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07/2011
II
APROVADA POR:
Profª.Drª_____________________________________________________
Ana Beatriz Freire
Profª.Drª_____________________________________________________
Angélica Bastos de Freitas Rachid Grimberg
Profª.Drª_____________________________________________________
Renata Costa-Moura Dzu
07/2011
III
Agradecimentos:
Ao CNPQ pela concessão da bolsa de doutorado, que tornou este trabalho possível;
A Ana Beatriz Freire, minha orientadora e amiga, com quem muito aprendi e trabalhei,
e que me ensina, no dia-a-dia de nossas cooperações, a destilar as finezas da clínica
psicanalítica;
A Luis Moreira, pelas sutilezas e complexidades que meu encontro com seu trabalho
permitiu vislumbrar sobre o ato;
A minha família, meus pais Robson Barreto Costa e Iris Ribeiro Costa e meu irmão
Felipe Ribeiro Costa, pelo amor que transcende quilômetros de distância e rios de
tempo;
Aos amigos Marcos Eichler, José Carlos Brazão, Luiz Gustavo, Ana Cabral, Edson
Pereira da Silva, Ana Cláudia Camuri e Aline Nascimento, por serem parte tão
importante de minha vida;
A Anelize Araujo, por nosso encontro, que me transmitiu o quanto ―a clínica é o ouro
da psicanálise‖;
A Ângela Bernardes, Maria Lídia Alencar, Letícia Balbi e Francisco Leonel, que me
ajudaram a talhar meu percurso rumo à psicanálise;
Aos amigos e colegas que conquistei, nos quase sete anos em que participamos das
pesquisas sobre autismo e psicose coordenados por Ana Beatriz na UFRJ, em particular
a Jeanne-Marie da Costa Ribeiro e Kátia Alvares, formidáveis analistas com quem tive
o prazer de conviver;
Aos amigos e colegas que fiz por minha passagem no Hospital de Custódia Tratamento
psiquiátrico Heitor Carrilho e em especial ao Doutor Marcos Argolo, pela generosidade
em nos receber e pela confiança depositada em nosso trabalho e a Tereza Cristina,
psicanalista, minha companheira de trabalho e angústia ‗intramuros‘;
VI
A Maria Elisabeth Araújo, com quem tenho o privilégio de poder trabalhar, pelos laços
de amizade que construímos e pelos futuros projetos que faremos juntos;
Aos amigos que faço agora na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, com quem
muito lutei durante o estágio probatório e com quem certamente muito lutarei a partir de
nossa conquistada efetivação, de forma ―audaz‖ e ―vibradora‖.
VII
Resumo
Resumé:
Ce travail a pour objet des considérations les meurtres immotivés dans la psychose.
Dans notre approche de cette question, à partir de Paul Guiraud et Jacques Lacan, le
terme ―kakon‖ - le mot grec pour le ―mal‖ - pour décrire le malaise que, de se présenter
le psychotique, le met dans une état d'urgence. Basé sur l'expérience clinique avec ces
patients et de reprendre à la description classique de ces tableaux ont comme une
question de déplacer notre travail ―kakon cas‖ - son émergence, les conséquences et le
traitement - dans leurs relations avec la psychose. L'approche de cette question nous
conduirá à penser l'articulation, dans la psychose, entre le passage à l‘acte et la
responsabilité, ainsi que nous permettre d'interroger la façon princeps comme réponse
donné à ces cas par la société: admission garde à l‘hôpital psychiatrique pour fous
criminels. Avec Freud et Lacan - que le soutien, depuis la notion de pulsion, le manque
d'instinct de tueur ou des criminels, nous allons prendre la position opposée aux formes
de ségrégation qui légitiment ce type de réponse proposés par Lacan, à commencer par
Gabriel Tarde, que «la conception des sanitaires pénologie ».
Sumário
Considerações finais__________________________________________________245
Bibliografia ________________________________________________________252
Filmografia ________________________________________________________264
1
− Introdução −
Questão, elaboração e desígnio deste escrito
− Preâmbulo −
Imersa em um estado de crescente agitação, uma mulher, cuja idade já começara
a evidenciar suas marcas, dirigiu-se a uma agencia financeira. Seu intuito era o de
retirar, ali, os proventos que, sob a forma de pensão, lhe eram destinados. Há dois dias,
não obstante, as mesmas perguntas recebiam as mesmas respostas: a infausta notícia de
que a quantia não havia chegado. Esta jovem senhora, vendo confirmados seus temores,
fora tomada por uma sensação inequívoca de que ―algo devia ser feito‖. Retornou,
assim, a sua casa, onde trocou de roupas e encaminhou-se, imediatamente, rumo a um
posto de combustível onde adquiriu um frasco contendo líquido inflamável. Uma vez
mais na agência, ela atira o conteúdo sobre uma senhora que, segundo as testemunhas,
havia sido ―aleatoriamente escolhida‖. Sem hesitar, ela desencadeia, com a ajuda de um
comburente, um hediondo espetáculo que, ela própria nega-se a presenciar. Retirando-se
do local, ela faz de sua casa um frágil refúgio que, poucos dias depois, seria franqueado
pela polícia.
O episódio rendera aos jornais manchetes não menos pirotécnicas que o
acontecido. Em grandes letras estampava-se a notícia, seguida de uma descrição ao
mesmo tempo sumária e exacerbada, cujos comentários quando não inexistentes, eram
bastante reticentes. A névoa que envolvia o nonsense do fato começava, entretanto, a
formar suas silhuetas. Como o ocorrido envolvia duas pensionistas do Instituto Nacional
de Segurança Social, INSS, insinuava-se a hipótese de uma ―revolta‖ de motivação
política ou mesmo social, dado o habitual descaso que recai sobre os beneficiários.
Paralelamente a estas tímidas conjecturas, ensaiavam-se, também, considerações
de cunho moral, referidas ao estado atual de nossa civilização. Teria a "desvalorização"
da vida humana, reflexo da decadência dos valores no mundo contemporâneo, suscitado
tão ―louco" ato? As perguntas, assim como os esboços de explicação, pululavam. Por
outro lado, o caráter surreal do incidente evocava o protótipo de um ato não menos
excêntrico desenhado quase um século antes, por André Breton1.
1
Em Segundo manifesto surrealista (1929), André Breton tece como protótipo do ato surrealista a
ocasião em que, armas em punho, desce-se às ruas e dispara-se tiros contra a multidão desconhecida. O
contra-senso como facilitador de uma revolução das trocas sociais edificadas sob valores ―burgueses‖ era
o efeito visado pela inusitada imagem.
2
Detida pela polícia, esta mulher parecia fornecer ao leitor a chance de uma
catarse, fugaz satisfação provinda do encoberto, porém presente, clamor por punição.
De fato, raros foram os jornais que não mencionaram a 'quase-certa' pena de 30 anos de
reclusão. Uma série de detalhes, todavia, não permitiriam ao espectador subtrair-se de
uma renovada experiência de desconcerto.
Se o nonsense ‗metaforizado‘ por Breton fora, no ocorrido, ‗passado ao ato‘,
também os dizeres da jovem senhora elevariam exponencialmente a estupefação. À
revolta por ―não ter sido tratada como gente‖ no banco, experiência partilhada por
muitos em nosso país, ela sobrepôs a sólida desconfiança2 de que ―seus parentes a
roubavam‖. Mesmo as elucidações dadas pela agência financeira − de acordo com a
qual a não renovação da documentação teria sido o motivo da ausência do beneficio −,
mostravam-se incapazes de demover o penoso e persistente pensamento.
Esta equação tornou-se mais complexa quando a esta foram acrescentados,
ainda, três outros fatores: 1) a agressora, no fatídico momento, dizia encontrar-se
―possuída‖ − o que, segundo ela, ultimamente era ―normal‖; 2) naquele ato, tratava-se,
ao mesmo tempo, de outra "vingança" − posto que, há vinte anos ela teve queimaduras
em sua perna direita; e, 3) em sua narrativa, a concretude com que ela a forja denota a
singularidade radical de sua relação com a palavra: "Fui até o banco, ela estava sentada
lá e toquei fogo. Estava fora de mim. Não senti nada no coração por ter feito isso. Me
senti ate meio leve".
Entre a revolta política ou a decadência − motivações esboçadas pela imprensa −
e a ação, apresentava-se, então, um hiato. Uma louca ironia desvelava as injustiças e
tensões sociais sem, contudo, resumir-se a estas. Isto não impediria, é claro, a resposta
habitual da sociedade a tais casos: internação em ‗Hospital de custódia e tratamento
psiquiátrico‘. Conosco, que nesta instituição a escutamos, construiu-se um percurso de
elaboração distinto dos imperativos de exclusão ou de adaptação. Neste alhures, tornou-
se possível um trabalho rumo ao que, a posteriori, ‗terá sido‘ seu ‗ato‘; tocando algo do
real fazia-se possível, para ela, tirar conseqüências. Esta mulher assim o fez ao lançar a
questão que a levaria às portas da problemática ética: ―Como pude fazer isto?‖
2
Freud, em Neuropsicoses de defesa (1894) utiliza o termo Unglauben (desconfiança, descrença), para
nomear "um dos sintomas primados da paranóia" (p. 123). Com Lacan, este termo ganharia a conotação
de "descrença no Outro" como lugar da verdade do sujeito, uma vez que é usual, na psicose, que este
Outro compareça de forma avassaladora nas paranóias, sob a forma gozante, ou, na esquizofrenia, como
rechaçado ou fragmentado.
3
− Questão −
Fragmentos tais como este, do qual nos utilizamos aqui à guisa de intróito,
ilustram a problemática alocada pelos chamados ‗homicídios imotivados‘. Há tempos
alvos de estudo de disciplinas científicas, tais fenômenos são passíveis de ocorrer nas
psicoses, não sendo, porém, concomitantes a estas. O predicado ‗imotivados‘, que
qualifica tais ações, traz a marca da irredutibilidade à razões imediatamente
compreensíveis, razões estas que levam o ser falante, em seu cotidiano, a tomá-las como
―motivando‖ o suposto ―agente consciente‖ à prática de uma ação. O veto que estes
fenômenos impõem ao sentido intuitivo exige, pois, um saber que atinja, em meio ao
nonsense, o real dramaticamente posto em jogo nestes acontecimentos.
Destarte, os ‗assassinatos imotivados‘ desvelam − concorrendo também para isto
o campo mais amplo da experiência clínica − que: l) há uma série de fenômenos
humanos, não apenas psicóticos, cujo caráter díspar resiste ao compreensível, ou seja,
ao sentido imediatamente partilhado; 2) há mecanismos e estruturas que, a despeito de
sua opacidade, trazem uma incidência real e inteligível sobre o sujeito; 3) tal estado de
coisas exige considerar ocorrências que, ante o ideal de uma autodeterminação
consciente, demonstram que ―o eu não é senhor em sua própria casa‖, e, 4) a
psicanálise, como saber que emerge a partir do advento da ciência moderna traz, por sua
estrutura, a possibilidade de apreender este real não concernido pela ―compreensão‖.
Esta tese traz, então, sob seu escopo, os ―casos kakon‖ − ‗assassinatos
imotivados‘ na psicose, tentativas de realizar, no real, uma subtração de gozo
condizente com a foraclusão e alternativa à castração simbólica − seu lugar e
conseqüências para o psicótico, assim como considerações sobre o trabalho clínico com
tais pacientes. Se, como assevera Lacan, o mais subversivo na psicanálise é ―não
pretender ter a solução‖ (LACAN 1969-70, p. 66), é o encontro, no caso a caso, com a
tensão entre o universalizável e o impossível de sê-lo, o que nos permitirá construir,
junto ao psicótico, possibilidades de uma relação menos avassaladora com o
significante e o gozo em seus enlaces inéditos ao social.
Com efeito, para que a empresa aqui estabelecida seja levada a seu termo,
tomar-se-á, como questão que norteia nosso esforços, o problema: Tendo como
referência o discurso psicanalítico e considerando os ―casos kakon‖ – sua emergência,
suas conseqüências e tratamento – como pensar suas relações com a psicose? Esta
questão nos conduzirá a pensar a articulação, na psicose, entre passagem ao ato e
responsabilidade.
4
3
Cf. em Psicose e linguagem na obre de Jacques Lacan: semântica e estrutura, dissertação de mestrado
do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, UFRJ, fevereiro de 2007.
5
− Elaboração −
Uma vez constituída nossa questão, assim como o lugar de seu surgimento,
mister se faz expor, em grandes linhas, o itinerário seguido no decorrer desta tese. Este
trabalho divide-se, com efeito, em três partes, cada uma delas compostas por capítulos −
nos quais os tópicos são efetivamente abordados. Por fim, a conclusão faz, das partes, a
chave para nossas considerações finais.
− Primeira parte −
A primeira parte, intitulada ―O surgimento do problema dos assassinatos
imotivados e a concepção sanitária da penalogia‖, interroga como os chamados ―casos
kakon‖ aparecem na cultura como um subgrupo da discussão moderna sobre a relação
entre crime e loucura, e como a psicanálise, saber que opera sob o sujeito da ciência, se
posiciona em relação a este debate. No Capítulo I, intitulado ―Os assassinatos
imotivados: ‗conflito de competências‘ ou ‗conflitos e confluências‘?‖, intentaremos
apreender, desde o advento da ciência moderna e de seus desdobramentos na cena
social, a constituição do campo de discussões entre psiquiatria e direito acerca dos
assassinatos imotivados.
O Capítulo II, nomeado ―A concepção sanitária da penalogia e a construção do
instinto homicida‖ será dedicado a investigar como a psicanálise responde à convocação
para esta contenda. Como pretenderemos deixar claro, ela não poderá operar desde o
que Lacan chamou de ―concepção sanitária da penalogia‖ – que objetifica o sujeito –
ou, ainda, da idéia de um ―instinto assassino‖ ou ―criminoso‖. Na contramão de uma
criminologia, resgatamos Freud – em sua posição perante o ―Caso Halsmann‖ – e Lacan
– em sua crítica ao ‗sanitarismo‘ − como meio de questionar a forma prínceps com que
a sociedade responde aos assassinatos imotivados na psicose: a segregação.
− Segunda Parte −
A segunda parte de nosso trabalho, intitulada ―Da psicanálise à clínica clássica,
da clínica clássica à psicanálise: o aparecimento da noção de ―kakon‖ – explicitará o
percurso tecido a partir da entrada da psicanálise no debate crime-loucura, através dos
―crimes de autopunição‖ até a descoberta, no diálogo com a psiquiatria clássica, do
―kakon‖. Ao longo desta parte, vamos nos posicionar perante os homicídios imotivados
cometidos por loucos − e à abordagem analítica do crime – ressaltando a particularidade
da relação do sujeito da linguagem em sua tensão com o ―fora-da-lei‖ sui generis que
dela decorre.
6
PARTE I:
− Capítulo I−
Os assassinatos imotivados:―conflito
de competências‖ ou ―conflitos e confluências‖?
Na introdução desta parte de nossa tese, afirmamos que a questão dos
―assassinatos imotivados‖ − lidos, em psicanálise, como ―casos kakon‖ − advieram, na
cultura, como uma problemática moderna. À tensão discursiva alojada pelas disciplinas
‗científicas‘ a psicanálise vem acrescer sua posição bastante particular, que não coincide
com aquilo que Lacan viria nomear em Funções da psicanálise em criminologia
(1950a) como ―concepção sanitária da penalogia‖ (idem, p. 138).
Com tal expressão, retomada por Lacan do sociólogo e jurista Gabriel Tarde 4,
Lacan assinala, em 1950, uma incidência bastante particular da ciência sob a cultura:
segundo ele, ―empenhada como está no movimento acelerado da produção‖ (idem, p.
138), a civilização recorre à análise psiquiátrica, ―científica‖, do criminoso como forma
de apaziguar o mal-estar engendrado pelas tensões constituintes do laço social e pelo
desconforto encontrado no que tange ao punir. A objetivação do criminoso − efeito
correlato a tal ―concepção‖ − aboliria, de um lado, a ―significação expiatória do castigo‖
− retorno ao infrator do sentido de sua ação em relação ao contexto cultural − e, de
outro, implodiria a noção de responsabilidade − instaurando uma ―polícia universal‖,
científica, que visa à defesa social, à exploração econômica e à prevenção do crime à
custa da desumanização do transgressor.
No escopo de nosso trabalho mister se faz, portanto, esquadrinhar em grandes
linhas o surgimento dos ―assassinatos imotivados‖ como problema para a psicanálise.
Tal trajeto exige, porém, um percurso preliminar: como convidado tardio para a
contenda, o discurso analítico incidirá sobre um campo já complexo de discussões,
instituído por disciplinas tão díspares quanto psiquiatria, direito e criminologia. Este
‗campo‘ − que exploraremos agora e que, de saída, exigiu uma tomada de posição por
parte da psicanálise − será designado por nós − tomando emprestado o termo a Harris
(1993) e Carrara (1998) − como ―debate crime-loucura5‖. A constituição deste campo,
que estrutura ainda hoje a resposta usual a estes assassinatos, será, pois, o objeto do
presente capítulo.
4
Jean-Gabriel Tarde 1843-1904, filósofo, jurista e sociólogo, fora um dos principais e mais controversos
nomes da sociologia francesa no século XIX.
5
Com tal termo designa-se o processo, ocorrido a partir de meados do século XIX, no qual se efetivou o
movimento dúplice de ―criminalização da loucura‖ e ―patologização do crime‖. Em seus desdobramentos,
as tecnologias de segregação instauradas por este processo ainda hoje alojam um dos maiores desafios em
termos do provimento de uma escuta em que se articule, para o sujeito, ética e singularidade.
10
6
Nomeia-se, com esta expressão, uma série de execuções em massa que se desenrolaram em setembro de
1792 por toda França. Neste sangrento episódio, no qual em 5 dias foram executadas cerca de 1400
pessoas, os revolucionários invadiam prisões e asilos e instauravam tribunais com o intuito de julgarem,
eles mesmos, os criminosos. A ―pena capital‖ foi muitas vezes aplicada. Este episódio sangrento, às
vésperas da revolução, teve, como seu cume, a prisão do Rei Luís XVI.
11
À psiquiatria nascente − que tinha em Pinel senão seu fundador, ao menos seu
maior expoente − cabia, a partir do fenômeno, matéria-prima da percepção, agrupar os
diferentes tipos de loucura, esvaziando, da experiência, a ―subjetividade do observador‖,
e acomodando estes ―tipos‖ em ―classes, gêneros e espécies‖ (BERCHERIE 1980, p.
31-2).
Esta sistematização, que encontra em Pinel seu esboço, instala a alienação não
mais como elemento ‗cosmológico‘ −, ou seja, referido à ‗tradição‘7 − mas como objeto
‗científico‘ − o que supõe sua imanência a um método e a um campo circunscrito de
experimentação. Tratava-se, logo, não apenas da subtração de um fenômeno da
experiência cotidiana e da linguagem corrente, mas da alocação de um ‗novo‘ método e
objeto. Do mesmo modo que, a partir da ciência moderna, ―os planetas não falam‖ − por
serem ―realidades completamente reduzidas à linguagem‖ (LACAN 1954-5, p. 302) − a
partir do ‗projeto‘ de sua captura num real científico, a loucura, tão eloqüente como no
Elogio8 de Erasmo, ameaçava tornar-se muda.
A nova ‗captura‘, ainda que por ventura lançasse mão de antigos e toscos
grilhões − como os mencionados por Pinel no excerto acima − não se dava sem os
aparatos, agora mais sofisticados, da vindoura disciplina. Desenhava-se, pois, a ruptura
entre a concepção socialmente partilhada da loucura e a nascente ciência da alienação.
Um corte análogo fora reeditado no interior do próprio projeto pineliano.
A alienação, fragmento da realidade requerido pela psiquiatria em sua instalação
na cena social, era definida, até então, a partir da chave-mestra que era o conceito de
―delírio‖. No sentido inverso daquele de ―razão‖ − que implica que o sujeito, via cogito,
era capaz de aceder à verdade − nas Meditações de Descartes (1641) a loucura figura no
grupo das questões levantadas pelo método da dúvida não apenas como ilusão sensível,
mas como fora da razão:
E como eu poderia negar que estas mãos e este corpo sejam
meus? Exceto, talvez, que eu me compare a esses dementes
[...] que amiúde garantem que são reis, enquanto são bastante
pobres; que estão trajados de ouro e púrpura, enquanto estão
totalmente nus; ou imaginam ser vasos ou possuir um corpo
de vidro. São dementes e eu não seria menos excêntrico se me
pautasse por seus exemplos. (DESCARTES 1641, p. 250,
Grifo nosso).
7
Utilizamos este termo em sua acepção de ―transmissão oral de lendas, fatos, doutrinas, costumes, hábitos
e etc., durante um longo espaço de tempo‖; cf. em Aurélio (2001, p. 541).
8
Elogio da Loucura (ERASMO 15XX). Nesta obra, Erasmo faz, do ―amor próprio‖ e da ―adulação‖
elementos com os quais a própria loucura, personificada, visa a demonstrar seu lugar na experiência
humana cotidiana.
12
9
John Locke (1632-1704) filósofo inglês. Um dos fundadores do empirismo, referência cara a Pinel.
10
O uso deste termo, implica em sua não redução ao compreensível, ou seja, àquilo que se constitui por
referência ao sentido imediata e socialmente partilhado.
11
O termo ―mania‖, em Pinel, tem a acepção de ―desordem intelectual‖, com conotação bastante próxima
à concepção tradicional de loucura como ―descontrole‖.
13
posse de objetos cortantes, à ―sacrificar a primeira pessoa que visse‖ − o que chegara a
colocar em risco a vida de sua ―querida mulher‖.
No Hospital, quadro semelhante se repetiria: o ―vigia‖ do asilo, a quem o
paciente louvava por sua ―complacência e doçura‖, fora, desta vez, o alvo; noutra vez,
ele talharia, ainda, seus próprios peito e braço. Em ―pleno exercício da razão‖, ―mesmo
durante os acessos‖, este homem não evidenciava ―qualquer incoerência nas idéias‖. Em
verdade, afirma Pinel, o alienado, lúcido, horrorizava-se com sua situação, censurando
sua ―tendência automática a atos de atrocidade‖ (idem, p. 157).
Noutro caso, também narrado no Traité, um homem ―calmo‖, conhecido por sua
―beneficência para com os desafortunados‖ atirara uma mulher num poço, após ter
ouvido desta certos impropérios. Em consonância com tal desproporção, um grande
montante de testemunhos atestava perante os tribunais que, ―entregue‖ em sua infância
―a todos seus caprichos‖, este homem ―matava, de pronto, qualquer animal‖ − cão,
cordeiro ou cavalo − que ―lhe causasse desgosto‖. Das ―festas e assembléias‖ da cidade
ele saia freqüentemente ―ensangüentado‖, por trocar socos com os demais. Na idade
adulta, porém, o que remanescia de suas ―tendências‖ eram apenas as ―rixas
monetárias‖. Considerado insano − mesmo na ausência de atividade delirante evidente −
ele é enviado para ―reclusão no hospício de alienados de Bicêtre‖. Agora, não só os
―revolucionários‖, mas, também os tribunais e os juristas rendiam-se à ―justiça‖ e
―experiência‖ do alienista (PINEL 1801, p. 160).
B) O legado de Esquirol
Majorando o caráter moral do tratamento pineliano e atendo-se a uma psicologia
que via no ―eu‖ a instancia psíquica que tinha, par excellence, a função de ―controlar‖,
―selecionar‖ e ―sintetizar os automatismos psicológicos‖ (BERCHERIE 1981, p. 49),
Esquirol, discípulo de Pinel, requereu para a ciência nascente o ofício, concomitante ao
interesse epistemológico, de fundar, com a psiquiatria, outro ramo da ―higiene pública‖.
Grande precursor das lutas pela legislação e institucionalização do campo psiquiátrico12
(cf. BERCHERIE 1981, p. 54, FOUCAULT 2001, p. 176, HARRIS 1993, p. 123), diz
Esquirol que ―as paixões e o crime que armam a mão homicida não fogem de meu
12
Este processo ganharia grande impulso desde a lei de 1838 que firma que a internação dos alienados
deve ser feita em estabelecimento médico especializado, o que, segundo Foucault confere à psiquiatria,
como especialidade científica e ligada à ordem pública, sua ―consagração‖ (FOUCAULT 2001, p. 177).
14
13
Cf. mais adiante, na página 20.
14
Em A Treatise on insanity ond others disorders of mind (1835), Prichard, escrevera, a partir da ―mania
sem delírio‖ de Pinel, sobre a ―loucura moral‖, ―forma de desarranjo mental no qual as faculdades
intelectuais [estão ilesas], enquanto a desordem é manifestada no estado de sentimentos, temperamento,
ou hábitos ... os princípios morais da mente‖. ―Nesta desordem, a vontade está ocasionalmente sob a
influência de um impulso que subitamente conduz a pessoa afetada a atos dos tipos mais revoltantes, para
os quais ele não tem motivo‖ (PRICHARD apud ROBINSON 1996, p. 161). Segundo Robinson (idem, p
161), ―o foco de Prichard é a ausência de motivo racional‖.
15
Com tal termo − cuja inadequação não escapara a Esquirol15 − visava-se não à
importação da categoria pineliana, mas, sim, empreender um esforço para separar
―mania‖ e ―loucura parcial‖: se na mania ―todo entendimento é embaraçado‖, na
monomania, ―o entendimento é são, às vezes mesmo mais ativo que lúcido‖; se na
primeira ―todo ser intelectual e moral está pervertido, todas as ações desordenadas‖, na
segunda ―a perversão do ato é parcial, circunscrito como o extravio da ação‖ (idem, p.
5). Sustentando tais diferenças, Esquirol asseverará que a ―mania sem delírio‖,
curiosamente, não é uma mania, pois ―quase todos os fatos de mania sem delírio
lembrados pelos doutores [Pinel e Foderé] pertencem à monomania ou a lipemania16 (...)
as impulsões irresistíveis apresentam todos os sinais de uma paixão chegada até o
delírio (ESQUIROL 1938, p. 96).
As ―monomanias‖ − em tese distintas da mania, posto que, como assevera
Bercherie (1981, p. 52), tal classe abrangeria, em seu uso comum, ―toda sorte de atos
mórbidos (incêndio, roubo, assassinato, embriaguez, suicídio, etc.)‖ − compreenderiam,
segundo Esquirol, três tipos: as ―intelectuais‖, as ―afetivas ou racionais‖, e as
―instintivas‖.
No primeiro grupo, as ―monomanias intelectuais‖, a desordem intelectual −
delírio, ilusão e alucinação − é circunscrita a um único objeto da vida anímica do louco.
Partindo de um princípio falso, os enfermos tiram, destes, conseqüências logicamente
legítimas que ―modificam seus afetos e os atos de sua vontade‖. De acordo com
Esquirol ―fora deste delírio parcial eles sentem, raciocinam, agem como todo mundo‖
(idem, p. 1-2). Dentre os tipos clínicos aqui encontrados destaca Esquirol a erotomania,
loucura ―casta‖ e ―honesta‖ (idem, p. 32) tão bem explorada posteriormente por de
Clérambault.
Nas ―monomanias afetivas ou racionais‖, os enfermos não deliram, mas seus
―afetos‖ e seu ―caráter‖ encontram-se pervertidos. Posteriormente, ―por motivos
plausíveis, por explicações muito racionais, eles justificam o estado atual de seus
sentimentos e se desculpam pela bizarria, pelo inconveniente de sua conduta‖ (idem, p.
2). Este grupo − pontua Esquirol − englobaria a maior parte dos casos de ―mania sem
delírio‖ de Pinel e de ―loucura moral‖ de Prichard.
15
Esquirol concorda com Prichard, para quem a aplicação do sufixo ―mania‖ em ―monomania‖, não
convém às loucuras instintivas, ―pois apresenta ao espírito a idéia de desordem intelectual‖ (ESQUIROL
1838, p. 6).
16
Lipemania ou melancolia, caracterizada, segundo Esquirol, pela ―morosidade, tremor e tristeza
prolongados‖ (ESQUIROL 1820, p. XX), podendo, ainda, ―ser complicada pela mania‖.
16
Dentro desta lógica, vários foram os casos tornados célebres na época, como
aqueles resgatados por Michel Foucault17: Pierre Rivière; Léger, Papavoine e Henriette
Cornier (examinados por J. E. Georget18 em 1825 e 1826); a mulher de Selestát (lido por
Marc19 em 1832). Uma vez que alguns destes casos foram considerados por Foucault
como ―fundadores da psiquiatra criminal‖ (FOUCAULT 1975, p. 138), passemos a uma
rápida exposição dos mesmos.
17
Cf em Eu Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e o meu irmão... (FOUCAULT, 1973) e
Os anormais (FOUCAULT, 1975).
18
Jean Etienne Georget (1795-1828), foi médico-psiquiatra e um dos maiores discípulos de Esquirol.
19
Charles Crétien Henri Marc (1771-1841), médico-psiquiatra e, também, discípulo de Esquirol.
18
Após andar por um dia e meio quase a esmo, ele passa, então, a viver num
bosque, alimentando-se de frutos, ervas e raízes silvestres, chegando, inclusive, a comer
animais crus. Mais tarde, às autoridades, ele dirá que deixara a casa paterna após ―uma
gripe que tivera‖ e ―de um desespero que lhe tomara‖ (GEORGET 1825, p. 3-5)
acrescentando, ainda, que tinha a ―cabeça vazia‖. Neste bosque, ocorrera-lhe, pela
primeira vez, a ―necessidade de comer carne humana e se encharcar de sangue‖ (idem,
p. 4). Léger, dizendo-se ―possuído por um mau espírito‖ (idem, p. 7) avista a jovem
Debully, de doze anos e meio, que buscava lenha no bosque em que ele passara a viver;
quase instantaneamente Léger parte em direção à vítima, realizando, sob o sangue,
genitais e coração da vítima, a idéia que se lhe impusera. Após o feito, ele passara a
ouvir passos que ali estariam para ―capturá-lo‖; também, a insônia e os remorsos
passaram a tomar-lhe o sono. Estes sentimentos, associados ao fato de que Léger
pusera-se a esconder o corpo de Debully − mesmo indo, posteriormente procurar as
autoridades − foram tomados como exemplos de sua ―capacidade de entendimento‖ e
―premeditação‖; o júri, assim, concluiu a favor da pena capital.
ele teve proclamada sua alienação e absolvição; restou-lhe, como última opção,
empreender seu suicídio.
iv) Caso Papavoine
Não menos trágico seria o fim de Louis Auguste Papavoine, ex-comissionado da
primeira classe da marinha que, em 1825, com a idade de 41 anos, cometera homicídio
contra duas crianças. A partir da ―completa ruína de seu pai‖ (GEORGET 1825, p. 39),
em 1823, Papvoine tornara-se ―sombrio e irritadiço‖, chegando mesmo a experimentar
―um acesso de alienação mental que dura em torno de 10 dias‖. Neste acesso surgem
idéias de perseguição. Seu estado piora quando, tempos depois, morre seu pai e a
manufatura de sua mãe entra em concordata: ele aparecerá perante aquela mãe com um
papel em punho dizendo haver, neste, provas de que seu irmão ―não estava morto‖
(idem, p. 41).
Certo dia ele se depara, num parque, com uma mulher que passeia com dois
filhos. ―Pálido‖, com ―olhar fixo‖ e ―voz trêmula‖ ele dirige-se às crianças
apunhalando-as no coração, ação para o qual não encontra clara explicação: de início,
ele nega o crime; posteriormente dirá que, em verdade, queria matar os filhos da
duquesa de Berry e, assim, ―mergulhar toda a França num estado de desespero e dor‖
(idem, p. 44). A habilidade com que defendia suas idéias foi tomada no tribunal como
evidencia de razão. Papavoine fora, logo, condenado à forca, mesmo jamais tendo clara
a motivação de tal ato.
v) Henriette Cornier
Em 1825, Henriette Cornier, doméstica, sofrera, segundo Georget ―uma
mudança muito sensível‖ no caráter; antes ―doce‖ e ―alegre‖, ela tornara-se ―sonhadora,
sombria e taciturna‖ (GEORGET 1826, p. 71). Certa vez, bate à porta de seus primos e
confessa ter tentado se atirar no Sena, sendo impedida de fazê-lo pelos passantes. Não
muito depois, subitamente, ocorre-lhe, a idéia de assassinar Fanny, de 19 meses, filha
do casal Belon, com quem Cornier tinha boas relações cotidianas. Ela oferece-se para
tomar conta da criança enquanto a Sra. Belon trocava de roupas para um passeio;
quando Belon reclama de volta sua filha depara-se com o cadáver decapitado da
criança: ―Vá, você servirá de testemunha‖ − dirá ela à mãe em desespero.
20
20
No que tange particularmente a estes três últimos casos, a saber, Papavoine, a mulher de Sélestat e
Henriette Cournier, Michel Foucault afirmara tratar-se dos ―três grandes monstros fundadores da
psiquiatra criminal‖ (FOUCAULT 1975, p. 138).
21
Segundo ABREU (2004, p. 6-7) O escrito O homem na multidão, de 1850, de Edgar Alan Poe,
estabelece as bases do novo gênero. ―Ao narrar a história do homem que erra sem rumo por Londres,
sempre protegido pela multidão, Poe cria o ambiente ideal para o nascimento do romance policial. A
cidade é representada como um enigma, um mistério a ser desvendado. A multidão, por sua vez, passa a
desempenhar um papel de proteção; ela se transforma no abrigo que protege o indivíduo associal, o
criminoso, de seus perseguidores‖.
22
Em Crime e castigo, o autor faz de seu anti-herói Rakolnikov, um monomaníaco (DOSTOIÉVSKI, p.
376).
23
Em Cantos de Maldoror, pergunta-se o personagem: ―É um delírio de minha razão doente, um instinto
secreto que não depende de meu raciocínio, semelhante àquele da águia descendo sobre a presa, que me
impele a cometer o crime?; e entretanto, tanto quanto minha vitima, eu sofria!‖ (LAUTREAMONT 1868-
9).
24
Contos como O coração denunciador, William Wilson e etc denotam homicídios cometidos por loucos.
21
Com efeito, mais que uma imposição externa à sua disciplina, muitos juristas
viam no debate crime-loucura a oportunidade para acelerar as reformas que, no que
concerne aos fundamentos modernos do direito, faziam-se não só urgentes, mas já em
marcha.
25
Drácon, membro da assembléia dos nobres de Atenas fora encarregado, em tempos de guerra, de
constituir um código de leis escritas. Seu rigor renderia, à posteridade, o termo ―draconiano‖ como
sinônimo de ―desumano‖ e ―excessivo‖.
26
Sólon, considerado um dos sete sábios da Grécia antiga. Segundo Lopes (2003, p. 34), ―As leis de
Sólon eram ensinadas como poemas, de modo que todo ateniense bem educado terminava por conhecer
sua tradição político-jurídica comum‖.
22
Na Ilíada, por exemplo, como cita Robinson no primeiro capítulo de seu livro,
Agamenon evoca ―Loucura‖ para se desculpar com Aquiles por ter se apropriado do
espólio de guerra do herói, a jovem escrava Briseis. Dirigindo-se ao ‗quase invulnerável
guerreiro‘ ele clama por um panteão de deuses afirmando:
27 Koyré, em Do mundo fechado ao universo infinito (1957), chama tal transformação de uma
―radicalíssima revolução espiritual de que a ciência moderna é ao mesmo tempo a raiz e o fruto‖ (idem, p.
13). Nesta revolução, o homem não apenas perdera ―seu lugar no mundo‖, mas perdera ―o próprio mundo
em que vivia e sobre o qual pensava, e teve que substituir não só seus conceitos e atributos fundamentais,
mas até mesmo o quadro de referência de seu pensamento‖ (idem, p. 13).
25
acesso de ―qualquer um‖ à racionalidade das leis, até as exigências que exigiam, desse
sujeito ‗anônimo‘, uma formação competente:
28 Segundo Foucault (1975, p. 143), tal princípio trazia como seus elementos: 1) uma reapresentação, no
castigo, de uma analogia do crime cometido; 2) tratava-se, neste, também, de uma ―revanche‖ do
soberano, uma vez que o lugar por ele ocupado confundia-se com o lugar da lei; 3) os excessos da
punição intentavam uma anulação do ato transgressor perante a esmagadora potência coercitiva do
soberano. Como estas manifestações objetivavam apagar o ato, não havia, no Antigo Regime, a
possibilidade de que se questionasse a respeito seja da mecânica do ato seja, ainda, sobre a natureza do
transgressor.
29 Cesare Beccaria (1738-1793), escrevera, aos vinte e seis anos de idade, o livro Dos delitos e das penas
(BECCARIA 1764). Tendo passado, ele mesmo, pelas ―agruras da prisão‖ (idem, p. 9), insurgiu-se contra
os problemas desta instituição, dentre eles a tortura e a desproporcionalidade das penas em relação aos
delitos. Beccaria enunciou, pela primeira vez, o princípio de igualdade perante a lei erigindo, desde esta
operação o cerne do pensamento e da moral utilitarista: ―a máxima felicidade dividida pelo maior
número‖ [de pessoas] (idem, p. 23). Para Beccaria, a finalidade das penas é a de ―impedir que o réu cause
novos danos a seus concidadãos e demover os outros de agir desse modo‖ (idem, p. 52). As penas, assim,
―modernizam-se‖; ao aplicá-las, é preciso que ―conservadas as proporções‖, ―as penas causem impressão
mais eficaz e duradoura no espírito dos homens, e a menos tormentosa no corpo do réu‖ (idem, p. 52).
30 Segundo Harris (1993, p. 15) a vertente jurídica inspirada na teoria moral kantiana distinguia-se do
princípio utilitarista de ‗máxima felicidade para o maior número de pessoas‘. A primeira se caracteriza
por se estabelecer sob ―bases morais absolutas‖; cabe ao sujeito, na medida em que compreende uma lei −
ou melhor, um ―imperativo categórico‖ −, a ―obrigação de agir moralmente‖.
26
Nesta série de rupturas, o crime ganha um outro estatuto: ―desde então é preciso
que haja seus motivos, com os móveis do crime; esses motivos e esses móveis devem
ser compreensíveis, e compreensíveis para todos‖ (LACAN 1950a, p. 140). A atenção
desliza, pois, do registro antigo do ato em si, para sua relação, a ser quantificada, com a
―razão ou interesse do crime‖. Constitui-se um ―real‖ para o crime, visa-se apreender os
princípios de seu ―aparecimento, sua repetição, sua inteligibilidade natural‖
(FOUCAULT 1975, p. 110). Nesta ‗mudança de registro‘ a transgressão torna-se
punível em virtude da superposição da mecânica da ação à racionalidade do sujeito,
cônscio e motivado ao ato.
31
Segundo Harris (1993, p. 15), embora kantismo e utilitarismo conflitem em suas bases e
desenvolvimentos, conserva-se entre elas um núcleo em comum: a ―racionalidade‖ do sujeito como
―característica universal e constante da natureza humana‖. Assim, em sua incidência jurídica, a punição
intervinha não apenas pela desobediência à lei, mas, sim, por ter o agente ―consciência de estar agindo
errado e de que comete o crime intencionalmente‖ (idem, p. 15).
32
Alphonse Bertillon (1853-1914), precursor da ―antropometria judiciária‖. Nascido em meio a
estatísticos − pai e avô que, junto a Paul Broca, criaram a Associação dos Antropólogos, − Bertillon
inventou uma forma de medir as características corporais dos criminosos para melhor identificá-los.
Segundo Darmon (1991, p. 220) em 1884, tal prática for introduzida ―em todas as prisões francesas‖
enquanto a imprensa celebrava as ―experiências geniais de um jovem sábio francês‖, doravante chamadas
de ―bertillonage‖.
33
Com tal termo tomado do ―profético escritor Robert Musil‖, Miller assevera que ―o homem sem
qualidades é aquele cujo destino é o de não ter nenhuma outra qualidade senão a de ser marcado pelo 1 e,
deste modo, poder entrar na quantidade‖ (MILLER 2004a, p. 3). No processo de erradicação da
singularidade, ―Tornar-se unidade contável e comparável é a tradução efetiva do domínio contemporâneo
do significante-mestre sob sua forma mais pura, mais estúpida: o número 1‖ (idem, p. 2).
27
34
Julgamentos de bruxas que varreram a Europa e o novo continente entre os séculos XIV e XVII.
35
Num mundo em que as leis herdadas do mundo antigo eram reinterpretadas a partir do binômio crime-
pecado, os acusados de tal pacto eram tidos, não como vítimas, mas, sim, como ansiosos cooperadores.
28
36 Estratégias de ‗controle‘, ‗saúde‘ e ‗defesa‘ da população, tecidas mormente sob a égide econômica.
30
... como o grupo que faz a lei não está, por razões sociais,
completamente seguro da justiça dos fundamentos de seu
poder, ele se remete a um humanitarismo em que se exprimem
igualmente a revolta dos explorados e a consciência dos
exploradores, para os quais a noção de castigo tornou-se
igualmente insuportável. A antinomia ideológica reflete, aqui
como em outros aspectos, o mal-estar social. Ela agora busca
sua solução numa formulação científica do problema, isto é,
numa análise psiquiátrica do criminoso a que deve reportar-se,
após examinar todas as medidas de prevenção contra o crime e
de proteção contra sua recidiva, o que podemos designar como
uma concepção sanitária da penalogia (LACAN 1950a, p. 139).
− Capítulo II –
A concepção sanitária da penalogia
e a construção do instinto homicida
No capítulo anterior, acompanhamos como a psiquiatria, em seu processo de
captura de um real na loucura, fora levada até formas em que o delírio era ausente ou
não evidente. Destacavam-se, dentre estes casos, o que Pinel chamara de ―furor cego‖
ou ―tendência automática a atos de atrocidade‖ (PINEL 1801, p. 157): a conduta louca −
sob a forma dos assassinatos imotivados − ganhava assim o primeiro plano em
detrimento da relação ‗pelo avesso‘ que era aquela do delirante alienado em relação à
verdade. Esta virtualidade homicida, privilegiada em detrimento da desordem mental,
fora, como vimos, ampliada pelas mãos de seu discípulo, Esquirol, para quem ―as
paixões e o crime que armam a mão homicida não fogem de meu objeto‖ (ESQUIROL
1838, p. 94). Por todo lado, ensaiava-se ainda um passo a mais: não deveria o homicida,
por sua ação, ser interrogado como doente? As metáforas do criminoso como um
―micróbio‖ no ―corpo social‖ (HARRIS 1993, p. 112) próprias da vindoura sociologia
criminal à Lacassagne39, ganhavam terreno.
Se na modernidade o crime passa a ser dotado de uma espécie de ‗natureza‘ −
através da averiguação de seus ―móveis‖ −, agora, o homicida, num processo análogo,
também será tomado como objeto de investigação científica: no projeto de apreensão de
um real científico na infração, agregar-se-á ao transgressor uma densidade jamais vista
outrora. A emergência da ―teoria da degeneração‖ e da criminologia com seu estranho
artefato − o ―criminoso nato‖ − surgiam no campo da cultura como resultantes deste
processo; intentava-se subsumir o assassinato imotivado − tomado entre crime e loucura
− a conceitos como os de ―degeneração‖ ou ―instinto homicida‖. Este viés discursivo
alojara o ―duplo gume‖ da ―realização do crime e da desumanização do criminoso‖
(LACAN 1950a, p. 131); processo que estrutura, ainda hoje, práticas segregadoras. Em
nome de uma ―culpa objetiva‖, ―verificada‖ cientificamente pela intervenção de
especialistas − através de perícias, exames criminológicos, etc. −, a posição e a palavra
do sujeito − mesmo em seu ―direito à mentira‖ (LACAN 1950b, p. 129) −, é mormente
desconsiderada. Se abole-se a responsabilidade e a verdade inscrita na estrutura do ato
em pró de um programa de ―controle‖ e ―defesa social‖ −, que outro lugar senão aquele
de ―ob-dejeto‖ é reservado à tais sujeitos?
39
Alexandre Lacassagne (1843-1924), um dos fundadores da antropologia criminal francesa.
32
40
Traité des dégénérescences physiques, intelectuelles et morales de l'espèce humaine et les causes qui
produisent ces variétés maladives. Paris: Baillière, 1857.
34
41
Gregor Jahan Mendel (1822-1884) monge e botânico austríaco, descobrira as leis que organizam a
transmissão de caracteres hereditários.
42
Jean Pierre Falret (1794-1870) publicara, em 1854, seu livro De la non-existence de la monomanie.
35
43
Valentin Jacques Joseph Magnan (1835-1916). Segundo Serpa Jr. (1998, p. 163), ―em Magnan a ênfase
desloca-se da ‗degenerescência‘, como um processo abrangente, insidioso, cósmico, verdadeiro espectro
do mal, para a figura concreta do degenerado, com suas características físicas e mentais peculiares, que o
distinguem dos outros seres humanos‖. Com efeito, Magnan recusa a concepção moreliana de declínio, na
degeneração, de um tipo humano ―adâmico‖ perfeito; influenciado pelo evolucionismo, ele tenderá a
entender a perfeição não como começo, mas como fim adaptativo da espécie.
36
44
Franz Joseph Gall (1758-1828) fora o criador da frenologia, pretensa ―ciência‖ que, pelo formato da
cabeça do indivíduo − caroços e protuberâncias −, pretendia esquadrinhar seu caráter e detectar a
criminalidade.
45
Johan Kasper Lavater (1741-1801), criador da fisiognomonia, saber que intentava, desde a fisionomia
do indivíduo, conhecer a ‗natureza‘ de seu portador.
38
às vítimas, mas na própria indiferença com que tratam seja a dor sejam os instantes que
precedem à execução da pena capital. Assim, Lombroso relembra ―Bocarmé‖ que,
diante do apressar imposto por um carrasco, brinca: ―Não se inquiete. Sem mim não se
começa‖ (LOMBROSO 1895, p. 51).
Lado a lado a estas características comportamentais encontra-se um panteão de
traços fisionômicos. Cuidadosamente ilustrados em um Atlas anexado a seu livro
princeps, estes traços − encontrados em até 70% dos criminosos −, tornariam possível,
ao antropólogo criminal, a pronta identificação do criminoso nato. Tais descrições
abriam, com efeito, verdadeira senda de desconfianças mesmo quando da
impossibilidade em se provar, efetivamente, a autoria de um crime.
Poderia Lombroso, entretanto, no contexto em que erige seu pensamento,
relativizar a objetalização do criminoso, processo este correlato à ontologização por ele
empreendida? Ora, pinçadas no interior de o Homem criminoso, encontram-se leituras
comparativas em antropologia, nas quais o próprio autor, opondo-se ao espírito
metafísico, visa a demonstrar o caráter contingente de noções tais quais as de ―bem‖,
―mal‖ e ―justiça‖. Há, inclusive, o ensaio, da parte deste, de uma espécie de genealogia
das penas e concepções de justiça naquilo que ele reconhece como estágios da cultura
ocidental. É por este viés que Lombroso parece citar tribos, como os ―Toganis‖ (idem,
p. 88), que não reservam qualquer palavra à noção de justiça tal qual poderíamos a
entender. Mas, se ante a esta comparação mostra-se a natureza não metafísica da justiça
no espírito humano, a posição lombrosiana faz passar, por contrabando, o pensamento
de que estas sociedades são, em verdade, não apenas diferentes, mas, sim, primitivas e
inferiores: elas permitiriam ao bestial livre acesso à realização.
Mesmo perante a existência de ―bons selvagens‖ − quantificados por Lombroso
como ―poucos‖ (idem, p. 66) − o autor enxerga nestes, apenas uma maré de assassinatos
e crueldade. Deste modo, se por um lado comparações entre as diversas sociedades, − e
mesmo entre os diversos estágios destas − levam Lombroso a conceber que ―a
moralidade e a justiça nascem em grande parte do crime‖ (idem, 98), o estabelecimento
de um tipo de cultura que inibiria melhor a selvageria o leva a encontrar, no
etnocentrismo, sua posição. Ante sua iluminação ―naquela triste manhã de dezembro‖, a
possibilidade de ver, nas vicissitudes do desenvolvimento infantil junto ao contexto
social o surgimento dos conceitos de ‗certo‘, ‗errado‘ e ‗justo‘, fica em segundo plano;
embora reconheça o enlace entre infância e as vicissitudes do encontro com o outro −
sobretudo pelo viés educativo − a ênfase de suas concepções recairá sobre a faceta
39
―micróbio‖ sendo certas condições sociais seu ―meio de cultura‖ (HARRIS 1993, 112).
Tais críticas, porém, não anularam o princípio, apenas exagerado pela noção de instinto,
de que o homicídio seria a realização de uma virtualidade transgressiva e má, inerente à
natureza do autor. ‗Fóssil vivo‘, ―degenerado‖ ou ―micróbio‖, este pensamento
ontologista até hoje faz valer suas marcas na forma como a cultura responde seja aos
crimes comuns seja aos assassinatos imotivados.
Ao contrário do que a escola lombrosiana dispunha como seu princípio basal,
Gabriel Tarde reconhecia, nas relações do indivíduo com o entorno social um veto
teórico consistente em relação à atribuição de traços fisionômicos ou antropológicos
próprios ao criminoso. Boa parte de sua obra dedica-se, assim, ao aporte crítico aos
textos, estatísticas e ‗dados‘ ‗atavistas‘, movimento que culminaria na desconstrução e
problematização da noção de ―criminoso nato‖. Seria, segundo Tarde, a ―similitude‖ −
pertencimento e influência recíproca em relação ao corpo social − e a ―identidade
pessoal‖ − ―acumulações‖ e ―conservações‖ de certos hábitos e experiências (TARDE
1890a , p. 73) − que condicionam as relações entre o indivíduo e seu entorno. Tais
parâmetros deveriam ser tomados como base para pensar as tensões que engendram o
crime e que permitiam buscar uma noção de responsabilidade ―não metafísica‖.
49
Para Tarde as ―leis de imitação‖ − a ―força do exemplo‖ e a ‗influência de um espírito sobre
outro‘ − eram o mecanismo-chave para apreender a passagem do individual ao social e vice
versa.
42
social‖ e ―homogeneidade‖: ―se‖, como recupera Lacan do apóstolo Paulo, ―a lei é que
faz o pecado‖ (idem, p. 128), a civilização apenas pode ser pensada, em sua estrutura, a
partir de ―contradições‖ e ―tensões‖ que impliquem esta dialética.
Com efeito, se de certa forma Lacan rende homenagens a Gabriel Tarde em seu
texto sobre a criminologia tomando-o em alguns pontos como seu interlocutor, por
outro lado, como psicanalista ele reconhece a divergência crucial entre a punição e a
ação do analista. Tarde atribui à punição um lugar próximo ao da noção, para ele
central, de imitação: a pena encontrar-se-ia entre o ―exemplo‖ − intimidação utilitarista
43
É, portanto, desde a aposta na resposta do sujeito àquilo que o acossa que nos
contrapomos, com Lacan, à ―objetificação‖ e a ―desumanização do criminoso‖
destacada por Tarde e retomada por Lacan nos anos 50: a ―concepção sanitária da
penalogia‖.
Estes avanços do ―império universal‖, são atrelados, por Lacan, ao menos desde
1950, à proliferação do capital, ao ―movimento acelerado da produção‖ e ao que ele
chamou em 1963 de ―mercado comum‖ (LACAN 1963-4, p. 164). Mas como a
concepção sanitária da penalogia, roldana entre ciência e capitalismo, move esta
máquina de segregação da singularidade, desdobrada, inclusive, nos campo de
concentração para loucos pobres que são os HCTPs, forma princeps de resposta aos
homicídios psicóticos?
Ora, se estamos, como pontuara Miller, na era do ―homem sem qualidades‖, em
que tornamo-nos ―unidade contável e comparável‖, reduzidos sob ―a ação do
significante-mestre sob sua forma mais pura, mais estúpida: o número 1‖ (MILLER
2004a, p. 2), é pela inclusão maciça nesta formalização que encontrasse o ponto de
interseção entre capitalismo e ciência. Como pontuara Oliveira (2004, p. 21), ―é aqui
que se mostra, de modo mais preciso, a total compatibilidade entre ciência e
capitalismo: ambos fazem contas‖; se ―a mais-valia é contabilizada pelo capital‖, este
discurso ―reduz tudo a valores. O próprio trabalhador torna-se, aí, apenas unidade de
valor‖ (idem, p. 21). Como a ciência, o discurso capitalista, co-responsável por esta
segregação da qual o sanitarismo em penalogia é uma das faces mais explícitas, opera
pela Verwerfung, pela rejeição do sujeito:
Para Lacan, será sua conjugação no laço social que fará do resto, o objeto ―a‖ –
não significantizável, não redutível à bateria significante – pivô dos diferentes
discursos. Isto que escapa, os ―corpos estranhos‖, os ―elementos inassimiláveis‖ pelo
―organismo social‖, como pontuara Tarde (1890b, p. 130), não guarda ressonâncias com
o que, retornando do inconsciente, Freud chamou, também, pelo mesmo nome53?
Se, como reitera Lacan, há, entre capitalismo e ciência, ―rechaço de campos do
simbólico‖ (LACAN 1971-2), que lugar o sujeito da enunciação e o resto da operação
simbólica terão que não, respectivamente, a ontologização pela captura da enunciação
no enunciado e o lugar do inassimilável operando não como causa, mas, simplesmente,
via gadgets, como empuxo ao gozo?
A segregação a que nos referimos, logo, articula-se desconhecendo a
irredutibilidade do sujeito da enunciação − e do gozo, no caso das psicoses − ao campo
do enunciado, numa operação que busca desconhecer, de forma radical o heterogêneo
ao dito. Ora, o sujeito, ao ser marcado por um significante, caindo sobre uma
propriedade ou categoria, não o é sem que algo que ―não cessa de não se escrever‖
(LACAN 1972-3, p. 198) deixe de apontar para os limites intrínsecos ao simbólico. Dito
de outro modo, a alienação a um significante implica, como dirá Lacan em seu
seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, de 1964, numa
perda, reiterada pelo sujeito do significante na operação concomitante à alienação, qual
seja, a separação.
Entendido desta forma, o campo da crítica à segregação empreendida por Lacan
seja em seu Petit discours aux psychiatres de Sainte-Anne (1967) como em seu Funções
da psicanálise em criminologia (1950a) ganha ainda uma conotação mais radical;
reclamando a articulação entre técnica e ética, ele estende-se inclusive aos analistas. Em
seu Petit discours, Lacan pondera que mesmo estes − confrontados com a relação do
sujeito com o resto em suas análises e em seu manejo cotidiano − podem, com o tempo,
―esquecer esta experiência que eu chamei precária‖ (LACAN 1967).
Entrincheirados em ―sociedades científicas‖, os psicanalistas podem conservar
―em sua hierarquia algo que é da mesma ordem desta distância (...) em relação ao
objeto, que resulta na impossibilidade do psiquiatra em abordar a realidade do louco
desde um novo ponto de vista‖ (idem).
53
Em Estudos sobre a histeria (1893), Freud traçara uma analogia entre os pensamentos inconscientes,
que retornam sobre o sujeito, e ―corpo estranho‖, marcando, com tal comparação, a heterogeneidade do
aparelho psíquico.
49
Perante este desafio, a tese que aqui encontra sua manifestação é a de que outros
usos da psicanálise, que não incorram numa redução da psicanálise ao sanitarismo em
penalogia, são possíveis. Não seria esta a senda aberta por Lacan, com sua crítica, em
1950, ao retrocesso que é a entificação do sujeito no discurso criminológico?
Ainda que ocorra a objetivação e diluição da singularidade do infrator pelo
processo de universalização científico, a aposta lacaniana em 1950 será bastante clara: é
preciso haver, na ação psicanalítica neste campo, ―a conciliação necessária entre os
direitos do indivíduo‖ e ―os progressos abertos pela ciência para nossa manobra
psicológica do homem‖ (LACAN 1950b, p. 130).
Não importa, pois, à psicanálise, combater a ―desumanização‖ através de um
retorno ao humanismo. Dito de outro modo, se o contexto em que se articula o texto
sobre a criminologia é aquele em que a linguagem é explorada por Lacan em sua
potencialidade semântica − numa maior ênfase ao registro imaginário – desde aquele
texto não será uma visão fechada do falante, mas, sim, a pluralidade dos sentidos
possíveis sua chave interpretativa das relações com a alteridade.
Aos analistas não resta, pois, outra via que não os ―progressos abertos pela
ciência‖, posto que ―o sujeito sobre o qual opera a psicanálise é o sujeito da ciência‖
(LACAN 1966a, p. 873); sua práxis é partícipe do corte cartesiano a qualquer
―referência humanista‖ (idem, p. 871) ou ‗ontológica‘ − que buscam alojar uma
‗natureza humana‘ em contraposição à existência pontual e evanescente que é aquela do
sujeito. A referência à linguagem, bastante precoce na obra de Lacan 54 − e já presente
em seus textos de 1950 sobre a criminologia − o levam a tomar, como seu ponto de
partida, a tese que advoga o sujeito da linguagem e, por conseguinte, a ―inexistência de
instintos criminosos‖ (LACAN 1950a, p. 148).
54
Como vimos em Psicose e linguagem na obra de Jacques Lacan: semântica e estrutura (COSTA 2007)
as referências às ―relações de compreensão‖ jaspersianas, foram apreendidas, por Lacan, desde a dupla
chave da sintaxe que são as relações sociais e a dimensão pulsional, porta aberta ao freudismo.
51
No primeiro grupo de fatores, Lacan dirá que ―nem o crime nem o criminoso são
objetos que se possam conceber fora de sua referência sociológica‖ (LACAN 1950a, p.
128). Todavia, se ele instaura a sociologia como discurso do mestre − na tarefa de
apreender como as ‗coisas andam‘ no corpo social − ele não deixará de instalar um
avesso para este discurso: o discurso psicanalítico. Este discurso identifica na incidência
da linguagem sobre o falante e na lógica binária do registro imaginário − que confronta
o sujeito a situações em que ele é levado a escolher entre ―ou eu ou o outro‖ (LACAN
1948) − ―tensões relacionais basais‖ que operam como se ―o mal estar da civilização
desnudasse a própria articulação da cultura com a natureza‖ (LACAN 1950a, p. 129).
Retomando Totem e tabu (FREUD 1913), Lacan proporá − não como quer o
sanitarismo, que ata crime e ‗desumano‘ − que ―com o crime primordial‖ − assassinato
do Pai − ―começava o homem‖ (LACAN 1950a, p. 132). São estas tensões dialéticas
que, varridas pela ―assimilação alienante‖ (idem, p. 146) inerente ao discurso científico
− em sua concomitância com os imperativos advindos das forças de produção −
retornam, para o corpo social, em sua potência criminogênica:
55
O ―caso Dreyfus‖, ocorrido na França em fins do século XIX, trata-se da condenação por alta traição de
Alfred Dreyfus, membro do exército daquele país. Num controverso processo, de motivação anti-semita,
55
Dreyfus fora acusado de fornecer, ao governo alemão, documentos confidenciais franceses. Não tardaria
para que o processo, concomitante a uma onda de xenofobia que varria a Europa pré-nacional socialismo,
demonstrasse sua inconsistência. Várias personalidades, como Émile Zola e Anatole France,
pronunciaram-se publicamente contrapondo-se à condenação. Poucos anos após sua prisão Dreyfus é
readmitido no exército, não ficando, porém, ali, por muito tempo.
56
Mesmo sumamente ignorado pelos tribunais, Freud, que anos mais tarde
perderia parentes para o regime nazista, posicionara-se de modo emblemático perante o
uso da psicanálise nos tribunais. Neste ato, que entendemos ser paradigmático da função
ética do psicanalista, Freud, que pressentira os perigos do uso de sua doutrina, juntara-
se a personalidades como Einstein e Thomas Mann em prol da absolvição do jovem
Halsman, esforço que acabaria por reduzir inicialmente a pena pela metade, e, por fim,
em setembro de 1930, libertar Phillip com a condição de que ele deixasse o país em 24
horas.
Indo primeiramente até Paris, Halsman alojaria-se posteriormente em Nova
Iorque, consagrando-se com fotógrafo da revista Life e ganhando notoriedade junto ao
grande público devido à série de fotos chamadas ―Jump‖, em que celebridades
despojam-se do habitual ao mergulharem, ludicamente, em cenas inusitadas nas quais
estas saltam. Para a psicanálise de então e no pós-guerra, explicitar-se-ia o perigo de seu
uso nos tribunais. Mas, dirá Lacan, em 1950, que, se a psicanálise encontra seus limites
no ponto em que ―começa a ação policial‖ (LACAN 19502, p. 131), em sua intervenção
junto ao falante
Tal posição permite questionar, também, a forma prínceps pela qual a sociedade
responde aos assassinatos imotivados, na psicose. Se, como demonstra a psicanálise a
partir da experiência clínica, não há, no que diz respeito ao sujeito, ―instintos‖, sejam
eles ―criminosos‖ ou ―assassinos‖, instituições que se instalam desde noções como as de
―periculosidade‖ desvelam-se, como sanitarismo, verdadeiros ―campos de
concentração‖ (LACAN 19501, p. 148). Este é o caso dos Hospitais de custódia e
tratamento psiquiátrico.
57
PARTE II:
− Capítulo III −
O diálogo entre a clínica psiquiátrica clássica e a psicanálise
Na parte anterior, dedicamo-nos a explorar o surgimento, na modernidade, da
discussão acerca de certos homicídios que, por sua lógica interna e desdobramentos,
foram predicados como ‗loucos‘, ‗incompreensíveis‘ ou ‗imotivados‘. Estas ações, que
colocavam em xeque a lógica utilitarista dos ―móveis‖ ou ―motivos do crime‖,
revelavam-se irredutíveis à propriedade de ser ―compreensíveis para todos‖ (LACAN
1950a, p. 140), desafiando, portanto, sua aglutinação discursiva em termos de princípios
de seu ―aparecimento, sua repetição, sua inteligibilidade natural‖ (FOUCAULT 1975, p.
110). Rateava, assim, a proposta de punir tais homicídios em virtude da superposição da
mecânica da ação à racionalidade do sujeito, cônscio e motivado ao ato.
Tendo como ponto de partida este ‗fracasso‘ − disposto pela dinâmica própria
àquelas ações que, embora loucas, davam-se em meio à ausência de distúrbios (delírio,
alucinação e etc.) de pronta identificação − as teorias atavistas e degenerativas surgiam
como tentativa de apreender, para além do compreensível, o real presente nos
assassinatos ‗sem motivos‘. Tais teorias, ao entificar o criminoso, operariam uma
reificação apontada por Lacan como verdadeira ―regressão‖ (LACAN 1950a, p. 136).
Ao empreender este percurso investigativo, deparamo-nos com outra face deste
tema, a resposta dada a estes assassinatos, também pontuada por Lacan nos anos 1950:
trata-se dos efeitos de segregação inerentes ao que ele nomeara, a partir de Tarde, como
concepção sanitária da penalogia. Pensada em termos de ―prevenção‖ e ―defesa social‖
− e articulada a uma análise ―científica‖ do criminoso (nova forma de controlar o mal-
estar engendrado pelas tensões, contradições e explorações presentes no laço social) −
tal perspectiva apreende os homicídios loucos como uma virtualidade transgressiva – e
mesmo má – que, biologicamente inscrita, se atualiza através de atos intempestivos.
Esta concepção, surgida na interface entre psiquiatria, direito e criminologia,
marcara conflitos e colaborações que estruturam, até hoje, a resposta princeps da cultura
ao assassinato imotivado: perícias − que buscam, psíquica, bio e sociologicamente
construir uma natureza que englobe tais atos e legitimem a objetalização do transgressor
−; internação em asilos-prisão − instituições ―totais‖ em que ―tratamento‖ e violências
(subjetivas e corporais) mostram-se indissociáveis −; exames criminológicos − que, sob
a alegação de particularizar a pena, revelam-se, antes, como ferramentas de controle e
segregação que interpretam a loucura em função da noção de perigo − e etc.
62
Perante este fervilhante campo de discussões, não tardaria para que a psicanálise,
recém emergida entre os últimos anos do século XIX e os primeiros anos do século XX,
fosse convocada para o debate crime-loucura. Ainda que alguns dos primeiros analistas
se dividissem ante esta questão – fato que ocorre, em verdade, mesmo hoje − nossa
posição será a de − no esteio da postura freudiana sustentada no caso Halsmann e das
críticas empreendidas por Lacan ao sanitarismo em penalogia em 1950 − não
desconhecer o princípio de nossa responsabilidade:
Logo, os psicanalistas, convocados para este debate, não o farão sem encontrar-
se às voltas com ao menos dois princípios que marcarão uma alternativa na busca pela
apreensão do que está em jogo nos homicídios loucos; estes princípios são alocados
pelos conceitos, surgidos da clínica, de pulsional e de realidade psíquica.
No que concerne ao pulsional, a não existência de um objeto próprio à pulsão
(FREUD 1915, p. 128) − engendra uma explosão do registro degenerativo ou atavista
que se desenha desde a idéia de uma perversão na teleologia do instinto, em sua relação
com o objeto. A noção de pulsão, logo, abre vias para o campo das vicissitudes e
tropeços, contrapondo-se a uma via régia em termos de economia psíquica.
Algo semelhante decorre da noção de realidade psíquica: sua irredutibilidade à
experiência concreta e imediata fizera Lacan evocar, ao explorá-la conceitualmente, sua
‗estrutura ficcional‘ (LACAN 1959-60, p. 22). Dito de outro modo, o psíquico e a
linguagem, antes de apenas retratar o mundo, engendram entes e objetos impossíveis
sem sua incidência. Perante esta ficcionalidade, as tentativas de captar o real disposto
nos assassinatos imotivados pela via da ontologização e da reificação – como o fazem as
teorias instintivas antigas e modernas − mostram-se partidárias de um perigoso
realismo, ‗nada ingênuo‘, porque articulado a uma lógica de ‗defesa social‘.
Destarte, no caminho empreendido na presente parte − a entrada da psicanálise
no debate crime-loucura, através dos ―crimes de autopunição‖ até a descoberta, no
diálogo com a psiquiatria clássica, do ―kakon‖ − posicionaremo-nos, perante os
homicídios cometidos por loucos − e o crime − de forma a ressaltar a particularidade da
relação do sujeito da linguagem em sua tensão com o real que dela decorre.
63
A) O Caso Wagner
Em 1913, tendo recém completado 39 anos, o professor Ernst Wagner, nascido
em Eglosheim, distrito de Ludwigsburg, Alemanha, passaria a ter seu nome associado a
um dos mais debatidos e comentados episódios da psiquiatria clássica.
56
Trata-se de psicoses que se manifestariam por ocasião do encarceramento, levantando o debate sobre se
estas eram ou causadas ou apenas deflagradas pelo ambientem prisional.
57
Mais tarde, segundo LORENTE (1948), outras categorias clínicas ganhariam, também, períodos
médico-legais‖, variando, entretanto, de autor em autor e de classe em classe.
65
Wagner, que quando criança destacava-se como primeiro aluno da classe, vira
seus sucessos obscurecidos por sonhos angustiantes e persecutórios que duraram até a
maturidade; nesta idade, entre os 18 e 20 anos, desenvolveu uma consciência moral
estritamente cáustica, que fustigava-o por suas práticas onanistas. É partindo da violenta
eclosão desta ―má consciência‖ contra a masturbação que Gaupp, desde o relato de
Wagner, situa o florescer da ―significação pessoal mórbida58‖:
58
Trata-se da significação que se impõe ao enfermo como semantização da experiência de perplexidade
em que este encontra-se mergulhado no momento de seu desencadeamento.
67
Mister se fazia, portanto, mudar para uma cidade próxima, Radelstetten; mas,
quando as perseguições fizeram-se insuportáveis mesmo na nova morada, Ernst mudou-
se, outra vez, com a família, em 1912, para Dagerloch, periferia de Stuttgart. Ao povo
de Radelstetten restava o desgosto – tinham Ernst em alta conta. Em Dagerloch ele
prosseguiu seu ofício de professor até que a esperança de escapar à ―tortura‖ evanesceu:
seu delírio se fez mais agudo e a literatura, seu maior recurso perante a angústia, apenas
lhe poupava, agora, por poucas horas. Assim, antes de suprimir sua própria ―estirpe‖ e
os homens de Mühlhausen, ele escrevera cerca de trezentas páginas em seu diário.
A comoção pública evocada pelo feito de Wagner começara a esfumar somente
com o início da Guerra; até então eram freqüentes os ataques não apenas a Ernst, mas,
também, a Gaupp por ter-lhe ‗poupado‘ da pena de morte. Quanto a Wagner, entre 1915
e 1920, este se mostrava inseguro com relação à culpa dos habitantes de Mühlhausen.
Tal oscilação – que levara Gaupp a interrogar a cronicidade da paranóia de Kraepelin −,
porém, não implicou, como pontuara Gaupp, qualquer arrependimento da parte de
Wagner. Absolvido da pena de morte, e, por outro lado, sem expectativas de sair da
internação, Ernst aferrou-se ao trabalho literário, recebendo, inclusive, elogios da
direção do teatro estatal de Berlim por seu livro Delírio: o trabalho, valoroso, não estava
―ainda suficientemente maduro para ser encenado‖ (GAUPP 1938b, p. 271).
A temática delirante, outrora dirigida aos habitantes de Mühlhausen, ganharia,
então, outro objeto: estreando a peça Schweiger (―silenciador‖) onde Wagner falhara, o
escritor Werfel seria acusado por Ernst de ―plagiar‖ seu Delírio. Segundo Wagner,
Werfel desmontara o livro; identificando-se com seu personagem, roubou sua descrição
da loucura, conseguindo, com ela, ―a glória literária‖. Não teria se dado algo semelhante
entre as obras cinematográficas Quo vadis, e seu livro Nero?
Nesta segunda etapa da paranóia de Wagner, o delírio fixado em Werfel, restou
inabalado mesmo pelos esforços de Gaupp em fazer Werfel escrever a seu paciente
asseverando sua inocência. Numa reversão delirante – e coadunando-se ao espírito da
época − o judaísmo de Werfel desdobraria-se, para Wagner, em pujante anti-semitismo.
―É possível dizer que a fé em sua missão poética se converteu em algo tão
necessário como o ar que [Wagner] respirava‖ (idem, p. 273) – dirá Gaupp, muitos anos
depois de sua famosa monografia. ―Sua obstinação, em seu delírio poético, foi mais
necessária para viver que o delírio de perseguição ‗provocado‘ pelos habitantes de
Mühlhausen‖ (idem, p. 274). Depressivo, após tentar sem sucesso fazer-se escritor e
após seguidas tentativas de suicídio, padeceria Wagner, em 1938, de tuberculose.
68
59
A célere exposição do caso Aimée que realizaremos agora encontra, em nossa dissertação de mestrado,
sua referência; ali, ao contrário do que fizera Jean Allouch em seu Paranóia: Margueritte ou A Aimée de
Lacan (2005), havíamos privilegiado o estudo daquele caso desde os recursos, discussões e contexto que
foram aqueles dos anos 30, na formação de Lacan. Seguimos, assim, o espírito do magistral estudo
empreendido por Tendlarz, em seu Aimée com Lacan (1999). Esta escolha implica, logo, num privilégio
que nossa pesquisa confere à versão ‗diurna‘ que Lacan dá do caso Aimée – sua interpretação como
paranóia de autopunição −, e não à versão ‗noturna‘ daquele caso, desenvolvida por Allouch desde a nota
de rodapé localizada na página 300 da tese de Lacan, na qual ele insinua o endereçamento da passagem ao
ato de Aimeé não a seu eu ideal, mas, sim, a sua mãe, o que, com os conceitos posteriores de Lacan, pode
ser entendido como uma ‗tentativa‘, no real, de produzir uma ‗separação‘.
69
60
Lacan, em sua tese, dirá que se tratava de um trabalho nos ―Serviços ferroviários‖.
70
A cada dia que se passava ela tinha cada vez mais firme em seu espírito a
impressão de que ―algo deveria ser feito‖. Quase de um só fôlego pôs-se a escrever seu
primeiro livro; este, somado a um segundo volume e a uma quantidade considerável de
cartas não assinadas, seria endereçado ao príncipe de Gales, tido a partir de então como
seu ―protetor‖. Também entre seus escritos figuravam alguns artigos que ela inutilmente
tentou publicar em um jornal comunista. À recusa de seus textos ela responde com uma
séria agressão à mensageira. Lacan lamentará não a terem internado naquele mesmo
momento. A Elise ela escreve a sentença ambígua: ―É preciso que você esteja pronta
para testemunhar que René me bate e bate no garoto. Eu quero me divorciar e ficar com
o garoto. Estou pronta para tudo, senão eu o matarei‖ (LACAN 1932, p. 168).
Na noite do atentado, ela se preparava para se encontrar com a família. Todavia,
uma hora depois, lá estava a jovem senhora entre os vários fãs que faziam parte do
grupo de pessoas que ansiosamente esperava pela peça de Benoit. É então que ela ataca
sua vítima: ―No estado em que me encontrava então, eu teria atacado qualquer um de
meus perseguidores, se eu os pudesse atingir ou me encontrasse com eles por acaso‖.
No decurso desta escuta, a conclusão atingida por Lacan e publicada em sua tese
será a de que a ―psicose de nossa paciente foi realizada pelos mecanismos de
autopunição que prevalecem na estrutura de sua personalidade‖ (idem, p. 247). A
tomada em consideração pelo eu ideal e do agente crítico, o supereu − instâncias que se
impunham às considerações de Lacan pela escuta de sua paciente − possibilitava
entrever a amarração disposta entre o delírio, o alvo da agressão e a finalidade da
passagem ao ato. Com o mesmo golpe que Aimée atinge o ―puro símbolo‖ de seu ideal
– ―uma mulher de artes‖ − ela estava apenas a se punir. Se era verdade que, em meio às
colegas de cárcere ela se sentira castigada, mesmo anteriormente, ao atingir sua imagem
em espelho, era a si própria que ela buscava penitenciar.
Deste modo, o recurso à psicanálise – recurso este que engendrava a um só
tempo uma possibilidade de ―classificação‖, ―prognóstico‖ e ―tratamento‖ de casos de
psicose – possibilitaria antever o quanto a adesividade do paranóico à sua
―personalidade‖ e à ―significação pessoal‖ estariam a serviço de um modo de satisfação
narcisista e autopunitivo. O apelo à semântica e à personalidade, em seu horizonte,
revelaria: 1) quanto à primeira, o caráter patogênico de uma significação não
dialetizável e entregue a si mesma; e 2) quanto à segunda, os efeitos dramáticos de uma
alienação extrema do sujeito a uma imagem especular de si mesmo.
73
61
Lacan, os irmãos Tharaud, os surrealistas Benjamim Péret e Paul Eluard escreveram sobre o caso pouco após seu
aparecimento; em 1947 Jean Genet publicara, desde ―o caso‖, sua peça Les bonnes (―As criadas‖), retomando o
assunto anos mais tarde em um debate com Sartre; em 1963 Vauthier e Papatakis filmariam, sobre as irmãs, Les
Abysses, mesmo ano em que Le Guillant escreveria L’affaire des soeurs Papin e G. Bonnot redigiria La soirée em
enfer; em 1966 Paulette Houdyer, a quem Léa cedera uma mútica entrevista, publicará Le diable dans la peu; em
1995 Nancy Meckler dirigirá Sister my sister; em 2000, surgirá o filme Les blessurers assassines, de Jean-Pierre
Denis, mesmo ano em que aparecerá o documentário En quête des soeurs Papin, de Claude Ventura.
77
62
Em verdade, também a melancolia, seja em sua acepção pré-clássica ou em seu classissimo, comparece
nas descrições de crimes sem motivo. Dubuisson e Vigouroux (1911), por exemplo, destacam o chamado
de ―homicídio altruísta‖, em que matam-se filhos, maridos ou amante para que estes não sofram pelo
suicídio, paradoxalmente nem sempre bem sucedido, do melancólico.
78
B) Da esquizofrenia ao kakon
No texto Crime et delires passionnels (1927a), de Capgras, explorado por nós há
pouco, este autor tece considerações sobre os homicídios imotivados na paranóia. De
um lado, vimos como, numa vertente ‗quantitativa‘, a procura pela apreensão da lógica
do ato passava pela via de uma ―desproporção‖ entre o motivo alegado –
frequentemente delirante – e a ação impetrada. Vimos, também, que esta perspectiva
mostrava-se ―falha‖ por carecer de parâmetros de mensuração, baseando-se em
pressupostos que, além de não concernirem ao real, eram moralistas: ―A paixão que
mata não é a do homem normal‖ (CAPGRAS 1927b p. 291). Por outro lado, na vertente
‗qualitativa‘, a lógica delirante permitia apreender, nas psicoses em que o delírio era
sistematizado, as formatações que conjugavam o homicídio louco e ―imotivado‖.
Curiosamente, contudo, em sua discussão sobre ―crimes e delírios passionais‖,
que versaria sobre as psicoses passionais, Capgras abrira o carrossel de casos clínicos
com uma história que pertence ―à esquizofrenia mais que à paranóia‖ (CAPGRAS
1927a, p. 33). Trata-se do caso de uma mulher, internada em seu serviço aos 43 anos,
que, aos 20, ―havia matado o amante por golpe de faca devido a um motivo fútil‖ (idem,
p. 33). Após três anos na prisão e seis meses de internação, esta mulher, passa 20 anos
―se conduzindo bem‖ − casando-se e tendo três filhos −, até o momento em que ―uma
alucinação a impeliu a apunhalar um guarda municipal em frente ao palácio de justiça,
para vingar seu pai defunto que suas vozes acusavam de ter sido cúmplice do primeiro
assassinato‖ (idem, p. 33). Se as vozes e temas delirantes mergulhavam a mulher num
absoluto nonsense − sendo, por vezes, posteriores aos homicídios − como apreender que
tenham conduzido pacientes a empreenderem ações como estas?
83
declara um antigo oficial da marinha imperial russa. Chegando a seu destino, Paul
convida K. para uma caminhada num parque, caminhada esta que, após 40 minutos, fora
interrompida por tiros mal disparados que atingem o braço e o flanco de K. Deixando o
taxista para trás, Paul tenta em vão dar a partida no carro. Não conseguindo, toma outro
taxi e segue até o comissariado de polícia mais próximo, dizendo, lá, fazer parte de uma
poderosa sociedade secreta cujo chefe, ―coronel da armada russa‖, ele havia encontrado
15 dias antes. Teria sido este chefe quem o designara a matar, mediante pagamento, um
traidor.
Reinterrogado após certo tempo, Paul diz não saber o porquê de ter feito aquilo;
passado outro período, ele atribuiria o ocorrido ao álcool. No momento em que
escrevem o artigo, os autores afirmam que ele parece ter abandonado qualquer crença
delirante: entre a ―indiferença, a inércia e a apatia‖ o paciente mostra-se pouco
interessado seja em seu destino seja no da vítima.
Os autores extraem, deste caso, certa evolução: uma ―violência imotivada
atacando um desconhecido, também a fabulação romanesca e mal acabada que segue
imediatamente o drama e enfim o abatimento indiferente em que se prolonga o
enfermo‖ (GUIRAUD e CAILLEUX 1928, p. 356). Nesta seqüência, o ―debruçar-se
improdutivo sobre si mesmo‖, o retraimento, cede lugar a uma ―penosa sensação por
sua vez física e mental‖, penosidade esta que culminaria num sentimento de urgência:
―era anormal‖, ―piorava e era preciso fazer alguma coisa‖ (idem, p. 357) – dissera o
paciente.
Na história de Paul, os autores demarcam duas formas de ―defesa‖ anteriores à
tentativa de homicídio, dirigidas ao profundo mal-estar: 1) a bebida, que ―no campo
físico‖ agia de forma ―estimulante‖ e como um modo de ―fazer esquecer‖; e, 2) a adesão
à política e à religião no campo mental. É ao evocar a idéia de defesa – que punha, em
segundo plano, a procura por antecedentes patológicos familiares, ademais inexistentes
− que os autores recorrem à teoria psicanalítica: segundo asseveram, a segunda forma
de defesa ―era, como dizem os psicanalistas, uma forma de sublimação defensiva. Suas
elocubrações o conduziam à idéia de um ―mal geral‖ e de que ―era preciso suprimi-lo‖
(idem, p. 357-8). ―Nada extraordinário‖ – prosseguem Guiraud e Cailleux – ―que tenha
fundido a noção de enfermidade (―maladie‖) com aquela do mal social ou que tenha
sobretudo simbolizado a primeira pela segunda‖ (idem, p. 358). Nesta perspectiva:
85
Neste artigo, Guiraud procede sua elaboração clínica retomando o caso Paul –
desenvolvido junto a Cailleux – e acresce, ainda, três outros casos: 1) Edouard, que,
ante a sensação de inquietude, que explodira em meio a Escola de Odontologia, dispara
não contra seus ―perseguidores‖ mas contra a própria família; 2) Enrique para o qual a
irrupção avassaladora do mal-estar, acompanhada de experiência de ―possessão‖, o
levariam a matar ―a mulher que deveria ter sido sua noiva‖; e 3) Louis, que assassinara
sua filha a tiros, empreendendo, posteriormente, a explicação de que o fizera para
protegê-la de perseguidores – explicação que Guiraud entendera como encobridora dos
ciúmes do pai em relação a filha. Com efeito, ao reunir estes casos, Guiraud pretendia
86
− Capítulo IV −
A psicanálise perante os chamados
―crimes‖ imotivados: da autopunição ao kakon
No capítulo anterior, intentamos apreender, em grandes linhas, a emergência da
noção de ―kakon‖ desde o diálogo entre a clínica psiquiátrica clássica e a psicanálise,
saber recém emergido na cena da cultura. Num passo da morfologia à psicopatologia, a
psiquiatria faria da fenomenologia clínica a base para estabelecer suas descrições,
diferenciações e diagnósticos, mudança esta que passaria a formatar a aproximação
concedida ao tema dos assassinatos imotivados. Deste modo, a paranóia, as psicoses
passionais e a esquizofrenia se faziam herdeiras das descrições pinelianas e morelianas
do ―furor cego‖ (PINEL 1801, p. 157) que tomava os alienados.
Pensadas desde a noção kraepeliniana de ―delírio sistematizado‖ de evolução
―insidiosa‖ (KRAEPELIN 1915, p. 423) ou como ―loucura raciocinante‖, por Capgras,
as sutilezas da paranóia – que deixariam o leigo desarmado ante a aparente ―lucidez‖ e a
―clareza‖ de espírito (CAPGRAS 1927a, p. 32) – permitiam acesso a uma lógica para
além da razão utilitária, onde perfilavam-se os homicídios irredutíveis aos crimes de
interesse. Mas como apreender aqueles homicídios em que mesmo as razões delirantes
encontravam-se ausentes?
Partindo da esquizofrenia hebefrenica, Guiraud e Cailleux aventarão a hipótese
de que, nestes homicídios, embora careça-se de ―motivos compreensíveis‖ – que, como
vimos, são a base para se pensar a noção moderna de ―crime real‖ ou de ―móveis do
crime‖ – há causa: são, pois, ―não uma reação sem causa, mas um esforço de liberação
contra a enfermidade transposto patologicamente para o mundo exterior‖ (GUIRAUD e
CAILLEUX, 1928, p. 359). Num recurso a conceitos como ―mecanismos de defesa‖,
―sublimação‖, ―transferência‖, ―simbolização‖ e ―desejo‖ estes autores farão um aporte
ao freudismo, apelo que se desenhava desde a tentativa de restituir − após a ―regressão
filosófica‖ apontada em 1950 por Lacan, qual seja, o ―instinto criminoso‖ − os
assassinatos imotivados ao campo das considerações científicas.
Como veremos no presente capítulo, se a determinação inconsciente havia dado
mostras de efetividade ao atingir os atos falhos e sintomáticos, vários estudos analíticos
haviam sido concedidos a certos crimes que, sem o recurso a esta determinação, seriam
inapreeensíveis em sua lógica. Nos crimes de autopunição, desvelava-se o supereu,
paradoxal ―lei fora da lei‖, ao mesmo tempo presentificada por imperativos morais e,
paradoxalmente, operando como empuxo a transgressão.
90
Ora, é a propósito destes lapsos de auto-delação que Freud retoma, em uma nota
de rodapé (FREUD 1901, p. 250) – acrescentada em 1907 − o tema que, como vimos no
segundo capítulo, foi discutido um ano antes em seu A psicanálise a determinação dos
fatos nos processos jurídicos (1906): a iniciativa de Jung, Wertheimer e Klein – estes
dois últimos discípulos do jurista Hans Gross − de utilizar a determinação inconsciente
para forçar, nos tribunais, a auto-traição do criminoso e a formação da prova. Aqui
Freud mostra cautela: se ―talvez‖ os juristas possam colher frutos das descobertas
psicanalíticas, de outro lado lhe parece certo dizer que:
Numa edição tardia do mesmo livro, vinte e três anos mais tarde, Freud alterará
drasticamente o sentido desta oração: onde se lia ―Um dia provarei...‖, na versão de
1901, ele passará a afirmar ―Sei agora, e posso provar com exemplos convincentes, que
muitos ferimentos aparentemente acidentais sofridos por estes doentes são, na realidade,
lesões auto-inflingidas‖, na edição de 1924. Mas, cabe aqui a questão: que razões teria
Freud para, neste ínterim, passar da expectativa de prova para a pujante afirmativa
destas autopunições? Segundo cogitamos, a pista para se entender este movimento
encontra-se antevista pelos próprios prosseguimentos a este trecho originais de 1901:
assim se daria posto que, segundo Freud, a criança que, por intermédio da autoridade é
forçada a abrir mão de certas satisfações pulsionais, erige, contra esta autoridade, uma
grande soma de agressividade. O medo da perda do amor – e também da violência
externa – leva o infante a renunciar também a satisfação de seus impulsos agressivos.
Posteriormente, quando incorpora a autoridade através de uma identificação, o supereu,
instância crítica, apodera-se desta agressividade que exigirá escoamento.
Ora, uma vez que, para Freud, a civilização implica na renúncia progressiva à
realização desta violência – e como a pulsão se caracteriza por sua urgência em buscar
satisfação – resta a agressividade voltar-se contra o próprio eu do sujeito, objeto, agora,
não apenas do isso, mas, também, do supereu, esta faceta ―degradada‖ do pai:
63
Grifo nosso.
97
furtou; ele fazia isto, inclusive, sem retirar, dos livros roubados, a etiqueta do vendedor
original. A estranheza gerada no ‗comprador‘ não deixara de produzir suspeitas: B. logo
fora descoberto e detido; não tardaria, também, para que descobrissem seu uso de um
diploma falso. Nas lojas em que roubava ele era tido como bom freguês − dinheiro para
comprar seus livros era, de fato, algo que não lhe faltava.
Solto, enquanto o processo corria, B. mudara-se para Berlim. Lá chegando, num
quarteirão de clínicas médicas, refaz o mesmo procedimento: torna a roubar livros e
vendê-los, ainda com sua etiqueta, em outra livraria, crime que fora considerado
―insignificante‖ pelo comissário de polícia. B., não obstante, parece esforçar-se para ser
preso: de pronto confessa ter roubado também um microscópio numa loja de produtos
óticos; quando seria, mais uma vez, indulgenciado, confessa ainda que, vindo para
Berlim, roubara figuras de porcelana numa exposição.
Sua detenção parecia não apenas procurada, ela trazia-lhe uma espécie de alívio.
Preso, a única preocupação que tivera fora a leitura de seus livros de medicina.
Comportando-se bem e fazendo amizade com o médico que ali trabalhava, ele passara a
auxiliá-lo. Porque este homem de reconhecida capacidade intelectual exibia, em seus
roubos, tamanha falta de cautela, não apenas não tentando impedir, mas, como que
procurando ser detido?
Segundo Alexander e Staub, que se ocuparam do caso, ―o seu comportamento
perante as autoridades da polícia de Berlim, onde confessou atos puníveis e não
descobertos, até ver impossibilitada sua liberdade, revela nitidamente a influência fatal
de sua necessidade de punição‖ (ALEXANDER e STAUB 1928, p. 102). Se, com a
idade de 34 anos, esta necessidade de punição se manifesta de maneira franca, modo
semelhante de funcionamento custara-lhe, na juventude, o ingresso na carreira militar.
Aos 17 anos, em formação como cadete do exército, durante sua instrução para
se tornar oficial, B. rouba, na loja do quartel e em frente a funcionários, alguns doces.
Em seu depoimento ele mesmo qualifica seu ato como uma grave infração,
reconhecendo sua expulsão da corporação como justa. Naquele dia acabara de receber
uma visita de sua mãe, grávida. Lembra-se de que, então, tivera a impressão de que
―todos os homens o apontavam como sendo o autor daquela gravidez‖ (idem, p. 193).
Alexander e Staub reconhecem, neste caso, as condições freudianas para se
pensar nos criminosos por sentimento de culpa: ―O ato é feito porque é proibido e para
o fim de ligar um sentimento de culpa pré-existente, proveniente do complexo de Édipo
e de compensar esta culpa por punição (idem, p. 194). A pregnância do complexo de
99
Édipo neste caso seria corroborada por outras recordações de B. Nestas, ele relata que,
em sua infância, tivera, por alguns anos, uma fobia leve de andar na rua. Esta fobia
tivera início quando ele caminhava com sua mãe e, de repente, dois cavalos evadiram-se
assustados. Alexander e Staub vêem neste caso, como ocorrera com o pequeno Hans, a
simbolização que associava o pai aos cavalos revoltados, desde o desejo de morte
dirigido ao patriarca e o desejo incestuoso pela mãe.
À expulsão da escola de cadetes seguira-se uma tentativa frustra de suicídio e o
posterior perdão dos pais. É então que B. voltará aos estudos, desta vez numa escola
superior com vistas a tornar-se um médico. Não obstante, afastado por doenças que o
acompanhavam desde a infância e que rendiam a ele um ―precário estado de saúde‖, ele
é forçado a afastar-se dos estudos. Esta não seria, porém, a primeira relação que B.
tivera com a medicina.
Em sua infância o médico de sua mãe, mulher constantemente doente, era o
único homem, senão seu pai, que tinha acesso livre ao quarto daquela. Alexander e
Staub, em sua escuta de B., apreendem que a profissão de médico simbolizava ―carta
branca para o acesso ao corpo da mãe‖ (ALEXANDER e STAUB 1928, p. 196). As
transgressões que B. empreendia – que tiveram começo na presença de sua mãe grávida
na loja de doces – ligavam-se, posteriormente, à medicina: não havia ele furtado, antes
de ser afastado de seus estudos, uma máquina fotográfica de uma colega de classe − não
se dando o trabalho de retirar-se da sala nem, tampouco, de esconder o objeto,
acarretando em sua descoberta? Uniam-se, neste ponto – ponderam os autores − duas
cadeias libidinais do sujeito: de um lado, na vertente edípica, a aula de anatomia
presentificava a tensão entre a medicina e o corpo materno; de outro, no que tange a
pulsão escópica, aparece a necessidade do olhar, no caso determinando tanto o objeto a
ser furtado quanto o fato de B. ser visto sendo apanhado. Realizava-se, deste modo a
satisfação pela auto-punição.
Dentro desta lógica, também o roubo das porcelanas – ocorrido quando de sua
ida a Berlim − relacionava-se à proibição exposta pela mãe ao então menino B., de tocar
na vasta e preciosa coleção de porcelanas que esta detinha. Os doces, roubados quando
da visita da mãe grávida, ganhariam, também, um sentido edípico: eles eram fornecidos
a ele, quando infante, por debaixo dos panos, burlando as proibições do pai. Por outro
lado, as difíceis relações com um pai deveras autoritário formatavam uma dificuldade
em receber ajuda de homens, levando-o a dispensar o auxílio de advogados, médicos e
etc., dificuldade esta manifestada na oferta de ajuda que Staub – jurista − lhe oferecera
100
para intervir juridicamente em seu caso: ―Porque não posso aceitar o auxílio que o
senhor me ofereceu? Porque, abaixo de cada conta, parece haver uma soma final que
representa a soma do dever e do haver; eu lhe ficaria devedor, durante minha vida
inteira, e não posso suportar tal situação‖ (ALEXANDER e STAUB 1928, p. 199).
A conclusão de Alexander e Staub fora a de que conservou-se, para B., o
complexo de Édipo, fator que sobre-determinou os crimes e a necessidade de respostas
punitivas provocadas pelo próprio paciente. A mera punição, deste modo, não atingiria
nada além de uma reiteração do circuito traçado desde o sentimento de culpa e a
autopunição. Interessante seria, portanto, não a prisão, mas o tratamento psicanalítico,
junto a uma ligeira internação, posto que ―uma pena seria algo insensato e prejudicial,
contraproducente, levaria a outros crimes (...) a sociedade facilitaria sua cura quando
desistisse de castigá-los e puni-los‖ (idem, p. 201).
Na argumentação exposta por Carlos como motivação para seu crime, Alexander
e Staub notam que a suposta infelicidade matrimonial não explicava o que acontecera de
fato: a tentativa de duplo suicídio convertida em tentativa de homicídio da namorada.
Por outro lado, esta racionalização aplicava-se a uma mulher infiel, o que, afinal, não
era inverossímil posto que ela realmente traia senão a Carlos, ao menos o noivo. Entre
as premissas, conclusão e ação restavam lacunas que acenavam, junto a confusão de
Carlos, para a incidência de pensamentos inconscientes.
Como posteriormente – durante a escuta clínica por Alexander − se tornaria mais
claro, a expressão ―amigo de casa‖ trazia, para Carlos, ressonâncias edípicas. Com a
morte de sua mãe, após um bom tempo, seu pai, de 60 anos, casa-se com uma mulher
que tinha a idade do filho. As relações entre pai e filho, marcadas pela distância,
inclusive financeira, melhoraram neste ínterim. Entretanto, não tardará para que a
grande intimidade entre Carlos e a madrasta se transfigure em atração por ela.
Uma vez que seu pai trabalhava fora de casa o dia todo, aquela mulher, muito
doente, recebia cuidados diários de Carlos que passava o dia com a madrasta e a tarde se
retirava, antes que o pai retornasse. Um dia, porém, seu pai lhe pede que passe a vir
apenas quando este estivesse em casa, assim se evitaria que as pessoas ―falassem‖ e
―pensassem mal‖. A colocação do pai parecera, a ele, injuriosa e injusta; energicamente
ele decide não mais voltar à casa paterna. O desejo incestuoso, tornado consciente pela
admoestação do pai, fizera o sentimento de culpa emergir, dirigindo-se, não a Carlos
como culpado, mas, sim, ao pai como ―injusto‖.
64
Com efeito, o posicionamento de Alexander e Staub a respeito da responsabilidade será objeto de
considerações mais detidas nas partes finais de nossa tese.
103
Estes exemplos clínicos − que instanciam o tópico freudiano dos criminosos por
sentimento de culpa, descobertos, desde a clínica, vários anos antes – desvelam, assim,
a sobre-determinação inconsciente de certas ações qualificadas como criminosas. Desde
o caso B. – que, como o sonho infantil, traz diminuída a distância entre o conteúdo
latente e o conteúdo manifesto da transgressão como autopunição – até o caso ―Carlos –
cuja a complexidade e intrincamento implicam em declinações e remanejamentos do
sujeito com a necessidade de punição (acoplada a um traço quase reivindicador de
―vingança) – manifesta-se o trabalho inconsciente com o pulsional. Mas de que forma
esta ligação que é a autopunição poderia, economicamente, aparelhar o sujeito em sua
relação com a pulsão de morte?
Mas como a relação do superego com o pai pode ser herdeira do complexo de
Édipo – uma das máquinas que inscrevem o sujeito no laço social − se esta torna
presente caprichos que, por sua crueldade, podem implicar a autodestruição do sujeito?
Em mal estar na civilização, Freud lança luz sobre esta questão tecendo uma ponte entre
o pai, assim como este se apresenta no complexo de Édipo, e o pai da horda primitiva,
pura crueldade e privação para com seus filhos.
Masculino Feminino
108
como ―não é o caso que, para todo x, aplica-se o predicado Φ‖ (ser castrado), mas, sim,
da seguinte forma: para os argumentos desta função – os falantes ―sob a bandeira das
mulheres‖ − a propriedade Φ é ―não-toda‖; as mulheres são e não são concernidas pela
castração. Dito de outro modo, se os homens, concernidos pelo mediador fálico,
dirigem-se a um fora da lei simbólica a recorrer ao objeto ―a‖, causa de desejo, as
mulheres, não-todas concernidas por esta função, tem acesso a um gozo ―suplementar‖
àquele regido pela lógica fálica. Lacan pontua, a este respeito, que seu ‗novo‘
quantificador, o não-todo, operante no lado feminino, opõe-se ao gozo advindo desta
posição como ―complementar‖, passível de totalizar-se em relação ao gozo masculino.
Apelando ao falo como mediador, balizado pelo não-todo de sua função, uma
mulher, na parte inferior da fórmula da sexuação, no vetor La (―A mulher‖ não existe,
logo, ―uma mulher‖)-Φ, pode posicionar-se pela via da demanda de amor. Se, como
dissera Lacan, o amor deve ao símbolo (LACAN 1972-3, passim), é como dirigindo-se
a um homem que uma mulher poderá encontrar o semblante de sua femininilidade, que
recobre a falta, no Outro, de um significante que designe ―A mulher‖. No vetor La-S(A)
encontramos o gozo do Outro como gozo suplementar, emergido desde a infinitização
na relação com o real não mediada pelo operador fálico; trata-se do gozo para além da
função fálica, ressonante com a procura de um parceiro não regido pela falta: Deus.
Assim, no último Lacan – como, de certa forma, fora com a pulsão de morte em
Freud, que por seu funcionamento, recusa-se a cifrar-se desde a dialética de
representações no princípio de prazer – há a possibilidade de que o sujeito se depare
com as vicissitudes de um gozo não balizado pelo falo simbólico. Há, portanto, no que
diz respeito à lei da linguagem, a produção de uma zona de extimidade. O supereu pode,
portanto − por contigüidade de registro, sendo resto da lei simbólica – pôr-se em relação
ao sujeito como forma de apresentação da pulsão de morte. A autopunição, como
dissera Freud em O problema econômico do masoquismo (FREUD 1924b), é uma
tentativa de vincular ou balizar este gozo a partir da fusão instintual com Eros.
Embora seja um fato de estrutura – encenado no mito freudiano e matemizado
por Lacan em 1972 nas fórmulas da sexuação, no qual o pai da horda aparece como
exceção que, inocupada, funda o conjunto dos homens – se impõe ao falasser este resto
da lei, o supereu, não apenas herdeiro do complexo de Édipo – como pensara Freud –
mas, mais primordialmente, como exceção à castração, que exige, imperioso: ―Goze!‖
(LACAN 1972-3, p. 11). Esta anterioridade lógica, que ata à linguagem a produção do
impossível e ao pai o lugar de uma das formas de sua subjetivação, leva Lacan, durante
110
Neste estudo, Freud faz perfilar, lado à faceta do ―artista criador‖ – objeto de
habituais considerações −, aquelas do ―neurótico‖, do ―moralista‖ e do ―pecador ou
criminoso‖. No que tange a este último lado, pergunta-se Freud: ―porque ficar tentado a
classificar Dostoievski entre os criminosos (FREUD 1927a, p. 184)? Ora, se na obra de
deste autor não raro os criminosos ocupavam – desde uma magistral caracterização –
lugar de relevo, num diálogo com as biografias destinadas a este escritor, Freud ressalta
o quanto a ―simpatia‖ do autor russo pelo criminoso era, de fato, ―ilimitada‖, indo
... muito além da piedade a que o infeliz tem direito e que faz
lembrar do ‗temor sagrado‘ com que os epiléticos e os lunáticos
foram tratados no passado. Um criminoso, para ele, é quase um
Redentor que tomou para si próprio a culpa que, em outro caso,
deveria ser carregada pelos outros. Não há mais necessidade de
que alguém mate, visto que ele já matou, e há que lhe ser grato:
não fosse ele ver-nos-íamos obrigados a matar (idem, p. 194).
Nos comentários tecidos por Freud sobre Dostoiévski, grande parte é destinada a
discussão sobre sua epilepsia, que, segundo ele, tivera seu aparecimento na infância do
autor. Tais crises teriam, naquela época, uma ―significação de morte‖:
O riso destaca-se, desde o texto sobre Escritores criativos, de 1907, como forma
de ―livrar-se da carga pesada imposta pela vida e conquistar o intenso prazer
proporcionado pelo humor‖ (FREUD 1907, p. 143). Pela via do processo humorístico
Freud reitera, em seu texto O humor, de 1927, a queda das barreiras entre o transgressor
e o não transgressor – posição inversa à ‗desumanização‘ do criminoso:
No segundo capítulo de nossa tese (p. 38), vimos como procede Lombroso
perante o humor do criminoso: ele relembra ―Bocarmé‖ que, diante do apressar imposto
por um carrasco, brinca: ―Não se inquiete. Sem mim não se começa‖ (LOMBROSO
1895, p. 51). A interpretação lombrosiana do chiste destitui o processo humorístico
vendo, naquele dito, não um enlace que esfuma as diferenças entre o criminoso e ‗seus
outros‘, mas, sim, uma objetalização que o reifica, marca de sua insensibilidade bestial.
Encontramos, assim, um justo encaminhamento à segunda pergunta erigida por
Freud em seu texto de 1916 sobre os Criminosos por sentimento de culpa. À pergunta
―É provável que esta espécie de causação [a culpa] desempenhe um papel considerável
no crime humano?‖ (idem, p. 347) a resposta é: a transgressão pode ser – e não é
necessariamente – uma tentativa de tratar − pela vinculação masoquista entre Eros e
pulsão de morte – as vociferações do supereu e o sentimento de culpa. Por outro lado, a
aproximação da psicanálise com o debate criminológico é prenhe de inúmeras outras
possibilidades: Theodor Reik, por exemplo, interroga os processos psíquicos comuns
aos ―indícios do crime‖ e o ―sintoma analítico‖, relacionando os modos de investigação
de sinais pela via analítica, científica e mítica em Psicoanalisis del crimen: El assessino
desconocido (REIK 1956); há, ainda, autores contemporâneos como Serge Cottet que
atentam que ao se restringir a psicanálise ao tópico dos ―crimes de autopunição‖,
―imediatamente, deixa-se de lado todo um setor da criminologia, como crimes
perversos, crimes de massa, crimes imotivados, ou esquizofrênicos de Guiraud‖
(COTTET 2008, p. 2) – estes últimos tema central de nossa tese.
116
próprio como e a partir da alteridade. Lacan faz ecoar, assim, o dito de Rimbaud para
quem o ―eu é um outro‖ (LACAN 1948, p. 120). É na ―suspensão‖ (idem, p. 114) desta
dialética – na qual o sujeito é marcado pela discordância fundamental com a imagem de
si – que Lacan ilustrará como, para o psicótico, o ―kakon obscuro‖ opera ao ―expressar
a discordância‖ a partir de uma série de temas delirantes e experiências corporais que
delegam, uma vez mais, ao psicótico, o lugar de objeto a ser gozado. Trata-se de:
Parte III
− Capítulo V –
A objetalização científica e a dimensão objetal na psicose:
dois diferentes paradoxos na relação entre fala e linguagem
Nos capítulos anteriores, vimos trabalhando, de forma relativamente sistemática,
o surgimento, moderno, da discussão acerca dos assassinatos imotivados. Na complexa
contenda formada por áreas tão díspares quanto psiquiatria, direito e criminologia, a
psicanálise, convidada tardia, fora convocada a tomar posição. Com efeito, neste
percurso, deparamo-nos com a abordagem – talvez não seja leviano assim denominá-la
− ―clássica‖ desta interface, aproximação esta que opera desde a ênfase na sobre-
determinação inconsciente de certas ações classificadas como criminais, que interessam
à psicanálise não por seu caráter transgressivo, mas, sim, por sua dimensão sintomática.
Tais ações, os crimes por conseqüência do sentimento de culpa, ao contrário do
que se possa sugerir, podem operar não como pura ruptura de laços sociais, mas,
paradoxalmente, como formas dispostas pelo sujeito para tratar a instância enlouquecida
que é o supereu – que pode advir como ―pura cultura da pulsão de morte‖ (FREUD
1923, p. 66) − e com um gozo que, com Lacan, pudemos, ainda que de maneira célere,
qualificar como fora-da-lei, posto que impossível de ser capturado pelo jogo de sinais
que compõe a determinação estrita pela faceta simbólica da linguagem.
Conduzidos que fomos pela força desta argumentação que se nos impôs,
chegamos, logo, a uma conclusão a nosso ver fundamental: uma vez que, como
asseverara Lacan em seu texto sobre a criminologia de 1950a, ―não há instinto
criminoso‖ (idem, p. 148), dentre os casos possíveis, os crimes de autopunição são
apenas umas das formas de tratar o gozo. Desde esta perspectiva, a incidência do
supereu em atos criminosos de modo algum pode ser lida como ontologização do
criminoso: outros caminhos para lidar com os imperativos superegóicos e com o que
escapa ao simbólico podem conduzir o sujeito à vários outros destinos.
Isto que é verdade para a questão criminológica se mostrará verdadeiro, também,
no que tange a especificidade de um fora-da-lei – distinto seja da transgressão seja
daquilo que, nas neuroses, escapa ao registro simbólico; trata-se, nomeemo-lo, o ‗fora
da lei fálica‘, particular aos modos psicóticos de estruturação subjetiva. É em relação às
particularidades da estruturação psicótica que, neste momento, começaremos a nos
debruçar sobre este outro ‗fora-da-lei‘, distinto do ‗fora-das-leis‘ positivas que é o
criminoso, valorizando, desde o testemunho destes sujeitos, o lugar da fala e da
linguagem na psicose.
120
65
De fato, tal ruptura marcaria a fundação da Sociedade francesa de psicanálise da qual, por algum
tempo, Lacan viria a fazer parte.
121
tanto dos objetos designados, quanto do sentido resultante de sua interpretação pelo
falante. É este aspecto da linguagem, por exemplo, que nos permite dar um tratamento
matemático aos fenômenos naturais de modo a explicitar as leis que os regem e os
determinam, indo muito além de uma simples experiência particular. Deveu-se,
verdadeiramente, à construção de um real desde esta sintaxe − e não à medida e aferição
empíricas − o grande salto que a ciência alçou nos últimos séculos.
No que nos interessa, tal advento, para o homem, não pôde deixar de ter uma
grande conseqüência: esta sintaxe, ao incidir sobre o falante, aloja, numa dimensão de
linguagem, o efeito não substancial que é o sujeito. E como o homem, a partir da
modernidade, se posicionará perante as incidências que esta estranha esfera
eminentemente sintática da linguagem lhe impõe?
Em verdade, é sabido que, na absoluta maioria das vezes, tal questionamento
nem ao menos vem a ser, pelo falante, colocado. Se este tipo de constatação não resulta
em surpresa, o mesmo não ocorre quando a pergunta insiste, de um modo ou de outro −
mesmo à revelia daquele em que habita − em se apresentar. Frente a isso, o dispositivo
analítico não pode deixar de reconhecer, no impasse de uma questão que persevera, o
nicho de sua operação.
Curiosamente, o dirigir a palavra a um analista − tentativa do falante integrar
certos traços que o impedem de ser Um − é, ao mesmo tempo, a condição de
possibilidade de uma análise para o neurótico e o berço maior de sua resistência à advir
enquanto sujeito. Lacan faz observar que, ali, no momento da chegada do paciente, em
seu pedido de análise, ele busca, sem se dar conta, realizar ―a alienação mais profunda
do sujeito da civilização científica‖ (LACAN 1953, p. 282): ele fala de si como um eu e
se dispõe − a despeito da morbidez de tal posição − como um objeto.
A responsabilidade do analista é, logo, na experiência que ele é chamado a
conduzir, a de sustentar um questionamento que em nada pode ser comparado a
qualquer tentativa de converter o falante a esta alienação mais ―profunda‖ do sujeito da
civilização científica (idem, p. 282). Todavia, veiculando o apagamento do enigma
posto pela linguagem através do sujeito − pois que, como dizia Lacan, ―o que me
constitui como sujeito é minha pergunta‖ (idem, p. 301) − o projeto científico oferece
outro tipo de resposta. Trata-se, de fato, do ‗conforto‘ conferido pela redução da
linguagem ao ideal de uma comunicação unívoca e da alienação do falante nesta como
um de seus objetos.
124
Reencontramos, aqui, por seu avesso, o processo que, na primeira parte de nossa
tese, vimos como sendo a ontologização do criminoso e do louco mediante sua captura
por um discurso científico. É que, ao contrário do que, a princípio, se poderia imaginar,
não há a objetalização passiva do ser falante, mas, como vimos no capítulo II, p. 16 − a
propósito do comércio de gadgets − um verdadeiro ‗suborno‘ do sujeito em sua relação
com o desejo: sua colaboração eficaz na ―obra comum da civilização universal‖ lhe
permite ―esquecer sua vida e sua morte‖; povoando seu ―lazer com todos os encantos de
uma cultura profusa‖ esta rendição lhe permite, ao mesmo tempo, ―desconhecer numa
falsa comunicação o sentido particular de sua vida‖ (idem, p. 283).
Se a apropriação da linguagem pelo discurso científico a reduz, mediante o
imperativo de univocidade, à sua função informativa, a particularidade que se encontra
envolvida neste questionamento que é o sujeito − assim como este se atualiza no
dispositivo analítico − permite tocar a fala em um aspecto bastante diverso. Mas o que a
experiência psicanalítica possibilita discernir desde a função que lhe é vital, a fala?
66
Ao que parece, desde Roma, a grafia do Outro, lugar do inconsciente, havia recebido um O
maiúsculo: ―Isso e dá pela necessidade, tão bem marcada por Freud, do terceiro ouvinte sempre
suposto, e pelo fato de que o chiste não perde seu poder em sua transmissão em etilo indireto.
Em suma, apontando no lugar do Outro o amboceptor que esclarece o artifício da palavra,
eclodindo em sua suprema alacridade‖ (LACAN 1953, p. 272).
128
67
Torna-se claro, neste momento, que uma digressão que fizesse verdadeiramente jus a este assunto em
muito excederia o escopo de nosso trabalho. Não obstante, mais adiante em nosso texto, retomaremos
certos pontos que consideramos capitais.
129
68
Notas psicanalíticas sobre um caso autobiográfico de Paranóia (dementia paranoides) (FREUD 1911).
132
De fato, ao tomarmos esta obra desde seu início até seu final, faz-se difícil
ignorar o quanto tal escrito comporta, como característica sua, tanto a dimensão de
remetimento − endereçar de proposições à alteridade − quanto a utilização feita por
Schreber do significante para apresentar sua peculiar posição perante a verdade. Ao
tornar públicos sua história, considerações e pensamentos não estaria ele a partilhar com
o restante da humanidade uma experiência da qual ninguém, a não ser ele, poderia nos
dar testemunho? Tal ato não comporta − de certa forma − algo da dimensão da fala, de
um endereçamento ao Outro no qual o louco demanda, em sua enunciação, alguma
resposta?
Se esta questão comporta, ainda, algo de duvidoso, é fato que, para relacionar-
se de tal modo à linguagem, fez-se necessário, a Schreber, quase uma década de
ininterrupto trabalho em pelo menos duas grandes frentes: 1) pela apropriação do delírio
que se lhe impunha e, 2) através do remanejamento de sua imagem corporal e do campo
da realidade − desmembrados incontáveis vezes em fenômenos tão extraordinários
quanto dolorosos. Chegará ele a nos confidenciar, inclusive, a existência de um tempo,
durante sua segunda internação, em que ele não podia, em absoluto, proferir, ao outro,
sequer uma palavra.
Terrificado com as investidas de ―Deus‖ e das ―almas provadas‖, tinha ele
como único recurso manter-se absolutamente imóvel; ele vivenciava, naqueles instantes,
o império autista de um estupor catatônico. Não menos verdadeiro, também, é o fato de
que, mesmo em outros momentos de sua internação, por muito tempo foi para ele
impossível falar, visto que todos que o rodeavam não passavam, meramente, de
―homens feitos às pressas‖ (SCHREBER 1903). Schreber não hesitará em dizer que será
apenas ao interpolar entre Deus e si uma boa distância, ao evocar a ―Ordem do mundo‖,
que ocorrerá para ele a possibilidade de forjar, uma vez mais, uma alteridade. É somente
neste instante, tão laboriosamente alcançado, que ele poderá pedir ao Real Tribunal de
Dresden69 a suspensão de sua interdição legal e reescrever e organizar suas anotações −
o que resultaria na publicação de suas famosas Memórias. Ora, tal testemunho receberia
uma escuta e uma resposta de Freud.
69
Schreber havia sido nomeado, no ano de 1893, Juiz-presidente da Corte de Apelação de Dresden. Este
cargo comportava o caráter de irreversibilidade, o que significava que a nomeação não podia ser
declinada, pois era determinação direta do rei. Declinar consistia, pois, em crime de ―lesa-majestade‖.
Sendo o cargo vitalício e indeclinável, havia, portanto, a possibilidade de um retorno de Schreber a seu
antigo cargo.
133
A lei da fala, que tem como correlata a instituição do Outro, é que, ao receber
sua mensagem sobre a forma invertida, o falante deparar-se-á com a sintaxe
inconsciente. Vimos já, neste capítulo, um exemplo que pensamos poder ilustrar este
modo de operação: trata-se daquele instante da enunciação em que se efetiva o retorno
de um significante-mestre sobre aquele que fala. Deste modo, na frase ―Tu és meu
filho‖, o que retorna sobre o falante é ―Eu sou teu pai‖. A partir de uma coerção
sintática, vale dizer, estrutural, se dará o aparecimento do segundo significante que
permitirá estipular a ambos seus devidos valores. Se assentir com uma resposta
afirmativa à esta estrutura, a operação de retroação terá como efeito a queda do
significante que representa o sujeito para o Outro significante − o que Lacan chamou,
em 53, de ―fala plena‖. Ora, tal efeito apenas poderá se realizar se o falante, subtraindo-
se à estrutura, não buscar coincidir, integralmente, com a expressão lingüística.
O ato de se fazer reconhecer por meio deste significante que cai − ou, dito de
outro modo, a assunção deste ―tendo sido‖, deste lugar subtraído do jogo do significante
− é este o modo como o sujeito, em relação a cadeia significante, se faz representar. De
fato, fora com o intuito de formalizar a transmissão deste modo de operação −
acrescendo, com isso, mais um recurso para a formação de analistas − que Lacan
construiu, em maio de 1955, um grafo, que ele chamará de esquema £.
138
70
Como não pode deixar de resultar claro, não se trata em absoluto de afirmar aqui, que Lacan atribuía,
na década de 50, a inexistência do Outro na psicose. O que queremos dizer com ―excluído como lugar da
verdade‖ encontra-se diretamente ligado ao fato de que a presença do Outro, antes de ser suposta, como é
o caso da neurose, se impõe, na psicose, de forma não simbolizada para o sujeito.
140
A resposta é que não é isso o que a experiência clínica nos permite demonstrar.
É lícito, sim, dizer que tal esfera se põe na psicose, embora, na maioria das vezes, o
Outro se faça presente por meio de uma irrupção pulsional – como veremos no próximo
capítulo a propósito do colapso pulsional identificado por Freud no ―retorno da libido
sobre o eu‖ nas psicoses − e de fenômenos no registro Imaginário − registro onde
reinam o outro e seu duplo, a’, o eu.
Ainda que seja importante reconhecer o trabalho feito pelo psicótico de tentar
lidar ao menos pela via das construções imaginárias com a alteridade, faz-se ainda mais
importante frisar, a despeito deste esforço, a instabilidade imanente a este tipo de
relação dual, onde se transita, de um lado a outro, do pólo da paixão irrestrita ao pólo da
agressividade ilimitada.
71
Grifo nosso.
141
Para Lacan, nos anos 50, o delírio põe, assim, a nu, a anterioridade estrutural
do inconsciente em relação ao sujeito: curiosamente, o delírio, se apresenta já como
corte − fenômeno elementar irredutível à compreensibilidade − que começa, de fato, ―a
partir do momento em que a iniciativa vem de um Outro‖ (LACAN 1955-56, p. 220).
Neste resgate que empreendemos das posições de Freud e Lacan perante as
psicoses, buscamos tornar nítido o quanto a hipótese de que o inconsciente é estruturado
como uma linguagem instituiu-se, tanto para a neurose quanto para a psicose,
correlacionados a certos fundamentos éticos.
Ora, tal direção assim se constituiu, não simplesmente por permitir a
apreensão da peculiar forma de inserção do louco na linguagem − o que, de fato,
poderia estar orientado apenas por uma vontade de saber −, mas, sim, por autenticar os
esforços do psicótico em fazer advir este estranho efeito que a psicanálise denomina
sujeito. Pensamos não ser outro senão este o alicerce que concerne à posição do analista
frente à psicose; é isto, segundo pensamos, o que movera Jacques Lacan, seja em seu
seminário de 1955-56, seja em seu De uma questão preliminar a todo tratamento
possível da psicose, de 1956-57.
Se nós chegamos, ao fim deste capítulo, à verdade de que, em relação ao
sujeito, o inconsciente apresenta uma anterioridade estrutural, será, então, a análise dos
aspectos estruturais postos em jogo na psicose o que nos dará a chave para apreender o
enigma apresentado pela loucura à clínica psicanalítica. Como veremos no próximo
capítulo, é a análise dos mecanismos e vicissitudes pulsionais próprios à psicose – a
Verwerfung a ―rejeição‖ – o que nos permitirá cernir, de Freud a Lacan, − no terceiro e
último capítulo desta parte de nossa tese −, o conceito de foraclusão, essencial para
atingirmos a condição psicótica como ―fora-da-lei fálica‖.
142
− Capítulo VI –
O advento da noção freudiana de ―Rejeição‖
No capítulo precedente, tivemos como nosso desígnio dispor, em linhas bastante
gerais – que serão, ao longo de toda esta parte melhor delineadas −, as diferenças entre a
objetalidade tornada presente na condição psicótica e a objetificação científica − que,
como vimos durante a primeira parte de nossa tese, encontra-se referida à captura do
sujeito num modo de operação da linguagem que, ao desconsiderar a função de resto,
aparta a subjetividade. Aproximamo-nos, pois, neste percurso, do que Jacques Lacan em
1953 havia chamado de ―três paradoxos, para o sujeito, da relação entre fala e
linguagem‖ (LACAN 1953, p. 281).
Dentre estes paradoxos, ativemo-nos, de forma detida, a dois: 1) a objetivação
do discurso do falante – processo vinculado às incidências da ciência que alojou, de um
só golpe, o problema dos ―assassinatos imotivados‖ e a contenda à qual seria convidada
a psicanálise; e, 2) a psicose − em que o falante se encontra imerso em uma relação
desagregadora com o significante, numa faceta intrusiva e hostil da linguagem. Desde o
vigor do espírito clínico presente na investigação freudiana, desvela-se um ―isso fala‖,
corte infligido por Freud ao ideal moderno de um homem como um ser autônomo,
consciente e livre dos constrangimentos supersticiosos da tradição.
O inconsciente − verdadeira memória articulada segundo constantes que lhe são
próprias − apresenta, portanto, uma anterioridade estrutural em relação ao sujeito; seja
na neurose ou na psicose, este será pensado, desde então, como sendo um de seus
efeitos. Pois bem, se o retorno à descoberta freudiana, nos anos 50, receberia seu lugar a
partir de uma série de rupturas decorrentes da hipótese de que ―o inconsciente é
estruturado como uma linguagem‖, o que Lacan virá entender como sendo a lei da fala é
que o sujeito recebe, deste Outro, o inconsciente, ―sua mensagem sob forma invertida‖
(LACAN 1955-56, p. 47). Vimos que tal lei terá, como correlata, a instituição de uma
Outra cena em que o falante se deparará, em sua fala, com esta estranha esfera que é o
inconsciente.
O presente capítulo traz assim, como seu escopo, a empresa de apreender, na
relação do sujeito psicótico com a Outra cena que é o inconsciente, os mecanismos e
vicissitudes pulsionais descobertos por Freud desde sua escuta. Como pensamos são
estas particularidades inerentes ao mecanismo freudiano da rejeição, a Verwerfung, o
que abrirá as portas para que Lacan, nos anos 50, elabore a bases para sua noção de
foraclusão, conceito chave para apreendermos o fora-da-lei fálica, condição psicótica.
143
72
Histeria, neurose obsessiva e confusão alucinatória/paranóia são categorias clínicas aproximadas por
Freud, em 1894, por sua causalidade funcional, ou seja, por excederem – desde sua lógica – as afecções
orgânicas ou degenerativas.
144
... defesa muito mais poderosa e bem sucedida. Nela o ego rejeita
a representação incompatível, juntamente com seu afeto e se
comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido.
Mas a partir do momento em que isso é conseguido, o sujeito fica
numa psicose alucinatória que só pode ser qualificada como
‗confusão alucinatória‘ (FREUD 1894, p. 63-4).
73
Lacan frisa, a este respeito, que não se trata de um modelo construído por um ―professor atrás de uma
mesa e diante de um quadro-negro‖ (LACAN 1955-56, p. 175), mas, sim, do inconsciente tal como este
se apresenta a partir da experiência psicanalítica.
74
Lições de 15 de fevereiro de 56 e 21 de março do mesmo ano.
75
Este modo de conceber o aparelho psíquico persistirá, de fato, por toda a obra de Freud, desde sua
primeira publicação no capítulo 7 de sua Interpretação dos sonhos (FREUD 1900) − a propósito do que
ele ali virá chamar de uma ―regressão tópica‖ no sonho. Passando por todos seus escritos, esta concepção
do inconsciente como uma memória irá receber uma nova ênfase num curto artigo escrito por ele em
1925, Uma nota sobre o bloco mágico.
147
76
Condição de permeabilidade do aparelho, a recepção de estímulos não poderia coincidir com a memória.
77
Aqui, segundo pensamos, trata-se de uma prévia do que, pouco tempo depois, em Interpretação dos sonhos
(FREUD 1900), ele descreverá como as operações de condensação e deslocamento, articuladas em função da
causalidade imanente ao sonho e o aparelho psíquico: o desejo inconsciente.
148
Como vemos, esta formulação de um retorno ―de fora‖ − erigida muito cedo nas
considerações de Freud − faz-se chave para apreender, com Freud e Lacan, a relação
entre inconsciente e psicose. Porém, como é sabido, o problema da ―não inscrição‖,
apresentará em Freud − principalmente a partir de 1920, com a publicação de Além do
princípio de prazer − uma complicação: a noção de ―pulsão de morte‖ incidirá, no
aparelho, como ―libido não-ligada‖, como verdadeira impossibilidade de inscrever, de
forma absoluta, a pulsão à esfera de seus representantes. Desvela-se, então, para a
estrutura do aparelho psíquico, uma exigência mais primordial que o princípio de
prazer, a saber, lidar com aquilo que − como o dirá Lacan em 1973 − ―não cessa de não
se inscrever‖78, com algo que, para todo ser falante, se apresenta como uma espécie de
‗fora-da-lei‘ em relação à dinâmica das representações. Mas como, a partir das
vicissitudes pulsionais, apreender a especificidade do ‗fora-da-lei‘ inerente à rejeição
como mecanismo de defesa próprio à psicose.
78
Lacan serve-se, neste ponto, da apropriação das categorias Aristotélicas de ―possível‖, ―impossível‖ e
―necessário‖. O ―não cessa de não se escrever‖ (LACAN 1973, p. 81) é aquilo que Lacan pontua como
sendo inerente ao ―impossível‖.
79
Podemos ter como exemplo disso textos como: Estudos sobre a histeria (BREUER e FREUD 1895), as
Neuropsicoses de defesa (FREUD 1894) e Novas observações sobre as neuropsicoses de defesa (FREUD
1896).
150
O retorno da libido sob o sujeito nas psicoses guardaria, assim, segundo Freud,
íntima relação com uma série de fenômenos clínicos, tais como a experiência,
posteriormente explorada por Lacan a partir de seu estudo sobre o estádio do espelho,
de ―corpo espedaçado‖. Como é usual na esquizofrenia, a libido desvinculada, tomando
o psicótico como objeto, pode dissolver a imagem egóica ao desconsiderar objetos
externos em favor de ―sensações localmente gratificantes‖.
Todavia, tornara-se evidente a Freud que um desligamento, entre o objeto
circunscrito por meio de uma representação e a libido que o investe, também ocorre
freqüentemente na ―vida mental normal‖: ―Mas é certo que, na vida mental normal (e
não apenas em períodos de luto), estamos constantemente desligando nossa libido, desta
maneira, de pessoas ou de outros objetos, sem cairmos enfermos‖ (FREUD 1911, pg.
96). Como, então, apreender este paradoxo? A experiência clínica explicitara a Freud
que a retirada da libido do mundo externo nas psicoses pode tornar-se um
acontecimento de estrondosa magnitude; diferentemente do que ocorre na ―vida mental
normal‖ e nas ―neuroses de transferência‖ pode incorrer em uma série de
―conseqüências desastrosas‖ para o sujeito. Este argumento retorna no texto dedicado
por Freud, em 1911, às Memórias de um doente de nervos de Daniel Paul Schreber.
151
Nesse desligamento radical da libido − seja por meio do surto ou mesmo por um
processo menos ruidoso − por vezes ocasiona-se a perda de consistência dos objetos e
das pessoas do mundo externo: libidinalmente abandonados, estes se tornam
indiferenciáveis, literalmente dissolvem-se. Este desligamento contrapõe-se, por sua
lógica e desdobramentos, à retirada do investimento libidinal tal qual esta ocorre nas
neuroses. Nestas últimas, como nos dirá Freud em Sobre o narcisismo, uma introdução
(FREUD 1914a), ―o neurótico de forma alguma abandonou sua relação com o mundo,
ele ainda as retém na fantasia (FREUD 1914a, pg. 90)‖.Assim, se nas neuroses a libido
retirada retorna sobre as idéias constituintes da fantasia, diferentemente disso, no
desencadeamento psicótico, as representações ou traços psíquicos − que estruturavam
de forma estável tanto a realidade quanto o eu do sujeito − deixam de mediar o
investimento libidinal; irrompe, no aparelho psíquico, uma corrente maciça de libido
não-ligada à cadeia de representações; o circuito pulsional colapsa e passa a funcionar
sem considerar a dialética entre os traços psíquicos já inscritos, não havendo um objeto
pulsional distinto do sujeito.
Mas como poderíamos apreender, ao analisarmos as vicissitudes do pulsional
nas psicoses – em que há um retorno imediato da libido sob o sujeito −, a proposição de
Freud, em que este assevera que trata-se, na paranóia, da ―irrupção da corrente auto-
erótica, um retorno ao estado anterior (FREUD 1899, p. 391)‖.
152
80
―Uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser
desenvolvido‖ (FREUD 1914, pg. 93).
153
81
Diz-nos Freud à propósito do desencadeamento na esquizofrenia: ―A regressão estende-se não
simplesmente ao narcisismo (manifestando-se sob a forma de megalomania), mas a um completo
abandono do amor objetal e um retorno ao auto-erotismo infantil‖ (FREUD 1911, p. 102).
154
82
Servimo-nos, neste ponto, da apropriação lacaniana das categorias Aristotélicas de ―possível‖,
―impossível‖ e ―necessário‖. O ―não cessa de não se escrever‖ (LACAN 1972-3, p. 198) é aquilo que
Lacan pontua como sendo inerente ao ―impossível‖.
156
83
À objeção de que Freud apenas se referiria sobre a rejeição neste exato momento, no caso do homem dos lobos,
destacamos ainda outra citação, proveniente de seu texto Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica
157
Coadunando-se com o exposto por Freud cerca de vinte e quatro anos antes, em
seu artigo sobre as Neuropsicoses, esta negação radical, a não inscrição de uma
representação – no caso a castração – não deixará de ter seus efeitos. Dito de outro
modo, uma vez rejeitada a castração o problema colocado por esta não se encontrará
resolvido; como seu resultado encontrar-se-á o retorno ―vindo de fora‖, naquilo que se
tornou o famoso episódio de alucinação do homem dos lobos:
Décadas mais tarde, no ano de 1955, em seu seminário sobre as psicoses, Lacan
se apropriará deste fragmento do texto freudiano para, assim como o precursor da saga
vienense, explicitar a radicalidade do que retorna, sobre o sujeito, a partir da rejeição:
―A relação que Freud estabelece entre este fenômeno [a alucinação] e esse
especialíssimo não saber nada da coisa, mesmo no sentido do recalcado, expresso em
seu texto, traduz-se por isto: o que é recusado na ordem simbólica ressurge no real‖
(LACAN 1955-56, p. 22). A castração, elemento fundamental na constituição de cada
sujeito, rejeitada, tratada como se ―não existisse‖, não deixará, pois, de fazer seu retorno
para o sujeito; retornando no real esta constituirá a posição psicótica.
dos sexo (FREUD 1925c): ―... pode estabelecer-se um processo que eu gostaria de chamar de ‗rejeição‘, processo
que, na vida mental das crianças, não aparece incomum nem muito perigoso, mas em um adulto significaria o começo
de uma psicose‖ (FREUD 1925c, pg. 314-5).
158
Sabemos que, para Freud, a diferença sexual entra em jogo para um determinado
sujeito por meio da inscrição de um traço mnêmico muito específico, a saber, o falo.
Resulta disso que tanto para um futuro homem quanto para uma futura mulher, posto
que estes são lugares a serem ocupados segundo a norma fálica, o ―falo‖ é a referência
que torna operacional a via do sexo, visto que, para ambos, a libido sexual é masculina
(FREUD 1905, pg. 226).
A inscrição do falo no aparelho psíquico, inscrição concomitante com a
dissolução do complexo edípico, permite ao neurótico equacionar a castração de forma
a circunscrever um ―fora da cadeia‖ de traços mnêmicos. A função fálica é, pois, uma
função que se desdobra na articulação com as demais representações regidas pelo
princípio de prazer, é uma forma específica de junção entre o pulsional e a cadeia de
representações. Desse modo, o limite desta função, vale dizer, o limite do sexual assim
como este se apresenta como correlato às representações inscritas no aparelho psíquico,
é posto em jogo pelo pulsional em sua face de energia ―não-ligada‖ ou para utilizarmos
um termo que tem uma incidência ainda mais direta, a ―pulsão de morte‖. O que
fundamentalmente Freud apresenta ao mundo em seu Além do princípio do prazer é que
há um fora-da-lei fálica que, enquanto traumático, não pode ser completamente
subjetivado e sexualizado. O falo enquanto articulado ao princípio do prazer não apenas
pode faltar, mas, também, forçosamente falta; seria algo diverso disto aquilo que Freud
procura ressaltar com o termo castração?
Mas, se a inscrição do falo é o que operacionaliza a castração pela diferença
entre o sexual e o para além do falo, na psicose é justamente a ordem fálica enquanto
referência aquilo que é alvo de recusa. Assim, em relação ao enigma do outro sexo, os
problemas postos para o falante na psicose exigem outra via que não a fálica, uma via
de invenção. É o que se faz evidente ao evocarmos, por exemplo, o caso Schreber.
Como Freud mesmo havia marcado a propósito de sua análise das Memórias − e
quando dizemos que ‗ele havia marcado‘ de forma alguma dizemos que ele tinha plena
consciência desta marcação − a psicose colocaria em jogo outra faceta da sexualidade:
―Nenhuma outra parte de seus delírios é tratada pelo paciente tão exaustivamente, quase
poder-se-ia dizer, insistentemente, como sua alegada transformação em mulher‖
(FREUD 1911, pg. 50). Contrariamente ao que o próprio Freud havia sublinhado − a
ênfase do papel da homossexualidade na paranóia e seu retorno através da projeção − é
o problema da diferença sexual a direção do trabalho que se impõe aos delírios do
Senatspräesident:
160
− Capítulo VII –
Da Verwerfung à foraclusão
Desde o capítulo III desta tese, buscamos explicitar o quanto a noção de kakon −
poderosa ferramenta para apreendermos a lógica disposta pelos assassinatos imotivados
na psicose − fora erigida desde o recurso da psiquiatria à psicanálise. Este recurso,
como pretendemos deixar claro, não fora, contudo, uma via de mão única: se Guiraud o
constrói num aporte a noção freudiana de ―isso‖, Lacan, já nos anos 30 do século
passado, se reapropriará desta noção acentuando sua dimensão ‗econômica‘ − lógica e
libidinalmente organizada. Neste contexto Lacan sublinha que, nos casos kakon, em que
a incompreensibilidade se faz patente, trata-se de ―um esforço para romper o círculo
mágico, a opressão‖ – leiamos, hoje, o gozo – ―do mundo exterior‖ (idem, p. 690).
Destarte, quando Lacan retoma o tema do kakon – não apenas nos anos 30, mas,
cerca de vinte anos depois em Agressividade em psicanálise (1948) e Formulações
sobre a causalidade psíquica (1946) – explicita-se, desde os fenômenos psicóticos, uma
objetalidade que transborda àquela inerente a captura da loucura como objeto científico.
Isto porque, ao contrário da busca pela redução absoluta da fala à linguagem − ideal
comunicacional do projeto científico em sua progressiva formalização −, há, as psicoses
nos fazem sabê-lo, dimensões como as do testemunho. Neste tipo sui generis de relação
entre a linguagem e o falasser que é o testemunho, o psicótico explicita uma experiência
que, apesar de sua viceralidade, implica necessariamente o efeito sujeito: uma vez que
se testemunha ―sempre em cima dos próprios colhões‖, o testemunho implica ―sempre o
empenho do sujeito...‖ (LACAN 1956-57, p. 51). O que, não obstante, o testemunho do
―sujeito do gozo‖ (LACAN 1963-4, p. 192) que é o psicótico nos permite apreender?
Em Agressividade em psicanálise (LACAN 1948), Lacan retoma o panteão dos
temas delirantes para, a partir deste, sublinhar esta objetalidade própria à psicose. Desde
a ―motivação mágica do malefício, telepática, de influência‖ até a ―persecutória‖, ―da
difamação‖, ―do ataque à honra‖ e ―reivindicatória‖ (LACAN 1948, p. 113) – num pólo,
portanto, que recobre desde as idéias delirantes e não sistematizadas que retornam sobre
o corpo do esquizofrênico até a localização do gozo no Outro como é o trabalho
delirante na paranóia −, esta objetalidade ligada às relações do louco com o ―obscuro
kakon‖, concerne, dirá Lacan dois anos mais tarde, a algo do ―próprio ser‖ (LACAN
1946, p. 141) do psicótico. Esta conclusão, clinicamente observável, conduz-nos, pois, à
investigação dos mecanismos e vicissitudes pulsionais próprios a psicose. Fomos
levado, então, às particularidades dispostas pela rejeição, a Verwerfung freudiana.
162
84
Grifo nosso.
164
Quando dizemos ―de certa forma‖ queremos dizer, com isso, que, mesmo que
não se tratasse da ―lingüística estrutural‖ − surgida na Europa com Saussure, ou, nos
Estados Unidos com Bloomfield, Sapir e outros – mas, sim de Filologia, em O sentido
antitético das palavras primitivas (FREUD 1910), Freud sugere o benefício passível de
ser esperado de certa aproximação entre a psicanálise e uma ciência da linguagem: ―...
melhor estudaríamos e traduziríamos a língua dos sonhos se soubéssemos mais sobre o
desenvolvimento da linguagem (idem, p. 46)‖.
Em concomitância com aquela relação entre o sujeito e os fonemas explicitada
in vivo por Freud no jogo infantil em 1920 – em Além do princípio de prazer (FREUD
1920) −, Saussure reconhecera, no que Lacan chamou de ―uma tabela de um quarto de
página‖, o quão importante é, para o projeto de uma ciência lingüística, a formalização
dos fonemas de uma língua. Assim, na página 63 do Curso de Lingüística geral
(SAUSSURE 1916) − pode-se ver a apresentação das bases para a construção de uma
disciplina que forneceria, com o rigor de uma ―equação algébrica‖, as combinações
entre os grupos binários de fonemas. No que tange a relação do falante com o campo
dos sinais, mister se faz notar, em Freud e em Saussure, como a noção de uma estrutura
– certas regras que determinam a combinatória de sinais − operaria muito aquém de
uma atribuição de significado: ―um grupo binário implica certo número de elementos
mecânicos e acústicos que se condicionam reciprocamente; quando um varia, essa
variação tem, sobre os outros, uma repercussão necessária que poderá ser calculada‖
(idem, p. 63).
Este diálogo entre a psicanálise e uma ciência da linguagem encontraria,
entretanto, um limite: a discrepância entre estes dois campos de saber reside no fato de
que, para a psicanálise, trata-se, absolutamente, de uma experiência que se constitui em
consonância com o efeito ético de implicação que é o sujeito. Enquanto ética, a
psicanálise tem a direção de considerar, naquilo que se pretende a ―andar sozinho‖ − a
língua − a dimensão do tropeço e a suposição de um alguém, efeito de
comprometimento excluído como tal pela ciência, que é o sujeito. Um exemplo capaz
de ilustrar tão fundamental divergência pode ser colhido a partir do instante em que
lançamos um olhar mais atento sobre um dos momentos mais marcantes da
formalização da cadeia significante por Lacan − seu seminário sobre A carta roubada
(LACAN 1957a).
165
Nesse texto, vemos, de forma explícita, como a questão ética se encontra alojada
como problema central para este psicanalista a partir da enunciação do seguinte dilema:
―o programa que se trata para nós, portanto, é saber como uma linguagem formal
determina o sujeito. Mas o interesse de tal programa não é simples, já que supõe que um
sujeito só o cumprirá colocando algo de si‖ (LACAN 1957a, p. 47). Destarte, esta
relação decisiva entre significante e sujeito, em suas implicações e conseqüências éticas
é algo que, por fim, acaba por marcar um abismo inexpugnável entre a psicanálise e
uma ciência lingüística. Lacan reitera isto ao tomar o espírito freudiano que apreendia,
no ―fort-da‖ − jogo a princípio puramente lógico com o par de oposições significantes
−, a renúncia pulsional que permite a criança se inscrever na cultura e articular, de início
por meio dos fonemas, a ―zorra das palavras‖:
85
Tais operações − que resultam das conseqüências para o processo de estruturação do sujeito da
irredutibilidade da ordem significante às significações (S/s) − receberiam de Lacan suas fórmulas, em
1957b, no texto − A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud.
166
86
Sobre tais temas destacam-se, principalmente, dois momentos: um mais precoce, no início de sua obra,
coincide com a publicação de Três ensaios para uma teoria da sexualidade, de 1905. Num período mais
tardio, textos como A dissolução do complexo de Édipo, de 1924, Algumas conseqüências psíquicas da
diferença anatômica entre os sexos, de 1925 e Sobre a sexualidade feminina, de 1931, são aqueles que, na
abordagem freudiana de tal assunto, se destacam.
168
Há, nesta negativização, uma subtração na imagem inerente à fase fálica infantil;
a criança deixa, ao se deparar com as impossibilidades, de ser ―sua majestade, o bebê‖.
Deste modo, a operação da castração evoca, em sua conclusão, aquilo que há de mais
hétero − em contraposição à auto − com relação à diferença sexual: o objeto pulsional
como extrínseco ao sujeito e inatingível no campo da realidade. Lacan reconhecerá,
então, nesta descoberta freudiana, o que há de crucial no papel desempenhado pelo pai.
Trata-se, ali, de uma intervenção que, por seu caráter simbólico, transcende a função
biológica do genitor e que, também, não pode ser resumida às imagens do pai − sejam
aquelas veiculadas nos mais diversos momentos por que passa a cultura ou, ainda, nas
elaboradas e secretas fantasias de filiação que constrói o neurótico.
O pai, portanto, é, aqui, um nome, um lugar atribuído pela mãe a um alguém que
só pode comparecer enquanto suporte deste lugar. Dito em outras palavras, o pai que
importa no processo de estruturação para o sujeito, é aquele que surge como veículo da
castração, como alguém que não se confunde com a lei, mas que a representa. Tal
operação veicula, portanto, não − tal qual busca crer o neurótico − que o pai seja o
detentor do falo, mas que o falo, enquanto significante crucial, é, por si só, um efeito de
corte, algo que, como dirá Lacan em 1956, está sempre ―alhures‖ (LACAN 1955-56, p.
232) em relação ao falante.
Ora, a condição para que tal suporte se faça é que tanto este alguém quanto a
mãe tomem, eles mesmos, posição perante a castração e a diferença sexual. Se tal passo
é dado, o pai operará como um nome, como um termo que permite substituir, por sua
incidência, um primeiro Outro − presentificado para a criança mormente pela mãe − por
um Outro metaforizado, simbolizado como lugar da verdade, do pacto e da troca. O
enigma apresentado para a criança por meio das idas e vindas da mãe terá, então, com a
metáfora paterna, um lugar simbólico para vir a se colocar. Para apreender esta
inscrição ―de um Outro como lugar da lei‖ (LACAN 1956-57, p. 589), Lacan proporá,
nos anos 50, uma fórmula:
Se isto é assim nos casos de neurose, temos, entretanto, como vimos a propósito
dos casos de Schreber, do Homem dos lobos e mesmo da psicose em mais larga escala –
uma estruturação alternativa à instauração da ―lei paterna‖. Por conseqüência, a questão
da castração e da diferença sexual se imporão para o louco de outra forma, por meio de
uma modalidade bastante particular de incidência do significante, do Outro e do gozo. A
Verwerfung, alternativa à inscrição da castração e seu retorno ―de fora‖, no ―real‖, terá,
então, em Lacan, a partir do Nome-do-Pai, precisada sua operação:
De fato, em seu seminário sobre as psicoses, Lacan virá a retomar, com vigorosa
acuidade, a exploração destes aspectos sintáticos do inconsciente freudiano, assim como
estes vêm a se fazer presentes na loucura. Tal ênfase o fará propor, inclusive, num efeito
retroativo (nachträgliche) que, em sua tese, fora G. G. de Clérambault e não qualquer
outro seu único mestre em psiquiatria.
174
De certo, demoraria quase uma década para que − no seminário sobre Os quatro
conceitos fundamentais em psicanálise, de 1964 − Lacan concretizasse um emprego
mais sistemático deste termo. Não obstante, o que a psicose coloca a céu aberto por
meio do delírio é aquilo que concerne ao automatismo da linguagem ao reger as
associações inconscientes. Ao contrário do que pensara de Clérambault, o romance
delirante, ou, melhor dizendo, o delírio, é, ele próprio, algo irredutível a um eu e às
tendências pessoais da vida do ―doente‖. O grau de sistematização de que goza a
construção delirante deve-se à presença − já fruto de um trabalho − de um modo de
relação do psicótico com o ―conjunto da linguagem‖ (LACAN 1955-56, p. 140).
Em outras palavras: para o psicótico a dimensão delirante comporta, já ela, uma
tentativa de acomodação de um Outro que − nós o vimos nos capítulos anteriores −
antes de ser instituído pela fala como lugar da verdade, se impõe por proliferações nos
registros real, imaginário e simbólico. O delírio é, logo, uma tentativa de discriminar e
articular sujeito, eu, outro e Outro e domesticar a incidência do pulsional.
A irredutibilidade estrutural do delírio a elementos compreensíveis se torna
ainda mais clara na medida em que tomamos em conta a significação em consonância
com a qual se organiza a construção delirante. Ora, como a experiência clínica nos
permite averiguar, esta significação se impõe com tal força e estranheza que se faz
tarefa hercúlea desconhecer que esta traz, também em seu cerne, algo que mesmo para
os psicóticos é inefável e indizível. Se de fato atentarmos para o aspecto estrutural do
dito do louco, torna-se possível perceber que esta significação, ao se atualizar no dizer,
comporta como sua característica: 1) ser não dialetizável em relação a outras
significações; e, 2) reenviar, pela posição que esta confere ao psicótico, o ―falante-
falado‖ ao lugar de objeto. Deste modo, para além da tonalidade afetiva adquirida pela
temática delirante, faz-se característica crucial de tal significação a inércia em que esta
põe o sujeito perante o Outro, conjunto da linguagem.
Assim, também para aquela perspectiva que pensa como possível a redução do
delírio a uma compreensibilidade primeira, surgirá a verdade do delírio como fenômeno
elementar, vale dizer, como elemento irredutível à consciência e que exige, por sua
articulação, uma aproximação que se dê em torno de fatores estruturais do inconsciente
freudiano. Estes nos permitirão apreender, desde a posição do psicótico como objeto das
incidências desmesuradas da pulsão e da linguagem, que é falso ―conceber que o sentido
de que se trata‖ − apesar da tentação que se apresenta demasiado na clínica − ―é aquele
que se compreende‖ (LACAN 1955-56, p. 14).
177
Não obstante a elegância e a economia que tal sintaxe atingira, Lacan notara que
dois grandes problemas continuavam a se impor à construção desta articulação
delirante. De um lado, esta parecia depender da hipótese de que a causa da paranóia era
o retorno da homossexualidade recalcada. Por outro lado, a projeção − atribuição ao
pequeno outro ―a‖ de um significante que retorna do Outro sob o sujeito − mostrava-se
insuficiente para dar conta da radicalidade do delírio. Como, então, podemos
encaminhar tais problemas à luz dos instantes posteriores da obra de Freud e de Lacan e
resgatar esta gramática? A fim de iniciarmos nossa procura, atenhamo-nos, agora,
àquilo que levara Freud a pensar que se tratava, na paranóia, do retorno de uma
homossexualidade recalcada.
180
Por outro lado, resta, ainda, a nós, considerar a posição de Freud de que o
mecanismo da projeção é insuficiente para dar conta da perplexidade e da catástrofe
pulsional que se fazem presentes no retorno de uma mensagem que se impõe de forma
não articulada sobre o sujeito na psicose. Para tocarmos neste ponto, retomemos mais
uma vez o esquema £ da fala.
Destes últimos fenômenos Schreber nos deu seu testemunho ao relatar, em suas
Memórias, uma das fases mais dolorosas de sua experiência, a saber, o ―crepúsculo do
mundo‖. Naquele instante, ele não podia sequer dirigir a palavra a ninguém, visto que as
pessoas haviam se tornado, meramente ―homens feitos às pressas‖. À noite, estranhas
criaturas lhe apareciam e se punham a andar por todo seu corpo, impedindo-o, com isso,
de dormir. Durante seus escritos podemos ainda localizar várias referencias seja sobre a
decomposição de seus órgãos seja sobre as alterações que viriam transformar, num
espaço de tempo infinitizado, seu corpo num corpo feminino.
Ora, também para ele houve a presença de fenômenos de mensagem que
emergiam junto à alteração em larga escala de sua realidade. Aqui, porém, estes se
fizeram presentes pela vocalização de mensagens que, para além do suporte a-a‘,
surgem sonorizadas e interrompidas, exigindo por parte de Schreber, grande esforço
para se fazerem suplementar. Lacan, em seu texto De uma questão preliminar a todo
tratamento possível da psicose (1956-67), sublinha alguns deles:
87
Que pode se alastrar até uma não diferenciação entre eu e outro.
88
Freud, em seu Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), critica a posição
Havelock Ellis, que concebia o auto erotismo de forma a excluir a intervenção materna
no despertar da pulsão na criança.
185
Seja por meio do surto − ou, ainda, por meio de um processo menos ruidoso −
pode se deflagrar, para o psicótico, uma inconsistência dos objetos e do mundo externo:
libidinalmente abandonados, estes se tornam indistintos e, literalmente, estes se
dissolvem. Isto se contrapõe, portanto, à retirada do investimento nas neuroses. No ano
de 1914, Freud, em Sobre o narcisismo, uma introdução, nos dirá a este respeito que ―o
neurótico de forma alguma abandonou sua relação com o mundo, ele ainda as retém na
fantasia (FREUD 1914a, p. 90)‖.
Assim, se nas neuroses, o retorno da libido incide sobre as fantasias, no surto
psicótico, as representações que estruturavam de forma até então estável a realidade e o
eu do sujeito deixam de mediar o investimento libidinal. Ora, também para Lacan esta
função do eu como possível mediador do pulsional para o sujeito já havia recebido, em
seu seminário de 1953-54, um encaminhamento. Neste momento, a esquizofrenia, assim
como dois casos de psicose infantil − o caso Dick, de Melanie Klein e o caso Robert, do
Rosine Lefort − levariam-no a tirar conseqüências, para a estruturação da realidade para
o sujeito, da posição por este último assumida perante o significante e o pulsional.
Para explicitar tal função, Lacan retoma as elaborações que o haviam motivado,
alguns anos antes, a republicar, em 1949, suas considerações sobre o ―estádio do
espelho‖. Segundo ele ali o diz, a condição para a assunção da imagem corporal pelo
sujeito deve obedecer às disposições ou coordenadas dadas pelos significantes, a
―matriz simbólica‖. Há, portanto, no processo de estruturação do sujeito, uma espécie de
―dupla alienação‖ (LACAN 1955-56, p. 274): de um lado, o sujeito recebe do Outro o
significante que dará suporte ao advento de uma imagem, o ideal do eu. De outro lado,
há, numa segunda alienação, a apropriação das imagens veiculadas a partir do
semelhante ―a‖, pequeno outro.
Em nosso trabalho, já destacamos a predominância desta ―matriz simbólica‖ −
em sua relação com o sujeito e, portanto, para além do eu − num modelo que
reproduziria, em linhas gerais, esta mesma lógica: trata-se do esquema £, em que ―o
estado do sujeito S (neurose ou psicose) depende do que se desenrola no Outro A‖
(idem, p. 555). Todavia, há, nos casos de esquizofrenia ou em casos de psicose infantil
seja o esfacelamento da imagem corporal seja, ainda, a chance de que tal imagem não
venha, em absoluto, se constituir. Em ambos os casos, o campo da realidade pode vir,
de fato, a se encontrar mergulhado em um estado de profunda indiferenciação. Nestes
casos pode-se chegar, portanto, ao ponto crítico de uma implosão imaginária: não há
―nem outro nem eu‖ (LACAN 1953-54, p. 85).
186
Com tal experimento, ele busca sustentar que é preciso que o sujeito
(representado na figura pelo olho) se encontre alojado em uma determinada posição
para que a ―ilusão‖ de uma forma corporal minimamente coesa, como o eu, possa se
constituir. As flores, neste esquema, representam as pulsões desorganizadas que, em
caso de um sucesso na formação da imagem, aparecerão sobre o bocal. Logo, são as
coordenadas simbólicas que indicarão a ―boa posição‖ para que tal imagem apareça.
Para Lacan, este lugar simbólico dado ao sujeito será a ele disposto pelo intermédio da
voz daquele que, da criança, vem a se ocupar.
Vemos como, já aqui, é a mensagem que vem do Outro para o sujeito aquilo que
comanda a operação. É, de fato, a partir desta ―matriz simbólica‖ que se constitui a
primeira diferenciação entre continente e conteúdo, aquilo que concerne e o que não
concerne ao eu. Tal formulação de Lacan, como já o dissemos, deixa claro que não pode
haver para o analista confusão entre ―eu‖ e ―sujeito‖. Desconhecer este passo incorre em
destituir tanto a descoberta freudiana − que desaloja o eu como centro do aparelho
psíquico − quanto os esforços estabelecidos, pelo sujeito, em casos de psicose infantil e
esquizofrenia.
Nestes últimos casos, será justamente esta primeira diferenciação, na
constituição de um eu para o sujeito, aquilo que, no surto, se desagregará: ―... na
esquizofrenia, algo se passa que perturba completamente as relações do sujeito ao real, e
embaralha o fundo e a forma‖ (LACAN 1953-54, p. 135). Portanto, quando o arranjo da
imagem corporal − que ainda que não se confunda com o sujeito vem oferecer certo
suporte ao emaranhado das pulsões − se decompõe, as relações entre o sujeito, sua
187
B. 1) A ―solução elegante‖
Em suas Memórias, Schreber parece ter atribuído às perturbações ocorridas em
seu mundo libidinal uma falta num duplo sentido: de um lado, numa geração anterior,
um Flechisig subtraíra, pelo ―assassinato de almas‖, algo dos integrantes da família
Schreber; de outro lado, este ‗crime‘ fora uma transgressão da ―Ordem das coisas‖, ou
seja, uma espécie de ‗delito em escala cósmica‘. Desde então, caberia a Schreber, como
engrenagem necessária na ―Ordem das coisas‖ − posto que Deus nada entende do
mundo dos vivos − restaurar a harmonia cósmica.
O significante ―Ordem das coisas‖ – delirantemente constituído − emergia, por
outro lado, como forma de tratar a irrupção da alucinação que precipitara-o em seu
segundo surto, mais agudo: ―como seria belo ser uma mulher e se submeter ao coito‖.
Se, pela não inscrição do falo como mediador nas relações com a alteridade Schreber
não pode intentar ser o falo que falta à mãe – dialética própria à neurose – ele seria, ―a
mulher que falta aos homens‖ (LACAN 1957-1958, p. 572) ou talvez, como parece ser
mais condizente com o delírio schreberiano, ―A mulher de Deus‖.
Como via para tratar o pulsional, Schreber ensaia uma inédita e não fálica
tentativa de sexuação delirante: ―É surpreendente saber que Schreber faz distinção entre
um estado de beatitude masculino e outro feminino. O estado masculino de beatitude
era superior ao feminino, que parece ter consistido principalmente numa sensação
ininterrupta de voluptuosidade‖ (FREUD 1911, p. 46).
A prevalência, entretanto, do estado ―ininterrupto‖ de volúpia, ligado à
inundação do aparelho psíquico pela libido, não é para Schreber uma diferenciação
descontínua, mas correlata à sua emasculação. Neste processo − deflagrado a partir da
transferência para com seu médico, Flechsig − se parece esboçar-se certa distinção entre
os sexos, não é o caso de pensá-la como partilha fálica; trata-se, antes, de uma
modalização de gozo operada desde o significante delirante ―Ordem das coisas‖. É neste
sentido – como modalização e não como partilha – que o livre trânsito entre os ‗sexos
delirantes‘ coadunou-se com o fenômeno da ―emasculação‖:
191
S1 → a Significante em sua propriedade de causar o gozo versus S/x Significante que, por sua não articulação a
a propriedade, ressaltada por Lacan até então, de ser apenas outro, não produz efeitos de significado.
o que representa o sujeito para outro significante)
Alíngua nos afeta primeiro por tudo que ela comporta como efeitos
que são afetos. Se se pode dizer que o inconsciente é estruturado
como uma linguagem, é nos efeitos de alíngua, que já estão lá como
saber, vão além de tudo o que o ser que fala é suscetível de enunciar
(LACAN 1972-3, p. 196).
89
Seminário 22, lição de 21 de janeiro de 1975.
195
O pai, logo, realiza sua relação com o impossível sendo, ele próprio, um nome
não-todo pronunciável, que participa ele também do enigmático. Isto levaria Lacan, ao
falar do ―Despertar da primavera‖, de Wedekind, a pensá-lo como ―uma face da Deusa‖,
como ―mascarado‖, como ―o nome do nome do nome‖ (LACAN 1974, p. 131).
Este ato, que aloja o indizível no dito, possibilita não a substituição de um
significante por outro, mas, sim, o enodamento do simbólico ao real, a nomeação. Esta
via, a nomeação – portanto, um ato que implica um dizer, sempre singular – é outro
avatar deste pai pluralizado. Nesta vertente o pai não mais apenas pacifica o Outro,
tornando-o o lugar da verdade do sujeito, mas dirige-se ao significante desarticulado,
―causa de gozo‖ e ao resto da operação − impossível de simbolizar − este objeto ―a‖,
indizível, no qual ele reconhece sua causa.
Há, ainda, Lacan faz-nos saber, para além do encaminhamento disposto pela
père-version, outras versões de pai, que marcam, por sua incidência, a passagem do
Nome do pai, ao ―pai do nome‖ (LACAN 1975-6, p. 23). O nome-do-pai torna possível
assim, por sua faceta de nomeação, que se faça do nome uma borda que aponta para o
que se encontra interior-exterior ao simbólico, o real. Neste sentido, aquilo que Lacan
chamará nomes-do-pai pode dizer respeito, também, a operação de nomear cada um dos
diferentes registros de forma a articulá-los: ―Bem, os nomes-do-pai é isso: o simbólico,
o imaginário e o real (...) nomes primeiros enquanto nomeiam algo‖ (LACAN 1974-5).
Em que isto colabora para a elucidação de nosso problema, o fora-da-lei fálica que é a
psicose?
Ora, conforme pontua Zenoni, ―De Lei para todos, fundamento universal, o
Nome-do-pai se desloca assim para uma multiplicidade de suplentes, ou seja, para a
multiplicidade de ‗exceções‘ à lei que tem o papel de fundamento da lei‖ (2007). Estes
desdobramentos, que apontam para maneiras singulares de articular real, simbólico e
imaginário, culminam no que, em suas considerações sobre James Joyce, Lacan chama
de ―Sinthome‖. Formas de articulação dentre as quais a maneira fálica é apenas uma, o
Sinthome – que atrela, borromeanamente os três registros – e formas ainda mais diversas
de atrelamento, acomodação e ancoragem − apontam para suplências cada vez mais
particulares.
196
Somos, pois, confrontados com a questão: se algo não se inscreve para todos
desde Freud – libido não-ligada e pulsão de morte – até Lacan – inexistência da relação
sexual – haveria o que Miller chamou de foraclusão generalisada?
Quanto a isso, partilhamos a posição de Serge Cottet que, em A hipótese
continuísta nas psicoses (COTTET 1999) atenta − à maneira dos analistas participantes
da Conversação de Arcachon −, para uma modalização da clínica clássica que, sem
desconsiderar o binômio neurose-psicose, pode vir a pensá-lo desde uma ―clínica das
suplências‖ (idem, p. 242). Trata-se, nesta ―clínica da conexão‖ (idem, p. 243), de
pensar lado aos fenômenos que marcam rupturas claras na existência do louco –
fenômenos em que se explicitam a continuidade entre significante e gozo assim como
desligamentos progressivos do Outro:
197
− Capítulo VIII –
Kakon: passagem ao ato e responsabilidade na psicose
No presente e último capítulo intenta-se demonstrar que, para além da
agressividade − aspecto característico da relação imaginária entre a e a‘ − pode haver,
na passagem ao ato, tanto a tentativa de subtrair algo do gozo avassalador quanto,
aproximando ―passagem ao ato‖ e ―ato‖, a busca por inserir, no real, uma diferença
simbólica − mesmo na psicose. Desde este aporte veremos como a agressão posta em
cena por estas ações adquirem, em seu contra-senso, uma efetividade, apreendida por
Lacan desde suas considerações sobre o ato de Christine e Lea Papin: ―um esforço que
visa a romper com o círculo mágico da opressão‖ − leiamos o gozo − ―do mundo
exterior‖ (LACAN 1935, p. 690-691).
Utilizando, portanto, uma vez mais a noção de ―kakon‖ − significando não
apenas ―o mal‖, mas apontando para este fora-da-lei simbólica, aquilo que escapa ao
ordenamento significante − pensaremos o homicídio imotivado como tentativa de tratar
o gozo através de uma tentativa de subtração. Caberá, ainda, sustentar, desde a
conjuntura psicótica, a concepção psicanalítica da ―passagem ao ato‖ não sob a forma
de um ‗desfalecimento da fantasia‘ − que medeia, na neurose, as relações entre sujeito e
objeto a −, mas, sim, participando de uma fórmula mais geral, como ruptura de uma
acomodação até então estável, entre os registros real, simbólico e imaginário.
Este capítulo será dedicado, também, à exploração da difícil questão disposta
pela relação entre as noções, apreendidas à luz da psicanálise, de ―psicose‖ e
―responsabilidade‖. Partindo dos enunciados freudianos, destacaremos como estes
erigem uma noção de responsabilidade atada à hipótese do inconsciente. Como
veremos, tal noção é ela própria atingível apenas por um posicionamento ético perante a
alteridade. Trata-se, neste caso, de um fazer que implique a assunção, pelo falante,
daquilo que, a posteriori, ‗terá sido‘ aquilo que alojara o efeito-sujeito. Tal posição,
partidária do imperativo ético freudiano ―Wo es war soll ich werden‖, tem, no seminário
de Lacan sobre a ética, desvelada sua estrutura: trata-se de um ―juízo sobre nossa ação‖
no qual ―a ação nele implicada comporta, também, ou é reputada comportar, um juízo,
mesmo que implícito‖ (LACAN 1959-60, p. 373). Lacan concluirá que, na construção
desta cadeia, ―a presença do juízo dos dois lados é essencial à estrutura‖. Neste último
capítulo, trabalharemos ainda, de forma a desdobrar nossas posições no âmbito da
prática clínica, um célere exemplo deste manejo.
199
90
Fenômenos de pontuais e fugidios de ―pensamentos antecipatórios, ecos de pensamento, ecos de leitura,
enunciação dos atos e impulsos verbais‖ (MORRON, GIRARD, MAUREL e TISSERON 1993, p. 29).
203
Tomado a partir desta referência, o kakon – em sua apreensão por Paul Guiraud
− resulta estranhamente perdido entre uma função de mecanismo radical de defesa e
―um complexo aparentemente bulbar de natureza automática‖ (idem, p. 126). Todavia,
para além de qualquer tentativa biologista de apreender os fenômenos psicopatológicos,
o termo kakon sempre ocorrerá, na obra de Lacan, ligado à clínica da psicose, evocando
uma corporalidade outra que não a orgânica. É o que se desvela na primeira referência
ao kakon, ante à exposição de Paul Schiff, Psicanálise de um crime incompreensível,
apresentada à Sociedade psicanalítica de Paris em fevereiro de 1935.
207
Trata-se, nesta exposição de Schiff, de um curioso caso: uma mulher matara sua
própria tia após um acontecimento aparentemente fútil, a saber, um acidente com uma
―caneta lacrimogêneo‖. Contrariando as relações usuais entre psiquiatria e psicanálise −
e dado a incompreensibilidade do crime −, Schiff, psicanalista, fora convidado a dar seu
parecer sobre o caso. É assim que, após cinco semanas de sessões diárias em condições
―pouco favoráveis‖, ele concluirá que a ―explosão homicida‖ ―se torna ‗compreensível‘
quando se traz a luz os móveis profundos da rivalidade masculina entre as duas
mulheres e a raiva latente da acusada por sua tia‖ (R.F.P. 1935, p. 688). Em sua análise,
além de tornar o crime ―compreensível‖ aos tribunais, sua intervenção junto à acusada
permitia ―provocar a confissão que definia‖ certos aspectos relativos à ―materialidade
do crime‖, e, também, depurar o ―grau de participação do eu‖ no homicídio.
Para além das ―plumas médicas‖ na ―expertise judiciária‖ (idem, p. 691), Lacan
chama atenção, junto a Spitz, para a função simbólica de um sintoma corporal trazido
pela paciente, a ―ceratite‖ – inflamação hereditária da córnea. Se, segundo Spitz, a
doença parecia evocar algo da castração para a paciente, na deflagração do furor
assassino pelo ocorrido com a ―caneta lacrimogêneo‖, Lacan reconhece ―o valor
desencadeante de um incidente aparentemente absurdo‖ (idem, p. 690). De forma
similar ao ―curto-circuito‖ elétrico no caso das irmãs Papin – que literalizou a metáfora
do ódio ―arrancar os olhos‖ num circuito em que, entre as irmãs e suas patroas, ―não se
falava de um grupo a outro‖ (LACAN 1933, p. 381) – o acidente com lacrimogêneo
aludia a outra castração escópica não simbolizada: a perda de visão por ceratite.
Tomando como base este corpo, não orgânico, mas relacionado ao simbólico em
suas relações com o pulsional, Lacan pondera que há casos em que ―a realização do
kakon‖ pode tornar-se ―compreensível‖. Era isto o que ocorria em seu caso Aimée, em
que a ação homicida se tornava apreensível ao considerar a dinâmica pulsional daquela
agressão autopunitiva, em espelho, à imagem de si mesmo. Todavia, ele sublinhará que,
mesmo nos casos em que a dinâmica delirante se furta em flexionar o mal-estar
psicótico – dotando-o de um sentido −, desvela-se a função do kakon, em “romper o
círculo mágico‖ (LACAN 1935, p. 690). Na apreensão que Lacan faz do ―kakon‖, há,
portanto, no que tange a sua função, não um apelo ao ideal de um corpo mortificado
pela anatomia – que foraclui o gozo −, mas, sim, ao considerar o mal-estar que retorna
sobre o ser do falante, um corpo vivo, atrelado ao pulsional. É esta função do kakon,
relacionada à pulsão aquilo que atém, desde 1935, a atenção de Lacan.
208
Para Lacan, pois, a apreensão da angústia não é algo que se faça meramente a
partir de uma ―vivência‖, nem, tampouco, de ―assumir as experiências que a esta se
referem‖ (idem, p. 27). Lacan, assim, separando-se de Freud, proporá que a angústia
não é estritamente relacionada à interdição ou possibilidade de privação de um objeto,
sendo considerada, mormente, ―angústia de castração‖, mas, sim, que esta, em verdade,
―não é sem objeto‖ (idem, p. 101). Este estranho objeto, ―para além da objetividade‖ –
vale dizer, da materialidade, encontrável no campo da realidade −, Lacan denomina
―objeto a‖ – nomeação por ele utilizada para se reportar aos ―objetos anteriores à
constituição do estatuto do objeto comum, do objeto comunicável, do objeto
socializado‖ (idem, p. 98).
Num passo além do objeto perdido, Lacan tomará o ―objeto a‖ como este resto
não simbolizável, subtraído entre o sujeito e o Outro, que institui, entre aqueles, uma
―separação‖ − posteriormente mediadora das relações entre estes campos na dialética do
desejo. Este objeto ―amboceptor‖ (LACAN 1963-4, p. 185) – termo retirado, por Lacan,
da medicina, relacionado aos anticorpos que reagem tanto a elementos do organismo
quanto aos possíveis invasores −, entre sujeito e Outro, não pertencente a nenhum dos
dois campos, eleva o estatuto do objeto em psicanálise da condição de objeto perdido
àquele de ―causa do desejo‖.
213
Lacan pensa este objeto como operador de uma relação com o corpo para além
da imagem de si, vinculando, num circuito econômico, as relações do sujeito com algo
que se recorta como falta. Irrepresentável – mas, ao mesmo tempo efeito da relação da
linguagem em sua incidência sobre a carne do falasser –, este objeto é alcançado − no
que Lacan chama de ―maturação do objeto a‖ (LACAN 1963-4, p. 282) − quando o
sujeito se separa do seio no desmame, das fezes na defecação, da voz na fala e do olhar
na visada. Quanto ao objeto ―a‖, diz-nos, Lacan, trata-se da relação da linguagem com
uma ―parte de nós mesmos, a parte de nossa carne que permanece necessariamente
aprisionada na máquina formal, sem o que o formalismo lógico, para nós, não seria
absolutamente nada‖ (idem, p. 237).
O encontro com ―a‖ − quando algo no campo da realidade o evoca gerando o
efeito de estranheza, Umheimlichkeit −, opera de forma a confrontar o sujeito, mesmo
na neurose, com sua angustiante dimensão objetal; ante o ―duplo que lhe escapa‖ (idem,
p. 100), ―a‖, o sujeito defronta-se, para além da tela da fantasia – que, desde Freud,
conjuga as diversas formas de relação com o objeto −, com o ―desejo do Outro‖. O
encontro angustiante com este duplo, não imaginário, mas real do sujeito, implica, pois,
não apenas a emergência da presença do Outro não encoberta pelo véu da fantasia, mas,
sobretudo, uma ―identificação mais misteriosa com o objeto do desejo como tal‖ (idem,
p. 46). Certa objetalidade, portanto, demonstra não ser apenas algo próprio à psicose: se
o louco é confrontado com a incidência venal de um Outro real – ―ser que pesa por seu
gozo‖, que ―esmaga sob seu gozo‖ (idem, p. 73) –, ao neurótico cabe operar, desde sua
relação com o Outro do desejo, uma separação que o permita advir – num saber-fazer
com sua dimensão objetal − como sujeito. Lacan chama, em nota acrescentada em 1966,
(época da publicação dos Écrits), ao ―Esquema R‖ da realidade, construído em 1956-7
no texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, de ―extração
do objeto a‖ (LACAN 1966c, p. 559-60) este processo.
Nesta nota, desvela-se este processo através da transformação do quadrângulo
R numa figura topológica. Dois cortes recortam os pólos ―im‖ e ―MI‖; sendo a área
hachurada resultante torcida de forma que se atem e fixem os segmentos a e a‘:
+
214
91
Gaston Danville é o pseudônimo de Armand Blocq, escritor e filósofo interessado em psicologia
experimental, particularmente no que tange a ―conflitos de personalidade‖ e ―patologia do funcionamento
da mente humana‖ (ALONSO GARCIA 2005-6, p. 6). Além de novelas, Danville se interessava pela
discussão criminológica apresentando trabalhos nesta área. Sendo um dos criadores da revista Mercure de
France, ele produzia contos de literatura fantástica nos quais utilizava conhecimentos em psicopatologia.
216
Já que fui decepcionada em meu apego por ti, meu pai, e que eu
mesma não posso ser tua mulher submissa nem teu objeto, é Ela
que será minha Dama, e, quanto a mim, serei aquele que
sustenta, que cria a relação idealizada com o que foi repelido de
mim mesma, com o que, de meu ser de mulher, é insuficiência.
De fato, não nos esqueçamos de que a moça abandonara o
cultivo de seu narcisismo, seus cuidados, sua coqueteria e sua
beleza, para se transformar no cavaleiro servidor da Dama
(LACAN 1963-4, p. 124-5).
Ante esta perda que se impõe à carne do falasser desde a incidência significante,
a psicose, caracterizada não apenas pela rejeição da via fálica, mas, sobretudo, pela
proposição de formas de lidar com o gozo que passamos a chamar, desde o capítulo
passado, de ‗foraclusivas‘ – por se caracterizarem por este manejo com o ―objeto a no
bolso‖ −, terá recursos próprios para tentar computar esta perda fundamental.
Pela via delirante, temos, por exemplo, aquilo que Freud nos ensinara a escutar
no acolhimento do monumental testemunho que Schreber delega à alteridade. Ao
debruçarmo-nos sob o material que ele nos oferta, vemos como Schreber testa os limites
da via delirante para, a seu modo, tentar articular algo desta perda. Em suas Memórias,
ele parece ter atribuído as perturbações ocorridas em seu mundo libidinal a uma falta
num duplo sentido: de um lado, no ―assassinato de almas‖, um Flechisig atentara, numa
geração anterior, contra um dos integrantes da família Schreber; de outro lado, de
alguma forma, esta falta fora, também, uma transgressão da ―Ordem das coisas‖, ou seja
uma espécie de crime em escala cósmica.
Por outro lado, coube a Schreber equacionar a impossibilidade por ele sentida
de alojar a cópula impossível com Deus: há certo fracasso do paranóico em localizar o
gozo no lugar do Outro (LACAN 1966d, p. 221). Schreber de certo modo acomoda algo
desta impossibilidade em seu delírio ao evocar, na realização plena desta cópula, sua
relação com o que Freud chama de assintótico: apenas num futuro estendido ao infinito
– ou seja, no mínimo num ‗impossível atual‘ − que ele completará sua transformação
em ―mulher de Deus‖, parturiente da ―nova raça de homens schreberianos‖. Não fora
esta acomodação aquilo que permitira uma parcialização de seu delírio e motivara-o a
submeter sua construção à opinião de ―profissionais‖ que teceriam considerações ―sobre
seu corpo e seu destino pessoal‖ (SCHREBER 1903, p. 25)?
Hipóteses à parte, há, nós o pensamos, desde a localização de uma perda via
concepção delirante, a possibilidade de uma subtração mínima de gozo e a construção
de uma modalização deste − que pode atingir, na psicose, uma estabilização. Opomos,
então, à ―extração do objeto‖ na neurose − pela incidência do -φ que é o falo −, à
denominação ―subtração de gozo‖ − que embora demarque uma perda, opera de forma
diversa do engendramento do campo do desejo e da causação do sujeito ―barrado‖.
Assim, mister se faz, para nós, ressaltar, como fez Freud, que o delírio pode assumir
importante papel na estabilização dos quadros psicóticos; produzindo uma mediação
entre o sujeito e um Outro repleto de gozo, computando a perda em algum nível.
223
Neste texto, Miller sublinha o último ensino de Lacan, que toma como algo
fundamental a dimensão do significante como ―causa de gozo‖. O significante é
pensado por Lacan em seu Seminário XX desde a coincidência do sujeito do
significante − causado pela faceta sintática da linguagem − com o ser falante afetado
pelo inconsciente. É desde esta coalizão que Miller propõe que a condição do gozo é o
ser falante como vivo, ou, dito em outras palavras, que ―a vida é condição do gozo‖
(MILLER 1999, p. 8). Mas, como esta incidência instaurada pela ação do significante
que se inscreve na carne do falasser nos auxilia a lançar luz sobre o trabalho do
esquizofrênico sobre o corpo e, mais ainda, como ela colabora para pensarmos este
trabalho em termos de uma tentativa de subtração de algo do gozo?
No caso em que o paciente ―cabine de telefone‖ busca se vincular a seu corpo
por meio de adereços e da nomeação ―cabine de telefone sem telefone‖, talvez
possamos pensar este processo em torno do que Miller chamara de ―significantização‖
(idem, p. 57). Por este processo, ele entende o que Lacan várias vezes em seu ensino
chamara de ―elevação ao significante‖, processo correlato ao ―assassinato da Coisa‖.
Neste processo, de acordo com Miller, é preciso ―certa anulação da coisa inicial e uma
estilização para que se opere a significantização‖ (Idem, p. 57). Miller evoca, para
ilustrar isto o exemplo dado por Lacan em seu discurso de Roma, Função e campo da
fala e da linguagem (LACAN 1953):
Ele nos dá em seu discurso de Roma o exemplo detalhado das
―andorinhas-do-mar‖ com o peixe que elas significantizam.
Normalmente, as andorinhas-do-mar devoram o peixe chegando
mesmo a disputá-lo para devorá-lo. (...) Mas, ocorre que
observa-se uma festa das andorinhas-do-mar que se faz por
meio de um peixe que elas abstêm-se de comer: ele se torna o
instrumento da festa e as andorinhas-do-mar passam o peixe de
bico em bico. Aí está, basta dizer que o peixe festivo, este peixe
grupal, é símbolo, isto é, que ele subtrai-se ao impulso de auto-
conservação (idem, p. 57).
92
Partindo das categorias aristotélicas, Lacan apreende o que ―não cessa de não se
escrever‖ (LACAN 1973, p. 81) como referente ao ―impossível‖.
228
De início, partindo do que elaborara Freud desde os atos falhos – visto por nós
em nossas considerações sobre a Psicopatologia da vida cotidiana −, Lacan dirá que um
―correlato significante‖ ―não falta jamais no que constitui um ato‖ (LACAN 1967-8). A
noção psicanalítica de ato – não estritamente do ato psicanalítico, mas do ―ato em geral‖
−, permite-nos, logo, apreender o ato em relação à incidência significante, com sua
marcação a partir de uma conjuntura de linguagem e dispondo uma diferença no real.
Esta concepção refuta, portanto, de forma crítica, os problemas envolvidos na
concepção do ato como descarga de tensão puramente motora ou, segundo o modelo
arco-reflexo, uma relação necessária seja sob a forma de um reflexo incondicionado ou,
ainda, de uma ação secretória (LACAN 1967-8). Desta inscrição da diferença simbólica
no real temos um exemplo patente: o caso de Celso Renno Lima discutido por Jacques
Alain-Miller em 1988.
Em Do Delírio ao ato ou da Clínica ao Matema (LIMA 1994), Lima fala de um
paciente do qual passara a tratar. Este último, tendo longo percurso de internações
psiquiátricas e um ‗histórico de agressividades‘, havia sido indicado a Lima junto a uma
série de advertências. Certo dia, durante uma intervenção, o analista recebe do paciente
um soco no rosto; chorando o paciente parecia se lamentar: ―Agora você também vai
embora como os outros. Eu sei, você vai embora‖ (idem). Após este fugidio instante, ao
tornar a olhar para o rosto do analista, relata Lima que o paciente solta,
inadvertidamente, uma gargalhada: ―Agora sim, eu fiz seu olho diferente do outro!‖.
Invadido pela presença delirante de um olhar que o transbordava, estando, como dizia, o
paciente, ―sem saída‖, este se precipita ao ato. Da ―mãe quase cega‖ até a ―presença
maligna daqueles óculos‖ que poderiam o cegar, impôs-se, pela dessimetria entre um
olho e outro, uma diferença no real. Miller a este respeito pondera que:
94
Cf. em O futuro dura muito tempo (1992).
231
É chegada a hora de, desde o percurso efetuado por nosso trabalho, retornarmos
não ao ponto inicial em que introduzimos nossa tese – posto que não se trata de um
retorno ao ‗mesmo‘ −, mas àquilo que ‗terá deflagrado‘ nosso trabalho: o caso S, com o
qual introduzimos (p. 1) a questão que move nossa tese.
A) Caso ―S‖
A.1) A chegada: fundação da ―alíngua de transferência‖
Com andar hesitante e olhar repleto de profunda desconfiança, ambos emergidos
de um corpo enrijecido e mecanizado, chegou a nós a paciente ―S‖. Em suas primeiras
sessões ela relata idéias de perseguição − resistentes à sistematização − e alucinações
que tornavam presentes, para ela, a face traumática da linguagem. É ao final de um
desses primeiros encontros que S. surpreende-nos ao dizer que, mesmo os atendimentos
sendo, segundo ela, de grande valia, ela ―não querer mais voltar‖. Perguntada a respeito,
S. justifica: ―É que me faltam as palavras‖. Nossa intervenção, correlata ao desejo de
que algo do discurso analítico pudesse ali incidir, foi dizer: ―As palavras, encontramos
juntos. O que acha?‖. Com um sorriso sem graça, S. aquiesce à intervenção.
Na sessão seguinte, a paciente conta, com riso tenso, o que disse a outra interna:
―Meu Deus, agora tenho que achar palavras para dar nas sessões!‖. Curioso foi o efeito
que se deu e que surpreendeu tanto a nós quanto à paciente: um riso escapou de nossa
boca. Ela, rindo por ricochete, conclui que, apesar de lhe ―faltarem palavras‖, gostaria
de falar nas sessões sobre os ―ciúmes neuróticos‖ que tinha de seu ex-marido e que até
hoje a faziam sofrer. A perturbadora tensão, misto de desconfiança e ―timidez‖ − como
ela mesma o diz − se desloca da solitária descrença para o campo da palavra.
Confrontada com a questão do desejo − que, neste caso, comparece através do
desejo do analista de que algo do discurso psicanalítico ali interviesse − a paciente é
tomada por um riso tenso. Entretanto, ao falar de sua história tendo como parceiro não
um Outro onipotente que a avassala, mas uma alteridade capaz de ser surpreendida –
inclusive por sua vontade de prosseguir ou não −, há uma cessão de algo até então
refratário à alteridade em direção a este laço social mínimo que é o dispositivo clínico.
Cabe-nos, não obstante, interrogar: O que esta mulher dá? A resposta: suas palavras.
O humor, aqui, institui-se de forma que o ouvinte é levado a sustentar uma
alteridade que não comparece como vontade de gozo ou como escárnio. Por outro lado,
a surpresa desvelara, aqui, importante função: surpreendendo-se com as construções que
lhe são endereçadas, o analista pôde usar-se do ―não-tudo saber‖ para se tornar suporte e
239
destinatário do ‗dizer psicótico‘. Como ‗ao menos um a não gozar do louco‘, faz-se
possível a surpresa não como perplexidade, mas como catalisador à disposição do louco
para a construção de alguma alteridade possível. No início do tratamento fundam-se,
assim, as condições de um espaço de palavra desde uma operação que trata o gozo – por
uma ‗cessão‘ (palavras) e pela construção de um enlace mínimo – através do humor.
Em outro trabalho, O litoral e a surpresa: os estágios preliminares do chiste
(FREIRE e COSTA 2008) atentamos para o uso do humor pelo psicótico desde o que
Freud chamara de ―estágios preliminares do chiste95‖. Ora, desde jogos humorísticos
como estes, da incidência da surpresa e da cessão de ‗algo‘, somos levados a considerar
o enlace transferencial remetido não à ―suposição de saber‖, mas à noção de ―alíngua 96
de transferência‖ emergida na Conversação de Antibes (MILLER 1997c). Considerando
as psicoses ordinárias e neo-desencadeamentos − distintos das rupturas ―clássicas‖ –
este debate privilegiou enlaces e manejos clínicos em situações nas quais a articulação
significante como tal não se coloca. Se a referência à linguagem como ―elucubração de
saber‖ (LACAN 1972-3, p. 190), ou seja, como saber estruturado, mostra-se, em certos
casos, imprópria, o conceito de ―alíngua‖ mostra-se importante operador no que tange a
novas parcerias entre o analista e o psicótico.
Tal concepção repercute, pois, desde Lacan, sobre o motor da transferência:
―quando enunciei que a transferência era motivada pelo sujeito suposto saber, isso era
apenas uma aplicação particular, especificada, do que se faz nesta experiência‖
(LACAN 1972-3, p. 197). Assim, a hipótese da sessão de Antibes é a de que o que
motiva a neo-transferência ―não é o sujeito suposto saber, mas a ‗alíngua de
transferência‘, enquanto o que permite que um significante possa fazer sinais de algo
que está fora do sentido: onomatopéia, cifra, marca‖ (MILLER 1999, p. 150). Neste
95
Nestes ―estágios preliminares‖ do chiste Freud identifica duas fases: o ―jogo‖, que dispensa a terceira
pessoa, extrai satisfação da ―similaridade do som‖ e da ―repetição do familiar‖; e o ―gracejo‖, exigência
de que estes jogos ‗façam sentido‘. Entre estas fases, porém, há brincadeiras coletivas em que as crianças
fruem dos sons das palavras e partilham satisfação humorística, como nos jogos ―uni-duni-tê‖ e ―adoleta‖.
96
Ao considerar o significante, à revelia do sentido e desde homofonia − Lacan, entre 1971 e 1973, marca
uma báscula em seu ensino. A partir da noção de ―alíngua‖ ele relativiza o inconsciente ―estruturado
como uma linguagem‖, e designa, por tal termo, a relação do falante com o significante pela via do gozo
do verbo – do enxame significante como ―causa do gozo‖ (LACAN, 1972-3/1985, p. 36). O termo,
―alíngua‖, surgiu no seminário de Lacan sobre O Saber do psicanalista: na lição de 4/11/1971, a partir de
um tropeço, Lacan troca o título do livro ―Vocabulário de Psicanálise‖ por ―Vocabulário de Filosofia‖ −
de André Lalande. Lacan autentica seu ato falho e forja, desde a homofonia com ―Lalande‖, a expressão
―Lalangue‖, ou, la (a) + langue (língua): alíngua.
240
demanda‖ que, nos desfiladeiros da instituição, chegara ―S‖; a partir daí, cabia alojar
intervenções diversas do imperativo de segregação ou adaptação. Mas o que, a despeito
deste trânsito restrito nos trazia ―S‖?
Após o enlace transferencial, duplamente dispendioso para ―S‖ e para nós,
conta-nos ela que, quando criança, lembra ter sido cuidada por sua mãe, até que esta,
―que é como ela‖, fora internada. Nesta ocasião, passara a viver com o pai e a madrasta.
―Era normal‖ – qualifica ela o fato de, quando achada, ―S‖ mal ter cabelos devido a
quantidade de feridas que trazia em sua cabeça.
Passando a morar com seu pai, ―S‖ mal tinha amigos, ―não se interessava em
brincar com outros‖. Ademais, mesmo que o quisesse, seu pai não permitia sua saída.
Fato insistente nas sessões que tivéramos durante quase dois anos, ―S‖ reiteradamente
conta do que fazia quando sua casa recebia visitas: ―não sei por que, quando chegava
alguém de fora, eu me escondia debaixo da cama e não saía‖.
Em sua adolescência, ela fora convidada por sua madrinha a morar com esta, a
fim de ajudá-la a cuidar de sua filha em Brasília. ―S‖, então, aquiesce o convite − ou
melhor, não o nega. Lá, por desentendimentos com o marido de sua madrinha, − que lhe
―tratava muito mal‖ agredindo e ―fazendo-a de empregada‖ −, ela sai de casa e passa a
trabalhar como faxineira. É neste momento que conhece o pai de seus filhos. ―Como
isto se deu?‖ – pergunto. ―Ele me chamou para morarmos junto e eu fui‖ – responde ela.
É deste homem que ela diz, na sessão em que se engaja transferencialmente a partir do
humor, querer falar de seus ―ciúmes neuróticos‖; achando as palavras para tal, ela relata
ter vivido, com este, uma primeira ―estranheza‖ em sua vida: ela tinha ciúmes muito
grandes deste homem. Como mais tarde ela poderia concluir, os ciúmes que sentia eram,
em parte, justificáveis: ele efetivamente a traia. Todavia, o que ela chamou de
―estranheza‖ era atribuído a um primeiro fenômeno corporal, ―um calor que subia de
sua barriga até sua cabeça, ‗nublando‘ a visão‖.
Certo dia, tendo ela já três filhos com este homem, ―S‖ diz que esquecera no
fogo uma panela cheia de óleo fervente. Estando em sua varanda de costas para a
cozinha ela não via a fumaça que saia da porta e janelas. Sua vizinha de fundos,
sentindo cheiro de queimado, entra na casa ―pela parte de trás‖ e, panela na mão, pôs-se
a lançar, pela porta da cozinha, o conteúdo fervente. Infortunadamente, neste momento,
―S‖ entrava, junto a sua filha, pela porta: ―Eu e minha filha tivemos queimaduras no
mesmo lugar da perna, mas além das minhas serem mais profundas, queimei também
meu colo e braço. Quase morri‖.
242
Internada no hospital, ―S‖ demoraria a retornar para sua casa. Em seu retorno,
porém, as relações com seu marido pioram, chegando num ápice quando esta encontra-o
junto a uma mulher em sua cama. Enraivecida, ela tenta agredir seu companheiro; sendo
ele mais forte, não tardaria para que ela fosse subjugada: ―Você não é mais mulher para
mim‖. ―S‖ recebera, neste momento crítico, uma resposta negativa para uma pergunta
que talvez ela, por estrutura, nunca tenha feito. A experiência de estranheza, iniciada
desde os ―ciúmes neuróticos‖ agora transborda-a: ―esta frase me deixou desnorteada,
mexe com minha cabeça até hoje. Nunca mais fui igual‖.
Depois da agressão, relacionamento terminado, ―S‖ passara a viver com sua filha
− que também se queimou −, sendo os outros dois filhos deixados com parentes em
estados vizinhos. Neste meio tempo, seu pai militar falece lhe deixando uma pensão e
seu irmão morre afogado. Esta nova vida a dois, entretanto, lhe fornecera um refúgio
que a estabilizaria, refúgio este que, ainda que tivesse durado alguns anos, estava prestes
a terminar: a filha, já crescida, ―junta-se‖ a um homem, a bengala imaginária sobre a
qual ―S‖ se apoiava se parte. Desprovida deste suporte ―S‖ diz ter recebido a visita de
uma ―mulher estranha‖ que, em nome de uma enquete sobre um produto alimentício,
tocara sua campainha, pondo-se a ―perguntar sobre sua casa, sua renda, um monte de
coisas‖. Neste outro mal-encontro com o feminino – não em oposição a dualidade, mas,
sem o apoio desta −, uma certeza, luminosa, lhe acena: aquela ―mulher estranha‖ queria
―lhe envenenar‖; o porque, ela não sabia.
Após a partida daquela mulher que ela logo dispensa, ―S‖ passa a ouvir
zumbidos em seu ouvido tão altos que ela, para abafá-los, passa a bater panelas; sua
―cabeça gira‖, as luzes dos postes lhe acompanham. Devassada pela cena de um
espetáculo que ela não consegue nomear, ela se encontra com a mancha que soterra
aquele quadro com o nonsense: ―S‖ diz ter encontrado, nos arredores de sua casa, uma
espécie de ―pequeno bracelete, como aqueles que se coloca no braço de um bebê‖, no
qual ela, com dificuldades diz ter conseguido ler: ―Elba Ramalho ataca novamente‖.
Nas diferentes sessões em que ela retoma este ‗encontro‘ – não foram, em verdade,
muitas −, este dito nunca adquire sentido. Esta expressão, tampouco como nomeação –
cifragem do real que pode prescindir do sentido −, mostra-se efetiva.
Numa experiência de visceral desamparo, ―S‖ busca, na família e amigos, ajuda.
―Isso é coisa da sua cabeça, logo vai passar‖ – retornam-lhe eles. Apavorada, ela vende
―por pouco ou nada‖ sua casa, e ―vem andando‖ e ―de carona‖ de Brasília até São
Gonçalo, onde tem irmãs. Com o dinheiro que tinha e com a pensão que recebia de seu
243
pai, ela aluga um pequeno apartamento: ―Tudo vai melhorar!‖ – diziam seus parentes
em ritornelo. Num hospital, ela disse ter começado a receber, mensalmente, medicação
―para depressão‖ – citando, para explicitá-la, nome de antipsicóticos. ―Não sabia que
psicólogo conversava com a gente dessas coisas! Ninguém me ouvia‖. De todo modo, é
pouco depois que, ouvindo da ―mulher do banco‖ que não havia chegado sua pensão –
como posteriormente descobriu a equipe, devido a não renovação de sua documentação
−, ela entra em desespero. Emerge, neste momento, uma voz que lhe apresenta uma
dolorosa opção: ―ou você mata ou vai ter que doar órgãos‖.
Se, no momento de um primeiro desencadeamento ela ouvira de seu
companheiro que ―ela não era mulher para ele‖, a voz que ouvira após outro ‗mal-
encontro‘ com mulheres − sendo o primeiro com a amante de seu marido, o segundo
com a estranha mulher, o terceiro com a bancária −, emergia a possibilidade de uma
perda mais radical em seu ser. A quem pedir ajuda? ―S‖ procura a família e o hospital,
vai até mesmo a uma delegacia: ―Vocês têm que fazer alguma coisa, vejam o que estão
tentando fazer comigo!‖. Dias depois, indo mais uma vez ao banco − e ouvindo, de
outra bancária, a mesma resposta − ela, então, faz sua escolha: ―Fui até o banco, ela
estava sentada lá e toquei fogo. Estava fora de mim. Não senti nada no coração por ter
feito isso. Me senti ate meio leve‖.
―O que você pensa disso hoje?‖ – pergunto a ela. ―É horrível! Eu, que sempre
ensinei a meus filhos que ninguém tem o direito de tirar a vida de alguém, matei. Como
pude fazer isto? É a primeira vez que falo disso...‖. ―Agora, você falou disso‖– pontuo
eu, sublinhando aquela fala em sua dimensão de dizer, desvelamento de uma assunção
simbólica que difere das versões anteriores dada por ela da história, seja à polícia, seja à
perícia. Nem redenção, nem alívio; evocar, por seu dizer, aquela experiência envolta em
horror era apenas o início para que ―S‖, a partir deste primeiro passo na subjetivação do
assassinato imotivado, pudesse, tirar, deste, conseqüências. De alguma forma, se ela
escolhera ―matar‖ à ―doar órgãos‖, retornava para ela a amputação do órgão que é sua
palavra, dada a seus filhos sob a forma de transmissão. Com efeito, fora a partir deste
―dar palavras‖ que, não pelo horror, mas pelo humor, que ela construíra vínculo.
Após alguns anos de internação, as visitas que ela recebia – com as quais ―S‖,
por muito tempo, não tinha assunto, por ―faltarem-lhe palavras‖ −, começavam a lhe
interessar; esboçavam-se as diferenças entre ―estar ali‖ e ―estar lá fora‖. À medida que
um futuro passou a se fazer imaginável, ―S‖ fala de seu ―sonho‖ em rever os filhos que
há muito não via. Neste meio tempo, uma meia-irmã de ―S‖ dispôs-se a cuidar dela
244
quando saísse do HCTP. Não muito depois, com o início das saídas para passar os finais
de semana com os familiares, ela encontra, no salão de beleza que sua irmã tem em
casa, a possibilidade de, quando sair, ―talvez‖ trabalhar com ela.
Após quase dois anos de trabalho, findando nosso trabalho no HCTP, fomos,
junto a uma amiga da equipe, ao CAPS próximo a casa desta meio-irmã para catalisar a
inclusão de ―S‖ em um novo tratamento. Trazendo sobre si a marca de uma experiência
extremamente desagregadora, mas, não se reduzindo a esta, seria possível a ―S‖
instaurar, em suas relações com o gozo e com a alteridade, ―algo de novo‖?
245
− Considerações finais −
Ao findarmos a primeira parte de nossa tese, asseveramos que, no que concerne
a participação da psicanálise no debate sobre os assassinatos imotivados, vislumbramos,
como desdobramentos possíveis de nossa intervenção, ao menos três diferentes esferas:
1) aquela junto ao paciente: a) sob condição de que este formalize seu endereçamento e
b) visando a deflagrar no encontro com este, o efeito singular que é o sujeito; 2) no
nível da instituição: c) desvelando os efeitos de universalização e objetivação e
d) alojando estratégias como a ―prática entre vários‖, dispositivo que visa não ao Um
universalizante, mas, sim, ao que escapa, como ―único‖; e, 3) na esfera política:
convocando, sempre que possível, a polis nas tensões discursivas que a estruturam, a
debater sobre as formas dispostas em seu cerne como resposta ao louco transgressor.
Para além de uma espécie de divisão, estas três esferas − clínica, institucional e política
–, são exigências, que se impõem ao analista pelo campo de experiência em sua
aproximação dos ―casos kakon‖. É a partir desta resposta multifacetada – que encontra
na ética psicanalítica seu ponto de enodamento −, que forjaremos, neste momento,
nossas considerações finais.
O que torna tal manobra possível? É pela ―mola da transferência‖ que se tem
―acesso ao mundo imaginário do criminoso, que pode ser para ele‖ − e não para as
instâncias que demandam ações punitivas e de controle à psicanálise − ―a porta aberta
para o real‖ (LACAN 1950a, p. 137). A ―irrealização‖ – apropriação do feito desde
coordenadas reais, simbólicas e imaginárias – é estratégia crucial para o analista.
Uma ‗equação‘ que articule os cinco pontos por nós recortados das descrições
dos assassinatos imotivados deveria, pois, traduzir estes fenômenos, ao nível estrutural,
sob os termos ―kakon‖, ―passagem ao ato‖ e ―responsabilidade‖: ‗Se a passagem ao ato
é uma tentativa radical de tratar o kakon, a responsabilidade é uma das vias para que o
psicótico, ante a experiência desagregadora que é o assassinato imotivado, possa a
integrar num sentido – não como significação, mas, como orientação, direção −, ligado
ao ―vivo‖. Uma equação deste tipo, não obstante, deve ser tomada por nós como falha
248
por princípio: nenhuma captura em termos de formalização é capaz de, como diz Lacan,
―reduzir a particularidade de cada devir humano‖ (LACAN 1950b, p. 131). Desde o
caso-a-caso, é nossa responsabilidade, como psicanalistas, ―não abolir‖ o sujeito
reduzindo-o meramente ao capturável num formalismo. Com o estudo do kakon abre-se
um campo cujo interesse é não epistemológico, mas ético, no sentido de manter vivo um
lócus de intervenções que exige considerações dos psicanalistas que a ele se dedicam. É
desde esta posição ética que interrogamos as soluções universais e totalizantes, é desde
esta posição que interrogamos os hospitais de custódia e tratamento judiciário.
97
Com cerca de dez anos de funcionamento este programa, construído em parceria com o
Tribunal de justiça de Minas Gerais, propõe atenção integral ao ―louco infrator‖, pondo em
xeque a medida de segurança sob a forma de internação em manicômio judiciário e dispondo, ao
paciente, o tratamento ambulatorial – também previsto por lei. Este tratamento junto à rede de
saúde mental e à comunidade, em que ―o envolvimento da família e de toda a sociedade é
fundamental‖ (BARROS-BRISSET 2010, p. 7), vem desdobrando interessantes efeitos na
direção nacional da atenção concedida ao louco infrator.
98
Programa de atendimento integral ao paciente judiciário, autor de ato criminoso, que se
instalará no município de Cariacica, localidade do único Hospital de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico do Estado do Espírito Santo. Este projeto traz como objetivo principal dispor, ao
paciente com medida de segurança, uma alternativa ao sistema penitenciário assim como sua
vinculação à rede de saúde mental.
252
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264
− Filmografia−
DA VIDA DAS MARIONETES. Título original: Aus dem Leben der Marionetten.
País: Alemanha. Linguagem: alemão. Data de realização: 07 de novembro de 1980.
Duração: 104 min. Som: Mono. Cor: colorido. Diretor: BERGMAN, I.
ENTRE ELAS... Título original: Sister my sister. País: USA. Linguagem: inglês. Data
de realização: 14 de julho de 1995. Duração: 104 min. Som: Dolby digital. Cor:
colorido. Diretor: Meckler, N.
O SILÊNCIO DOS INOCENTES. Título original: The silence of the lambs.. País:
USA. Linguagem: inglês. Data de realização: 17 de maio de 1991. Duração: 118 min.
Som: Dolby SR. Cor: colorido. Diretor: Demme, J.
POSSUÍDOS Título original: Bug. País: USA, Alemanha. Linguagem: inglês. Data de
realização: 24 de agosto de 2007. Duração: 102 min. Som: Dolby digital. Cor: colorido.
Diretor: Friedkin, W.
PSICOSE. Título original: Psycho. País: USA. Linguagem: inglês. Data de realização:
25 de agosto de 1960. Duração: 109 min. Som: Mono. Cor: preto e branco. Diretor:
Hitchcock, A.
REPULSA AO SEXO. Título original: Repulsion. País: USA. Linguagem: inglês. Data
de realização: 3 de outubro 1965. Duração: 105 min. Som: Mono. Cor: preto e branco.
Diretor: Polansky, R.
SPIDER, DESAFIE SUA MENTE. Título original: Spider. País: UK, Canadá.
Linguagem: inglês. Data de realização: 03 de janeiro de 2003. Duração: 98 min. Som:
Dolby digital. Cor: colorido. Diretor: Cronemberg, D.
TAXI DRIVER. Título original: Taxi driver. País: USA. Linguagem: inglês e espanhol.
Data de realização: 22 de março de 1976. Duração: 113 min. Som: Dolby SR. Cor:
colorido. Diretor: Scorsese, M.