
Sra. O.: Sei que em outras CPMAs se trabalha diferente, onde as
assistentes sociais fazem todo o processo sem passar pelo psicólogo. Tem
CPMAs em que os processos são divididos entre os membros das equipes,
e quem pega o processo faz tudo do começo ao fim, não interessa se é
assistente social ou psicólogo. Mas na nossa Central a gente trabalha de
forma integrada.
Entrevistador: Mas na sua Central quem diz que o apenado pode ser
encaminhado para a instituição é o psicólogo...
Sra. O.: Sim, somos nós. Mas trabalhamos juntos, ao contrário de outras
centrais onde os processos são atendidos somente por psicólogo ou
somente por assistente social. Os processos são distribuídos aleatoriamente
entre os membros da equipe.
75

Entrevistador: o que você acha disso?


Sra. O.: Eu acho que funciona melhor sendo integrado, quando os
processos são atendidos pelos dois profissionais. As assistentes sociais têm
mais condição de conhecer as instituições e qual é o perfil melhor para
determinado local, baseado no que a gente (psicólogo) falou.
Entrevistador: E a gente teria mais condição de quê?
Sra. O.: (rindo) A gente tem mais condição de, de (gagueja, rindo, como se
entendesse a provocação contida na pergunta), de fazer certas indicações
baseados no perfil. O que seria mais adequado para cada caso, se seria
necessário ter um tratamento antes de encaminhar para a instituição.
Espera-se da gente que a gente tenha condição de fazer isso!
Entrevistador: Será que você está me dizendo que a gente tem a
capacidade de avaliar o futuro?
Sra. O.: O futuro eu acho que a gente não tem. (risos)
Entrevistador: Você acha que eu peguei pesado? (mais risos). Mas se
você faz uma diferença aí, você está então sugerindo que a gente teria uma
habilidade que a assistente social não tem.
Sra. O.: É.
Entrevistador: E isso é complicado, né?
Sra. O.: Pois é, é uma habilidade que a gente acha que tem.
Entrevistador: Não é complicado dizer isso?
Sra. O.: Sim, é. Mas a gente acha que tem. E olha que elas (as assistentes
sociais) me falam que eu nem sou a pior das psicólogas no sentido de me
achar! (gargalhadas). Elas falam pra mim isso: “eu nunca trabalhei com uma
psicóloga como você, que não acha que é dona da verdade”. Pelo contrário.
Quem me dera que elas também dividissem as coisas com a gente. Mas eu
me dou muito bem com as assistentes com quem eu trabalho. Mas eu noto
que elas se esquivam dessa posição sim. E sinceramente, eu acho que se
eu pudesse eu também me esquivaria. Eu acho que é muito mais fácil ser
a.s. do que ser psi. Nossa, elas vão me matar se lerem isso! Mas eu acho.
Os juízes esperam mais da gente do que delas, a gente acaba se sentindo
mais forçado a fazer sugestões que elas não se acham na obrigação de
fazer. Porque quando é situação de litígio, o processo pode até ir pra elas,
12
mas vai necessariamente pra gente . Quando o processo vai só pra elas,
quase sempre é uma situação que já existe de fato, que está ok e que elas
vão só dar o aval, vão fazer a visita domiciliar pra ver se a casa tem
condições adequadas. Eu estou falando não de todas as assistentes
sociais, porque eu conheço umas que gostam de encarar, de ter a verdade
pra elas. Mas não é o geral das assistentes sociais.
Entrevistador: Você está me dizendo que existe uma cobrança de produzir
verdade maior dirigida aos psis?
Sra. O.: Sim. Pelo menos nas varas onde eu trabalhei, os juízes mandavam
litígio pra gente. Podia até ir pra elas, mas ia necessariamente pra
psicologia. E quando o processo não tinha litígio, mandava só para o
Serviço Social, e lá elas depois sugeriam o envio do processo para a
Psicologia. Quando é litígio, sempre tem que vir pra nós, sem exceção.
Quanto a suspeita de abuso, elas simplesmente não falavam de abuso, era
sempre eu que tinha que atender os casos e falar sobre o abuso.

Em vários momentos da entrevista, a Sra. O. aborda a delicada e por vezes


conflituosa relação entre psicólogos e assistentes sociais, que muitas vezes
parecem disputar espaço e status no âmbito institucional. As atribuições específicas
a um e outro profissional são também um ponto bastante polêmico, que muitas
vezes é motivo de confusão por parte dos operadores jurídicos. Não raro, processos

12 A Sra. S. aqui se refere à realização dos estudos técnicos, o que é determinado pelo magistrado e
é sua prerrogativa, decidindo por sua necessidade.
76

podem chegar ao setor de psicologia com a determinação de “realização de Estudo


Social do caso”. No contexto a que se refere a entrevistada, o trabalho com abuso
sexual parece criar um incômodo tal entre as equipes que é como se operasse um
“cabo de guerra às avessas”, no qual, ao invés de puxar a corda para o próprio lado,
cada uma das categorias até desejaria conferir à outra a supremacia na condução
desses estudos.
Como a própria entrevistada reconhecerá adiante, entretanto, tal supremacia
tem sido mesmo conferida à Psicologia. Trata-se de um lugar-comum, no qual as
assistentes sociais costumam se atribuir – com raras exceções – uma função bem
mais descritiva em situações de suspeita de abuso contra crianças, deixando aos
psicólogos o incômodo e polêmico papel de revelar a realidade factual do abuso.

Entrevistador: E o que as a.s. falavam dessas crianças?


Sra. O.: Elas diziam se estavam na escola, com quem moravam. E a
minha responsabilidade era a de verificar a situação de abuso. Na época eu
tinha uma supervisora, e a abordagem dela era de colocar sempre se houve
ou se não houve abuso. No mínimo era falar se havia indícios. Só depois eu
soube que tem gente trabalhando de uma maneira diferente, sem essa
coisa de revelação de abuso. Na época da supervisão com ela, que me deu
muito apoio, eu me sentia na obrigação de dizer. Pra mim a carga de uma
situação de abuso é a pior que pode existir. Eu já falei com vários
abusadores, eles sempre negaram, eu nunca ouvi confissão de nenhum.
Mas o que foi mesmo que você me perguntou?
Entrevistador: Você falou de gente que trabalha de maneira diferente. Qual
é essa maneira?
Sra. O.: É de falar da situação, mas não afirmar se houve ou não houve
abuso.
Entrevistador: O que você acha da gente ficar com a responsabilidade de
dizer se houve ou se não houve abuso?
Sra. O.: Em relação a esse assunto eu não consigo mais nem lidar com a
situação (começa a chorar). Não consigo.
Entrevistador: A gente sabe que na psicologia existe um lugar comum,
com o qual eu não concordo, de considerar que se determinada situação é
muito angustiante é porque a pessoa já passou por ela.
Sra. O.: (ainda chorando) Mas eu não sei se eu fui abusada, eu acho que
não fui! Minha mãe diz que não, meu pai diz que não.
Entrevistador: Mas você acredita nessa relação, que para ter uma reação
como a sua ao tema abuso precisa ter sido abusada?
Sra. O.: Aí a gente entra em outro assunto. Eu fui chamada para entrevista
com a médica da readaptação, porque eu pedi para não atender mais
13
abusos, pra isso ficar oficializado. Ela vai me dar um ano de readaptação ,
você sabe disso.
Entrevistador: sei.
Sra. O.: A médica decidiu me dar um ano de readaptação, mas ela me falou
que seria condicionado a eu fazer terapia. Eu estou sem fazer terapia há
uns quatro anos, só que eu fiquei sete anos seguidos (fazendo terapia). Eu
fazia análise, falava dessa angústia mas não foi um ponto que me fez entrar
em análise, não foi trabalhada a questão do porquê isso me incomodar
tanto. A médica deu essa condição, eu já ia entrar em terapia até por outras

13 O servidor do TJRJ é chamado de readaptado quando muda de setor e/ou atividade em função de
determinado impedimento, geralmente ligado a questões de saúde.
77

questões. Mas a médica do TJ condicionou porque, lá no meu atestado


psiquiátrico – já tive depressão – minha psiquiatra já tinha colocado que
minha ansiedade aumenta quando estou em contato com situações de
abuso. Mas a psiquiatra não colocou a base, os motivos pra isso. E a
médica daqui disse que eu tinha que fazer terapia. Aí eu falei pra médica do
TJ: “tem uma coisa que eu não estou entendendo, eu vou ser obrigada a
trabalhar ISSO na terapia? Eu não quero saber disso”. A médica então falou
que “a gente quer que o funcionário retome cem por cento da sua
capacidade, esse tema é uma questão pro psicólogo atender e você não
pode?” eu falei assim: “olha só, quem trabalha em cartório sabe que tem de
manusear os processos, mas quando a pessoa é readaptada no cartório por
problemas de coluna, ela fica impedida de levantar os (volumes dos)
processos. O servidor é um processante, mas ele não pode pegar nos
processos, qual é o problema? O psicólogo tem que poder fazer tudo?”. Aí a
médica falou: ”mas você pelo menos tem que demonstrar que está
tentando. A pessoa readaptada por problemas de coluna faz fisioterapia.
Você tem que provar que está tentando superar isso”. Eu falei: “tá bom,
terapia eu faço, mas eu não sei se essa questão vai ser resolvida não, se eu
vou poder atender abuso”. Ela então disse: “sim, vamos ver. Isso podia ser
só uma questão de escolha sua, de preferência de não atender. E depois,
isso também pode ser levado para outras situações”. Eu falei assim:
“doutora, eu estou há mais de dez anos no TJRJ. Eu já atendi criança com
sinais de tortura no corpo, eu não vou estender isso pra outras situações, a
minha questão é em relação ao tema abuso. E tem mais: eu não atendo
abuso, mas eu atendo os processos da colega, eu troco um pelo outro,
troco um por dois, se for o caso. Por que eu ia querer me onerar?”
Entrevistador: Você não acha que a sua angústia tem a ver com a
instituição também?
Sra. O.: Mas é algo só dirigido ao abuso, não me importo de participar de
outros tipos de processos, de opinar, de me colocar em outras situações
(volta a chorar, bastante tensa). Essas outras situações podem me fazer
mal como fazem a vários outros colegas, mas não me paralisam. Eu atendo
qualquer outra coisa, não abro a sala e saio correndo, como se fosse numa
situação de abuso.
Entrevistador: Você sairia correndo, caso tivesse que atender situação de
abuso?
Sra. O.: Eu nunca mais atendi abuso, se me obrigarem a atender eu não
vou atender, não tenho condição. Eu sempre atendi todas as outras
situações, se não estou segura, procuro uma supervisão, mas sempre
atendi e sei que vou continuar fazendo.
Entrevistador: Essa abordagem de dizer se houve abuso, quem abusou, a
gente sabe que isso é bastante delicado, por vários motivos. Às vezes a
gente recebe a criança muito tempo depois do suposto fato ocorrido, fica
difícil. E uma outra abordagem, a de refletir sobre a dinâmica em questão?
Aí você não se sentiria na obrigação de afirmar se houve abuso, quem
abusou, quantas vezes... pensar assim não te deixaria mais tranquila?
Sra. O.: (...) Acho que é muito pior você ter que dizer “sim, houve abuso,
praticado por fulano”.
Entrevistador: E por que pior?
Sra. O.: Por conta daquela questão da responsabilidade da gente definir a
verdade e a mentira. A gente ter que garantir a verdade. Mas a situação de
abuso em si, atender a criança, os familiares, os segredos, as pessoas que
sempre souberam mas vão dizer que não, isso pra mim é tão angustiante,
sabe? Eu não me sinto capaz de desvelar isso. Mas esse desconforto só
começou quando eu fui trabalhar em (...), lá tinha uma quantidade absurda
de casos de abuso, os casos nem iam pro Conselho Tutelar, iam direto por
juizado. Eu atendi tantos casos, tantos... e eu atendia, fazia os relatórios. E
eu fui adoecendo. Quando eu percebi, eu estava doente. A (...), com quem
eu fazia supervisão, falou pra mim: “você não tem mais condição de atender
esses casos. Faz alguma coisa, senão você vai sair do tribunal”. Então eu
78

fui adoecendo enquanto atendia os casos. No fim, eu ia até o meu


escaninho buscar meus processos, eu folheava pra saber do que se tratava.
Quando eu via que era abuso, eu começava a tremer. Tremia e tremia!
Entrevistador: Você acha que esse pânico pode ter relação com essa
expectativa de verdade? Se você não se impusesse tanto a cobrança de
dizer que houve abuso, de revelar a verdade do abuso, você poderia reagir
de forma mais tranquila?
Sra. O.: Eu acho que seria penoso pra mim de qualquer maneira.
Entrevistador: Mas mudando a abordagem, não poderia ser mais possível?
Sra. O.: ...Não sei, eu sempre atendi dentro da abordagem dessa
14
supervisora, de revelar a realidade do abuso . Os quatro anos que passei
foram dentro dessa abordagem.
Entrevistador: Minha pergunta é na verdade uma hipótese: não terá sido
isso o que te “adoeceu”?
Sra. O.: Eu nunca tinha pensado nisso..., não mesmo ... Agora você me
deixou meio confusa, não sei.

Em momentos como esse a entrevistada pareceu se deixar afetar pelo tema e


pelos rumos de nossa conversa. Considero que esse possa ser um resultado do
próprio trabalho, algo que extrapola o puro e simples registro de fatos e vivências.
Alistair Thomson cita Hugo Slim e Paul Thompson, que consideram a entrevista
individual como um “encontro perigosamente íntimo” (THOMSON, op. cit., p. 49).
Segundo o historiador oral australiano, trata-se mesmo dos “usos políticos da
história oral” (Ibidem, p. 60), que pode, nesse resgate de vivências, sentimentos e
práticas que é o relato, suscitar novas formas de estar no mundo, contribuindo para
transformações de ordem política e propiciando até mesmo efeitos terapêuticos para
os sujeitos participantes.

Entrevistador: Mas faz algum sentido o que estou dizendo?


Sra. O.: Pode ser que faça... pode ser que faça...
Entrevistador: Eu acho que pensar assim faz com que a questão não fique
centrada em você, com esse chavão do “ela deve ter sido abusada e por
isso reage de forma angustiada e fóbica a situações similares àquelas que
deve ter vivido”, entende? Não sei se a questão é tão individual e interna
assim, própria a uma única pessoa adoecida por um trauma psíquico,
percebe? Talvez o peso da cobrança institucional no sentido da aferição de
uma verdade...
Sra. O.: (interrompendo) Isso pesa mesmo, não tem como negar. Mas eu
não sei se foi isso que me adoeceu, não sei. (continua emocionada). Mas
que foram quatro anos nessa abordagem, foram sim. Nunca passou pela
minha cabeça escrever um relatório sem dar esse tipo de opinião.
Entrevistador: São situações distintas e extremamente polarizadas.
Geralmente é alguém acusando outra pessoa de abuso, o acusado
negando, alguém dizendo que viu, ou não viu, outras pessoas dizendo que
houve sem terem visto nada. e uma criança no meio dessa situação
horrorosa, reagindo a isso de mil maneiras. E isso tudo sem possibilidade
de conciliação, já que todas as partes defendem posições muito
antagônicas e radicais.

14 O que no jargão técnico recebe a pomposa (e pretensiosa) denominação de Estudo de Revelação


de Abuso
79

Sra. O.: É verdade. Numa guarda sempre existe a possibilidade de compor


um acordo, e isso quase sempre acontece, por mais que o conflito também
apareça.
Entrevistador: Ninguém vai chegar dizendo “sim, eu abusei”, ou “sim, eu
manipulei meu filho, inventei a situação”, até porque a realidade é sempre
muito mais complexa do que o simples houve - não houve. As partes estão
ali defendendo posições, mais do que só denunciando um atentado ao
corpo de uma criança. Nesses momentos, a gente fica entre duas
polaridades absolutas, tendo que se posicionar entre uma ou outra. Será
que isso não adoece?
Sra. O.: Teve uma situação em que fui fazer a entrevista de revelação com
15
umacriança. Eu estava com os boneco , que eu tinha comprado. E eu ali
tentando fazer com que a criança me dissesse, entendeu? E isso era
violentar aquela criança de novo (chora novamente).
Entrevistador: Sem contar com o fato de que nessas situações o abuso é a
realidade a priori, é o pressuposto ontológico, algo de cuja existência
sempre se parte. É como se a gente procurasse algo escondido, mas que
necessariamente estivesse ali, é só uma questão de saber procurar. Nesse
exemplo que você deu, parece que você estava querendo somente
confirmar o abuso, não é?

A pressuposição de culpa, estigma que parece perseguir os indivíduos


envolvidos em ações da justiça penal, é particularmente real – e cruel – para os
casos de suposição de abuso sexual, nos quais os acusados já chegam à instância
judiciária com uma aura de desconfiança por parte tanto da instituição quanto do
âmbito social. Todo o aparato jurídico parece direcionar-se no sentido de confirmar
essa pressuposição inicial, ainda que a grande maioria dos acusados seja, ao final
das contas, inocentada.
Eduardo Viveiros de Castro encontrou uma forma bem humorada de refletir
sobre as situações em que determinado viés parece de antemão escolhido.
Discorrendo sobre a definição de quem de fato faria parte do contingente indígena
no país – tarefa atribuída pelo governo aos profissionais de antropologia –, o
antropólogo critica o arcabouço jurídico do Estado como produtor de “substâncias,
categorias, papeis, funções, sujeitos, titulares desse ou daquele direito etc.”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p. 144). O autor considera que dizer quem é índio e
quem não é jamais deveria ser atribuição do antropólogo, simplesmente por ser esta
não uma questão antropológica, mas jurídica – ou política! Pelo fato de essa
pergunta já se encontrar de antemão (politicamente) respondida, Viveiros de Castro
indaga, evocando o trecho de um filme de Werner Herzog, “quem vai responder a
essa resposta?”

15 São os chamados bonecos anatômicos, dotados de órgãos sexuais, geralmente uma família toda
– pai, mãe e filhos. São usados nos tais estudos de revelação de abuso e são também objeto de
muitas críticas pelos técnicos contrários a essa abordagem
80

Considero que podemos tratar perguntas do tipo “houve abuso?” ou “quem


abusou?” de forma análoga à proposta por Viveiros de Castro. Ou seja, revela-se
profundamente problemático o psicólogo se colocar no lugar de definir uma
pendência de ordem jurídico-policial e investigativa, tal como aferir a realidade
objetiva de determinada situação. Esta é uma questão bastante polêmica entre os
próprios profissionais de psicologia, principalmente entre aqueles envolvidos nos
estudos de revelação de abuso.

Sra. O.: Sim, sim! Exceto um caso, que eu lembro muito, em todos os
outros eu coloquei que havia indícios. Um único eu coloquei que não,
porque a criança foi muito incoerente, era uma menina já com nove anos e
eu coloquei que não havia indícios. E eu me lembro que fiz supervisão
desse caso e minha supervisora colocaria que sim. Foi o único caso em que
eu não concordei com ela e coloquei no meu relatório que não via indícios
de abuso. Você acredita que esse caso até hoje vem na minha cabeça?
Não sei qual o resultado, qual foi o posicionamento do juiz, a gente quase
nunca fica sabendo. Mas eu me pego perguntando “será que essa menina
estava sendo abusada, e eu coloquei que não? será que o juiz manteve
essa menina na companhia do padrasto (o acusado de abuso) e essa
menina está sendo abusada até hoje?”
Entrevistador: Entendo que você está sofrendo por conta de uma
expectativa que a instituição faz em relação ao seu trabalho e que você
também acaba se fazendo, a de desvelar a verdade factual desses casos.
Acho que aí o psicólogo se torna um pouco investigador, funciona como
parte do processo de apuração da verdade objetiva: “eu preciso desvendar
o que aconteceu, se aconteceu, como aconteceu, quem fez”.
Sra. O.: Mas imagina se depois alguém visse a menina ser abusada e o
processo voltasse pro judiciário. Iriam dizer “mas a psicóloga disse que não
houve abuso”. Se acontecesse isso, eu ia ter certeza de que tinha errado.
Imagina como eu ia me sentir? Eu me sentiria responsável, porque o juiz
seguiu o que eu escrevi e a criança continuou com o padrasto.

Os casos de supostos abusos sexuais praticados contra crianças e


adolescentes costumam mobilizar grandemente a instituição judiciária. Encontramos
frequentemente um clima de culpa-responsabilização entre os profissionais
envolvidos na questão, o que só incrementa a atmosfera de medo e o fantasma da
incompetência. É quase uma culpa secundária não ter podido identificar a situação
de abuso ou punir os responsáveis por tal delito, o que deixa os técnicos em uma
situação desconfortável e até um tanto paranoica. Neste sentido, a posição
emocional da entrevistada é somente uma espécie de exacerbação da disposição
reinante.
Foucault (2014)16 observa que também na França o tema abuso é bastante
mobilizador. Refletindo a respeito da revisão no Código Penal Francês acerca da

16 FOUCAULT, M. “A lei do pudor”. In:_______, Ditos e escritos, volume IX: genealogia da ética,
subjetividade e sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.105
81

sexualidade e da infância, particularmente no que concerne às relações entre


crianças e adultos, o autor faz menção a um movimento “subliminar”, que ocorre
paralelamente ao que, à primeira vista, poderia se considerar como uma
liberalização nos costumes e na legislação sobre o comportamento sexual na França
do final dos anos 70. Refere-se ele a uma onda conservadora, que ocorre como
efeito da grande histeria suscitada pelas relações eróticas entre crianças e adultos.
Neste mesmo trabalho, G. Hocquenghem faz menção a uma “exploração da
sensibilidade popular” no sentido do horror a tudo o que diga respeito ao sexo ligado
à infância. Já J. Danet aponta que a ideia de trauma é sempre evocada, a ponto de
os psiquiatras defenderem que relações entre adultos e crianças serão sempre
traumáticas a essas últimas “e que, se elas não guardam essa recordação, é porque
está no seu inconsciente, mas, de toda maneira, ficam marcadas para sempre e se
tornarão caracteriais” (FOUCAULT, 2014, p. 91, grifos meus). Observe-se que
essa expectativa de “sequela caracterial” é o que pode estar na raiz de verdades
automáticas, muitas vezes aceitas sem questionamento no próprio meio psi, que
relacionam o perverso-abusador de hoje a um suposto infante-abusado de outrora.
Nesta perspectiva, deveria ser de fato uma atribuição da “ciência psicológica” não
apenas reconhecer o psiquismo-abusador em sua virtualidade – portanto antes do
cometimento do ato propriamente dito –, como também poder revelar a realidade do
abuso, algo correntemente realizado pelos psicólogos nos tais estudos de revelação
de abuso. A angústia decorrente dessa série de expectativas institucionais não
analisadas deve ser mesmo grandemente adoecedora...
A instância judiciária e o direito penal se põem então a essa grande caçada
aos perversos corrompedores da juventude, mobilizando todo o aparato policial e
jurídico no sentido de reconhecer e criminalizar tais inimigos da pureza infantil.
Segundo Foucault (op. cit., p. 92), “é essa a obsessão dos juízes”. O clima
persecutório é tal que se chegou a acusar de devassidão um educador que distribuía
preservativos a meninos e meninas sob sua responsabilidade. O direito penal
serviria assim para reprimir os educadores, principalmente aqueles mais
distanciados de sua função repressora. Criam-se dessa forma, lembra Danet, uma
grande trama de controles bem mais sutis, a pretexto de proteger a integridade
psicológica de crianças e jovens.
Foucault conclui que todo esse aparato serve para, na realidade, constituir a
ideia de uma população frágil: a infância passa a ser vista como um segmento social
82

de alto risco, vítima potencial de investidas sexuais de adultos perversos. Firmam-se


então duas categorias de indivíduos: uma frágil e potencialmente vítima (a infância),
bem como sua contrapartida, o adulto abusador. Ambas as categorias, por suas
próprias e “intrínsecas” características, justificariam a ação pesada do Estado no
sentido do cuidado-controle e da repressão policial-criminal. Institui-se um poder
médico, controlador da sexualidade, e um poder judiciário, que cria a delinquência e
reprime a figura do delinquente nas suas mais diversas formas.
Foucault postula então o novo dispositivo da sexualidade, no qual,
diferentemente da forma anterior – em que apenas condutas eram condenadas –,
temos “uma sociedade de perigos” (op. cit., p. 98), habitada por adultos
potencialmente perigosos e por crianças frágeis e passíveis de ataque.
Necessário se faz refletir sobre tais determinações de ordem institucional,
para que não permaneçamos como partes inertes nessa grande engrenagem do
poder, seja participando passivamente de sua efetivação, seja sofrendo da angústia
de não conseguir corresponder às forças instituídas. A entrevistada se mantém
como o foco principal da questão, personalizando a problemática e sofrendo com um
fardo que lhe parece insuportável – e deve sê-lo, realmente.

Entrevistador: E por que você seria a única responsável?


Sra. O.: Nesse caso eu seria, né? Se eu coloquei que não havia indícios de
abuso, se o juiz seguiu minha conclusão e o padrasto continuou abusando...
Entrevistador: Mas o seu relatório é apenas um elemento...
Sra. O.: Mas a gente sabe que, nos casos de abuso e maus tratos, é o
nosso relatório que eles (os juízes) levam em consideração.
Entrevistador: Penso que se você passar a pensar na perspectiva da
instituição talvez você saia do foco, dessa maneira tão maciça quanto você
vem se colocando. Porque eu entendo essa angústia como parte de uma
cobrança que é da instituição, e que muitas vezes a gente assume como
nossa, como nossa obrigação corresponder a isso. E por que é tão centrado
na gente, no nosso trabalho? O que está na lei é que nosso trabalho é
apenas um dos elementos para o juiz firmar a convicção dele, nós não
podemos ser os únicos ou os principais responsáveis pela decisão judicial.
Existe o MP, existem as provas – documentais, testemunhais etc. –, existem
as pessoas que cuidam da criança. Mas parece que a gente se coloca
nessa posição central, única e definitiva, a respeito da questão que a gente
avalia.
Sra. O.: Mas será que não é porque em casos de abuso quase nunca há
prova material? No caso de criança quase nunca há. Será que eu peguei
algum caso em que houve prova material? Acho que não, abuso contra
adolescente talvez, mas contra criança não, nunca peguei. Não tendo essa
prova, ou não tendo ninguém que tenha presenciado o ato, o juiz vai se
basear em quê?
Entrevistador: Tenta responder à tua pergunta (risos). Em que ele vai se
basear? Se não há elementos para firmar uma convicção...
Sra. O.: Aí o juiz não pode considerar que houve abuso.
Entrevistador: Justamente! E aí o juiz não vai poder condenar. Porque me
parece às vezes que somos cobrados a fornecer um elemento de
83

condenação ao magistrado e ao sistema de justiça, entende? É como se


ele (o juiz) precisasse necessariamente condenar, é como se fosse essa a
sua atribuição fundamental. E nós entramos como coadjuvantes nesse
processo. Mas por que a gente se coloca nesse lugar?

Considero este o momento da entrevista em que mais fica clara a associação


entre a Psicologia e a Justiça como instância punitiva, sendo o exame o instrumento
por excelência no sentido de firmar uma condenação. De fato, uma denúncia de
abuso explicita a dimensão condenatória da instituição, que necessita do aval do
especialista para fundamentar e concretizar esse grande objetivo. Desta forma, não
seria exagero afirmar que o suspeito de abuso já se encontra, de certa forma,
condenado de antemão, por mais que o processo legal acabe por inocentá-lo.
Condenar é uma necessidade – histórica – da instância judiciária; por que haveria de
ser também a nossa?
Mais significativo ainda são as nossas investidas no sentido de corresponder
a tais expectativas institucionais. Nesse momento da entrevista, eu procurava
estabelecer com a Sra. O. uma reflexão que explicitasse o conflito, (nosso conflito!),
diante da demanda de estabelecer a realidade do abuso – e, portanto, firmar as
bases para a condenação – e o incômodo diante dessa posição. Interessante
observar como nosso próprio comportamento e autoimposições podem forjar
determinadas demandas institucionais. Um trabalho bem mais rico seria o
questionamento desse lugar, colocando-o como analisador das forças instituídas
com o intuito de estabelecer novas bases para intervir na instituição.

Sra. O.: Então não vou mais me colocar num lugar desses droga nenhuma!
(risos). Eu fiquei quatro anos nessa posição, eu tinha que falar, me
pronunciar sobre a existência do abuso.
Entrevistador: Você passou quatro anos na posição de quem se
considerava a única responsável por definir a situação, e aqui definir a
situação quer dizer definir a realidade do abuso e a condenação.
Sra. O.: É.
Entrevistador: E responsável também pelo destino da criança, olha que
arapuca! (risos). Isso é insuportável mesmo!
Sra. O.: É sim! É como se nem a mãe da criança fosse tão responsável
quanto eu pelo destino dela. Nesse caso que te contei, a mãe não
acreditava na filha. A mãe estava com um companheiro que a filha acusava
de abusar dela, e a mãe não acreditava na menina. É como se eu fosse a
única responsável por essa menina.
Entrevistador: Pois é, a menina tem mãe, tem parentes, tem vizinhos, e é
você que...
Sra. O.: Sou eu que sou mais responsável por ela do que todo mundo. É
assim mesmo que me sinto, exatamente assim.
Entrevistador: A minha hipótese é que a gente é colocada nessa posição,
e a gente aceita essa posição! E a gente sofre e às vezes adoece quando a
gente percebe a impossibilidade de corresponder, mas a gente ao mesmo
tempo QUER corresponder a isso.
84

Sra. O.:. Quando eu penso naquelas entrevistas, naqueles bonequinhos, eu


me sinto tão mal! Estive falando com a..., que é muito minha amiga e agora
está lá na 1ª Vara, na Praça Onze. Lá eles não trabalham com estudos de
revelação de abuso, não usam brinquedos anatômicos. Você deve saber
disso, você foi de lá muitos anos.
Entrevistador: Essa forma diferente de conduzir a questão do abuso foi
uma conquista nossa lá na vara da infância, diante dos juízes e do MP. Eu
sempre achei que essa atribuição de definir a realidade do abuso é para nós
psicólogos um tiro no próprio pé, como se diz. O que será que a gente quer
provar com a ideia de que pode descobrir a realidade do abuso? Será que a
gente quer garantir a nossa importância na instituição, se constituindo como
um fator de definição de prova factual e de condenação?
Sra. O.:. Porque isso daí dá um status, né? A gente poder comprovar que a
criança foi de fato abusada.

A entrevistada, pela primeira vez, faz menção a um ganho secundário (ou


seria primário?) de atuar no sentido da manutenção do instituído: o status! Trata-se
de uma tentação no sentido de firmar um lugar e uma importância singular na
instituição, a tentação de firmar-se como um especialista.
Em um espaço tão hierarquizado e verticalizado como o Judiciário, pode
parecer uma tentação aproximar-se das expectativas e da engrenagem institucional,
o que nos dá, em última instância, certa ilusão de proximidade com o poder.

Entrevistador: E veja como é delicada essa postura de afirmar, de garantir


coisas. As crianças hoje são extremamente controladas em suas
manifestações sexuais, mas, paradoxalmente, é hoje que elas mais têm
oportunidades de entrar em contato com cenas de sexo, por exemplo. Aí
você encontra uma criança, vá lá, excessivamente “sexualizada”. Será que
a gente pode relacionar isso a uma suposta situação de abuso? É muito
perigoso fazer essa transposição.
Sra. O.:. Engraçado, conversando com você agora, talvez eu tenha
colocado em muitas situações que havia indícios de abuso e nem houvesse.
(se emociona novamente). Eu achava que a criança tinha que revelar pra
mim, tinha que me dizer se houve o abuso. Eu percebo agora o quanto meu
trabalho estava centrado nisso, em conseguir tirar da criança a revelação do
abuso.

Considero que este pode ter sido outro momento de certo “desprendimento de
si” por parte da entrevistada, que pôde, a partir das reflexões suscitadas pela
situação de encontro vivida, questionar as bases de sua prática através da
introdução de novos elementos de análise, onde antes apenas havia, possivelmente,
a necessidade de corresponder a demandas, além do sofrimento decorrente do fato
de não se considerar altura de expectativas externas. Thomson aponta para o
empoderamento obtido da prática de uma entrevista interativa e intervencionista;
segundo o autor, “refugiados, ou outras vítimas de opressão social e política que
“dão testemunho”, podem se afirmar (empower) à medida que descobrem palavras e
significados para suas experiências e estimulam o reconhecimento público e a
85

potencialização de experiências que haviam sido anteriormente ignoradas ou


silenciadas” (THOMSON, op. cit., p. 59). O autor naturalmente se refere aos
benefícios da proposta da narrativa livre para os excluídos ou vítimas de grandes
injustiças e opressão, o que, muito mais de que a simples catarse, reverte-se em um
poderoso efeito político para os sujeitos envolvidos.

4.2.1 A Sra. O. e a nostalgia da certeza

A entrevista com a Sra. O. foi profundamente mobilizadora, não somente pela


carga emocional mobilizada, mas pelas próprias questões tratadas, que, no meu
entender, explicitaram o nosso movimento, como psicólogos, no sentido de nos
estabelecer como especialistas em detectar e confirmar realidades ocultas. Penso
que um novo e bem interessante campo de pesquisa seria o de analisar essa
“expectativa de cientificidade” entre os operadores jurídicos, a quem costumamos
atribuir a responsabilidade pelas demandas que nos são dirigidas. Essa atribuição
mascara nossas próprias implicações no sentido de firmar uma ideia daquilo que o
profissional de psicologia pode – ou não – de fato realizar. Ou seja, somos também
(e talvez principalmente!) produtores de certa visão social de nossa profissão.
Um exemplo real e claro disso é o procedimento, extremamente comum entre
os psicólogos do Judiciário, de sugerir para as partes o encaminhamento para
psicoterapia. Muitas vezes, o retorno da criança à companhia de determinado adulto
(pai, mãe) fica condicionado ao engajamento desse adulto nesse tipo de tratamento,
o que, de antemão, transforma o processo psicoterápico em medida judicial
obrigatória. Mais do que isso, transforma em objetivo a “cura” que se pretende desse
sujeito na forma de determinados comportamentos, vistos como inadequados e,
portanto, passíveis de reversão via tratamento psicoterápico.
Interessante observar que situação análoga foi vivida pela própria Sra. O.
diante da psiquiatra que analisou seu processo de readaptação. Como muito bem
explicou a entrevistada, a mudança de lotação necessária à readaptação estava
sendo condicionada, pela médica, ao engajamento da Sra. O. em um processo
terapêutico que analisasse – e revertesse! – a indisposição apresentada pela
técnica. Ficaria então a Sra. O. na obrigação de “curar-se” de sua indisposição com
situações de abuso? Ficaria então a Sra. O. na obrigação de enfocar tal indisposição
86

em sua terapia? A quem se dirigiria o processo terapêutico, às expectativas do


Judiciário?
Voltando ao “encaminhamento para psicoterapia”, podemos pensar que essa
condução, a pretexto de realizar o chamado “melhor interesse da criança”, evidencia
uma visão positivista da prática psicológica, bem como uma postura normalizadora e
opressiva por parte da instituição. Pois semelhante sugestão continua a ser
realizada no âmbito judiciário.
Arrisco chamar de majoritária a compreensão, entre os profissionais de
psicologia, de que a Sra. O. não suportaria lidar com situações de abuso pelo fato de
também já ter sido abusada. Decidi entrevistá-la por não me satisfazer com esse tipo
de explicação e de raciocínio, que justapõem fenômenos numa lógica de para cada
efeito, uma causa. Já tinha em mente analisar a componente institucional de tal
“fobia”, inadequação disfarçada de problemática individual.
Gostaria de destacar da entrevista a postura ambígua da Sra. O., que, a
despeito de considerar impossível, no trabalho do psicólogo, a pretensão de
desvelar realidades ocultas, pareceu, ao mesmo tempo, mostrar um incômodo diante
dessa impossibilidade. Essa ambiguidade encontra-se presente em vários
momentos do relato da entrevistada. Como exemplo, cito a passagem em que
perguntei à Sra. O. como ela se sentiria, caso o pedido de impugnação de seu laudo
tivesse sido aceito pelo juiz. A entrevistada afirmou que se sentiria muito mal, uma
vez que o psicólogo da serventia deveria ser a pessoa em quem o juiz deveria
confiar. A entrevistada nesse momento associa questionamento do laudo a perda de
confiança, bem como menciona o desconforto que isso lhe suscitaria: “eu tenho uma
coisa de ser muito responsável, eu estudei muito esse caso, fiz supervisão, me
empenhei. Eu me sentiria meio incompetente, apesar de continuar com a certeza
que coloquei no laudo”. Desconfortável posição essa, que une certeza (de suas
conclusões) a sentimento de incompetência (para o caso de ter os resultados de seu
trabalho questionados).
A Sra. O. apontou outras situações que venho chamando de ambíguas: os
casos em que pai e mãe se atacam, acusando-se mutuamente, “e a gente e o juiz
ficamos ali para decidir quem está dizendo mais a verdade, ou quem está mentindo
menos”. Apesar de afirmar não ser este (definir quem diz a verdade) o nosso papel,
a entrevistada admite sentir-se mal por não obter semelhante “definição”: “essa
palavra – a verdade – é muito forte. Eu não acho que capte a verdade de nada”.
87

Pergunto como ela se sente em relação a isso, e ela diz enfaticamente: “ah, é ruim
né? A gente trabalha sempre com o improvável, com o incerto, e eu acho que isso
traz muita angústia pra gente, sempre”. Quando pergunto por que seria isso tão
angustiante, a Sra. O. responde: “é a angústia do ‘será que fiz certo? Será que fiz
besteira? Será que foi a melhor decisão? Será que a criança está bem ou está em
risco?’ Não dá pra gente ter certeza, né?” A consciência da impossibilidade da
certeza parece se mesclar a uma nostalgia da própria ideia de certeza, evocada
precisamente como uma perda-insuficiência.
A Sra. O. vai se lembrando de outras situações, passando a relatar um
episódio mais ou menos recente, no qual fez o encaminhamento de um apenado em
progressão de pena para inserção no mercado de trabalho. Essa pessoa, cerca de
um ano depois desse encaminhamento, estuprou uma garota. A entrevistada admite:
“Eu fiquei mal”. Ao mesmo tempo em que admite que não teria como prever tal
desfecho, evoca o fato de não poder realizar na CPMA um estudo psicológico
completo de cada caso, “porque não dá tempo, é muita gente”. A Sra. O. parece
justificar aí, na ausência de um estudo completo, o fato de talvez não ter podido
evitar, portanto prever, o ato delituoso cometido posteriormente. Além disso, a
entrevistada ainda atribui essa impossibilidade ao fato de ser o delito do apenado
um simples porte ilegal de arma: “nesses casos, a gente pode até supor que ele
venha a furtar algo, já houve casos de celulares na bolsa de prestadores. São
poucos casos, mas acontecem. Esse caso do estupro é o mais grave que já
aconteceu”. A Sra. O. parece fazer menção a uma subjetividade-estuprador
mascarada no delito cometido, o que confere substrato à identidade delinquente, nos
moldes preconizados por Foucault ao estabelecer a genealogia da ideia de crime e
de criminoso.
Pergunto como a Sra. O. se sentiu. Ela responde, relutando, que se sentiu
mal, sentiu-se responsável (“não totalmente”, ressalvou, “porque tenho consciência
de que isso pode acontecer, mas me senti responsável sim. Se você abrir o
processo, tá lá o meu aval para a ida do cara à vaga de emprego”.). Considero
também que, se ela se sentiu responsável pelo ato criminoso, isso quer dizer que,
em alguma medida, ela também achou que poderia tê-lo evitado.
Nesse momento da entrevista, faço a pergunta mais diretiva, possivelmente,
de todo o encontro: “você acha que a instituição de certa forma ‘empurra’ a gente
para assumir essas responsabilidades?” A entrevistada, hesitante, concorda com
88

minha pergunta-hipótese: “acho que sim”. Eu continuo: você me diz: “eu não pude
fazer um Estudo”. Mas eu te pergunto: será que um Estudo Psicológico completo
poderia identificar precocemente um estuprador futuro? Será que existe um
psiquismo-estuprador passível de ser previamente detectado? Continuo
perguntando: você acha que eles, os juízes, têm esse tipo de expectativa em relação
ao nosso trabalho? A Sra. O. responde que sim, admitindo que teria se sentido muito
mal caso tivesse sido chamada pelo juiz a prestar esclarecimentos sobre o caso.
Depreende-se a obrigação da entrevistada no sentido de corresponder às demandas
do juiz – do seu juiz –, bem como às exigências institucionais. Por falar nisso, o uso
do termo “o meu juiz” é outro aspecto passível de análise, por mais que diga respeito
a um jargão bastante empregado pelos funcionários da Justiça. “O meu juiz” assume
uma conotação de pertencimento particular e subserviência, bem significativo da
realidade que apreciamos. Dá a ideia de que o funcionário trabalha para o juiz, numa
personalização e individualização de relações que deveriam se apresentar em seu
aspecto profissional. Não à toa, a entrevistada emprega seguidamente essa
expressão.
A Sra. O. apontou o fato de, em sua CPMA, somente os psicólogos poderem
afirmar esse tipo de coisa (encaminhar sem contraindicação), de forma que os
encaminhamentos só se dão com o aval da psicologia, o que não ocorre com o
Serviço Social, que costuma passar tal responsabilidade para os psis. A entrevistada
reconheceu que essa forma de trabalhar pode mudar, dependendo do contexto, já
que em outras CPMAs existe uma distribuição processual e de responsabilidades
mais igualitária, na qual tanto psis quanto a.s podem fazer encaminhamentos.
Podemos daí concluir que, pelo menos no contexto analisado, a responsabilidade
por predizer comportamentos fica circunscrita à figura do psicólogo. A entrevistada
reconhece em seguida que muitas vezes nós psicólogos nos achamos detentores de
habilidades que outros técnicos, tais como assistentes sociais, não teriam, o que
pode nos trazer consequências delicadas e problemáticas no âmbito institucional.
Vários momentos da fala da entrevistada me fizeram supor sua
sobreimplicação com a tarefa, para designar um sentimento bastante presente ao
longo de toda a entrevista realizada. Mesmo reconhecendo a pertinência dos
questionamentos propostos, fica claro que a Sra. O. assumia como sua toda uma
série de exigências impostas à prática psicológica na instituição judiciária. A
entrevistada afirma ainda hoje sentir-se desconfortável – e por vezes bastante
89

angustiada – ao lembrar-se de situações específicas, como alguns casos de


definição de guarda em que se mostrou bem diretiva em suas conclusões: “será que
eu fiz a escolha certa? Será que a criança está bem?” Pensar que algo de mal pode
no futuro acontecer àquela criança lhe causa grande desconforto, seria como uma
atribuição sua que não conseguiu realizar corretamente.
Percebo claramente no discurso da Sra. O. as exigências institucionais
ligadas a uma concepção idealizada de ciência, na qual o aspecto preventivo
adquire uma importância fundamental. Em se tratando do trabalho psicológico no
Judiciário, podemos ser responsabilizados por aquilo que não temos condição de
aferir e prever, e podemos responder pelas consequências dessa incapacidade-
incompetência.
Mais perturbador do que desvelar as forças que nos impõem diretrizes e
resultados, todavia, é constatar o quanto tais exigências institucionais nos calam
fundo e o quanto nossa prática ainda está fundamentada nos mesmos elementos
que, paradoxalmente, nos impõem desgaste profissional e adoecimento.

4.3 O Sr. D. ou o elefante e as formiguinhas

Entrevistador: Gostaria de conversar a respeito de processos de trabalho,


de incômodos. Quero iniciar nossa conversa te perguntando o que te fez
pensar em ser psicólogo do Judiciário.
Sr. D.: No meu caso foi algo absolutamente circunstancial. Eu trabalhava
como psicólogo no Município, numa cidade do Estado do Rio, há pouco
mais de um ano, e eu
que não poderia continuar, pois o salário era muito baixo, e ao mesmo
tempo eu não queria voltar ao que eu fazia antes, que não era ligado à
Psicologia. Aí surgiu o concurso da Justiça e eu imaginei que me daria a
segurança a que eu almejava. Eu resolvi investir no concurso, mas havia um
desconhecimento absoluto sobre a natureza do trabalho, sobre o contexto.
Estudei pro concurso por um ano.
Entrevistador: É incrível como esta é uma justificativa que se repete, o fato
de as pessoas procurarem, além da estabilidade profissional, o salário. Era
uma situação que à época do primeiro concurso era inédita em termos de
17
condições de trabalho para o psicólogo .
Sr. D.: Certamente.

17 Essa condição salarial “diferenciada” do cargo de Psicólogo do TJRJ corresponde a vencimentos


líquidos, em outubro de 1999, de R$ 2.080,15 (levando em conta que a primeira turma de
psicólogos convocados do primeiro Concurso, realizado em 1998, assumiu o cargo em fevereiro de
1999 e saiu do estágio experimental – quando recebia 80% dos vencimentos – seis meses depois).
Fazendo um cálculo das perdas devidas à inflação ao longo de 193 meses, temos, em valores
reajustados para janeiro de 2016, R$ 7.288,86 (segundo o IGP-M, com correção de 250,40% de
perdas inflacionárias) e R$ 5958,33 (segundo o IPCA Geral, com correção de 186,44%). Ao valor do
salário, somam-se triênios (10% pelo primeiro, 5% para os seguintes) e posição no plano de cargos,
o que também pode fazer aumentar os vencimentos.116
90

Entrevistador: Além disso, consegue localizar em você outro motivo para


ter decidido tentar o concurso? Deixa eu fazer uma ressalva: não pretendo
psicologizar nada, não quero procurar motivos inconscientes, nada disso.
Sr. D.: Se você achar você me conta (risos).
Entrevistador: Estou procurando coisas que a gente possa considerar
como partes de uma experiência coletiva. Você consegue apontar algo mais
que te fascinou e te moveu nessa escolha de fazer o concurso, de tentar
essa colocação?
Sr. D.: Não. Foi o que surgiu naquele momento, em termos de concurso
público. Não havia nada parecido com o que a Justiça estava oferecendo. E
quando saiu de fato o Edital, as minhas expectativas se confirmaram, os
vencimentos eram de acordo com o que eu esperava, poderiam fazer com
que eu largasse o trabalho não ligado à Psicologia.
Entrevistador: Quando você entrou, você consegue apontar quais foram as
tuas primeiras impressões, qual o primeiro impacto? Algo que te fez pensar:
nossa, eu tô trabalhando na Justiça!
Sr. D.: Sim, consigo. Deixa eu explicar uma coisa: minha primeira inserção
no Poder Judiciário foi em outro cargo, num concurso que eu tinha feito
antes e também fui convocado antes. Fui lotado num setor que tinha uma
inserção no controle de transportes. Era uma serventia muito grande, uma
jurisdição muito extensa, então ela comportava um volume significativo de
viaturas. E um dia eu estava lá e ligam de outro setor, um evento que ia ter.
Disseram: “a gente está esperando um ônibus que já era pra ter chegado e
nada”. E eu, imbuído do espírito de servidor público, querendo resolver,
disse: “vou verificar isso imediatamente!” (risos). Eu corri pro setor
propriamente de transportes, falei com o chefe do setor: “meu nome é x, sou
recém-chegado ao TJRJ e ligaram do setor tal, eles estão aguardando um
transporte há mais de uma hora! O que tá acontecendo?” aí o chefe, muito
tranquilamente: “meu nome é fulano, sou o diretor aqui do setor de
transportes. Bom, se é um ônibus, já não é mais comigo, apesar de eu ser
diretor do setor, é com o fulano, e ele não está aqui no momento”. Eu achei
aquilo muito esquisito, tem um cara que responde pelos ônibus e não está
subordinado ao diretor do setor de transportes. Aí eu, nada satisfeito, falei:
“pois quando o fulano chegar, quero falar com ele”. (risos). Passaram-se
alguns dias até eu ter contato com essa pessoa. Quando o encontrei, eu
disse: “você que é o fulano? É que ligaram dia tal, querendo saber de um
ônibus que não chegava.” O cara olhou pra mim – e foi embora!
(gargalhadas).
Entrevistador: Ainda bem que você não recebeu foi um chamado...
Sr. D.:. É! E eu nem diria que essa experiência foi algo específico,
exclusivo, do Judiciário. Eu acho que isso diz de certo funcionamento, que
envolve o estabelecimento de feudos, que fogem ao estrito controle formal
da organização. São autoridades que se constituem lá dentro, com seu
poder próprio, a partir de certa informalidade, para além dos canais oficiais
de constituição do poder.
Entrevistador: São mini autoridades?
Sr. D.: Com certeza. E numa relação estreita com quem é detentor do poder
administrativo oficial.
Entrevistador: Respaldadas por esse poder...
Sr. D. Sim, não é um maluco que resolveu mandar e não dar satisfação. E
esse exemplo foi o primeiro.
Entrevistador: Eu acho que se trata dessa distribuição de minipoderes,
sem respaldo em cargo ou gratificação, uma coisa simplesmente atribuída
informalmente por uma autoridade realmente constituída. Mas eu também
acho que tem aí algo muito específico do Judiciário. Eu diria que você no
caso era aquela criança que saiu engatinhando e enfiou o dedo na tomada,
por sorte que tava desligada (gargalhadas). Acho que o cara te viu pedindo
satisfação a ele e deve ter pensado: “esse aí tá é doido” (mais gargalhadas).
O Judiciário foi o lugar onde eu ouvi pela primeira vez a expressão: “manda
91

quem pode, obedece quem tem juízo”. E me lembro de ter ficado chocado
com esse dito.
Sr. D.: Você falou isso e eu me lembrei de outra situação. Ocorreu no
treinamento inicial para os psicólogos, foi o primeiro treinamento e uma
parte dele se deu através de aulas de juízes – uns cinco juízes, de diversas
áreas, vieram falar para essa turma de novos psicólogos e assistentes
sociais. De maneira geral, a experiência foi bastante tranquila, mas teve um
juiz que quis explicar para as pessoas como elas tinham que trabalhar. Aí
ele disse: “vocês têm que ver como é que o juiz com quem vocês vão
trabalhar decide, entender como ele pensa e já fazer o laudo conforme ele
pensa, pra vocês não ficarem frustrados, senão vocês vão escrever uma
coisa, ele vai decidir outra e vocês vão ficar muito frustrados”. Aí lá pelas
tantas, esse mesmo juiz mandou algo assim: “porque é assim. Por exemplo,
comigo. Comigo ninguém bate de frente, porque eu passo por cima”. Aí todo
mundo olhou para as pessoas que iam trabalhar com ele (risos). E logo em
seguida ele falou algo que se mostrou, com o tempo, pelo menos
parcialmente verdadeiro. Ele disse: “vocês podem estar achando que eu sou
o mau, mas na verdade eu tô mostrando pra vocês como é que funciona
aqui”.
Entrevistador: Traduzindo, era como se ele dissesse: “vocês podem achar
que eu sou o mau, mas na verdade eu sou bom, estou advertindo vocês
para evitar que vocês se deem mal”. Era como se nós fôssemos as
formiguinhas, e ele o elefante que esmaga formiguinhas.
Sr. D.: Sim, e é como se ele dissesse, “o que eu estou dizendo é para além
de mim, é próprio desse lugar onde vocês decidiram estar”. Não é que as
pessoas tenham perdido o sono por causa disso, mas essa fala deixou as
pessoas meio desconfiadas.
Entrevistador: Eu até acredito que ele acreditasse que estava sendo
“bonzinho” ali, fazendo uma advertência, né? Algo do tipo: “vejam onde
vocês estão”. Acho que o que o juiz fez foi incluir o componente de medo,
esse medo que pra mim talvez seja o componente mais perturbador do
trabalho no Judiciário. Perturbador, paralisante, antes de mais nada. Me
lembro do momento em que fomos lotados, estou falando da minha leva,
dos colegas que entraram comigo. Estávamos com a então juíza auxiliar
num auditório. Essa juíza, por sinal conhecida por ser tranquila, acessível,
humana, justificava por que os psicólogos da capital não seriam lotados
naquele momento. Nesse dia, somente os colegas do interior foram lotados.
Ela disse que não teve tempo de consultar os juízes a respeito das
carências de profissionais e que por isso não poderia lotar os psis que iriam
atuar na capital naquele momento. Foi quando uma colega, que na época
consideramos inadequada e grosseira, disse diretamente para a juíza,
externando o seu descontentamento: “ah, sei, na verdade você não se
organizou, né?”. Na época consideramos quase uma insolência dessa
colega, que por sinal não era lá muito simpática não. Mas hoje é que
percebo que por trás da inconveniência e da irritação da colega, o que
chocou na reação dela foi o fato de ela ter se colocado no mesmo patamar
que a juíza, ter falado de igual pra igual e ter deixado clara a insatisfação de
ter de sair dali sem saber qual seria a sua lotação. Essa ‘insolência’ chocou
nossa subserviência, entende? Bom, pelo menos a minha subserviência, já
que só posso falar por mim. Mas me lembro que a reação da colega irritou
todo mundo, não só a mim. Me lembro que me choquei até com o
tratamento dado pela colega à juíza, ‘você’, quando a própria magistrada se
dirigia a nós como ‘os senhores’. Ou seja, nós estávamos chegando, mas já
parecíamos bem ‘aculturados’, menos a colega, que acabou por despertar
indignação.

O termo “aculturados” está sendo utilizado no sentido de “já submetidos à


hierarquia institucional, ainda que recém-chegados”. Uma hierarquia bastante
verticalizada, que não admite questionamento direto à figura do juiz, haja vista a
92

opinião do magistrado que, de imediato, advertiu que “ninguém bate de frente


comigo porque eu passo por cima”.

Sr. D.:. Vou aproveitar o que você contou para falar de uma experiência
minha, anterior entrada no Judiciário. Namorei uma menina que fez um
concurso pra Justiça, pra um cargo de nível médio. Ela passou, foi lotada
num cartório e me contava as experiências dela, que ela achava horríveis,
tanto que ela acabou saindo do tribunal. E eu me lembro de uma coisa que
ela falava: “cara, a gente tem que chamar o juiz de ‘doutor’!” e eu dizia: “que
é isso?! Não brinca!” (gargalhadas). Aí uns dois anos depois eu entrei, e
aquelas conversas que a gente tinha voltaram, todo aquele aparato, tudo
aquilo voltado para a figura do juiz. Até acho que tem que ter um aparato, as
coisas precisam convergir pra ele pra funcionarem, mas é incrível como
esse aparato acaba ultrapassando a questão profissional. Tudo converge
para que o juiz tenha uma ascendência sobre tudo e sobre todos ali.
Entrevistador: Você tá me dizendo que é como se toda a estrutura
montada ali servisse para construir a ideia do juiz como essa figura todo-
poderosa...
Sr. D.: Sim, e isso se dá em vários níveis, até nas condições de trabalho,
salários, benefícios, toda uma situação diferenciada que eles têm. Essa
coisa que você falou do medo, que pode se expressar de modos diferentes,
né? Por exemplo, a gente já viu colegas que tiveram como ‘penalidade’
trabalhar longe de casa, bem longe, às vezes em outra cidade... é claro que
isso mete medo. Mas eu queria fazer uma ressalva: apesar de tudo, dessa
estrutura ainda vigente de produção de medo, eu acho que está
melhorando. Apesar de alguns episódios bem recentes (risos),
Entrevistador: Sim, não estou falando de uma realidade absoluta, tudo isso
que a gente tá discutindo é passível de furo, de escape, mas realmente me
causa estranheza que a instituição ainda abra espaço para a existência
desses ‘déspotas quase absolutos’ e para essas relações tão verticalizadas.
Sr. D.: Sim, mas é importante dizer que eu tenho conhecido juízes que têm
estabelecido outro tipo de relação com as pessoas, tanto com os
funcionários – que são administrativamente subordinados a ele – quanto
com as partes que compõem os feitos (as causas) judiciais. Toda a
discussão que os juízes fazem hoje, por exemplo, sobre a ideia de fazer
eleições diretas para o cargo de presidente do TJ. Uma eleição direta é algo
que foge do modelo ainda vigente, daquele pequeno grupo de
desembargadores mais antigos que votam e decidem sozinhos quem vai
presidir a casa. E o TJ do Rio de Janeiro, apesar de ainda não ter
modificado esse modelo, tem se mostrado bem favorável a esse tipo de
possibilidade.
Entrevistador: Tomara... (risos).
Sr. D.: Sim, já há coisas diferentes. Quando a gente entrou, não existia o
18
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e todo um questionamento que hoje
já se faz. Acho que isso cria um arejamento, junto com os próprios
movimentos da sociedade civil.
Entrevistador: Mas eu queria insistir nesse aspecto da produção do medo,
que acaba virando uma linguagem. Pergunto: como essa produção do medo
se reflete no teu trabalho? A mim o medo paralisa, eu tenho que fazer um
trabalho permanente comigo mesmo para continuar móvel, produtivo. Minha
tendência é a paralisação. Era isso a novidade que eu queria incluir no meu
trabalho: essa produção do medo, a construção da covardia no ambiente de
trabalho no Judiciário, como forma de perpetuar um contexto no qual a
autoridade é extremamente verticalizada e opressiva.

18 Órgão de controle do Judiciário: “O CNJ é uma instituição pública que visa aperfeiçoar o trabalho
do sistema judiciário brasileiro, principalmente no que diz respeito ao controle e à transparência
administrativa e processual”. Retirado da página inicial do site do CNJ, disponível em
<www.cnj.jus.br>.
93

Sr. D.: Eu acho interessante. Eu vou tentar pensar isso com você a partir de
dois acontecimentos. De uma maneira geral, eu não tenho a mesma
experiência que você. Mas eu vou falar de duas situações em que eu fui
atravessado não sei se pelo medo, mas por situações opressivas,
despotencializadoras. A primeira foi a única vez em que num ambiente
público, na frente de umas seis pessoas, um juiz gritou comigo.
Entrevistador: (JÁ GRITANDO) ELE GRITOU CONTIGO??!
Sr. D.: Sim, porque houve um mal-entendido com algo que eu
supostamente deveria ter feito, não em termos processuais, mas numa
divisão de tarefas relativa a um evento. Eu não fiz da maneira que
esperavam porque eu não tinha entendido que era pra ser daquela forma.
Nessa reunião, fui interpelado pelo juiz sobre o porquê de eu ter feito como
eu fiz. Eu expliquei que eu não tinha entendido que era pra fazer de outra
forma. E aí foi numa escalada, eu respondi, o juiz foi falar em cima da minha
resposta e aí, pra encerrar o assunto, o juiz deu um berro pra acabar a
história. E foi uma experiência assim, meio esquisita, né? Primeiro porque
não me lembro de outra situação, dentro ou fora do Judiciário, de alguém ter
gritado comigo, muito menos numa situação de trabalho. Depois desse
berro, eu fiquei calado. No início da situação, réplicas e tréplicas minhas não
tinham o intuito de colocar em xeque a autoridade dele, eu só queria
explicar que minha conduta não foi por descaso ou por falta de
responsabilidade.
Entrevistador: Você só queria explicar.
Sr. D.: Isso! Mas era um juiz interessante porque ele falava o que ele
pensava na hora, mas depois esquecia, sem mágoas (risos). A coisa seguiu
seu curso normal. Da minha parte, foi a mesma coisa, o incidente não
trouxe nenhum sentimento negativo que se prolongasse.
Entrevistador: Pois da minha parte traria! (risos).
Sr. D.: Teve naquele momento algo que achei estranho, inadequado,
desproporcional. Mas foi algo que passou, não foi nada que tenha me
marcado não.

Gostaria de destacar, deste momento do relato do Sr. D., uma postura que
me incomodou por considerá-la um tanto contraditória na maneira de avaliar o
incidente “grito do juiz”. Apesar de reconhecer o ineditismo do episódio (“não me
lembro de ninguém ter gritado comigo antes em situação de trabalho”), o
entrevistado se porta, no meu entender, de forma excessivamente condescendente
ao afirmar “tudo bem, sem mágoas”, chegando a realçar a postura do juiz, a quem
considerou como “interessante”. Sem querer criticar o posicionamento do meu
entrevistado (e já criticando...), seria pertinente destacar a forma como a discussão
foi encerrada, com um grito. Um grito que sufocou o que antes se fazia na ordem da
comunicação e da argumentação. Mais do que um mero incidente envolvendo
pessoas específicas e um contexto isolado, tal atitude pareceu perturbadoramente
ilustrativa de certo modo de funcionamento institucional, na qual a figura do juiz se
sobressai em sua imponência e autoridade.
Essa passagem, enfim, me remeteu à teoria foucaultiana da soberania. De
fato, destaco esse componente de medo, tão presente no contexto interno da
94

instituição e tão voltado às interações com a figura do juiz, que parece deter um
poder quase absoluto, soberano.
Foucault (2010a) analisa a questão do poder a partir de técnicas de
dominação, situando sua teoria da soberania no âmbito da monarquia feudal, que
serviu de instrumento para a constituição, consolidação e fortalecimento das grandes
monarquias. Segundo a teoria clássica da soberania, um de seus atributos
fundamentais diz respeito ao direito de vida e de morte, o que equivale a pressupor
vida e morte não como fenômenos naturais, mas localizá-las no âmbito do poder
político. O soberano era então aquele que detinha o poder de deixar viver e de fazer
morrer, e é por poder matar que o soberano exerce seu poder sobre a vida. A essa
primeira configuração do poder – o soberano – seguiu-se, ao final do século XVIII,
outra forma de poder, centrado em técnicas disciplinares, que individualizam e
estabelecem um saber sobre o corpo. Ao lado do poder disciplinar, e a ele
articulado, emerge o biopoder, centrado na ideia de população – e não mais de
indivíduo.
O destaque neste momento é ao que pareceu mesmo uma configuração pré-
disciplinar, que sugere a circulação, nas relações internas do Poder Judiciário, de
um poder com características soberanas. Entretanto, é imperioso apontar o que
Foucault adverte, em seu Seminário Segurança, Território, População (2008) acerca
dos três mecanismos propostos, o legal ou jurídico (arcaico), o disciplinar (moderno)
e o de segurança (contemporâneo): eles não funcionam em justaposições
sucessivas, como se a emergência do seguinte pudesse anular a vigência do
anterior. Nesse tipo de raciocínio por superação, adverte Foucault, perde-se o
essencial no sentido de entender que os mecanismos legais comportam elementos
disciplinares, que por sua vez envolvem um controle de segurança voltado não
apenas para a reforma do indivíduo, mas para o controle das populações: “A
segurança é uma certa maneira de acrescentar, de fazer funcionar, além dos
mecanismos propriamente de segurança, as velhas estruturas da lei e da disciplina”
(FOUCAULT, 2008, p. 14). O autor esclarece que “a soberania se exerce nos limites
de um território, a disciplina se exerce sobre o corpo dos indivíduos e, por fim, a
segurança se exerce sobre o conjunto de uma população” (op. cit., p. 16). Temos
então configurações de um poder que se exerce não através da superação do
modelo anterior, mas por dominância. Cada um desses mecanismos, em sua
emergência, não implica o desaparecimento daquele que seria o seu antecessor;
95

com o aperfeiçoamento das técnicas, o que vai mudar é a dominância, que altera o
sistema de correlação entre os três mecanismos de punição e controle: “os
mecanismos disciplinares não aparecem simplesmente a partir do século XVIII, eles
já estão presentes no interior do código jurídico-legal. Os mecanismos de segurança
também são antiquíssimos como mecanismos” (op. cit., p. 10). Somente nesta
perspectiva, faz sentido a compreensão do Judiciário como o espaço por excelência
das estratégias de poder-saber tipicamente disciplinares, mas que igualmente
comporta estratégias de segurança e controle da população e apresenta traços de
soberania, através da figura do magistrado, a quem se deve respeitar e obedecer de
forma quase absoluta.

Sr. D.: Essa experiência não foi nada que tenha me feito deixar de fazer
nada posteriormente, mas realmente foi algo que, quando eu olho pra trás,
me lembro disso como algo não adequado. Agora, a experiência que tive
bem recentemente, aí sim. Não foi nada ligada ao trabalho, à nossa
atividade fim. Mas ter passado pela experiência em que, sem saber o
motivo, sem ninguém ter olhado nos seus olhos pra dizer nada...
Você está desempenhando seu trabalho, com certo reconhecimento dos
seus pares e até de juízes com quem você trabalha (pausa). Aí alguém vira
pra você, no final de um dia de trabalho, e te diz: “vai pra casa aguardar sua
nova lotação, porque você não vai mais trabalhar aqui”. E você busca
respostas – seja com colegas, seja com juízes que poderiam te dizer o que
estava acontecendo – e não encontra, e ninguém vem te dizer nada. Aí
você fica em casa por uma semana ou dez dias sem saber qual seria sua
nova lotação e depois desse tempo simplesmente sai publicado no Diário
Oficial que você vai trabalhar em outra cidade. Hoje parece uma coisa
tranquila, por incrível que pareça, mas no momento em que eu vivi aquela
experiência foi uma das piores coisas que aconteceram na minha vida. Tive
realmente a impressão de que os caras podem fazer realmente qualquer
coisa com a gente.
Entrevistador: Eu poderia chamar essa tua experiência de kafkiana?
Sr. D.: Totalmente!
Entrevistador: Olha a imagem que eu fiz enquanto você me explicava o
acontecido: me pareceu um ataque que não se consegue identificar de
onde, como se você estivesse num quarto escuro e não pudesse ver nada.
Isso pra mim foi aterrorizante, mesmo. É um ataque que você não sabe de
quem, nem quando nem onde vai acontecer.
Sr. D.: E que você não tem como se defender. Não foi dada nenhuma
19
justificativa, então fica como se essa ‘entidade’, no caso, a Corregedoria ,
pudesse fazer qualquer coisa, sem precisar de justificativa. E eu nem sei
qual a palavra pra retratar aquele momento... eu fiquei tão fraco, que nem
era medo exatamente o que eu sentia. Só pra você ter uma ideia, eu estava
com uma pessoa amiga, que mora em outro estado e com quem eu vinha
me comunicando por skype. Essa pessoa ficou tão preocupada comigo que
ligou pra uma amiga comum nossa, aqui no Rio, pra falar sobre mim e pedir
a essa outra amiga que me procurasse, de tão abatido fisicamente que eu

19 A Corregedoria-Geral da Justiça é um órgão do Poder Judiciário, composto por um


Desembargador-Corregedor e um grupo de juízes auxiliares, cuja missão é “orientar e controlar as
atividades das diretorias-gerais, assim como fiscalizar as demais unidades, contribuindo para a
efetividade da prestação jurisdicional”, de acordo com o site da CGJ, disponível em
<www.cgj.tjrj.jus.br>.
96

fiquei. E sem dúvida, foi uma experiência que me fez mudar em relação ao
TJRJ.
Entrevistador: Dentro da nossa experiência no Judiciário, você nunca achou
que esse tipo de arbitrariedade fosse possível? Porque eu vivo assolado por
essa possibilidade, de ser vítima da força bruta no momento em que eu,
conscientemente ou não, contrariar qualquer interesse.
Sr. D.: Não. E os casos concretos que eu conheço sempre envolveram
algum tipo de discussão, de querela, a respeito do comportamento ou do
desempenho profissional. Eu nunca soube de uma punição vinda assim, do
nada – do nada pelo menos oficialmente. Acho até que pode ter tido alguma
coisa, mas nada me foi dito. Em outros casos, por mais absurdos que
pudessem parecer, pelo menos foi dito algo oficialmente a título de
explicação.
Entrevistador: Para mim, você está me fazendo uma descrição da força
bruta. E isso uma coisa que me desarma. É claro que ninguém vai
concordar, seja em que escalão for, com uma arbitrariedade dessa
natureza, ninguém vai dizer ou admitir que isso é plausível. Mas o que faz
questão pra mim é o fato de a instituição, de alguma forma e em algum
momento, ainda abrir espaço para a força bruta. Pra mim isso é muito
perturbador.
Sr. D.: Fora o fato de eu ter sentido o que senti, e o efeito desorganizador
de sofrer algo sem conhecer o motivo. E como é que uma instituição
denominada Justiça pode funcionar sem ouvir? No caso, sem ME ouvir?
Entrevistador: É aquela indagação que a gente se faz e ao mesmo tempo
se acha ingênuo: como a Justiça pode ser injusta? Quando eu digo que a
pergunta pode ser ingênua é porque ela talvez faça menção a uma outra
Justiça, que, essa sim, seria totalmente justa – uma consideração idílica,
pouco realista. Talvez, como resposta à indagação, a gente talvez possa
considerar uma Justiça constituída secundariamente – ou principalmente –
para ser injusta, contrariando todos os nossos ideais. Mas, independente
disso, existe algo próprio à Justiça que a gente espera que se cumpra, sem
dúvida.

A ideia de um Judiciário para além do ideal de fazer justiça está ligada à


reflexão foucaultiana de um poder historicamente constituído como gestor dos
ilegalismos. Neste momento da entrevista, o relato do Sr. D. evidencia aquilo que
chamarei de nostalgia de uma justiça justa, à qual pretendo me ater no final.

Sr. D.: Sim, produzir enunciados sobre determinado acontecimento. Não


pode haver evento sem enunciado, na Justiça. De outra forma, seria
kafkiano.
Entrevistador: E foi! (risos). Eu concordo com você que existem coisas que
sugerem pra gente uma mudança, um arejamento. Mas a gente está falando
de coisas que ainda acontecem. Como você acha que essas coisas – da
ordem do que eu chamei de força bruta – se refletem no teu trabalho?
Sr. D.: Até onde eu tenho consciência, eu não vejo um reflexo direto na
minha produção, mas a partir dessa experiência que eu passei (pausa), eu
percebo certo desinvestimento na inserção no TJ. Hoje eu quero trabalhar
bem, claro, mas quero fazer o que tem que ser feito. E acabou. Eu acho que
antes era um pouco mais do que isso, antes eu estava mais disposto a me
engajar em coisas novas no tribunal, contribuir mais. Hoje quero fazer meu
trabalho, na justa medida do que eu recebo.
Entrevistador: e essa justa medida envolve o quê?
Sr. D.: Estou falando de esforço, de ficar além do que eu teria de ficar, por
exemplo. Passar nove, dez horas no trabalho, pensando em coisas novas,
em como otimizar o serviço. Quando eu fazia isso, eu não entendia como
excesso de esforço, era a ideia de que pra implementar isso, nós
97

precisamos ficar aqui mais do que o tempo regulamentar de trabalho. Hoje


eu só ficaria além do meu horário se eu fosse obrigado, e não por acreditar
que meu esforço vai redundar na melhoria no trabalho. Agora, essa ideia de
paralisia que você trouxe, se fosse aplicada ao que eu disse, seria apenas
nesse sentido, e não no sentido que você deu. Pra mim, se o papel
esperado do meu trabalho chegar até ali, a paralisia é chegar somente até
ali. ‘Paralisia’ nem seria a palavra que eu utilizaria, é apenas pra fazer uma
aproximação com o que você trouxe.
Entrevistador: Você acha que a expectativa a respeito do que nós
psicólogos devemos fazer molda de alguma forma como vai se dar essa
prática? Acho até que isso é inevitável, estamos numa instituição com uma
situação concreta, com uma demanda, com prazos – existe uma
processualidade jurídica envolvida. Mas também existe uma expectativa
acerca daquilo que você possa dizer, e às vezes uma expectativa rígida.
Sr. D.: Hoje eu vejo isso da seguinte maneira: existem várias expectativas
(sua, das partes, do juiz, do promotor), mas hoje algo que eu considero ser
decisivo para essa formatação do trabalho da equipe técnica é o interesse
do juiz pelo funcionamento da equipe. Esse interesse vai se dar em função
de concepções, mas também de entendimentos. Por exemplo: o juiz tem o
entendimento de que deve ser criada uma nova rotina de trabalho. E por
quê? Porque ele acredita naquilo. E essa expectativa dele vai moldar o
funcionamento da equipe em prol da realização daquele objetivo. Se o juiz
não tem expectativa, ou pelo menos tem uma expectativa muito demarcada,
isso tem consequências. A equipe pode ficar perdida, e isso vai gerar tanto
problemas quanto benefícios secundários. Considero que um desses
benefícios seja a maior margem de liberdade para trabalhar, caso o técnico
tenha uma ideia de como deve atuar. Caso o juiz tenha expectativas quanto
ao trabalho, isso vai orientar o funcionamento da equipe, mas a margem de
liberdade vai ser mais estreita.
Entrevistador: Eu nem acho que esse seja o pior dos mundos, até porque,
dentro desse espaço mais limitado, existe também espaço para a
negociação, fora em casos muito excepcionais, que a gente até conhece
mesmo que não se torne vítima deles, porque esses casos se tornam
mesmo conhecidos. Agora, do âmbito da realização, vamos passar para o
âmbito da concepção. Quando a gente faz essa mudança de enfoque, você
acha que isso muda alguma coisa?
Sr. D.: Como assim?
Entrevistador: Falo de uma mudança de raciocínio: de uma expectativa do
juiz em relação ao que você possa FAZER para uma expectativa do juiz em
relação em relação forma como você deva PENSAR ou CONCEBER aquela
situação jurídica que se apresenta.
Sr. D.: Pra mim, a expectativa do juiz é sempre em relação a uma
realização. Só que, óbvio, isso passa por uma certa concepção, mas é uma
concepção subordinada a uma ideia de realização. O x da questão é o
desempenho.
Entrevistador: Você não acha que a concepção vem antes da realização?
Você não acha que a concepção deságua na realização?
Sr. D.: Não sei se em termos de realidade é assim. De fato, o operador
jurídico tem algumas concepções em relação aos papeis ou àquilo que
psicólogo e assistente social podem oferecer. Só que ele vai alinhar isso ao
que ele acredita que precisa ser realizado. Se ele entender que há um
distanciamento, ele vai ver de que maneira isso vai poder ser alinhado, ele
vai tentar aproximar...
Entrevistador: Fazer uma pressão...
Sr. D.: Exatamente, como qualquer um faria. Se você é tomado pela ideia
de que algo precisa acontecer, é assim que as coisas costumam se dar. Eu
vou dar um exemplo, acho que você se lembra dele, que junta esta
conversa com a que a gente estava tendo antes. Um juiz da área criminal
determinou a realização de estudo psicológico com um réu preso, estudo
esse que deveria envolver o acompanhamento do trabalho da colega por
98

um assistente técnico da parte a ser avaliada, indicado por essa parte, claro.
A colega fez uma exposição de motivos falando que era inadequada a
presença do assistente técnico, mencionando o documento do Conselho
Federal de Psicologia que proíbe a presença de assistente técnico na
perícia. O juiz então novamente determina o estudo psicológico com a
presença do assistente técnico; caso contrário, a psicóloga perita, nossa
colega, seria presa. Aí eu não sei se a gente pode falar em “concepção”
acerca do que o perito pode fazer...
Entrevistador: Isso não é mais concepção de nada, é pura força bruta
(risos nervosos).
Sr. D.: É aí onde quero chegar. Porque do que ele entendia que podia ser
feito, ter ou não ter assistente técnico era até secundário, na minha opinião.
Ele não esclareceu com a colega por que deveria ser daquela maneira,
havia apenas algo a ser realizado, da maneira como ele entendia que
deveria ser realizado. Nesse caso concreto, isso moldou a forma como o
trabalho foi realizado, ou seja, a psicóloga realizou o trabalho dela com a
presença do assistente técnico...
Entrevistador: Claro! Ou então ela ia presa! (gargalhadas nervosas!). Eu
acho que esse é o típico exemplo de força bruta...
Sr. D.: Por isso que eu falei que o exemplo junta nosso assunto atual com o
que discutíamos anteriormente.
Entrevistador: Acho até que existem os meandros jurídicos, que, apesar de
estarmos lá, muitas vezes passam batidos pra gente, porque a gente muitas
vezes não os conhece. Acho até que esse juiz quis assegurar que o
procedimento envolvendo o réu não pudesse depois ser questionado ou
mesmo impugnado, anulado, pela ausência do técnico da parte (assistente
técnico). Mas a FORMA como isso se dá é que é o diferencial, é o que
coloca o ato desse juiz no âmbito da força bruta.
Sr. D.: Isso, exato!
Entrevistador: E isso não é pouco, porque uma situação como essa nos dá
a impressão de que no Judiciário não existe instância de comunicação, mas
apenas instâncias de mando, de determinação.
Sr. D.: Mas sinceramente... – e veja como eu preciso acreditar nisso (risos)
–, eu acho que não são experiências majoritárias.
Entrevistador: Controverso isso...
Sr. D.: É como eu disse, preciso acreditar nisso (risos). Mas eu quero
acreditar, do que ouço dizer diretamente, acho que são experiências
minoritárias, o que não quer dizer...
Entrevistador: O que não reduz o seu impacto.
Sr. D.: Sem dúvida. Também não quer dizer que o funcionamento dessa
instituição não seja ainda hoje muito opressivo. É muito visível como o
Judiciário de fato garante direitos, é uma máquina importante para a
sociedade. Mas ao mesmo tempo, é algo que no seu cotidiano ainda é
muito opressivo, sobretudo com aqueles que não se situam numa
determinada faixa da estratificação social. E isso não é algo exclusivo do
ator jurídico, isso somos todos nós, o modo como muitas vezes a gente
atende o usuário. Às vezes a gente atende mal, e não estou falando só de
equipe técnica, basta ver o atendimento dos servidores nos cartórios, por
exemplo. A pessoa chega ao Judiciário sem conhecer nada, sem saber a
quem se dirigir, e fica mais perdida ainda, não há um fluxo institucional que
possa receber e informar essa pessoa. Então não são somente os
operadores jurídicos os agentes dessa violência, dessa opressão. Somos
nós também, às vezes de forma não deliberada.
Entrevistador: Será que você faz menção a uma violência disseminada,
generalizada?
Sr. D.: Talvez a pergunta que eu fizesse fosse a seguinte: até que ponto, de
fato, a gente olha para as demandas que as pessoas trazem? Porque essa
pessoa está sendo capturada na lógica codificada da realidade jurídica que
“corresponde” àquela demanda, então algo da demanda original da pessoa,
das suas expectativas, está perdido. É capturado pela máquina.
99

Entrevistador: Então ela tem de se adequar à máquina.


Sr. D.: Mas ela não sabe disso. E nós que sabemos, apesar de sabermos,
também somos capturados por essa lógica jurídica, que vai moldar a forma
como a gente vai se relacionar com essa pessoa que chega, esse usuário
do sistema. Um exemplo: há uns quinze anos, na Vara da Infância e da
Juventude (VIJI), se chegasse um casal homossexual querendo adotar, iria
ouvir da própria equipe técnica: “não, não pode”. Mas, de doze anos pra cá,
pela mobilização social, o aparato judicial passa a dizer: “Sim, é possível”.
Aí a equipe técnica também diz: “Sim, pode”. (risos).
Entrevistador: Acho que você tá sendo um pouco cruel com a equipe
técnica (risos)... você está querendo dizer que “a lei mete medo”, é isso?
Que enquanto não havia respaldo dado por um juiz, apenas cabia às
equipes obedecer às determinações legais? Não se esqueça de que as
equipes técnicas tiveram um papel no sentido de acolher aquelas pessoas
“solteiras” que chegavam pra adotar, que ocultavam os companheiros (as)
do mesmo sexo.
Sr. D.: mas eu insisto: existe uma lógica, uma concepção, que dita o
funcionamento da máquina, e muitas vezes nós, que somos ‘inquilinos’
desse lugar, muitas vezes tomamos e tornamos essas concepções
definitivas e naturais.
Entrevistador: Você não acha que esse pode ser mais um aspecto do
medo, de que a gente vem falando aqui?
Sr. D.: Não sei se é uma questão de medo.
Entrevistador: Eu acho que é, eu diria que é um temor de estar em
desacordo. Aí o resultado é a obediência. Acho que existe uma
preocupação muito grande em estar de acordo com o que se espera, e isso
pra mim tem a ver com o medo. O Judiciário surge como esse lugar do
cumprimento, da observância daquilo que deve ser realizado.
Sr. D.: Eu acho que existem situações que dizem respeito diretamente à
experiência de medo, inegavelmente. Agora, acho que, em outras
situações, trata-se de uma experiência anterior a isso. Talvez seja uma
necessidade tão grande de adequação que a experiência de medo nem vá
se colocar, nem apareça.
Entrevistador: Sim, com certeza. Talvez seja outro aspecto do medo,
aquele imperativo do cumprimento da ordem, aquela subserviência
excessiva de quem acredita que só lhe cabe obedecer. Eu já ouvi colegas
dizendo “eu faço o que o juiz manda”: muito temerária e perigosa uma
afirmação como essa, já ouvi isso da boca de psicólogos e de assistentes
sociais. Por um momento, essa pessoa parece se esquecer até de que
existe um Código de Ética Profissional! Acho que a História já nos forneceu
exemplos muito tristes daquilo que se pode fazer em nome do “cumprir
ordens”, do “estar de acordo”.

A história nos mostra como a “observância cega” a determinações superiores


pode desaguar em situações extremas, como, por exemplo, a prática da “solução
final” contra os judeus por parte do regime hitlerista. Hanna Arendt (1999), que
cobriu o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Jerusalém, observou uma total
subserviência a ordens superiores, levadas à condição de lei, o que a fez postular a
ideia de “banalidade do mal”.

Sr. D.: Mas eu me refiro a coisas que eram tão “naturais” na época, como o
exemplo de casais homossexuais no procedimento de adoção. Passa por
uma naturalização, não consigo ver neste exemplo a questão do medo.
Entrevistador: Talvez o que eu chame de medo você chame de
conformidade. Submissão pra mim também é medo.
100

Sr. D.: Você usa esse termo, “conformidade”, eu o acho bem adequado. Por
exemplo: na vara onde atuo, diante de alguns pedidos que os
jurisdicionados fazem, quando você sabe que aquele juiz com quem você
trabalha não vai atender aquele pedido, você faz o quê com isso? Isso
acaba moldando o seu trabalho. Mas eu nem sei se é medo. Eu não iria
sofrer nenhuma sanção se eu colocasse no relatório esse pedido, mas eu
de antemão já não coloco, porque é inócuo. Isso vai moldar a experiência
de trabalho. Nem acho que isso seja necessariamente negativo. Nesse
exemplo, eu sei que o juiz considera que aquele tipo de pedido não seria
viável naquela serventia. Eu acho que a gente é muito mais atravessado do
que a gente imagina, ou gostaria, pela engrenagem da máquina judiciária.
Entrevistador: Mas será que pra gente só caberia isso, entrar na máquina?
Sr. D.: Olha, pra mim hoje é o seguinte: não adianta remar contra a maré.
Você pode talvez diminuir o fluxo, ficar um pouco na margem, tentar deter a
velocidade da correnteza. Mas dizer que se pode remar contra a corrente é
muito complicado. Acho que nosso papel é muito mais o de dizer coisas que
não seriam expostas em outro lugar, levantar questões que não
apareceriam em outros espaços. Você como psicólogo tem a oportunidade
de apresentar uma voz que talvez não aparecesse em outro lugar.
: Isso não é muito pouco?
Sr. D.: talvez, pode ser pouco, pode ser uma tolice, mas acho que é um
papel, é um trabalho possível. Vai ter um balizamento diferente, talvez faça
alguma diferença. Porque a gente também pode cometer equívocos por se
achar muita coisa. Por exemplo, em situações específicas, a gente pode
fazer grandes besteiras quando se coloca no lugar de garantidor dos
direitos da infância desprotegida. Simplesmente não dá pra ter tanta clareza
assim a respeito do que é melhor para as pessoas, é bom mesmo que a
gente não tenha essa clareza, a gente pode fazer barbaridades por achar
que tem.

Considero que o entrevistado, neste último momento de seu relato, alude ao


fato de que apontar caminhos pode trair uma intenção autoritária, apontando o
quanto as melhores intenções podem trazer em seu bojo objetivos no mínimo
questionáveis. De fato, apontar caminhos que seriam mais adequados pode refletir e
mesmo reproduzir os mecanismos do poder. Esse último trecho do relato do Sr. D.
pareceu bastante elucidativo do quanto as estratégias de saber-poder, produtoras
dos especialismos e das disciplinas, encontram-se a serviço do poder. Analisando o
papel do intelectual, Foucault e Deleuze (2003) rechaçam a ideia de que caberia a
este o papel de conduzir as massas no sentido da liberdade pelo fato de deter um
saber elaborado e, portanto, superior. Para ambos, as massas não necessitam do
intelectual para saber, um vez que essa superioridade forjada no conhecimento é
produto de estratégias próprias à constituição do poder; ao intelectual caberia,
contrariamente, “lutar contra as formas de poder” (op. cit., p. 39), denunciando o
caráter totalizador do conhecimento, que dá margem precisamente à manutenção do
status quo. Para Deleuze (2003), a noção de reforma é hipócrita e seria indigno falar
pelos outros.
101

O pensamento radical de Jean Genet também denuncia, no texto A criança


criminosa, semelhante indignidade. Genet busca “fazer ouvir a voz do criminoso”
(2014, p. 1), extraindo dela a sua verdade. O escritor francês busca denunciar a
violência das chamadas casas de correção para menores, que revelam uma
pretensão higiênica tola, impositiva e totalizante. O jovem criminoso é um ser que
rejeita uma sociedade contra a qual se insurge, ao praticar o ato criminoso. Esse
jovem não quer o bem, não busca a inserção em um contexto social que o rejeita,
mas deseja o rigor, dotado de uma “necessidade impaciente de heroísmo” (idem, p.
3). Sua crueldade não seria uma forma de denunciar o caráter repressivo das
instituições correcionais; antes disso, espelharia o ardor do menino pelo mal,
entendido como a “audácia de seguir um destino contrário a todas as regras” (idem,
p. 4).
Genet aponta a dimensão autoritária da disciplina, que recebe, devidamente
suavizada, o nome de reabilitação. Dessa forma, a sociedade busca neutralizar os
elementos que deveriam denunciá-la e corrompê-la, modificando a propensão pelo
mal, “esse gosto da aventura contra as regras do bem” (idem, p. 7). O autor afirma
ser necessário disposição e ousadia para se opor a uma sociedade tão forte no
sentido de suas determinações adaptativas e docilizantes, produto da onipotência
normalizante e unificadora do mundo. De sua parte, Genet garante: “estarei do lado
do crime” (idem, p. 10), reafirmando sua determinação no sentido de disseminar a
força do mal e romper com uma moral indigna. A criança criminosa não necessita do
cuidado nem deve submeter-se “à enorme força física e moral da lei” (idem, p. 13).
O discurso de Jean Genet é um libelo contra esse poder totalizante, que
pretende romper com a lógica da conciliação e dos reformismos, denunciados como
estratégia de domesticação. Suas ideias são necessárias para pensarmos no quanto
nossa prática pode estar impregnada de um reformismo que, longe de subverter,
propõe e impõe a continuação da lógica da dominação presente nas estratégias do
poder.

4.3.1 O Sr. D. e a nostalgia de uma justiça justa

O relato do entrevistado revelou em alguns momentos, para além do


inconformismo contra atitudes impositivas e autoritárias, uma marca que resolvi
chamar de nostalgia por uma justiça que deveria (e poderia) de fato disseminar a
102

justiça. A genealogia foucaultiana situa o advento histórico dos tribunais modernos


como forma de gerir os ilegalismos, na passagem de uma sociedade monárquica,
representada pelo poder da figura do soberano, para o advento do capitalismo. A
partir de agora, caberá ao poder criar estratégias para lidar com a nova configuração
econômica que emerge a partir da derrocada do Antigo Regime. O poder necessita,
nessa mudança, controlar os insumos, as máquinas e as ferramentas, bem como os
produtos da nascente industrialização, de forma a garantir o lucro e a propriedade do
sistema. Torna-se vital controlar os corpos, constituindo deles um saber que os
subscreva e os torne aptos ao trabalho e à geração do lucro.
Foucault situa aí o nascimento do poder disciplinar, voltado à individualidade
dos corpos e à maximização da força de trabalho. Mas como conter a imensa horda
de vagabundos e inadaptados de toda ordem? A resposta se dá pela instituição da
prisão como entidade punitiva por excelência, bem como pelo aparecimento da
figura do delinquente como a categoria que pode unificar e controlar todos os tipos
até então difusos de inadaptação, reunindo-os sob a rubrica da delinquência, agora
objeto de conhecimento e controle. O sistema capitalista – e sua vertente judiciária –
estabelece assim sua forma, pelo poder do conhecimento e da punição, sua
consolidação e hegemonia.
O movimento abolicionista penal estabelece uma crítica à justiça criminal,
denunciando seu caráter punitivo por excelência. O magistrado e jurista holandês
Louk Hulsman aponta a dimensão normativa, injusta e mesmo desumana desse
dispositivo, questionando o conceito de criminalidade e a categoria do criminoso,
para os quais a justiça encontra-se autorizada a fornecer uma resposta ainda
excludente, baseada na ideia de pena. O juiz rechaça a natureza ontológica de
crime e criminoso, afirmando seu caráter de excepcionalidade: “a organização
cultural de referência separa artificialmente alguns indivíduos de seu meio ambiente
e separa pessoas que se sentem vitimadas das pessoas que são consideradas
nesta situação específica como violadores. Neste sentido, a organização cultural de
justiça criminal cria indivíduos fictícios e uma interação fictícia entre eles”
(HULSMAN, 2003, p. 199). O autor aponta uma hierarquia de gravidade que não diz
respeito à realidade intrínseca ao crime, mas está baseada numa classificação
determinada pela estrutura da justiça criminal (op. cit.).
Louk Hulsman considera que a burocracia dos procedimentos legais da
justiça criminal tende a desumanizá-la, demonizando a figura do criminoso e, dessa
103

forma, fornecendo substrato moral à necessidade de punição. Assim, os atores – o


autor do delito e sua vítima – mantêm-se em posições opostas e engessadas, o que
impede o trânsito e a interação entre eles, reforçando estereótipos e impedindo os
indivíduos de assumir a responsabilidade pessoal por suas atividades. A política
criminal trabalha, assim, de maneira excludente e discriminadora, o que torna difícil
pensar a questão como parte de uma política social mais ampla. O autor propõe a
substituição do termo crime por situação problemática, inserindo o questionamento
da realidade produzida pela justiça criminal.
Hulsman propõe o respeito à diversidade como forma de suplantar as
categorias estereotipadas criadas a partir do ordenamento jurídico penal. Sugere a
construção da “tolerância para com diferenças no estilo de vida” (op. cit., p. 210),
que abra espaço para outros modelos de responsabilização, “tais como o
educacional, o compensatório, o terapêutico e o conciliatório” (ibidem). Essas
alternativas poderiam, na opinião do jurista holandês, fornecer um “berçário para
novas práticas e novos sistemas de referência” (idem, p. 212). Acredita ele que tais
iniciativas poderiam fazer desaparecer a cultura que permanece como substrato da
justiça criminal. Esta passagem do pensamento de Hulsman pode fornecer
fundamentação para uma perspectiva reformista da instituição penal – e
consequentemente para a ideia de uma justiça justa –, ainda que Hulsman insista na
necessidade de transformar essa cultura punitiva que cria a figura do criminosos e a
realidade ontológica do crime.
Igualmente partidária do abolicionismo em matéria penal e tradutora de Louk
Hulsman, a juíza de direito carioca Maria Lucia Karam acentua do jurista holandês a
sua defesa intransigente de uma postura mais humana nas situações problemáticas
e conflituosas do sistema penal, que elimina a liberdade e só consegue produzir
mais violência e danos (KARAM, 2009). Segundo a magistrada, um mundo liberto do
sistema penal é um mundo mais justo, mais solidário e humano, no qual ninguém
poderá ser submetido à pena cruel da privação da liberdade. O acionamento do
sistema punitivo cria uma engrenagem na qual determinadas condutas são
selecionadas como crimes, o que engendra a figura estereotipada do criminoso
como um pária social: “a enganosa publicidade do sistema penal oculta a realidade
do caráter puramente político e historicamente eventual da seleção de condutas
chamadas de crimes” (idem, p. 40). Evocando o pensamento de Hulsman, é a lei
que cria o criminoso, uma figura historicamente datada, produto de uma linguagem
104

demonizadora, que trata de justificar a ação pesada do sistema. O acontecimento


chamado de crime, retirado de seu contexto, pressupõe a figura presumidamente má
do criminoso, antecipadamente condenado. Trata-se de um sistema que coloca em
ação a vingança como a linguagem por excelência, suscitando a emergência de
sujeitos sociais competitivos e destrutivos, que comemoram a punição e não
percebem a dimensão política dessa prática, essencial à manutenção do poder. O
homem tornado criminoso, excluído do convívio social, não pode ser solidário com
um “sistema penal que endurece o condenado, jogando-o contra a ‘ordem social’ na
qual pretende reintroduzi-lo” (idem, p. 43). A questão que emerge deste momento do
raciocínio da autora é: será que esse sistema pretende tal reinserção e trabalha para
retirá-lo da condição de persona non grata do meio social? A autora acredita que
não, pois o sistema penal trabalha para viabilizar o exercício violento de doloroso do
poder punitivo. Karam, dessa forma, destaca a irracionalidade da punição, outro
aspecto caro ao pensamento de Hulsman. A solução, destaca Karam, seria a
abolição do próprio sistema penal com seu poder de punir e de privar de liberdade.

4.3.2 Abolicionismo, abolicionismos...

Louk Hulsman é considerado a grande referência do pensamento


abolicionista, que teria como precursoras, segundo Passetti (2008a), as ideias de
Stirner e Godwin, bem como as análises de Foucault sobre as prisões e as
considerações deleuzianas a respeito da sociedade de controle. Passetti chama de
libertária a sua vertente do abolicionismo, grandemente influenciado pela teoria
anarquista. Os abolicionistas anarquistas defendem uma guinada mais radical do
pensamento abolicionista, uma vez que criticam todo pensamento e ações de cunho
reformista ou conciliador, presentes das práticas atualmente vigentes na justiça
criminal. Edson Passetti (2003, p. 178) afirma que “é preciso ser rebelde”, evocando
os ideais libertários de Proudhon como uma radical tomada de posição não no
sentido da reforma social, mas de uma transformação que possa abolir a
desigualdade e a exploração entre os homens, que se estabelece a partir da
instituição-Estado. O pensamento anarquista pretende abolir esses territórios
firmados a partir da consolidação do poderio estatal. Para haver uma sociedade
igualitária, os anarquistas propõem a abolição da autoridade centralizada: “é a
revolta contra a autoridade central que fortalece a liberdade e instiga as novas
105

relações horizontalizadas abreviando sociabilidades autoritárias a cada nova


associação que se efetiva” (PASSETTI, 2003, p. 180).
Os anarquistas propõem a abolição da autoridade central presentificada no
Estado e a ideia de “saber superior” ou “elaborado”, bem como as verdades
apregoadas por cientistas e religiosos. A ideia é criar descontinuidades, abolindo
hierarquias e potencializando as livres manifestações. Lembrando Bakunin, Passetti
é um defensor dos livres fluxos: “nada é fixo, constante e imutável” (ibidem). O autor
afirma que liberdade e autoridade vivem em tensão, negando a possibilidade de uma
síntese pacificadora – e integradora – entre liberdade e justiça. Só a rebeldia e a
emancipação humana poderão garantir uma sociedade igualitária, sem a falsa ilusão
de paz apregoada pelos estados e seus regimes políticos. Passetti reforça a ideia de
que a proposta de emancipação humana não pode ser tratada como uma utopia ou
ilusão futurista, e sim “uma criação no presente” (ibidem, p. 181). Passetti refuta os
estereótipos criados a partir da figura do anarquista, visto como alguém perigoso,
agitador ou mesmo um terrorista, assim como a noção de anarquia como sinônimo
de bagunça.
O movimento anarquista propõe uma visão crítica até do pensamento de
esquerda, particularmente no que se refere a um certo socialismo de inspiração
estatista: “estes socialistas teóricos e estatistas apenas colaboraram para
redimensionar e recriar o próprio capitalismo”, razão pela qual os reformismos de
qualquer natureza, que permaneçam com a vertente estatista inalterada, são
denunciadas em seu aspecto continuísta e mantenedor do poder estatal. Passetti
lembra, entretanto, a defesa de Proudhon do regime democrático. Para este último,
a democracia seria o regime mais livre dentre aqueles estabelecidos a partir do
poder centralizado do Estado, uma vez que permite, em seu bojo, a manifestação de
associações e práticas libertárias. Essa livre manifestação torna possível a criação
de micro núcleos de vivência libertária, ensejando condições para seu aparecimento
e florescimento. Segundo Passetti (2008a, p. 182), “na democracia é possível
experimentar a anarquia, não como concessão, mas como realização”. O regime
democrático apresenta, então, essa contradição, essa dupla face: ao mesmo tempo
em que é o regime por excelência para manter a dominação, mascarando-a sob o
véu da liberdade e da livre manifestação – algo impensável aos regimes totalitários,
à esquerda ou à direita –, oferece a oportunidade para efetivos exercícios libertários,
instigando a superação das práticas hierárquicas verticalizadas e representativas.
106

Passetti afirma, fugindo aos estereótipos sobre o termo, que o anarquista é


mesmo um ser perigoso, pois ameaça o instituído e não se contenta em reformá-lo
ou recriá-lo. Sua rebeldia é sempre tensão, imperfeição e descontinuidade. Neste
sentido, o pensamento anarquista não pode aceitar uma educação hierarquizada e
centralizadora, destinada à formação de identidades docilizadas; o anarquismo
refuta confinamentos de qualquer ordem, não podendo compactuar com qualquer
prática unificadora: “se para uma vida igualitária é preciso rebeldia, cada um deve
ser único entre os anarquistas, um diferente”. (ibidem, p. 184).
Passetti acentua o fato de que o pensamento anarquista também resiste à
ideia de provocar confrontos, contestando a ideia de uma transformação que se dê
“por decreto”, mudando as leis ou reformando as instituições – como apregoam os
democratas – ou a partir de uma revolução que possa trazer uma “nova” realidade,
mas igualmente verticalizada e centralizada – como querem os socialistas-estatistas.
O autor faz uma sutil crítica inclusive às práticas de confronto com o status quo, uma
vez que “os anarquismos coexistem sem duelar por hegemonia” (ibidem, p. 186).
Anarquia é diversidade, é descontinuidade, é a dissolução das identidades e das
centralidades, que se estabelece no presente pela diversificação das condutas e
pela concepção do humano em sua singularidade radical, irredutível a qualquer
modelo ou a qualquer tentativa unificadora.
A partir de sua vertente anarquista, Passetti (2006) concebe o abolicionismo
penal como uma prática libertária interessada em arruinar a cultura punitiva,
entendida como ressentimento e vingança e estabelecida com ênfase no
aprisionamento. Como os abolicionistas penais em geral, a natureza essencial e
ontológica da noção de crime refutada, uma vez que se busca a explicitação das
forças históricas que tornaram possível a consolidação dessa ideia. A proposta é a
desnaturalização das práticas e das concepções, na qual as infrações passam a ser
tratadas não mais como delinquência, mas como situações-problema – o termo é de
Hulsman – consideradas em sua singularidade. Trata-se aqui de denunciar a falácia
da ideia tanto de crime quanto de indivíduo criminoso e perigoso, vistos como
criações históricas a serem desconstruídas.
O abolicionismo penal de cunho libertário desconfia dos reformadores e das
práticas reformistas, na sua concepção continuísta que só contribui para
“aperfeiçoar” – e perpetuar – a lógica da punição e do encarceramento. Esse
pensamento reformista, por vezes de cunho socialista, trata de associar
107

criminalidade a condições insatisfatórias de vida, concebendo ou reforçando a ideia


de populações vítimas, que deveriam receber a atenção e as ferramentas do Estado
no sentido de superar suas carências e se colocar a favor da ordem social.
Amparando-se no pensamento de Gilles Deleuze, Passetti aponta o deslocamento
operado na sociedade disciplinar: agora não se trata somente de estabelecer um
controle a partir da individualização dos corpos, mas de estabelecer estratégias de
controle sobre territórios e populações, engendrando, precisamente, as noções de
território e população. A emergente sociedade de controle seria então uma
sofisticação do poder instituído a partir da sociedade disciplinar, localizado e
centralizado, o que, nos lembram Foucault e Deleuze, propiciavam a eclosão de
resistências de várias ordens em torno desses imperativos de domesticação
centralizados e individualizantes. O controle, agora, se espalha sobre o tecido social,
criando fluxos de controle a céu aberto: “na sociedade de controle, o corpo não é
prioritariamente o alvo produtivo e obediente; nela importam fluxos, importam
inteligências. E estas nem sempre se acomodam em corpos a serem disciplinados”
(PASSETTI, 2006, p. 87).
Na sociedade de controle, o poder se dissemina e se desdobra, dando ensejo
ao aparecimento de outras manifestações da justiça estatal punitiva, dessa vez,
aparentemente, sem aprisionamentos. Tal reforma, entretanto, não abole a lógica
punitiva da sociedade disciplinar, mas apenas mascara o componente marginal da
ideia de crime. Dessa forma, o direito penal se expande para além dos muros da
prisão, reforçando ou mesmo inaugurando a noção se segurança: “a linha direta que
havia entre infração e prisão agora é transformada em um fluxo que absorve, expele,
modifica e transforma” (idem, 2006, p. 88). Nesse novo contexto, aponta o autor, a
pena é substituída pela medida, deixando cada vez mais – pelo menos em suas
intenções – o cárcere para aqueles crimes ditos de maior potencial ofensivo e para
os criminosos ditos irrecuperáveis. As instituições judiciárias e as ciências humanas
acompanham e confirmam essa nova configuração, propondo as chamadas medidas
alternativas e investindo em técnicas modificadoras de comportamentos e costumes,
numa sofisticação que mantém inalterada a lógica punitiva e disciplinar. O sistema
penal agora opera pela seletividade, construindo como alvo principal as populações
pobres, tornadas marginais e perigosas em potencial, a serem, por este motivo,
passíveis da ação preventiva e controladora do poder estatal: “permanece, todavia,
108

inabalável a secular crença na associação pobreza-periculosidade” (idem, 2006, p.


96).
Passetti, a despeito de toda a admiração que manifesta pelo pensamento de
Louk Hulsman – o que o faz recomendar como fonte de inspiração qualquer palavra
proferida ou escrita pelo jurista holandês –, esboça uma sutil crítica à ênfase deste
último em modelos alternativos à universalidade da lei, afirmando que, desta forma,
“Hulsman nos remete a trajetos que podem vir a ser imobilizadores” (PASSETTI,
2006, p. 103). As chamadas penas alternativas, neste raciocínio, operariam, a
pretexto de legitimar um discurso não encarcerador, a mesma lógica punitiva que
pretendem questionar. Considera Passetti, entretanto, que a chamada justiça
restaurativa pode ser pensada como algo possivelmente mais próximo do
abolicionismo penal. Esse modelo, que privilegia a mediação e a formação de
núcleos comunitários e extrajudiciais de resolução de conflitos, pode sim conter o
gérmen de novas práticas, que por sua vez podem levar à obsolescência da justiça
punitiva. A justiça restaurativa (JR), iniciada na década de setenta do século
passado em países anglo-saxônicos – como o Canadá e a Nova Zelândia –,
encontra-se em funcionamento no Brasil há pouco mais de dez anos. De acordo com
o site do CNJ20, a justiça tradicional, de ênfase punitivo-correcional, resolve apenas
o aspecto jurídico dos conflitos tornados questões judiciais, deixando em aberto
outros importantes aspectos das problemáticas. Desta forma, a JR propõe um
processo colaborativo para a sua resolução, envolvendo a participação de infrator e
vítima em um processo de reparação dos danos causados pelo primeiro à última. A
JR não anula o cumprimento da pena tradicional, mas pode envolver até a não
judicialização do conflito, nos casos de crimes de menor potencial ofensivo. O
objetivo é estabelecer um acordo reparador dos danos causados, através da
interação entre o autor e sua(s) vítima(s), assistidos por um mediador que
normalmente não é um magistrado.
A ideia de trazer elementos do pensamento abolicionista e anárquico teve
como objetivo desvelar, por via de um pensamento vibrante e radical, a ideia de que
o sistema prisional pode ser reformado no sentido de alcançarmos um estado
diferenciado de justiça. O direito penal e sua vertente mais visível e cruel, a punição,
não se constituíram historicamente nem existem para promover a justiça, o que nos

20
Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/62272-justica-restaurativa-o-que-e-e-como-
funciona>.
109

faz questionar a ideia de uma justiça – concebida aqui em sua dimensão de justiça
criminal, mas passível de ser estendida a outras formas – que possa ser justa. Mas
cumpre levar em conta, decerto, que estas ideias, da forma como estão aqui
esboçadas, podem pecar por generalização, uma vez que, da mesma forma que
podemos conceber distintos abolicionismos, também podemos supor diferentes
justiças, coexistindo e afetando-se mutuamente.

4.4 A Sra. E. ou a corda que sempre arrebenta para o lado mais fraco

Entrevistador: Como você já sabe, essa nossa conversa faz parte da


minha tese de doutorado. Quero conversar a respeito de processos de
trabalho, de incômodos. Inicio nossa conversa te perguntando sobre a tua
trajetória profissional e o que te fez pensar em ser psicóloga do Judiciário.
Sra. E.: Trajetória desde a graduação?
Entrevistador: É, pode ser.
Sra. E. Bom, me formei pela Uerj. E os meus estágios na faculdade foram
mais na área hospitalar e em hospital psiquiátrico. Então eu achava que ia
seguir esse rumo. Uns seis meses depois de formada, comecei a trabalhar
em uma instituição de acolhimento de crianças. Lá era tudo o que eu não
tinha vivenciado na faculdade. Na minha época de faculdade, até já existia a
disciplina de psicologia jurídica, mas estava no início. Era uma disciplina
eletiva e eu acabei não fazendo. Não vivenciei nada na faculdade e acabei
indo parar nessa área.
Entrevistador: Por acaso?
Sra. E.: Porque eu me formei e enviei currículos para vários lugares, foi o
que apareceu. Era uma ong que contratava os profissionais pra trabalhar
nos abrigos, na época não havia uma equipe concursada. Me contrataram
até rápido, e eu fui trabalhar sem saber nada de psicologia jurídica. Eu fui e
acho que foi a maior experiência da minha vida. Quando eu cheguei me
contaram que tinha psicólogo que chegava, trabalhava um dia e não voltava
mais...
Entrevistador: Por quê?
Sra. E.: Porque era um abrigo com mais de cem crianças, eram divididas
em casas, tudo cheio de grades, não parecia casa coisa nenhuma, parecia
mais um presídio. As casas se dividiam por faixa etária, que ia dos quatro
até os doze anos. E era um desafio porque era muita criança junta. Tinha
dia que quebravam tudo. A gente dava uns plantões nos finais de semana e
nos dias de plantão o técnico ficava sozinho com os educadores. Teve
vezes em que eu estava lá num sábado e as crianças quebrando o abrigo
inteiro, e eu sozinha. Teve uma vez em que eu entrei numa kombi pra fazer
uma transferência de uns meninos e eles quebraram os vidros da kombi
com o carro em movimento. Aí que eu fui entender porque ninguém ficava lá
(risos). Eu ainda fiquei lá por um ano e oito meses, consegui ficar. Aí eu
comecei a gostar da matéria e comecei a fazer uns cursos preparatórios,
porque começaram a dizer que ia ter concurso para o TJRJ. Foi quando a
Prefeitura começou a dispensar o pessoal técnico contratado, porque houve
um concurso da Saúde Municipal e a Secretaria de Ação Social começou a
nomear os aprovados. E aí todos os contratados foram demitidos, eu
inclusive. Fui demitida e nesse mesmo mês saiu finalmente o Edital do
21
concurso do TJRJ . Eu achei até bom porque pude estudar. A experiência

21
A lei que criou o cargo de Psicólogo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro data de 1996.
O PJERJ realizou até o momento quatro concursos: em 1998, em 2003, em 2012 e em 2014.
110

no abrigo me deu a oportunidade de entrar em contato com a área,


participar de audiências, aí eu vi que era isso o que eu queria fazer. Fiz o
concurso e já fui chamada três meses depois, foi tudo bem rápido. Fiz pro
interior e fui designada para uma comarca que eu não conhecia,
pequenininha. Vara única, nunca tinha tido psicólogo, eu fui a primeira.
Cheguei lá e não tinha sala, não tinha nada. Eu atendia na sala da
assistente social, a gente revezava. Eu atendia de tudo, família, infância,
criminal, tudo que aparecia. No início foi bem difícil, eu ficava muito sozinha,
nunca tinha tido psicólogo, eu tive que montar o serviço. Sorte que eu tive a
ajuda de duas colegas que trabalhavam numa comarca vizinha, elas me
deram suporte. Mas aos pouquinhos eu fui conquistando, ia lá no juiz toda
hora, pedindo coisas, aos poucos fui conseguindo sala, fui lendo, me
inteirando, tive que correr atrás pra dar conta daquilo tudo. Eu fiquei sozinha
nessa comarca por cerca de um ano e depois tive que prestar auxílio a uma
vara de família de outra comarca. E eu comecei a acumular as duas cidades
e fiquei eternamente nesse auxílio, até o final de 2009, quando foram
criadas as ETICs.
Entrevistador: Uma época confusa...
Sra. E.: Criaram as ETICs e foi um deus-nos-acuda, um “te vira”. Minha
ETIC englobava cinco comarcas e só éramos duas psicólogas, eu e uma
colega, que tínhamos que dar conta daquilo tudo. Com a criação da ETIC, a
gente ficava na comarca-sede, que tinha algumas varas de família. A gente
22
passou a pegar também processos do NUR , além das outras quatro
comarcas. Nessa época eu fiquei como a responsável técnica, aí acumulava
com todas as questões burocráticas e administrativas, que a gente também
não tinha a experiência de fazer.
Entrevistador: Quais foram as primeiras coisas que te impactaram? Você
passou de um abrigo para o Judiciário. O que mais te chamou a atenção?
Sra. E.: Em que sentido?
Entrevistador: Em qualquer sentido, de problema, de dificuldade. De
impasses, relação com o juiz, qualquer coisa.
Sra. E.: Inicialmente eu não tive problema de relação com o juiz, que era
bem acessível. Eu ia quase todo dia na sala dele pra pedir coisas, ele
sempre se mostrou super aberto. Eu não tive problemas com o juiz, eu
entrava no gabinete a qualquer hora, ele sempre recebia a gente.
Entrevistador: Mas do que te era demandado, o que era mais difícil?
Sra. E.: Como assim?
Entrevistador: Talvez uma coisa que você fosse solicitada a fazer e que
você não se considerasse apta a responder...
Sra. E.: Acho que a própria natureza de alguns processos que chegavam,
que não traziam uma questão propriamente psicológica. Uma coisa que eu
sentia – e sinto até hoje – é o fato de os processos virem pro serviço social
e pra psicologia indiscriminadamente, quando não se sabe o que é de um, o
que é de outro. Percebo que ao longo dos anos, pelo menos nas varas de
família, deu uma melhorada. Eles já conseguem entender um pouco o que é
da psicologia, o que é do serviço social. Acho que essa confusão também
tem a ver com o que a gente diz, a gente tem que dizer pra eles o que a
gente faz. Às vezes, diante dos relatórios, fica difícil de dizer o que cada um
faz. Eu já li relatórios sociais que eram mais psicológicos do que sociais, e
23
vice-versa. Mas se pra gente é difícil, imagina pra eles . Até pelo fato de eu
ter sido a primeira psicóloga na comarca onde fui inicialmente lotada, me
senti na obrigação de esclarecer o que eu fazia ali. Isso foi bom.

22
NUR: Núcleo Regional da Corregedoria-Geral da Justiça (CGJ), que lida com situações de
afastamento e procedimentos administrativo-disciplinares de serventuários em geral.
23
Pr eles, a refere-se aos operadores jurídicos em geral – magistrados (principalmente), promotores,
defensores e advogados.146
111

As diferenças entre as abordagens social e psicológica no âmbito do


Judiciário costumam suscitar discussões – e eventualmente desentendimentos –
entre as duas equipes. O fato é que cabe ao magistrado definir qual das duas
equipes ele deseja consultar, ou se ambas. Com alguma frequência, observam-se
confusões por parte dos operadores jurídicos em relação às atribuições específicas
de cada especialidade, atribuições essas que muitas vezes não estão claras nem
para os próprios profissionais de psicologia e serviço social – donde os citados
desentendimentos.
A entrevistada parece, mesmo que implicitamente, manifestar uma crença
idealista na possibilidade de uma definição específica de atribuições entre as duas
especialidades, algo que estaria intrinsecamente determinado pelas características
internas a cada abordagem e poderia simplesmente ser informado aos profissionais
de Direito. Trata-se de raciocínio idealista e apolítico, que pressupõe uma realidade
interna e própria a cada profissão, previamente delineada e passível de
comunicação e esclarecimento ao chamado público leigo. Entendemos essa
passagem da Sra. E. como a manifestação de um especialismo, presente e
impregnado na prática psicológica na Justiça de forma naturalizada como mais um
ideal relativo ao exercício da profissão.

Entrevistador: O que te deixava insegura? Ou que te deixa até hoje?


Sra. E.:. Acho que com os relatórios também, o que a gente diz e o que vão
fazer com o que a gente diz. Acho que é uma responsabilidade muito
grande. São vidas que estão ali. Isso ainda hoje me inquieta.
Entrevistador: Você disse que não teve problemas com esse primeiro juiz,
“os problemas foram acontecer depois”. Que tipos de problemas?
Sra. E.: Nessa mesma primeira comarca, o juiz saiu promovido e chegou
outro juiz, um cara mais jovem. Com o juiz anterior, todo o fórum se
relacionava de forma boa, não tínhamos problemas. Aí esse outro juiz
chegou e os problemas começaram, porque a gente estava acostumada a ir
ao gabinete, discutir situações complicadas, solicitar coisas do juiz. E esse
novo juiz não nos recebia, quando a gente chegava ele praticamente
mandava a gente embora: “ah, fala com a secretária”, e a secretária não
resolvia. A gente sentiu que houve uma paralisação nos casos,
principalmente nos de crianças abrigadas, as coisas não andavam. Foi na
24
época que começaram as Audiências Concentradas . Esse segundo juiz,
por sinal, foi o mesmo que abriu um processo contra mim, você lembra?

24
Audiências Concentradas são audiências que procuram resolver a situação de crianças em
acolhimento institucional. São realizadas duas vezes ao ano e quase sempre nas próprias
instituições de acolhimento de crianças. Envolvem a participação do Executivo – secretarias de
saúde, de trabalho e emprego, de ação social etc. –, das equipes dos próprios abrigos, dos
conselhos tutelares e do Judiciário, bem como das famílias das crianças, como forma de acelerar a
desinstitucionalização, através, num primeiro momento, da reintegração das crianças abrigadas às
famílias de origem. Caso isso seja impossível, disponibiliza-se a criança para colocação em família
substituta.
112

25
Daquela adolescente que faleceu. Você estava no Sepsi na época. Eu
estava acompanhando a menina nessa época. E aconteceu no recesso do
Judiciário. Ela foi pra uma festa e o namorado a matou. O processo estava
comigo, eu estava atendendo a menina, o namorado, a família toda há
alguns meses, a menina eu atendia toda semana. Eu estava tentando
encaminhar ela pra terapia quando aconteceu esse episódio. O processo
estava todo confuso, com decisões estranhas. Depois dessa tragédia, o juiz
abriu dois processos contra mim, no NUR e na Corregedoria. E aí nós
tivemos que ficar respondendo, eu e a colega com quem eu trabalhava na
época. A gente escrevia as respostas juntas. E ficamos assim por mais de
um ano, o processo ia e voltava, ia e voltava. O processo da Corregedoria
foi mais rápido. A juíza auxiliar da CGJ despachou, mandou pra vocês do
Sepsi, vocês escreveram uma resposta e essa juíza auxiliar rapidamente
mandou arquivar. Mas o processo do NUR não, esse ficou por mais de um
ano. Eu fui transferida e o processo chegava para o NUR onde eu estava,
era uma perseguição (risos nervosos). O funcionário do NUR ligava,
dizendo: “tem um processo aqui, do outro NUR, pra você responder”. Acho
que tem pelo menos umas três respostas minhas. Por fim, o juiz desse novo
NUR para onde fui transferida mandou arquivar, dando uma resposta ótima,
que eu guardo até hoje.
Entrevistador: O que ele diz nessa resposta?
Sra. E.: Ele disse que o processo não cabia, ele meio que questionou até o
outro juiz. Ele mandou arquivar. Mas acho que esses processos não são
administrativos, porque não aparecem no meu histórico funcional. Não sei
de que natureza eles são, até hoje não sei de que tipo.
Entrevistador: Do que eu me lembro da época, o processo estava há
alguns meses com você, que acompanhava o caso. A garota foi
assassinada e você estava sendo responsabilizada por isso. Dá pra gente
dizer que é uma situação kafkiana?

O termo situação kafkiana é aqui utilizado no sentido de absurda, surreal,


como é exposto por Franz Kafka em O processo. Nessa obra, o Sr. Josef K., um
cidadão aparentemente comum e acima de qualquer suspeita, é envolvido em uma
acusação da qual desconhece completamente a natureza. A situação do Sr. K. vai
se complicando, o personagem vai sendo enredado cada vez mais nas malhas do
poder judiciário sem que sequer os próprios funcionários da instituição acusadora
saibam e expliquem do que se trata a acusação.
Penso que outra sensação de algo absurdo e surreal se dê quando, após
tantas explicações dadas e tantos relatórios redigidos, a Sra. E. não encontre em
seu histórico funcional nenhum registro de um processo tão longo e desgastante.
Para além do alívio, fica uma impressão de irrealidade (ou surrealidade, como ela
dirá adiante). Talvez tenha sido a isso que a entrevistada fez menção.

Sra. E.: É, mais ou menos isso. (mais risos nervosos). Eu achei surreal, não
conseguia acreditar.
Entrevistador: O que ele, o juiz que te acusou, dizia que você deveria ter
feito para evitar o desfecho trágico?

25
Sepsi: Serviço de Apoio aos Psicólogos, coordenação dos serviços de psicologia do TJRJ, ligado à
Corregedoria-Geral da Justiça.
113

Sra. E.: Ele disse que eu já deveria ter finalizado a intervenção. Só que o
processo tinha uma série de erros, um deles do promotor, que solicitou que
a guarda da menina fosse pros pais do namorado, onde ela sofria violência
doméstica desse namorado. A própria mãe da adolescente questionava
isso, ela reclamava que tinham retirado toda a autoridade dela com essa
medida de tirar a guarda dela em favor dos pais do namorado. Como
resultado, a menina passou a morar num local onde ela sofria violência
doméstica por parte desse namorado, que culminou com o seu assassinato,
nessa festa.
Entrevistador: Será que ele quis aplacar o próprio desconforto, arrumando
um culpado para esse desfecho? Se o promotor solicitou a mudança de
guarda, foi ele, como magistrado, que concordou com a medida e a
determinou. Para além disso, acho que existiu também a expectativa de que
o seu trabalho pudesse evitar o desfecho. Ou que a decisão judicial só
caberia após a avaliação psicológica. Isso traz a minha primeira questão, a
da expectativa de previsibilidade que é colocada no trabalho do psicólogo
no Judiciário.

O tema expectativa de previsibilidade se mostra cada vez mais presente no


trabalho do psicólogo, a exemplo do que ocorre com o chamado Exame
Criminológico, realizado no sistema penitenciário e que também envolve uma
declaração de expectativas futuras quanto à conduta do detento em vias de
progressão de pena. A esse respeito, Bandeira, Camuri e Nascimento (2011),
analisando a demanda relativa ao exame criminológico, defendem a impossibilidade
de estabelecer previsão de comportamentos futuros, simplesmente pelo fato de a
psicologia não possuir em seu arcabouço teórico instrumentos que tornariam
possível fixar semelhante projeção.
É importante observar que o tema costuma dividir os próprios profissionais:
alguns se consideram aptos a corresponder a essa expectativa – e de fato o fazem,
o que cria uma situação no mínimo delicada para aqueles que não se sentem
detentores de semelhante habilidade. Neste sentido, podemos considerar a
expectativa de previsibilidade como um imperativo institucional; nesta perspectiva,
só nos resta esclarecer a que instituição aludimos: à instituição-judiciário ou à
instituição-psicologia? Talvez a ambas, historicamente unidas neste grande
propósito.

Sra. E.: Eu me lembro da última frase que nós, eu e a colega, pusemos na


resposta. Colocamos que o psicólogo não tem a capacidade de fazer
previsões. Como prever que alguém vai matar outra pessoa?
Entrevistador: Como você se sentiu com esse processo?
Sra. E.: Ah, eu me senti muito mal!
Entrevistador: Eu ficaria péssimo...
Sra. E. Eu fiquei péssima, arrasada. Porque eu não esperava. Eu me
lembro que o chefe do cartório me ligou, porque o juiz tinha despachado no
próprio processo e não falou nada comigo. Fiquei sabendo pelo chefe do
cartório, a quem o juiz pediu para enviar o processo ao NUR. Se ele não
tivesse me dito, eu só ficaria sabendo meses depois, quando o processo
114

chegou do NUR com o primeiro pedido de explicação. Eu fiquei muito mal,


até porque eu vinha acompanhando toda a família, incluindo os namorados.
E ficou tudo nas minhas costas. Eu já estava mal com a morte da menina,
imagina depois de ser responsabilizada por essa morte. Foi bem difícil.
Entrevistador: Você me perguntou no início qual era o tema da tese. Tem
essa expectativa de previsibilidade que é jogada em nós, no nosso trabalho,
e tem também a questão do medo, de uma produção do medo. Eu me sinto
permanentemente amedrontado no TJ, é como se eu pudesse ser
responsabilizado por algo a qualquer momento, fazendo sentido ou não
essa responsabilização. Isso pra mim é muito opressivo. E aí eu te
pergunto: você tem medo de quê, no TJRJ?
Sra. E.: (risos) Hoje?
Entrevistador: Hoje e sempre.
Sra. E.: Eu sempre tive muito medo disso, se ser culpabilizada. Mas depois
que eu vivenciei essa situação, esse medo...
Entrevistador: Diminuiu?
Sra. E.: Não sei se é essa a palavra. Mas ao longo dos anos são tantas as
coisas que acontecem que a gente vai lidando com isso de outra forma. Não
é mais aquele medo inicial, quando é tudo novo, a questão do poder. Mas
ao longo dos anos, não é que diminua, mas eu passei a lidar com isso de
outra forma.
Entrevistador: De que forma?
Sra. E.: Não sei, acho que me protegendo mais, porque se você ficar o
tempo todo com isso acaba sendo uma coisa meio enlouquecedora. A gente
tem vários casos de licenças médicas.
Entrevistador: você acha que essa questão pode estar por trás dessas
licenças?
Sra. E.: Ah, eu acho sim, a questão do assédio moral, que engloba essa
questão do poder.
Entrevistador: Mas o que é pra você essa questão do poder? Pergunto
isso porque você proferiu “a questão do poder” por duas vezes. Não estou
querendo que você teorize nada, quero saber como você sente isso.
Sra. E.: É a coisa verticalizada, do “aqui quem manda sou eu”. E ficamos
nós, psicólogos e assistentes sociais, à mercê disso.
Entrevistador: É muito mais do que simples hierarquia, não é?
Sra. E.: Sim, muito mais. São relações de poder, que têm a ver com esse
medo que ronda a gente o tempo todo, o tempo todo, o tempo todo. Tem a
ver com a troca de juiz, quando sai um e vai chegar outro. A gente se
pergunta “e agora?”. Quando a gente está começando a aprender a lidar
com aquele que está ali, muda tudo. A gente se pergunta: “como vai ser? O
que vai acontecer?” e vem o medo todo de novo. Quem é que vem e o que
vem junto com esse que está chegando? Acho que isso ronda a gente o
tempo todo, e acho que vai rondar até a aposentadoria. Acho que não tem
pra onde correr. Esse medo está sempre presente, e forte.
Entrevistador: É difícil lidar com isso, não?
Sra. E.: Sim, muito difícil, porque além das questões do trabalho, que já são
muito penosas, ainda temos que lidar com isso. É o tempo todo. Eu acho
que a questão das licenças tem a ver com isso. Eu fiz um curso aqui no
TJRJ, de Saúde Mental...
Entrevistador: Foi um curso de saúde mental no trabalho?
Sra. E.: Não era no trabalho não, mas virou isso, por conta da demanda dos
alunos (risos). O professor era um médico, e tinha dois médicos do
Departamento de Saúde (Desau) do TJRJ fazendo o curso. O professor
falava de forma geral sobre vários assuntos e perguntava para os médicos
do DESAU: “e como está no TJRJ essa questão?” Uma das questões era
referente a afastamentos por causa de saúde mental. Essa causa está em
segundo ou terceiro lugar nos tribunais do Brasil, mas no TJRJ está em
primeiro. O professor se assustou e disse: “nossa, aqui já é primeiro lugar?”.
O que o TJRJ faz com isso? Que trabalho está sendo feito? Nenhum. A
gente não vê nada.
115

Entrevistador: Eu acho que essa é uma questão muito nevrálgica. Eu


tenho uma hipótese, vou te contar. Eu acho que existe uma máxima não
declarada, uma expectativa de que o juiz pode tudo, ele, que está acima do
bem e do mal, pode fazer o que quiser. Ainda que esse poder receba algum
limite, ainda que já existam instâncias que limitem esse poder absoluto, em
algum lugar da instituição – ou talvez em todo lugar, de forma difusa – ele
persiste. Então pensar sobre essas questões corresponderia, na prática, a
investir na diminuição do poder absoluto da figura do juiz. Existem juízes de
todo tipo, desde os mais esclarecidos e democráticos até aquele que diz
“você é a formiguinha, eu sou o elefante que esmaga a formiguinha”.
Sra. E.: Eu já ouvi isso duas vezes (risos nervosos). “A corda sempre
arrebenta do lado mais fraco, você não sabia disso?” Ouvi isso de dois
magistrados diferentes, do que abriu o processo contra mim e dessa última
situação que vivi, você sabe...
Entrevistador: Também quero conversar sobre isso...
Sra. E.: “Você não sabia que a corda arrebenta sempre do lado mais fraco?”
Ouvi isso duas vezes, é mole?!
Entrevistador: Então mexer nisso corresponderia, na prática, a diminuir
esse poder absoluto. Poder esse que na verdade é uma grande ilusão, mas
uma ilusão sustentada, institucionalmente patrocinada, digamos assim. A
instituição de alguma forma acolhe esse tipo de desmando por parte de um
profissional que se sente no direito de dizer esse tipo de coisa. É um
acolhimento tácito, claro, já que, nos circuitos oficiais, ninguém jamais
admitiria esse apoio. Isso talvez torne essa manifestação de poder, esse
desmando, mais pesado e quem sabe mais eficaz, porque jamais admitido
oficialmente ou integrado ao circuito visível das estratégias institucionais.
Penso que tudo o que a gente está discutindo aqui, pra efeito do Sindicato
(SindJustiça) e do Desau, fica sob a rubrica do “assédio moral”, o que nem
sei se é bom, porque essa expressão, ”assédio moral”, é bem abstrata,
parece que não se refere a nada real. Parece um termo que não tem um
correspondente na realidade, e assim acaba por comprometer grande parte
de seu impacto.

O tema assédio moral vem recebendo significativo destaque em diferentes


esferas, desde o âmbito acadêmico até os órgãos de defesa corporativos e sindicais
de empresas em geral e do Judiciário em particular. Diferentes autores das mais
diversas áreas, notadamente do Direito e da Psicologia do Trabalho, vêm se
dedicando à questão. Cardozo Filho (2011) situa o assédio moral na sua dimensão
mais propriamente psicológica, por atentar contra a dignidade psíquica do indivíduo.
O autor não especifica um contexto específico para a ocorrência desse tipo de
assédio, mas enfatiza a “natureza psicológica da agressão” sofrida pela vítima, já
que visa a “desestabilizá-la, isolá-la ou eliminá-la do local de trabalho” (op. cit.).
Cardozo Filho informa ainda que quem primeiramente tratou a questão no meio
jurídico brasileiro foi a juíza do trabalho Márcia Novaes Guedes, em sua obra Terror
psicológico no trabalho.
Observamos outro exemplo da dimensão psicológica dada a esse fenômeno
na Lei Contra o Assédio Moral – Lei 12250/06, de 9 de fevereiro de 2006,
promulgada pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, que define o
116

assédio moral como “toda ação, gesto ou palavra, praticada de forma repetitiva por
agente, servidor, empregado, ou qualquer pessoa que, abusando da autoridade que
lhe conferem suas funções, tenha por objetivo ou efeito atingir a auto-estima e a
auto-determinação do servidor”26.
Encontramos ainda, numa pesquisa pela internet, reportagens dos meios de
comunicação tratando da questão do assédio moral no meio judiciário. A Revista Isto
É de 04 de abril de 2014, intitulada Assédio de toga27, é um exemplo. A reportagem
afirma que parte dos servidores do Poder Judiciário “tem se deparado com
magistrados autoritários e prepotentes, que perseguem e assediam moralmente os
funcionários”. A revista informa que uma enquete realizada pelo Sindicato dos
Servidores do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro (Sind-Justiça), inédita no
país, revelou que 44,5% dos servidores do TJRJ afirmaram já ter sofrido algum tipo
de assédio moral, ressaltando o número crescente de trabalhadores afastados por
problemas psicológicos. A matéria é pródiga em exemplos de “vítimas”, num quadro
agravado porque os magistrados assediadores, segundo um coordenador do
SindJustiça, “se sentem em uma classe superior, repleta de poder, e têm uma
espécie de garantia de não punição”. Observamos aqui um enfoque mais
propriamente coletivo da problemática, ainda que os exemplos dados e o
direcionamento sejam de cunho personalista e individual, como podemos observar
na diferenciação entre as categorias juízes assediadores e juízes não assediadores.
Mais uma dupla de categorias, juntando-se a outras, tais como abusadores e não-
abusadores, crimonosos e não-criminosos, agressor e vítima, entre tantas outras...
Na mesma matéria, o professor de direito constitucional da PUC-SP Roberto Dias
salienta o embate “entre o servidor e uma pessoa que possui muito mais poder”, o
magistrado, o que caracteriza uma batalha desigual e francamente desfavorável ao
primeiro.
Várias outras matérias tratam da questão, dentro e fora do Judiciário. Neste
último circuito, o escritório de advocacia Juliana e Fernando Gontijo, de Minas
Gerais, informa que trinta e oito tribunais federais e estaduais foram intimados pelo
Conselho Nacional de justiça (CNJ) “a prestarem informações sobre como enfrentam
o problema do assédio moral no âmbito de suas administrações”. Segundo a página

26 Disponível em: <http://governo-sp.jusbrasil.com.br/legislacao/159760/lei-contra-o-assedio-moral-


lei-12250-06>.
27 Disponível em: <http://www.istoe.com.br/reportagens/356117_ASSSEDIO+DE+TOGA>.
117

do escritório citado28, existe um Pedido de Providências da Federação Nacional dos


Servidores do Judiciário dos Estados (Fenajud) no sentido de “incluir o combate ao
assédio moral a servidores como meta permanente no planejamento estratégico
nacional do Poder Judiciário Brasileiro”.
Como podemos perceber, existe uma intensa e crescente discussão a
respeito do tema, mas que nos parece negligenciar uma questão fundamental: o
assédio moral como parte de uma estratégia de poder institucional. Colocada em um
viés legalista e personalista, a questão permanece circunscrita à dimensão
individual, como prática anômala e/ou entidade psicopatológica, o que negligencia e
até mesmo nega sua historicidade.

Sra. E.: E nada é feito com isso, e aí a gente fica sozinho, uma sensação
muito ruim, de ficar sozinho.
Entrevistador: Resolvi escrever essa tese para poder falar sobre essa
sensação de medo e de solidão. É interessante pensar como a solidão é um
aspecto que reforça o medo, as pessoas perdem o sentido do coletivo, de
uma experiência que se vive junto. E a gente vai vivendo e “convivendo”
com esse desconforto. Eu nunca entrei de licença psiquiátrica, mas entendo
perfeitamente quando as coisas terminam assim. É muito ruim saber que a
qualquer momento você pode ser vítima de um ataque (uma acusação, por
exemplo, fundada ou infundada) e não vai ter a oportunidade de se colocar,
de se defender. Conheci uma juíza que dizia algo do tipo: “eu detesto
quando funcionário chora. Não suporto choro, não vem chorar perto de
mim”. E é tão cruel isso,porque mal sabe ela – ou talvez ela saiba – que o
choro é decorrência da impossibilidade de se colocar. Entendo o chorar
como uma reação contra a arbitrariedade, contra a impossibilidade de se
colocar de igual pra igual, pelo fato de ser uma relação extremamente
verticalizada e injusta. É claro que aquilo que você não pode expor fica
estrangulado e acaba explodindo na garganta, saindo pela via do choro. E
essa juíza transforma isso numa fraqueza, numa infantilidade daquela
pessoa que na verdade não está tendo a oportunidade de se colocar e de
se defender. Ela sabe que o embate é desigual, afinal é a formiguinha
contra o elefante, certo? Ainda assim, ela interpreta a única reação possível
como uma fraqueza, uma covardia. Quando você se vê impossibilitado do
direito a qualquer reação, você chora, claro!
Sra. E. agora me lembro da minha última “experiência”, quando a juíza
chegou a dizer que as pessoas que choram são pessoas “humanizadas”,
por isso elas choram. Até hoje não entendi o comentário (risos).
Entrevistador: O que ela estaria querendo dizer com isso? Seria uma
crítica?
Sra. E.: Sei lá! (risos).
Entrevistador: E essa tua “última experiência”? Fala um pouco sobre ela.
Sra. E.: Pois é, essa foi a pior. Eu nunca tinha vivido nada parecido. Eu
também já tinha ouvido falar de assédio moral, mas também achava algo
vago. Depois do que vivi, disse para colegas que agora sei o que é assédio
moral, porque até então eu não sabia. Eu sempre tive um sono maravilhoso,
de cair na cama e dormir a noite inteira. Nesse período, que durou dois
meses, eu não dormia, eu acordava de madrugada, tinha pesadelos, eu
tinha uma série de sintomas físicos que eu nunca tinha tido. Eu acordava

28 Disponível em: <http://www.gontijo-familia.adv.br/tribunais-devem-prestar-informacoes-sobre-


assedio-moral-ao-cnj/>.
118

chorando e eu ia dormir chorando. Eu saía de casa chorando, eu dirigia pro


trabalho com a colega que viveu comigo a experiência, as duas chorando
no carro.
Entrevistador: Vocês já iam trabalhar nesse estado...
Sra. E.: Aos prantos. Foram dois meses de total terror. Foi numa época de
audiências concentradas, e era tudo na frente de todo mundo, o que era
pior. A audiência lotada, gente do Conselho Tutelar, Secretaria de
Educação, Saúde, Trabalho etc., aquele monte de gente. E (a juíza)
acabava com nosso trabalho: “esse relatório está uma merda!”. Assim
mesmo, com palavrões, no meio da audiência, na frente de todo mundo, das
partes inclusive. “A psicóloga está me dizendo que a senhora usa drogas,
só que não é isso que eu estou vendo na minha frente”, uma
desqualificação total do nosso trabalho. Nos dias que eu tinha que
participar, era uma tortura. Foi bem difícil, eu nunca tinha vivenciado aquilo.
E a gente tentou conversar (com a juíza), não sei se foi melhor ou pior. Eu
acho que a pessoa não entendeu: “o que vocês querem falar comigo?”. A
gente tentou fazer reuniões, a gente fez. A pessoa ouvia nossa
argumentação. A gente teve três ou quatro reuniões dessas com todo
mundo e ela. E não adiantou, a coisa só foi crescendo, crescendo. Cada
audiência que havia era pior. A gente achava que ia melhorar, porque ela
dizia que a gente tinha que falar mesmo. Só que a prática era o oposto. E
numa audiência em que era eu a responsável pelo abrigo, foi o fim da linha.
Foi horrível, ela acabou com a gente. Eu lembro que ela deu intervalo para
o almoço e eu e a colega não voltamos, a gente estava mal, a gente só
conseguia chorar e vomitar. E eu falei: “eu não volto”. Ela já tinha falado que
se alguém não quisesse permanecer no setor era só falar com ela que ela
liberava. E eu estava a ponto de ir lá e dizer que queria ser liberada (para
mudança de lotação). Era uma explosão mesmo, uma tentativa de não
enlouquecer. E eu e a colega não voltamos, mas todos os outros
consideraram que precisavam voltar para falar o que estava acontecendo. E
antes da audiência retomar depois do almoço, os colegas foram lá pra dizer
o que estava acontecendo.
Entrevistador: Os colegas quem?
Sra. E.: Todos os outros psicólogos, assistentes sociais, comissários. E eles
foram lá conversar de novo com ela. Falaram que a gente não tinha
condições de voltar. Ela disse: “não vão voltar?! Estão chorando?! Mas
vocês são muito humanizadas mesmo! Não tem problema não. Elas fizeram
o relatório?”. Disseram que sim, e que as assistentes sociais iriam participar,
só nós que não íamos porque somos “muito humanizadas”. Então ela disse
que tudo bem. E a gente lá embaixo, aos prantos, só esperando acabar a
audiência pra ir lá falar e pedir pra sair. A audiência acabou e ela ligou pra
gente, mandou todo mundo subir pra sala dela. E aí ela mandou todo
mundo embora! A gente muda, na frente dela, e ela dizendo: “não quero
mais vocês aqui, podem arrumar um lugar pra ir, não quero nenhuma de
vocês aqui”.
Entrevistador: Ela se referia às três equipes?
Sra. E.: Sim, a todo mundo, onze pessoas, entre assistentes sociais,
psicólogos e comissários.
Entrevistador: Você disse que o resto da equipe voltou às audiências,
depois do almoço. Interessante isso, porque nem num momento de extrema
arbitrariedade houve uma união.
Sra. E.: Não, teve sim! Tinha união, só que a gente mesma falou que
alguém teria que voltar, porque a gente trabalhava em duplas (psicólogo e
assistente social). Porque aí tem a questão do medo também, ‘como assim,
não volta ninguém pra audiência?’ Então nós mesmas falamos que os
outros tinham que voltar.
Entrevistador: Isso é puro medo, né?
Sra. E.: Sim, puro medo.
119

Entrevistador: porque se ninguém voltasse, caracterizava melhor a


situação real. Vocês, quando não voltaram, ficaram no episódio como as
únicas esquisitas.
Sra. E.: Mas o grupo era muito unido. Tanto que quando a gente ia lá falar
com ela, ela dizia que era “O BANDO”, ela dizia que andávamos em bando
porque estávamos sempre juntos. Tanto que acabou todo mundo indo
embora.
Entrevistador: A decisão de voltar uma parte do grupo talvez não tenha
sido a melhor...
Sra. E.: É, talvez não, mas não tem como a gente saber. Mas a gente saiu e
eu vim para onde estou hoje. No dia seguinte, a gente veio para a
Corregedoria conversar com o juiz auxiliar. Ela também veio conversar com
ele. Ele (o juiz auxiliar) a ouviu também. A gente acabou ficando lá por mais
um mês, para encerrar os processos já iniciados. Aí ela mudou de ideia e
queria que a gente ficasse, queria que a gente voltasse atrás.
Entrevistador: Ela mesma, que tinha expulsado vocês.
Sra. E.: Sim, e ainda naquela tentativa de fazer com que a gente pedisse
pra voltar. A gente falou que não ia voltar. De qualquer forma, o juiz auxiliar
ainda foi lá na comarca fazer uma reunião. Ele queria dois representantes,
porque ela não queria todo mundo, ela se incomodava com o grupo.
Entrevistador: O bando...
Sra. E.: É, o bando. Ela só queria um representante. A gente falou que
deveria ser pelo menos dois, da psicologia e do serviço social. Na reunião,
ela quis culpar a gente, ainda ameaçou. O próprio juiz auxiliar estava
achando que a gente não devia ficar lá. E todo mundo decidiu que não ia
ficar. O acordo foi finalizar todos os processos que a gente estava fazendo,
ninguém ia receber mais nenhum. Mas isso foi um acordo verbal e ela
continuou mandando! Mandou descer mais de cem processos e enviou pras
29
equipes. Aí a gente falou no cartório que só tínhamos que finalizar os já
iniciados, que já eram muitos! Aí ela pediu uma lista de todos os processos,
foi uma confusão!! A gente ainda ficou um mês lá naquela tortura. A gente
encontrava com ela todo dia, todo dia ela chamava pra acabar com a gente.
E ela mandou cortar nosso ponto no dia que a gente foi à Corregedoria! A
30
gente tinha assinado uma lista de presença na DIATI . Nesse último mês
que a gente passou lá, teve um dia que a chefe do cartório ligou, dizendo
que a juíza tinha mandado cortar o ponto de quem não havia assinado
ainda. A gente estava lá desde nove horas da manhã. A gente foi lá e uma
colega falou com ela, pra explicar. Ela autorizou que a gente assinasse e
determinou que a gente a partir dali teria que assinar a entrada de manhã
cedo e depois a saída, no final do dia. E ela todo dia chamava, requisitava a
gente o tempo todo. E a gente ainda tinha que atender, além de lidar com
todo esse clima horrível. A gente saiu em um dia, e os colegas chegaram no
outro, pra substituir a gente. Ficou aquela coisa: “pra onde eu vou?”. Teve
gente que trabalhava perto de casa e foi parar sei-lá-onde. Cada um foi para
um lugar. Foi esse o desfecho: sai todo mundo que está incomodando, ou
está incomodado.
Entrevistador: Acho que o pior de tudo é a sensação de fragilidade, de
desamparo, que acomete a gente.
Sra. E.: E a gente se sentiu muito sozinha. Apesar de estarmos em grupo,
todo mundo se sentiu muito só.

A expressão a gente, bastante empregada pela Sra. E. (e pelo entrevistador!),


evoca, a despeito de sua utilização bastante comum em discursos informais, certa

29
A entrevistada refere-se ao cartório próprio da serventia, que realiza todo o processamento das
questões judiciais em tramitação. Não se trata, evidentemente, de um cartório de notas, aos quais
recorremos para reconhecimento de firmas, autenticações etc.
30
DIATI: Divisão de Apoio Técnico-Interdisciplinar, da CGJ, que reúne as coordenações de
psicólogos, assistentes sociais e comissários.
120

identidade-vitimizada, à qual parecem sucumbir ambos, entrevistador e entrevistada.


Talvez por isso, a impressão de solidão que transparece da fala da Sra. E., ainda
que faça menção, o tempo todo, a situações vividas em grupo.

Entrevistador: E esse é o tipo de terror que não tem apelo popular (risos).
Sra. E. É, não tem.
Entrevistador: Nesse caso que você conta, a sensação de isolamento deve
ser maior ainda porque parece que não interessa a ninguém mais, além
daqueles que estão passando pela situação. É como se não tivéssemos a
quem recorrer, como nos defender.
Sra. E. E acabaram indo para o nosso lugar as pessoas que estavam longe
de casa e que eram mais recentes no tribunal, era uma oportunidade de
remoção. Mas muita gente não quis ir. Ligavam pra gente, todo mundo
queria saber o que aconteceu. As pessoas mais antigas e mais experientes
desistiram de ir.
Entrevistador: E você sabe como está a situação lá hoje?
Sra. E. Olha, não sei, sinceramente nem quero saber. Não tenho ideia.
Entrevistador: Talvez nem esteja tão ruim, depois do que aconteceu.
Sra. E. Talvez. Interessante também é pensar que o cartório também sofria
com ela, mas não fazia nada, sofria calado. A gente reagiu. A gente poderia
ter aceitado também. Mas a gente foi lá e falou demais.
Entrevistador: Acho que foi bom, né?
Sra. E. É, acho que foi bom, só que a gente paga um preço por isso.
Entrevistador: Que preço?
Sra. E. O de ter sido afastado, de ter sido removido. Nós reagimos e fomos
punidos.
Entrevistador: Mas vocês precisavam ter saído daquela situação, neste
sentido não foi uma punição, foi uma acolhida.
Sra. E. Sim, foi bom porque estava enlouquecedor. Neste sentido foi bom,
para os dois lados. (...) mas de alguma forma é uma punição, né?
Entrevistador: Mas por quê? Pela transferência?
Sra. E. É.
Entrevistador: Entendi. Algo como “no final das contas, sobrou para
vocês”.
Sra. E. Isso! Em vez de tirar uma pessoa, tirou onze pessoas. Foi neste
sentido que eu disse que nós fomos punidos.
Entrevistador: Ou seja, pra resolver o problema que UMA pessoa estava
criando, eles removeram ONZE.
Sra. E. Onze pessoas tiveram que ser deslocadas: pra gente ver como essa
relação é desigual. Mas foi um alívio; depois que saí, respirei. Hoje eu sei o
que é assédio moral, porque eu não sabia. A questão física, emocional,
tudo. É enlouquecedor. E acho que as pessoas não dão tanta importância a
isso, acho que deveria ser mais discutido.
Entrevistador: O SindJustiça de vez em quando toca nesse assunto...
Sra. E. Mas a gente ficou sozinha inclusive em relação ao Sindicato. Fomos
lá, só que depois de um tempo percebemos que estávamos sós, o Sindicato
não estava representando a gente.
Entrevistador: Você é sindicalizada?
Sra. E. Sou, acho que todos no grupo eram.
Entrevistador: Pesada essa história, hein? (gargalhadas bem nervosas).
Sra. E. É, bem pesada, você está com um bom material aí.
Entrevistador: A gente pode entender que a juíza teve o seu poder
absoluto UM POUCO limitado, que vocês tiveram por parte da Corregedoria
UM POUCO de acolhida na figura do juiz auxiliar da época...
Sra. E. tivemos sim.
Entrevistador: Mas o problema é esse UM POUCO. Tudo foi um pouco, em
termos de coibir o abuso da arbitrariedade. Para solucionar a questão,
121

vocês foram os sacrificados, apesar de terem conseguido sair daquela


situação.
Sra. E. como a própria pessoa disse, a corda sempre arrebenta pro lado
mais fraco.
Entrevistador: A impressão que e dá é que ela disse isso como se
estivesse confiante de que podia fazer o que queria...
Sra. E. sim, e pode acontecer de novo. E eu tenho medo de passar por tudo
de novo.
Entrevistador: Você acha que alguma coisa mudou, tem mudado?
Sra. E. não sei, tenho minhas dúvidas, porque a gente continua na
dependência de quem vem, do juiz que chega, de como vai ser com ele.
Fica sempre na questão individual, daquele juiz específico.
Entrevistador: E daquilo que ele resolver conceder em termos de direitos e
de ambiente de trabalho, tudo depende da concessão particular dele, de
criar um bom ambiente de trabalho, ou não...
Sra. E. é, fica sempre na questão individual. Não tem nada unificado.
Entrevistador: É, não tem nada institucional. Aliás, o dado institucional
parece ser o do arbítrio, desse poder absoluto individualmente concedido a
uma pessoa, sobre todas as outras.

Caberia aqui uma reflexão acerca da avaliação final do episódio, no qual as


equipes conseguiram de fato uma acolhida por parte da instituição. É interessante
perceber como a entrevistada – e também o entrevistador... – acaba por avaliar o
desfecho da situação como algo negativo, sem conseguir perceber que de fato
houve um encaminhamento positivo do caso por parte da instituição. Ou seja, para a
Sra. E. – e para o entrevistador... – ficou a ideia de que, ao invés de contempladas,
as equipes foram penalizadas no final do episódio. Ficou a impressão de certo
pensamento punitivo no discurso de entrevistador e entrevistada, o que acaba por
reforçar a noção de que é impossível uma mudança nas demandas e imperativos
institucionais, algo que somente reforça o poder, vivido como implacável, inevitável e
impossível de questionar ou reverter.

Sra. E.: |liás, você está sabendo daquela outra juíza? O pessoal está
penando com ela. Eu soube que ela exigiu a presença dos bebês nas
audiências concentradas! Ela não vai aos abrigos, não faz as audiências
concentradas nos locais. Soube que ela ameaçou com voz de prisão a
assistente social de um abrigo, que não tinha levado os bebês, alguns com
meses de nascidos, à audiência. Tem abrigo com mais de vinte bebês... a
assistente social quis argumentar, dizendo que nunca tinham trazido.
Entrevistador: Ai meu Deus! Para, já chega! (mais gargalhadas nervosas!).
Sra. E.: A assistente social quis argumentar, dizendo que elas nunca tinham
trazido bebês às audiências, até porque um bebê é vulnerável, está
correndo risco quando se desloca, tem que ficar numa sala com um monte
de adultos, a alimentação, tudo isso é muito complicado. A juíza disse para
a assistente social: “Como a senhora não trouxe os bebês? A senhora sabia
que eu posso lhe dar voz de prisão agora?”. A assistente social ficou tão
assustada que ligou para o abrigo e mandou levar os bebês. Além de mil
outros problemas nessa serventia, os abrigos estão ficando abarrotados de
bebês. Parece aquela juíza da situação que eu vivi, que dizia que a gente
queria mandar todas as crianças para adoção. Ela dizia: “vocês querem tirar
as crianças DAS MÃES”, mas eram situações em que NÃO HAVIA MÃES,
as crianças estavam em situação total de abandono. Acusar logo a mim
122

disso, eu que tento fazer reintegração à família de origem de todo jeito. Aí


você vem e pergunta se melhorou...
Entrevistador: Pois é, nessa hora eu me lembro do relato do diretor teatral
Aderbal Freire-Filho. Ele estava sendo ouvido num processo e o juiz do
caso pediu pra ele ser mais sucinto na sua exposição. Ele disse que ia
tentar, mas aquilo era muito importante porque era a história da vida dele,
que ele precisava esmiuçar no sentido de tornar claro o seu ponto de vista.
Na terceira vez que o juiz foi interpelá-lo, foi logo ameaçando lhe dar voz de
prisão. Aderbal Freire-Filho, então, simplesmente disse: “pois me prenda,
excelência, pode me prender”. Ficou por isso mesmo. Esse episódio foi
contado pelo próprio diretor, num rápido artigo que ele escreveu para o
jornal O Globo que eu na época li, mas não consegui recuperar,
infelizmente. Moral da história: às vezes, o rei está nu. Nós é que o vestimos
com nosso medo.

4.4.1 A Sra. E. nos meandros de um poder bufão

A entrevista com a Sra. E. foi bastante tensa, enfocando temas como medo e
violência. Pareceu clara uma sensação de fragilidade e isolamento da entrevistada,
em função de experiências que evidenciaram o seu terror diante da arbitrariedade
institucional. A impotência advinda do desamparo e da sensação de perigo iminente
foi outro aspecto observado, o que suscita, no dia-a-dia na instituição, desconforto e
tensão, sentimentos que podem se inscrever no próprio corpo, como os sintomas
descritos pela entrevistada por ocasião dos episódios relatados.
A questão da arbitrariedade de magistrados nas relações de trabalho tem sido
bastante debatida sob a rubrica do assédio moral, como algo anômalo e passível de
intervenção até por parte do Conselho Nacional de Justiça. O magistrado Lédio
Rosa de Andrade, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Santa
Catarina, se propôs a investigar essa questão, que no meio jurídico, como ele
mesmo salientou, costuma receber a denominação jocosa de juizite. À questão
proposta pelo desembargador, Por que nós juízes somos arrogantes?, o magistrado
fornece uma reflexão de natureza psicanalítica, bem adequada a alguém que, além
de pós-doutor em Direito, é graduado em Psicologia e doutorando em Psicanálise.
Supõe Andrade a existência, comum a muitos magistrados, de uma visão mítica
sobre o papel do juiz, produto da ideia megalomaníaca de que realmente é possível
fazer justiça. A esse equívoco estariam propensos mesmo os magistrados mais
democráticos e de sensibilidade social, que não estariam isentos de atitudes
autoritárias, excessivamente formais e pretensiosas. Segundo o autor, “essa
condição psíquica pode levar o trabalho do magistrado pela via da neurose, de
realmente querer ter capacidade de corrigir o vazio do Outro, colocar o mundo em
123

ordem, favorecer os desfavorecidos (...). Essa postura também pode ser contraída
pela via da psicose, (...), achando-se um ser superior, um deus ou semideus,
trocando a identidade de um sujeito com nome, data de nascimento e submetido a
conflitos, pela de ser juiz”. (op. cit. p. 1. Grifos do autor).
O magistrado faz apelo à teoria freudiana, que trata de um sujeito constituído
a partir do Ego Ideal, característico de um narcisismo primário; este precisa se
dissolver, para que o princípio do prazer (próprio ao narcisismo primário) possa dar
lugar ao princípio de realidade. Nesse processo, o Ego Ideal se transforma em Ideal
do Ego: “no caso específico dos magistrados, o Ideal de Ego está vinculado a um
trabalho de base mítica: um demiurgo, com a função de fazer justiça”. Ainda de
acordo com Andrade, o Ideal de Ego dos magistrados estaria identificado com a
superioridade de sua função. Ocorre que qualquer atividade humana é passível de
gerar frustrações, às quais, como resposta, o psiquismo cria mecanismos de defesa.
Ora, quando o Ideal de Ego dos juízes, identificado a esse ser superior, não
consegue tolerar as frustrações decorrentes da função de julgar, o resultado seria a
formação da arrogância como um mecanismo de defesa aos limites impostos pela
dureza da realidade. Para Andrade, essa “base mítica” da função e a defesa contra
as frustrações estariam na base do comportamento pretensioso e mesmo agressivo
de alguns juízes, o que explicaria o aparecimento da juizite, vista como uma
resposta psíquica à megalomania de quem realmente se acredita detentor do poder
de julgar. A ênfase psíquica, interna e transcendente das considerações do
magistrado catarinense segue um caminho teórico bem distinto do direcionamento
deste trabalho, mas desperta a atenção ao apontar a dimensão mitológica do ato de
julgar. Em outro artigo, Abuso de poder, Andrade afirma que “o abuso e a condição
de autoridade andam constantemente juntos”, o que abre espaço para uma
compreensão institucional do poder e da autoridade.
É interessante perceber no comportamento autoritário e arrogante de alguns
juízes a marca de certa herança cultural, produto não apenas do status social
conferido profissão, mas também da classe social de onde os magistrados, em
grande parte, provêm. O cientista político Ricardo Costa de Oliveira, professor
associado da Universidade Federal do Paraná, pesquisou as relações entre Justiça
e estruturas de parentesco, observando que instituições como o Judiciário e o
Ministério Público estão atravessadas por interesses e capitais sociais familiares. Em
estudo apresentado no IX Encontro da ABCP (2014), o autor afirmou ter verificado a
124

presença de relações familiares em cinco novas nomeações de desembargadores


do TJPR no ano de 2013, constatando “significativos capitais familiares no Poder
Judiciário, como um importante fator existente em sua reprodução social e política”
(op. cit., p. 3). Apontou ainda que, em agosto de 2013, após uma correição
comandada pelo CNJ no TJPR, vinte e sete funcionários comissionados foram
exonerados do Judiciário paranaense, por envolvimento em grandes redes de
nepotismo.
Ricardo de Oliveira faz referência a uma lógica de acumulação do poder
familiar: “procure a família, investigue as relações entre as instituições e as famílias
do poder para a compreensão dos roteiros, interesses e trajetórias nas relações
entre estruturas de poder e de parentesco” (op. cit., p. 4). O autor considera que a
noção de família da classe dominante é necessária à compreensão do Judiciário:
“parentes, em cargos de poder, atuam para beneficiar aliados e familiares em outros
poderes, ou instâncias, que deveriam mutuamente se fiscalizar e se controlar” (op.
cit., p. 5). Vários são os exemplos fornecidos pelo autor, seja através da análise
biográfica dos cinco novos desembargadores do TJPR nomeados em 2013, seja
através da história familiar e profissional de dois ministros do STF, Marco Aurélio
Mendes de Faria Mello e Gilmar Ferreira Mendes, citados no trabalho. O autor
observou nesses ministros “explícitas relações políticas de parentesco” (op. cit., p.
6). Oliveira menciona ainda denúncias de irregularidades em concursos públicos,
também envolvendo relações familiares. O trabalho de investigação das redes
familiares dentro do Poder Judiciário, segundo o cientista político da UFPR, é
necessário para compreender a lógica social da apropriação familiar presente nessa
instituição.
Oliveira cita outros estudos que analisam as relações entre elites e
parentesco no sistema jurídico. Entre eles, comenta o trabalho de outro cientista
político, Frederico Normanha Ribeiro de Almeida, que, em sua tese de doutorado31,
verificou a existência de elites políticas no Poder Judiciário que possuem em comum
a origem social, as universidades cursadas e a trajetória profissional. Trata-se de
juristas que ocupam cargos-chave da administração da Justiça, tanto no âmbito
estadual quanto no federal. Almeida, de acordo com Oliveira, salienta o peso do

31
ALMEIDA, Frederico Normanha Ribeiro de. A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da
Justiça no Brasil. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2010. Citado por OLIVEIRA, Ricardo Costa
de.168
125

sobrenome de famílias de juristas como outro fator importante na nomeação para


cargos nos tribunais superiores, o que o faz considerar como dinastias jurídicas as
famílias que se encontram presentes há várias gerações no cenário jurídico.
Os estudos citados nos dão a ideia de uma apropriação privada por parte das
classes dominantes sobre o espaço público, com o sentido da perpetuação no poder
de núcleos familiares tradicionais e hegemônicos, agindo na consolidação de seus
próprios interesses de classe. Tais análises lançam luz sobre a questão do abuso de
poder tão presente nas relações entre magistrados e servidores da Justiça.
Michel Foucault (2010b), em seu curso do Collège de France dedicado à
genealogia do conceito de anormalidade (Os anormais, 1974-1975), analisa a
problemática do abuso de poder no interior da instituição judiciária. Foucault inicia a
aula de 08 de janeiro de 1975 examinando alguns laudos de exame psiquiátrico de
matéria penal, nos quais os peritos se detêm longamente em considerações de
natureza moral a respeito da vida, da sexualidade e do “psiquismo” de sujeitos
envolvidos em crimes que provocaram grande comoção social na França. Foucault
observou que, curiosamente, tudo o que dizia respeito a esses indivíduos era tratado
nos laudos como um “indício” ou simplesmente confirmava suas tendências sátiro-
criminosas: tratava-se sempre de pessoas “de situação duvidosa”, portadoras de
“anomalias de caráter com origem patológica”. Um dos documentos técnicos
analisados fazia uso de termos ausentes da nomenclatura psicopatológica
tradicional, tais como ”donjuanismo”, “alcebiadismo”, “erostratismo” e “bolivarismo”.
Em outro dos laudos enfocados, é feita a descrição de um ser “deveras medíocre,
cínico e imoral”, em relação a quem seria necessário “praticar uma maïotique” (p. 6)
–, o que faz Foucault desconfiar de que se trata de algo relativo ao maiô!
Foucault aponta, dos laudos psiquiátricos estudados, seu poder de
fundamentar – e, portanto, de determinar – uma decisão judicial. São, dessa forma,
“discursos que têm, no limite, um poder de vida e de morte” (op. cit., p. 7) sobre os
envolvidos. Na instituição judiciária, funcionam como discursos de verdade – uma
vez que se encontram chancelados pela ciência – e são, em última (ou primeira)
análise, discursos que provocam o riso. Afirma Foucault: “esses discursos cotidianos
de verdade que matam e que fazem rir estão presentes no próprio âmago da nossa
instituição judiciária” (op. cit., p. 7). É precisamente este o ponto a destacar da
reflexão foucaultiana: a ideia de um poder que se estabelece a partir do enunciado
126

de uma verdade, personificada no trabalho do especialista que a legitima – mas um


poder que se manifesta de forma grotesca, um poder bufão.
Foucault pergunta como discursos tão toscos do ponto de vista conceitual,
presentes nos laudos trazidos para análise, podem fornecer estofo científico e poder
de verdade ao imperativo de julgar e à necessidade de condenar do Judiciário. O
autor já havia apontado a passagem da chamada prova legal, típica da prática
judiciária até o século XVIII, para o princípio da convicção íntima, que se
estabeleceu em fins desse século a partir das críticas dos reformadores penais, que
questionavam a lógica hierárquica e aritmética – provas completas e provas
incompletas, que redundavam em penas respectivamente totais ou parciais –
presente no regime da prova legal. De acordo com o emergente princípio da
convicção íntima, o juiz deve estar, para estabelecer a condenação, íntima e
totalmente persuadido da culpa do réu, uma vez que à incerteza equivaleria uma
atenuação da pena. Assim, podemos considerar que a convicção íntima representou
um marco na passagem para um novo regime, centrado na individualização da pena
e na figura do indivíduo-delinquente, bem como no reforço do poder dos
responsáveis pela efetivação da verdade jurídica, o julgador (juiz) e o cientista
(psiquiatra). Foucault adverte que o real objetivo dos atenuantes seria o de garantir o
cumprimento da pena, garantia essa que estaria no bojo do sistema judiciário.
Voltando à questão dos discursos (pretensamente) científicos e
(explicitamente) risíveis dos laudos técnicos que embasam decisões judiciais32,
Foucault (op. cit.) se indaga do porquê de sua eficácia, uma vez que, numa primeira
análise, sua pobreza conceitual e o ridículo de suas asserções deveriam fragilizá-los
e até inviabilizá-los como provas. O filósofo francês afirma a “pertinência essencial
entre o enunciado da verdade e a prática da justiça” (p. 11), sob a forma de um
cruzamento entre a prática jurídica e o saber médico. Mas e quanto ao aspecto
grotesco desses laudos, sua face mais imediata e risível? Foucault mais uma vez
nos brinda com a originalidade de seu pensamento, ao postular esse que é o grande
aspecto que pretendo destacar do texto em estudo: o caráter ubuesco dos laudos
não como um fator de fragilidade, mas de afirmação de sua força. O grotesco não
seria uma falha, mas sim aquilo que reafirma os mecanismos do poder. Foucault se
refere a um poder que maximiza sua potência e resultados a partir da

32
Foucault os chama de ubuescos, fazendo menção ao caráter absurdo e caricato do personagem
Ubu, presente na obra Ubu Rei, de A. Jarry
127

“desqualificação de quem o produz” (op. cit., p. 11). O grotesco e o absurdo do poder


seriam então mecanismos fundamentais à constituição de sua “soberania arbitrária”
(p. 12), algo como um combustível necessário à movimentação dessa engrenagem.
A função do grotesco, nessa perspectiva, longe de ser algo que fragiliza os
mecanismos do poder, seria, ao contrário, a afirmação de sua inevitabilidade.
A partir de numerosos exemplos que vão das tragédias shakespeareanas a
tiranos reais e contemporâneos como Hitler e Mussolini, Foucault desvenda os
contornos de um soberano infame (op. cit., p. 13), ridicularizado e caricaturado
como forma de precisamente afirmar-se pertinente e inexorável. Para além dos
tiranos, o autor aponta que a própria burocracia institucional também traz em seu
bojo essa dimensão de um grotesco administrativo, presente nas obras de autores
como Dostoiévski e Kafka.
Em outro momento, Foucault (2012)33 também se dedica a demonstrar, num
curto e precioso escrito, como o ridículo e o grotesco encontram-se intrinsecamente
associados ao poder. O autor enfoca a conduta cotidiana dos operadores do direito,
caracterizada pelo “mau humor e a vulgaridade dos procuradores, a parvoíce dos
juízes, sua cachorrice com todos” (FOUCAULT, 2012, p. 60). O filósofo volta a
defender a necessidade do grotesco como forma de mascarar a violência do Estado,
que, em se fazendo ridículo, consegue perpetrar e perpetuar excessos e abusos que
formam não desvios de conduta, “mas a vida essencial e permanente do estado de
direito” (ibidem). Através dos excessos e irregularidades, o Estado consegue cumprir
seu grande papel no sentido de definir e impor a norma: “o mau caráter do
procurador ou a indigestão do juiz, a sonolência dos jurados não são contratempos à
universalidade da lei, eles garantem o exercício da regra” (ibidem). Foucault atenta
para o fato de que os excessos contidos na conduta desses pequenos soberanos
provocam um “estado do medo”, o avesso daquilo que deveria ser vivido pelos
indivíduos no estado de direito. O grotesco é o que justifica e mascara o absurdo do
poder, tornando tolerável toda uma rede de excessos que viabilizam a imposição da
lei e da normalidade, que controla os ilegalismos e circunscreve possíveis
dissidências. Como resultado, instaura-se um clima de medo decorrente de uma
violência que circula na penumbra, quase invisível (Foucault, op. cit).

33
Trata-se do prefácio escrito por Foucault para a obra de Debard, M. e Henning, J.-L. Les juges
kaki. Paris, A. Moreau, 1977. Foucault explica que “Les juges kaki é a crônica das audiências dos
oito tribunais permanentes das forças armadas, entre 1975 e 1977” (op. cit., p. 59).
128

O filósofo francês continua sua reflexão indagando sobre os meios de


explicitar a violência institucional, de modo a fazê-la sair do manto de legalidade no
qual se encontra mimetizada. Como uma primeira possibilidade, o autor fala em
explicitar essa violência, numa “estratégia de guerra pela ascensão aos extremos”
(FOUCAULT, op. cit., p. 61. Grifos do autor). Como segunda possibilidade, Foucault,
quase que reconhecendo uma belicosidade intrínseca à primeira, propõe a
alternativa do inverso: “trabalhar para tornar mais irritáveis as epidermes e mais
renitentes as sensibilidades, aguçar a intolerância aos fatos do poder e aos hábitos
que o ensurdecem”. (p. 61). O filósofo francês sugere, como estratégia política de
resistência, multiplicar repulsas e ampliar dissidências, evitando, entretanto, o
confronto direto: a primeira possibilidade, como estratégia de guerra, não seria,
digamos assim, tão estratégica: o autor admite que confrontos diretos podem “tornar
mais ameaçadores os mecanismos do poder” (ibidem).
Consideramos que a última situação vivida pela Sra. E. e seus colegas com a
juíza pode se configurar, a despeito do tom um pouco melancólico e derrotista
presente no relato da entrevistada, num mecanismo do segundo tipo quanto ao
contato com a violência produzida pelo poder. Ainda que sem embates diretos –
desnecessários, em última análise, porque desiguais –, a instituição foi chamada a
se posicionar a respeito da arbitrariedade vivida pelos servidores, e de fato o fez.
Podemos também entender o episódio como uma vitória contra a força bruta.

4.5 A Sra. R. ou o diamante pra lá de lapidado

Sra. R.: (bate a caneta insistentemente na mesa, parecendo tensa) Mas a


gente já vai começar assim, sem um uisquinho...
Entrevistador: (risos) Seria ótimo um uisquinho mesmo. Pois bem, eu
quero falar sobre processo de trabalho. Estou conversando com psicólogos
do Judiciário sobre a questão do trabalho, das situações que a gente vive
aqui. Tenho algumas hipóteses, que espero que a gente possa conversar
sobre elas. Eu queria pra começar, já que não tem uisquinho e pra quebrar
o gelo, eu queria que você me falasse um pouco sobre o teu percurso, e
como você veio parar na psicologia do Judiciário.
Sra. R.: (parecendo aflita para falar) Não sou muito boa de lembrar não,
mas vamos lá. Eu fiz a UFRJ, me formei em 1980, acho. Não gosto nem de
falar nesse assunto, mas foi em 1980 (risos). Aí casei, tive filhos, fiquei meio
parada. Não trabalhei. Depois, eu fiz um curso de Atendimento Psicanalítico
em Instituição no IPUB. Aí comecei a retomar o trabalho. Fiz um concurso, o
primeiro concurso que fiz, passei pro Município. Aí trabalhei alguns anos
num posto de saúde na Penha. Não sei quantos anos, é complicado, acho
que uns três anos, quatro anos.
Entrevistador: E você fazia o que lá? Trabalhava em quê?
129

Sra. R.: Atendendo. Era o Município, a escola mandava as crianças para lá,
aparecia gente batendo na porta. Até hoje aparece muita gente lá. Não tem
muita vaga. E eu pegava os processos, quer dizer, os casos e atendia. Era
meio estranho, era mais uma espécie de ajuda, porque só vinham pessoas
muito pobres, tinham dificuldade de vir. Fazia também grupos, isso era
muito legal. Grupos de pessoas com HIV, depois fiz grupos de pessoas com
tuberculose, para conscientizar. Fiz também grupos de orientação sexual,
por incrível que pareça (risos).
Entrevistador: Com adultos?
Sra. R.: Sim, com adultos, para conscientizar quanto ao uso de camisinha,
isso dá uma experiência muito interessante. Algumas mulheres casadas
diziam “não posso pedir pro meu marido usar camisinha, se eu pedir ele vai
achar que tô transando fora”. Muito interessante. Eu gosto muito de
trabalhar. Esse foi meu primeiro trabalho direito, fiquei muito entusiasmada.
Aí depois fiz outro concurso, pro Estado. E aí fui trabalhar no CPRJ, o
Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro. Fiquei lá um tempo, não muito. É que
demorou pro Estado me chamar, e antes de ser chamada para esse
segundo concurso, eu já tinha feito o concurso do TJRJ, que também
demorou a me chamar. Eu fui então chamada pro CPRJ (toca o telefone,
estamos numa sala de atendimento). Deixa tocar, nem estamos em horário
de trabalho. Eu fui chamada pro CPRJ, passei só cerca de seis meses. Eu
então fui trabalhar num hospital psiquiátrico, eu gostava muito. Então passei
pra Justiça e entrei aqui onde estou hoje
Entrevistador: E por que a mudança do Município para o Estado?
Sra. R.: Por causa de salário. O Município naquela época pagava muito
pouco, depois foi melhorando. O Estado pagava melhor e a justiça muito
melhor. Mas eu gostava de fazer concurso também, sou “concurseira”. Fiz
um monte de concurso, uma vez fiz pra Magé, tirei segundo lugar e fiz sem
nem saber qual era a matéria. Mas aqui na Justiça demorou pra me chamar,
mas acabou sendo bom. Se tivessem me chamado antes, eu teria sido a
última a escolher. Como, apesar de estar entre os doze primeiros (da
capital) só fui chamada na segunda leva, fui a primeira dessa segunda leva
e aí pude escolher vir pra cá. Nem tinha ainda um setor de psicologia,
éramos só eu e a colega depois de mim. A gente nem tinha lugar pra
atender, nem tinha lugar pra ficar, a gente ficava nos corredores. Eu atendia
de manhã cedo na sala da promotora, ou na sala de audiências. Depois
com o tempo é que a colega batalhou, batalhou, ela tem um monte de
conhecimentos aqui. Aí fomos conseguindo as coisas.

Novamente aparece, como em quase todos os outros relatos, questão salarial


como definitiva na escolha da área de atuação. Somente a Sra. E., que por sinal foi a
única a ter experiência anterior ligada ao universo jurídico, apontou motivos de ordem
subjetiva e afetiva para sua decisão de prestar concurso para a Justiça. Os
entrevistados afirmaram ter tido, como fator determinante para a opção pelo universo
judiciário, o salário oferecido pela instituição, ao invés de citar motivações mais “nobres”.
Sem querer estabelecer uma crítica à preferência observada, o que seria igualmente
elitista exatamente pela cobrança das tais motivações mais nobres, considero pertinente
tecer considerações sobre esta preferência, de forma a analisá-la e situá-la em uma
perspectiva não moralista, mas representativa das forças institucionais postas em jogo
nesse contexto – e de resto em qualquer outro, obviamente. A questão do salário como
fator definitivo na escolha profissional não é exatamente nova, uma vez que é comum a
propensão dos jovens – daqueles que podem se dar ao luxo da escolha, bem entendido
130

– por carreiras consideradas mais promissoras e socialmente valorizadas. Observa-se,


entretanto, uma pequena variação no caso em foco que trai sua significância, uma vez
que tratamos aqui não de escolha de profissão, mas de encaminhamento para
determinada área de atuação em uma carreira já de antemão escolhida.
Embutido na satisfação advinda de um salário mais alto, esconde-se outro
importante aspecto: o status profissional, igualmente mencionado pela Sra. R. – e
apenas por ela, como veremos na continuação da entrevista. Podemos apresentar,
ao menos como hipótese, que salário e status nos remetem a certa “impregnação”
do psicólogo pelo universo jurídico onde se insere, no qual a diferenciação salarial, o
status e o poder socialmente conferido aos operadores jurídicos é parte significativa
de sua persona profissional. Considerando que a escolha do lugar onde atuar não é
algo estanque e exclusivamente voltado à prática específica da carreira escolhida,
podemos então afirmar, ou pelo menos supor, que a opção dos psicólogos pela área
jurídica evidencie, ainda que de forma um tanto velada porque incômoda, uma
subjetividade profissional formada a partir de uma busca por reconhecimento e por
diferenciação sociais, fatores mais diretamente relacionados às figuras do juiz e do
promotor.

Entrevistador: Então a motivação maior para essas mudanças sempre foi...


Sra. R.: (completando a ideia) Salário! Mas eu sabia que era boa de
concurso, sabia que eu tinha que aproveitar isso. Mas além disso, a Justiça
dá um certo reconhecimento, porque eu também penei muito. Antes
desses empregos eu tentei fazer alguma coisa particular, tipo um hospital
psiquiátrico na Gávea, por exemplo. Eu gosto muito de trabalhar em hospital
psiquiátrico. Aí eu fiz algumas seleções. Eu ia na seleção, e tinha um monte
de meninas novinhas, eu era muito melhor do que elas mas nunca era
chamada, eu sabia já com quase quarenta anos que não tinha chance. Eu
sou ariana. E comecei a perceber que a coisa ia além do saber. Aí eu me
voltei pro concurso público, era mais democrático. Esse episódio da Gávea
foi impressionante, eu entendi que estava sendo discriminada pela idade.
Eu era muito melhor, mas não fui escolhida.Quando eu estava fazendo o
curso de Atendimento Psicanalítico em Instituição no IPUB, eu me
entusiasmei com a possibilidade de fazer concurso.
Entrevistador: Foi uma especialização?
Sra. R.: Foi. Eu fiz algumas, essa foi uma. Eu sou péssima de me lembrar
das coisas, acho que estou com Alzheimer (risos), mas eu aos poucos vou
me lembrando. E eu estou aqui no TJ há quatorze anos já, completo acho
que em julho. Sempre aqui. E aí fomos começando. Depois falaram que
tinha de ter uma pessoa encarregada (pelo setor). Fizemos uma votação
aqui e eu ganhei. Não ganho nada, só trabalho a mais.
Entrevistador: O teu referencial teórico é psicanálise...
Sra. R.: Sim, era, acho que ainda é. De certa forma. Psicanálise é uma
maneira de escutar as coisas, nesse sentido ainda é. Tentei consultório mas
não gosto, eu sou viciada em contracheque (risos). Consultório é muito
incerto, um dia tem, outro dia não tem, isso me botava muito estressada. Eu
tenho que saber que tem dinheiro, eu sou arrimo de família, eu preciso do
131

dinheiro certo todo mês. Essa coisa do ter - não ter não dá pra mim. Agora
eu estou satisfeita, gosto muito do meu trabalho aqui.
Entrevistador: Mas se você for comparar as três experiências que você
citou aqui, Município, Estado e Justiça, do ponto de vista da gratificação
profissional, o que você escolheria?
Sra. R.: Aqui. Porque no Município eu ficava meio parada, meio que
largada. Aqui também a gente ficava, pelo menos no começo. Mas quando
eu entrei aqui, era uma deferência com a gente, sabe? Eu achava o máximo
ser chamada em audiência, a primeira pessoa a falar era eu. Apesar do
estresse eu gostava. Não sei se tive sorte com os juízes, muita gente acha
que não. Não sei se porque eu sou mais velha, os juízes sempre me deram
muito cartaz: “vamos escutar o que a psicóloga tem a falar”. No Município
não tinha isso.

Aqui a entrevistada manifesta o que eu chamaria de postura híbrida, que


oscila entre dois aspectos distintos, ainda que interligados, da escolha profissional.
O primeiro seria a escolha da atual colocação como sua preferida, que suplantou
suas experiências anteriores e pode sugerir uma motivação de ordem afetiva – e não
material – para o exercício da psicologia jurídica. O segundo aspecto, entretanto,
sugere uma identificação com o status do espaço judiciário, representado em sua
fala pela satisfação de saber-se valorizada pelos juízes, bem como pela participação
em audiências, algo não somente odiado, mas até temido por muitos de seus
pares...

Entrevistador: (horrorizado!) Você gostava de ser chamada em audiência?!


Sra. R.: (peremptória!) Eu gostava.
Entrevistador: Fale mais sobre isso (risos).
Sra. R.: Sabe por que eu gostava? Eu tava meio traumatizada quando fui
pro Estado. O pessoal de saúde mental é meio hard, sabe? Lobo comendo
lobo, não sei por quê. Até hoje não descobri. Então era todo mundo
querendo passar os outros pra trás, fiquei meio horrorizada, ainda bem que
passei pouco tempo lá. Quando cheguei aqui, achei que davam um certo
valor pro meu trabalho. Eu sempre gostei muito de falar, então quando me
chamavam eu gostava. Olha que quando eu entrei, eu fui muito
espezinhada pelo primeiro juiz com quem trabalhei. Depois ele passou a dar
muito valor, apesar de ter me espezinhado horrivelmente na primeira
audiência que fiz. Horrível, na frente de todo mundo, eu quase morri.
Entrevistador: Como foi isso?
Sra. R.: Dá pra contar essa história? Só pra saber.
Entrevistador: A gente não vai identificar ninguém.
Sra. R.: não! Não é por causa disso, é por causa do tempo. Bom, no início
eu ficava lá na vara onde eu estava lotada. Eu ficava lá, mas não fazia
nada, o juiz não sabia pra que servia o psicólogo, eu não sabia o que fazer.
Lá comecei a ver os processos, como é que era. Um dia eu pedi pra
participar das audiências, eu precisava fazer alguma coisa, não podia ficar
sentada sem fazer nada. Eu fui perguntar pro juiz se podia participar, ele
disse que sim, mas como ouvinte. Aí eu fui. Em uma das audiências, o juiz
falava com um cara visivelmente surtado. E ele (juiz) parecia não perceber,
conversando com o cara como se ele fosse uma pessoa normal. Aí quando
132

34
acabou tudo, naquela hora em que o juiz fica ditando a Assentada , eu virei
pro cara, baixinho, e disse: “você tá se tratando?”. E aí o juiz teve um
ataque na frente de todo mundo, cheio de gente na sala: “doutora, a
senhora é ouvinte. A senhora sabe o que é ouvinte? Ouvinte ouve, não
fala”. E ficou aquele clima horrível, eu fiquei arrasada. Mas a gente só pode
calar a boca das pessoas com trabalho. Ele só me deu um processo depois
de meses e meses.
Entrevistador: Vocês passaram meses sem receber processo?
35
Sra. R.: Sim. Pelo menos eu, com esse juiz, a quem eu era ligada .
Quando ele me deu esse primeiro processo, eu fiz da melhor maneira,
apesar de nem saber direito como atuar. Ele ficou muito impressionado. Aí
tempos depois, em audiência, ele, que era rude, disse “Eu quero dizer pra
todo mundo aqui que estou impressionado com o trabalho da doutora
psicóloga”. Foi uma coisa inesperada. Então a promotora que tinha lá e que
gostava de mim disse: “inesperado não é não, doutor. Ela é uma psicóloga
concursada”. O juiz então disse: “Ah meu Deus. Ela é concursada?!”
Entrevistador: Ele não sabia que você era concursada?
Sra. R.: Não sabia. Ele continuou: “a senhora é concursada?”. Respondi:
“por que o senhor acha que eu estou aqui?”
Entrevistador: Isso aconteceu quanto tempo depois que vocês entraram?
Sra. R.: Sei lá, uns seis meses depois. E ele falou assim (dando uma
entonação peculiar à própria fala, como se reproduzisse a do juiz):
“impressionante, que coisa boa! Quer dizer que temos um diamante bruto
aqui na vara?”. Eu respondi: “olha doutor”, na época eu tinha vinte anos de
formada, “depois de tanto tempo, eu já estou pra lá de lapidada!”. Aí ele
ficou apaixonado por mim! (risos). Foi a minha vingança. Daquele dia em
diante, se ele me chamava pra audiência e eu não estava, ele desmarcava
a audiência. Acho que ele precisava de uma porrada. Com esse fora (do
diamante lapidado) eu lavei minha alma.

A postura da entrevistada neste episódio – ainda que influenciada por uma


ambiência na qual a consideração e o respeito costumam ter relação com a posição formal
ocupada na instituição – revela, além do senso de humor, uma rebeldia bastante sutil, mas
nem por isso menos significativa. Inconformada com o fato de ter sido classificada como
diamante bruto, a Sra. R. imediatamente reivindicou para si uma mudança de
categoria, aludindo à própria condição de pedra (pra lá de) lapidada. Para além da
mera afirmação de importância, estamos diante de uma reivindicação de respeito e
reconhecimento. Estamos também falando de ousadia e coragem, necessárias à
sobrevivência num meio em que o medo encontra-se tão presente e instituído. Trata-
se de pequenas e cotidianas estratégias contra situações adversas, que poderiam
ser vividas, e frequentemente o são, de forma paralisante e subserviente.

Entrevistador: Você ainda tem contato com ele?


Sra. R.: Tenho, encontro com ele toda hora. A secretária dele vem falar
comigo. Depois peguei outro juiz, ele também gosta muito de mim (apesar
de não estar mais vinculada a ele). Ele me chama pras festas na serventia

34
A entrevistada faz referência à ata da audiência, um resumo de todos os depoimentos colhidos, das
intervenções dos advogados e promotores, bem como da decisão judicial. Este documento, ditado
pelo juiz ao secretário, deve, ao final, ser assinado por todos os participantes da audiência.
35
A entrevistada se refere ao período anterior à criação das ETICs, quando os psicólogos eram
lotados em uma vara de família específica. As ETICs foram criadas no final de 2009.
133

dele. Então eu tive sorte, eu acho. Eu faço o que tenho que fazer, alguns
reconhecem, outros não. Mas isso é serviço público, nem todo mundo
reconhece, a gente vai levando. Mas no início foi bizarro, a gente tinha que
ficar nos corredores, às vezes nem lugar lá tinha, a gente tinha que pedir
licença pra sentar. Só podia ser muita vontade de trabalhar, porque isso
acaba com o psiquismo de qualquer um (risos). Depois foram chegando
outros psicólogos, conseguimos essa sala aqui. E fomos conseguindo nosso
espaço. O pessoal não sabia pra que servia o psicólogo, a gente foi de vara
em vara falando sobre o nosso trabalho. Os juízes foram então aos poucos
mandando processos. Porque antes ninguém mandava e a gente ficava
sem fazer nada. Esse primeiro juiz era meio ríspido, as pessoas entravam
na sala dele e saíam chorando, ele tinha uma fama... Mas no início a gente
ficou meio largado, ninguém sabia pra que servia psicólogo, esse juiz tava
mais era perdido mesmo, eu também estava.
Entrevistador: Imagino como deve ter sido difícil esse início em que você
não sabe o que a instituição espera de você...
Sra. R.: Sim, muito difícil. Uma coisa é você chegar num lugar que já tem
um trabalho estabelecido. E pra saber como escrever um relatório?! A gente
foi quebrando a cabeça! Por exemplo, a gente não colocava referencial
teórico, a gente passou a colocar por causa das porradas que a gente
levou. As pessoas entravam no CRP com reclamação, dizendo que o laudo
não continha referencial teórico, então a gente passou a fazer. A gente foi
aprendendo aos poucos como fazer um relatório.
Entrevistador: Fala um pouco sobre as porradas...
Sra. R.: Muita porrada do CRP. Isso é o pior.
Entrevistador: Por quê?
Sra. R.: Eu tive um processo contra mim no CRP em que eu fiquei seis
anos. Rolou durante seis anos! Uma parte ficou puta com o que eu escrevi,
sempre alguém fica puto, né? Ainda mais naquela época que eu era mais
enfática, meu jeito de ser é enfático, mas hoje procuro não ser tanto. Uma
mulher não gostou do que eu escrevi, entrou no CRP. Quando o CRP aqui
do Rio foi analisar o meu processo, o CRP sofreu uma intervenção. Não
tinha mais CRP aqui, então meu processo ia pro Rio Grande do Sul, ia pra
outros lugares. Então ficou muito demorado. Seis anos depois é que foi ter a
audiência, quando o processo voltou pra cá. Tive que ter um advogado.
Depois disso tudo não deu em nada. Claro, não tinha sentido nenhum
aquela reclamação, mas me consumiu seis anos. Tive que ir na audiência,
foi horrível, mas aí fui inocentada – é assim que se diz? – por todos.
Entrevistador: O que é pior em relação ao CRP? Você disse que nada
fazia sentido.
Sra. R.: Horrível, minha primeira experiência foi horrível. Eu fui super
maltratada no CRP, como se fosse uma bandida. Porque eles também não
sabiam sobre o trabalho do psicólogo na Justiça. Tudo isso foi muito no
início. Eu ia pra lá e ficava duas horas esperando. Aí resolvi arrumar um
advogado, um conhecido meu (identifica-o), todo ricão, todo grandão. Cara,
tudo mudou na minha vida! No primeiro dia que eu fui com ele à audiência,
eu disse que a gente ia esperar mais de três horas. Ele disse: “não vamos
não!”. Depois de dez minutos de espera ele foi logo reclamando e
chamaram a gente rapidinho. Foi impressionante. Mudou totalmente a forma
como me trataram. No dia em que fui prestar depoimento, foi uma coisa
horrível. Me botaram diante de um monte de menininhas. Eu já estava com
meu advogado. Quando me perguntavam alguma coisa que eu não sabia,
eu me virava automaticamente pro advogado. Aí ela, a menininha, dizia:
“não pode se dirigir ao advogado”. Eu questionava, dizendo que só queria
confirmar uma informação, ou data. Ela repetia (faz uma voz enérgica): “não
pode!”. Meu advogado ficou calado. Na segunda vez em que eu me virei pra
ele, ela disse: “a próxima vez em que a senhora se dirigir ao advogado, eu
vou ser obrigada a solicitar que ele saia da sala!”. Assim, como se eu fosse
uma bandida. Aí o advogado, que é poderoso, disse: “experimenta. Por
favor me mande pra fora da sala. E por sinal, qual o seu nome e CRP?”. Aí
134

as menininhas... olha, mudou tudo. Vê se pode, como as coisas são na


vida. Eu fui muito maltratada no CRP, eu sabia que não tinha feito nada de
errado. Na audiência final, me pediram desculpas. Eu disse: “olha, não sei
se desculpo não. Seis anos com a espada na cabeça. Super maltratada”.
Ainda bem que eu não pagava advogado, imagina se eu pagasse! Fiquei
muito magoada, uma coisa horrível. Isso eu acho pior. Com impugnação de
laudo eu nem me abalo. Quer impugnar meu laudo? um direito que lhe
assiste, não me importo. Agora, depois de quatorze anos eu sofri um
processo falando que eu não me comportei de forma isenta, como se diz
isso? Tem um nome aí.
Entrevistador: Parcialidade?
Sra. R.: É, acho que sim. Essa pessoa fez uma petição ao juiz, dizendo que
não me comportei de forma isenta num laudo meu. Essa pessoa disse que
também ia entrar no CRP contra mim, mas até agora não recebi nada. Esse
tipo de coisa eu acho pior. Além de você fazer um trabalho de muita
responsabilidade, ainda tem que responder ao CRP, arrumar advogado.
Graças a Deus não pago advogado, senão seria um horror, não ganho pra
isso. Mas a relação com o CRP melhorou. Notamos que o CRP não
conhecia nosso trabalho aqui, a gente lida com litígio, são duas partes,
sempre uma vai ficar desagradada. A gente passou a ir ao CRP explicar
como é nosso trabalho. A coisa tá melhor. Mas aquele processo no começo
foi um horror, eu sozinha, saía de lá chorando, maltratada, vilipendiada
(risos). Meu trabalho é uma das coisas mais importantes da minha vida, eu
me sustentar, ganhar dinheiro. Mas esses processos te deixam
completamente abandonada, sem apoio, porque aqui ninguém dá apoio. Eu
já sofri um processo que o CRP julgou improcedente. O que o cara fez? Ele
apelou ao CFP! Teve audiência em Brasília. A sorte é que meu advogado
poderoso ia a Brasília na mesma época. Você acredita que ele foi lá e
participou da audiência?! Tem também o lado de dar opinião nos processos.
Muita gente acha que não devemos opinar, mas eu acho que devemos sim
sugerir coisas.
Entrevistador: O que você chama de opinar?
Sra. R.: Tem processo que tá na cara, a mãe bate horrivelmente na criança,
aí acho que dá pra sugerir que nesses casos a guarda fique com o pai, por
exemplo. Tem gente que não sugere, cada um tem sua maneira de ser.
Tem colegas que só expõem a situação e deixam o juiz sugerir. Eu sou
muito ariana, não consigo ficar calada quando vejo acontecer uma coisa
horrível. Por exemplo: uma mãe péssima, uma mãe doida. Eu não consigo
ficar em cima do muro. Eu não consigo ver uma mãe que impede o pai de
visitar o filho, sem motivo. Ela pode dizer: “ele batia em mim”. Mas isso não
é motivo pra deixar o filho sem ver o pai. Eu vejo pais aqui chorando,
dizendo que estão há meses sem ver o filho. Eu não consigo deixar de me
posicionar. Mas tem casos mais difíceis, quando os dois querem a guarda e
são igualmente bons. Aí é complicado, eu não opino. Mas o juiz muitas
vezes faz o processo voltar, enquanto a gente não opina ele manda de volta
para nós.
Entrevistador: Não sei se você concorda comigo, mas opinar...
Sra. R.: (interrompendo, como se intuísse o restante do comentário)
Concordo! (risos). Penso muito nisso. Quando vem um processo pra você,
você julga com a tua cabeça, com os teus valores. Mas quem disse que os
teus valores é que estão certos? O juiz julga com os valores dele, eu opino
com os meus valores. Isso me põe grilada. Meus valores são burgueses, eu
procuro não ser na hora de opinar, mas tem uma hora que não tem jeito.
Desde que eu era criança, eu tenho um negócio com justiça. Isso deve ser
de outro mundo, de karma. Eu era pequenininha, estudava em colégio de
freiras. Na época da semana santa, contavam aquelas histórias, eu ficava
aos prantos, sempre fui muito ‘italiânica’, sabe? Mas quando falavam
daquela parábola do filho pródigo, eu achava aquilo muito injusto, eu não
me conformava. Eu ficava puta da vida, achava injusto o pai acolher aquele
filho que não fez por merecer. Nunca imaginei que um dia acabaria na
135

Justiça. Procuro ser justa, não ter preconceito. Mas é complicado,


preconceito é uma coisa que, por mais que você não queira ter, acaba
tendo. Procuro ficar alerta pra isso. Uma coisa que tenho preconceito é com
crente (evangélico), quando vejo um chegando com aquela conversa de
crente eu procuro ficar alerta. Preconceito é inevitável, a gente só tem que
ficar alerta. Então eu penso nessas coisas, às vezes eu fico olhando certas
situações sob um ponto de vista meu. Por isso eu acho imprescindível num
trabalho como esse você fazer análise, pra você poder separar o que é teu
do que é do outro. Eu já vi casos aqui, por exemplo, em audiências em que
o pai está sendo acusado de abusar sexualmente do filho. Quando a mulher
acusava o ex marido de abusar do filho, ele já estava julgado. E mesmo que
a justiça provasse que ele não fez nada, ficava sempre essa mácula. O cara
era inocentado e mesmo assim o juiz determinava visitação monitorada. Eu
já vi situações em audiência em que um pai acusado de abusar do filho
querer falar algo e a promotora dizer: “cale a boca que eu não falo com
abusador”. Já vi isso algumas vezes. Pronto, o cara já tá julgado e
condenado ali na hora.

A entrevistada faz menção a uma pré-condenação do acusado, antes mesmo


da oficialização de uma sentença que pode inocentá-lo, e muitas vezes o faz. Trata-
se de uma mácula estigmatizante, que individualiza o acusado como ser desviante,
um delinquente. Podemos pensar nessa questão como a marca da sociedade
disciplinar, que, mais do que na infração, trata de centrar sua ação na figura
daquele que deve ser objeto de uma correção por parte da instituição judiciária,
correção essa representada pela pena que circunscreve e pune o indivíduo
desviante, além de constituí-lo como tal. A ideia, amplamente apregoada pela
doutrina penal, de que só há punição após a constituição de provas para a
condenação fica, no cotidiano dos tribunais, bastante comprometida por uma
pressuposição de culpa que sem dúvida impregna a prática judiciária. A fala da
promotora, relatada pela entrevistada, é um claro e extremo exemplo dessa
condenação prévia do sujeito, que suplanta, em muito, a constituição de provas
relativas a um ato criminoso específico.

Entrevistador: Mas você não acha que quando a gente opina a gente
mesmo pode estar reforçando isso? O juiz diz que está seguindo o parecer
técnico e acaba se eximindo das consequências daquilo que ele está
decidindo. O que você acha?
Sra. R.: Acho que sim. Mas se você nunca opina você pode estar fugindo
da sua responsabilidade.
Entrevistador: Fala um pouco sobre responsabilidade. Você sofre muito
com isso?
Sra. R.: No início, muito. Hoje em dia, depois de 14 anos... mas no início,
caraca! Eu passava noites sem dormir. Eu tenho muita responsabilidade, eu
trabalho assim, com muita organização, muito esmero.
Entrevistador: E sofria por quê?
Sra. R.: Sofria porque não queria ser injusta, queria ajudar as pessoas. Hoje
eu parei um pouco de me cobrar isso. Mas quando vejo uma situação entre
pais e filhos voltar ao normal, isso é bem legal. Mas há casos em que a
gente erra, eu errei muitas vezes. Eu só faltava morrer. Mas tem coisas que
136

só o tempo vai dizer. Casos de abuso eu quase que morria no início, até
hoje eu meio que fujo deles. Abuso é muito difícil.

O relato da entrevistada revela uma apreensão particularizada e isolada de


uma questão, a responsabilidade, percebida como um atributo ou obrigação
individual. O seu sofrimento parece estar desconectado das forças institucionais
postas em jogo; o seu papel e sua atuação parecem não estar influenciados pelos
imperativos que suplantam a mera atuação pessoal. Neste sentido, talvez seja mais
adequado substituir o termo responsabilidade pelo de implicação, tal como
delineado pela Análise Institucional, considerando que a ideia de responsabilidade
trai seu viés utilitarista e personalista, que faz menção a uma realidade dual sujeito-
instituição e diz respeito a julgamentos de valor quanto ao grau de participação,
investimento e motivação do primeiro na segunda.
Rodrigues (2006) refletindo sobre a gênese histórica do conceito de implicação,
observa que o pedido de intervenção dirigido aos técnicos pressupõe a divisão de
saberes ou especialidades. Apoiando-se nos escritos de René Lourau, a autora afirma
que a ideia de um intelectual implicado passa pela recusa a esse pedido. Desta forma, a
intervenção implicada envolve a análise das implicações estatais dos especialistas, “isto
é, a produção/reprodução do instituído como forma social naturalizada (...);
paralelamente, (Lourau) associa a análise efetiva dessas implicações, acompanhada de
ações de desvio ou ruptura, a uma nova postura ético-política do intelectual”.
(RODRIGUES, 2006, p. 8). A autora aponta – e este é o ponto que pretendo destacar –
que, a despeito da expectativa de Lourau no sentido de oferecer instrumentos “para
perfurar as delícias da institucionalização estatal” (ibidem), os intelectuais se veem
absorvidos pelas demandas institucionais que deveriam analisar e combater. Esse
dado se mostra bastante presente no trabalho dos psicólogos no Judiciário.
Rodrigues adverte ainda para o fato de não ser tão simples eliminar o ranço
psicologista do conceito de implicação. De todo modo, é possível atribuir uma
dimensão paradigmática ao implicacionismo, “mesmo que, para tanto, a palavra
ciência precise perder muito de sua presumida (e tantas vezes mortífera) nobreza”
(RODRIGUES, ibidem).
Assim, o termo responsabilidade parece estar mais identificado ao conceito de
sobreimplicação, que se refere a uma exacerbação do investimento pela via da
identificação com as demandas institucionais. Tal como o proposto por Lourau ((2004c),
a sobreimplicação seria um “implicar-se sem análise”: “quando a relação com o objeto
ocupa todo o espaço e esvazia os outros campos de implicação (Manero, 1987)
137

existentes – como a encomenda, a instituição, a relação com a teoria, a relação com a


escritura – psicologiza-se e se sobreimplica um campo”. (LOURAU, 2004c, p. 191.
Grifos do autor).

Entrevistador: Por quê?


Sra. R.: Porque a mãe vem com uma criança de cinco anos, dizendo que
ela foi abusada com um ano. Como eu posso saber?

De fato, só deveríamos atestar a ocorrência de fatos que houvéssemos


concreta e pessoalmente presenciado. De tudo, o mais perturbador nessa questão
talvez seja constatar o quanto nossa prática ratifica e legitima as demandas
judiciárias que nos são dirigidas no sentido de atestar o que houve, se houve,
quando houve, quantas vezes houve... Observa-se no Judiciário a incidência de
prévias condenações, estabelecidas informalmente somente a partir de acusações
que nem sempre mostram-se procedentes ou se confirmam no decorrer do processo
legal. Analogamente, podemos dirigir esse raciocínio à situação vivida pela Sra. R.
no CRP, na qual a entrevistada ressentiu-se de ter sido maltratada. Possivelmente,
operou-se aí a mesma lógica da pré-condenação, na qual o acusado já recebe a
pecha de culpado pelo simples fato de ter sido acusado.

Entrevistador: O que nesses casos você acha que é pedido ao psicólogo?


Sra. R.: Que ele diga se houve abuso, e isso eu acho que é impossível. Fui
criando parâmetros. Por exemplo: guarda. Eu ficava doida, cara, na hora
de opinar. Com o tempo, criei o seguinte parâmetro: a guarda deve ser dada
para o genitor que mais facilita o convívio da criança com o outro genitor.
Não adianta ser uma mãe maravilhosa, ter situação financeira ótima, se ela
não abre (o convívio da criança) para o pai. Meu parâmetro agora é esse,
até mudar (risos).

A Sra. R. estabelece o que podemos chamar de parâmetro relacional, que


diz respeito à pesquisa, em situações de disputa de guarda, do cônjuge que mais
abre espaço na vida da criança para a existência do outro cônjuge. Trata-se de
solução criativa e voltada ao bem-estar da criança, para além da mera discussão e
da análise de um litígio que pode – e costuma – se prolongar indefinidamente,
através da tentativa idealista de determinar “critérios psicológicos” para definir qual
seria o melhor genitor, critérios esses em geral abstratos, ahistóricos e
essencialistas, além de eventualmente etnocêntricos.

Entrevistador: Mas você acha que dá pra definir quem facilita mais e quem
dificulta mais?
Sra. R.: Às vezes dá. Quando a coisa é mais hard, mais exagerada, fica
mais fácil.
Entrevistador: Mas tem casos muito ambíguos...
138

Sra. R.: Caso ambíguo pra mim é o pior. Aí eu deixo meio em aberto.
Entrevistador: E o processo volta?
Sra. R.: (risos) Volta. Dependendo do juiz, volta sim.
Entrevistador: E quando volta?
Sra. R.: Bom, aí você vai reavaliando a situação e vai firmando uma
convicção.
Entrevistador: E que tal manter a mesma opinião (deixar em aberto, sem
definir quem deve o quê), mesmo que o processo volte?
Sra. R.: (relutando, demora para responder) Quanto mais você conhece o
processo... porque tive um processo que já era a sexta vez que voltava. A
criança tinha meses no início e já estava com cinco anos de idade. Mas aí
criamos outra regrinha: você atua no processo, se o processo voltar você
atua de novo. Se voltar novamente, aí a gente já passa para outro
psicólogo. É bom para ter outra visão. Isso acaba com aqueles casos em
que você fica repetindo e repetindo as mesmas coisas.
Entrevistador: Que tal, nesses tais ‘casos ambíguos’, problematizar a
questão, ao invés de responder com aquilo que a instituição espera que
façamos? Porque às vezes o juiz escreve “laudo não conclusivo”. Não seria
melhor questionar a demanda, ao invés de corresponder a ela? Seria uma
forma também de não assumir essa responsabilidade integralmente nas
nossas costas. O que você acha disso?
Sra. R.: Acho que isso que você fala faz sentido.
Entrevistador: É uma forma de a gente não colar nessa demanda
institucional que se revela excessiva.
Sra. R.: É, mas onde eu trabalho todo mundo opina. Eu tento não ser mais
tão enfática como fui antes. Mas tem casos em que você não pode fugir da
raia. Porque tem casos em que não tenho mais paciência. Mãe que impede
acesso do pai ao filho, por exemplo. Ela diz que o pai alcoólatra. Quando
eram casados, bebiam juntos e socialmente, agora que se separaram o cara
virou alcoólatra? Não vem com esse papo furado, não tenho mais paciência.
“Ah, depois do fim de semana ele devolve a criança suja”, e daí? Foda-se.
Qual a importância disso? O que é mais importante, a criança brincar com o
pai ou voltar limpinha pra casa da mãe? Se o cara foi péssimo marido, é só
não casar mais com ele, já que chegou a essa conclusão. (risos). É uma
sacanagem que está sendo feita com a criança. Nesses casos não
podemos ficar em cima do muro. Dá pra ficar em cima do muro quando o
caso não é tão flagrante, quando os dois são bons, tanto faz para o bem-
estar da criança ficar com um ou com outro.
Entrevistador: E sobre as consequências futuras do que a gente escreve?
Sra. R.: Tudo o que a gente escreve tem consequências futuras, inclusive
pra gente. Não sei.
Entrevistador: Isso te angustia?
Sra. R.: Você tá falando com uma pessoa que já está aqui há quinze anos,
já passei por fases de desespero.
Entrevistador: Eu estou há quatorze, mas ainda sofro bastante.
Sra. R.: Eu só tenho experiência aqui. A vara da infância é difícil?
Entrevistador: Muito!
Sra. R.: Acho que deve ser desesperante, deve ser enxugar gelo. Aqui a
gente também enxuga gelo. Eu não gostaria de fazer vara de infância não.
Entrevistador: Por que ‘enxugar gelo’?
Sra. R.: Lá é tanta coisa envolvendo a criança, tantos problemas sociais,
psicológicos. É falta de tudo, de tudo, de tudo. Não te dá um desespero?
Porque uma coisa é você atuar num caso de visitação, aí a criança começa
a visitar o pai, a coisa melhora. Mas um garoto desse, em conflito com a
lei...sabe, são tantas coisas...é problema familiar, é problema social, de falta
de recursos, de tudo...falta de recurso da sociedade...não sei, acho que eu
ia ficar meio desesperada. Depois o garoto morre... às vezes morre, não
morre?
Entrevistador: Morre.
139

Sra. R.: Pelo amor de Deus! Não aguento isso não. Alguém tava falando pra
mim de um garoto que morreu, outro que sumiu. Uma coisa é você ver uma
mãe chata, que não quer que o filho conviva com a madrasta. “Mas quando
você arrumar um marido, seu filho não vai poder conviver com ele?” Outra
coisa é você ver um garoto... o que você vai fazer por ele? Não sei. O que o
psicólogo faz? Conversa com ele? Eu acho isso desesperante. Acho que o
mais fácil deve ser adoção.
Entrevistador: Eu acho que tudo o que diga respeito a uma expectativa de
previsibilidade (que se imponha ao trabalho psi) é muito complicado. E a
adoção tem muito disso.
Sra. R.: Mas existem expectativas e expectativas. Não sei... uma época eu
tirei as férias da psicóloga que trabalhava com adoção internacional. Eu via
os processos e dizia: “gente, eu quero morar aí”, aquela casa maravilhosa
em Lyon. Aí o cara vem e quer adotar quatro irmãos, fodidos, pretinhos.
Como é que pode? Um de dez (anos), outro de doze, outro de oito... parece
que só estrangeiro quer adotar assim. A gente acha que é uma coisa boa,
mas sabe lá? Isso é mais difícil ainda. Aliás, ninguém sabe nunca. Adoção
ninguém sabe, pode ser que dê certo, pode ser que não.

A entrevistada sugere aqui uma ideia bastante disseminada, segundo a qual


os estrangeiros teriam maior disponibilidade no sentido de adotar crianças
normalmente rejeitadas pelos postulantes nacionais, tais como crianças mais velhas,
grupos de irmãos, crianças negras, crianças com necessidades especiais. Trata-se
de uma verdade – a da maior disponibilidade dos gringos – apenas parcial e
impregnada de preconceito, uma vez que os estrangeiros que chegam para adotar
no Brasil já se encontram devidamente “filtrados”, ou seja, quando vêm ao nosso
país, já sabem de antemão as características das crianças e jovens que lhes serão
apresentadas. Pelas leis brasileiras, só são direcionadas para adoção internacional
as crianças e adolescentes que já tiveram esgotadas todas as chances de colocação
familiar em território nacional. São, necessariamente, crianças que não conseguiram
postulantes brasileiros por não se enquadrarem no chamado perfil majoritário dos
adotantes nacionais: criança pequena (de preferência bebê), branco e saudável,
com preferência significativa pelo sexo feminino.
A dimensão político-social apontada pela Sra. R. como própria às varas da
infância é outro aspecto importante de apontar e analisar. Sua fala sugere uma
atuação psicológica voltada “à conversa”, algo que seria, pelas características dos
juizados de infância, inócuo e pouco eficaz num meio em que predominariam
questões de ordem social. Observamos uma concepção problemática para o que
seria o psicológico e o social, repartidos como duas realidades estanques – quase
antagônicas – e nada intercambiáveis. Ao psicólogo caberia uma atuação voltada
para a o âmbito da fala (“a conversa”), o que não se aplicaria a um universo
atravessado pelas consequências da pobreza e da exclusão. Neste sentido, o que
140

restaria como possibilidade de intervenção nas varas da infância, uma intervenção


exclusivamente social? Um ideário especialista emerge nesta passagem, que sugere
o compartilhamento de disciplinas voltadas a realidades específicas e diferenciadas,
por dizerem respeito a objetos igualmente distintos e essencialmente considerados.

Entrevistador: Mas você acha que existe uma cobrança por parte da
instituição no sentido da gente saber? Você falava dos casos de abuso,
neles você me disse que sim. Porque eles querem que a gente determine se
houve abuso, quem abusou.
Sra. R.: Ah, muito difícil, é por isso que eu fujo de (casos de) abuso como o
diabo da cruz! Mas acho que não se pode dizer, nem que houve nem que
não houve. Podemos dizer: ‘há indícios’, quando a coisa está muito na cara.
Os casos de abusos me botavam neurótica, eu passava a noite toda sem
dormir. Eu ficava pensando: se eu digo que houve e não houve, eu estarei
impedindo uma criança de ver o pai, isso é horrível. Um pai que não fez
nada vai ser penalizado, e pior, a criança vai ser penalizada por uma coisa
que eu nem tenho certeza. E se eu digo que não houve e o pai volta a
visitar normalmente, e tiver havido? Isso me botava doida. Isso eu resolvi
muito facilmente, não atendo mais abuso (risos). Procuro não atender.
Entrevistador: E as situações ambíguas? Porque a gente tá pensando
assim: abuso, houve ou não houve.

Sra. R.: É muito complicado. Uma vez eu peguei o caso de uma mulher
dizendo que o pai e o avô (da criança) abusavam da criança. Aí eu fui ver: o
pai e o avô eram árabes, e o que ela falava que era abuso eles diziam que
faziam com todos os filhos, com todos os netos. No caso dos árabes,
quando era filho homem, eles gostam de filho homem, eles beijavam o pinto
da criança e diziam: “esse é macho, é macho! Sabe aquela coisa de tirar
foto do filho pelado? Então abuso tem isso, tem que ver o contexto. E ainda
tem a época, na Grécia antiga era comum um rapaz ser iniciado
sexualmente por um homem mais velho, isso lá não era visto como abuso.
Abuso ou não, depende da época, depende do lugar. Nos EUA de hoje os
pais estão com medo até de botar os filhos no colo porque é visto como
abuso. O menininho de seis anos beija a menina de cinco na boca e já é
acusado de abuso. A coisa toda é cheia de facetas.
Entrevistador: Então nesse ponto você concorda que não nos cabe dizer
se houve abuso ou não.
Sra. R.: Até porque a gente não sabe. Se eu estivesse lá na hora e tivesse
visto até falaria, mas eu não estava lá. Quem sabe é a criança e às vezes
nem a criança sabe, a mãe pode ficar falando: “olha, teu pai pegou no teu
peru”, aí o menino repete o que ouviu da mãe. E na verdade quando a mãe
começa a falar ele já está sendo abusado, ele vai se comportar como uma
criança abusada mesmo que não tenha sido, de tanto ouvir que foi. Por isso
essa coisa que agora estão fazendo, como é o nome?
Entrevistador: Depoimento especial?
Sra. R.: Isso! Em vara de família não dá certo, porque tem muito
mais coisa envolvida. Eu já muitos casos de crianças que contaram
um monte de coisas e depois disseram que foi a mãe que mandou
falar. A X (colega que trabalha com Depoimento Especial nas varas
criminais) uma vez colheu um depoimento de uma criança que,
quando tava gravando, contou um monte de coisas que o pai tinha
feito com ela. Quando desligou o equipamento, a criança se virou
para a nossa colega, perguntou se tava tudo desligado e disse: “tia,
era tudo mentira, foi a mamãe que mandou dizer tudo”. A X então
voltou à sala de audiência e pediu para regravar tudo. A mãe quase
que teve um chilique. Neste caso, a mãe não catequizou direito, mas
141

quando catequiza... Eu já tive um caso aqui, a juíza me chamou e


disse: “olha, tem um pai preso”. Ele era da Petrobrás, tinha perdido o
emprego. A juíza então disse: “eu tô achando que esse cara não
abusou, será que você podia ver pra mim?” Eu chamei ele aqui, ele
veio com escolta, eu me lembro que ele tava algemado e tremia tanto
que a algema batia no ferro da mesa, eu passei meses escutando
essa algema bater. Quando as crianças vieram, duas filhas, eu
coloquei as duas pra falar com ele. Ele entrou e disse: “minha filha,
fala a verdade”. Tinha uma garota grande e uma pequena, e a mais
velha falou pra mim: “eu tenho medo da minha mãe brigar comigo,
mas é tudo mentira”. O pai tinha perdido o emprego e estava preso
há seis meses! A juíza veio aqui, a mãe tava lá fora e não sabia que
ela era a juíza. As meninas repetiram tudo pra juíza, que ficou puta.
Uma confusão danada. Mas o pai era um homem acabado. Depois
eu fiquei pensando: já pensou se elas desmentiram a história porque
ficaram com pena do pai? E se tiver acontecido o abuso? Quer dizer,
nunca vamos saber. Então acho que para casos de família é muito
complicado definir quem fez o quê. Quando é um estranho é mais fácil,
ninguém tem motivo pra inventar uma história de abuso envolvendo como
suspeito um estranho.

4.5.1 A Sra. R. e uma lapidação mais que necessária

A entrevista com a Sra. R. mostrou, além de seu humor bem peculiar, soluções
criativas para determinadas questões, como o caso do parâmetro relacional, que a faz
privilegiar, em situações de disputa de guarda, o(a) genitor(a) que, de forma generosa, não
egoísta e não autoritária, abre espaço para a convivência da criança como o outro genitor.
Isso evidencia uma preocupação com o bem-estar do filho para além de interesses
particulares ou da necessidade de retaliação contra quem é seu grande inimigo no
momento. Esse parâmetro relacional parece ter emergido da análise das próprias situações
cotidianas de trabalho, assim como outro parâmetro mencionado: o de atuar no processo e,
caso ele retorne ao setor de Psicologia, realizar nova intervenção. No caso de um segundo
retorno, a ideia é distribuí-lo para outro psicólogo, acabando assim com repetições
sucessivas e intermináveis, bastante comuns. O modo de atuação da entrevistada revela
sua singularidade, uma vez que inventa critérios e modos de ação que, apesar de incapazes
de unanimidade, mostram-se distanciados de justificativas exclusivamente cientificistas e
tecnológicas, como no caso da crítica da entrevistada ao depoimento especial.
Isso não impediu que a necessidade de reconhecimento profissional também
aparecesse em diversos momentos do relato da entrevistada, às vezes sob a forma de
uma identificação com os imperativos hierárquicos da instituição, representados na
necessidade de exercitar um status e uma posição exercidos por ocasião da
participação em audiências, por exemplo. Da mesma forma, o relato da Sra. R. deixou
transparecer certo compromisso com uma visão essencialista e especialista da prática
142

psicológica, vista por ela como mais voltada ao universo simbólico do que ao
enfrentamento de questões políticas e sociais.
A Sra. R. se portou de forma bastante sincera e generosa, sem furtar-se às
indagações propostas e sem deixar de posicionar-se a pretexto de manter em
segredo certos meandros de sua atuação. Dejours (2008) aponta uma dificuldade
adicional para o pesquisador em psicodinâmica do trabalho, sua área de atuação: os
trabalhadores, a fim de evitar críticas e possíveis punições, costumam recusar-se a
explicitar as soluções que adotam e que fogem aos padrões estabelecidos,
mantendo um segredo sobre o trabalho real que de fato desenvolvem. O autor
estabelece assim uma diferença entre o que chama de trabalho prescrito e trabalho
real, afirmando ser impossível desenvolver qualquer atividade cumprindo
rigorosamente as especificações estabelecidas. Para Dejours, a prescrição pura e
simples é inaplicável, por desconsiderar forças de outras e várias naturezas,
incidindo sobre o exercício laboral e sobre o trabalhador, que precisa munir-se de
artimanhas que infringem as normas e tornam possível, paradoxalmente, a execução
da atividade e a qualidade desse exercício. Assim, o real do trabalho de dá,
principalmente, pela resistência aos procedimentos estabelecidos; por ser
inaplicável, o prescrito precisa ser fraudado, nas palavras do próprio autor. Adverte
Dejours: “pode-se aqui perceber o paradoxo: para bem fazer é preciso infringir. Mas
no caso de um incidente, é a própria boa vontade do agente que se volta contra ele”
(DEJOURS, 2008, p. 41). O autor se refere a acidentes que porventura ocorram na
execução e que possam desvelar as soluções criativas utilizadas para burlar o
prescrito, prescrição essa que necessita ser burlada exatamente para tornar possível
a concretização de um trabalho de qualidade.
A inclusão desse aspecto da teorização de Dejours se dá pela necessidade
de explicitar a diferença entre a prescrição, firmada pela instituição, e a realidade da
atuação profissional. O autor refere-se, majoritariamente, a funções operacionais;
como exemplos, cita os trabalhadores de usinas nucleares, que têm de
frequentemente desobedecer aos protocolos formais, caso queiram que o reator não
deixe de funcionar nem dê prejuízos. Cita também o exemplo de trabalhadores da
construção civil. Entretanto, Dejours não se furta a considerar que sua reflexão pode
também valer para o chamado trabalho intelectual e a realidade do serviço público.
Gostaria de destacar um aspecto da questão criatividade: nem sempre
trabalhar bem significa obedecer ao protocolo, às ações que são esperadas ou por
143

estarem de acordo com os ditames técnicos, ou por estarem previstas nas


expectativas e imperativos de natureza institucional, impregnadas de forças políticas.
Destaco a ideia do opinar no processo, que pode fazer o laudo assemelhar-se a uma
decisão, o que não nos cabe como membros de equipe técnica. Opinar pode, às
vezes, aproximar a prática psicológica do ofício de julgar, o que suscita problemas
de natureza ético-política quando o psicólogo corresponde a tal demanda, mas
também costuma criar tensões e cobranças adicionais quando o profissional não
realiza esse exercício opinativo. Neste segundo caso, o processo pode voltar
indefinidamente ao setor de psicologia, com a reiteração dessa cobrança e a
reclamação do “laudo não conclusivo”. Isso vai exigir uma postura conciliatória, de
forma a não simplesmente rechaçar essas expectativas, o que poderia reverter
negativamente contra o profissional por significar um confronto com forças bem
maiores. Envolve também uma tentativa de diálogo e argumentação, que pode dar
resultado ou não. Alguns profissionais resolvem o mal-estar simplesmente
correspondendo ao que se espera deles, o que abre precedentes para cobranças
subsequentes para o próprio profissional e para aqueles que se recusam a atuar
nessas bases.
144

PRA DIZER ADEUS, OU QUANDO OS FINS NÃO JUSTIFICAM OS MEIOS

Este é um momento delicado. O último, é verdade, mas bem delicado. Fico


horas olhando para a tela e simplesmente não consigo abrir conclusão. Explico a
piada – e a ironia: no linguajar judiciário, abrir conclusão significa enviar o processo
para o juiz! É famosa no meio a anedota sobre o jurisdicionado (cliente da Justiça)
que chega ao cartório da serventia para ter notícias da movimentação de seu
processo. Encontra um funcionário talvez não tão disposto a informar, que responde
simplesmente: “o seu processo está concluso”. Então a parte, totalmente
desinformada sobre o jargão, pergunta ingenuamente ao serventuário: “e cadê ele?
Como faço pra falar com o Cluso?” Acho que me sinto assim neste momento,
precisando desesperadamente falar com o Cluso!
Durante toda a feitura deste trabalho – e principalmente, ao redigir o texto –,
me senti trabalhando no fio da navalha, explorando questões e refletindo sobre
problemáticas que me dizem respeito diretamente. Um incômodo diante de uma
exposição excessiva, quem sabe? Desde sempre, me percebi diretamente envolvido
em todas aquelas problemáticas e, não à toa, resolvi chamar meus entrevistados,
inspirado em Pessoa, de interlocutores-heterônimos. A ideia foi mesmo a de
desvelar, explicitar, mostrar o que num primeiro momento redundaria em fragilidade,
talvez – pela própria natureza da minha pesquisa-exposição! –, mas que poderia
trazer outros olhares sobre a prática e uma desnaturalização de verdades
constituídas. E constituídas também, continuamente, pelas nossas crenças, pelos
ideais de que nos recusamos a abdicar. É quando confirmamos e reforçamos
expectativas que tradicionalmente chamamos de institucionais. Mas se as
confirmamos e reforçamos, podemos também questioná-las. E transformá-las.
Talvez nem tão macropoliticamente, mas por que não micropoliticamente, no
cotidiano, nas interações e na compreensão que estabelecemos acerca dos casos
que analisamos? Talvez não se trate de confrontar diretamente os estratos do poder,
mas, pelo menos, de deixar de ser uma peça na engrenagem que os alimenta,
fundamenta e consolida. Penso que uma afirmação de Michel Foucault (2012, p. 61.
Grifos meus), já citada neste trabalho, cabe à perfeição neste raciocínio:

Podemos desafiar a violência escondida para fazê-la sair das formas


regradas às quais ela se encontra totalmente aderida. Podemos provocá-la,
evocar, de sua parte, uma reação tão forte que escapará de qualquer
medida e se tornará inaceitável a ponto de, com efeito, não podermos mais
145

aceitá-la. Podemos exasperar o estado de medo médio e levá-lo ao


vermelho. Estratégia de guerra pela “ascensão aos extremos”. Podemos
também proceder ao inverso: em vez de tornar mais ameaçadores os
mecanismos do poder, baixar o limiar a partir do qual se suporte os que já
existem, trabalhar para tornar mais irritáveis as epidermes e mais renitentes
as sensibilidades, aguçar a intolerância aos fatos do poder e aos hábitos
que os ensurdecem, fazê-los aparecer naquilo que têm de pequeno, de
frágil e, consequentemente, de acessível, modificar o equilíbrio dos
medos, não por uma intensificação que aterroriza, mas por uma
medida da realidade que, no sentido estrito do termo, “encoraje”.

Tornar mais irritáveis as epidermes e renitentes as sensibilidades,


modificando o equilíbrio dos medos não por intensificação, mas por uma medida de
realidade que encoraje: considero que esta afirmação sintetiza os meus objetivos
com este trabalho de pesquisa-intervenção-exposição. Longe de propor uma
“ascensão aos extremos” que só tornaria mais ameaçadores os mecanismos do
poder, penso em proceder a uma acessibilidade aos seus mecanismos, desvelando-
os naquilo que têm de pequeno, de comezinho – até de ubuesco! Eu não poderia
encontrar melhor síntese para o sentido deste trabalho.
Com isso me vem à mente o debate público entre Michel Foucault e Gilles
Deleuze (2003, p. 39), no qual o último explicita o seu entendimento a respeito da
teoria, que considera “uma caixa de ferramentas”. Nesta acepção, a teoria é o
oposto do poder: “é um aparelho de combate. A teoria não se totaliza, se multiplica e
multiplica. É o poder que, por natureza, opera totalizações, (...), a teoria por natureza
é contra o poder” (Deleuze, 2003, p. 39-40). Deleuze faz referência ao fato de o
sistema capitalista não poder suportar nada, daí sua grande fragilidade e, ao mesmo
tempo, sua força repressiva. Nesta mesma passagem, Foucault afirma que tornar
visível o poder é uma revirada contra o poder: “E se designar as sedes, denunciá-
las, falar delas em público é uma luta, não é porque ninguém tivesse ainda
consciência disso, mas é porque tomar a palavra sobre esse assunto, forçar a rede
de informação institucional, nomear, dizer quem fez o quê, designar o alvo, é uma
primeira revirada do poder, é um primeiro passo para outras lutas contra o poder”
(op. cit., p. 44). Foucault continua sua reflexão afirmando ser o segredo mais difícil
de desvelar do que o inconsciente, donde a necessidade e a pertinência de explicitá-
lo.
Foucault e Deleuze, nesse debate36, detêm-se nas estratégias e artimanhas
do poder. Em determinado momento, Deleuze se pergunta por que o poder é tão

36
FOUCAULT, Michel. Os intelectuais e o poder. Em Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 2003. (Ditos e escritos, IV).
146

investido, mesmo por aqueles que aparentemente não teriam nele um interesse mais
imediato: “como acontece que pessoas que não têm tanto interesse nele seguem,
abraçam apertadamente o poder, mendigam uma parcela dele?” (p. 45). Deleuze faz
menção a um desejo que pode se manifestar mesmo contra interesses imediatos de
classe ou posição social. Ainda que o poder esteja a serviço dos interesses de uma
classe dominante, considera que se pode desejar de uma maneira mais difusa e
profunda que o interesse imediato. Lembrando Reich, afirma ele que as massas não
estavam enganadas – elas desejaram o fascismo: “há investimentos de desejo que
modelam o poder e o difundem, e fazem com que o poder se encontre tanto no nível
do tira como no do primeiro-ministro, não havendo absolutamente diferença de
natureza entre o poder exercido por um simples tira e o poder exercido por um
ministro” (Deleuze, ibidem).
Refletindo sobre as complexas relações entre desejo, poder e interesse,
Deleuze e Foucault não fazem mais do que aludir à nossa implicação no sentido de
manter forças que ativam os mecanismos do poder, uma vez que desejamos o poder
e trabalhamos no sentido de sua perpetuação. Mas o contrário também é verdadeiro,
uma vez que a reflexão apresentada pelos dois pensadores concebe e propõe um
movimento inverso, aquele que “irrita epidermes e aguça intolerâncias”.
A explicitação dos desconfortos por parte dos interlocutores-heterônimos,
neste trabalho, abriu caminho para uma nova problematização quanto à pesquisa,
tomando como base o ensaio de Vinciane Despret (2011) sobre o segredo na
situação de psicoterapia. A autora aponta o papel do segredo exercido na clínica
como algo que, além de proteger a figura do terapeuta, se constitui como um
instrumento de interiorização do mal-estar, o que forja e engendra a ideia de
psiquismo como interioridade individualizada. A ordem da verdade é então
deslocada para o interior desse indivíduo-mônada. Estendendo sua reflexão para o
campo da pesquisa, Despret, na segunda parte do ensaio citado, problematiza a
questão do anonimato com o que chamou de efeito sem nome, uma estratégia para,
aparentemente, proteger os sujeitos envolvidos no processo investigativo. Relatando
um episódio em que colheu depoimentos de exilados da ex-Iugoslávia, a autora
percebeu que era sua a necessidade de manter anônimos os entrevistados; estes,
ao contrário, sentiam-se valorizados ao sair da condição de sujeitos sem nome e
sem rosto. Despret então conclui que “a ética da confidencialidade, a prática do
segredo têm – principalmente – a intenção de proteger a autonomia do profissional,
147

de prevenir a possibilidade de críticas externas, (...), de manter os profanos à


distância respeitosa. (op. cit., p. 13).
Mais do que proteger o pesquisador, acentua Despret, “a prática do
anonimato distribui os expertises e constrói, induz ou efetua a assimetria de papeis”
(ibidem). Está assim delineado como a confidencialidade pode funcionar como um
dispositivo que fixa os sujeitos numa posição subalterna e protege as escolhas,
deliberadas ou não, do pesquisador. Despret afirma, inclusive, que manter-se
distante do profano parece mais imperioso no âmbito da Psicologia, já que, em se
tratando de ciências naturais, o saber comum não chega a rivalizar com as
elaborações teóricas desses campos. Em contrapartida, as ciências humanas
necessitam, para delimitar seu campo e constituir sua expertise, depreciar ou
mesmo anular os saberes não (e considerados pré) científicos. É o que garante a
separação dos saberes e torna possível a hegemonia do discurso elaborado. Trata-
se de uma purificação conceitual que garantiria a antítese entre experimentador e
sujeito de pesquisa, concebidos em posições estanques e assimétricas, sendo este
último fabricado por um dispositivo de poder que organiza lugares e demarca
saberes (Despret, op. cit.).
As reflexões de Vinciane Despret enfocam a naturalização de uma verdade, à
qual nos tornamos, mesmo que involuntariamente, tão ciosos de perpetuar: a
confidencialidade em pesquisa. De fato, a quem ela protege? Como resultado de
suas análises, a autora propõe que se coloque como uma questão para o
entrevistado a necessidade (ou não) de manter secreta a sua identidade, algo que
sequer costuma ser considerado nessas situações. Uma entrevista em pesquisa-
intervenção que questione lugares e não pretenda estabelecer uma representação
da realidade estudada deve abrir espaço a este tipo de questionamento, algo que
nesta pesquisa, admito, não foi empreendido.
A qualificação de selvagens dada aos cinco relatos incluídos neste trabalho
faz alusão ao filme Relatos selvagens (Relatos salvajes, Argentina, 2014), dirigido e
roteirizado por Damián Szifron. A trama é composta por seis episódios
independentes, nos quais os personagens são submetidos a situações que os levam
ao descontrole, com finais que vão da mais brutal tragédia ao tragicômico (ou
melodramático). A temática é a dimensão crua e violenta do cotidiano, que empurra
os personagens para o imprevisível que denuncia e rompe um frágil e arbitrário
contrato social. Segundo o cineasta e roteirista Szifron, “há algo de mim em todas as
148

histórias. Sei muito bem de onde cada relato saiu”37. Entendo o depoimento do
cineasta não como a evocação de um suposto caráter autobiográfico da história, o
que a manteria em sua dimensão individual e localizada, mas como parte de uma
experiência coletiva que costuma ser vivida de forma pessoal e patologizada.
Foi esta a tônica da pesquisa empreendida: desvelar a dimensão coletiva de
uma experiência que costuma ser vivida – e sofrida – de forma particular, como se
somente nos coubesse – ainda que a custo de muito sofrimento, tensão e
eventualmente descontrole e adoecimento – a submissão a imperativos de ordem
institucional. Na pesquisa realizada, o objetivo, analogamente, foi o de retirar
situações aflitivas da esfera isolada na qual costumam ser vivenciadas, restituindo-
lhes o caráter extraindividual e explicitando os jogos de forças que criam suas
condições de possibilidade. Em três dos relatos selvagens aqui apresentados, foi
apontado o aspecto nostálgico observado no discurso dos entrevistados. De acordo
com a Wikipédia38, a palavra Nostalgia, do grego nóstos, reencontro, e álgos, dor,
sofrimento, “é um termo que descreve uma sensação de saudade idealizada, e às
vezes irreal, por momentos vividos no passado associada com um desejo
sentimental de regresso impulsionado por lembranças de momentos felizes e antigas
relações sociais” (grifos meus). De sua etimologia, vemos como a idealização está
presente na evocação nostálgica, donde a escolha do termo nostalgia para designar
alguns incômodos apontados nas entrevistas.
Jeanne Marie Gagnebin, em um despretensioso mas especial escrito (2007b),
discorre sobre o ato de ensinar filosofia. A autora alerta para o que chama de
primeira regra do ensino da filosofia: “não temer os desvios, não temer a errância”
(p. 1). Só assim podemos nos abrir ao novo, àquilo que faz sua emergência a partir
de (e apesar de) programações e expectativas previamente delineadas. As
entrevistas realizadas neste trabalho procuraram abrir esse espaço para o inusitado
das vozes que falavam não para confirmar hipóteses, mas para explicitar a
inquietude de suas vivências, inserindo-as em outros campos e construindo novas
formas de percebê-las e senti-las. De acordo com a autora, “paciência e lentidão são
virtudes do pensar e, igualmente, táticas modestas, mas efetivas, de resistência à
pressa produtivista do sistema capitalista” (op. cit., p. 2). Isso significa não se deixar

37
Retirado de: <http://www.ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/2014-10-17/filme-argentino-
relatos-selvagens-faz-sucesso-com-personagens-fora-de-controle.html>.
38
Encontrado em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Nostalgia>.
149

conduzir por imperativos ou pela ideia de representar uma realidade, mas, ao


contrário, explicitar as dúvidas, as falhas no discurso como uma estratégia
(metodológica?) de resistência: “resistir portanto à tentação do professor e do
‘intelectual’ em geral de ter de encontrar uma saída, uma solução, uma lei, uma
verdade, um programa de partido ou não” (ibidem).

Tal como no ensino da Filosofia, não se trata, nesta pesquisa de doutorado,


de fixar diretrizes e propor técnicas que poderiam sofisticar ou complementar o
trabalho do psicólogo no Judiciário, mas de abrir espaço a vozes, contradições e
inquietudes comumente vividas de forma solitária, bem como desvelar a noção de
verdade que emerge das práticas e do sofrimento dos interlocutores-heterônimos,
muitas vezes paralisados diante da impossibilidade de corresponder à arbitrariedade
de uma norma tanto ideal quanto impossível de realizar – sofrimento sobreimplicado,
advindo de uma idealidade arbitrária e paradoxalmente autoimposta.
Destacaria ainda outra passagem de Edson Passetti (2006), na qual o autor
reflete a respeito das teorias que pretendem reformar o Estado e o sistema penal,
mas que pressupõem, entretanto, sua hegemonia no sentido da condução e da
perpetuação de um poder centralizado. Defendendo um abolicionismo penal
inspirado pelas ideias anarquistas, o autor questiona todas as soluções continuístas
e reformadoras, que mantêm intocada a falácia da necessidade do poder: “o
anarquismo foi contundente em sua crítica a essa positividade do poder, propondo
demolir relações de obediência, desde as mais próximas como amor, sexo,
educação de crianças e amizade, até arruinar o Estado” (op. cit., p. 100). Dessa
passagem, gostaria de ressaltar a noção de resposta-percurso como uma alternativa
a sistemas consolidados, que trata de “liberar a vida de modelos” (p. 106) através do
exercício da rebeldia: “o abolicionismo penal passa a ser uma outra linguagem, que
arruína autorias individualizadas em pessoas, cargos, procedimentos ou instituições.
Ela se faz por experimentações sem pleitear hegemonias” (ibidem).
As quatro situações descritas no preâmbulo deste trabalho são exemplos de
uma demanda institucional voltada ao emprego de técnicas (respostas certas) que
teriam como efeito direto tanto a conduta esperada por parte dos objetos das
intervenções – o seu “bom comportamento” – quanto o controle da realidade e da
vida dos sujeitos-objeto da ação especializada, por meio da previsão de suas ações
futuras. Um estudo crítico desse sistema não poderia propor ou relacionar respostas;
150

ao contrário, trata-se de explicitar a dimensão autoritária dos modelos instituídos,


exemplificados em expectativas às quais muitas vezes nos curvamos dócil e
obedientemente. Vladimir Moreira Lima (2015), analisando as relações entre filosofia
e política, critica os modelos conceituais deterministas de relações de causalidade
entre as coisas, que lhes fixam fontes hierárquicas e uma predeterminada ordem, o
que acaba por impedir o surgimento de campos de interação, de encontros, fora do
ideal de equilíbrio e dependência. O determinismo e a causalidade seriam, pois,
“uma maneira de eliminar os possíveis desconhecidos, sintoma do medo de acolher
o novo, proporcionando, inclusive, um sentimento de poder e controle sobre os
encontros, misturas e interações que causam problemas e dão o que pensar”.
(LIMA, op. cit., p. 20).
Amparando-se no pensamento de Gilles Deleuze e Felix Guattari, Lima afirma
a dimensão transformadora do ato de criar, movimento inventor de novos campos de
possíveis e novos modos de existência. Neste sentido, criar é resistir, como afirma o
próprio Deleuze. Criação e resistência, portanto, não podem comportar respostas
prontas, aquelas que partem de uma realidade previamente fixada e pressupõem
uma resposta igualmente dada e acertada, a ser fornecida por experts. Assim, Lima
adverte que criar é o oposto de repetir; se criamos conceitos, criamos também os
problemas que se lhes advêm, perspectiva que retira as coisas do mundo das
amarras da representação e lhes devolve a dimensão construtivista: “somos
convidados, quando representados, a dar respostas, encaminhar soluções,
completamente conformes aos limites estabelecidos por estes pressupostos da
representação”. (op. cit., p. 34). Segundo uma imagem dogmática do pensamento,
as coisas do mundo são concebidas em um modelo que trai sua submissão à ordem
e ao verdadeiro, no qual o pensamento estaciona, num caminho reto do pensador
em direção ao pensado e fundamentado na recognição do mesmo, na qual é
aplicada uma pretensa capacidade natural (o pensar) sobre um objeto que
igualmente já se concebe de antemão (o pensador).
Criar é resistir, é abrir espaço para o caos e para o inusitado, que contrariam
a ordem e desaparecem nas determinações pré-fixadas pelo poder de autoridades
que sufocam a criação e a emergência do novo. Livres de respostas escolares e de
modelos que não fazem mais do que manter as coisas numa dimensão única de
verdade, poderemos ir além das “previsões acertadas” e das verdades instituídas.
151

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