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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Kakon: os assassinatos imotivados na psicose

Carlos Alberto Ribeiro Costa


Rio de Janeiro
07/2011
I

KAKON: OS ASSASSINATOS IMOTIVADOS NA PSICOSE

CARLOS ALBERTO RIBEIRO COSTA

TESE DE DOUTORADO APRESENTADA AO PROGRAMA DE PÓS-


GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA, INSTITUTO DE PSICOLOGIA, DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, COMO PARTE DOS
REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE DOUTOR EM
TEORIA PSICANALÍTICA.

ORIENTADORA: PROFESSORA DRª ANA BEATRIZ FREIRE

RIO DE JANEIRO – RJ – BRASIL

07/2011
II

Kakon: Os assassinatos imotivados na psicose

Carlos Alberto Ribeiro Costa

Orientadora: Professora Doutora Ana Beatriz Freire

TESE DE DOUTORADO APRESENTADA AO PROGRAMA DE PÓS-


GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA, INSTITUTO DE PSICOLOGIA, DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, COMO PARTE DOS
REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE DOUTOR EM
TEORIA PSICANALÍTICA

APROVADA POR:

Profª.Drª_____________________________________________________
Ana Beatriz Freire

Profª.Drª_____________________________________________________
Angélica Bastos de Freitas Rachid Grimberg

Prof. Dr. _____________________________________________________


Luis Moreira de Barros

Prof. Dr. _____________________________________________________


Paulo Eduardo Viana Vidal

Profª.Drª_____________________________________________________
Renata Costa-Moura Dzu

RIO DE JANEIRO - RJ - BRASIL

07/2011
III

COSTA, Carlos Alberto Ribeiro Costa.


Kakon: os assassinatos imotivados na psicose / Carlos Alberto Ribeiro
Costa. - Rio de Janeiro:
UFRJ/IP, 2011.
X, 171f; ―29,7cm‖.
Orientadora: Ana Beatriz Freire.
Tese (doutorado) – UFRJ/ Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-
Graduação em Teoria Psicanalítica, 2011.
Referências Bibliográficas: f. 252-264.
1. Kakon. 2. Assassinatos imotivados. 3. Passagem ao ato. 4. Psicose. I.
Freire, Ana Beatriz. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de psicologia,
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. III. Título
IV

Dedico este trabalho a Paula, minha mulher:


causa de meu desejo, presença indispensável
nos dias que passamos e nos dias que virão.
V

Agradecimentos:

Ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio


de Janeiro, lugar em que pude operar como pesquisador por todos estes anos;

Ao CNPQ pela concessão da bolsa de doutorado, que tornou este trabalho possível;

A Ana Beatriz Freire, minha orientadora e amiga, com quem muito aprendi e trabalhei,
e que me ensina, no dia-a-dia de nossas cooperações, a destilar as finezas da clínica
psicanalítica;

A Angélica Bastos, a quem muito admiro, pelas contribuições em minha estada no


Programa e pela gentileza em acolher esta tese;

A Luis Moreira, pelas sutilezas e complexidades que meu encontro com seu trabalho
permitiu vislumbrar sobre o ato;

A Paulo Vidal, pela imprescindível participação em minha formação como analista,


pelas orientações por ele a mim dispensadas no período em que estivemos na UFF, pela
amizade e por seu formidável trabalho;

A Renata Costa-Moura, psicanalista cujo trabalho na interface com a justiça é sempre


prenhe de contribuições luminares, com quem tenho tido a satisfação de poder trocar e
por acolher minha tese;

A minha família, meus pais Robson Barreto Costa e Iris Ribeiro Costa e meu irmão
Felipe Ribeiro Costa, pelo amor que transcende quilômetros de distância e rios de
tempo;

Aos amigos Marcos Eichler, José Carlos Brazão, Luiz Gustavo, Ana Cabral, Edson
Pereira da Silva, Ana Cláudia Camuri e Aline Nascimento, por serem parte tão
importante de minha vida;

A Anelize Araujo, por nosso encontro, que me transmitiu o quanto ―a clínica é o ouro
da psicanálise‖;

A Ângela Bernardes, Maria Lídia Alencar, Letícia Balbi e Francisco Leonel, que me
ajudaram a talhar meu percurso rumo à psicanálise;

Aos amigos e colegas que conquistei, nos quase sete anos em que participamos das
pesquisas sobre autismo e psicose coordenados por Ana Beatriz na UFRJ, em particular
a Jeanne-Marie da Costa Ribeiro e Kátia Alvares, formidáveis analistas com quem tive
o prazer de conviver;

Aos amigos e colegas que fiz por minha passagem no Hospital de Custódia Tratamento
psiquiátrico Heitor Carrilho e em especial ao Doutor Marcos Argolo, pela generosidade
em nos receber e pela confiança depositada em nosso trabalho e a Tereza Cristina,
psicanalista, minha companheira de trabalho e angústia ‗intramuros‘;
VI

A Equipe interdisciplinar de estagiários do HCTP Heitor Carrilho, com quem pudemos


elaborar intervenções clínico-institucionais e dispor, aos pacientes, um trabalho que se
desenhou em consonância com suas invenções, sempre singulares;

A Escola brasileira de psicanálise (EBP-RJ), ao Instituto de clínica psicanalítica (ICP) e


ao Núcleo de topologia, que possibilitaram e cada vez mais possibilita a transmutação
de minha angústia em transferência de trabalho;

A Maria Silvia Hanna, minha analista, suporte indispensável em minha trajetória de


vida;

A Fernanda Costa-Moura pela importância crucial de seu trabalho e pelas contribuições


em minha formação como analista;

A Maria Elisabeth Araújo, com quem tenho o privilégio de poder trabalhar, pelos laços
de amizade que construímos e pelos futuros projetos que faremos juntos;

A Fernanda Otoni de Barros-Brisset, pelo acolhimento que nos concedeu em nossa


visita ao PAI-PJ em Belo Horizonte e pela inegável importância de seu trabalho;

Aos amigos que faço agora na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, com quem
muito lutei durante o estágio probatório e com quem certamente muito lutarei a partir de
nossa conquistada efetivação, de forma ―audaz‖ e ―vibradora‖.
VII

Resumo

O presente trabalho traz como objeto de suas considerações os assassinatos imotivados


na psicose. Em nossa aproximação desta questão resgatamos, a partir de Paul Guiraud e
Jacques Lacan, o termo ―kakon‖ – palavra grega para o ―mal‖ −, para designar o mal-
estar que, ao se apresentar ao psicótico, coloca-o em um estado de urgência. Partindo da
experiência clínica com estes pacientes e retomando as descrições clássicas destes
quadros temos como questão que move nosso trabalho os ―casos kakon‖ – sua
emergência, conseqüências e tratamento – em suas relações com a psicose. A
abordagem desta questão nos conduzirá a pensar a articulação, na psicose, entre
passagem ao ato e responsabilidade, assim como nos possibilitará interrogar a forma
princeps de resposta concedida a estes casos pela sociedade: internação em Hospital de
custódia e tratamento psiquiátrico. Com Freud e Lacan – que sustentam, desde a noção
de pulsão, a inexistência de instintos assassinos ou criminosos, tomaremos posição
contrária às formas de segregação que legitimam este tipo de resposta nomeada por
Lacan, a partir de Gabriel Tarde, como ―concepção sanitária da penalogia‖.

Palavras-chave: Kakon; assassinatos imotivados; passagem ao ato; psicose.


VIII

Resumé:

Ce travail a pour objet des considérations les meurtres immotivés dans la psychose.
Dans notre approche de cette question, à partir de Paul Guiraud et Jacques Lacan, le
terme ―kakon‖ - le mot grec pour le ―mal‖ - pour décrire le malaise que, de se présenter
le psychotique, le met dans une état d'urgence. Basé sur l'expérience clinique avec ces
patients et de reprendre à la description classique de ces tableaux ont comme une
question de déplacer notre travail ―kakon cas‖ - son émergence, les conséquences et le
traitement - dans leurs relations avec la psychose. L'approche de cette question nous
conduirá à penser l'articulation, dans la psychose, entre le passage à l‘acte et la
responsabilité, ainsi que nous permettre d'interroger la façon princeps comme réponse
donné à ces cas par la société: admission garde à l‘hôpital psychiatrique pour fous
criminels. Avec Freud et Lacan - que le soutien, depuis la notion de pulsion, le manque
d'instinct de tueur ou des criminels, nous allons prendre la position opposée aux formes
de ségrégation qui légitiment ce type de réponse proposés par Lacan, à commencer par
Gabriel Tarde, que «la conception des sanitaires pénologie ».

Mots clés: Kakon; meurtres immotivés; passage à l‘acte; psychose.


IX

Sumário

Introdução geral: Questão, elaboração e desígnio deste escrito________________01

Parte I: O surgimento do problema dos assassinatos imotivados e a concepção


sanitária da penalogia ________________________________________________ 08

Capítulo I: Os assassinatos imotivados: ―conflitos e conseqüências‖ ou


―conflitos‖ e confluências? ______________________________________________09
I) A ‗psiquiatria nascente‘: da ―mania sem delírio‖ à ―monomania homicida‖
_________________________________________________________________ 10
A) A senda percorrida por Phillipe Pinel _______________________ 10
B) O legado de Esquirol ____________________________________ 13
B.1) Casos fundadores da psiquiatria criminal______________ 17
i) O caso da mulher de Selestat ___________________ 17
ii) O caso Léger _______________________________ 17
iii) Pierre Rivière ______________________________ 18
iv) Caso Papavoine ____________________________ 19
v) Henriette Cornier ____________________________ 19
II – Crime e loucura no direito penal moderno _____________________ 21
A) Uma objeção? _________________________________________ 21
B) O crime e as penas na modernidade _________________________ 24
C) Os assassinatos imotivados: ―conflito de competências‖ ou ―conflitos
e confluências‖? _____________________________________________ 27

Capítulo II: A concepção sanitária da penalogia e a construção do instinto


homicida ____________________________________________________________ 31
I) Degeneração e atavismo: a reificação do criminoso ________________ 32
A) A teoria da degeneração __________________________________ 32
B) O conceito criminológico de ―criminoso nato‖ ________________ 36
II) Críticas às teorias instintivas sobre o crime _____________________ 40
A) Lacan: com e contra Tarde ________________________________ 41
B) Nossa posição ante a concepção sanitária da penalogia _________ 44
C) Com Freud: o paradigmático caso Halsmann _________________ 52

Parte II: Da psicanálise à clínica clássica, da clínica clássica à psicanálise: o


aparecimento da noção de “kakon” ______________________________________60

Capítulo III: O diálogo entre a clínica psiquiátrica clássica e a psicanálise __ 61


I − Da morfologia à clínica psiquiátrica clássica _________________ 63
A) O Caso Wagner __________________________________ 64
B) O caso Aimée: uma paranóia de autopunição ___________ 68
C) O caso das irmãs Papin _____________________________ 73
II) Novos herdeiros. A mesma herança? ________________________ 77
A) Crimes paranóicos: as psicoses passionais ______________ 78
A.1) Delírios passionais e interpretativos ___________ 80
B) Da esquizofrenia ao kakon ____________________ 82
X

B.1) Paul Guiraud, o kakon e os ―assassinatos


imotivados‖ __________________________________ 83

Capítulo IV: A psicanálise perante os chamados ―crimes‖ imotivados: da


autopunição ao kakon _________________________________________________ 89
I) Os crimes de autopunição: o supereu e a pulsão de morte ________ 90
A) Do conflito inconsciente ao tratamento da pulsão de morte_ 93
B) Criminosos por sentimento de culpa: casos clínicos de
Alexander e Staub _________________________________________ 97
B.1) O caso ―B‖ _______________________________ 97
B.2) O caso ―Carlos‖ __________________________ 100
C) Vicissitudes econômicas da autopunição ______________ 103
C.1) O pai que legifera e o pai que vocifera ________ 105
II) Declinações e linhas de fuga _____________________________ 110
A) Dostoievski, ―crime‖ e castigo ______________________ 110
B) O kakon e a estruturação psicótica ___________________116

Parte III: A condição psicótica: do fora-da-lei fálica aos modos foraclusivos de


tratamento do gozo __________________________________________________ 118

Capítulo V: A objetalização científica e a dimensão objetal na psicose: dois


diferentes paradoxos na relação entre fala e linguagem _______________________ 119
I) Dois paradoxos, duas diferentes objetalidades ________________ 120
A) Terceiro paradoxo: a objetivação do discurso do falante __ 122
B) Fala, linguagem e sujeito na experiência analítica _______ 124
C) Primeiro paradoxo: a fala ―para-além‖ do sujeito _______ 130
C.1) A posição paradigmática de Freud em relação à
psicose___________________________________________ 131

II) Fala, Linguagem e dizer psicótico _________________________ 136


III) A estrutura na psicose, o passo seguinte ___________________ 140

Capítulo VI: O advento da noção freudiana de ―Rejeição‖ ___________________ 142


I) Dentre os mecanismos de defesa, a Verwerfung _____________________ 143
A) As vicissitudes pulsionais da psicose ______________________ 149
A.1) O colapso do circuito pulsional ____________________ 152
B) Do que não se inscreve no aparelho ao que não se inscreve na rejeição
_____________________________________________________________ 155

Capítulo VII: Da Verwerfung à foraclusão _________________________________ 161


I) O Nome-do-Pai e a estrutura da linguagem _________________________162
II) A foraclusão do Nome-do-Pai e a clínica com a psicose ______________169
A) Os fenômenos elementares na clínica clássica da psicose: delírio,
alucinação e dissolução imaginária _________________________________172
A.1) Primeiro ponto: O delírio como fenômeno elementar ___172
A.2) Segundo ponto: Os fenômenos de mensagem _________177
A.3): Terceiro ponto: A dissolução imaginária ____________ 182
B) Da metáfora paterna à metáfora delirante ___________________ 187
B. 1) A ―solução elegante‖ ___________________________ 190
XI

C) Dos limites da metáfora paterna à pluralização dos nomes-do-pai _191

Capítulo VIII: Kakon: passagem ao ato e responsabilidade na psicose ___________ 198


I) Os assassinatos imotivados como ―tentativa de cura‖?________________ 199
A) Tesouros da clínica psiquiátrica: do fenômeno à economia
libidinal____________________________________________________________ 199
B) ―kakon‖: o mal-estar e suas relações com o pulsional___________204
C) Psicose, gozo e angústia: o objeto ―a‖ ―no bolso‖ _____________ 209
D) a passagem ao ato: inscrição de diferenças ___________________215
D.1) A passagem ao ato e diferença I: a subtração de gozo __ 221
D.2) A passagem ao ato e diferença II: inscrição de uma diferença
e emergência do ―novo‖____________________________________ 226
II) Rumo à responsabilidade_______________________________________233
A) ―Caso ―S‖_____________________________________________238
A.1) A chegada: fundação da ―alíngua de transferência‖_____238
A.2) Irrealização, subjetivação e responsabilidade__________240

Considerações finais__________________________________________________245
Bibliografia ________________________________________________________252
Filmografia ________________________________________________________264
1

− Introdução −
Questão, elaboração e desígnio deste escrito
− Preâmbulo −
Imersa em um estado de crescente agitação, uma mulher, cuja idade já começara
a evidenciar suas marcas, dirigiu-se a uma agencia financeira. Seu intuito era o de
retirar, ali, os proventos que, sob a forma de pensão, lhe eram destinados. Há dois dias,
não obstante, as mesmas perguntas recebiam as mesmas respostas: a infausta notícia de
que a quantia não havia chegado. Esta jovem senhora, vendo confirmados seus temores,
fora tomada por uma sensação inequívoca de que ―algo devia ser feito‖. Retornou,
assim, a sua casa, onde trocou de roupas e encaminhou-se, imediatamente, rumo a um
posto de combustível onde adquiriu um frasco contendo líquido inflamável. Uma vez
mais na agência, ela atira o conteúdo sobre uma senhora que, segundo as testemunhas,
havia sido ―aleatoriamente escolhida‖. Sem hesitar, ela desencadeia, com a ajuda de um
comburente, um hediondo espetáculo que, ela própria nega-se a presenciar. Retirando-se
do local, ela faz de sua casa um frágil refúgio que, poucos dias depois, seria franqueado
pela polícia.
O episódio rendera aos jornais manchetes não menos pirotécnicas que o
acontecido. Em grandes letras estampava-se a notícia, seguida de uma descrição ao
mesmo tempo sumária e exacerbada, cujos comentários quando não inexistentes, eram
bastante reticentes. A névoa que envolvia o nonsense do fato começava, entretanto, a
formar suas silhuetas. Como o ocorrido envolvia duas pensionistas do Instituto Nacional
de Segurança Social, INSS, insinuava-se a hipótese de uma ―revolta‖ de motivação
política ou mesmo social, dado o habitual descaso que recai sobre os beneficiários.
Paralelamente a estas tímidas conjecturas, ensaiavam-se, também, considerações
de cunho moral, referidas ao estado atual de nossa civilização. Teria a "desvalorização"
da vida humana, reflexo da decadência dos valores no mundo contemporâneo, suscitado
tão ―louco" ato? As perguntas, assim como os esboços de explicação, pululavam. Por
outro lado, o caráter surreal do incidente evocava o protótipo de um ato não menos
excêntrico desenhado quase um século antes, por André Breton1.

1
Em Segundo manifesto surrealista (1929), André Breton tece como protótipo do ato surrealista a
ocasião em que, armas em punho, desce-se às ruas e dispara-se tiros contra a multidão desconhecida. O
contra-senso como facilitador de uma revolução das trocas sociais edificadas sob valores ―burgueses‖ era
o efeito visado pela inusitada imagem.
2

Detida pela polícia, esta mulher parecia fornecer ao leitor a chance de uma
catarse, fugaz satisfação provinda do encoberto, porém presente, clamor por punição.
De fato, raros foram os jornais que não mencionaram a 'quase-certa' pena de 30 anos de
reclusão. Uma série de detalhes, todavia, não permitiriam ao espectador subtrair-se de
uma renovada experiência de desconcerto.
Se o nonsense ‗metaforizado‘ por Breton fora, no ocorrido, ‗passado ao ato‘,
também os dizeres da jovem senhora elevariam exponencialmente a estupefação. À
revolta por ―não ter sido tratada como gente‖ no banco, experiência partilhada por
muitos em nosso país, ela sobrepôs a sólida desconfiança2 de que ―seus parentes a
roubavam‖. Mesmo as elucidações dadas pela agência financeira − de acordo com a
qual a não renovação da documentação teria sido o motivo da ausência do beneficio −,
mostravam-se incapazes de demover o penoso e persistente pensamento.
Esta equação tornou-se mais complexa quando a esta foram acrescentados,
ainda, três outros fatores: 1) a agressora, no fatídico momento, dizia encontrar-se
―possuída‖ − o que, segundo ela, ultimamente era ―normal‖; 2) naquele ato, tratava-se,
ao mesmo tempo, de outra "vingança" − posto que, há vinte anos ela teve queimaduras
em sua perna direita; e, 3) em sua narrativa, a concretude com que ela a forja denota a
singularidade radical de sua relação com a palavra: "Fui até o banco, ela estava sentada
lá e toquei fogo. Estava fora de mim. Não senti nada no coração por ter feito isso. Me
senti ate meio leve".
Entre a revolta política ou a decadência − motivações esboçadas pela imprensa −
e a ação, apresentava-se, então, um hiato. Uma louca ironia desvelava as injustiças e
tensões sociais sem, contudo, resumir-se a estas. Isto não impediria, é claro, a resposta
habitual da sociedade a tais casos: internação em ‗Hospital de custódia e tratamento
psiquiátrico‘. Conosco, que nesta instituição a escutamos, construiu-se um percurso de
elaboração distinto dos imperativos de exclusão ou de adaptação. Neste alhures, tornou-
se possível um trabalho rumo ao que, a posteriori, ‗terá sido‘ seu ‗ato‘; tocando algo do
real fazia-se possível, para ela, tirar conseqüências. Esta mulher assim o fez ao lançar a
questão que a levaria às portas da problemática ética: ―Como pude fazer isto?‖

2
Freud, em Neuropsicoses de defesa (1894) utiliza o termo Unglauben (desconfiança, descrença), para
nomear "um dos sintomas primados da paranóia" (p. 123). Com Lacan, este termo ganharia a conotação
de "descrença no Outro" como lugar da verdade do sujeito, uma vez que é usual, na psicose, que este
Outro compareça de forma avassaladora nas paranóias, sob a forma gozante, ou, na esquizofrenia, como
rechaçado ou fragmentado.
3

− Questão −
Fragmentos tais como este, do qual nos utilizamos aqui à guisa de intróito,
ilustram a problemática alocada pelos chamados ‗homicídios imotivados‘. Há tempos
alvos de estudo de disciplinas científicas, tais fenômenos são passíveis de ocorrer nas
psicoses, não sendo, porém, concomitantes a estas. O predicado ‗imotivados‘, que
qualifica tais ações, traz a marca da irredutibilidade à razões imediatamente
compreensíveis, razões estas que levam o ser falante, em seu cotidiano, a tomá-las como
―motivando‖ o suposto ―agente consciente‖ à prática de uma ação. O veto que estes
fenômenos impõem ao sentido intuitivo exige, pois, um saber que atinja, em meio ao
nonsense, o real dramaticamente posto em jogo nestes acontecimentos.
Destarte, os ‗assassinatos imotivados‘ desvelam − concorrendo também para isto
o campo mais amplo da experiência clínica − que: l) há uma série de fenômenos
humanos, não apenas psicóticos, cujo caráter díspar resiste ao compreensível, ou seja,
ao sentido imediatamente partilhado; 2) há mecanismos e estruturas que, a despeito de
sua opacidade, trazem uma incidência real e inteligível sobre o sujeito; 3) tal estado de
coisas exige considerar ocorrências que, ante o ideal de uma autodeterminação
consciente, demonstram que ―o eu não é senhor em sua própria casa‖, e, 4) a
psicanálise, como saber que emerge a partir do advento da ciência moderna traz, por sua
estrutura, a possibilidade de apreender este real não concernido pela ―compreensão‖.
Esta tese traz, então, sob seu escopo, os ―casos kakon‖ − ‗assassinatos
imotivados‘ na psicose, tentativas de realizar, no real, uma subtração de gozo
condizente com a foraclusão e alternativa à castração simbólica − seu lugar e
conseqüências para o psicótico, assim como considerações sobre o trabalho clínico com
tais pacientes. Se, como assevera Lacan, o mais subversivo na psicanálise é ―não
pretender ter a solução‖ (LACAN 1969-70, p. 66), é o encontro, no caso a caso, com a
tensão entre o universalizável e o impossível de sê-lo, o que nos permitirá construir,
junto ao psicótico, possibilidades de uma relação menos avassaladora com o
significante e o gozo em seus enlaces inéditos ao social.
Com efeito, para que a empresa aqui estabelecida seja levada a seu termo,
tomar-se-á, como questão que norteia nosso esforços, o problema: Tendo como
referência o discurso psicanalítico e considerando os ―casos kakon‖ – sua emergência,
suas conseqüências e tratamento – como pensar suas relações com a psicose? Esta
questão nos conduzirá a pensar a articulação, na psicose, entre passagem ao ato e
responsabilidade.
4

Este problema, motor de nosso escrito, emerge da confluência de três


importantes e diferentes pontos, que contextualizam os esforços despendidos neste
trabalho.
No primeiro destes pontos, nosso percurso clínico, deparamo-nos, na psicose,
com fenômenos cuja ‗imotivacão‘ é patente: risos e agressões ‗aleatórios‘ e passagens
ao ato. Esta experiência se agrega ao tema dos assassinatos imotivados ao elegermos,
como campo para nossa pesquisa, por quase dois anos, o ―Hospital de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho‖, localizado na cidade do Rio de Janeiro −
instituição que abriga pessoas que, juridicamente, são consideradas ―inimputáveis‖. De
certo modo, a angústia suscitada por esta experiência encontra, no presente texto, um
lugar para ser posta em trabalho.
A dissertação de mestrado, constituída por nós entre os anos de 2005 e 20073, é
o segundo destes pontos. Ao investigarmos, no decurso daquela pesquisa, alguns
aspectos da relação entre psicose e linguagem na obra de Jacques Lacan, deparamo-nos
com sua tese em psiquiatria e com seu encontro sui generis com Aimée − uma
paranóica que atentara, em 1932, contra a vida de uma diva do teatro francês. Se tal
evento levara Lacan às portas do discurso analítico, sua tese contribuíra também para
que nós, em nossa trajetória, nos encontrássemos com o presente tema.
Como último destes pontos, e certamente como decisivo, está nossa formação
como analista. Nossa análise pessoal, do mesmo modo que a transferência de trabalho
no interior de uma instituição psicanalítica, a EBP-RJ, transcende o específico problema
por nós tratado neste texto, conferindo, porém, a este, seu devido lugar. É partindo
destas fontes que a constituição desta empresa pode alojar-se num ‗Outro‘ registro. O
encontro com o saber-fazer inconsciente que, a posteriori, ‗terá sido‘ o nosso, é o que
nos permite atingir o discurso analítico tornando-nos, a partir dele, seu efeito.
Estes três pontos, celeremente aqui explorados, contextualizam o ato, sempre
singular. Se tomar a palavra é se por em risco, este exercício não deixa de ser, ante o
Outro, uma oportunidade de sustentar nossa implicação e responsabilidade em nosso
fazer. Assim, se o problema de nossa tese é investigar, os ―casos kakon‖ − sua
emergência, conseqüências e tratamento − em suas relações com a psicose, mister se faz
um célere percurso que permita ao leitor uma espécie de organograma de nossa
elaboração.

3
Cf. em Psicose e linguagem na obre de Jacques Lacan: semântica e estrutura, dissertação de mestrado
do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, UFRJ, fevereiro de 2007.
5

− Elaboração −
Uma vez constituída nossa questão, assim como o lugar de seu surgimento,
mister se faz expor, em grandes linhas, o itinerário seguido no decorrer desta tese. Este
trabalho divide-se, com efeito, em três partes, cada uma delas compostas por capítulos −
nos quais os tópicos são efetivamente abordados. Por fim, a conclusão faz, das partes, a
chave para nossas considerações finais.
− Primeira parte −
A primeira parte, intitulada ―O surgimento do problema dos assassinatos
imotivados e a concepção sanitária da penalogia‖, interroga como os chamados ―casos
kakon‖ aparecem na cultura como um subgrupo da discussão moderna sobre a relação
entre crime e loucura, e como a psicanálise, saber que opera sob o sujeito da ciência, se
posiciona em relação a este debate. No Capítulo I, intitulado ―Os assassinatos
imotivados: ‗conflito de competências‘ ou ‗conflitos e confluências‘?‖, intentaremos
apreender, desde o advento da ciência moderna e de seus desdobramentos na cena
social, a constituição do campo de discussões entre psiquiatria e direito acerca dos
assassinatos imotivados.
O Capítulo II, nomeado ―A concepção sanitária da penalogia e a construção do
instinto homicida‖ será dedicado a investigar como a psicanálise responde à convocação
para esta contenda. Como pretenderemos deixar claro, ela não poderá operar desde o
que Lacan chamou de ―concepção sanitária da penalogia‖ – que objetifica o sujeito –
ou, ainda, da idéia de um ―instinto assassino‖ ou ―criminoso‖. Na contramão de uma
criminologia, resgatamos Freud – em sua posição perante o ―Caso Halsmann‖ – e Lacan
– em sua crítica ao ‗sanitarismo‘ − como meio de questionar a forma prínceps com que
a sociedade responde aos assassinatos imotivados na psicose: a segregação.
− Segunda Parte −
A segunda parte de nosso trabalho, intitulada ―Da psicanálise à clínica clássica,
da clínica clássica à psicanálise: o aparecimento da noção de ―kakon‖ – explicitará o
percurso tecido a partir da entrada da psicanálise no debate crime-loucura, através dos
―crimes de autopunição‖ até a descoberta, no diálogo com a psiquiatria clássica, do
―kakon‖. Ao longo desta parte, vamos nos posicionar perante os homicídios imotivados
cometidos por loucos − e à abordagem analítica do crime – ressaltando a particularidade
da relação do sujeito da linguagem em sua tensão com o ―fora-da-lei‖ sui generis que
dela decorre.
6

No terceiro capítulo de nossa tese, chamado ―O diálogo entre a clínica


psiquiátrica clássica e a psicanálise‖, questionaremos acerca das contribuições da
psiquiatria clássica para uma aproximação − para além do atavismo lombrosiano e da
teoria moreliana da degeneração −, da estrutura do que se desvela nos assassinatos
imotivados. Na senda aberta por esta clínica, abordaremos o recurso feito por Paul
Guiraud ao isso freudiano para cunhar a denominação ―kakon‖ ao mal-estar que o louco,
via homicídio, tenta subtrair.
O capitulo seguinte, quarto deste trabalho, ―A psicanálise perante os chamados
―crimes‖ imotivados: da autopunição ao kakon‖ examinará a questão dos paradoxos do
supereu, ―lei fora-da-lei‖. O percurso rumo a um ―fora-da-lei‖ distinto de uma
transgressão às leis positivas, engendrado pela própria linguagem − e a afirmação deste
impossível como tal, em suas incidências e conseqüências −, proverá coordenadas éticas
importantes para que atinjamos, na parte seguinte, outro tipo de ―fora-da-lei‖: aquele
originado da foraclusão do nome-do-pai e seus efeitos nas relações entre sujeito e Outro.
− Terceira parte −
A ―Parte III‖ do presente trabalho, intitulada ―O fora-da-lei fálica e a condição
psicótica‖ trará, logo, como seu eixo, a discussão sobre a psicose, sua estrutura e seus
recursos. Partindo das noções de ―Verwerfung‖ e de ―Foraclusão‖, apreenderemos seus
efeitos sob as relações simbólicas e libidinais com o significante na psicose.
No Capítulo V, ―A objetalização científica e a dimensão objetal na psicose: dois
diferentes paradoxos na relação entre fala e linguagem‖, nos perguntaremos sobre as
diferenças entre o processo de objetalização promovida pela captura do psicótico como
objeto de investigação científica e a posição objetal alojada pela incidência da
linguagem e da libido na psicose. Resgataremos, para tanto, a posição paradigmática de
Freud ante o caso Schreber, no efeito de engajamento que ele reconhece na relação
daquele louco com o que terá sido seu testemunho: suas Memórias de um doente dos
nervos.
A investigação daquilo que o psicótico nos concede em termos de testemunho
conduz-nos, pois, a abordar no Capítulo VI, ―O advento da noção freudiana de
‗Rejeição‘‖ e as vicissitudes pulsionais postas em cena pela relação do psicótico com a
castração. Atingiremos, neste percurso, as diferenças entre o que retorna como
―recalcado‖ sob o neurótico, e o que ―de fora‖, incide sobre o psicótico. Esta relação
com o ―rejeitado‖ será chave para apreender as modalizações da libido na psicose.
7

O Capítulo VII, ―Da Verwerfung à foraclusão‖, abordará a construção do


conceito lacaniano de ―foraclusão do nome-do-pai‖ como chave para se pensar não
apenas num fora-da-lei distinto da transgressão à leis positivas, mas, sobretudo, como
possibilidade de modalização do gozo que chamaremos, doravante, de ―foraclusiva‖.
Para tanto, interrogaremos, através de uma rápida investigação, a ‗dessacralização‘ e
‗pluralização‘ concedida por Lacan ao conceito de Nome-do-pai no final de seu ensino.
O oitavo e último capítulo desta tese, ―Kakon: passagem ao ato e
responsabilidade na psicose‖, abordará a questão do tratamento foraclusivo dispensado
ao gozo nos assassinatos imotivados. Recorrendo à noção de ―kakon‖ – mal-estar que
avassala o psicótico − examinaremos o homicídio imotivado como tentativa de tratar o
gozo. Assim, se nos ―casos kakon‖, como assevera Lacan, o psicótico busca atingir algo
de seu ―próprio ser‖ (LACAN 1946, p. 176), somos, ao tomar estes pacientes em escuta,
confrontados a um desdobramento bastante peculiar da dimensão objetal na psicose.
Neste tratamento radical, caberá sustentarmos o conceito psicanalítico de ―passagem ao
ato‖, como ruptura, não de uma cena fantasmática, mas de uma acomodação até então
estável, entre os registros real, simbólico e imaginário. Por fim, abordaremos a relação
entre as noções psicanalíticas de ―psicose‖ e ―responsabilidade‖, evocando, ainda, um
exemplo clínico deste manejo.
Desígnio
Ao término desta introdução, apenas frisaremos que o desígnio deste trabalho −
que caberá ao tempo dizer se este foi ou não alcançado − é o de contribuir para o campo
das discussões acerca desta faceta pouco explorada, na atualidade, da psicose. Tal
pretensão, a nosso ver, justifica-se por um importante motivo: um vasto campo, devido
a aridez que lhe é própria, está sendo sistematicamente preterido. À sombra de outras
discussões já bastante avançadas em se tratando de psicose estão aqueles que, em seu
endereçamento, encontram apenas, ao mais das vezes, os muros e grades que fazem de
certas instituições verdadeiros campos de extermínio da palavra e da singularidade.
Lugar ―sem memória‖, onde propagam-se a falência da fala e a demissão do psicótico
ante uma experiência que, embora indigesta é a sua, os ―manicômios judiciários‖ ainda
prosseguem. Por meio deste escrito, temos, como nosso intuito, provocar os
psicanalistas − e os demais partícipes do campo − a posicionarem-se ante este problema
visto que, a cada dia, a possibilidade de uma outra cena, para muitos psicóticos, se
converte em cortinas perenemente fechadas.
8

PARTE I:

O surgimento do problema dos assassinatos imotivados


e a concepção sanitária da penalogia
9

− Capítulo I−
Os assassinatos imotivados:―conflito
de competências‖ ou ―conflitos e confluências‖?
Na introdução desta parte de nossa tese, afirmamos que a questão dos
―assassinatos imotivados‖ − lidos, em psicanálise, como ―casos kakon‖ − advieram, na
cultura, como uma problemática moderna. À tensão discursiva alojada pelas disciplinas
‗científicas‘ a psicanálise vem acrescer sua posição bastante particular, que não coincide
com aquilo que Lacan viria nomear em Funções da psicanálise em criminologia
(1950a) como ―concepção sanitária da penalogia‖ (idem, p. 138).
Com tal expressão, retomada por Lacan do sociólogo e jurista Gabriel Tarde 4,
Lacan assinala, em 1950, uma incidência bastante particular da ciência sob a cultura:
segundo ele, ―empenhada como está no movimento acelerado da produção‖ (idem, p.
138), a civilização recorre à análise psiquiátrica, ―científica‖, do criminoso como forma
de apaziguar o mal-estar engendrado pelas tensões constituintes do laço social e pelo
desconforto encontrado no que tange ao punir. A objetivação do criminoso − efeito
correlato a tal ―concepção‖ − aboliria, de um lado, a ―significação expiatória do castigo‖
− retorno ao infrator do sentido de sua ação em relação ao contexto cultural − e, de
outro, implodiria a noção de responsabilidade − instaurando uma ―polícia universal‖,
científica, que visa à defesa social, à exploração econômica e à prevenção do crime à
custa da desumanização do transgressor.
No escopo de nosso trabalho mister se faz, portanto, esquadrinhar em grandes
linhas o surgimento dos ―assassinatos imotivados‖ como problema para a psicanálise.
Tal trajeto exige, porém, um percurso preliminar: como convidado tardio para a
contenda, o discurso analítico incidirá sobre um campo já complexo de discussões,
instituído por disciplinas tão díspares quanto psiquiatria, direito e criminologia. Este
‗campo‘ − que exploraremos agora e que, de saída, exigiu uma tomada de posição por
parte da psicanálise − será designado por nós − tomando emprestado o termo a Harris
(1993) e Carrara (1998) − como ―debate crime-loucura5‖. A constituição deste campo,
que estrutura ainda hoje a resposta usual a estes assassinatos, será, pois, o objeto do
presente capítulo.
4
Jean-Gabriel Tarde 1843-1904, filósofo, jurista e sociólogo, fora um dos principais e mais controversos
nomes da sociologia francesa no século XIX.
5
Com tal termo designa-se o processo, ocorrido a partir de meados do século XIX, no qual se efetivou o
movimento dúplice de ―criminalização da loucura‖ e ―patologização do crime‖. Em seus desdobramentos,
as tecnologias de segregação instauradas por este processo ainda hoje alojam um dos maiores desafios em
termos do provimento de uma escuta em que se articule, para o sujeito, ética e singularidade.
10

I) A ‗psiquiatria nascente‘: da ―mania sem delírio‖


à ―monomania homicida‖
França, crepúsculo do século XVIII. Na época do ―massacre de setembro6‖, uma
pequena multidão armada franqueia as portas do Hospício de Bicêtre. Sob o ―pretexto‖
de que a ―antiga tirania‖ havia encarcerado ―vítimas inocentes‖ neste lugar, esta
aglomeração se entregara à tarefa de, de alojamento em alojamento, inquirir os
internados, analisando, em cada caso, aqueles em que a ―loucura era manifesta‖.
Um dos reclusos, acorrentado, chamou a atenção dos revoltosos: ―pleno de
razão‖ ao explicar sua condição, ele lhes dirigia suas ―amargas queixas‖. Como fora
impossível reprovar qualquer ―extravagância‖ em seus atos, os grilhões pareceram aos
visitantes uma ―injustiça revoltante‖. Clamando para que livrassem-no da ―opressão‖,
ele teve suas súplicas rapidamente atendidas. O ―vigia‖ do hospício, que acompanhava
toda cena, tendo ―sabres dirigidos a seu peito‖, reclamava em vão sua própria
experiência, falando de ―alienados não-delirantes‖ que, ocasionalmente, eram tomados
por um ―furor cego‖. Soltando-no aos gritos de ―viva a república!‖, os ―libertadores‖
não perceberam ter reanimado, com sua presença ―ébria, barulhenta e armada‖, o ―furor
do alienado‖: tomando a espada das mãos de um dos estranhos ele ―esgrima a direita e a
esquerda, fazendo o sangue correr‖. Como resultado − diz o célebre alienista − ―esta
horda bárbara o traz de volta a seu alojamento, parecendo ceder, rugindo, à voz da
justiça e da experiência‖ (PINEL 1801, p. 160).

A) A senda percorrida por Phillipe Pinel


Esta história, cuja alegoria não deixa de evocar algo de ‗mítico‘, fora constituída
por Phillipe Pinel em seu Traité médico-philosophique sur l’alienation mentale, livro de
1801. O ―Traité‖ coroa, no seio da cultura, o surgimento de um projeto, não menos
revolucionário que seu contexto: um saber capaz de, para além da percepção
imediatamente partilhada, iniciar a relação da loucura com o real.

6
Nomeia-se, com esta expressão, uma série de execuções em massa que se desenrolaram em setembro de
1792 por toda França. Neste sangrento episódio, no qual em 5 dias foram executadas cerca de 1400
pessoas, os revolucionários invadiam prisões e asilos e instauravam tribunais com o intuito de julgarem,
eles mesmos, os criminosos. A ―pena capital‖ foi muitas vezes aplicada. Este episódio sangrento, às
vésperas da revolução, teve, como seu cume, a prisão do Rei Luís XVI.
11

À psiquiatria nascente − que tinha em Pinel senão seu fundador, ao menos seu
maior expoente − cabia, a partir do fenômeno, matéria-prima da percepção, agrupar os
diferentes tipos de loucura, esvaziando, da experiência, a ―subjetividade do observador‖,
e acomodando estes ―tipos‖ em ―classes, gêneros e espécies‖ (BERCHERIE 1980, p.
31-2).
Esta sistematização, que encontra em Pinel seu esboço, instala a alienação não
mais como elemento ‗cosmológico‘ −, ou seja, referido à ‗tradição‘7 − mas como objeto
‗científico‘ − o que supõe sua imanência a um método e a um campo circunscrito de
experimentação. Tratava-se, logo, não apenas da subtração de um fenômeno da
experiência cotidiana e da linguagem corrente, mas da alocação de um ‗novo‘ método e
objeto. Do mesmo modo que, a partir da ciência moderna, ―os planetas não falam‖ − por
serem ―realidades completamente reduzidas à linguagem‖ (LACAN 1954-5, p. 302) − a
partir do ‗projeto‘ de sua captura num real científico, a loucura, tão eloqüente como no
Elogio8 de Erasmo, ameaçava tornar-se muda.
A nova ‗captura‘, ainda que por ventura lançasse mão de antigos e toscos
grilhões − como os mencionados por Pinel no excerto acima − não se dava sem os
aparatos, agora mais sofisticados, da vindoura disciplina. Desenhava-se, pois, a ruptura
entre a concepção socialmente partilhada da loucura e a nascente ciência da alienação.
Um corte análogo fora reeditado no interior do próprio projeto pineliano.
A alienação, fragmento da realidade requerido pela psiquiatria em sua instalação
na cena social, era definida, até então, a partir da chave-mestra que era o conceito de
―delírio‖. No sentido inverso daquele de ―razão‖ − que implica que o sujeito, via cogito,
era capaz de aceder à verdade − nas Meditações de Descartes (1641) a loucura figura no
grupo das questões levantadas pelo método da dúvida não apenas como ilusão sensível,
mas como fora da razão:
E como eu poderia negar que estas mãos e este corpo sejam
meus? Exceto, talvez, que eu me compare a esses dementes
[...] que amiúde garantem que são reis, enquanto são bastante
pobres; que estão trajados de ouro e púrpura, enquanto estão
totalmente nus; ou imaginam ser vasos ou possuir um corpo
de vidro. São dementes e eu não seria menos excêntrico se me
pautasse por seus exemplos. (DESCARTES 1641, p. 250,
Grifo nosso).

7
Utilizamos este termo em sua acepção de ―transmissão oral de lendas, fatos, doutrinas, costumes, hábitos
e etc., durante um longo espaço de tempo‖; cf. em Aurélio (2001, p. 541).
8
Elogio da Loucura (ERASMO 15XX). Nesta obra, Erasmo faz, do ―amor próprio‖ e da ―adulação‖
elementos com os quais a própria loucura, personificada, visa a demonstrar seu lugar na experiência
humana cotidiana.
12

O campo psiquiátrico, que tinha no delírio uma de suas concepções-chave, viu


brotar, no âmago de seu objeto, um ponto cego: loucuras na ausência de fenômeno
delirante evidente. Tomada, até então, como sinônimo de loucura, tal evidência começa
a deixar de ser o parâmetro para a constatação de alienação. A identificação da loucura
não coincidirá mais com a percepção formatada pelo ‗pool‘ cultural; a psiquiatria não
fiará seu saber nesta concepção tradicionalmente partilhada da alienação. Deste modo,
no cerne da influência ―empirista‖ de Locke9 sobre Pinel, nasce a divergência que
levaria o eminente alienista a se opor a um de seus principais e mais importantes
interlocutores:
Podemos ter uma justa admiração pelos escritos de Locke, e
convir, entretanto, que as noções que ele dispõe sobre a mania
são por demais incompletas quando ele a vislumbra como
inseparável do delírio. Eu pensava como este autor quando
retomei em Bicêtre minhas pesquisas sobre esta doença, e não
fui pouco surpreendido de ver numerosos alienados que não
ofereciam em nenhuma época qualquer lesão do entendimento,
e que eram dominados por uma espécie de instinto de furor,
como se apenas as faculdades afetivas tivessem sido lesadas
(PINEL 1801, p. 155-6).

As evidências clínicas, emergidas a partir do campo de experimentação,


adquiriam, logo, uma primazia em relação às considerações filosóficas sobre o tema −
um dos fatores que levaram Bercherie (1980, p. 31) a asseverar que, com Pinel, nascia a
clínica.
A ausência de delírio prontamente identificável corroboraria o requerimento, por
parte da psiquiatra, de um mandato social para exercer sua especialidade; caberia, agora,
apenas ao psiquiatra o poder para detectar seguramente a loucura. Tal mandato
adquiriria ainda mais legitimidade à medida que, à ―mania sem delírio‖, Pinel atrela um
―furor‖ homicida cuja imotivação10, mesmo delirante, era patente. Tal peculiaridade
seria por ele desenvolvida no tópico intitulado ―A mania11-sem-delírio marcada por um
furor cego‖, de seu Traité.
Conta-se, ali, a história de um homem, ―outrora dedicado à arte mecânica‖
(PINEL 1801, p. 157), que encontrava-se internado em Bicêtre. Ocasionalmente tomado
por uma ―tendência sanguinária irresistível‖, este homem via-se impelido, quando em

9
John Locke (1632-1704) filósofo inglês. Um dos fundadores do empirismo, referência cara a Pinel.
10
O uso deste termo, implica em sua não redução ao compreensível, ou seja, àquilo que se constitui por
referência ao sentido imediata e socialmente partilhado.
11
O termo ―mania‖, em Pinel, tem a acepção de ―desordem intelectual‖, com conotação bastante próxima
à concepção tradicional de loucura como ―descontrole‖.
13

posse de objetos cortantes, à ―sacrificar a primeira pessoa que visse‖ − o que chegara a
colocar em risco a vida de sua ―querida mulher‖.
No Hospital, quadro semelhante se repetiria: o ―vigia‖ do asilo, a quem o
paciente louvava por sua ―complacência e doçura‖, fora, desta vez, o alvo; noutra vez,
ele talharia, ainda, seus próprios peito e braço. Em ―pleno exercício da razão‖, ―mesmo
durante os acessos‖, este homem não evidenciava ―qualquer incoerência nas idéias‖. Em
verdade, afirma Pinel, o alienado, lúcido, horrorizava-se com sua situação, censurando
sua ―tendência automática a atos de atrocidade‖ (idem, p. 157).
Noutro caso, também narrado no Traité, um homem ―calmo‖, conhecido por sua
―beneficência para com os desafortunados‖ atirara uma mulher num poço, após ter
ouvido desta certos impropérios. Em consonância com tal desproporção, um grande
montante de testemunhos atestava perante os tribunais que, ―entregue‖ em sua infância
―a todos seus caprichos‖, este homem ―matava, de pronto, qualquer animal‖ − cão,
cordeiro ou cavalo − que ―lhe causasse desgosto‖. Das ―festas e assembléias‖ da cidade
ele saia freqüentemente ―ensangüentado‖, por trocar socos com os demais. Na idade
adulta, porém, o que remanescia de suas ―tendências‖ eram apenas as ―rixas
monetárias‖. Considerado insano − mesmo na ausência de atividade delirante evidente −
ele é enviado para ―reclusão no hospício de alienados de Bicêtre‖. Agora, não só os
―revolucionários‖, mas, também os tribunais e os juristas rendiam-se à ―justiça‖ e
―experiência‖ do alienista (PINEL 1801, p. 160).

B) O legado de Esquirol
Majorando o caráter moral do tratamento pineliano e atendo-se a uma psicologia
que via no ―eu‖ a instancia psíquica que tinha, par excellence, a função de ―controlar‖,
―selecionar‖ e ―sintetizar os automatismos psicológicos‖ (BERCHERIE 1981, p. 49),
Esquirol, discípulo de Pinel, requereu para a ciência nascente o ofício, concomitante ao
interesse epistemológico, de fundar, com a psiquiatria, outro ramo da ―higiene pública‖.
Grande precursor das lutas pela legislação e institucionalização do campo psiquiátrico12
(cf. BERCHERIE 1981, p. 54, FOUCAULT 2001, p. 176, HARRIS 1993, p. 123), diz
Esquirol que ―as paixões e o crime que armam a mão homicida não fogem de meu

12
Este processo ganharia grande impulso desde a lei de 1838 que firma que a internação dos alienados
deve ser feita em estabelecimento médico especializado, o que, segundo Foucault confere à psiquiatria,
como especialidade científica e ligada à ordem pública, sua ―consagração‖ (FOUCAULT 2001, p. 177).
14

objeto‖ (ESQUIROL 1838, p. 94). O discípulo reencontra em sua cartola o coelho da


desordem que, em tese, fora separado do objeto científico pelo mestre. Ampliando o
―furor cego‖ descrito por Pinel, ele o estende à quase todas as afecções das quais o
psiquiatra, em seu ofício, viria se ocupar.

Os alienados atentam contra a vida de seus semelhantes; uns,


tornados muito suscetíveis, muito irritáveis num acesso de
cólera, batem, matam as pessoas que os contrariam ou que eles
crêem os contrariar; eles matam as pessoas a quem tomam, a
torto e a direito, por inimigos de luta, de quem é preciso que
eles se defendam ou se vinguem. Outros, enganados pelas
ilusões dos sentidos ou por alucinações, obedecem à impulsão
do delírio. Alguns matam, motivam sua tenebrosa
determinação, racionalizam suas ações, e tem consciência do
mal que cometem. Outros são instrumentos cegos de uma
impulsão involuntária, instintiva que lhes impulsiona ao
assassinato. Enfim, observa-se idiotas que, por falta de
desenvolvimento da inteligência, na ignorância do mal como
do bem, matam por imitação (ESQUIROL 1838, p. 94).

Desde então, o homicídio louco, delirantemente orientado ou não, não poderia


prescindir do método e do olhar do psiquiatra para ser efetivamente identificado, mas,
também, todas formas de loucura trariam, em si, o assassinato como uma virtualidade.
Encontra-se, assim, na generalização de Esquirol, rudimentos de um debate que
ganharia, paulatinamente, os tribunais, a mídia e a literatura13. Este debate, moderno, em
que loucura e crime se atrelam, desvelava a ambição social e política da psiquiatria.
Se a loucura ganhava, desde o século XIX, esta virtualidade homicida, tal
processo seria impulsionado pela revolução trazida pelas ―loucuras parciais‖. Enquanto
na Inglaterra − onde esta discussão se dava em paralelo à França − Prichard cunhava o
termo ―loucura moral14‖, Esquirol, contrastava a ―tendência automática a atos de
atrocidade‖ a ―função sintética do eu‖ e ao imperativo de ordem da sociedade pós-
revolução. De sua pena sairia a controversa entidade clínica das ―monomanias‖,
afecções marcadas por uma ―lesão parcial da inteligência, dos afetos e da vontade‖
(ESQUIROL 1838, p. 1).

13
Cf. mais adiante, na página 20.
14
Em A Treatise on insanity ond others disorders of mind (1835), Prichard, escrevera, a partir da ―mania
sem delírio‖ de Pinel, sobre a ―loucura moral‖, ―forma de desarranjo mental no qual as faculdades
intelectuais [estão ilesas], enquanto a desordem é manifestada no estado de sentimentos, temperamento,
ou hábitos ... os princípios morais da mente‖. ―Nesta desordem, a vontade está ocasionalmente sob a
influência de um impulso que subitamente conduz a pessoa afetada a atos dos tipos mais revoltantes, para
os quais ele não tem motivo‖ (PRICHARD apud ROBINSON 1996, p. 161). Segundo Robinson (idem, p
161), ―o foco de Prichard é a ausência de motivo racional‖.
15

Com tal termo − cuja inadequação não escapara a Esquirol15 − visava-se não à
importação da categoria pineliana, mas, sim, empreender um esforço para separar
―mania‖ e ―loucura parcial‖: se na mania ―todo entendimento é embaraçado‖, na
monomania, ―o entendimento é são, às vezes mesmo mais ativo que lúcido‖; se na
primeira ―todo ser intelectual e moral está pervertido, todas as ações desordenadas‖, na
segunda ―a perversão do ato é parcial, circunscrito como o extravio da ação‖ (idem, p.
5). Sustentando tais diferenças, Esquirol asseverará que a ―mania sem delírio‖,
curiosamente, não é uma mania, pois ―quase todos os fatos de mania sem delírio
lembrados pelos doutores [Pinel e Foderé] pertencem à monomania ou a lipemania16 (...)
as impulsões irresistíveis apresentam todos os sinais de uma paixão chegada até o
delírio (ESQUIROL 1938, p. 96).
As ―monomanias‖ − em tese distintas da mania, posto que, como assevera
Bercherie (1981, p. 52), tal classe abrangeria, em seu uso comum, ―toda sorte de atos
mórbidos (incêndio, roubo, assassinato, embriaguez, suicídio, etc.)‖ − compreenderiam,
segundo Esquirol, três tipos: as ―intelectuais‖, as ―afetivas ou racionais‖, e as
―instintivas‖.
No primeiro grupo, as ―monomanias intelectuais‖, a desordem intelectual −
delírio, ilusão e alucinação − é circunscrita a um único objeto da vida anímica do louco.
Partindo de um princípio falso, os enfermos tiram, destes, conseqüências logicamente
legítimas que ―modificam seus afetos e os atos de sua vontade‖. De acordo com
Esquirol ―fora deste delírio parcial eles sentem, raciocinam, agem como todo mundo‖
(idem, p. 1-2). Dentre os tipos clínicos aqui encontrados destaca Esquirol a erotomania,
loucura ―casta‖ e ―honesta‖ (idem, p. 32) tão bem explorada posteriormente por de
Clérambault.
Nas ―monomanias afetivas ou racionais‖, os enfermos não deliram, mas seus
―afetos‖ e seu ―caráter‖ encontram-se pervertidos. Posteriormente, ―por motivos
plausíveis, por explicações muito racionais, eles justificam o estado atual de seus
sentimentos e se desculpam pela bizarria, pelo inconveniente de sua conduta‖ (idem, p.
2). Este grupo − pontua Esquirol − englobaria a maior parte dos casos de ―mania sem
delírio‖ de Pinel e de ―loucura moral‖ de Prichard.

15
Esquirol concorda com Prichard, para quem a aplicação do sufixo ―mania‖ em ―monomania‖, não
convém às loucuras instintivas, ―pois apresenta ao espírito a idéia de desordem intelectual‖ (ESQUIROL
1838, p. 6).
16
Lipemania ou melancolia, caracterizada, segundo Esquirol, pela ―morosidade, tremor e tristeza
prolongados‖ (ESQUIROL 1820, p. XX), podendo, ainda, ―ser complicada pela mania‖.
16

No terceiro tipo − as ―monomanias instintivas‖ − é a vontade e não a


inteligência ou a emoção, aquilo que é ―lesado‖; o enfermo, nestes casos, ―é compelido
a atos que a razão e os sentimentos não determinam, que a consciência reprova, que a
vontade não tem forças para reprimir; as ações são involuntárias, instintivas,
irresistíveis‖ (ESQUIROL 1838, p. 2). Com efeito, é um subtipo das monomanias
instintivas aquele que seria, no decorrer dos anos seguintes, o carro-chefe das questões
médico-legais: as ―monomanias homicidas‖ ajudariam a atrelar ao termo ―psiquiatria‖ o
adjetivo ―criminal‖.
Se a ―mania sem delírio‖, cunhada por Pinel, desaparece diluída na classe das
monomanias, a ―tendência automática a atos de atrocidade‖ e o ―furor cego‖, descritas
por ele, encontram, na famigerada classe esquiroliana das ―monomanias homicidas‖, um
lugar de destaque na nosologia psiquiátrica: ―Há outros monomaníacos que matam por
uma impulsão instintiva. (...) sem consciência, sem paixão, sem delírio, sem motivos;
eles matam por um impulso cego, instantâneo, independente de sua vontade; eles estão
num acesso de monomania sem delírio‖ (idem, p. 98).
A ―cura‖ − a ser entendida como redução dos sintomas mórbidos −, raramente se
seguia à realização daquelas impulsões homicidas e ―estranhas mesmo ao delírio
habitual‖ (idem, p. 104). Todavia, como a experiência clínica de Esquirol levara a
constatar, não raro os enfermos experimentavam, ao efetivar a insólita ação, certo
apaziguamento em seu estado de ―agitação‖ e ―angústia‖:

Ato cumprido, parece que o acesso termina; alguns


monomaníacos homicidas parecem como que desembaraçados
de um estado de agitação e de angústia que lhes era muito
penoso. Eles estão calmos, sem arrependimento, sem remorso e
sem temor. Eles contemplam sua vítima com sangue-frio;
alguns experimentam e manifestam uma sorte de
contentamento. A maior parte, longe de fugir, continua
próxima ao cadáver, ou vão se declarar aos magistrados,
denunciando a ação que acabaram de cometer. Um pequeno
número, entretanto, se distancia, esconde os instrumentos e
esconde os traços do assassinato. Mas logo após eles traem a si
mesmos, ou se eles são pegos pelos agentes da autoridade, se
atém a revelar sua ação, a fazer conhecer os mínimos detalhes,
assim como os motivos da fuga (idem, p. 05).
17

Dentro desta lógica, vários foram os casos tornados célebres na época, como
aqueles resgatados por Michel Foucault17: Pierre Rivière; Léger, Papavoine e Henriette
Cornier (examinados por J. E. Georget18 em 1825 e 1826); a mulher de Selestát (lido por
Marc19 em 1832). Uma vez que alguns destes casos foram considerados por Foucault
como ―fundadores da psiquiatra criminal‖ (FOUCAULT 1975, p. 138), passemos a uma
rápida exposição dos mesmos.

B.1) Casos fundadores da psiquiatria criminal


i) O caso da mulher de Selestat
Em 1817, uma mulher é interrogada sobre seu filho caçula pelo marido que,
junto ao pimogênito da família, regressavam de uma viagem de dez dias. A resposta a
este questionamento, bastante vaga, fora a de que o filho mais novo estava ―em
repouso‖ (MARC 1832, p. 398). Uma vez que as questões do marido tornavam-se mais
prementes, esta mulher guia-os até um cômodo acessório à cozinha. Neste lugar, em
meio a um empilhado de roupas, encontrava-se o cadáver da criança, sem a coxa direita
que ela, mais tarde, confessa ter devorado. A respeito deste homicídio seguido de
canibalismo, esta mulher apenas pôde dizer que ―fora a miséria‖ e que ―Deus a
abandonou‖ (idem, p. 399). Contrapondo exemplos históricos, em que a fome e a
penúria incorreram em canibalismo, à situação material e mental daquela mulher − que,
de um lado, ainda tinha provisões em sua casa e, de outro, mostrava-se numa espécie de
estado de estupor − Marc chegara à conclusão de que era difícil ―enquadrá-la‖ numa
categoria clínica, embora aquela ―série de atos revoltantes‖ devesse ser pensada como
resultado da concorrência de ―alienação mental, de desespero e de uma propensão
instintiva‖ (idem, p. 411), fatores excludentes da culpabilidade.

ii) Caso Léger


Ocorrência não menos estupefaciente ocorrera quando, no ano de 1823, Antoine
Léger, de 29 anos, deixara, de súbito, sua casa. Para seus parentes ele havia dito que
tentaria conseguir emprego de doméstico na cidade vizinha, idéia que, em verdade,
nunca se concretizou.

17
Cf em Eu Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e o meu irmão... (FOUCAULT, 1973) e
Os anormais (FOUCAULT, 1975).
18
Jean Etienne Georget (1795-1828), foi médico-psiquiatra e um dos maiores discípulos de Esquirol.
19
Charles Crétien Henri Marc (1771-1841), médico-psiquiatra e, também, discípulo de Esquirol.
18

Após andar por um dia e meio quase a esmo, ele passa, então, a viver num
bosque, alimentando-se de frutos, ervas e raízes silvestres, chegando, inclusive, a comer
animais crus. Mais tarde, às autoridades, ele dirá que deixara a casa paterna após ―uma
gripe que tivera‖ e ―de um desespero que lhe tomara‖ (GEORGET 1825, p. 3-5)
acrescentando, ainda, que tinha a ―cabeça vazia‖. Neste bosque, ocorrera-lhe, pela
primeira vez, a ―necessidade de comer carne humana e se encharcar de sangue‖ (idem,
p. 4). Léger, dizendo-se ―possuído por um mau espírito‖ (idem, p. 7) avista a jovem
Debully, de doze anos e meio, que buscava lenha no bosque em que ele passara a viver;
quase instantaneamente Léger parte em direção à vítima, realizando, sob o sangue,
genitais e coração da vítima, a idéia que se lhe impusera. Após o feito, ele passara a
ouvir passos que ali estariam para ―capturá-lo‖; também, a insônia e os remorsos
passaram a tomar-lhe o sono. Estes sentimentos, associados ao fato de que Léger
pusera-se a esconder o corpo de Debully − mesmo indo, posteriormente procurar as
autoridades − foram tomados como exemplos de sua ―capacidade de entendimento‖ e
―premeditação‖; o júri, assim, concluiu a favor da pena capital.

iii) Pierre Rivière


Em 1824, aos vinte anos de idade, Jean Pierre Rivière degolou três membros de
sua família. Suas memórias, publicadas integralmente por Foucault, atestam que as
primeiras duas vítimas, sua mãe e sua irmã, teriam sido sacrificadas em honra de seu
pai; o homicídio, logo, perpetrara-se como forma de ―libertá-lo‖ do suplício que aquelas
mulheres lhe infligiam.
Tal desconforto ante as mulheres teria acompanhado Rivière desde muito tempo:
em sua infância ele teria experimentado este mal-estar não apenas pelas fêmeas da
espécie humana, mas mesmo por aquelas dos animais, posto que uma espécie de
―fluido‖ (FOUCAULT 1973, p. 117) emanava de seus corpos e a ele se dirigia, visando-
o. Mas se no discurso de Rivière seu desconforto perante o feminino encontra
ressonâncias, qual fora o motivo, mesmo delirante, por ele alegado, para o assassinato
de seu irmão mais novo, a quem tanto ele quanto se pai se afeiçoavam?
Segundo conta o próprio Rivière, este último seria morto de modo que, quando
fosse preso e, por fim, executado, a dor do pai de perdê-lo para o cadafalso seria
suplantada pelo ódio despertado pelo homicídio do filho mais novo e predileto. Seus
‗planos‘, porém, cairiam por terra: por pressão de médicos de renome, como Esquirol,
19

ele teve proclamada sua alienação e absolvição; restou-lhe, como última opção,
empreender seu suicídio.
iv) Caso Papavoine
Não menos trágico seria o fim de Louis Auguste Papavoine, ex-comissionado da
primeira classe da marinha que, em 1825, com a idade de 41 anos, cometera homicídio
contra duas crianças. A partir da ―completa ruína de seu pai‖ (GEORGET 1825, p. 39),
em 1823, Papvoine tornara-se ―sombrio e irritadiço‖, chegando mesmo a experimentar
―um acesso de alienação mental que dura em torno de 10 dias‖. Neste acesso surgem
idéias de perseguição. Seu estado piora quando, tempos depois, morre seu pai e a
manufatura de sua mãe entra em concordata: ele aparecerá perante aquela mãe com um
papel em punho dizendo haver, neste, provas de que seu irmão ―não estava morto‖
(idem, p. 41).
Certo dia ele se depara, num parque, com uma mulher que passeia com dois
filhos. ―Pálido‖, com ―olhar fixo‖ e ―voz trêmula‖ ele dirige-se às crianças
apunhalando-as no coração, ação para o qual não encontra clara explicação: de início,
ele nega o crime; posteriormente dirá que, em verdade, queria matar os filhos da
duquesa de Berry e, assim, ―mergulhar toda a França num estado de desespero e dor‖
(idem, p. 44). A habilidade com que defendia suas idéias foi tomada no tribunal como
evidencia de razão. Papavoine fora, logo, condenado à forca, mesmo jamais tendo clara
a motivação de tal ato.

v) Henriette Cornier
Em 1825, Henriette Cornier, doméstica, sofrera, segundo Georget ―uma
mudança muito sensível‖ no caráter; antes ―doce‖ e ―alegre‖, ela tornara-se ―sonhadora,
sombria e taciturna‖ (GEORGET 1826, p. 71). Certa vez, bate à porta de seus primos e
confessa ter tentado se atirar no Sena, sendo impedida de fazê-lo pelos passantes. Não
muito depois, subitamente, ocorre-lhe, a idéia de assassinar Fanny, de 19 meses, filha
do casal Belon, com quem Cornier tinha boas relações cotidianas. Ela oferece-se para
tomar conta da criança enquanto a Sra. Belon trocava de roupas para um passeio;
quando Belon reclama de volta sua filha depara-se com o cadáver decapitado da
criança: ―Vá, você servirá de testemunha‖ − dirá ela à mãe em desespero.
20

Psiquiatras do cunho de Esquirol requerem a internação de Henriette para melhor


responder à questão de sua sanidade mental; o resultado, todavia, é inconclusivo. A
posição de Georget, pelo contrário, não o será: ―um ato atroz, tão contrário à natureza
humana, cometido sem motivo, sem interesse, sem paixão, oposto ao caráter natural do
indivíduo, é evidentemente um ato de demência‖ (GEORGET 1826, p. 125-6).
Este tipo de casos, por seu caráter grotesco e grande repercussão na mídia,
serviram de outdoor para propagar não apenas a noção de monomania, mas, também, dos
loucos assassinatos imotivados e da necessidade de um aporte científico ao problema20.
Estava aberta a arena para que o debate moderno sobre a relação entre crime e
loucura se colocasse em toda sua profusão. Assim, não apenas no interior do campo de
debates da psiquiatria, mas, também, na cena mais ampla da cultura, a possibilidade de
uma forma de alienação que se caracterizava por um furor ―cego‖, homicida, e na
ausência de delírio, ganharia as manchetes de jornal assim como traria reverberações na
literatura daquele tempo. Ao lado do recém aparecido gênero policial21, autores como
Dostoievski22, Lautreamont23 e Poe24, fizeram do binômio crime-loucura fonte de
histórias não menos extraordinárias que o assunto na qual buscaram sua inspiração.
Se, no que tange às artes e à mídia de massa estas reverberações se fizeram sentir,
para os juristas as repercussões deste debate foram ambíguas. De um lado eles eram
direta e negativamente afetados por tais desenvolvimentos: era posto ‗em xeque‘ sua
capacidade de julgar casos em que indícios de loucura se faziam presentes. Por outro
lado, entretanto, longe de apenas ‗fornecer novos álibis‘ para a absolvição de criminosos,
esta discussão ia ao encontro de evoluções no próprio campo do direito, que via nas
noções de ―livre-arbítrio‖ e ―responsabilidade‖ construtos oriundos de uma visão
metafísica e contrária ao espírito científico da época.

20
No que tange particularmente a estes três últimos casos, a saber, Papavoine, a mulher de Sélestat e
Henriette Cournier, Michel Foucault afirmara tratar-se dos ―três grandes monstros fundadores da
psiquiatra criminal‖ (FOUCAULT 1975, p. 138).
21
Segundo ABREU (2004, p. 6-7) O escrito O homem na multidão, de 1850, de Edgar Alan Poe,
estabelece as bases do novo gênero. ―Ao narrar a história do homem que erra sem rumo por Londres,
sempre protegido pela multidão, Poe cria o ambiente ideal para o nascimento do romance policial. A
cidade é representada como um enigma, um mistério a ser desvendado. A multidão, por sua vez, passa a
desempenhar um papel de proteção; ela se transforma no abrigo que protege o indivíduo associal, o
criminoso, de seus perseguidores‖.
22
Em Crime e castigo, o autor faz de seu anti-herói Rakolnikov, um monomaníaco (DOSTOIÉVSKI, p.
376).
23
Em Cantos de Maldoror, pergunta-se o personagem: ―É um delírio de minha razão doente, um instinto
secreto que não depende de meu raciocínio, semelhante àquele da águia descendo sobre a presa, que me
impele a cometer o crime?; e entretanto, tanto quanto minha vitima, eu sofria!‖ (LAUTREAMONT 1868-
9).
24
Contos como O coração denunciador, William Wilson e etc denotam homicídios cometidos por loucos.
21

Com efeito, mais que uma imposição externa à sua disciplina, muitos juristas
viam no debate crime-loucura a oportunidade para acelerar as reformas que, no que
concerne aos fundamentos modernos do direito, faziam-se não só urgentes, mas já em
marcha.

II – Crime e loucura no direito penal moderno


A) Uma objeção?
Disséramos, ao introduzir a problemática referente ao ―debate crime-loucura‖,
que se tratava, nesta, de uma discussão ―moderna‖. Uma objeção, entretanto, pode ser
levantada a respeito desta asserção: é que o mundo antigo não desconhecia a
controvérsia envolvendo estes dois termos. Segundo Robinson (ROBINSON 1998, p.
24), também na Grécia antiga ―houve uma tensão entre o dever de expor e punir o
culpado e aquelas teorias médicas, filosóficas e psicológicas que concerniam aos
determinantes da conduta humana‖.
Na antiguidade, onde talvez pela primeira vez as verdades eternas da religião e
da tradição são substituídas pelo reconhecimento da vida política como fonte de
obrigações – início da ―laicização do direito‖ (LOPES 2002, p. 33) − os
questionamentos acerca do estatuto jurídico do louco já se impunham. Isto porque
mesmo antes das leis escritas − de Drácon25 [621 a. C.] e de Sólon26 [504-3 a. C.] −
existia, no que concerne ao jurídico, a suposição de que algo, a dike (Justiça), subtraia o
homem do bestial permitindo-o reconhecer ―o justo, o desonesto e o correto‖
(ROBINSON 1998, p. 134). Ora, é justamente esta capacidade de estar concernido, via
entendimento e conformação, à lei que, para os gregos, resultava problemático na
loucura. Se a razão, porta de acesso à dike faltava ao insano, a este restava um estatuto
jurídico próximo ao do infante ou da besta selvagem; abria-se, então, campo para que, já
no mundo antigo, se colocassem elementos do debate sob a inimputabilidade.
Neste ponto, onde as peculiaridades inerentes ao louco questionavam a pólis, as
perspectivas literárias, filosóficas e médicas requeriam espaço para tecer suas
explicações.

25
Drácon, membro da assembléia dos nobres de Atenas fora encarregado, em tempos de guerra, de
constituir um código de leis escritas. Seu rigor renderia, à posteridade, o termo ―draconiano‖ como
sinônimo de ―desumano‖ e ―excessivo‖.
26
Sólon, considerado um dos sete sábios da Grécia antiga. Segundo Lopes (2003, p. 34), ―As leis de
Sólon eram ensinadas como poemas, de modo que todo ateniense bem educado terminava por conhecer
sua tradição político-jurídica comum‖.
22

Na Ilíada, por exemplo, como cita Robinson no primeiro capítulo de seu livro,
Agamenon evoca ―Loucura‖ para se desculpar com Aquiles por ter se apropriado do
espólio de guerra do herói, a jovem escrava Briseis. Dirigindo-se ao ‗quase invulnerável
guerreiro‘ ele clama por um panteão de deuses afirmando:

Não fui eu quem o fiz, Zeus e Destino, e as Erínias que


caminham na escuridão fizeram-me louco no dia em que tomei
de Aquiles o prêmio a ele reservado. O que eu poderia fazer?
Todas as coisas estão nas mãos do céu, e Loucura, a mais velha
das filhas de Zeus vela os olhos dos homens para sua
destruição. Delicadamente ela anda, não na terra sólida, mas
sob as cabeças dos homens para feri-los ou enganá-los
(HOMERO apud ROBINSON 1998 p. 8).

Se já em Homero as considerações religiosas e mitológicas sobre o assunto


alojavam um modo de apreender os móveis da conduta humana e dispunham o
problema da imputação, a filosofia nascente forneceria um importante contraponto a
esta perspectiva. Este contraponto, não obstante, incidiria não sob a escusa do crime na
loucura, mas, sim, na discrepância sob os móveis em jogo em tal isenção − escusa esta
que encontraria reservas nos casos de homicídio. Deste modo, quando Platão em suas
Leis demarca sua posição na discussão, ele o faz afirmando que, nos crimes impetrados
por pessoas ―em estado de loucura ou quando afetados por doença‖

... se isso for evidente para os juízes eleitos para julgarem a


causa, sob apelo do criminoso ou de seu advogado, e ele for
julgado como estando neste estado quando cometeu a ofensa,
ele deve simplesmente pagar pelo dano que ele cometeu ao
outro; mas ele deve ser isento de outras penalidades, a menos
que tenha matado alguém e tenha suas mãos manchadas de
sangue. Nesse caso ele deve ir para outra terra e país, e lá viver
por um ano (PLATÃO apud ROBINSON 1998, p. 21).

Também a medicina − que florescia sob a égide de Hipócrates − viria aumentar


o número de interpretações possíveis para os ‗desvios‘ do louco. Expressando-se já em
termos cerebrais, o pai da medicina concebeu uma causalidade que transcendia a própria
loucura: ―do cérebro, e apenas do cérebro, erguem-se nossos prazeres (...) tanto quanto
nossas mágoas (...) são as mesmas coisas que nos fazem loucos (paraphronimos) ou
delirantes... e [causam] atos contrários ao hábito‖ (HIPÓCRATES apud ROBINSON
1998, p. 32).
23

Se assim foi em Atenas, em Roma − onde a herança cultural grega e etrusca


eram revisitadas desde o sucesso sem precedentes do Império − apresentavam-se,
também, particularidades da loucura no que tange ao direito. Os furiosus, loucos com
intervalos de sanidade, podiam, fora destes, ter contratos ou casamentos anulados, ser
destituídos como paterfamílias − lugar delegado ao pai no controle da ―unidade de
produção‖ (LOPES 2002, p. 41) que era a família romana −, sendo entregues à custódia
do magistrado.
No mundo antigo, em que os loucos partilhavam seu lugar entre as referências
ao infante e às bestas selvagens, categorias como nom compus mentis, fanaticus, idiotus
e furiosus exprimiam a ―sinceridade e refinamento da lei antiga nesta área‖
(ROBINSON 1998, p. 678). Havia, portanto, naquele tempo: 1) certo reconhecimento
da escusa da loucura em relação ao crime (ao menos no que tange aos delitos menos
graves, vale dizer, que não envolviam assassinato); 2) saberes, no sentido mais amplo
do termo, como a medicina, a literatura e a filosofia, que cunhavam teorias e
explicações sobre este fenômeno; e, 3) certa permeabilidade do direito às peculiaridades
do louco. Ante estes elementos estaríamos nos contradizendo ao afirmar que o debate
crime-loucura é um advento ‗moderno‘ – vale dizer, deflagrado desde a incidência, na
civilização, da ciência matematizada e do capitalismo?
A resposta a esta questão apenas pode ser negativa; embora houvesse, já, no
direito antigo, um lugar diferenciado para o insano, a construção deste lugar era
efetuada com base na percepção popular do que era a loucura; não havia, portanto, uma
‗definição‘ do que se reconhecia como ‗insanidade‘. A despeito do que ocorre a partir
da modernidade, estes elementos não conferiam às discussões jurídicas subsídios para
que se cogitasse acerca das ―intenções do crime‖. Robinson, a este respeito, argumenta
que parte dos motivos desta discrepância reside na ―antiga concepção grega de natureza
(physis)‖, também incorporada pelos romanos, de acordo com a qual era natural para o
homem ser racional e viver em sociedade sob as regras da lei:

Se a definição da natureza humana era tão devastada pela


doença ou destituída pelos deuses, a pessoa afligida estava por
causa disso excluída da discussão. Ser uma besta selvagem era,
como foi, deixar o genus [gênero] e ser localizado na parte da
taxonomia para a qual a lei não tem alcance ou remédio. Por
esse olhar, pouco importava se a causa se originara no Olimpo,
no crânio ou no clima. (idem, p. 33).
24

No mundo antigo a questão sobre os móveis do crime não podia se apresentar a


um tribunal a ela sensível; julgava-se o ato em suas qualidades intrínsecas e não as de
seu autor. Esta impossibilidade redobrava-se na medida em que o ato ‗louco‘
encontrava-se como que ―fora da natureza‖. Deste modo, as cortes antigas tomavam o
crime ele mesmo como evidência da capacidade mental; vale dizer, sob a égide do
equilíbrio na ‗ordem das coisas‘, os danos causados pelo insano deveriam encontrar
compensação e seus crimes punição.
Era preciso, ainda, um passo capital para que este estado de coisas se
modificasse. Correlatos a uma transformação no conhecimento, nas estruturas sociais e
no próprio conceito de homem, o advento da modernidade e da nova ciência são a
condição sine qua non para que o debate crime-loucura efetivamente ganhasse corpo.

B) O crime e as penas na modernidade


Enquanto floresciam o capitalismo e os estados nacionais, o iluminismo tornava
populares as teorias naturais e deterministas da ação humana. O triunfo da razão
científica explodia o cosmos27 até então sustentado pela religião e tradição, preparando o
campo para a vindoura revolução industrial. O cartesianismo e a noção de sujeito eram
correlatos a uma epistemologia erigida sob idéias claras e raciocínios a serem
explicitamente demonstrados. Não tardaria para que tais transformações reverberassem
no direito.
Neste campo surgia o entendimento, por volta do século XVII e XVIII, de que
havia uma área de ―não interesse da lei‖ (ROBINSON 1998, p, 122), o que abria um
hiato entre as leis jurídicas e as que regem a ordem das coisas − hiato este que não
dispensava a referência ao ‗espírito científico‘. Dito de outro modo, o direito natural
moderno − ou jus-naturalismo − emerge, pois, simultâneo à queda do ‗homem-animal
político aristotélico‘. Desvinculando-se da esfera teológico-filosófica, o novo direito
tende a ser ―axiomático, dedutivista, universal, impessoal, abstrato. Já não se pode
apelar às autoridades eclesiásticas como fonte de legitimação‖ (LOPES 2002, p. 218).
Imprime-se, então, um corte que desaloja as antigas autoridades − experimentadas agora
como heterônomas; instaura-se uma trajetória que se desenha desde a possibilidade de

27 Koyré, em Do mundo fechado ao universo infinito (1957), chama tal transformação de uma
―radicalíssima revolução espiritual de que a ciência moderna é ao mesmo tempo a raiz e o fruto‖ (idem, p.
13). Nesta revolução, o homem não apenas perdera ―seu lugar no mundo‖, mas perdera ―o próprio mundo
em que vivia e sobre o qual pensava, e teve que substituir não só seus conceitos e atributos fundamentais,
mas até mesmo o quadro de referência de seu pensamento‖ (idem, p. 13).
25

acesso de ―qualquer um‖ à racionalidade das leis, até as exigências que exigiam, desse
sujeito ‗anônimo‘, uma formação competente:

O direito natural moderno quer ser um direito do senso comum,


pelo qual todos podem chegar às máximas jurídicas. É, no
entanto, dominado por saberes competentes, pela mesma razão
que a geometria, sendo evidente uma vez aprendida, não é
evidente para uma mente não suficientemente treinada, como
diz Locke (LOPES 2002, p. 219).

Na esfera das punições, o Antigo Regime, e suas práticas centradas no que


Foucault chamara de manifestação ―excessiva28‖ cede lugar, paulatinamente, a uma
nova economia da punição. Se antes tratava-se, nas penalidades, de evidenciar a
desproporção existente entre os lugares do soberano e do criminoso, agora, imperativo
se fazia punir o crime numa ‗medida exata‘, sem comportar excessos, simplesmente
para que a transgressão não recomeçasse. A economia ‗moderna‘ dos suplícios deveria
coadunar-se à lógica, ao mesmo tempo capitalista e científica, de ―majorar o poder,
diminuir seus custos e integrar os mecanismos de produção‖ (FOUCAULT 1975, p.
108).
Algo semelhante ocorria nas codificações modernas das leis: o conjunto de
normas era erigido de forma a tolher não apenas a transgressão do réu, mas, também, os
excessos do juiz e do soberano; deste modo também os últimos deviam passar pelo
crivo da nova razão. É assim que os códigos, sob influência do utilitarismo de
Beccaria29 e dos imperativos morais de Kant30, fazem do sujeito racional seu corolário31.

28 Segundo Foucault (1975, p. 143), tal princípio trazia como seus elementos: 1) uma reapresentação, no
castigo, de uma analogia do crime cometido; 2) tratava-se, neste, também, de uma ―revanche‖ do
soberano, uma vez que o lugar por ele ocupado confundia-se com o lugar da lei; 3) os excessos da
punição intentavam uma anulação do ato transgressor perante a esmagadora potência coercitiva do
soberano. Como estas manifestações objetivavam apagar o ato, não havia, no Antigo Regime, a
possibilidade de que se questionasse a respeito seja da mecânica do ato seja, ainda, sobre a natureza do
transgressor.
29 Cesare Beccaria (1738-1793), escrevera, aos vinte e seis anos de idade, o livro Dos delitos e das penas
(BECCARIA 1764). Tendo passado, ele mesmo, pelas ―agruras da prisão‖ (idem, p. 9), insurgiu-se contra
os problemas desta instituição, dentre eles a tortura e a desproporcionalidade das penas em relação aos
delitos. Beccaria enunciou, pela primeira vez, o princípio de igualdade perante a lei erigindo, desde esta
operação o cerne do pensamento e da moral utilitarista: ―a máxima felicidade dividida pelo maior
número‖ [de pessoas] (idem, p. 23). Para Beccaria, a finalidade das penas é a de ―impedir que o réu cause
novos danos a seus concidadãos e demover os outros de agir desse modo‖ (idem, p. 52). As penas, assim,
―modernizam-se‖; ao aplicá-las, é preciso que ―conservadas as proporções‖, ―as penas causem impressão
mais eficaz e duradoura no espírito dos homens, e a menos tormentosa no corpo do réu‖ (idem, p. 52).
30 Segundo Harris (1993, p. 15) a vertente jurídica inspirada na teoria moral kantiana distinguia-se do
princípio utilitarista de ‗máxima felicidade para o maior número de pessoas‘. A primeira se caracteriza
por se estabelecer sob ―bases morais absolutas‖; cabe ao sujeito, na medida em que compreende uma lei −
ou melhor, um ―imperativo categórico‖ −, a ―obrigação de agir moralmente‖.
26

Por outro lado, no esteio de Bertillon32, começa a ganhar corpo, também no


campo penal, o processo de cifragem que procede absorvendo o singular no universal,
processo este que, na esfera científico-jurídica, instaura dois novos objetos: o ‗crime
real‘ e o ‗criminoso‘. Mergulha-se na era do que Miller (2004a) chamou de o ―homem
sem qualidades33‖, do sujeito quantificável, redutível à cifra; faz-se possível uma
operação de segregação da singularidade não pela simples exclusão, como outrora, mas,
sim, por meio de uma inclusão que, ao universalizar, aparta:

Numa civilização em que o ideal individualista foi alçado a um


grau de afirmação até então desconhecido, os indivíduos
descobrem-se tendendo para um estado em que pensam,
sentem, fazem e amam exatamente as mesmas coisas nas
mesmas horas, em porções do espaço estritamente equivalentes
(LACAN 1950a, p. 146).

Nesta série de rupturas, o crime ganha um outro estatuto: ―desde então é preciso
que haja seus motivos, com os móveis do crime; esses motivos e esses móveis devem
ser compreensíveis, e compreensíveis para todos‖ (LACAN 1950a, p. 140). A atenção
desliza, pois, do registro antigo do ato em si, para sua relação, a ser quantificada, com a
―razão ou interesse do crime‖. Constitui-se um ―real‖ para o crime, visa-se apreender os
princípios de seu ―aparecimento, sua repetição, sua inteligibilidade natural‖
(FOUCAULT 1975, p. 110). Nesta ‗mudança de registro‘ a transgressão torna-se
punível em virtude da superposição da mecânica da ação à racionalidade do sujeito,
cônscio e motivado ao ato.

31
Segundo Harris (1993, p. 15), embora kantismo e utilitarismo conflitem em suas bases e
desenvolvimentos, conserva-se entre elas um núcleo em comum: a ―racionalidade‖ do sujeito como
―característica universal e constante da natureza humana‖. Assim, em sua incidência jurídica, a punição
intervinha não apenas pela desobediência à lei, mas, sim, por ter o agente ―consciência de estar agindo
errado e de que comete o crime intencionalmente‖ (idem, p. 15).
32
Alphonse Bertillon (1853-1914), precursor da ―antropometria judiciária‖. Nascido em meio a
estatísticos − pai e avô que, junto a Paul Broca, criaram a Associação dos Antropólogos, − Bertillon
inventou uma forma de medir as características corporais dos criminosos para melhor identificá-los.
Segundo Darmon (1991, p. 220) em 1884, tal prática for introduzida ―em todas as prisões francesas‖
enquanto a imprensa celebrava as ―experiências geniais de um jovem sábio francês‖, doravante chamadas
de ―bertillonage‖.
33
Com tal termo tomado do ―profético escritor Robert Musil‖, Miller assevera que ―o homem sem
qualidades é aquele cujo destino é o de não ter nenhuma outra qualidade senão a de ser marcado pelo 1 e,
deste modo, poder entrar na quantidade‖ (MILLER 2004a, p. 3). No processo de erradicação da
singularidade, ―Tornar-se unidade contável e comparável é a tradução efetiva do domínio contemporâneo
do significante-mestre sob sua forma mais pura, mais estúpida: o número 1‖ (idem, p. 2).
27

Destarte, se de um lado se asseverava que as provas do crime e a mecânica do


ato criminoso são acessíveis a todos − porque imanentes ao sujeito racional − por outro,
a necessidade de obter ―uma mente suficientemente treinada‖ dispunha a necessidade
das disciplinas específicas. É para este novo direito − e para suas tecnologias punitivas
− que se apresenta, no final do século XVIII, o problema dos ‗assassinatos imotivados‘.
C) Os assassinatos imotivados:
―conflito de competências‖ ou ―conflitos e confluências‖?
Ao passo que se consolidava o processo de desmistificação da loucura e que
ganhava força a noção de ―liberdade individual‖ − concepção ―burguesa‖, segundo
Lacan (LACAN 1933, p. 375) − tornara-se desumano punir alguém por um feito que se
efetivava a revelia de sua razão e vontade. É este o contexto em que se ergue o
movimento, dito ‗humanista‘, que subtrai os loucos das chamadas ―casas de correção‖ e
que, posteriormente, institui o célebre artigo 64 do código penal francês de 1832,
segundo o qual ―não há crime nem delito quando o réu estava em estado de demência no
momento da ação, ou quando foi coagido por uma força a qual não pôde resistir‖.
Ora, a princípio, tais julgamentos não se tornaram problemáticos; entendia-se
que ―os jurados de bom senso e percepção normal podiam pesar as evidências neste tipo
de casos tão bem quanto em uma miríade de outras ações civis e criminais‖
(ROBINSON 1998, p. 120). Porém, como visto nos casos ―fundadores‖ da psiquiatria
criminal, os assassinatos imotivados foram arautos na alteração desta realidade: ante
homicídios cuja loucura do ato contrastava com a ausência de delírio prontamente
identificável, cabia apenas à ‗nova ciência‘ psiquiátrica requerer, para si − inclusive nos
tribunais − seu mandato social perante o assunto.
Se, no início do século XIX, emergiam grandes dificuldades para o julgamento
de réus insanos, este movimento teria como saldo a criação, no interior de uma zona até
então pertencente ao direito, da demanda pelo especialista. Se na época dos ―witch
trials34‖ a figura do expert já se tornara presente para efeito de identificação das marcas
imateriais do fenômeno de possessão, ―quando os vestígios do pactum implicitum35
foram finalmente expurgados, as cortes deveriam reservar ainda um lugar para outros
especialistas presumidos terem acesso aos sombrios mistérios da mente e do espírito‖
(ROBINSON 1998, p. 122).

34
Julgamentos de bruxas que varreram a Europa e o novo continente entre os séculos XIV e XVII.
35
Num mundo em que as leis herdadas do mundo antigo eram reinterpretadas a partir do binômio crime-
pecado, os acusados de tal pacto eram tidos, não como vítimas, mas, sim, como ansiosos cooperadores.
28

Agora, desde os casos de ―delírios parciais‖ e dos ―assassinatos‖ ditos


―imotivados‖, ―não mais as cortes sentariam confortáveis precisando decidir se um réu
era delirante no tempo da ofensa. Não mais as percepções ordinárias do homem da rua
proveria evidência conclusiva da sanidade do autor‖ (idem, p. 151).
Com efeito, se este conflito mostra-se, num primeiro instante, como uma guerra
de competências, num segundo momento a tensão entre justiça e medicina irá alojar
uma área de confluência e cooperação. Assim, na modernidade, o recurso aos experts é
experimentado pelo direito ―primeiro com aversão, logo como matéria de fato e,
finalmente, com avidez‖ (ROBINSON 1993, p. 128). Por conseguinte, tanto impõe-se o
curto-circuito na mecânica utilitarista dos ―interesses do crime‖ quanto abre-se a via
pela qual a hesitação inicial do ordenamento jurídico se transforma em ávida demanda à
análise científica:

Seguro de si e até implacável, desde que apareça sua


motivação utilitária (...), o pensamento dos penalogistas hesita
diante do crime em que surgem instintos cuja natureza escapa
ao registro utilitarista no qual se manifesta o pensamento de
Bentham. (LACAN 1950a, p. 136)

Apresenta-se, assim, um dilema: se, conforme o artigo 64 não se encontra


racionalidade no ato, o sujeito que lhe é correlato não é claramente louco. A justiça, em
pane, convoca a análise científica. Paradoxalmente, como pontuara Foucault (1975, p.
147), ao mesmo tempo em que convoca, num alhures, a análise científica, o direito não
poderá ―reinscrever‖ esta análise, proveniente do campo de saber psiquiátrico, no
interior de sua racionalidade. Neste estranho amálgama − em que o ‗conflito de
competência‘ transforma-se em ‗conflito e confluência‘ − a justiça demandará à ciência
não apenas a identificação, mas, também − como que ‗por contrabando‘ − a
―profilaxia‖, vale dizer, a construção de ferramentas para a detecção e prevenção do
crime.
Este processo, deveras complexo, se expandirá, ainda, à medida que a
perspectiva positivista, ao longo do século XIX, ganha terreno. Sob a égide do
pensamento que não apenas critica, mas que visa a extirpar os pressupostos metafísicos
das várias instituições humanas, o positivismo atinge, também em meados do século
XIX, o campo do direito:
29

Se a ciência medieval se confundia com a especulação


gramaticada, e se a ciência moderna se associava à
geometrização do mundo, os juristas haviam, a seu tempo,
incorporado aquelas concepções de ciência. Porque não o
fariam também no advento da ciência positiva? (LOPES 2002,
p. 223).

Urgente se fazia abandonar as bases morais e metafísicas para a construção de


melhores formas de ‗defesa social‘. Perante a urbanização e a criminalidade crescentes,
o ―fracasso‖ das prisões no papel de recuperar o transgressor fazia-se evidente.
Enquanto exigiam-se inovações, a própria noção de ―justiça‖ restava problemática
diante do projeto de uma administração social científica, projeto este partilhado por
médicos e juristas:
Esta nova geração de especialistas sócio-científicos duvidava
das rígidas categorias estabelecidas pelo código penal e sugeria
que considerações técnicas, e não morais, fossem utilizadas
para favorecer um programa mais eficaz de administração
social (HARRIS 1993, p. 24).

Com o espírito científico transmutado em cientificismo, abundavam analogias


entre crime e doença. O sanitarismo36, entre medicina, política e direito, crescia como
proposta de combate ao mal-estar social alojado pelo crime. A sociedade − como
―organismo social‖ − via-se ameaçada pelo ―micróbio do criminoso‖. Como uma
imagem simétrica e invertida de seu mestre Esquirol − que virtualizou, na loucura, o
homicídio −, psiquiatras como Georget, explicitam a patologização do homicídio: ―os
assassinos são loucos, embora não evidenciem sinais de perturbação intelectual‖
(GEORGET apud HARRIS 1993, p. 18).
Na ausência de uma etiologia unívoca da loucura a vida moderna passa a ser
vista, ela também, como propiciadora do crime e do enlouquecimento. A população
desguarnecida de recursos mínimos para sua subsistência tornava-se, pouco a pouco,
sinônimo de uma classe psíquica e moralmente degenerada.
Estava posto, em sua plenitude, o debate crime-loucura, em sua dupla vertente:
―criminalização da doença‖ e ―patologização do crime‖ (CARRARA 1993, p. 97); abre-
se a senda para o que Lacan chamara de ―concepção sanitária da penalogia‖: num
imperativo de defesa social em que qualquer referência ao campo ético mostra-se

36 Estratégias de ‗controle‘, ‗saúde‘ e ‗defesa‘ da população, tecidas mormente sob a égide econômica.
30

explodida, as classes dominantes encontram, na análise científica, o remédio para o


desconforto em punir os explorados e subjugar o louco, verdadeiro avatar da desordem:

... como o grupo que faz a lei não está, por razões sociais,
completamente seguro da justiça dos fundamentos de seu
poder, ele se remete a um humanitarismo em que se exprimem
igualmente a revolta dos explorados e a consciência dos
exploradores, para os quais a noção de castigo tornou-se
igualmente insuportável. A antinomia ideológica reflete, aqui
como em outros aspectos, o mal-estar social. Ela agora busca
sua solução numa formulação científica do problema, isto é,
numa análise psiquiátrica do criminoso a que deve reportar-se,
após examinar todas as medidas de prevenção contra o crime e
de proteção contra sua recidiva, o que podemos designar como
uma concepção sanitária da penalogia (LACAN 1950a, p. 139).

Paulatinamente, o processo dúplice de ―criminalização da loucura‖ e


―patologização do crime‖ − o ―debate crime-loucura‖ − receberia − entre meados do
século XIX e início do século XX − sua consolidação. Isto ocorreria desde a emergência
de duas doutrinas que tiveram, ao longo deste período, gigantesca influência no pensar
ocidental sobre o tema: trata-se das então florescentes ―teoria da degeneração‖ −
sistematizada por Benedict-Augustin Morel37 − e da teoria do ―criminoso nato‖,
elaborada por Cesare Lombroso38. Neste esteio, avançava a ―concepção sanitária da
penalogia‖, problematizada por Lacan em seu texto de 1950 sobre a criminologia: em
sua abordagem ―profilática‖ −, de ―controle‖ e ―defesa social‖ − o sanitarismo relegava
ao sujeito o lugar de mero objeto, explodindo, para este, o circuito da palavra e a
dimensão da responsabilidade.

37 Benedict-Augustin Morel (1809-1873), conferiria à herança degenerada, papel central em sua


etiologia.
38 Cesare Lombroso (1835-1809), médico precursor da criminologia; autor da noção de ‗criminoso nato‘.
31

− Capítulo II –
A concepção sanitária da penalogia
e a construção do instinto homicida
No capítulo anterior, acompanhamos como a psiquiatria, em seu processo de
captura de um real na loucura, fora levada até formas em que o delírio era ausente ou
não evidente. Destacavam-se, dentre estes casos, o que Pinel chamara de ―furor cego‖
ou ―tendência automática a atos de atrocidade‖ (PINEL 1801, p. 157): a conduta louca −
sob a forma dos assassinatos imotivados − ganhava assim o primeiro plano em
detrimento da relação ‗pelo avesso‘ que era aquela do delirante alienado em relação à
verdade. Esta virtualidade homicida, privilegiada em detrimento da desordem mental,
fora, como vimos, ampliada pelas mãos de seu discípulo, Esquirol, para quem ―as
paixões e o crime que armam a mão homicida não fogem de meu objeto‖ (ESQUIROL
1838, p. 94). Por todo lado, ensaiava-se ainda um passo a mais: não deveria o homicida,
por sua ação, ser interrogado como doente? As metáforas do criminoso como um
―micróbio‖ no ―corpo social‖ (HARRIS 1993, p. 112) próprias da vindoura sociologia
criminal à Lacassagne39, ganhavam terreno.
Se na modernidade o crime passa a ser dotado de uma espécie de ‗natureza‘ −
através da averiguação de seus ―móveis‖ −, agora, o homicida, num processo análogo,
também será tomado como objeto de investigação científica: no projeto de apreensão de
um real científico na infração, agregar-se-á ao transgressor uma densidade jamais vista
outrora. A emergência da ―teoria da degeneração‖ e da criminologia com seu estranho
artefato − o ―criminoso nato‖ − surgiam no campo da cultura como resultantes deste
processo; intentava-se subsumir o assassinato imotivado − tomado entre crime e loucura
− a conceitos como os de ―degeneração‖ ou ―instinto homicida‖. Este viés discursivo
alojara o ―duplo gume‖ da ―realização do crime e da desumanização do criminoso‖
(LACAN 1950a, p. 131); processo que estrutura, ainda hoje, práticas segregadoras. Em
nome de uma ―culpa objetiva‖, ―verificada‖ cientificamente pela intervenção de
especialistas − através de perícias, exames criminológicos, etc. −, a posição e a palavra
do sujeito − mesmo em seu ―direito à mentira‖ (LACAN 1950b, p. 129) −, é mormente
desconsiderada. Se abole-se a responsabilidade e a verdade inscrita na estrutura do ato
em pró de um programa de ―controle‖ e ―defesa social‖ −, que outro lugar senão aquele
de ―ob-dejeto‖ é reservado à tais sujeitos?

39
Alexandre Lacassagne (1843-1924), um dos fundadores da antropologia criminal francesa.
32

Ora, é em relação a tais efeitos que a psicanálise − considerando o ―pulsional‖


(diverso do instintivo) e a ―estrutura de ficção da verdade‖ (instaurada pela linguagem) −
marcará sua incidência neste campo de debate. O discurso psicanalítico, diz-nos Lacan,
―irrealiza o crime sem desumanizar‖, ou seja, objetalizar, ―o criminoso‖ (LACAN 1950a p.
131). Mergulhemos, por hora, na célere investigação daquelas duas correntes − a teoria da
degeneração e o lombrosianismo − de modo a apreender o duplo gume que elas instauram.

I) Degeneração e atavismo: a reificação do criminoso


A) A teoria da degeneração
De fato, mesmo antes de seu uso em psiquiatria, a concepção de uma degeneração
humana já circulava por grande parte da Europa oitocentista. A idéia de uma ‗decadência
moral‘ − correlata à laicização das instituições modernas − se unia às considerações sobre
as mazelas trazidas pela ‗urbanização massiva‘ − em efeitos tais como o ―aumento‖ do
número de crimes, suicídios, delinqüência juvenil e concentração de pobreza. Um terceiro
sentido viria somar-se, ainda, àqueles dois para que se possa ter a dimensão aproximada do
campo semântico coberto por este termo em meados do século XIX e início do século XX:
trata-se da degeneração em seu sentido ―anátomo-patológico‖, sentido este advindo de um
campo recém franqueado pela medicina.
Esta nova via aberta à medicina seria constituída desde a descoberta da ―paralisia
geral do insano‖, por Antoine-Laurent-Jessé Bayle em 1822. O método anátomo-
patológico, instituído por esta descoberta, correlacionava ―estágios degenerativos do tecido
cerebral os associando a um quadro de insanidade progressiva‖ (HARRIS 1993, p. 36). Um
universo de possibilidades deslindava-se para medicina, provocando excitação nos
pesquisadores de sua vertente ―mental‖. Dentro deste escopo, ao designar este processo, o
termo ―degeneração‖ − ou ―degenerescência‖ − encampava, a si, este novo significado,
ganhando a conotação de passagem de um tecido nervoso normal para um tecido doente,
ou ―degenerado‖.
Como pontua SERPA JR (1998, p. 30), a degeneração, em sua tríplice significação,
− anátomo-clínica, moral (degradação dos costumes), e religiosa (decadência gradual em
relação a um tipo humano perfeito) − seria a base para a construção, efetivada em 1857, da
teoria moreliana da degeneração. Embora emergida num ambiente em que vigorava o
espírito científico, Morel não excluiu a ―revelação‖ como um dos eixos sobre os quais
erigiu a categoria da degenerescência, que relacionava ―mal físico‖ e ―mal moral‖:
33

Esses fatos, que em nossos dias receberam a tripla sanção da


verdade revelada, da filosofia e da história natural, me
serviriam de introdução à exposição do que se deve entender
por degenerescência da espécie humana (MOREL apud
SERPA JR 1998, p. 41).

Rapidamente tornado célebre, o Traité des degenerescences40 operará um


vultuoso deslocamento no que concerne ao papel da herança nas doenças mentais: se a
transmissão biológica como parte da etiologia da loucura já havia sido hipotetizada por
Pinel, com Morel ela ganharia não apenas um lugar de destaque, mas, sim, subsumiria
os demais elementos e hipóteses causais. Com efeito, um dos fatores determinantes para
esta rápida aclamação foi um imperativo de ordem epistemológica.
Interrogada quanto a sua empiricidade pela descoberta anátomo-clínica, a
psiquiatria não raro se deparava com frustrantes resultados ao visar a identificação de
lesões nervosas nos corpos dos alienados. Isto não era menos verdadeiro nas tentativas
de investigar, por este viés, os homicídios: ―as autópsias dos assassinos mortos na
guilhotina eram aguardadas com ansiedade‖ (HARRIS 1993, p. 38).
A medicina mental mergulhara num dilema: mister se fazia encontrar as bases
materiais que confeririam substancialidade aos objetos que eram o louco e o assassino;
estas lesões, não obstante, não eram encontradas.
É no interior deste dilema que a idéia de degeneração mostrava-se profícua: a
herança biológica forneceria, em contrapartida a materialidade das lesões, uma saída
epistemologicamente interessante. O conceito de degenerescência trazia, ainda, uma
valiosa peculiaridade: a degradação sob a qual este versava era ao mesmo tempo
―física‖ − pois era transmissível biologicamente de uma geração a outra − e ―moral‖ −
visto que hábitos, vícios e tendências eram o conteúdo que, alterando a natureza dos
corpos, se fazia transmitir. Relativizava-se, assim, o imperativo empírico − que via nas
teorias e conceitos psicológicos a insuficiência do objeto da medicina mental − e
instituía-se uma nova forma de se pensar as relações entre moral e biologia: a
degeneração, conceito que englobava ambos.

40
Traité des dégénérescences physiques, intelectuelles et morales de l'espèce humaine et les causes qui
produisent ces variétés maladives. Paris: Baillière, 1857.
34

Comparada à noção contemporânea de herança genética, a concepção moreliana


de hereditariedade pode, em relação a sua lógica, ser considerada ‗pré-mendeliana41‘.
Esta concepção baseava-se em princípios lamarckistas, segundo os quais uma
propriedade adquirida por um indivíduo − em sua relação com o ambiente − fixava-se
ontologicamente, sendo, então, filogenéticamente transmitida à descendência. Tomada
deste modo, mesmo quando adquirida por um indivíduo no decurso de sua existência, a
degeneração era transmissível, por herança biológica, às gerações futuras. Esta herança,
interpretada pelo viés de Morel, parte do lugar de causa concorrente da loucura − lugar
atribuído por Pinel − para ocupar o papel de causa fundamental. O que se transmitia era,
não obstante, não uma afecção específica, mas, sim, uma ―predisposição orgânica‖
(SERPA JR 1998, p. 50).
A transmissibilidade desta pré-disposição não específica − ao mesmo tempo
física e moral − autorizava o pensamento, já adiantado por Esquirol, de se propor uma
ampliação da área de ação da psiquiatra na cena da cultura. A ―profilaxia‖, modelo
centrado em intervenções preventivistas e de controle, ganharia campo sob a forma de
um projeto de reforma nas ‗condições materiais e morais das massas‘; tal modelo, em
suas duas faces − ―defensiva‖ ou ―preservadora‖ −, tomaria a ―moralização das massas‖
como principal política ante a epidemia degenerativa:

Assim, a ―profilaxia defensiva‖ se ocupa de ―seqüestrar os


indivíduos nocivos‖, num ―objetivo de segurança pública‖
(op. cit., p. 691), enquanto a ―profilaxia preservadora‖, deve
se ocupar da modificação das condições intelectuais, físicas e
morais daqueles que foram afastados do convívio social pela
ação da primeira, devendo, ainda, antes de devolvê-los à
sociedade, ―... armá-los contra eles mesmos, por assim dizer, a
fim de atenuar o número de recidivas‖ (op. cit., p. 691)
(MOREL apud SERPA JR 1998, p. 52)

A plasticidade do conceito de degeneração, por outro lado, permitia conferir


inteligibilidade à já então desgastada classe das ―monomanias homicidas‖ de Esquirol.
De fato, Falret42 entre outros psiquiatras, havia empreendido uma série de críticas a
respeito deste tipo de concepção: mesmo na loucura aparentemente lúcida é o conjunto
da existência do paciente aquilo que se encontrava afetado pelo transtorno. Categorias
nosológicas como a monomania, nesta perspectiva, apenas reduplicavam as dificuldades

41
Gregor Jahan Mendel (1822-1884) monge e botânico austríaco, descobrira as leis que organizam a
transmissão de caracteres hereditários.
42
Jean Pierre Falret (1794-1870) publicara, em 1854, seu livro De la non-existence de la monomanie.
35

introduzindo separações baseadas em abstrações acadêmicas, imposturas não


pertinentes ao já complexo quadro clínico. No que diz respeito a estes casos, o conceito
de degeneração, justamente por veicular a idéia de uma transmissão difusa, fornecerá
uma chave conceitual ampliada. Dos grandes desvios às pequenas infrações, do
retardado ao ―cretino moral‖, dos tipos clássicos de loucura até os assassinos
imotivados, todos apresentavam diferentes estados ou declinações da mesma
degeneração. A partir deste conceito:

Crime, suicídio, transgressão moral, delinqüência, devassidão


e alienação passam a ser suspeitos de estarem de alguma
maneira relacionados com a degenerescência na espécie
humana. (SERPA JR. 1998, p.126)

Loucura e crime imiscuíam-se num contínuo em que a concepção de uma


‗tendência degenerada‘ e de uma ―loucura hereditária‖ autorizava o modelo sanitarista
de intervenção. De um lado e de outro tratava-se, a partir de um vigoroso processo de
controle, de apreender as tendências ou instintos desviantes presentes no indivíduo
mesmo antes de sua realização, vale dizer, em sua virtualidade. Portanto, em Morel,
criminoso e louco são apreendidos a partir de um terceiro termo: o degenerado; a
relação do sujeito com o laço social e com o que lhe acomete é abolida em pró de uma
medicalização que, ao ―realizar o crime‖ ou o ―distúrbio‖, expele o sujeito em sua
singularidade:
Em resumo, mesmo que criminoso e louco não se tornem
sinônimos com base na teoria da degenerescência, ela oferece,
com ampla margem, o suporte para a idéia de que ambos são
―desvios doentios do tipo normal da humanidade‖ e como tal
devem ser considerados muito mais sob um ponto de vista da
medicina do que da justiça. (SERPA JR 1998, p. 128)

Com efeito, mesmo após o declínio da concepção de degeneração em


psiquiatria, − a despeito de sua rearticulação por Magnan43, discípulo de Morel − o
conceito de degeneração continuou a ser utilizado no campo médico-legal até meados
do século XX. A seu lado reinou a ―regressão filosófica‖ (LACAN 1950a, p. 136) que

43
Valentin Jacques Joseph Magnan (1835-1916). Segundo Serpa Jr. (1998, p. 163), ―em Magnan a ênfase
desloca-se da ‗degenerescência‘, como um processo abrangente, insidioso, cósmico, verdadeiro espectro
do mal, para a figura concreta do degenerado, com suas características físicas e mentais peculiares, que o
distinguem dos outros seres humanos‖. Com efeito, Magnan recusa a concepção moreliana de declínio, na
degeneração, de um tipo humano ―adâmico‖ perfeito; influenciado pelo evolucionismo, ele tenderá a
entender a perfeição não como começo, mas como fim adaptativo da espécie.
36

vigorou, a partir do surgimento da criminologia lombrosiana, do conceito de ―criminoso


nato‖.

B) O conceito criminológico de ―criminoso nato‖


Em 1753, para o ―duas vezes soldado‖ Daniel Volked acrescentara-se, a seus
pensamentos sobre o ―gozo da beatitude divina‖, a idéia de matar − e, posteriormente,
se ―fazer matar‖. O arrependimento ocasionado por este processo − conta Lombroso
(1895, p. 109) − era o modo pelo qual, finalmente, Volked faria ―as pazes‖ com Deus.
Certo dia, após refeição que partilhara com duas meninas, degola-as com seu facão,
indo, logo em seguida, contar sobre como a inquietação havia, desde o momento da
ação, o abandonado. Num outro caso, o até então ―dócil e bom‖ (idem, p. 117)
Carpinteri, sendo insultado por um amigo, tornara-se ―de repente‖ feroz.
―Arrebentando-lhe a cabeça‖ −, Carpinteri iniciaria o percurso no qual, ao longo de 9
anos, assassinaria ―29 pessoas e cometeria 100 assaltos‖. Na casa de detenção de Milão,
meses antes da publicação de O homem delinqüente, um carcereiro ―tão dócil que por
ninguém era odiado‖ fora morto por um homem que sentira a ―necessidade de
assassinar alguém‖ (idem, p. 221). Em Estrasburgo, encontraram-se dois corpos. O
abade Trenk, preso anos depois, confessara os homicídios dizendo tê-los cometido ―pelo
prazer de vê-los morrer‖ (idem, p. 223). O homicida teria explicitado que, quando rapaz,
fizera o mesmo com dois meninos no bosque, os enforcando e queimando depois.
Tais casos, fartamente encontrados em O homem delinqüente trazem, uma vez
mais, como pedra angular, a imotivação. Pensados desde a equação que copula tais
ações à insensibilidade e frieza moral − características associadas, por Lombroso, à
bestialidade −, estes homicídios desempenham, naquela obra, um papel relevante. Seja
pela ausência de razões, desproporção em relação à ação impetrada ou − o que é mais
certo −, por sua incompreensibilidade − estas ações encontraram, em Lombroso, uma
chave de interpretação jamais antes tão difundida: tratava-se da teoria sobre o
―atavismo‖, vale dizer, do ressurgir de instintos e tendências primitivas atualizados em
verdadeiros ‗fósseis contemporâneos‘: os ―criminosos natos‖.
37

A chave interpretativa empreendida por aquela obra, que já havia encontrado


Gall44 e Lavater45 entre seus precursores, explode numa regressão filosófica destacada
por Lacan em seu texto sobre a criminologia de 1950a, (p. 136) rebaixamento este que
se efetiva, principalmente, por duas vias: 1) pela exclusão do sujeito, ante a objetivação
universalizante presente na construção do ―criminoso nato‖ e, 2) pela ontologização
biológica que pouco acrescenta − senão a vestimenta cientificista − à fórmula que iguala
há séculos no senso comum feiúra e maldade. Como veremos de forma célere, mesmo
que outros recursos se oferecessem a Lombroso como possibilidades de relativizar sua
chave de apreensão dos homicídios imotivados, estes foram, mormente, tomados como
insígnia da inumanidade do criminoso. Tais alternativas, portanto, naufragam ante a
iluminação que este autor tivera em relação à peça basal de sua teoria:

Em 1870, eu prosseguia há vários meses, nas prisões e nos


hospícios de Pavia, em cadáveres e em vivos, pesquisas que
visavam a fixar as diferenças substanciais entre os loucos e os
criminosos, sem chegar a um resultado: de repente, numa
triste manhã de dezembro, encontro no crânio de um malfeitor
toda uma série de anomalias atávicas [...] À vista destas
estranhas anomalias, como se tivesse surgido uma grande
planície sob um horizonte em chamas, o problema da natureza
e da origem do criminoso pareceu-me resolvido: os caracteres
dos homens primitivos e dos animais inferiores deviam
reproduzir-se em nosso tempo (LOMBROSO apud
DARMON 1989, p. 35).

Em O Homem delinqüente, ao considerar ―o criminoso ocasional, o delinqüente


louco, o louco moral e o criminoso nato‖, o criminologista italiano o faz desde uma
espiral de crueldade iniciada nos ―assassinatos‖ ocorridos entre os vegetais, insetos e
animais − passando, ainda, pelos ―selvagens‖ e crianças, seres desprovidos de
moralidade − encontrando, por fim, seu ponto de retorno no criminoso. No
caleidoscópio bestial que une crime, homicídio e selvageria, características como a
agilidade − ―superior em alguns criminosos‖ − são associadas aos símios, sendo
verdadeira ―macaquice‖ (LOMBROSO 1895, p. 51). Enquanto a epilepsia trazia a
marca de um defeito biológico − atualizado nas crises seguidas por assassinatos e
amnésia −, a ―insensibilidade afetiva‖ se manifestaria não apenas na frieza em relação

44
Franz Joseph Gall (1758-1828) fora o criador da frenologia, pretensa ―ciência‖ que, pelo formato da
cabeça do indivíduo − caroços e protuberâncias −, pretendia esquadrinhar seu caráter e detectar a
criminalidade.
45
Johan Kasper Lavater (1741-1801), criador da fisiognomonia, saber que intentava, desde a fisionomia
do indivíduo, conhecer a ‗natureza‘ de seu portador.
38

às vítimas, mas na própria indiferença com que tratam seja a dor sejam os instantes que
precedem à execução da pena capital. Assim, Lombroso relembra ―Bocarmé‖ que,
diante do apressar imposto por um carrasco, brinca: ―Não se inquiete. Sem mim não se
começa‖ (LOMBROSO 1895, p. 51).
Lado a lado a estas características comportamentais encontra-se um panteão de
traços fisionômicos. Cuidadosamente ilustrados em um Atlas anexado a seu livro
princeps, estes traços − encontrados em até 70% dos criminosos −, tornariam possível,
ao antropólogo criminal, a pronta identificação do criminoso nato. Tais descrições
abriam, com efeito, verdadeira senda de desconfianças mesmo quando da
impossibilidade em se provar, efetivamente, a autoria de um crime.
Poderia Lombroso, entretanto, no contexto em que erige seu pensamento,
relativizar a objetalização do criminoso, processo este correlato à ontologização por ele
empreendida? Ora, pinçadas no interior de o Homem criminoso, encontram-se leituras
comparativas em antropologia, nas quais o próprio autor, opondo-se ao espírito
metafísico, visa a demonstrar o caráter contingente de noções tais quais as de ―bem‖,
―mal‖ e ―justiça‖. Há, inclusive, o ensaio, da parte deste, de uma espécie de genealogia
das penas e concepções de justiça naquilo que ele reconhece como estágios da cultura
ocidental. É por este viés que Lombroso parece citar tribos, como os ―Toganis‖ (idem,
p. 88), que não reservam qualquer palavra à noção de justiça tal qual poderíamos a
entender. Mas, se ante a esta comparação mostra-se a natureza não metafísica da justiça
no espírito humano, a posição lombrosiana faz passar, por contrabando, o pensamento
de que estas sociedades são, em verdade, não apenas diferentes, mas, sim, primitivas e
inferiores: elas permitiriam ao bestial livre acesso à realização.
Mesmo perante a existência de ―bons selvagens‖ − quantificados por Lombroso
como ―poucos‖ (idem, p. 66) − o autor enxerga nestes, apenas uma maré de assassinatos
e crueldade. Deste modo, se por um lado comparações entre as diversas sociedades, − e
mesmo entre os diversos estágios destas − levam Lombroso a conceber que ―a
moralidade e a justiça nascem em grande parte do crime‖ (idem, 98), o estabelecimento
de um tipo de cultura que inibiria melhor a selvageria o leva a encontrar, no
etnocentrismo, sua posição. Ante sua iluminação ―naquela triste manhã de dezembro‖, a
possibilidade de ver, nas vicissitudes do desenvolvimento infantil junto ao contexto
social o surgimento dos conceitos de ‗certo‘, ‗errado‘ e ‗justo‘, fica em segundo plano;
embora reconheça o enlace entre infância e as vicissitudes do encontro com o outro −
sobretudo pelo viés educativo − a ênfase de suas concepções recairá sobre a faceta
39

―instintiva‖, ―inata‖, ―atávica‖. O criminoso nato, sendo incorrigível, faz parecer o


―florão do sistema positivista de tratamento do crime‖ (DARMON 1989, p. 182), o asilo
criminal, secundário em relação à criação de instituições que encerrariam, como ―abrigo
perpétuo‖ (LOMBROSO 1895, p. 86), os jovens portadores de tendências e instintos
criminosos, mesmo antes do crime.
Estas posições, apresentadas de modo acachapante no Primeiro Congresso
Mundial de Antropologia Criminal ganhariam corpo rapidamente, suscitando debates
por todo globo. Segundo Darmon (1989, p. 67) Inglaterra e Estados Unidos acolheriam
friamente tais noções; enquanto na Espanha o ―criminoso nato‖ encontra resistência, na
Rússia este teria se deparado com opiniões divididas; na Alemanha buscava-se divorciar
o pensamento antropológico e Lombroso; na Itália e na França, este autor e seu conceito
arrebatariam grande quantidade de seguidores. Junto a Lombroso, no país de origem de
tais concepções, Garofalo propunha, à luz das ‗novas‘ concepções, reformar as bases
penais, transmutando as concepções metafísicas em alicerces experimentais. Em sua
posição explicita-se o salto, por nós já destacado, de uma concepção sanitária da
penalogia que ganhava cada vez mais terreno ao longo de século XX: contrariamente ao
direito clássico, calcado na idéia de ―livre arbítrio‖, um crime deveria ser mais punível
na medida em que uma paixão ou instinto escapa a seu autor, características que o
tornavam mais perigoso para a sociedade. A pena deveria, logo, ser calculada não em
função da responsabilidade do criminoso, mas, sim, em função da ―temibilidade‖ − da
―quantidade de mal que podemos esperar de um criminoso‖ (GAROFALO apud
DARMON 1989, p. 143).
Tomar a moral como medida para a ação penal implicava punir menos aqueles
que, sendo incapazes de temer e entender o castigo, eram, por isso mesmo, os mais
―perigosos‖. Os loucos não partilhavam, assim, da ameaça de punição como freio para
deter sua ação − como quisera o direito penal utilitarista −, nem tampouco detinham os
meios morais para colocar em reserva sua motivação − ou imotivação − delirante. Era
eminente a necessidade de prover a esta parcela da população um lugar, não para
punição − visto que eram inimputáveis −, mas para obterem tratamento e assim se
preservar a ordem social. Logo, sob o cadáver da tradição e o seqüestro do louco
infrator, emergia a ―moderna ciência penal‖ e o manicômio judiciário como um de seus
braços.
40

Com efeito, no esteio das concepções biológico-morais como as de


―degeneração‖ e de ―instinto criminoso‖, operadores jurídicos − validados em diversos
países, dentre os quais o Brasil46 − estabelecem os alicerces das respostas, mormente
dispostas hoje pela cultura, aos homicídios imotivados. Também nesta senda, a
concepção sanitária da penalogia, através de noções como ―temibilidade‖,
―perigosidade‖ ou ―periculosidade47‖, engendra dispositivos técnico-científicos como
―exames criminológicos‖ e ―perícias‖, aparelhos que buscam controlar e prever a
possibilidade de que a transgressão, presente como virtualidade, se atualize na realidade.
No que tange às passagens ao ato realizadas na psicose, a imotivação por elas
explicitadas são tomadas como insígnia de perigo, daí a resposta princeps a estes casos:
internação em manicômio judiciário. Mesmo que as forças por detrás de tais ações
sejam pensadas, contemporaneamente, em termos bioquímicos ou comportamentais, a
questão ética, foracluída pela dimensão do discurso científico, retorna no real como
ontologizações pouco sofisticadas das questões fundamentais referentes ao ato, sempre
singular, do sujeito.

II) Críticas às teorias instintivas sobre o crime


Já no fim do século XIX, todavia, desferem-se duros golpes ao pensamento
lombrosiano: a partir do Terceiro Congresso Mundial de Antropologia Criminal, a
noção de criminoso nato − e seu parentesco com o louco − foram postos em xeque por
diversas áreas e orientações que destacavam − como fizera de forma canhestra
Lacassagne48 −, a preponderância do meio sobre o indivíduo infrator. É deste autor o
dito segundo o qual ―cada sociedade tem o criminoso que merece‖ (LACASSAGNE
apud TENDLARZ 1999, p. 118); assim como as metáforas do criminoso como
46
Cf. em PERES, e FILHO (2002), A doença mental no direito penal brasileiro: inimputabilidade,
irresponsabilidade, periculosidade e medida de segurança.
47
A periculosidade se articula na lógica do código penal brasileiro à noção de medida de segurança. Por
esta última entende-se não uma punição, visto que o louco infrator não é imputável − ou seja, não é
considerado ―causa‖ de seu ato −, mas, sim, um tratamento que visa coibir este tipo de resposta. Este
―tratamento‖, em tese, dura de um a três anos, sendo possível sua suspensão após um exame de ―cessação
de periculosidade‖. As ―medidas‖ inovam em relação à inimputabilidade do louco no sentido de que, com
ela, faz-se possível estender o domínio penal àquele que, até então, escapava à legislação. Ainda que estas
heranças do positivismo em direito e psiquiatria sejam inegáveis, a avaliação da imputabilidade hoje no
Brasil é feita a partir de um critério misto: é não apenas biológico − onde a ―doença mental‖ sempre
implicaria inimputabilidade −, nem somente psicológico − onde é o estado psíquico do autor,
independente da doença, aquilo que permite averiguar a imputabilidade. Ele é biopsicológico, vale dizer,
para que um infrator possa ser considerado imputável é preciso que este seja capaz não apenas de
entender a antijuridicidade de seu ato, mas, também, de, naquele instante, poder ―se determinar segundo
este entendimento‖.
48
Lacassagne (1843-1924), um dos fundadores da antropologia criminal francesa, opunha-se a Lombroso
destacando as influências do meio social sobre o ‗micróbio‘ que era o criminoso.
41

―micróbio‖ sendo certas condições sociais seu ―meio de cultura‖ (HARRIS 1993, 112).
Tais críticas, porém, não anularam o princípio, apenas exagerado pela noção de instinto,
de que o homicídio seria a realização de uma virtualidade transgressiva e má, inerente à
natureza do autor. ‗Fóssil vivo‘, ―degenerado‖ ou ―micróbio‖, este pensamento
ontologista até hoje faz valer suas marcas na forma como a cultura responde seja aos
crimes comuns seja aos assassinatos imotivados.
Ao contrário do que a escola lombrosiana dispunha como seu princípio basal,
Gabriel Tarde reconhecia, nas relações do indivíduo com o entorno social um veto
teórico consistente em relação à atribuição de traços fisionômicos ou antropológicos
próprios ao criminoso. Boa parte de sua obra dedica-se, assim, ao aporte crítico aos
textos, estatísticas e ‗dados‘ ‗atavistas‘, movimento que culminaria na desconstrução e
problematização da noção de ―criminoso nato‖. Seria, segundo Tarde, a ―similitude‖ −
pertencimento e influência recíproca em relação ao corpo social − e a ―identidade
pessoal‖ − ―acumulações‖ e ―conservações‖ de certos hábitos e experiências (TARDE
1890a , p. 73) − que condicionam as relações entre o indivíduo e seu entorno. Tais
parâmetros deveriam ser tomados como base para pensar as tensões que engendram o
crime e que permitiam buscar uma noção de responsabilidade ―não metafísica‖.

Uma condição indispensável, então, para que o sentimento da


responsabilidade moral e penal desperte é que o autor e a vítima
de um fato sejam e se sintam mais ou menos compatriotas
sociais, que eles apresentem um número suficiente de
semelhanças, de origem social, isto é, imitativa49 (idem, p. 71).

A) Lacan: com e contra Tarde


Tal esforço − que relativizava fatores biológicos em proveito dos sociais e
psíquicos − é pensado, por Lacan como um ―esquecimento injusto‖ (LACAN 1950a, p.
140): Lacan concorda com este sociólogo a respeito da preponderância do social na
apreensão do crime: ―nem o crime nem o criminoso são objetos que se possam conceber
fora de sua referência sociológica‖ (idem, p. 128). Porém, ao contrário do que se dará
com Tarde, sua concepção do laço social não é pensada em termos de ―similitude

49
Para Tarde as ―leis de imitação‖ − a ―força do exemplo‖ e a ‗influência de um espírito sobre
outro‘ − eram o mecanismo-chave para apreender a passagem do individual ao social e vice
versa.
42

social‖ e ―homogeneidade‖: ―se‖, como recupera Lacan do apóstolo Paulo, ―a lei é que
faz o pecado‖ (idem, p. 128), a civilização apenas pode ser pensada, em sua estrutura, a
partir de ―contradições‖ e ―tensões‖ que impliquem esta dialética.

―Debate‖ semelhante ocorreria, ainda, em relação à questão do lugar e função da


pena. Lacan se aproxima de Tarde quando diz, em 19501, que ―à evolução do sentido do
castigo corresponde, com efeito, uma evolução paralela da formação da prova do crime‖
(idem, p. 139), postura que corresponde ao estudo empreendido por Tarde em seu livro
La philosophie pénale (1890b). No capítulo VIII desta obra, Tarde expusera que ―há um
laço (...) para cada uma das fases da evolução judiciária, entre a natureza da prova (...) e
o caráter que a pena tende a revestir‖ (idem, p. 130); ter-se-ia, nesta evolução, quatro
fases: aos ―ordálios‖, como prova, corresponderia a pena ―expiatória‖; à ―tortura‖
corresponderiam as penas ―intimidantes e exemplares‖; à ―consciência popular e ao
júri‖ ligava-se a penalidade ―correcional‖; e, por fim, à ―ciência dogmatizada‖ e a
―expertise‖, corresponderiam as penas ditas ―sanitárias‖: ―Não é esta penalidade, antes
de tudo sanitária, quer se trate de eliminar do organismo social elementos
inassimiláveis, os corpos estranhos, quer se trate de curar a desordem mental e moral
dos doentes qualificados de malfeitores?‖ (idem, p. 130). É desde esta evolução que
Lacan questiona o sanitarismo:

Mas se tal concepção da pena foi trazida por um movimento


humanitário cujos fundamentos não há como contestar, os
progressos da época posterior a Tarde nos mostraram seus
perigos: a saber, a desumanização que ela implica para o
condenado.
Dizemos que ela leva em última instância, para obter a
regeneração de Caim, a pôr no campo de concentração
exatamente um quarto da humanidade. Que se tenha a
bondade de reconhecer, nesta imagem em que encarnamos
nosso pensamento, a forma utópica de uma tendência cujas
metamorfoses não temos a pretensão de prever, já que sua
realização pressuporia o estabelecimento do Império universal
(idem, p. 130).

Com efeito, se de certa forma Lacan rende homenagens a Gabriel Tarde em seu
texto sobre a criminologia tomando-o em alguns pontos como seu interlocutor, por
outro lado, como psicanalista ele reconhece a divergência crucial entre a punição e a
ação do analista. Tarde atribui à punição um lugar próximo ao da noção, para ele
central, de imitação: a pena encontrar-se-ia entre o ―exemplo‖ − intimidação utilitarista
43

− e a dimensão do ―dever‖. As noções de ―bem‖ e ―mal‖ ganham, aqui, uma feição


―sensível‖ − ou seja, atrelam-se ―aos gozos da simpatia e as penas da antipatia social‖
(TARDE 1890a, p. 79) − e ao desejo ―propriamente dito‖ de ―desenvolver os deveres‖
(idem, p. 80).
Para Lacan, a punição − que, quando aplicada, não deve sê-la pelo analista −
importa não como exemplo, mas como retorno, ao criminoso: 1) do sentido de sua ação
− posto que cada sociedade exprime, de forma particular, a relação entre ―lei e castigo‖
(LACAN 1950a, p. 128); e, fundamentalmente 2) da importância de elaboração de uma
resposta, desde um ―assentimento subjetivo‖ (idem, p. 128) ou ―assunção lógica‖, vale
dizer, de uma subjetivação da ação como intrínseca à singularidade do sujeito em suas
tensões com as contradições inerentes ao laço social. Portanto, quando Lacan diz ―a
responsabilidade, isto é, o castigo‖ (idem, p. 138) não é pela violência, exemplo ou
segregação que ele une estes termos; é, antes, pela destituição do caráter de controle ou
policial do castigo e em função de sua conjunção à resposta do sujeito que a punição
ganha seu valor; daí, também, Lacan ressaltar, no que tange a posição do criminoso ante
sua ação, inclusive o ―direito à mentira‖ (LACAN 1950b, p. 132), a apropriação, para
além do ou certo ou errado, pela palavra, da posição enunciativa do infrator.
Logo, a intervenção do analista deve alojar um espaço para a tomada de posição
ante a transgressão, transmutada não em termos naturalistas, mas desdobrada em sua
tensão com o ―universal da linguagem‖ (LACAN 1950a, p. 129). De fato, é desde esta
posição que o criminoso pode, alojando o efeito sujeito − distinto daquele do indivíduo
−, elaborar uma resposta a sua ação e ao castigo; nem ontologização nem psicologismo,
mesmo ―nos casos em que a punição limita-se a atingir o indivíduo fautor do crime, não
é na mesma função nem, se quisermos, na mesma imagem dele mesmo que ele é tido
como responsável‖ (idem, p. 128). Para ilustrar esta asserção Lacan lança mão de contra
exemplos:

Digamos que se, primitivamente, é a sociedade em seu


conjunto (sempre fechado, em princípio, como realçaram os
etnólogos) que é considerada afetada, pelo fato de que um de
seus membros deva ser restabelecido de um desequilíbrio,
esse membro é tão pouco responsável como indivíduo que,
muitas vezes, a lei exige satisfações à custa ou bem de um dos
defensores ou bem da coletividade de um "in-group" que o
encobre.
Ocorre até que a sociedade se considere tão alterada em sua
estrutura que recorre a processos de exclusão do mal sob a
forma de um bode expiatório, ou então de regeneração através
44

de um recurso externo. Responsabilidade coletiva ou mística


da qual nossos costumes trazem os vestígios, quando não tenta
vir novamente à luz por meios invertidos (LACAN 1950a, p.
128).

É, portanto, desde a aposta na resposta do sujeito àquilo que o acossa que nos
contrapomos, com Lacan, à ―objetificação‖ e a ―desumanização do criminoso‖
destacada por Tarde e retomada por Lacan nos anos 50: a ―concepção sanitária da
penalogia‖.

B) Nossa posição ante a concepção sanitária da penalogia


Como vimos, Lacan, ao evocar Tarde, pontuara a concomitância entre as
evoluções do ―sentido do castigo‖ e a ―formação da prova do crime‖; o que o conecta à
crítica de Tarde ao sanitarismo: ―Não é esta penalidade, antes de tudo sanitária, quer se
trate de eliminar do organismo social elementos inassimiláveis, os corpos estranhos,
quer se trate de curar a desordem mental e moral de doentes qualificados de
malfeitores?‖ (TARDE 1890b, p. 130).
Na abertura do primeiro capítulo partimos de uma definição, implementada por
Lacan nos anos 50, da ―concepção sanitária da penalogia‖, medicalização que tomaria
como ―resolvidas as relações do direito com a violência e o poder de uma polícia
universal‖ (LACAN 1950a, p. 139). De acordo com Lacan: ―empenhado como está no
movimento acelerado da produção‖ (idem, p. 138), ―o grupo que faz as leis‖ recorre à
análise psiquiátrica, ―científica‖, do criminoso de forma a tentar apaziguar o mal-estar
engendrado pelas tensões constituintes do laço social e pelo desconforto ao punir.
Neste processo em que se ―realiza o crime‖ e se ―desumaniza o criminoso‖, a
objetivação do transgressor aboliria, de um lado, a ―significação expiatória do castigo‖
(idem, p. 138) − retorno ao infrator do sentido de sua ação em relação ao contexto
cultural − e, de outro, implodiria a noção de responsabilidade − instaurando uma
―polícia universal‖, científica, que visa à exploração social e à prevenção do crime à
custa da desumanização do infrator.
No esteio do movimento em que a ciência fornece à profilaxia social,
hipertrofiada pela ―máquina louca do capitalismo‖ (TENDLARZ 2009, p. 15), uma
efetividade jamais vista outrora, processos de segregação como este expandem-se, como
diz Lacan, em ―escala planetária‖. Se já em seus textos sobre a criminologia ele
chamara a atenção para a proliferação de ―campos de concentração‖ − ou seja, de
45

extermínio da singularidade − em Petit discours aux psychiatres de Sainte-


Anne (LACAN 1967), Lacan tornará a pontuar tal questão atrelando esta expansão às
transformações instauradas pela ciência no tecido social, transformações a partir da qual

... os avanços da civilização universal vão se traduzir, não


apenas por um certo mal-estar como o senhor Freud já se
apercebeu, mas por uma prática que nós veremos se tornar
mais e mais estendida (...): a segregação. Os senhores
nazistas, vocês poderão ter um reconhecimento considerável
disso (deste processo) neles, tiveram precursores e tiveram
imediatamente imitadores um pouco mais ao Leste para isto
que é concentrar pessoas − é o custo desta universalização
enquanto que ela apenas resulta do progresso do sujeito da
ciência (LACAN 1967).

Estes avanços do ―império universal‖, são atrelados, por Lacan, ao menos desde
1950, à proliferação do capital, ao ―movimento acelerado da produção‖ e ao que ele
chamou em 1963 de ―mercado comum‖ (LACAN 1963-4, p. 164). Mas como a
concepção sanitária da penalogia, roldana entre ciência e capitalismo, move esta
máquina de segregação da singularidade, desdobrada, inclusive, nos campo de
concentração para loucos pobres que são os HCTPs, forma princeps de resposta aos
homicídios psicóticos?
Ora, se estamos, como pontuara Miller, na era do ―homem sem qualidades‖, em
que tornamo-nos ―unidade contável e comparável‖, reduzidos sob ―a ação do
significante-mestre sob sua forma mais pura, mais estúpida: o número 1‖ (MILLER
2004a, p. 2), é pela inclusão maciça nesta formalização que encontrasse o ponto de
interseção entre capitalismo e ciência. Como pontuara Oliveira (2004, p. 21), ―é aqui
que se mostra, de modo mais preciso, a total compatibilidade entre ciência e
capitalismo: ambos fazem contas‖; se ―a mais-valia é contabilizada pelo capital‖, este
discurso ―reduz tudo a valores. O próprio trabalhador torna-se, aí, apenas unidade de
valor‖ (idem, p. 21). Como a ciência, o discurso capitalista, co-responsável por esta
segregação da qual o sanitarismo em penalogia é uma das faces mais explícitas, opera
pela Verwerfung, pela rejeição do sujeito:

... o que distingue o discurso do capitalista é isto: a Verwerfung,


a expulsão, o rechaço fora de todos os campos do simbólico,
com o que eu já disse que há de conseqüência. O rechaço de
quê? Da castração (LACAN 1971-2, lição de 6 de janeiro).
46

Vê-se, portanto, que a segregação sanitarista subjacente à desumanização do


criminoso, atualmente em franca expansão, tem raízes neste movimento mais amplo na
cena da cultura, em que aparta-se a singularidade por um lado pela universalização e
redução do sujeito ao contável, e, de outro, pela proliferação do mercado de gozo,
alienando o sujeito exclusivamente como consumidor de gadgets:

O Discurso do Capitalista não é regulador, ele é segregador. A


única via de tratar as diferenças em nossa sociedade científica
capitalista é a segregação determinada pelo mercado: os que
tem ou não acesso aos produtos da ciência. Trata-se, portanto,
de um Discurso que não forma propriamente laço social mas
segrega: daí a proliferação dos sem: terra, teto, emprego,
comida, etc. (QUINET 2002, p. 36).

Nesta trilha, autores como Wacquant sublinham as iniciativas de Charles Murray


e Richard Herrnstein50 − em The Bell Curve: Intelligence and class structure in
american life −; a teoria das Broken Windows, de James Wilson e George Kelling51; e a
política de ―tolerância zero‖52 de William Bratton como avatares desta nova tecnologia
da segregação.
No Brasil, além dos quase centenários manicômios judiciários por nós já
apontados, iniciativas como o mapeamentos cerebral de jovens infratores em Porto
Alegre – considerados juridicamente inimputáveis – reiteram este processo segregatório
em que paradoxalmente – posto que, em teoria, não se trataria nem de crime nem de
criminoso – objetaliza-se o criminoso realizando-se o crime. Neste projeto, 50
adolescentes passarão pelo crivo da ciência de modo a responder ―se o que determina o
comportamento de um menor infrator é sua história de vida e se há algo físico no
cérebro levando o à agressividade‖ (GARCIA 2007). A posição dos ―cientistas‖ é a de
50
Em ―The Bell Curve‖, Murray e Herrnstein propõem que fenômenos tão díspares como o crime, ―quem
se torna mendigo ou milionário‖ e ―se uma mãe educa convenientemente seus filhos‖ (WACQUANT
2001) são determinados exclusivamente pelo QI, o coeficiente de inteligência. Instaura-se, nesta
concepção, uma ―essência‖ psico-biológica segundo a qual se distribuem os indivíduos e legitima-se a
segregação.
51
Como outra vertente teórica e sofrivelmente armada do segregacionismo estão as doutrinas de
―tolerância zero‖, baseadas nas Broken Windows Theories. As doutrinas das janelas quebradas apregoam
uma evolução necessária entre pequenos comportamentos desviantes e grandes crimes, como o
homicídio, evolução que se daria desde comportamentos pouco problemáticos como a quebra de uma
janela de um prédio abandonado em um bairro pobre. Esta primeira depredação, ao manter vivo o espírito
de impunidade e desordem, inspiraria uma espiral crescente de transgressões. Daí a importância das
forças de ordem e defesa social cada vez mais próximas à população − por exemplo, em rondas feitas à pé
− daí, também, o incentivo à delação, que faz cair por terra a diferença entre polícia e população: todos
seriam vigias.
52
As políticas de tolerância zero, em sua abordagem ao transgressor, dirigem suas armas contra os
pequenos desvios das classes pobres, reiterando sua criminalização e promovendo um falso sentimento de
segurança.
47

que um ambiente de desenvolvimento inadequado pode mesmo, literalmente, ―fabricar


um psicopata‖.

Outro avatar deste movimento segregacionista em nosso país é a Unidade


Experimental de Saúde, localizada na Vila Mariana, em São Paulo. Considerada como
um manicômio judiciário para adolescentes em conflito com a lei, esta instituição
destina-se ―a autores de atos infracionais que cumpriram medida socioeducativa, e
tiveram sua medida revertida em protetiva, já que apresentam diagnóstico de transtorno
de personalidade antissocial, e/ou alta periculosidade‖ (MARTINS 2009). Através de
manobras oficiosas, que transgridem mesmo as especificações legais para a internação –
como a necessidade de laudos médicos que atestam a internação como medida
extraordinária – este novo dispositivo da fundação Casa de São Paulo recebe jovens
com transtornos mentais sendo que sua ―estadia‖ nesta instituição, não menos que
aquela em manicômios judiciários, se faz por tempo indeterminado. Mas é chegado o
momento de posicionarmo-nos, com Lacan, perante este sanitarismo: de que forma a
psicanálise pode empreender uma resposta a este movimento?
Um encaminhamento a esta questão passa por precisarmos um pouco mais esta
segregação inerente a concepção sanitária da penalogia, que faz da ciência instrumento
de poder para ―o grupo que faz as leis‖ (LACAN 1950a, p. 139). Isto porque,
paradoxalmente, em seu seminário sobre O avesso da psicanálise (1969-70), dirá Lacan
que ―na sociedade humana‖ – sendo ―humano‖, aqui, referido não a uma natureza ou
essência, mas como húmus (resto da operação simbólica) – ―tudo que existe se baseia na
segregação‖ (idem, p. 107):

Nenhuma outra fraternidade é concebível, não tem o menor


fundamento, como acabo de dizer, o menor fundamento
científico, se não é por estarmos isolados juntos, isolados do
resto. Trata-se de captar sua função [do resto], e de saber por que
é assim. Mas, enfim, salta aos olhos que é assim, e fingir que isto
não é verdade deve ocasionar forçosamente alguns
inconvenientes. (LACAN 1969-70, p. 107).

A função do resto, que encontra, naquele seminário, conjugação no interior das


estruturas de discurso – histérico, do mestre, universitário e analítico – mostra-se, pois,
para Lacan, uma função tão inelutável quanto operante.
48

Para Lacan, será sua conjugação no laço social que fará do resto, o objeto ―a‖ –
não significantizável, não redutível à bateria significante – pivô dos diferentes
discursos. Isto que escapa, os ―corpos estranhos‖, os ―elementos inassimiláveis‖ pelo
―organismo social‖, como pontuara Tarde (1890b, p. 130), não guarda ressonâncias com
o que, retornando do inconsciente, Freud chamou, também, pelo mesmo nome53?
Se, como reitera Lacan, há, entre capitalismo e ciência, ―rechaço de campos do
simbólico‖ (LACAN 1971-2), que lugar o sujeito da enunciação e o resto da operação
simbólica terão que não, respectivamente, a ontologização pela captura da enunciação
no enunciado e o lugar do inassimilável operando não como causa, mas, simplesmente,
via gadgets, como empuxo ao gozo?
A segregação a que nos referimos, logo, articula-se desconhecendo a
irredutibilidade do sujeito da enunciação − e do gozo, no caso das psicoses − ao campo
do enunciado, numa operação que busca desconhecer, de forma radical o heterogêneo
ao dito. Ora, o sujeito, ao ser marcado por um significante, caindo sobre uma
propriedade ou categoria, não o é sem que algo que ―não cessa de não se escrever‖
(LACAN 1972-3, p. 198) deixe de apontar para os limites intrínsecos ao simbólico. Dito
de outro modo, a alienação a um significante implica, como dirá Lacan em seu
seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, de 1964, numa
perda, reiterada pelo sujeito do significante na operação concomitante à alienação, qual
seja, a separação.
Entendido desta forma, o campo da crítica à segregação empreendida por Lacan
seja em seu Petit discours aux psychiatres de Sainte-Anne (1967) como em seu Funções
da psicanálise em criminologia (1950a) ganha ainda uma conotação mais radical;
reclamando a articulação entre técnica e ética, ele estende-se inclusive aos analistas. Em
seu Petit discours, Lacan pondera que mesmo estes − confrontados com a relação do
sujeito com o resto em suas análises e em seu manejo cotidiano − podem, com o tempo,
―esquecer esta experiência que eu chamei precária‖ (LACAN 1967).
Entrincheirados em ―sociedades científicas‖, os psicanalistas podem conservar
―em sua hierarquia algo que é da mesma ordem desta distância (...) em relação ao
objeto, que resulta na impossibilidade do psiquiatra em abordar a realidade do louco
desde um novo ponto de vista‖ (idem).

53
Em Estudos sobre a histeria (1893), Freud traçara uma analogia entre os pensamentos inconscientes,
que retornam sobre o sujeito, e ―corpo estranho‖, marcando, com tal comparação, a heterogeneidade do
aparelho psíquico.
49

Reencontramos, neste ponto, a importância de apreender, em acepção mais justa,


a crítica feita por Lacan a desumanização e aos efeitos de segregação: trata-se das
entificações que buscam reduzir, pela inclusão, o sujeito a uma ―unidade contável e
comparável‖ (MILLER 2004, p. 2), que fomentam práticas de segregação, controle e
defesa social, e foracluem o ―inassimilável‖ e a ―precariedade do simbólico‖ – um dos
nomes da castração. Esta tese, logo, busca problematizar as respostas aos homicídios
imotivados, mas não toma os ‗psicanalistas‘ como panacéia para o problema. Afinal,
não caracteriza a psicanálise justamente a recusa à pretensão de deter ―a solução‖
(LACAN 1969-70, p. 69)?
Tal ressalva ganha seu valor a medida que muitos analistas – pós freudianos e
mesmo contemporâneos − enveredaram por uma via de submissão da psicanálise aos
efeitos de segregação da concepção sanitária da penalogia. Na definição de Lacan, como
vimos, esta é entendida como a operação segundo a qual ―o grupo que faz a lei, não
seguro dos fundamentos de seu poder‖ busca a solução para o mal-estar numa
―formulação científica do problema‖ em termos de ―análise psiquiátrica do criminoso‖ e
―medidas de prevenção contra o crime e de proteção contra sua recidiva‖ (LACAN
1950a, p. 139).
Partindo desta definição, resultam problemáticas posturas como, por exemplo, a
de Marie Bonaparte que, em sua célebre análise do caso de Madame Lefebvre, em nome
da ―profilaxia social‖, pedira a construção de ―asilos-prisão‖ para melhor prevenção e
contenção de loucos homicidas (BONAPARTE 1927, p. 108). Mesmo um analista da
envergadura de Franz Alexander dedicou, ao menos em parte, seu livro o Criminoso e
seus juízes (ALEXANDER e STAUB 1934), à tarefa de ―compreender melhor o
criminoso‖ em nome da ―defesa dos interesses da sociedade‖, de forma a ―assegurar
uma aplicação mais justa da lei‖ (idem, p. 12-13), alojando-se na ante-sala do juiz.
Que pensar, ainda, dos analistas contemporâneos que, numa queixosa crítica à
contemporaneidade, apelam para o recrudescimento das leis positivas como forma de
restaurar, para o sujeito, um campo de referências simbólicas à autoridade, haja vista
que estas estariam ‗em franca decadência‘? É bem certo que esta estratégia – que busca
o endurecimento e universalização das leis positivas, confundidas com as leis
simbólicas – é ética, política e epistemologicamente questionável. Esta faceta das
relações entre psicanálise e justiça, certamente danosa, se desdobra em uma série de
conseqüências problemáticas para ambos os campos; para isto nos chama a atenção
Dzu, segundo a qual:
50

Direito de mais mata o direito; por sua universalização, pela


multiplicação infinita de códigos, ele termina por servir a uma
espécie inversa de direito, aquela do direito ao gozo: indeniza-se
ao infinito, evita-se engajar numa responsabilidade sólida, criam-
se comitês de ética, e a carga de reflexão sobre a responsabilidade
recai sob uma instância de vigilância exterior (DZU, 2001, p. 27).

Perante este desafio, a tese que aqui encontra sua manifestação é a de que outros
usos da psicanálise, que não incorram numa redução da psicanálise ao sanitarismo em
penalogia, são possíveis. Não seria esta a senda aberta por Lacan, com sua crítica, em
1950, ao retrocesso que é a entificação do sujeito no discurso criminológico?
Ainda que ocorra a objetivação e diluição da singularidade do infrator pelo
processo de universalização científico, a aposta lacaniana em 1950 será bastante clara: é
preciso haver, na ação psicanalítica neste campo, ―a conciliação necessária entre os
direitos do indivíduo‖ e ―os progressos abertos pela ciência para nossa manobra
psicológica do homem‖ (LACAN 1950b, p. 130).
Não importa, pois, à psicanálise, combater a ―desumanização‖ através de um
retorno ao humanismo. Dito de outro modo, se o contexto em que se articula o texto
sobre a criminologia é aquele em que a linguagem é explorada por Lacan em sua
potencialidade semântica − numa maior ênfase ao registro imaginário – desde aquele
texto não será uma visão fechada do falante, mas, sim, a pluralidade dos sentidos
possíveis sua chave interpretativa das relações com a alteridade.
Aos analistas não resta, pois, outra via que não os ―progressos abertos pela
ciência‖, posto que ―o sujeito sobre o qual opera a psicanálise é o sujeito da ciência‖
(LACAN 1966a, p. 873); sua práxis é partícipe do corte cartesiano a qualquer
―referência humanista‖ (idem, p. 871) ou ‗ontológica‘ − que buscam alojar uma
‗natureza humana‘ em contraposição à existência pontual e evanescente que é aquela do
sujeito. A referência à linguagem, bastante precoce na obra de Lacan 54 − e já presente
em seus textos de 1950 sobre a criminologia − o levam a tomar, como seu ponto de
partida, a tese que advoga o sujeito da linguagem e, por conseguinte, a ―inexistência de
instintos criminosos‖ (LACAN 1950a, p. 148).

54
Como vimos em Psicose e linguagem na obra de Jacques Lacan: semântica e estrutura (COSTA 2007)
as referências às ―relações de compreensão‖ jaspersianas, foram apreendidas, por Lacan, desde a dupla
chave da sintaxe que são as relações sociais e a dimensão pulsional, porta aberta ao freudismo.
51

A dimensão da ―desumanização‖, a qual Lacan se refere em sua crítica ao


sanitarismo em penalogia, destina-se, assim, ao processo de abolição daquilo do sujeito
que, como resto, não entra no processo de universalização da linguagem, que o
particulariza e singulariza: sua relação com o real pulsional. Dito isto, no caso do aporte
psicanalítico lacaniano à questão ao sanitarismo em penalogia, encontramos, de pronto,
duas linhas de intervenção: 1) pelas contribuições da psicanálise ao debate sociológico
sobre o crime; e, 2) por sua operação, quando dirige-se a ele uma demanda, em relação
ao criminoso.

No primeiro grupo de fatores, Lacan dirá que ―nem o crime nem o criminoso são
objetos que se possam conceber fora de sua referência sociológica‖ (LACAN 1950a, p.
128). Todavia, se ele instaura a sociologia como discurso do mestre − na tarefa de
apreender como as ‗coisas andam‘ no corpo social − ele não deixará de instalar um
avesso para este discurso: o discurso psicanalítico. Este discurso identifica na incidência
da linguagem sobre o falante e na lógica binária do registro imaginário − que confronta
o sujeito a situações em que ele é levado a escolher entre ―ou eu ou o outro‖ (LACAN
1948) − ―tensões relacionais basais‖ que operam como se ―o mal estar da civilização
desnudasse a própria articulação da cultura com a natureza‖ (LACAN 1950a, p. 129).
Retomando Totem e tabu (FREUD 1913), Lacan proporá − não como quer o
sanitarismo, que ata crime e ‗desumano‘ − que ―com o crime primordial‖ − assassinato
do Pai − ―começava o homem‖ (LACAN 1950a, p. 132). São estas tensões dialéticas
que, varridas pela ―assimilação alienante‖ (idem, p. 146) inerente ao discurso científico
− em sua concomitância com os imperativos advindos das forças de produção −
retornam, para o corpo social, em sua potência criminogênica:

Aqui, o psicanalista pode apontar ao sociólogo as funções


criminogênicas próprias de uma sociedade que, exigindo uma
integração vertical extremamente complexa e elevada da
colaboração social, necessária a sua produção, propõe aos
sujeitos, aos que ele se dedica, ideais individuais que tendem a
se reduzir a um plano de assimilação cada vez mais
horizontal. (...) Essa fórmula designa um processo cujo
aspecto dialético podemos exprimir sucintamente, observando
que, numa civilização em que o ideal individualista foi alçado
a um grau de afirmação até então desconhecido, os indivíduos
descobrem-se tendendo para um estado em que pensam,
sentem, fazem e amam exatamente as mesmas coisas nas
mesmas horas, em porções do espaço estritamente
equivalentes (idem, p. 146).
52

No segundo grupo de fatores, a ação da psicanálise em relação ao criminoso,


encontramos a expressão, destacada por Lacan em 1950, de ―mola da transferência‖: é
pela transferência, relação em que a palavra, o sentido e o pulsional se enlaçam à
alteridade, que se tem ―acesso ao mundo imaginário do criminoso, que pode ser para
ele‖ − e não para as instâncias que demandam ações punitivas e de controle à
psicanálise − ―a porta aberta para o real‖ (LACAN 1950a, p. 137). Baseando-se na
hipótese do inconsciente − e tendo como seus limites o ponto em que ―começa a ação
policial‖ (LACAN 1950b, p. 131) − a psicanálise pode operar de forma a possibilitar o
encontro, sempre singular do falante, com a verdade e o real de seu sofrimento: ―A
verdade a que a psicanálise pode conduzir o criminoso não pode ser desvinculada da
base da experiência que a constitui, e essa base é a mesma que define o caráter sagrado
da ação médica −, ou seja, o respeito pelo sofrimento do homem‖ (idem, p. 131). Esta
posição, assim pensamos, encontra seu paradigma já na postura freudiana em relação à
criminologia.

C) Com Freud: o paradigmático caso Halsmann


Muito cedo em sua obra, em A psicanálise e a determinação dos fatos nos
processos jurídicos (FREUD 1906), Freud, mediante uma demanda a ele endereçada,
pronuncia-se perante uma platéia de juristas a propósito do uso da associação-livre
como forma de induzir o criminoso a se ‗auto-trair‘. Método semelhante, inspirado nas
técnicas associativas de Jung, há pouco começara a ser testado. Perante tal questão,
Freud sublinhara a heterogeneidade entre a experiência psicanalítica e as técnicas
interrogativas: ao contrário do paciente, para quem a palavra encontrava-se ao lado da
―cura‖, ao criminoso pouco interessava o enlace ao inquisidor. De outro lado, diz Freud,
―Em suas investigações os senhores apenas necessitam obter uma convicção objetiva, ao
passo que nossa terapia exige que o paciente também adquira essa mesma convicção‖
(idem, p. 102).
Ora, é justamente desde a dimensão subjetiva que advinha, para a formação de
fatos jurídicos concretos, uma dificuldade quase intransponível: a realidade psíquica não
coincide com a realidade material. Dito em outras palavras, a dimensão psíquica estava
estruturada em torno do que Freud havia chamado, em seu Projeto para uma psicologia
científica (1895a), de próton pseudos, a ‗mentira primordial‘: o aparelho psíquico
desvela suas leis próprias e se afirma como caldeira desejante da realidade, e não como
reprodução da realidade concreta.
53

Lacan, ao debruçar-se sobre a questão a partir da lógica da articulação


significante, tomará posição semelhante: ―ao nível do inconsciente o sujeito mente. E
essa mentira é sua maneira de dizer a respeito da verdade‖ (LACAN 1959-60, p. 94). Na
lógica concernente à realidade psíquica, trata-se não de uma univocidade − demonstrada
em proposições como ―ou preto ou não preto‖, ou ―a‖ ou não ―a‖ − mas de um
verdadeiro ‗gradiente de cinzas‘. É o célebre exemplo de Lacan: quando se diz que o
―obsoleto é obsoleto‖ (LACAN 1964, p. 199) − ou que ―guerra é guerra‖ − o primeiro
termo não tem a mesma acepção do segundo.
É desde a equivocidade do psiquismo em comparação com a realidade material
que Freud destaca uma dimensão da culpa distinta da culpa dita ‗objetiva‘, obtida seja
pela confrontação das hipóteses ao concreto, seja, ainda, pela análise da expertise em
termos de ou presença ou ausência de uma afecção mental no momento de um crime. O
que a clínica mostrara a Freud é que em casos de melancolia ou neurose obsessiva, o
sentimento inconsciente de culpa faz com que o sujeito, embora inocente de uma
infração, se acuse: ―Muitas pessoas são assim, e ainda é muito discutível se a sua
técnica logrará distinguir tais indivíduos auto-acusadores daqueles que são realmente
culpados‖ (FREUD 1906, p. 103). Há, portanto, a irredutibilidade da verdade e do real
decantados pela experiência psicanalítica ao processo de objetificação empreendido em
tecnologias tais como aquelas dispostas desde a concepção sanitária da penalogia. Mas,
se teoricamente Freud é, senão não muito entusiasta, por certo um tanto evasivo sobre
as relações entre psicanálise e crime, ele seria convocado, em ato, a tomar resoluta
posição num obscuro episódio da história da psicanálise: o caso Halsmann.
Em 10 de setembro de 1928, Morduch Halsman, dentista de 48 anos, e seu filho
Phillip, estudante de eletrotécnica de 22 anos, faziam uma caminhada no vale de Zill,
nos Alpes tiroleses. Durante a caminhada, o filho se adianta, perdendo o pai de vista.
Quando Phillip retrocede, visando a encontrar Morduch, acha-o caído junto a um
barranco às margens de um riacho. Intentando encontrar ajuda, o filho torna a deixar seu
pai. Pouco depois, ao reencontrar seu genitor, este está com a cabeça ensangüentada –
marcada por um grande e profundo ferimento – sem seus óculos de armação de ouro e
sem sua carteira – que em breve seria encontrada vazia. Segundo Kijak (2004), dois
assassinatos semelhantes haviam ocorrido naquela área. A polícia, que a princípio
concluíra que o filho nada tinha a ver com o assassinato, cede à pressão popular: em 16
de setembro Phillip Halsman, acusado de parricídio, foi levado a juízo.
54

Durante o processo, pouco a pouco evidenciava-se o motor de tal comoção


popular. O pedido de Phillip de que se enterrasse o pai sem demora e envolto num
manto simples, ―de acordo com a tradição judia‖ foi interpretado pela população como a
intenção do filho em desfazer-se do pai ―o quanto antes e da mais denegrida das
formas‖ (KIJAC 2004); o clima de antisemitismo, num processo crescente de
segregação que pressagiava a deflagração da política nacional socialista do holocausto,
chegava a níveis críticos quando em meio a pôsteres e passeatas clamava-se pela
insurgência contra ―as influências monstruosas e o espírito de clã dos judeus‖,
verdadeiros ―opressores‖ do povo (idem).
Mas, se os pôsteres e passeatas marcavam o ambiente extra-tribunal, no interior
deste também uma série de excessos ganhava vulto: ―o professor Karl Meixner‖ –
legista do caso – ―separou a cabeça do cadáver do resto do corpo e a expôs como
evidência durante o juízo. Tal ato, sacrilégio para a tradição judaico-cristã, é‖ – diz-nos
Kijak – ―único na história da jurisprudência‖ (idem).
Quais motivos seriam alegados para explicar o parricídio? A hipótese de que
Phillip Halsman teria assassinado seu pai para usufruir da quantia relativa ao seguro de
vida daquele mostrava-se incerta; improvável também era atribuir as razões do
homicídio à ‗má relação entre pai e filho‘. Mesmo restando inconclusiva a questão sobre
a motivação e a autoria do crime, o jovem Halsmann foi condenado a dez anos de
prisão.
Após a apelação da defesa, em 29 de setembro de 1929, por ordem da suprema
corte austríaca, houve um novo julgamento. Na ausência de motivos compreensíveis
para o ato que, por força da opinião pública, fora tomado como certo, a expertise
médica, sem sequer ter tido contato direto com o acusado (WEINSTEIN 2000),
insinuara problemas mentais em Phillip, promovendo, por fim, um verdadeiro golpe de
judô: seria o ódio proveniente do complexo de Édipo – teoria nascida de um judeu – a
chave para apreender a lógica daquele ―assassinato imotivado‖ cometido por um judeu
contra seu pai. Baseada em construções como estas, a partir do qual a má relação entre
pai e filho ganharia um peso que outrora parecia incipiente, Halsman foi novamente
condenado, desta vez a quatro anos de prisão, a jejuar em cada aniversário de morte de
seu pai, e a trabalhos forçados. A controvérsia em torno do caso renderia a este
julgamento a alcunha de ―o caso Dreyfus55 austríaco‖.

55
O ―caso Dreyfus‖, ocorrido na França em fins do século XIX, trata-se da condenação por alta traição de
Alfred Dreyfus, membro do exército daquele país. Num controverso processo, de motivação anti-semita,
55

Joseph Kupka, professor de jurisprudência da Universidade de Viena, escrevera


o ocorrido a Freud com o intento de derrubar a decisão da corte. Nasce, então, uma
carta, escrita por Freud ao advogado de defesa, em que o criador da psicanálise, num
tom bastante polêmico, toma posição em relação ao uso de conceitos psicanalíticos pela
expertise como forma de dirimir as dúvidas sobre o estado mental de Phillip e de
fornecer um motivo para um ―ato de outro modo inexplicável‖ (FREUD 1930a, p. 259).
A primeira posição explicitada por Freud põe em xeque o uso, naquele tribunal,
de conceitos psicanalíticos como o de complexo de Édipo: ―Embora introduzisse os
temas do complexo de Édipo e da repressão, [o parecer do perito] evidentemente
demonstrava tanto ignorância quanto ambivalência em relação a psicanálise‖ (idem, p.
259). Por outro lado, pondo em questão a validade do próprio conceito de Complexo de
Édipo para tornar decidível tanto a motivação quanto a autoria do crime no caso
Halsman, Freud demarca três pontos: 1) a autoria, de fato, não ficou provada, o que, de
entrada, denota o absurdo do julgamento; 2) as discordâncias entre pai e filho – tomadas
pelo perito como base para evocar o complexo de Édipo recalcado – ―são inapropriadas
para presumir um mau relacionamento entre eles‖ (idem, p. 260); e, 3) precisamente por
sua vasta incidência, o complexo de Édipo é inapropriado para fornecer uma decisão
sobre a questão da culpa.
Após sua incisiva contraposição ao uso de conceitos analíticos pela expertise
médica com o intuito de segregação, Freud faz publicar sua carta na edição alemã de
suas obras e com acidez dispara contra o tribunal de Innsbuck a seguinte pilhéria:

Houve um roubo com arrombamento. Um homem que tinha um


pé-de-cabra entre suas posses foi julgado culpado pelo crime.
Depois que o veredito foi pronunciado e que lhe perguntaram se
tinha algo a dizer, implorou que fosse também sentenciado por
adultério, já que carregava também consigo o instrumento para
isso. (FREUD 1930. p. 260).

Ainda com ironia, Freud, citando Dostoievski em Os irmãos Karamazov, dirá


que ―a psicologia é uma faca de dois gumes‖ (FREUD 1930a, p. 260), sinalizando que,
no uso de conceitos psicanalíticos para promover efeitos de segregação, era o próprio
tribunal o autor de um crime.

Dreyfus fora acusado de fornecer, ao governo alemão, documentos confidenciais franceses. Não tardaria
para que o processo, concomitante a uma onda de xenofobia que varria a Europa pré-nacional socialismo,
demonstrasse sua inconsistência. Várias personalidades, como Émile Zola e Anatole France,
pronunciaram-se publicamente contrapondo-se à condenação. Poucos anos após sua prisão Dreyfus é
readmitido no exército, não ficando, porém, ali, por muito tempo.
56

Mesmo sumamente ignorado pelos tribunais, Freud, que anos mais tarde
perderia parentes para o regime nazista, posicionara-se de modo emblemático perante o
uso da psicanálise nos tribunais. Neste ato, que entendemos ser paradigmático da função
ética do psicanalista, Freud, que pressentira os perigos do uso de sua doutrina, juntara-
se a personalidades como Einstein e Thomas Mann em prol da absolvição do jovem
Halsman, esforço que acabaria por reduzir inicialmente a pena pela metade, e, por fim,
em setembro de 1930, libertar Phillip com a condição de que ele deixasse o país em 24
horas.
Indo primeiramente até Paris, Halsman alojaria-se posteriormente em Nova
Iorque, consagrando-se com fotógrafo da revista Life e ganhando notoriedade junto ao
grande público devido à série de fotos chamadas ―Jump‖, em que celebridades
despojam-se do habitual ao mergulharem, ludicamente, em cenas inusitadas nas quais
estas saltam. Para a psicanálise de então e no pós-guerra, explicitar-se-ia o perigo de seu
uso nos tribunais. Mas, dirá Lacan, em 1950, que, se a psicanálise encontra seus limites
no ponto em que ―começa a ação policial‖ (LACAN 19502, p. 131), em sua intervenção
junto ao falante

As significações que ela revela no sujeito culpado não o excluem


da comunidade humana. Ela possibilita um tratamento em que o
sujeito não fica alienado em si mesmo. A responsabilidade por
ela restaurada nele corresponde à esperança, que palpita em todo
ser condenado, de se integrar num sentido vivido. Mas, por este
fato, ela afirma também que nenhuma ciência das condutas pode
reduzir a particularidade de cada devir humano, e que nenhum
esquema pode suprir, na realização de seu ser, a busca em que
todo homem manifesta o sentido da verdade (LACAN 1950b, p.
131).

Tal posição permite questionar, também, a forma prínceps pela qual a sociedade
responde aos assassinatos imotivados, na psicose. Se, como demonstra a psicanálise a
partir da experiência clínica, não há, no que diz respeito ao sujeito, ―instintos‖, sejam
eles ―criminosos‖ ou ―assassinos‖, instituições que se instalam desde noções como as de
―periculosidade‖ desvelam-se, como sanitarismo, verdadeiros ―campos de
concentração‖ (LACAN 19501, p. 148). Este é o caso dos Hospitais de custódia e
tratamento psiquiátrico.
57

As instituições que são os HCTPs erigem-se de forma a abrigar portadores de


transtornos mentais que infringiram o código penal e, considerados inimputáveis,
receberam não uma pena a ser cumprida, mas, sim, a forma de tratamento compulsório
chamada de "medida de segurança". Em hipótese incapazes de "determinarem-se
segundo seu entendimento" e de "responderem pelas conseqüências de seus atos", tais
pacientes encontram-se levados a instituições que ilustram aquilo que Erving Goffmann,
em 1961, chamou de ―instituição total‖. Segundo este autor tais espaços são
organizados de forma ―fechada‖, vale dizer, tais instituições tendem a ―conquistar‖ a
totalidade do tempo e do interesse de seus ―participantes‖.
De fato, tais lugares são organizados desde quatro princípios: 1) todos os
aspectos da vida − trabalho, lazer e descanso − são realizados num mesmo local e sob
uma única autoridade; 2) todos os participantes, em princípio, são tratados da mesma
forma sendo, ainda, obrigados a fazer as mesmas coisas; 3) todas atividades são
rigorosamente predeterminadas quanto ao tempo, assim com em sua seqüência, sendo
impostas ―de cima‖; 4) todas atividades obrigatórias são reunidas num plano racional
único, a fim de obedecer aos objetivos da instituição. Tais espaços trazem ainda, como
características suas, barreiras com relação às trocas sociais do interno com o extra-
muros, barreiras que se concretizam através de portões, celas, muros e etc. Entre os
principais exemplos de instituições deste tipo encontram-se os manicômios, prisões e
conventos.
Não obstante a presença destas instituições há muito na civilização ocidental,
como vimos, a partir da emergência da ciência moderna estes espaços agregaram, a si, a
efetividade daquilo que ―retorna sempre ao mesmo lugar‖ (LACAN 1954-5, p. 300),
vale dizer, de uma formalização e universalização que visam a reduzir a enunciação,
insígnia da relação do sujeito à linguagem, ao campo do enunciado. Se Lacan, nos anos
70, propõe ―não recuar ante a psicose‖, o Manicômio Judiciário é um campo de batalha
em que buscamos fazer valer o campo ético do sujeito, mesmo em seus limites. Neste
campo de uma aridez sui generis, o discurso psicanalítico pode operar ao não se contar
como mais uma especialidade a deter uma técnica capaz de atuar sobre o interno;
subtraindo-se da série de saberes que fala destes sujeitos, a psicanálise visa a alojar a
singularidade radical − o real − revelada pela própria palavra do paciente.
58

A posição de Lacan, disposta em seu texto sobre a criminologia ainda hoje


mostra-se, então, robusta: segundo ele, a psicanálise opera neste campo ―irrealizando o
crime sem desumanizar o criminoso‖; pela ―mola da transferência‖ ela permite acesso
ao mundo imaginário e ao real sem objetivar o criminoso. Pondo em primeiro plano as
coordenadas estruturais desveladas na transferência, o psicanalista aloja um lugar para
que, no caso a caso, o sujeito emirja como resposta ao real presentificado tanto pelo ato
transgressor quanto pela resposta despendida pelo corpo social em relação a esta ação.
A intervenção do psicanalista encontra, assim, seu lugar na contraposição seja à
ação policial seja, ainda, ao ―Império universal‖ (LACAN 1950a, p. 130) que segrega
não apenas a partir da simples exclusão, mas, também, pela abolição do único em
proveito do universalizável pela ciência. Precipita-se, pois, sob a ação do analista, a
forma como em cada conjuntura constrói-se um saber-fazer com o ato, num
posicionamento ante a resposta social e a condição de desamparo estrutural ou mesmo
social.
Em sua resposta a demanda advinda do campo jurídico o discurso analítico
atinge, portanto, ao menos três diferentes níveis: 1) aquele junto ao paciente: a) sob
condição de que este formalize seu endereçamento e b) visando a deflagrar no encontro
com este, o efeito singular que é o sujeito; 2) no nível da instituição: c) desvelando os
efeitos de universalização e objetivação e d) alojando estratégias como a ―prática entre
vários‖, dispositivo que visa não o Um universalizante, mas, sim, o que escapa, como
―único‖; e, 3) no nível político: e) vale dizer, convocando, sempre que possível, a pólis
nas tensões discursivas que a estruturam, a debater sobre as formas dispostas em seu
cerne como resposta ao louco transgressor.
Furtando-se em responder desde os papéis de policial, legislador e juiz, o
analista, ao sustentar seu discurso na interface com a justiça, faz-se catalisador do real,
daquilo que, como impossível de capturar nos moldes de qualquer sistema linguageiro,
exige, contudo, seu lugar de extimidade. Marcada nossa posição perante a concepção
sanitária da penalogia − que rege os dispositivos que, na cena social, concedem sua
resposta princeps aos assassinatos imotivados, tomando-os como atualização de uma
virtualidade homicida −, é chegada a hora de debruçarmo-nos sobre o que a clínica dos
homicídios imotivados desvela para a psicanálise. É desde este real que, no caso a caso,
como analistas, somos convocados a responder e encontramos as condições de nosso
manejo.
59

No próximo capítulo, intentaremos, pois, explorar: 1) como a entrada da


psicanálise no debate crime-loucura passou pela descoberta da paradoxal instância que é
o supereu, ‗lei fora da lei‘ que compreende tanto o imperativo moral quanto sua própria
anulação, a partir dos ―crimes de autopunição‖; e, 2) a interface entre a psiquiatria
clássica à psicanálise desde o real da clínica, ponto a partir do qual emerge a noção de
―kakon‖, via profícua para se pensar os assassinatos imotivados na psicose.
60

PARTE II:

Da psicanálise à clínica clássica, da clínica clássica


à psicanálise: o aparecimento da noção de ―kakon‖
61

− Capítulo III −
O diálogo entre a clínica psiquiátrica clássica e a psicanálise
Na parte anterior, dedicamo-nos a explorar o surgimento, na modernidade, da
discussão acerca de certos homicídios que, por sua lógica interna e desdobramentos,
foram predicados como ‗loucos‘, ‗incompreensíveis‘ ou ‗imotivados‘. Estas ações, que
colocavam em xeque a lógica utilitarista dos ―móveis‖ ou ―motivos do crime‖,
revelavam-se irredutíveis à propriedade de ser ―compreensíveis para todos‖ (LACAN
1950a, p. 140), desafiando, portanto, sua aglutinação discursiva em termos de princípios
de seu ―aparecimento, sua repetição, sua inteligibilidade natural‖ (FOUCAULT 1975, p.
110). Rateava, assim, a proposta de punir tais homicídios em virtude da superposição da
mecânica da ação à racionalidade do sujeito, cônscio e motivado ao ato.
Tendo como ponto de partida este ‗fracasso‘ − disposto pela dinâmica própria
àquelas ações que, embora loucas, davam-se em meio à ausência de distúrbios (delírio,
alucinação e etc.) de pronta identificação − as teorias atavistas e degenerativas surgiam
como tentativa de apreender, para além do compreensível, o real presente nos
assassinatos ‗sem motivos‘. Tais teorias, ao entificar o criminoso, operariam uma
reificação apontada por Lacan como verdadeira ―regressão‖ (LACAN 1950a, p. 136).
Ao empreender este percurso investigativo, deparamo-nos com outra face deste
tema, a resposta dada a estes assassinatos, também pontuada por Lacan nos anos 1950:
trata-se dos efeitos de segregação inerentes ao que ele nomeara, a partir de Tarde, como
concepção sanitária da penalogia. Pensada em termos de ―prevenção‖ e ―defesa social‖
− e articulada a uma análise ―científica‖ do criminoso (nova forma de controlar o mal-
estar engendrado pelas tensões, contradições e explorações presentes no laço social) −
tal perspectiva apreende os homicídios loucos como uma virtualidade transgressiva – e
mesmo má – que, biologicamente inscrita, se atualiza através de atos intempestivos.
Esta concepção, surgida na interface entre psiquiatria, direito e criminologia,
marcara conflitos e colaborações que estruturam, até hoje, a resposta princeps da cultura
ao assassinato imotivado: perícias − que buscam, psíquica, bio e sociologicamente
construir uma natureza que englobe tais atos e legitimem a objetalização do transgressor
−; internação em asilos-prisão − instituições ―totais‖ em que ―tratamento‖ e violências
(subjetivas e corporais) mostram-se indissociáveis −; exames criminológicos − que, sob
a alegação de particularizar a pena, revelam-se, antes, como ferramentas de controle e
segregação que interpretam a loucura em função da noção de perigo − e etc.
62

Perante este fervilhante campo de discussões, não tardaria para que a psicanálise,
recém emergida entre os últimos anos do século XIX e os primeiros anos do século XX,
fosse convocada para o debate crime-loucura. Ainda que alguns dos primeiros analistas
se dividissem ante esta questão – fato que ocorre, em verdade, mesmo hoje − nossa
posição será a de − no esteio da postura freudiana sustentada no caso Halsmann e das
críticas empreendidas por Lacan ao sanitarismo em penalogia em 1950 − não
desconhecer o princípio de nossa responsabilidade:

... a função decisiva de minha resposta (...) não é apenas, como se


diz, a de ser aceita pelo sujeito como aprovação ou rejeição de
seu discurso, mas realmente a de reconhecê-lo ou aboli-lo como
sujeito. É essa a responsabilidade do analista toda vez que ele
intervém pela fala (LACAN 1953, p. 301).

Logo, os psicanalistas, convocados para este debate, não o farão sem encontrar-
se às voltas com ao menos dois princípios que marcarão uma alternativa na busca pela
apreensão do que está em jogo nos homicídios loucos; estes princípios são alocados
pelos conceitos, surgidos da clínica, de pulsional e de realidade psíquica.
No que concerne ao pulsional, a não existência de um objeto próprio à pulsão
(FREUD 1915, p. 128) − engendra uma explosão do registro degenerativo ou atavista
que se desenha desde a idéia de uma perversão na teleologia do instinto, em sua relação
com o objeto. A noção de pulsão, logo, abre vias para o campo das vicissitudes e
tropeços, contrapondo-se a uma via régia em termos de economia psíquica.
Algo semelhante decorre da noção de realidade psíquica: sua irredutibilidade à
experiência concreta e imediata fizera Lacan evocar, ao explorá-la conceitualmente, sua
‗estrutura ficcional‘ (LACAN 1959-60, p. 22). Dito de outro modo, o psíquico e a
linguagem, antes de apenas retratar o mundo, engendram entes e objetos impossíveis
sem sua incidência. Perante esta ficcionalidade, as tentativas de captar o real disposto
nos assassinatos imotivados pela via da ontologização e da reificação – como o fazem as
teorias instintivas antigas e modernas − mostram-se partidárias de um perigoso
realismo, ‗nada ingênuo‘, porque articulado a uma lógica de ‗defesa social‘.
Destarte, no caminho empreendido na presente parte − a entrada da psicanálise
no debate crime-loucura, através dos ―crimes de autopunição‖ até a descoberta, no
diálogo com a psiquiatria clássica, do ―kakon‖ − posicionaremo-nos, perante os
homicídios cometidos por loucos − e o crime − de forma a ressaltar a particularidade da
relação do sujeito da linguagem em sua tensão com o real que dela decorre.
63

Num contraponto ao posicionamento de alguns dos primeiros psicanalistas a


abordarem o tema – que reduziam a psicanálise à criminologia − buscaremos sustentar,
em nossa tese, que nossa resposta, estruturada a partir da dimensão da palavra, às
demandas advindas dos sujeitos envolvidos nos homicídios imotivados ou, ainda, do
próprio corpo social, poderá ser polarizada pelo desvelamento, através do discurso
analítico, de um real que, impossível de se reduzir ao dito − incluindo nisto as próprias
leis positivas − não cessa de não se escrever‖ (LACAN 1972-3, p. 198).
É, portanto, desde um ―saber fazer‖ (LACAN 1969-70, p. 140) – de um fazer
tecido nos limites do formalizável como saber, não articulável em termos discretos
como sinais em sincronia ou diacronia − com este real imprevisível e não
universalizavel que, nos assassinatos imotivados na psicose, resgataremos a noção de
―kakon‖. Como pretendemos asseverar nos dois próximos capítulos, este conceito: 1)
instituí-se no recurso da clínica psiquiátrica clássica à psicanálise, o que implica, de
nossa parte, tecer, a seu respeito, considerações; e, 2) mostra-se como uma das chaves
para apreender a lógica envolvida nestes assassinatos, lógica esta que desvela que tais
ações podem vir a assumir, mediante escuta, uma dimensão de ‗tentativa de cura‘.

I − Da morfologia à clínica psiquiátrica clássica


Segundo Pierre Darmon (1989, p. 103), ante um clima de discussões marcado
por uma enxurrada de severas críticas advindas das mais diversas áreas, o Terceiro
Congresso de Antropologia Criminal, de 1892, fora marcado pela ausência da escola
italiana: Lombroso, presença até então incontestável nos debates internacionais sobre
criminologia, fora representado, neste evento, apenas por suas posições teóricas. Esta
lacuna, entretanto, não redundou na esterilidade da discussão; em seu lugar emergiriam
as últimas posições da psiquiatria em matéria penal: as críticas ao atavismo e o início
das rupturas em relação à teoria da degeneração abriram espaço para o período
psiquiátrico clássico.
É assim que, detendo ressonâncias com a teoria da degeneração, mas já descrita
por Magnan em termos clássicos, a ―obsessão criminal mórbida‖ fora vedete no evento.
Tratava-se, nesta ―loucura lúcida‖, de uma obsessão acompanhada por ―um estado de
angústia ou de dor moral‖ em que o indivíduo apresenta sintomas físicos característicos,
como palidez e tremores: ―a obsessão criminal mórbida‖ surgia como nova hipótese
para explicar homicídios e suicídios ―sem causa aparente‖ (idem, p. 114).
64

No início do século XX, mister se fazia − para a psiquiatria que, afrouxando


pouco a pouco seus laços com a teoria moreliana, se tornava clássica − estabelecer bases
clínicas mais precisas, abandonando o pólo aglutinador que era a redução das afecções
mentais à meras conjugações da degeneração ou atavismo. Neste sentido, como sinaliza
Tendlarz (1999, p. 121), as discussões inerentes ao debate crime-loucura impunham, aos
psiquiatras, problemas que acabaram por complexificar − e até mesmo refinar − certas
descrições e diferenciações nosológicas. Partindo de questões referentes às ―simulações
de insanidade‖, ―manifestações primárias de transtornos através de delitos‖,
―psicopatias‖ e ―psicoses carcerárias56‖, deslizava-se, paulatinamente, da morfologia
para a psicopatologia. Deste modo, uma profícua discussão clínica tomava a Europa
mesmo no que concerne ao debate médico-legal, que abandonava, agora, os traços
fisionômicos como tradutores de alienação.
Os assassinatos imotivados, anteriormente descritos por Pinel e Esquirol em
termos de ―mania sem delírio‖ e de ―monomania homicida‖, são relidos desde outras
categorias, clinicamente arregimentadas, como as de psicoses paranóides – circunscritas
por Kraepelin e pensadas, por Serieux e Capgras como ―loucuras raciocinantes‖ −;
―psicoses passionais‖ – ―delírio de reivindicação‖, ―ciúme‖ e ―erotomania‖ −; e a
―demência precoce‖ (mais tarde denominada, por Bleuler, como ―esquizofrenia‖) – que
ganharia, junto a sua formalização, um ―período médico-legal57‖ no qual a doença podia
manifestar-se, pela primeira vez em sua sintomatologia, através de um crime.
Se, como vimos no primeiro capítulo, na história da psiquiatria a fixação do
adjetivo ―criminal‖ devera-se muito a eclosão de casos como os de Papavoine, Cornier e
da mulher de Sélestat, a nova psiquiatria trazia, também – ainda que de forma menos
obscura – seus casos clínicos marcantes, como o caso do professor Wagner, trabalhado
por Robert Gaupp, o caso Aimeé, lido por Lacan, e o caso das irmãs Papin, comentado
por vários psiquiatras – inclusive Lacan −, que exploraremos, agora, sucintamente.

A) O Caso Wagner
Em 1913, tendo recém completado 39 anos, o professor Ernst Wagner, nascido
em Eglosheim, distrito de Ludwigsburg, Alemanha, passaria a ter seu nome associado a
um dos mais debatidos e comentados episódios da psiquiatria clássica.

56
Trata-se de psicoses que se manifestariam por ocasião do encarceramento, levantando o debate sobre se
estas eram ou causadas ou apenas deflagradas pelo ambientem prisional.
57
Mais tarde, segundo LORENTE (1948), outras categorias clínicas ganhariam, também, períodos
médico-legais‖, variando, entretanto, de autor em autor e de classe em classe.
65

Às cinco horas da manhã do dia 3 de setembro de 1913, Wagner esgueirara-se de


volta ao quarto em que dormia sua esposa, a nocauteia com um porrete e golpeia-a
mortalmente com uma faca. Pouco depois, repete a última ação junto a seus filhos,
Robert e Richard, e suas filhas, Klara e Elsa. Os corpos de todos são cuidadosamente
cobertos por lençóis.
Arrumando-se após o feito, Ernst Wagner equipa-se com armas e munições,
coloca um bilhete na porta de sua casa – dizendo aos vizinhos que a família viajara – e,
de bicicleta, dirige-se de Dagerloch até Stuttgart. Ali, tomara um trem até Ludwigsburg
e prosseguira, também de bicicleta, até Grosssachsenheim, onde deixara, nos correios,
cartas esclarecendo suas ―razões‖. Visitara, ali, seu irmão; não levantou qualquer
suspeita. Retomando seu caminho, às onze da noite, chegara finalmente à aldeia de
Mühlhausen, onde passara a sondar o terreno e a tentar, infrutiferamente, cortar os cabos
de telefone. Após breve espera, pusera-se a incendiar o gramado das casas; uma vez que
os moradores destas saiam para apagar o fogo, Wagner, encapuzado, disparava tiros
contra os homens da cidade. Anos mais tarde, ao comentar o fato, ele arrepende-se de
ter acertado, por engano, uma jovem.
Quando suas armas descarregaram-se – e antes que ele repusesse a munição –
alguns moradores agarraram-no e o espancaram, cessando, apenas, ao pensar que Ernst
havia morrido. Na ocasião sua mão esquerda destroçara-se. Gaupp destaca a inquietação
de Wagner ante o fato de que ninguém, naquela vila, ao xingar-lhe, fizera qualquer
menção a sua terrível ―falta moral‖ (GAUPP 1938, p. 267). Ao todo, o incidente causara
a morte de quatorze pessoas. A polícia, protegendo-o do povo, levara-o ao hospital,
onde lhe amputaram o braço. Um dos médicos que lhe atenderam relata:

A impressão pessoal que se tem dele é a de uma pessoa


submetida. Se espera encontrar um criminoso duro de 39 anos e
encontra-se um homem que dá a impressão de ter 55 anos, de
caráter amável, de uma timidez quase infantil, que apenas
incorre em certa emoção quando se fala dos habitantes de
Mühlhausen (...). Pede, de forma suplicante, que eu lhe dê a
satisfação de que julguem-no e o decapitem (idem, p. 267).

Dado o massivo nonsense do feito, a suspeita de enfermidade mental se impôs


aos médicos; transferido para uma clínica em Tübingen, Ernst ficaria por seis semanas
aos cuidados de Robert Gaupp, inaugurando uma relação que, ainda que posteriormente
indireta – por meio de cartas e etc. – se prolongará por décadas.
66

Wagner, que quando criança destacava-se como primeiro aluno da classe, vira
seus sucessos obscurecidos por sonhos angustiantes e persecutórios que duraram até a
maturidade; nesta idade, entre os 18 e 20 anos, desenvolveu uma consciência moral
estritamente cáustica, que fustigava-o por suas práticas onanistas. É partindo da violenta
eclosão desta ―má consciência‖ contra a masturbação que Gaupp, desde o relato de
Wagner, situa o florescer da ―significação pessoal mórbida58‖:

Ninguém me disse diretamente, talvez por não quererem me


envergonhar, mas de vez em quando escutava insinuações. Uma
vez estava escrito em meu espelho com impressionante letra
redonda: ―farrista, acorda!‖. (...) Eu teria que ser
suficientemente inteligente para compreender onde me levava
tudo isto: o corpo e o espírito se deterioravam de maneira
evidente. (GAUPP 1938a, p. 98).

O ―sentimento de culpa‖, que jamais abandonaria Wagner, manifestava-se,


então, por auto-reproches e pensamentos hipocondríacos, idéias que o acompanharam
quando ele se tornou professor. Nesta época, sua vida sexual faz-se mais ativa e Wagner
passa a embriagar-se; bêbado, revela seu desprezo pelas pessoas do povo, julgando-se
em posição de superioridade. Deixando Ludwigsburg − onde trabalhou como professor
auxiliar de 1895 até 1901 − ele passará a morar em Mühlhausen; nesta última cidade
Ernst trabalha algum tempo em empregos aquém de sua formação. Apenas mais tarde
empregar-se-á ele nesta localidade como professor, encontrando, todavia, somente
trabalho ―provisório‖, fato tomado por ele como ―injustiça‖ por parte da administração.
É no fim deste ano, 1901, que, na volta da taberna, ocorre o obscuro episódio de
―zoofilia‖ – do qual Wagner faz apenas obscuras menções.
Ernst desenvolve, desde então, um profundo asco sobre si mesmo; mais tarde ele
afirmará que este ato teria ―desonrado toda a humanidade‖ (GAUPP 1938b, p. 275). A
paranóia de Wagner, desencadeada desde a culpa, o temor de ser descoberto e a
vergonha, surgia como reação aguda a estes julgamentos; se, quando rapaz, idéias
delirantes haviam se lhe acenado, agora, estas proliferavam a todo vapor: sua base era,
agora, a significação delirante de que os habitantes de Mühlhausen estavam a par de seu
―deslize‖, a ―zoofilia‖. Desde então, os homens da cidade o perseguiam e dele
caçoavam; Ernst fora invadido pela inquebrantável certeza de que todos os homens dali
gozavam de uma ―alegria maliciosa com suas faltas imorais‖ (idem, p. 262).

58
Trata-se da significação que se impõe ao enfermo como semantização da experiência de perplexidade
em que este encontra-se mergulhado no momento de seu desencadeamento.
67

Mister se fazia, portanto, mudar para uma cidade próxima, Radelstetten; mas,
quando as perseguições fizeram-se insuportáveis mesmo na nova morada, Ernst mudou-
se, outra vez, com a família, em 1912, para Dagerloch, periferia de Stuttgart. Ao povo
de Radelstetten restava o desgosto – tinham Ernst em alta conta. Em Dagerloch ele
prosseguiu seu ofício de professor até que a esperança de escapar à ―tortura‖ evanesceu:
seu delírio se fez mais agudo e a literatura, seu maior recurso perante a angústia, apenas
lhe poupava, agora, por poucas horas. Assim, antes de suprimir sua própria ―estirpe‖ e
os homens de Mühlhausen, ele escrevera cerca de trezentas páginas em seu diário.
A comoção pública evocada pelo feito de Wagner começara a esfumar somente
com o início da Guerra; até então eram freqüentes os ataques não apenas a Ernst, mas,
também, a Gaupp por ter-lhe ‗poupado‘ da pena de morte. Quanto a Wagner, entre 1915
e 1920, este se mostrava inseguro com relação à culpa dos habitantes de Mühlhausen.
Tal oscilação – que levara Gaupp a interrogar a cronicidade da paranóia de Kraepelin −,
porém, não implicou, como pontuara Gaupp, qualquer arrependimento da parte de
Wagner. Absolvido da pena de morte, e, por outro lado, sem expectativas de sair da
internação, Ernst aferrou-se ao trabalho literário, recebendo, inclusive, elogios da
direção do teatro estatal de Berlim por seu livro Delírio: o trabalho, valoroso, não estava
―ainda suficientemente maduro para ser encenado‖ (GAUPP 1938b, p. 271).
A temática delirante, outrora dirigida aos habitantes de Mühlhausen, ganharia,
então, outro objeto: estreando a peça Schweiger (―silenciador‖) onde Wagner falhara, o
escritor Werfel seria acusado por Ernst de ―plagiar‖ seu Delírio. Segundo Wagner,
Werfel desmontara o livro; identificando-se com seu personagem, roubou sua descrição
da loucura, conseguindo, com ela, ―a glória literária‖. Não teria se dado algo semelhante
entre as obras cinematográficas Quo vadis, e seu livro Nero?
Nesta segunda etapa da paranóia de Wagner, o delírio fixado em Werfel, restou
inabalado mesmo pelos esforços de Gaupp em fazer Werfel escrever a seu paciente
asseverando sua inocência. Numa reversão delirante – e coadunando-se ao espírito da
época − o judaísmo de Werfel desdobraria-se, para Wagner, em pujante anti-semitismo.
―É possível dizer que a fé em sua missão poética se converteu em algo tão
necessário como o ar que [Wagner] respirava‖ (idem, p. 273) – dirá Gaupp, muitos anos
depois de sua famosa monografia. ―Sua obstinação, em seu delírio poético, foi mais
necessária para viver que o delírio de perseguição ‗provocado‘ pelos habitantes de
Mühlhausen‖ (idem, p. 274). Depressivo, após tentar sem sucesso fazer-se escritor e
após seguidas tentativas de suicídio, padeceria Wagner, em 1938, de tuberculose.
68

B) O caso Aimée59: uma paranóia de autopunição


A noite apenas começava em Paris quando, em meados do quarto mês do ano de
1931, uma jovem senhora veio tornar-se parte da já atribulada história da psicanálise.
Na abertura de um espetáculo de teatro intitulado ―Tudo vai bem‖ − espetáculo este que
tinha como seu autor Henry Jeanson − o destino reservaria uma sutil ironia àquela até
então tranqüila noite: nem tudo foi bem quando a atriz Huguette ex-Duflos foi agredida
à facadas por uma mulher que se encontrava na platéia.
Nos poucos instantes que precederam o ato, Marguerite, com certa frieza,
dirigiu calmamente uma pergunta à famosa atriz: ―A senhora é a senhora Huguette?‖.
Golpeada, a atriz reage de forma a tentar aparar com suas mãos a lâmina guiada por
aquele olhar ―injetado de ódio‖. A opção por este modo de defender-se custa a Huguette
a secção de dois tendões dos dedos de sua mão.
Passado aquele momento, ainda em um estado de grande excitação delirante, a
agressora acusaria perante o delegado − e apenas perante ele − a atriz de perseguição.
Aos jornais ela apenas dirá que a atriz e o diretor da peça estavam ―expondo-a ao
ridículo‖. Como dificilmente poderia deixar de ter sido diferente, o acontecimento seria
amplamente noticiado, recebendo uma extensa atenção por parte da imprensa e da
opinião pública. A agressora − que Lacan tornaria conhecida dos psicanalistas sobre o
pseudônimo de Aimée − foi presa naquela mesma noite.
Após algumas semanas na prisão, aos prantos, com remorso e vergonha, a jovem
senhora − prestes a completar 40 anos − confessa às colegas de cárcere que a atriz, até
então sua perseguidora mais implacável, nada havia feito contra ela. Assustadas, as
companheiras até então solidárias à causa de Marguerite, relatam às autoridades o atual
estado de coisas. A arquitetura delirante, em sua queda, havia ruído de ―uma só vez‖:
―Como eu pude acreditar nisso‖ (LACAN 1932, p. 153). Tornando-se interna no
hospital de Sainte-Anne, ela ficará aos cuidados do Dr. Lacan; momento este a qual
segue-se um período de pouco mais de um ano e meio de ―entrevistas quase diárias‖.

59
A célere exposição do caso Aimée que realizaremos agora encontra, em nossa dissertação de mestrado,
sua referência; ali, ao contrário do que fizera Jean Allouch em seu Paranóia: Margueritte ou A Aimée de
Lacan (2005), havíamos privilegiado o estudo daquele caso desde os recursos, discussões e contexto que
foram aqueles dos anos 30, na formação de Lacan. Seguimos, assim, o espírito do magistral estudo
empreendido por Tendlarz, em seu Aimée com Lacan (1999). Esta escolha implica, logo, num privilégio
que nossa pesquisa confere à versão ‗diurna‘ que Lacan dá do caso Aimée – sua interpretação como
paranóia de autopunição −, e não à versão ‗noturna‘ daquele caso, desenvolvida por Allouch desde a nota
de rodapé localizada na página 300 da tese de Lacan, na qual ele insinua o endereçamento da passagem ao
ato de Aimeé não a seu eu ideal, mas, sim, a sua mãe, o que, com os conceitos posteriores de Lacan, pode
ser entendido como uma ‗tentativa‘, no real, de produzir uma ‗separação‘.
69

Nascida no ano de 1891, Marguerite foi a quinta criança do casal Jean-Baptiste


Pantaine e Jeanne Donadieu. Cerca de um ano antes, uma tragédia havia se abatido
sobre aquela família: a até então filha mais velha, Marguerite, é consumida em chamas
ao se aproximar da lareira para se aquecer. A mãe, que presenciava a cena, lutara em
vão para socorrer aquela que seria sua primeira criança a não vingar: meses após o
acontecimento, nasce uma criança natimorta que impõe novamente à família um
momento de desconsolo. Herdando o nome da primeira irmã tragicamente morta, Aimée
terá em sua mãe uma amiga com quem mantém um laço ―intensíssimo‖ (LACAN 1932,
p. 218).
Sendo a filha mais inteligente do casal de camponeses analfabetos, Aimée
gozaria de certos privilégios tais como roupas e materiais para seus estudos: era
esperado por sua família que ela se tornasse uma ―mulher de cultura‖ ou ―professora do
primário‖. No esteio deste ideal, aos quatorze anos, Margueritte muda-se para uma
cidade vizinha onde poderá continuar seus estudos; em 1909, aos dezoito anos,
fracassando em seu exame para escola normal, ela desistirá da carreira de professora.
Pouco depois ela é aprovada num concurso para os Correios60.
Transferida para uma outra cidade, Marguerite conhece C. de la N., mulher que
terá uma fortíssima influência sobre sua vida. A respeito desta influência, Lacan chegará
mesmo a precisar que C., em relação à Marguerite, ―rege suas opiniões e governa seus
lazeres‖ (idem, p. 226). A amizade entre estas duas mulheres é de tal ordem que durante
anos uma será a ―sombra da outra‖; elas serão, durante este tempo, como duas ―imagens
invertidas em espelho‖ (idem, p. 225).
Em 1917, após uma série de desventuras e fracassos impostos a seu amor
próprio por suas peripécias, Marguerite conhecerá René Anzieu, o homem com quem se
casará mesmo a despeito do posicionamento contrário de sua família. Devido a um
―deslocamento administrativo‖, Aimée se encontraria, agora, frente a frente com seu
marido, sem poder contar com a presença até então maciça de sua amiga; decorreriam,
desta conjuntura, alguns problemas. A aversão, da parte de René, por qualquer atividade
um tanto mais especulativa que o habitual somava-se à falta de habilidade da esposa
frente aos afazeres domésticos.

60
Lacan, em sua tese, dirá que se tratava de um trabalho nos ―Serviços ferroviários‖.
70

Passados cerca de oito meses de casados, o casal Anzieu receberia como


companhia em sua residência Élise, a irmã mais velha de Aimée. Recém viúva de um
tio que a desposou em sua juventude e submetida a uma histerectomia que a privaria da
chance de ter filhos naturais, Élise buscaria consolo ao viver com sua irmã mais nova,
Marguerite. Num casamento ―mais burocrático que efetivo‖, Élise não tardou a tomar,
frente a René, o lugar de sua irmã mais nova − inclusive como mulher. E de fato, após
todos os futuros desdobramentos, Élise e René acabarão por viver juntos em vida
conjugal. Mesmo destituída em sua própria casa, sua falta de combatividade perante a
irmã acabaria por reverter-se em um submetimento a sua autoridade. ―Minha irmã era
por demais autoritária. Ela não estava comigo. Estava sempre do lado do meu marido.
Sempre contra mim‖ (LACAN 1932, p. 232).
Quase meia década ainda se passará até que Marguerite engravide pela primeira
vez. Longe de ser um período tranqüilo, a gravidez seria concomitante a uma eclosão de
interpretações delirantes de ―caráter difuso e assistemático‖: ao sair à rua, era nítido que
as pessoas a ―desprezavam‖; estas se punham, todo o tempo, a lhe observar e caluniar,
acusando-a de depravada; as colegas de ofício confabulavam a seu respeito; os jornais
faziam uma série de alusões a ela. ―Por que fazem isto comigo? Eles querem a morte de
meu filho. Se esta criança não viver, eles serão os culpados‖ (idem, pg. 155-6).
Seu comportamento deixara alarmadas as pessoas que com ela conviviam: certo
dia arrebenta a facadas os dois pneus da bicicleta de um colega; à noite acorda para
derramar sobre a cabeça de seu marido um jarro abarrotado de água; uma outra vez é o
ferro de passar que, contra o esposo, ela arremessa. Como era de se esperar, nada
melhora quando, tragicamente, por ocasião de uma asfixia com o cordão umbilical, a
criança vem ao mundo natimorta. É nesta ocasião que, a fim de se informar sobre o
parto, sua grande amiga C. de a N. liga para a parturiente. As imputações sobre o
assassinato de seu bebê recairão, a partir daí, sobre a até então amiga.
O ódio que ela veladamente nutria por sua irmã é atribuído, assim, a um objeto
substituto. O delírio erige-se enquanto uma derivação de seu ódio para ―objetos cada
vez mais distantes de seu objeto real, assim como para objetos cada vez mais difíceis de
atingir‖ (LACAN 1932, p. 230). A eleição de tais objetos obedeceria assim à seguinte
lógica: suas perseguidoras, à maneira de sua irmã, representariam ―a imagem mesma do
ser que ela é impotente para realizar‖ (idem, p. 231). Nesse jogo de espelho entre as
imagens, a relação entre o supereu e o ego Ideal determinaria os duplos e os triplos de
Aimée, configurando deste modo o protótipo de suas perseguidoras.
71

Fruto de uma gravidez ocorrida alguns meses após o funéreo acontecimento,


nascerá Didieu Anzieu, segundo filho de Marguerite. Durante a segunda gravidez
desabrocha nova irrupção delirante, ―compatível com uma vida profissional e familiar‖
(idem, p. 234). Diferentemente do primeiro surto, este, sistematizado em torno das
perseguições da ex-amiga, C. de la N., tinha uma ―menor amplitude de desordens‖.
Novamente destituída de seu lugar por Élise – que passa a tomar conta da
criança − Marguerite vê multiplicarem-se seus pensamentos delirantes; intentará, agora,
viajar aos Estados Unidos, onde iniciará uma carreira de romancista. De posse de uma
autorização com uma assinatura falsa de seu marido, ela tira seu passaporte para viajar
com seu filho para o novo mundo. O marido, recebendo a notícia de que ela abandonara
o emprego, intervém de forma a buscar, junto a uma casa de saúde da cidade, a primeira
internação de Marguerite.
Alguns meses de repouso na clínica, reassumindo os cuidados com o filho,
valem a ela um novo período de acalmia. Não querendo prosseguir morando em uma
cidade em que todos sabiam de sua internação, ela retorna a seu emprego, desta vez
transferindo-se para Paris. Posteriormente, a Lacan, ela admite que o motivo de sua
mudança era a tentativa de responder a duas importantes perguntas: ―Quais eram os
inimigos misteriosos que perseguiam-na? Não deveria ela realizar um grandioso
destino?‖ (LACAN 1932, p. 158).
Sozinha em Paris, ela se dedica por horas a sua preparação para o baccalauréat;
sua perseverança, entretanto, seria frustrada por três sucessivos fracassos. As idéias de
perseguição tornavam-se, então, cada vez mais numerosas, se fazendo acompanhar,
agora, por idéias de grandeza e pensamentos erotômanos. É nessa época, por exemplo,
que ela procurará Pierre Benoit, autor de livros em que reconhece sua própria história.
Após um passeio de carro – passeio este confirmado pelo próprio autor – este homem
que até então, em seus livros, ela cria declarar seu amor e apoio na separação de Anzieu,
passa, ele também, a ser considerado um de seus vis perseguidores. Não por acaso,
Huguette – a futura vítima da agressão (de quem Marguerite tinha tomado
conhecimento através de C. de la N.) – havia interpretado uma personagem de uma peça
desse mesmo escritor. A seu lado, como perseguidores, estavam todas as ―mulheres de
cultura‖ e ―o pessoal do teatro‖, que representavam os ideais de mulheres independentes
e reconhecidas que Aimée havia estabelecido para si. No Le Journal ela perceberá
várias alusões a si, alusões estas que afirmavam ―que seu filho seria morto, pois sua mãe
é uma caluniadora‖ (idem, p. 160).
72

A cada dia que se passava ela tinha cada vez mais firme em seu espírito a
impressão de que ―algo deveria ser feito‖. Quase de um só fôlego pôs-se a escrever seu
primeiro livro; este, somado a um segundo volume e a uma quantidade considerável de
cartas não assinadas, seria endereçado ao príncipe de Gales, tido a partir de então como
seu ―protetor‖. Também entre seus escritos figuravam alguns artigos que ela inutilmente
tentou publicar em um jornal comunista. À recusa de seus textos ela responde com uma
séria agressão à mensageira. Lacan lamentará não a terem internado naquele mesmo
momento. A Elise ela escreve a sentença ambígua: ―É preciso que você esteja pronta
para testemunhar que René me bate e bate no garoto. Eu quero me divorciar e ficar com
o garoto. Estou pronta para tudo, senão eu o matarei‖ (LACAN 1932, p. 168).
Na noite do atentado, ela se preparava para se encontrar com a família. Todavia,
uma hora depois, lá estava a jovem senhora entre os vários fãs que faziam parte do
grupo de pessoas que ansiosamente esperava pela peça de Benoit. É então que ela ataca
sua vítima: ―No estado em que me encontrava então, eu teria atacado qualquer um de
meus perseguidores, se eu os pudesse atingir ou me encontrasse com eles por acaso‖.
No decurso desta escuta, a conclusão atingida por Lacan e publicada em sua tese
será a de que a ―psicose de nossa paciente foi realizada pelos mecanismos de
autopunição que prevalecem na estrutura de sua personalidade‖ (idem, p. 247). A
tomada em consideração pelo eu ideal e do agente crítico, o supereu − instâncias que se
impunham às considerações de Lacan pela escuta de sua paciente − possibilitava
entrever a amarração disposta entre o delírio, o alvo da agressão e a finalidade da
passagem ao ato. Com o mesmo golpe que Aimée atinge o ―puro símbolo‖ de seu ideal
– ―uma mulher de artes‖ − ela estava apenas a se punir. Se era verdade que, em meio às
colegas de cárcere ela se sentira castigada, mesmo anteriormente, ao atingir sua imagem
em espelho, era a si própria que ela buscava penitenciar.
Deste modo, o recurso à psicanálise – recurso este que engendrava a um só
tempo uma possibilidade de ―classificação‖, ―prognóstico‖ e ―tratamento‖ de casos de
psicose – possibilitaria antever o quanto a adesividade do paranóico à sua
―personalidade‖ e à ―significação pessoal‖ estariam a serviço de um modo de satisfação
narcisista e autopunitivo. O apelo à semântica e à personalidade, em seu horizonte,
revelaria: 1) quanto à primeira, o caráter patogênico de uma significação não
dialetizável e entregue a si mesma; e 2) quanto à segunda, os efeitos dramáticos de uma
alienação extrema do sujeito a uma imagem especular de si mesmo.
73

C) O caso das irmãs Papin


Grande estarrecimento fora provocado quando em Le Mans, França, emergia a
notícia, em três de fevereiro de 1933, de um misterioso duplo homicídio. As
particularidades deste assassinato reiteram, ainda hoje − a despeito do vasto material
produzido sobre o ocorrido − um halo de nonsense. Christine e Léa Papin, empregadas
na casa da família Lancelin, de pronto confessaram o feito, qual seja, a enucleação dos
olhos – sua retirada por meio de uma incisão (no caso, pelos dedos) −, assassinato – por
golpes contundentes – e, como nomearia posteriormente Léa Papin, as ―enciselures‖ –
talhos feitos nas coxas, nádegas e genitais da Sr. Lancelin e de sua filha. Encontradas
pela polícia num quarto que fora preciso destrancar, as duas irmãs achavam-se limpas
em suas vestes de dormir, deitadas lado-a-lado.
Pronunciamentos das duas irmãs foram tomados naquela mesma noite pelo
poder público: segundo atestava Christine, ela e Léa, a fim de se defenderem da
agressão de sua patroa, as mataram; a enucleação, realizada com as próprias mãos − fato
até então inédito nos anais da criminologia − fora apenas uma conseqüência dessa
agressão, assim como as ―enciselures‖ nas vítimas.
Segundo Christine, ao chegarem a casa após um rápido passeio, a Sra. e a Srta.
Lancelin encontraram-na em meio à escuridão. Perguntada pela patroa sobre este estado
de coisas, a empregada, velas à mão, dirá que o ferro de passar roupas causara um curto-
circuito que provocara a queda de energia. ―Oh, de novo!‖ – teria exclamado a patroa.
Em seu primeiro depoimento, Christine dirá que, após esta exclamação, a Sra. Lancelin
―ameaçara lançar-se sobre ela‖ (ALLOUCH, PORGE, MAYETTE 1999, p. 38),
prenúncio ao qual ela respondeu saltando efetivamente sobre a patroa. Não tardaria para
que a Srta. Geneviève Lancelin e Léa Papin interviessem na briga que, agora, ganhava a
dimensão de quatrilho. É então que, nesta coreografia improvisada, trocam-se os pares:
Christine apresa Geneviève – arrancando-lhe os olhos − e Léa, quase em sincronia, tece
o mesmo movimento com relação a Sra. Lancelin.
Em suas respostas aos interrogatórios, Léa, ao contrário de sua irmã Christine,
assumira uma postura − embora outrora excitada − agora soturna. Em seu silêncio, ela
pouco ou nada respondia às perguntas que lhe eram dirigidas. Desenrola-se, então, um
inusitado efeito sobre o interrogador: numa histórica quebra de protocolo, ele pede que,
ante a leitura da narrativa de sua irmã, Léa apenas confirme ou discorde dos fatos por
aquela apontados. Reiterava-se, ali, uma posição que Léa há muito assumira perante
Christine: a jovem, ‗em eco‘, confirmava a primeira versão:
74

Tudo o que minha irmã disse é exato, os crimes ocorreram


exatamente como ela os narrou. Meu papel neste assunto é
absolutamente o que ela indicou. Eu golpeei, então, como ela,
tanto quanto ela; afirmo que não havíamos premeditado matar
nossas patroas, a idéia nos veio instantaneamente quando
escutamos que a Senhora Lancelin nos fazia reproches. Como
minha irmã, não lamento o ato criminoso que cometemos
(ALLOUCH, PORGE, MAYETTE 1999, p. 39).

Esta dinâmica – o posicionamento ‗em eco‘ de Léa em relação à Christine −


seria repetida, com efeito, durante o processo; Logre, psiquiatra que, mais tarde, se
contraporia à posição da expertise no caso, tivera a impressão, ao ler os depoimentos
das irmãs, de estar ―lendo duplo‖ (idem, p. 183). Estava lançada a base para a
suposição, apontada inclusive por Lacan, em seu texto Motivos do crime paranóico: o
crime das irmãs Papin (1933), de uma ―loucura a dois‖.
Discordando da visão clássica − segundo a qual a folie à deux se daria desde a
influência de ―um sujeito delirante ativo sobre um sujeito débil passivo‖ (LACAN 1933,
p. 388) – Lacan assinala a quase simultaneidade da ação e da psicose das irmãs. Estas
―verdadeiras almas siamesas‖, ―com os únicos meios de sua ilhota‖, ―devem resolver
seu enigma, o enigma humano do sexo‖ (idem, p. 389).
Mas se esta referência insular pode evocar ares de ―um mundo para sempre
fechado‖, Lacan não deixará de, desde a noção de ―complexo fraterno‖ – matriz desde a
qual ele desenvolverá em 1938 seu estádio do espelho – questionar, pela dialética, o
conceito de ―constituição mórbida‖ e de ―organogênese‖. Segundo ele disporá em seu
artigo – que recupera certos fundamentos de sua tese sobre o caso Aimeé −, são as
tensões com o outro – disposição de lugares e determinação semântica desde o laço
social − a base de sua concepção de ―personalidade‖. Esta noção, junto ao conceito
psicanalítico de ―pulsão‖ são basais para Lacan apreender as relações entre as Papin e os
Lancelin: ―não se falava de um grupo a outro, este silêncio, no entanto, não podia ser
vazio, mesmo se ele fosse obscuro aos olhos do autores‖ (idem, 387). Desde o curto-
circuito nestas relações, acontecimento concomitante à pane elétrica na casa, a metáfora
de ódio popularmente conhecida ―arrancar os olhos‖ se concretizaria, ali, no real.
À polícia, Christine e Léa dirão não ter ódio ou mágoa das patroas; ao contrário,
opuseram-se aos conselhos de sua mãe de forma a continuar ali por bastante tempo.
Separadas de sua mãe − e agora uma da outra − ocorrerá uma primeira crise: há choro,
sofrimento e greve de fome. Christine inquietava-se, chamava Léa com todas as suas
forças, virava-se e debatia-se por querer estar de novo com sua irmã.
75

A estranheza do caso aumentava à medida que os sucessivos interrogatórios iam


se sobrepondo: a sequência das agressões, o grau de participação de Léa, a posição dos
corpos, a ausência de ditos e agressões por parte da Sra. Lancelin eram elementos que
oscilavam neste vertiginoso caleidoscópio. Christine, num depoimento dado em 12 de
julho de 1933, o primeiro por petição sua, chegara a afirmar que: ―Não disse toda a
verdade. Quando ataquei a Sra. Lancelin, esta não havia me provocado. Não sei o que
ela me respondeu (...). Entrei numa crise nervosa e me precipitei sobre ela‖
(ALLOUCH, PORGE, MAYETTE 1999, p. 60).
Os doutores Schutzenbehler, Baruk e Truelle, psiquiatras indicados para ―o
estudo mental das assassinas‖ proclamaram sua lucidez e total responsabilidade. Sobre a
participação dos médicos no julgamento os próprios psiquiatras se dividiam; para o Dr.
Logre − que se contrapôs ao laudo oficial, chamando a atenção para possíveis traços e
hipótese de alienação – o expert deveria ser ―o mestre do assunto‖ (idem, p. 89); para
outro psiquiatra, Dr. Berillon, ao deter-se na análise da responsabilidade ou não das
acusadas, o médico convertia-se ―numa espécie de polícia ou de auxiliar da parte
acusada‖ (idem, p. 89), desviando-se de sua função.
Querelas psiquiátricas à parte, no fim de junho de 1933, começavam as severas
agitações de Christine, que piorariam francamente no mês seguinte: numa alucinação
vira sua irmã colada a uma árvore, com as pernas cortadas; pouco depois, tivera que ser
amarrada a uma camisa de força para que não pudesse extrair os próprios olhos.
Naquele mesmo dia, sendo-lhe concedida a chance de estar com Léa, ela a abraça quase
até a asfixia; uma detenta dirá que Christine, livrando-se de sua camisa e em ―excitação
crescente‖ disse à irmã ―Diz-me que sim! Diz-me que sim!‖ (idem, p. 191).
O processo, rapidamente levado a termo, permitiria, como mera exposição, uma
intervenção do doutor Logré. A despeito desta concessão, o veredicto, expedido em
dezembro de 1933, condenara Christine à morte por decapitação: ―Já que devem me
cortar a cabeça, melhor fazerem de uma vez‖ (idem, p. 204) diria ela, após ter recebido
a notícia de joelhos. Léa, participante ‗induzida‘ ao crime, receberia a pena de dez anos
de prisão. Haveria esta diferença transtornado Christine − que combinara de partilhar,
junto a irmã, a inteira responsabilidade pelo ―crime‖? Tal conjectura parece encontrar,
no mínimo, um indício. No dia seguinte, após dormir envolta em uma camisa de força,
ela teria dito se sentir perseguida, sendo o ―faz-me-rir‖ de todos: ―Porque me dão tudo
isto? Porque me castigam? Eu não fiz nada. Todo mundo se esquiva de mim e querem
me ferir; inclusive minha irmã já não me quer!‖ (idem, p. 205-6) .
76

Um acalorado debate – por parte da mídia de massa e da intelligentsia − se


estendia a despeito da precipitação no encerramento do processo. Esta discussão por
certo teria desdobramentos: Albert Lebrun, presidente da França na época, comutaria,
pouco depois, a pena de morte de Christine em prisão perpétua com trabalhos forçados.
Embora o indulto – um dos poucos pontos de divergência entre as Papin – tenha
lhe sido concedido, dois anos após receber a sentença, morrerá Christine em Rennes, de
uma afecção pulmonar (ou óssea). Destino diferente terá Léa: libertada após cumprir
sua pena, ela passará a viver em casa de sua mãe até o falecimento dela. Numa
entrevista em 1966, lembrando-se com carinho da irmã, ela fala de seu desejo de se
tornar, num convento, a exemplo de sua outra irmã, ―irmã Marie‖ (ALLOUCH,
PORGE, MAYETTE 1999, p. 228). Em 1982 ela faleceria sem concretizar este desejo.
Neste ínterim, várias causas foram evocadas para apreender o que ocorrera: 1)
tensão entre classes sociais; 2) ―perseguição‖ – hipótese levantada, inclusive, por Lacan,
desde o episódio em que as irmãs pedem, ao prefeito de Le Mans, para ―emanciparem‖
Léa; 3) resposta aos maus tratos da patroa – exemplificados pelo episódio em que Léa,
então com quinze anos, é ‗forçada‘ pela senhora Lancelin a ajoelhar e pegar um pedaço
de papel no chão; 4) desencadeamento psicótico a partir da ruptura das irmãs com sua
mãe – causado pela intervenção da Sra. Lancelin, que teria dito às Papin que não
dessem mais todo seu dinheiro à sua mãe e etc.
Do mesmo modo, um sem número de artigos, livros e filmes foram deflagrados,
desde 1933, pelo caso das irmãs Papin61; todo este material, citado no magistral estudo
empreendido por Allouch, Porge e Mayette sobre o assunto − estudo este que, ao lado
do texto de Lacan, serve de base à nossa descrição do caso −, apenas reitera o nonsense
trazido à baila por aquele ato: aquele duplo homicídio apresenta a dimensão que Lacan
reconhecera como ―impossível‖, ou seja, aquilo que, por furtar-se de sua captura, ―não
cessa de não se escrever‖ (idem, p. 14). No que concerne aos prosseguimentos de nossa
tese buscaremos sustentar que é este real presentificado na passagem ao ato e não sua
redução aos motivos o que pensamos estar em jogo nos assassinatos imotivados.

61
Lacan, os irmãos Tharaud, os surrealistas Benjamim Péret e Paul Eluard escreveram sobre o caso pouco após seu
aparecimento; em 1947 Jean Genet publicara, desde ―o caso‖, sua peça Les bonnes (―As criadas‖), retomando o
assunto anos mais tarde em um debate com Sartre; em 1963 Vauthier e Papatakis filmariam, sobre as irmãs, Les
Abysses, mesmo ano em que Le Guillant escreveria L’affaire des soeurs Papin e G. Bonnot redigiria La soirée em
enfer; em 1966 Paulette Houdyer, a quem Léa cedera uma mútica entrevista, publicará Le diable dans la peu; em
1995 Nancy Meckler dirigirá Sister my sister; em 2000, surgirá o filme Les blessurers assassines, de Jean-Pierre
Denis, mesmo ano em que aparecerá o documentário En quête des soeurs Papin, de Claude Ventura.
77

II) Novos herdeiros. A mesma herança?


No lastro destes pormenorizados estudos clínicos, a controvérsia e a colaboração
entre médicos e juízes – estruturais neste debate − tornam a se fazer presentes: é neste
sentido que autores como Capgras pontuam, em coro, o erro ―profundamente enraizado
dos magistrados‖, de tomar a ―aparente lucidez‖ como elemento para responsabilizar
penalmente aqueles que precisam de tratamento. Reiterando a importância da expertise,
dirá ele, então, que a ―dissimulação do delírio‖ e a ―lucidez do malade‖ por vezes
passam por cima da capacidade do juiz (CAPGRAS 1927a, p. 34).
Por outro lado, a clínica psiquiátrica, por meio da sistematização kraepeliniana −
na edificação da nosologia clássica − fazia da paranóia um tipo clínico coeso e não
coincidente com a antiga noção que a associava à desordem mental. Do mesmo modo, a
demência precoce − denominada, a partir de Bleuler, como ―esquizofrenia‖, surgia
como entidade clínica de importância crucial para a nova psiquiatria. É em relação a
esta ordenação que a psiquiatria que formara Jacques Lacan buscará pensar as
complicações médico-legais causadas pelos homicídios imotivados na psicose.

São os mesmos loucos, lúcidos em aparência, que dão lugar de


tempos em tempos, a estas histórias dramáticas de seqüestros
arbitrários, que erguem tão violentos protestos na imprensa e no
público. E, entretanto, que fazer? A sociedade deve então restar
desarmada em face de seus feitos maldosos, de seus escândalos
e por vezes de seus crimes? Os perseguir? Mas eles são
irresponsáveis! Os seqüestrar como alienados? Eis a qual
impasse nos deixamos conduzir, quando não queremos nos dar
conta de todos os elementos do problema (CULLERE 1888).

Ao analisarmos os crimes imotivados, lidos agora pela psiquiatria clássica,


veremos como estas duas categorias, paranóia e esquizofrenia, serão as duas grandes
herdeiras62 da discussão levantada por Pinel ao detectar, nas loucuras não evidentes, a
―tendência automática a atos de atrocidade‖ (PINEL 1801, p. 151). Embora este
refinamento clínico não implique necessariamente uma tomada de posição distinta da
perspectiva ―preventivista‖ e de ―defesa social‖ – mas, a fortiori, também não a
determine − ao acercar-se da discussão clínica mais apurada, este debate permitiria, ao
menos, que estas valiosas considerações elevassem os problemas a outro nível.

62
Em verdade, também a melancolia, seja em sua acepção pré-clássica ou em seu classissimo, comparece
nas descrições de crimes sem motivo. Dubuisson e Vigouroux (1911), por exemplo, destacam o chamado
de ―homicídio altruísta‖, em que matam-se filhos, maridos ou amante para que estes não sofram pelo
suicídio, paradoxalmente nem sempre bem sucedido, do melancólico.
78

A) Crimes paranóicos: as psicoses passionais


Kraepelin ao definir a paranóia em termos clássicos, a explicita como uma
―psicose progressiva crônica‖, na qual o delírio, de ―desenvolvimento progressivo e
estável‘ não redunda, para o enfermo, em ―deterioração mental‖, do ―pensamento‖,
―volição‖ ou da ―conduta‖ (KRAEPELIN 1915, p. 423). Mas, se nesta definição, há a
referência a alteração não dramática da conduta, Kraepelin, não obstante, considerou a
presença de ―ataques assassinos‖ como fator ligado ao quadro clínico:

Em reação aos delírios, eles tentam chamar a atenção pública


para sua perseguição escrevendo artigos de jornal e fazendo
circular panfletos. Muitas vezes eles apelam à polícia por
proteção. Frequentemente eles assumem a ofensiva, e levam a
cabo a vingança com suas próprias mãos. Não infrequentemente
a primeira evidência de doença é um ataque assassino sob
alguém. O paranóico é, por esta razão, o mais perigoso de todos
os insanos (idem, p. 430).

A paranóia, descrita pelo crivo kraepeliano, trazia, em seu cerne, a possibilidade


de complicações médico-legais, complicações estas que levaram os psiquiatras a buscar
definir quais dentre seus subtipos seriam mais propensos a atos homicidas: os delírios
passionais, ao mesmo tempo próximos e distantes das formas interpretavas da paranóia,
assumem, a este respeito, um lugar de relevo. Ilustra isto a discussão trazida à luz por
Joseph Capgras nos Annales médico-psychologiques (1927), evocada por Tendlarz em
Aimée com Lacan (1999), debate este intitulado Crimes e delírios passionais.
Na apresentação e debate ali publicados, a base da argumentação de Capgras
reside em sua concepção da paranóia como folie raisonnante, loucura constitucional que
é, não um corte em relação ao pensamento racional, mas, sim − como descrito por
Esquirol − uma derivação lógica originada desde premissas delirantes. A despeito desta
racionalidade, Capgras não deixa de sublinhar, lado a lado à ―lucidez‖ e a ―clareza‖ de
espírito, ―a satisfação do paranóico criminoso ante o cadáver de sua vítima‖
(CAPGRAS 1927a, p. 32). Mas como diferenciar os homicídios cometidos nas psicoses
delirantes passionais − nos delírios de reivindicação, ciúme, e erotomania − daqueles
impetrados pelas paixões ditas ‗normais‘? Em que a distinção entre delírio de
reivindicação e de interpretação auxilia o clínico ao ocupar-se dos enfermos?
No que tange a diferenciação entre os homicídios nas psicoses e nos crimes
passionais, dois parâmetros são levantados por Capgras e seus interlocutores: 1) na
variante que chamaremos de ‗quantitativa‘, a diferença residiria na desproporção entre o
79

que deflagraria o ocorrido e a ação efetuada; e, 2) na variante que nomearemos como


‗qualitativa‘, a distinção se alocaria na presença e lógica das idéias delirantes.
A variante ‗quantitativa‘ evoca − ainda que implicitamente − o princípio, visto
por nós, de ―crime real‖. Como pontuamos, esta ‗realização‘ implica que o que leva o
indivíduo a transgredir são os ―móveis do crime‖, ou seja, o fato de que ―esses motivos
e esses móveis devem ser compreensíveis, e compreensíveis para todos‖ (LACAN
1950, p, 140). Esta redução incorre tanto na apreensão ―dos princípios de seu
aparecimento, sua repetição, sua inteligibilidade natural‖ (FOUCAULT 1975, p. 110),
quanto na tentativa de superpor a mecânica da ação à racionalidade do sujeito, cônscio e
inclinado − mas não determinado, por que livre − ao ato.
Ora, na argumentação ‗quantitativa‘ é a ―desproporção entre o móvel evocado e
a superatividade dispensada‖ (CAPGRAS 1927a, p. 40) que permite identificar o
homicídio psicótico. O delirante reivindicador agiria desde um ardoroso sentimento de
dano; nos delírios de ciúme, o louco basearia sua conclusão de traição no grande apego
a idéias absurdas ou inverossímeis; na erotomania, encontrar-se-ia o ―postulado‖ ‒
―idéia prevalente‖, ―hiperestimada‖ – que incorre na não menos excessiva vigilância e
perseguição dispensadas pelo delirante ao ‗alvo‘ do delírio. Intentando explicitar seu
ponto de vista, Capgras expõe casos como o de uma mãe que, por ciúmes, incendiara ―a
própria filha‖ (idem, 42-3). De acordo com esta chave de compreensão ele conclui que

O que constituiu a morbidade do estado passional não é a


inexatidão da idéia prevalente nem a abundância de
interpretações, é a polarização da afetividade, a cegueira, a
tenacidade, o encarniçamento, breve hiperestenia e, ponto
capital, uma hiperestenia excessiva (idem, p. 40).

Esta diferenciação, que faz residir na intensidade do estado afetivo o índice de


diferenciação entre os homicídios nas psicoses passionais e os crimes passionais, como
nota M. P. Courbon, é ―insuficiente‖ (CAPGRAS 1927b, p. 289): ―é muito difícil medi-
lo‖ − conclui ele, embora evoque ele mesmo o argumento, de certo moralista, de que
―uma paixão que mata não é uma paixão do homem normal‖ (idem, p. 291).
Por outro lado, na variante que chamamos de ‗qualitativa‘, Capgras evoca a
presença da idéia e da lógica delirantes como possibilidade de operar a distinção entre
paixão e delírios passionais. Para tal, ele recorre às distinções, elaboradas por ele,
Sérieux e Clérambault, entre delírios de interpretação e passionais. É o que veremos ao
explorar, rapidamente, o texto Les delires passionnels (1921), de Clerámbault.
80

A.1) Delírios passionais e interpretativos


Para Clérambault − e nisso este se aproxima da descrição da paranóia
desenvolvida por Kraepelin − os delírios interpretativos têm como sendo seu
fundamento ―o sentimento de desconfiança‖ (CLÉRAMBAULT 1921). Este
sentimento, ―antigo‖ − pontua o autor − regula as relações do enfermo com o ambiente.
Por um desenvolvimento que Clérambault chama de ―irradiação circular‖, o delírio
passa a abranger domínios cada vez maiores da vida do indivíduo, chegando, inclusive,
a transformar o próprio ―eu‖.
O delírio interpretativo, formado por ―conceitos múltiplos, cambiantes e
progressivos‖ engaja os delirantes numa procura por explicações às quais este pode
encontrar ―apenas gradualmente‖; gradualmente, também, estes mudam de tema,
vivendo-os ―numa rede circular e infinita‖. O ―interpretativo‖ busca explicações para
seu estado mental no passado, tentando coordenar suas idéias − ainda que, à diferença
dos passionais, não haja nem subordinação entre elas, nem, tampouco, idéias
prevalentes. Pela conformação delirante, o sujeito não é ―excitado‖, acha-se, antes,
―errante no mistério, inquieto e pasmo‖ (idem), reduzindo-se a possibilidade de que, por
meio de uma ‗eleição‘ delirante, possa se encontrar um alvo sobre o qual deflagrar atos
agressivos.
Nas síndromes passionais, Clérambault marca, de início, o incremento, ao
delírio, do furor passional. Entretanto, a paixão não modifica o ―eu nem as relações do
louco senão no que diz respeito ao domínio do delírio. Tendo sua extensão polarizada −
e não ―circular e infinita‖‖ − o delírio passional detém a noção de ‗objetivo‘ − atrelado
ao que de Clérambault chamara de ‗um passo reivindicador comum‖ (idem). Haveria,
assim, um ―nó ideo-afetivo‖ constituído por uma emoção veemente, que monopoliza o
espírito; esta idéia, ―conceito diretor único‖, faz subordinar as demais numa espécie de
hierarquia. Sendo as convicções do psicótico passional deduzidas do postulado, sua
supressão, à diferença do interpretativo, faz o delírio tombar, o mesmo ocorrendo
quando o rival, o amado ou o agressor partem ou morrem. Justamente por possuírem um
alvo preciso, os passionais não procuram as coisas no passado, sendo ―apressados‖; esta
urgência, concomitante à eleição de alvos passíveis pelo delírio, renderia a estes loucos
a determinação que os leva aos atos homicidas mais frequentes. Para ilustrar esta
posição, partilhada com de Clérambault, Capgras cita um caso de delírio de ciúme em
que, paradoxalmente, partira de uma traição concreta.
81

Constatando o adultério, a paciente, provocara, após uma série de exageros e


discussões, o que alegava temer: a separação. Tomada por idéias de suicídio − que
Capgras relacionou às idéias anteriores de ―envenenamento‖, ―contaminação
específica‖, ―hipocondria‖ e etc. (CAPGRAS 1927a, p. 37) − ela dispararia tiros contra
seu amante. Deveria esta mulher ser julgada? A posição do autor, aproximando o fato de
episódios anteriormente ocorridos, o leva a concluir pela ―constituição paranóica, e,
portanto, pela internação: ―o delírio passional mórbido, ao contrário das paixões
normais, só se acalma pelo crime ou pela internação‖ (idem, p. 44).
Conclusões apressadas à parte, o ponto de vista ‗qualitativo‘ − que visa a separar
psicoses passionais e paixão desde a lógica do delírio − embora frutífero, fora
acompanhado de perto por dois fantasmas. O primeiro, do retorno, pelo avesso, do
‗instinto homicida‘, ‗mal‘, e ‗perverso‘, associado à transgressão. Este retorno, embora
num primeiro momento possa parecer isentar o psicótico, apenas ressuscita a
periculosidade de certa parcela de alienados. Segundo pensamos, esta lógica pode ser
encontrada nas palavras de Courbon − interlocutor de Capgras −, segundo o qual:

Não são os amorosos ou os odiosos os mais apaixonados, nem


os paranóicos ou os reivindicadores os mais delirantes que
matam; são os que são os mais perversos ou mais impulsivos
[...] Delirante ou apaixonado, o criminoso é, antes de tudo, um
ser perigoso (CAPGRAS 1927b, p. 289).

O segundo fantasma − termo impreciso para uma presença tão substancial − é a


do requerimento, no código penal, da inclusão das noções de ―nocividade‖ e
―curabilidade‖ − numa posição quase consensual entre aqueles psiquiatras. Estas noções
assegurariam ao médico o poder para exercer, não apenas junto ao juiz mas quase como
este, funções de defesa social:

... malgrado a incerteza de alguns diagnósticos, com justeza as


conclusões mudariam para se adaptar apenas à objetividade dos
fatos no dia em que os acusados puderem estar submetidos a
uma observação continua num serviço de psiquiatria, no dia em
que seriam criados asilos de segurança e um regime especial
para os alienados criminosos, ou o dia enfim em que as noções
de morbidade e nocividade substituírem totalmente aquela de
responsabilidade, sempre marcada de subjetivismo. (CAPGRAS
1927a, p. 47).
82

Mas, se as loucuras do raciocíonio, desde a lógica delirante, permitiriam atingir,


para além da lógica utilitária dos ―móveis do crime‖ − como dissera Lacan − algo do
disposto nos homicídios imotivados, como se debruçar sobre os homicídios em que a
própria presença da arquitetura delirante se encontrava ausente? Não ocorrera algo
semelhante quando em 1933, mesmo diagnosticadas como paranóicas, as irmãs Papin
pouco ou nada apresentaram em termos de delírio?
Deparando-se com esta questão, Paul Guiraud, em sua avaliação dos homicídios
imotivados na esquizofrenia, será convocado a fazer um recurso até então inédito a um
saber distinto do psiquiátrico para esclarecer tais crimes: trata-se do aporte à teoria
freudiana sobre o isso e a construção, a partir desta, do que ele chamaria de ―kakon‖.

B) Da esquizofrenia ao kakon
No texto Crime et delires passionnels (1927a), de Capgras, explorado por nós há
pouco, este autor tece considerações sobre os homicídios imotivados na paranóia. De
um lado, vimos como, numa vertente ‗quantitativa‘, a procura pela apreensão da lógica
do ato passava pela via de uma ―desproporção‖ entre o motivo alegado –
frequentemente delirante – e a ação impetrada. Vimos, também, que esta perspectiva
mostrava-se ―falha‖ por carecer de parâmetros de mensuração, baseando-se em
pressupostos que, além de não concernirem ao real, eram moralistas: ―A paixão que
mata não é a do homem normal‖ (CAPGRAS 1927b p. 291). Por outro lado, na vertente
‗qualitativa‘, a lógica delirante permitia apreender, nas psicoses em que o delírio era
sistematizado, as formatações que conjugavam o homicídio louco e ―imotivado‖.
Curiosamente, contudo, em sua discussão sobre ―crimes e delírios passionais‖,
que versaria sobre as psicoses passionais, Capgras abrira o carrossel de casos clínicos
com uma história que pertence ―à esquizofrenia mais que à paranóia‖ (CAPGRAS
1927a, p. 33). Trata-se do caso de uma mulher, internada em seu serviço aos 43 anos,
que, aos 20, ―havia matado o amante por golpe de faca devido a um motivo fútil‖ (idem,
p. 33). Após três anos na prisão e seis meses de internação, esta mulher, passa 20 anos
―se conduzindo bem‖ − casando-se e tendo três filhos −, até o momento em que ―uma
alucinação a impeliu a apunhalar um guarda municipal em frente ao palácio de justiça,
para vingar seu pai defunto que suas vozes acusavam de ter sido cúmplice do primeiro
assassinato‖ (idem, p. 33). Se as vozes e temas delirantes mergulhavam a mulher num
absoluto nonsense − sendo, por vezes, posteriores aos homicídios − como apreender que
tenham conduzido pacientes a empreenderem ações como estas?
83

Se as psicoses passionais, por sua conformação delirante, rendiam uma chave,


senão explicativa ao menos aproximativa da lógica dos homicídios sem motivo, a
demência precoce ou a esquizofrenia punha estas chaves em suspenso: havia crimes
cometidos em que mesmo a lógica delirante se achava ausente. A incompreensibilidade
do homicídio esquizofrênico hipertrofiava, assim, o aspecto imotivado de tais ações
rendendo, como pontuara DUTRA (2002, p. 35) a atribuição de um período
―prodrômico‖ − não deflagrado ou médico-legal na esquizofrenia; etapa em que os
primeiros sintomas se manifestam no ―crime‖. É a partir desta etapa − embora
ultrapassando o disposto até então com esta descrição − que em 1927, Guiraud e
Cailleux escrevem o luminar artigo intitulado Le meurte immotivé, réaction libératrice
de la maladie (GUIRAUD e CAILEUX 1928).

B.1) Paul Guiraud, o kakon e os ―assassinatos imotivados‖


Em seu texto de 1928, Guiraud e Cailleux partem do seguinte ponto:

Todo o interesse destes enfermos [neste estudo] reside para nós


na estranheza de suas violências, na aparente incoerência de
suas reações anti-sociais. Tratava-se, com efeito, de assassinatos
ou tentativa de assassinato, perfeitamente imotivados. Nada
comparáveis com o assassinato premeditado de um perseguido,
com o assassinato impulsivo de um verdadeiro demente, nem
tampouco com o assassinato cumprido bruscamente por um
alcoólatra (GUIRAUD e CAILLEUX 1928, p. 356).

Para expor suas concepções sobre o assunto, os autores se debruçam sobre a


―hebefrenia ela mesma‖ (idem, p. 357). Elegendo, para tal, um caso clínico, eles
intentam apreender a lógica manifestada nestes homicídios.
Paul, sem histórico de doença mental em sua família, era um rapaz ―calmo,
organizado, silencioso e bastante trabalhador‖. Aos 18 anos, todavia, uma ―mudança‖
passaria a se tornar observável em sua atitude: cada vez mais taciturno, absorvia-se no
trabalho, desinteressando-se por todo o resto. Fatigado, entregara-se à bebida como
forma de ―se distrair e reconfortar‖, o que lhe custaria o emprego por motivos de
embriaguez. Desempregado, passa a freqüentar o partido comunista desenvolvendo uma
―vaga raiva de tiranos e exploradores‖ (idem, p. 353) e tornando-se, paradoxalmente,
religioso: ―desgostoso dos homens, Paul se dirigia a Deus‖.
Certo dia, aos 20 anos, ele toma um táxi em direção ao que seria o ―castelo de
seu pai‖, ―conde Figeal‖. Nas conversas no interior do automóvel, K. o motorista, se
84

declara um antigo oficial da marinha imperial russa. Chegando a seu destino, Paul
convida K. para uma caminhada num parque, caminhada esta que, após 40 minutos, fora
interrompida por tiros mal disparados que atingem o braço e o flanco de K. Deixando o
taxista para trás, Paul tenta em vão dar a partida no carro. Não conseguindo, toma outro
taxi e segue até o comissariado de polícia mais próximo, dizendo, lá, fazer parte de uma
poderosa sociedade secreta cujo chefe, ―coronel da armada russa‖, ele havia encontrado
15 dias antes. Teria sido este chefe quem o designara a matar, mediante pagamento, um
traidor.
Reinterrogado após certo tempo, Paul diz não saber o porquê de ter feito aquilo;
passado outro período, ele atribuiria o ocorrido ao álcool. No momento em que
escrevem o artigo, os autores afirmam que ele parece ter abandonado qualquer crença
delirante: entre a ―indiferença, a inércia e a apatia‖ o paciente mostra-se pouco
interessado seja em seu destino seja no da vítima.
Os autores extraem, deste caso, certa evolução: uma ―violência imotivada
atacando um desconhecido, também a fabulação romanesca e mal acabada que segue
imediatamente o drama e enfim o abatimento indiferente em que se prolonga o
enfermo‖ (GUIRAUD e CAILLEUX 1928, p. 356). Nesta seqüência, o ―debruçar-se
improdutivo sobre si mesmo‖, o retraimento, cede lugar a uma ―penosa sensação por
sua vez física e mental‖, penosidade esta que culminaria num sentimento de urgência:
―era anormal‖, ―piorava e era preciso fazer alguma coisa‖ (idem, p. 357) – dissera o
paciente.
Na história de Paul, os autores demarcam duas formas de ―defesa‖ anteriores à
tentativa de homicídio, dirigidas ao profundo mal-estar: 1) a bebida, que ―no campo
físico‖ agia de forma ―estimulante‖ e como um modo de ―fazer esquecer‖; e, 2) a adesão
à política e à religião no campo mental. É ao evocar a idéia de defesa – que punha, em
segundo plano, a procura por antecedentes patológicos familiares, ademais inexistentes
− que os autores recorrem à teoria psicanalítica: segundo asseveram, a segunda forma
de defesa ―era, como dizem os psicanalistas, uma forma de sublimação defensiva. Suas
elocubrações o conduziam à idéia de um ―mal geral‖ e de que ―era preciso suprimi-lo‖
(idem, p. 357-8). ―Nada extraordinário‖ – prosseguem Guiraud e Cailleux – ―que tenha
fundido a noção de enfermidade (―maladie‖) com aquela do mal social ou que tenha
sobretudo simbolizado a primeira pela segunda‖ (idem, p. 358). Nesta perspectiva:
85

A reação violenta aparece assim, por sua vez, como o último


sobressalto de energia de um organismo que mergulha na
indiferença e na inação e como resultado de uma transferência
do desejo ―curar a enfermidade‖ sobre aquele de ―suprimir o
mal social‖: ―matar o mal‖ (tuer le mal) = ―matar a mazela‖
(tuer le maladie). Assim compreendida, a reação anti-social
pode se produzir seja determinada por uma causa ocasional seja
mesmo – como é o caso – sem ter necessidade de qualquer
determinante exterior (GUIRAUD e CAILLEUX 1928 p. 358).

A conclusão a que chegam Guiraud e Cailleux é a de que os homicídios


imotivados, embora careçam de ―motivos compreensíveis‖ – que, como vimos, são a
base para se pensar a noção moderna de ―crime real‖ ou de ―móveis do crime‖ – eles
tem uma causa: são, pois, ―não uma reação sem causa, mas um esforço de liberação
contra a enfermidade transposto patologicamente para o mundo exterior‖ (Idem, p. 359).
Construída desde ―mecanismos de defesa‖ apreendidos a partir da narrativa do
próprio paciente, esta teoria explicativa tendia a não atribuir, ao homicida, uma
natureza: o mecanismo produtor da ação homicida seria não um instinto degenerado ou
atávico, mas, sim, uma tentativa de cura. Este recurso a conceitos como sublimação,
transferência, simbolização e desejo – e de certa forma à posição – freudianos viria a ser
repetido por Guiraud num segundo artigo sobre o assunto, publicado quatro anos
depois. Em Assassinatos imotivados (1932) este aporte ao freudismo é escancarado:

Utilizando a terminologia de Freud, devemos distinguir os


crimes do eu e os crimes do si mesmo (isso). No primeiro caso,
o indivíduo age conforme sua plena vontade e com a ilusão de
liberdade; no segundo, o organismo obedece diretamente ao
isso, o eu fica como espectador surpreso, passivo e por vezes
resistente (GUIRAUD 1932, p. 37).

Neste artigo, Guiraud procede sua elaboração clínica retomando o caso Paul –
desenvolvido junto a Cailleux – e acresce, ainda, três outros casos: 1) Edouard, que,
ante a sensação de inquietude, que explodira em meio a Escola de Odontologia, dispara
não contra seus ―perseguidores‖ mas contra a própria família; 2) Enrique para o qual a
irrupção avassaladora do mal-estar, acompanhada de experiência de ―possessão‖, o
levariam a matar ―a mulher que deveria ter sido sua noiva‖; e 3) Louis, que assassinara
sua filha a tiros, empreendendo, posteriormente, a explicação de que o fizera para
protegê-la de perseguidores – explicação que Guiraud entendera como encobridora dos
ciúmes do pai em relação a filha. Com efeito, ao reunir estes casos, Guiraud pretendia
86

sublinhar ―a importância de motivos profundamente inconscientes em certos atos de


violência cometidos por alienados‖ (GUIRAUD 1932, p. 91).
Curiosa, mas não fortuitamente, junto a este recurso ao cabedal freudiano,
operava-se, quase imperceptivelmente, um deslocamento do registro puramente médico-
legal para o clínico. Como frisara Tendlarz, ―o que caracteriza os dois artigos‖ – o
escrito por Guiraud e Cailleux e aquele em que Guiraud retoma o tema – ―é não estarem
implicados nas questões da responsabilidade penal e da pena, privilegiados na relação
da justiça com a psiquiatria‖ (TENDLARZ 1999, p. 85).
De fato, analisados em filigrana, estes artigos sobre os assassinatos imotivados –
formulados desde o aporte freudiano – marcam um contraponto à posição exposta pelo
próprio Guiraud quatro anos antes, segundo a qual seriam parâmetros como os de
―perigo‖ e ―ordem pública‖ aqueles mais valorizados em sua definição de afecção
mental:
Concluímos que são alienados os indivíduos atingidos por
afecções mentais que comprometem a ordem pública ou que são
perigosos para eles mesmos ou para os outros. A tendência
mesmo virtual à reações violentas, a impossibilidade
demonstrada de se adaptar, sem perigo para os outros, a vida
social, a inintimidabilidade, a irresistibilidade das tendências
anti-sociais são, a nosso ver, afecções mentais (GUIRAUD
1927, p. 405).

É concomitante a este deslocamento do registro médico-legal para o clínico que


vemos emergir, retomado do grego, o termo ―kakon‖ – o ―mal‖ inerente à afecção que,
ao mesmo tempo interior-exterior, devia ser extirpado. Tomado desde a noção de kakon,
o homicídio imotivado resulta de um curto circuito e não da atualização de uma
tendência ou instinto ―já lá‖ que manifestaria uma virtualidade perigosa. É um modo de
defesa – uma ―tentativa de cura‖, diremos com Maleval (2000, p. 42) e Tendlarz (1999,
p. 125), aquilo que leva o paciente a tentar matar seu kakon, o mal-estar que, como
desconforto e inquietude inunda seu ser. Assim, retomando o caso Paul, − que motivara
a publicação do primeiro texto – Guiraud assevera que:

Por um ato de violência, Paul tentou suprimir o kakon para usar


a expressão de V. Monakov e de Mourgue (...). Essa tendência
que, se não se exprimiu conscientemente, realizou-se por um
ato de curto-circuito (satisfação direta de uma tendência, sem o
estado de intelectualizações). A invenção romanesca do complô
no porão era uma tentativa de explicação imaginária no só-
depois. (...) A tendência em matar a doença se satisfaz com seu
próprio desconhecimento, quase involuntariamente (GUIRAUD
1932, p. 88).
87

Lacan, radicalizando a noção de kakon – desde seu caso princeps e de sua


análise do crime das irmãs Papin – já nos anos 30, acentua a dimensão econômica,
lógica e libidinalmente organizada. Destacando que ―o ponto de vista da defesa social
apenas pode conduzir a conclusões perigosas‖ (LACAN 1935, p. 691), Lacan critica a
―arbitrariedade‖ e as ―plumas médicas‖ nas expertises judiciárias, não desconhecendo,
todavia, a legitimidade da demanda endereçada pela sociedade aos clínicos acerca da
construção de respostas consistentes para o problema. É neste contexto que Lacan
sublinhará que, nos crimes kakon, em que a incompreensibilidade se faz patente, trata-
se de ―um esforço para romper o círculo mágico, a opressão‖ – leiamos, hoje, o gozo –
―do mundo exterior‖ (idem, p. 690). Esta posição, amparada na experiência que o levara
às portas da psicanálise – a passagem ao ato homicida que o conduzira ao que se tornou
seu caso Aimeé – fora depurada pelo jovem psicanalista a partir de Guiraud desde sua
tese de doutoramento:

Aqui, com efeito, entramos plenamente no terreno coberto pelo


magnífico estudo de Guiraud sobre os crimes imotivados. Para
explicar estes crimes, Guiraud faz ver a necessidade de recorrer
à doutrina freudiana e à distinção generalíssima que esta
doutrina permite estabelecer entre os crimes do Eu (nos quais
entram todos os crimes chamados de interesse) e os crimes do
Isso (nos quais entram os crimes puramente pulsionais, como os
que se dão tipicamente na demência precoce) (LACAN 1932, p.
306).

Em sua tese de doutorado, Lacan, no lastro dos psicanalistas, propõe acrescer


aos crimes do eu e os crimes do isso – destacados por Guiraud – os crimes do supereu.
Trata-se, nestes ―crimes‖, daquelas ações conduzidas nos delírios de reivindicação – que
fazem apelo a autoridade punitiva – e daquelas, já destacadas por Freud, referidas ao
avassalador sentimento de culpa: os crimes de autopunição, no qual o transgressor, por
meio de uma infração, buscar ligar o sentimento que o acossa e que tem proveniência
inconsciente, a uma representação.
A paranóia de autopunição, que Lacan associa ao quadro clínico da paciente
Aimée, pertenceria a esta categoria de ―crimes do supereu‖. Através da agressão
dispensada a sua vítima, que se alojava num lugar de ideal para Aimée, a ação homicida
realizava uma dupla punição; atingia-se o ideal da paciente assim como se realizava, por
intermédio da resposta punitiva a este feito, outra punição. Mas o que levaria a
psiquiatria clássica a buscar no corpus freudiano elementos teóricos para apreender o
real por detrás da imotivação, na ausência de delírio?
88

Este recurso faz-se pouco surpreendente quando constatamos que, no campo


psicanalítico, vários estudos haviam sido consagrados não apenas aos atos falhos e
sintomáticos, mas, mais especificamente, a crimes que, sem o recurso à determinação
inconsciente, seriam inapreeensíveis em sua lógica. O diálogo entre clínica psiquiátrica
clássica e psicanálise estruturava-se, pois, desde a tentativa de restituir − após a
―regressão filosófica‖ apontada em 1950 por Lacan, qual seja, o ―instintos criminoso‖ −
os assassinatos imotivados ao campo das considerações científicas. É neste sentido que
o tópico sobre os crimes ―em conseqüência do sentimento de culpa‖ mostraram-se como
vedetes para a discussão sobre os atos imotivados. Desde esta ótica torna-se apreensível
o fato de que ―a psicanálise se introduz na França a partir da criminologia e da discussão
em torno do supereu‖ (TENDLARZ, 1999, p. 91).
Para além da contingência histórica, o capítulo seguinte visará, pois, explicitar
como a psicanálise nos permite atingir, desde a satisfação oriunda da autopunição, as
determinações inconscientes como chave para apreender os crimes de autopunição e o
supereu, paradoxal ―lei fora da lei‖, ao mesmo tempo presentificada por imperativos
morais e, paradoxalmente, operando como empuxo à transgressão.
89

− Capítulo IV −
A psicanálise perante os chamados
―crimes‖ imotivados: da autopunição ao kakon
No capítulo anterior, intentamos apreender, em grandes linhas, a emergência da
noção de ―kakon‖ desde o diálogo entre a clínica psiquiátrica clássica e a psicanálise,
saber recém emergido na cena da cultura. Num passo da morfologia à psicopatologia, a
psiquiatria faria da fenomenologia clínica a base para estabelecer suas descrições,
diferenciações e diagnósticos, mudança esta que passaria a formatar a aproximação
concedida ao tema dos assassinatos imotivados. Deste modo, a paranóia, as psicoses
passionais e a esquizofrenia se faziam herdeiras das descrições pinelianas e morelianas
do ―furor cego‖ (PINEL 1801, p. 157) que tomava os alienados.
Pensadas desde a noção kraepeliniana de ―delírio sistematizado‖ de evolução
―insidiosa‖ (KRAEPELIN 1915, p. 423) ou como ―loucura raciocinante‖, por Capgras,
as sutilezas da paranóia – que deixariam o leigo desarmado ante a aparente ―lucidez‖ e a
―clareza‖ de espírito (CAPGRAS 1927a, p. 32) – permitiam acesso a uma lógica para
além da razão utilitária, onde perfilavam-se os homicídios irredutíveis aos crimes de
interesse. Mas como apreender aqueles homicídios em que mesmo as razões delirantes
encontravam-se ausentes?
Partindo da esquizofrenia hebefrenica, Guiraud e Cailleux aventarão a hipótese
de que, nestes homicídios, embora careça-se de ―motivos compreensíveis‖ – que, como
vimos, são a base para se pensar a noção moderna de ―crime real‖ ou de ―móveis do
crime‖ – há causa: são, pois, ―não uma reação sem causa, mas um esforço de liberação
contra a enfermidade transposto patologicamente para o mundo exterior‖ (GUIRAUD e
CAILLEUX, 1928, p. 359). Num recurso a conceitos como ―mecanismos de defesa‖,
―sublimação‖, ―transferência‖, ―simbolização‖ e ―desejo‖ estes autores farão um aporte
ao freudismo, apelo que se desenhava desde a tentativa de restituir − após a ―regressão
filosófica‖ apontada em 1950 por Lacan, qual seja, o ―instinto criminoso‖ − os
assassinatos imotivados ao campo das considerações científicas.
Como veremos no presente capítulo, se a determinação inconsciente havia dado
mostras de efetividade ao atingir os atos falhos e sintomáticos, vários estudos analíticos
haviam sido concedidos a certos crimes que, sem o recurso a esta determinação, seriam
inapreeensíveis em sua lógica. Nos crimes de autopunição, desvelava-se o supereu,
paradoxal ―lei fora da lei‖, ao mesmo tempo presentificada por imperativos morais e,
paradoxalmente, operando como empuxo a transgressão.
90

I) Os crimes de autopunição: o supereu e a pulsão de morte


A descoberta freudiana da determinação inconsciente dos processos psíquicos –
descoberta atrelada a um manejo clínico que fazia emergir, do campo da experiência,
uma dialética jamais vista outrora nesta área – abria uma nova via de abordagem dos
atos imotivados. Para além da lógica degeneracionista, atavista, e mesmo utilitária, o
inconsciente freudiano, como uma espécie de ‗pedra de roseta‘, surgia como forma de
conferir inteligibilidade a fenômenos antes intocados pelas investigações teóricas. Em
Psicopatologia da vida cotidiana, de 1901, Freud demonstra, por meio de inúmeros
exemplos, a determinação inconsciente não apenas na esfera do pensamento puro, mas,
também, em seus desdobramentos motores, mormente sob a forma de lapsos e atos
equivocados.
A hipótese freudiana é a de que esses fenômenos, ordinariamente tomados como
desacertos, ―seguem vias previsíveis, que obedecem a leis‖ (FREUD 1901, p. 19); por
―deslocamentos‖, ―condensações‖ e ―distorções‖, um pensamento inconsciente se impõe
ao sujeito, reverberando, inclusive, em suas ações. Dito de outro modo, a realização
―desviada‖, desastrosa ou equivocada em relação à intenção consciente pode revelar o
conflito entre um elemento recalcado – alijado do fluxo de pensamentos conscientes – e
a censura. Desvela-se, assim, pela apreensão destas ―leis‖, uma analogia entre estes
acontecimentos e o sonho:

O mecanismo dos atos falhos e dos atos casuais, tal como


passamos a concebê-lo mediante o emprego da análise, exibe em
seus pontos mais essenciais uma conformidade com o mecanismo
da formação do sonho (...) A situação é a mesma: por caminhos
incomuns e através de associações externas [não imediatas], os
pensamentos inconscientes expressam-se como modificação de
outros pensamentos (...) a aparência de uma função incorreta
explica-se pela peculiar interferência mútua entre duas ou mais
funções corretas (idem, p. 271).

No que concerne ao objeto do presente tópico − a saber, na interface entre


psicanálise e debate crime-loucura apreender o percurso da autopunição ao kakon –
privilegiaremos, dentre lapsos e atos equivocados, dois tipos destes. No primeiro tipo,
encontram-se aqueles em que o sujeito, ao ‗tropeçar nas palavras‘, presentifica certa
divisão através de uma espécie de ‗auto-delação‘ ou ‗auto-traição‘. Nestes casos,
segundo Freud, ―é a autocrítica, a oposição interna ao próprio enunciado, que obriga o
sujeito a cometer um lapso de fala e mesmo a substituir pelo oposto aquilo que
tencionava dizer‖ (idem, p. 97). Mas em que isto concerne ao debate crime-loucura?
91

Ora, é a propósito destes lapsos de auto-delação que Freud retoma, em uma nota
de rodapé (FREUD 1901, p. 250) – acrescentada em 1907 − o tema que, como vimos no
segundo capítulo, foi discutido um ano antes em seu A psicanálise a determinação dos
fatos nos processos jurídicos (1906): a iniciativa de Jung, Wertheimer e Klein – estes
dois últimos discípulos do jurista Hans Gross − de utilizar a determinação inconsciente
para forçar, nos tribunais, a auto-traição do criminoso e a formação da prova. Aqui
Freud mostra cautela: se ―talvez‖ os juristas possam colher frutos das descobertas
psicanalíticas, de outro lado lhe parece certo dizer que:

Realmente não creio que alguém cometesse um lapso da fala


numa audiência com sua majestade, numa declaração de amor
feita com sinceridade ou ao defender sua honra diante de um
júri – em suma, em todas as ocasiões em que a pessoa possa se
entregar de corpo e alma, como diz a significativa expressão
(FREUD 1901, p. 110).

Se Freud não depositava grande expectativa em relação a este ―experimento‖, a


discussão sobre a auto-traição ganhara ênfase nas edições posteriores da Psicopatologia:
em 1907, 1912, 1917, 1919 e 1920, esta parte de seu livro recebera numerosos adendos,
exemplos e citações. Conforme pensamos, esta prolixidade faz-se inteligível por uma
articulação com um segundo tipo de ‗tropeços‘ que, concernentes a nosso tema, também
destacaremos: trata-se das ações em que o sujeito, através da incidência inconsciente,
coloca-se em circunstâncias que lhe causam prejuízos mais severos, como é o caso das
autopunições e dos ―acidentes‖ e ferimentos inconscientemente auto-infligidos.
É passando a debruçar-se sobre as formas mais extremas deste se fazer punir que
Freud evoca ―casos mais graves de psiconeuroses‖ nos quais ―os ferimentos auto-
inflingidos ocasionalmente aparecem como sintomas patológicos‖, sintomas que podem
pressagiar ―o suicídio como possível desfecho para o conflito psíquico‖ (idem, p. 181).
Neste ponto destacamos uma interessante alteração no texto freudiano ao longo de suas
sucessivas edições. No ano de 1901, quando da primeira edição deste livro, ao tecer
considerações sobre esta auto-punição inconsciente, Freud escrevera:

Um dia provarei que muitos ferimentos aparentemente


acidentais sofridos por estes doentes são, na realidade, lesões
auto-inflingidas. Acontece que uma tendência [fruto do conflito
inconsciente] à autopunição, que está constantemente à espreita
e comumente se expressa na auto-censura ou contribui para a
formação do sintoma, tira hábil partido de uma situação externa
oferecida pelo acaso, ou contribui para sua criação até que se dê
92

o efeito lesivo desejado. Tais ocorrências de modo algum são


raras, inclusive nos casos de gravidade moderada, e denunciam
o papel desempenhado pela intenção inconsciente através de
uma série de traços particulares – por exemplo, a notável
serenidade com que os pacientes encaram o suposto acidente.
(FREUD 1901, p. 182).

Numa edição tardia do mesmo livro, vinte e três anos mais tarde, Freud alterará
drasticamente o sentido desta oração: onde se lia ―Um dia provarei...‖, na versão de
1901, ele passará a afirmar ―Sei agora, e posso provar com exemplos convincentes, que
muitos ferimentos aparentemente acidentais sofridos por estes doentes são, na realidade,
lesões auto-inflingidas‖, na edição de 1924. Mas, cabe aqui a questão: que razões teria
Freud para, neste ínterim, passar da expectativa de prova para a pujante afirmativa
destas autopunições? Segundo cogitamos, a pista para se entender este movimento
encontra-se antevista pelos próprios prosseguimentos a este trecho originais de 1901:

Quem acreditar na ocorrência de ferimentos semi-intencionais


auto-inflingidos (...) também estará disposto a supor que, além
do suicídio intencional consciente, existe uma autodestruição
semi-intencional (com uma intenção inconsciente) capaz de
explorar habilmente uma ameaça à vida e mascará-la como um
acidente casual. Não há por que supor que esta autodestruição
seja rara. É que a tendência à autodestruição está presente em
certa medida num número maior de pessoas do que aquelas em
que chega a ser posta em prática; os ferimentos auto-inflingidos
são, em geral, um compromisso entre essa pulsão e as forças
que se opõem a ela (idem, p. 183).

Nossa hipótese é a de que a ―autodestruição‖ − um dos nomes freudianos para a


pulsão de morte − e sua relação com uma instância que vigia o eu e o pune − o supereu
− será aquilo que, de 1901 a 1924, promoverá a mudança na posição freudiana no que
diz respeito às ‗provas‘ por ele reunidas acerca dos atos inconscientes de autopunição.
Se, como vimos no segundo capítulo e no presente, a descrença freudiana em
torno da auto-traição nos tribunais fazia malograr as expectativas dos juristas, as
autopunições, por outro lado, selariam a interface entre a psicanálise e a discussão sobre
o crime. É que entre a emergência da auto-punição neste momento inicial da obra de
Freud e a ‗virada‘ que caracteriza o surgimento da segunda tópica freudiana, emerge um
texto crucial para que se possa apreender a interface entre psicanálise e criminologia.
Em Os Vários tipos de Caráter Descobertos no Trabalho Analítico (FREUD 1916),
Freud expôs, pela primeira vez, o tema dos Criminosos em conseqüência do sentimento
de culpa, fartamente explorado pelos chamados pós-freudianos.
93

A) Do conflito inconsciente ao tratamento da pulsão de morte


Ao erigir seu texto de 1916, Freud expõe uma situação clínica intrigante: muitos
de seus pacientes, alguns inclusive tomados como membros distintos da sociedade, não
apenas passam a confessar-lhe transgressões realizadas em sua infância e puberdade –
furtos, fraudes, etc. – mas, sim, a reiterá-los através de ações durante o tratamento
psicanalítico. Tais ações são impetradas pelos sujeitos justamente por serem ―proibidas
e por sua execução acarretar, para seu autor, um alívio mental‖ (FREUD 1916, p. 347).
Ocorre, nestes casos, que o sentimento de culpa, antes de ser efeito da ação moralmente
censurável era, ao contrário, sua causa. Vítimas de uma poderosa culpa, do qual não
conheciam a origem, estes pacientes intentavam, através da ação ―proibida‖, ligar este
sentimento a algo tangível.
Confrontado a esta desconcertante conjuntura Freud formula duas questões:
―Qual a origem deste obscuro sentimento de culpa antes da ação? É provável que esta
espécie de causação desempenhe papel considerável no crime humano?‖ (idem, p. 347).
Neste texto de 1916, a posição de Freud é a de tomar como proveniência deste
sentimento de culpa as tensões advindas do complexo de Édipo: o sujeito punia-se por
seus desejos: ‗incestuosos‘ junto à mãe e ‗assassinos‘ em relação ao pai. Tomada nestes
termos, a causalidade inerente a este sentimento integrava-se à lógica do conflito entre a
representação inconciliável – alijada do fluxo do pensamento, ou seja, recalcada – e a
censura pré-consciente, operação que, desde o princípio do prazer, buscava evitar o
aumento de tensão no aparelho psíquico. Antes que uma novidade, tal postura freudiana
é quase coetânea do surgimento da psicanálise; ela pode ser observada, por exemplo,
numa carta dirigida por Freud a Wilhelm Fliess, em 31 de maio de 1897.
Nesta missiva, que, na Edição Standard fora designada como Rascunho N, Freud
aponta as vicissitudes, na melancolia, na neurose obsessiva e na histeria, da autopunição
advinda da reação aos desejos de morte com relação aos pais:

Os impulsos hostis contra os pais (o desejo de que morram) são


também um constituinte integrante das neuroses. Vêm à luz
conscientemente como idéias obsessivas. Na paranóia, o que há
de pior nos delírios de perseguição (desconfiança patológica de
governantes e monarcas) corresponde a esses impulsos. São
reprimidos quando a paixão pelos pais é ativa, − nas ocasiões de
doença ou morte. Em tais ocasiões, é uma manifestação de luto
recriminar-se a si próprio pela morte deles (o que se conhece
como melancolia) ou punir-se a si mesmo de maneira histérica
(por intermédio da idéia de retribuição) com os mesmos estados
[de doença] que tenham tido (FREUD 1897, p. 304-5).
94

A interpretação das autopunições como relativas à tensão entre recalcado e


censura, não obstante, ganha modalizações no decorrer da obra de Freud, ou, talvez,
mesmo uma espécie de reversão. De um lado, impunha-se às considerações freudianas a
descoberta de um agente crítico que observava, julgava e punia o eu – o supereu,
instância cuja crueldade levava os imperativos morais ao paradoxo de aniquilarem o
sujeito −; de outro, fenômenos tais como a compulsão à repetição de um mau destino, a
reação terapêutica negativa e os sonhos traumáticos desvelavam a pulsão de morte como
modalidade além do princípio do prazer. Desde esta ‗reversão‘, as autopunições podem
ser concebidas não apenas como formação de compromisso entre desejo e censura, mas
desde o que Freud chama de ―pura cultura da pulsão de morte‖ (FREUD 1923, p. 66).
A instância psíquica que julga, recrimina e pune o eu do sujeito tem como uma
de suas primeiras aparições na obra freudiana o texto Sobre o narcisismo: uma
introdução. Ali, Freud lança a inovação de pensar, desde a clínica, como o eu – que é
preciso ser construído − acrescenta-se aos objetos passíveis de investimento libidinal. O
ego infantil, investido inicialmente pelos pais, cede lugar, desde as ―admoestações de
terceiros‖, ao ego ideal – a forma pela qual o eu busca se fazer reconhecer pelos
semelhantes – e o ideal do ego – parâmetros assintoticamente referidos à ―perfeição
narcísica‖. É nesse ponto − em que surge a tensão entre o eu ideal e o ideal do eu − que
Freud desvela, de forma bastante explícita, a existência de um ―agente psíquico‖ que
observa, vigia e critica o eu; este ―agente‖, conforme ele o diz, não pode ser
―conhecido‖, mas, ―reconhecido‖ como sendo a própria consciência moral:

Não nos surpreenderíamos se encontrássemos um agente


psíquico especial que realizasse a tarefa de assegurar a
satisfação narcisista proveniente do ideal do ego, e que, com
essa finalidade em vista, observasse constantemente o ego real,
medindo-o por aquele ideal. (...) O reconhecimento desse agente
nos permite compreender os chamados ‗delírios de sermos
notados‘ ou, mais corretamente, de sermos vigiados, que
constituem sintomas tão marcantes nas doenças paranóides,
podendo também ocorrer como uma forma isolada de doença,
ou intercalados numa neurose de transferência. Pacientes desse
tipo queixam-se de que todos os seus pensamentos são
conhecidos e suas ações vigiadas e supervisionadas (...) Essa
queixa é justificada; ela descreve a verdade. Um poder dessa
espécie, que vigia, que descobre e que critica todas as nossas
intenções, existe realmente. Na realidade, existe em cada um de
nós em nossa vida normal (FREUD, 1914a, p. 102).
95

Se, contudo, nos delírios de perseguição ocorre o desmantelamento que revela a


construção do ―agente crítico‖, na neurose obsessiva e na melancolia, onde as auto-
recriminações são mais flagrantes, o processo de perda de um objeto e de luto – como
antevisto por Freud no supracitado Rascunho N − revela que certos traços deste objeto
são adotados pelo eu, o que possibilita que a instância crítica possa também investi-lo.
Observa-se, assim, uma dinâmica da formação do eu desde aquilo que se deposita das
relações entre a libido e o mundo externo, dialética retomada anos mais tarde em Luto e
melancolia: ―O ego deseja incorporar a si esse objeto, e, em conformidade com a fase
oral ou canibalista do desenvolvimento libidinal em que se acha, deseja fazer isso
devorando-o (FREUD 1917a, p. 255). Em 1917, Freud resumirá este processo através
da expressão, devinda célebre, de que, no luto, ―a sombra do objeto cai sobre o eu‖
(idem, p. 254).
Tal operação autoriza a tomada do ego como objeto a ser torturado e martirizado
pela instância crítica: ―A auto-tortura na melancolia, sem dúvida agradável, significa, do
mesmo modo que o fenômeno correspondente na neurose obsessiva, uma satisfação das
tendências do sadismo e do ódio relacionadas ao objeto, que retornaram ao próprio eu‖
(idem, p. 257.) Em 1923, no texto O ego e o id, Freud traduzirá esta dialética
constitutiva do eu desde sua nova tópica do aparelho psíquico: o eu se formaria desde os
precipitados das relações entre o isso − o ―caldeirão das pulsões‖ − e o mundo externo.
No que tange ao surgimento do agente crítico, o supereu – que ao contrário do esboçado
em 1914, Freud não diferencia do ideal do eu – ele pontua, porém, uma particularidade:

O superego, contudo, não é simplesmente um resíduo das


primitivas escolhas objetais do id; ele também representa uma
formação reativa enérgica contra essas escolhas. A sua relação
com o ego não se exaure com o preceito: ‗Você deveria ser
assim (como o seu pai)‘. Ela também compreende a proibição:
‗Você não pode ser assim (como o seu pai), isto é, você não
pode fazer tudo o que ele faz; certas coisas são prerrogativas
dele.‘ (FREUD 1923, p. 46).

Desenha-se, assim, para o sujeito, um paradoxo, um verdadeiro fio da navalha


ético: ser como o pai e destroná-lo incorre em culpa e martírio por parte do supereu; não
ser como o pai, distanciar-se de sua matriz, incorre em estar aquém deste e, portanto,
passível de humilhação pela crítica. Topicamente, então, o superego, revela-se, por um
lado, proveniente da intervenção da autoridade externa, e, por outro, ligado à caldeira
pulsional que é o isso, em seu caráter eruptivo, inconsciente e reativo a autoridade. Isto
96

assim se daria posto que, segundo Freud, a criança que, por intermédio da autoridade é
forçada a abrir mão de certas satisfações pulsionais, erige, contra esta autoridade, uma
grande soma de agressividade. O medo da perda do amor – e também da violência
externa – leva o infante a renunciar também a satisfação de seus impulsos agressivos.
Posteriormente, quando incorpora a autoridade através de uma identificação, o supereu,
instância crítica, apodera-se desta agressividade que exigirá escoamento.
Ora, uma vez que, para Freud, a civilização implica na renúncia progressiva à
realização desta violência – e como a pulsão se caracteriza por sua urgência em buscar
satisfação – resta a agressividade voltar-se contra o próprio eu do sujeito, objeto, agora,
não apenas do isso, mas, também, do supereu, esta faceta ―degradada‖ do pai:

Através da identificação, [o sujeito] incorpora a si a autoridade


inatacável. Esta transforma-se então em seu superego, entrando
na posse de toda a agressividade que a criança gostaria de
exercer contra ele. O ego da criança tem de contentar-se com o
papel infeliz da autoridade – o pai – que foi assim degradada63.
(...) a severidade original do superego não representa (...) a
severidade que dele [do objeto] se experimentou ou que se lhe
atribui. Representa, antes, nossa própria agressividade para com
ele (FREUD 1923, p. 133).

Lacan, para quem esta peculiaridade clínica desdobrava-se na distinção


conceitual entre ideal do eu e supereu, ao longo de seu ensino, sempre sublinhara este
caráter caprichoso da instância crítica: ―o supereu tem relação com a lei, e ao mesmo
tempo é uma lei insensata, que chega até ser desconhecimento da lei... o supereu é a um
só tempo a lei e sua destruição‖ (LACAN 1953-4, p.123). Como vimos, todavia, mesmo
em Freud − para quem certa concomitância entre ideal do eu e supereu levara-o a pensá-
lo como ―herdeiro do complexo de Édipo‖ − a clínica desvela uma faceta ―degradada‖
do pai. Aquela identificação que permite erigir o supereu como instância psíquica é
partícipe, pois, de um processo que implica também a desfusão pulsional:

O superego surge, como sabemos, de uma identificação com o


pai tomado como modelo. Toda identificação desse tipo tem a
natureza de uma dessexualização ou mesmo de uma
sublimação. Parece então que, quando uma transformação desse
tipo se efetua, ocorre ao mesmo tempo uma desfusão instintual.
Após a sublimação, o componente erótico não mais tem o poder
de unir a totalidade da agressividade que com ele se achava

63
Grifo nosso.
97

combinada, e esta é liberada sob a forma de uma inclinação à


agressão e à destruição. Essa desfusão seria a fonte do caráter
geral de severidade e crueldade apresentado pelo ideal — o seu
ditatorial ‗farás‘(FREUD 1923, p. 67).

A pulsão de morte, desvinculada de Eros, a pulsão erótica, encontra, assim,


caminho para, em seu retorno sobre o sujeito, tornar presentes martírios cuja crueldade
poderia, em muito, superar os caprichos do isso. A tensão entre o eu e supereu,
formatada pela pulsão de morte, seria um ponto crucial na apreciação freudiana dos
crimes imotivados: a pulsão de morte, desvinculada de representações, mesmo
inconscientes, e ligada a um acúmulo de tensão que poderia levar o aparelho psíquico ao
colapso, encontrava no ―sentimento de culpa‖ e na ―necessidade de punição‖ uma
oportunidade para se ligar à satisfação erótica masoquista:

Constituiu uma surpresa descobrir que um aumento nesse


sentimento de culpa inconsciente pode transformar pessoas em
criminosos. Mas isso indubitavelmente é um fato. Em muitos
criminosos, especialmente nos principiantes, é possível detectar
um sentimento de culpa muito poderoso, que existia antes do
crime, e, portanto, não é o seu resultado, mas sim o seu motivo.
É como se fosse um alívio poder ligar esse sentimento
inconsciente de culpa a algo real e imediato. (FREUD 1923, p.
65)

Esta ‗causação‘ do crime pelo sentimento de culpa – que desenharia a


abordagem hegemônica da psicanálise no debate crime-loucura até os dias de hoje −
ganharia célebres exemplos clínicos desde uma obra que Jacques Lacan reconheceria,
em De nossos antecedentes (LACAN 1966b, p. 70) como um dos vetores que o
conduziriam às portas da psicanálise: trata-se do livro O criminoso e seus juízes (1928),
de Franz Alexander e Hugo Staub, cujos casos se fizeram emblemáticos deste tema.

B) Criminosos por sentimento de culpa: casos clínicos de Alexander e Staub


B.1) O caso ―B‖
B., 34 anos, fora condenado por roubo e estelionato. Por anos este ex-estudante
de medicina exercera esta atividade profissional mediante o uso de diploma falsificado.
Estimado pelos diretores da clínica em que se empregara, B. apresentou com sucesso
trabalhos teóricos, tendo reconhecido seu valor e rigor científicos. Este homem, todavia,
seria preso devido a um peculiar costume: roubava livros de medicina e, imediatamente,
oferecia-os para venda em lojas que se encontravam nas proximidades de onde ele os
98

furtou; ele fazia isto, inclusive, sem retirar, dos livros roubados, a etiqueta do vendedor
original. A estranheza gerada no ‗comprador‘ não deixara de produzir suspeitas: B. logo
fora descoberto e detido; não tardaria, também, para que descobrissem seu uso de um
diploma falso. Nas lojas em que roubava ele era tido como bom freguês − dinheiro para
comprar seus livros era, de fato, algo que não lhe faltava.
Solto, enquanto o processo corria, B. mudara-se para Berlim. Lá chegando, num
quarteirão de clínicas médicas, refaz o mesmo procedimento: torna a roubar livros e
vendê-los, ainda com sua etiqueta, em outra livraria, crime que fora considerado
―insignificante‖ pelo comissário de polícia. B., não obstante, parece esforçar-se para ser
preso: de pronto confessa ter roubado também um microscópio numa loja de produtos
óticos; quando seria, mais uma vez, indulgenciado, confessa ainda que, vindo para
Berlim, roubara figuras de porcelana numa exposição.
Sua detenção parecia não apenas procurada, ela trazia-lhe uma espécie de alívio.
Preso, a única preocupação que tivera fora a leitura de seus livros de medicina.
Comportando-se bem e fazendo amizade com o médico que ali trabalhava, ele passara a
auxiliá-lo. Porque este homem de reconhecida capacidade intelectual exibia, em seus
roubos, tamanha falta de cautela, não apenas não tentando impedir, mas, como que
procurando ser detido?
Segundo Alexander e Staub, que se ocuparam do caso, ―o seu comportamento
perante as autoridades da polícia de Berlim, onde confessou atos puníveis e não
descobertos, até ver impossibilitada sua liberdade, revela nitidamente a influência fatal
de sua necessidade de punição‖ (ALEXANDER e STAUB 1928, p. 102). Se, com a
idade de 34 anos, esta necessidade de punição se manifesta de maneira franca, modo
semelhante de funcionamento custara-lhe, na juventude, o ingresso na carreira militar.
Aos 17 anos, em formação como cadete do exército, durante sua instrução para
se tornar oficial, B. rouba, na loja do quartel e em frente a funcionários, alguns doces.
Em seu depoimento ele mesmo qualifica seu ato como uma grave infração,
reconhecendo sua expulsão da corporação como justa. Naquele dia acabara de receber
uma visita de sua mãe, grávida. Lembra-se de que, então, tivera a impressão de que
―todos os homens o apontavam como sendo o autor daquela gravidez‖ (idem, p. 193).
Alexander e Staub reconhecem, neste caso, as condições freudianas para se
pensar nos criminosos por sentimento de culpa: ―O ato é feito porque é proibido e para
o fim de ligar um sentimento de culpa pré-existente, proveniente do complexo de Édipo
e de compensar esta culpa por punição (idem, p. 194). A pregnância do complexo de
99

Édipo neste caso seria corroborada por outras recordações de B. Nestas, ele relata que,
em sua infância, tivera, por alguns anos, uma fobia leve de andar na rua. Esta fobia
tivera início quando ele caminhava com sua mãe e, de repente, dois cavalos evadiram-se
assustados. Alexander e Staub vêem neste caso, como ocorrera com o pequeno Hans, a
simbolização que associava o pai aos cavalos revoltados, desde o desejo de morte
dirigido ao patriarca e o desejo incestuoso pela mãe.
À expulsão da escola de cadetes seguira-se uma tentativa frustra de suicídio e o
posterior perdão dos pais. É então que B. voltará aos estudos, desta vez numa escola
superior com vistas a tornar-se um médico. Não obstante, afastado por doenças que o
acompanhavam desde a infância e que rendiam a ele um ―precário estado de saúde‖, ele
é forçado a afastar-se dos estudos. Esta não seria, porém, a primeira relação que B.
tivera com a medicina.
Em sua infância o médico de sua mãe, mulher constantemente doente, era o
único homem, senão seu pai, que tinha acesso livre ao quarto daquela. Alexander e
Staub, em sua escuta de B., apreendem que a profissão de médico simbolizava ―carta
branca para o acesso ao corpo da mãe‖ (ALEXANDER e STAUB 1928, p. 196). As
transgressões que B. empreendia – que tiveram começo na presença de sua mãe grávida
na loja de doces – ligavam-se, posteriormente, à medicina: não havia ele furtado, antes
de ser afastado de seus estudos, uma máquina fotográfica de uma colega de classe − não
se dando o trabalho de retirar-se da sala nem, tampouco, de esconder o objeto,
acarretando em sua descoberta? Uniam-se, neste ponto – ponderam os autores − duas
cadeias libidinais do sujeito: de um lado, na vertente edípica, a aula de anatomia
presentificava a tensão entre a medicina e o corpo materno; de outro, no que tange a
pulsão escópica, aparece a necessidade do olhar, no caso determinando tanto o objeto a
ser furtado quanto o fato de B. ser visto sendo apanhado. Realizava-se, deste modo a
satisfação pela auto-punição.
Dentro desta lógica, também o roubo das porcelanas – ocorrido quando de sua
ida a Berlim − relacionava-se à proibição exposta pela mãe ao então menino B., de tocar
na vasta e preciosa coleção de porcelanas que esta detinha. Os doces, roubados quando
da visita da mãe grávida, ganhariam, também, um sentido edípico: eles eram fornecidos
a ele, quando infante, por debaixo dos panos, burlando as proibições do pai. Por outro
lado, as difíceis relações com um pai deveras autoritário formatavam uma dificuldade
em receber ajuda de homens, levando-o a dispensar o auxílio de advogados, médicos e
etc., dificuldade esta manifestada na oferta de ajuda que Staub – jurista − lhe oferecera
100

para intervir juridicamente em seu caso: ―Porque não posso aceitar o auxílio que o
senhor me ofereceu? Porque, abaixo de cada conta, parece haver uma soma final que
representa a soma do dever e do haver; eu lhe ficaria devedor, durante minha vida
inteira, e não posso suportar tal situação‖ (ALEXANDER e STAUB 1928, p. 199).
A conclusão de Alexander e Staub fora a de que conservou-se, para B., o
complexo de Édipo, fator que sobre-determinou os crimes e a necessidade de respostas
punitivas provocadas pelo próprio paciente. A mera punição, deste modo, não atingiria
nada além de uma reiteração do circuito traçado desde o sentimento de culpa e a
autopunição. Interessante seria, portanto, não a prisão, mas o tratamento psicanalítico,
junto a uma ligeira internação, posto que ―uma pena seria algo insensato e prejudicial,
contraproducente, levaria a outros crimes (...) a sociedade facilitaria sua cura quando
desistisse de castigá-los e puni-los‖ (idem, p. 201).

B.2) O caso ―Carlos‖


No inverno de 1927, um empregado do comércio e sua namorada encontram-se
num quarto de hotel para selarem o pacto de duplo suicídio. Cartas de despedida
escritas, Carlos dispara contra a fronte da amante; quando chegara a vez de disparar
contra si, falta-lhe coragem, ele desmaia. Restabelecendo-se, ele chama a ajuda médica
– a namorada sobrevivera à custa de um olho − pedido que implicou sua prisão. Este é o
estado de coisas quando chega a ser ouvido por um analista.
Ex-combatente, filho de um engenheiro e ex-oficial não muito presente em casa,
Carlos cedo perdera sua mãe. Sua namorada, filha de pequenos comerciantes, era criada
de uma família de Berlim; embora noiva – sendo o noivo escolhido pelos pais da moça
sob pressão – ela empreende um romance com Carlos, que sabe do compromisso. Se
Carlos renegasse à bebida, às outras mulheres e ganhasse dinheiro, ela deixaria o noivo
− este era o plano; era ela quem arcava com os custos financeiros do romance. Como tal
plano não se consolidava, ela sugere que, mesmo ela se casando com seu noivo, eles não
se afastassem: Carlos podia tornar-se ―amigo da casa‖.
A expressão ―amigo da casa‖ causara extremo pesar a Carlos que mergulhava
num estado depressivo, passando ele a ter idéias de suicídio: se não podia sustentar uma
família, não merecia viver. A moça, infeliz com sua situação, pede a Carlos que eles
partilhem o mesmo destino. Pacto falhado, Carlos, interpelado pela polícia, tentara
explicar sua motivação alegando:
101

Conheço a vida matrimonial de meu irmão mais velho (...) Meu


irmão trabalha o dia inteiro, tem posição de destaque e ganha
bastante dinheiro. Sua mulher, porém, dorme o dia inteiro, gasta
todo o dinheiro, enfeitando-se para trair o marido, de tal modo
que o meu irmão vive uma vida matrimonial infeliz e horrível.
E eu queria defender minha namorada das misérias de um
casamento infeliz. (ALEXANDER E STAUB 1928, p. 213).

Na argumentação exposta por Carlos como motivação para seu crime, Alexander
e Staub notam que a suposta infelicidade matrimonial não explicava o que acontecera de
fato: a tentativa de duplo suicídio convertida em tentativa de homicídio da namorada.
Por outro lado, esta racionalização aplicava-se a uma mulher infiel, o que, afinal, não
era inverossímil posto que ela realmente traia senão a Carlos, ao menos o noivo. Entre
as premissas, conclusão e ação restavam lacunas que acenavam, junto a confusão de
Carlos, para a incidência de pensamentos inconscientes.
Como posteriormente – durante a escuta clínica por Alexander − se tornaria mais
claro, a expressão ―amigo de casa‖ trazia, para Carlos, ressonâncias edípicas. Com a
morte de sua mãe, após um bom tempo, seu pai, de 60 anos, casa-se com uma mulher
que tinha a idade do filho. As relações entre pai e filho, marcadas pela distância,
inclusive financeira, melhoraram neste ínterim. Entretanto, não tardará para que a
grande intimidade entre Carlos e a madrasta se transfigure em atração por ela.
Uma vez que seu pai trabalhava fora de casa o dia todo, aquela mulher, muito
doente, recebia cuidados diários de Carlos que passava o dia com a madrasta e a tarde se
retirava, antes que o pai retornasse. Um dia, porém, seu pai lhe pede que passe a vir
apenas quando este estivesse em casa, assim se evitaria que as pessoas ―falassem‖ e
―pensassem mal‖. A colocação do pai parecera, a ele, injuriosa e injusta; energicamente
ele decide não mais voltar à casa paterna. O desejo incestuoso, tornado consciente pela
admoestação do pai, fizera o sentimento de culpa emergir, dirigindo-se, não a Carlos
como culpado, mas, sim, ao pai como ―injusto‖.

Carlos livrou-se, por este modo, isto é, pela projeção da culpa,


da tensão da consciência [moral] (...) No entanto, com isso não
se calaram os desejos inconscientes de incesto. Ao contrário,
devemos supor que eles se tornam ainda mais fortes, porque o
poder inibidor o ―supereu‖ fora enfraquecido pela diminuição
do sentimento de culpa. (idem, p. 210).

A ruptura da relação dura até a morte da madrasta, meses depois. O desejo


inconsciente pela madrasta − que levara-o a interpretar a ponderação paterna com
102

extrema indignação – parecia, agora, ceder. Se a inibição do desejo incestuoso na


vertente ―não podes ser como seu pai‖ (FREUD 1923, p. 47) falha, a outra vertente do
imperativo, ―deves ser como seu pai‖ (idem, p. 47) prosseguirá: é pouco tempo depois
que Carlos conhece sua namorada.
Esta mulher, que tinha a mesma idade e tipo físico da madrasta, a exemplo
daquela, também pertencia a outro homem, desenvolvendo, junto a ele, também, uma
posição de provedora financeira. De alguma forma, ―o que seu inconsciente desejava em
relação à madrasta foi realizado com a namorada‖ (ALEXANDER e STAUB 1928, p.
209). Se a relação com a namorada era uma tentativa de resolver a tensão pulsional –
tendo o objeto escolhido as características da madrasta – a expressão ―amigo da casa‖
despertaria ressonâncias da tensão da relação entre Carlos, a madrasta e o pai.
Desenhava-se assim, a exigência de uma tentativa de resolver a tensão edípica:
―A resolução do assassínio da namorada e do suicídio representa a experiência de
resolver por um ato de <<curto-circuito>> essa situação de tensão. (idem, p. 123). Mas
porque, perguntam-se os autores, as auto-recriminações não inundaram Carlos
culminando em seu suicídio?
O encaminhamento dado pelos autores à questão é a de que se o duplo suicídio
surgia como tentativa de abater e calar o sentimento de culpa pela autopunição suicida,
por outro lado, surgia um novo sintoma. Esta ―solução de compromisso‖ entre o desejo
incestuoso e o amor ao pai, fazia dele não somente aquele que roubou uma mulher de
outro homem, mas, também, − subtraindo Carlos da auto-aniquilação, a pulsão de morte
− uma espécie de ―vingador‖ do pai. ―Se ele matou a namorada é porque se identificou
com o noivo prejudicado, e, de fato, com o pai, que vinga, pela morte, o comportamento
infiel da esposa‖ (idem, p. 213-4). ―É assim‖ – pela construção de um sintoma que,
posto em cena, pede interpretação − ―que os instintos de vida vêm predominar‖ (idem,
p. 217). A conclusão a que chegam os autores – e que atualiza sua teoria, digamos
‗problemática‘ sobre a responsabilidade64 − é a de que:

Carlos é um criminoso neurótico que, pelo se ―eu‖ consciente,


não pode ser responsabilizado. Uma combinação que lhe
causasse sofrimento seria ineficaz e mesmo inconveniente.
Carlos deve receber tratamento por parte de um psicanalista.
Uma análise do seu complexo de Édipo é necessária e talvez

64
Com efeito, o posicionamento de Alexander e Staub a respeito da responsabilidade será objeto de
considerações mais detidas nas partes finais de nossa tese.
103

com isso se obtenha a cura e sua volta a sociedade‖.


(ALEXANDER e STAUB 1928, p. 217).

Estes exemplos clínicos − que instanciam o tópico freudiano dos criminosos por
sentimento de culpa, descobertos, desde a clínica, vários anos antes – desvelam, assim,
a sobre-determinação inconsciente de certas ações qualificadas como criminosas. Desde
o caso B. – que, como o sonho infantil, traz diminuída a distância entre o conteúdo
latente e o conteúdo manifesto da transgressão como autopunição – até o caso ―Carlos –
cuja a complexidade e intrincamento implicam em declinações e remanejamentos do
sujeito com a necessidade de punição (acoplada a um traço quase reivindicador de
―vingança) – manifesta-se o trabalho inconsciente com o pulsional. Mas de que forma
esta ligação que é a autopunição poderia, economicamente, aparelhar o sujeito em sua
relação com a pulsão de morte?

C) Vicissitudes econômicas da autopunição


Em O problema econômico do masoquismo (FREUD 1924), texto em que Freud
explora esta satisfação oriunda da autopunição, ele encaminhará esta questão ao
distinguir entre três diferentes tipos de masoquismo. No primeiro tipo, o masoquismo
primário, ele examina duas hipóteses.
Na primeira delas, Freud avalia o argumento, já exposto em 1905 em seu Três
ensaios para uma teria da sexualidade. Ali, ele pergunta-se se não poderia ―acontecer
que nada de considerável importância ocorra no organismo sem contribuir com algum
componente para a excitação do instinto sexual‖ (FREUD 1924b, p. 180). Ele descarta
esta perspectiva que reduz, mesmo o sofrimento, ao prazer; impunha-se a ele, a segunda
tópica do aparelho psíquico e a descoberta da pulsão de morte. Desde um segundo
campo de hipóteses – que emerge daquelas descobertas – o masoquismo primário surge
como uma tentativa do aparelho psíquico de vincular a pulsão de morte através de sua
fusão com Eros. Se, como vimos há pouco, esta faceta ―degradada do pai‖ articula-se a
uma dessexualização – apontando os limites do sexual e deixando livre a pulsão de
morte − o masoquismo primordial caracteriza-se por ser, já, um tratamento dado a
pulsão. Dito de outro modo, o gozo masoquista seria, de certa forma, uma tentativa de
cura, ―prova e remanescente da fase de desenvolvimento em que a coalescência (...)
entre o instinto de morte e Eros se efetivou‖ (FREUD 1924b, p. 182). Os outros tipos de
masoquismo, o feminino e o moral, seriam derivações deste masoquismo primordial.
104

No que Freud chamara de ―masoquismo feminino‖, encontram-se fantasias que


os homens desenvolvem de serem amordaçados, maltratados, forçados à obediência,
sujados, aviltados e etc − as coisas passando-se, nestas fantasias, como se o sujeito fosse
tratado como uma ―criança travessa‖ (FREUD 1924b, p. 180). O termo ―feminino‖,
atribuído por Freud a este masoquismo, deve-se, entre outros fatores, à polarização das
fantasias em torno de idéias como as de ser ―castrado, copulado, dar à luz um bebê‖
(idem, p. 180). Como travesso, ―o indivíduo presume que cometeu um crime (cuja
natureza é deixada indefinida) a ser explorado por todos aqueles procedimentos penosos
e atormentadores‖ (idem, p. 180).
No terceiro tipo e último tipo de masoquismo, o masoquismo moral, ocorre
aquilo que Freud chama de um ―afrouxamento da relação com a sexualidade‖ (idem, p.
183). Nesta modalidade pulsional o sujeito pode dispensar o parceiro, alcançando a
punição através de ―poderes impessoais ou pelas circunstâncias‖, como o destino. A
reação terapêutica negativa, o apego a doença – e, acrescentamos, os crimes de
autopunição, as auto-delações e os ferimentos inconscientemente auto-inflingidos – são
modalidades desta ―necessidade de punição‖.

A fim de provocar a punição desse último representante dos


pais [o Destino], o masoquista deve fazer o que é
desaconselhável, agir contra seus próprios interesses, arruinar as
perspectivas que se abrem para ele no mundo real e, talvez,
destruir sua própria existência (idem, p. 187).

Embora traga a marca de um ―afrouxamento da relação com a sexualidade‖ – o


que implica que ela subsiste − o masoquismo moral, assim como suas formas derivadas,
surge como tentativa de vincular a pulsão de morte através da satisfação erótica com a
auto-punição. Desvelam-se, pois, as bases metapsicológicas dos crimes de autopunição
que, paradoxalmente, são, não uma doença, mais, uma tentativa radical de cura.
Esta tentativa de vinculação – como explicita Freud no excerto acima – encontra,
todavia, um limite: a autodestruição do sujeito. Isto ocorre, por exemplo, nas auto-
recriminações obsessivas e melancólicas − mormente nestas últimas. Se já em 1901,
Freud destaca as afecções que tomavam ―o suicídio como possível desfecho para o
conflito psíquico‖ (FREUD 1901, p. 181), em 1923, ele atenta para a prevalência
esmagadora da pulsão de morte, desvinculada de Eros, nos casos de melancolia: na
―pura cultura da pulsão de morte‖, pode-se aniquilar o sujeito, ―se aquele não afasta o
seu tirano a tempo, através da mudança para a mania (FREUD 1923, p. 66).
105

Mas como a relação do superego com o pai pode ser herdeira do complexo de
Édipo – uma das máquinas que inscrevem o sujeito no laço social − se esta torna
presente caprichos que, por sua crueldade, podem implicar a autodestruição do sujeito?
Em mal estar na civilização, Freud lança luz sobre esta questão tecendo uma ponte entre
o pai, assim como este se apresenta no complexo de Édipo, e o pai da horda primitiva,
pura crueldade e privação para com seus filhos.

C.1) O pai que legifera e o pai que vocifera


Em 1930, Freud retoma o mito fundador, por ele erigido em 1913 e que ele,
ironicamente, chamou, em Psicologia das massas e análise do eu, a partir de algumas
críticas, de ―uma história mais ou menos‖ (FREUD 1921, p. 133).
Lançando mão de estudos antropológicos e darwinianos, Freud construira, em
1913, um cenário em que se organizava a horda primitiva, daqueles que, um dia, viriam
a ser denominados homens, num passo mítico da natureza à cultura. O líder da horda,
forte e agressivo, insuperável em sua violência, detinha a possibilidade de gozar de
todas as fêmeas do bando. Os demais machos, sempre à espreita, viam-se totalmente
privados daquelas. Certo dia, porém, aqueles que individualmente não eram páreo para
o macho dominante uniram-se e, juntos, mataram e devoraram-no.
Freud entende que, desde este momento, não cabia mais que a antiga ordem se
mantivesse. Se assim fosse, uma sucessão ininterrupta de quedas e surgimentos de
novos machos poderosos destruiria a espécie. Como única solução, aqueles que
mataram o chefe da horda reservaram ao morto um lugar vazio, de exceção. A partir
deste passo, surgiam regras que organizaram as possibilidades de cópula entre os
membros da agora comunidade; como pontuara Vidal (2005, p. 17), em verdade, antes,
havia um ―orangotango‖, apenas depois de morto passou a haver pai.
Em Mal estar na civilização, ao estudar o sentimento de culpa − que, como
vimos, domina certos criminosos − Freud entende que tal sentimento nascera do
remorso por aquele ato. Tratava-se, para Freud, não de um círculo vicioso de supor a
consciência como origem de si mesma, mas, sim, de entender o papel desempenhado
pela ambivalência, a simultaneidade entre amor e ódio, como ponto fundamental para
apreender o surgimento, a mutação e a transmissão deste remorso em sentimento de
culpa. Com ódio do privador, os filhos se organizaram para assassiná-lo, por amor ao
ser quase onipotente, se lhes impunha o remorso.
106

Assim, se o complexo de Édipo atualiza a castração, reiterando a perda de gozo


incestuoso, aquele evento mítico, fundador, marca como imanente à constituição do
sujeito tanto o amor quanto o ódio pelo pai feroz. Deste modo, de tempos em tempos,
não apenas a ambivalência entre amor e ódio, mas entre interdição e transgressão
presentifica-se nos carnavais e festins dedicados a este pai que, a esta altura, deveio
totem e símbolo de nomeação e proteção da comunidade. Nestas celebrações, o
parricídio, tornado crime, era re-celebrado: o totem, representante do que se tornara o
pai, era novamente assassinado e devorado. Mas, nas entranhas de cada um, ele ainda
vive e exige a satisfação que, agora espatifada, outrora era marca de sua onipotência
mítica, de um gozo sem limites.
À Lacan não escapou a verdade estrutural desvelada pelo mito freudiano do pai
da horda: a condição de emergência do sujeito, em sua relação com esta lei basal −
distinta daquelas que se redigem nos códigos penais e que é, antes, sua condição − ou
seja, as leis da linguagem − é correlata a uma perda de gozo. Se Freud pergunta-se, vez
por outra, se a pulsão, por seu funcionamento próprio, era incapaz de satisfazer-se
(FREUD 1930b, p. 111), Lacan pontuará que a cópula perfeita entre a pulsão e o objeto
é impossível. É este real, pensado não como aquilo que não cessa de se escrever – o
necessário −, mas como o que não cessa de não se escrever – o impossível −, que Lacan,
a partir dos anos 70, fará correlato da ―não existência da relação sexual‖ (LACAN
1972-3, p. 17). Este impossível, redescoberto por trás do mito, marca o passo até a
estrutura. Forçoso, todavia, é pensar que, mesmo para Freud − para quem o mito do pai
da horda, como vimos, é tomado como ―uma história mais ou menos‖ (FREUD 1921, p.
133) – o assassinato do pai tem seu valor calcado em sua função, não concreta, como
acontecimento a ser asseverado, mas, sim, em seu lugar e função no psiquismo.

Matar o próprio pai ou abster-se de matá-lo não é, realmente, a


coisa decisiva. Em ambos os casos, todos estão fadados a
sentir culpa, porque o sentimento de culpa é expressão tanto
do conflito devido à ambivalência, quanto da eterna luta entre
Eros e o instinto de destruição ou morte. Esse conflito é posto
em ação tão logo os homens se defrontem com a tarefa de
viverem juntos. Enquanto a comunidade não assume outra
forma que não seja a da família, o conflito está fadado a se
expressar no complexo edipiano, a estabelecer a consciência e
a criar o primeiro sentimento de culpa (FREUD 1930b, p.
135).

O sentimento de culpa, assim, embora possa manifestar-se sob o jugo da


máquina edipiana, mostra-se, Freud no-lo diz, resultante da ―eterna luta entre Eros e o
107

instinto de destruição e de morte‖. Num horizonte, desenham-se os esboços de formas


não edipianas de incidência do sentimento de culpa. Lacan reconhecerá, no que ficou
conhecido como seu último ensino, a dimensão estrutural da relação do sujeito com este
‗fora-da-lei‘ específico que, paradoxalmente, confere, a esta, substancialidade.
Desde esta perspectiva, a efetividade do pai – pluralizado desde seu seminário
Os nomes-do-pai, interrompido em 1963 – alojaria-se em sua relação com o impossível.
Nos limites do formalizável no interior do sistema simbólico, o real e seus avatares –
das Ding, objeto ―a‖, e, por que não, o caroço da lei que é o supereu, injunção de gozo –
reclamam o pai não como metáfora simbolizadora – que analisaremos de forma mais
detida nos próximos capítulos – mas como nomeação do impossível. Mais que reduzir o
pai a uma função simbólica, o pai real, agente da castração, relaciona-se com a exceção
ao tudo dizer e simbolizar. Se, como morto, o pai ganha efetividade de símbolo, será em
sua relação com os limites do saber, na construção, portanto, de um fazer quase rústico,
artesanal, com o que ―não cessa de não se escrever‖ que Lacan virá alojar a transmissão
e efetividade do pai. Destarte, o pai da horda, funda-se no mito do pai onipotente, fruto
das fantasias e queixas das ―viúvas do deus morto‖ – as histéricas. Paradoxalmente, este
pai onipotente, pleno em seu gozo, apenas existe como função de exceção, nunca tendo
estado vivo.
Assim, para o último Lacan, não é devido a interdição do incesto ou ao
assassinato do pai da horda primitiva que o gozo absoluto se faz impossível, é a própria
relação do falasser com a linguagem e a sexuação que implica, pelos limites próprios ao
Outro da linguagem, uma perda de gozo. Lacan reserva a esta falta no Outro –
incompletude que garante sua consistência de lugar simbólico − a notação S (A),
escrevendo, em 1972, assim a estrutura do lugar de exceção próprio ao pai da horda:

Masculino Feminino
108

Utilizando os quantificadores do cálculo dos predicados, ―∀‖ (―para todo‖) e ―∃‖


(―existe‖), Lacan escreve as ―fórmulas de sexuação‖, nas quais o lugar do pai da horda
será, no quadrante masculino, o de exceção à regra de que os ―x‖ (indivíduos,
argumentos da função) são concernidos pela propriedade ou predicado ―Φ‖ (a
castração). Assim, Lacan escreve ―∃xΦx‖, ou seja, há pelo menos um indivíduo tal que
a propriedade ―castração‖ não se aplica. Deste modo, a existência do pai da horda faz-se
apenas uma necessidade lógica: nem realidade concreta, nem descrição mítica ou
religiosa, este pai é a exceção que, do lado masculino da fórmula, é imanente à regra;
ele é o fora-da-lei que garante a consistência da função. Abaixo, no gráfico, estão os
indivíduos – biologicamente homens ou mulheres – que se alinham do lado masculino
como concernidos pela castração − ―∀xΦx‖ (para todo indivíduo se aplica a castração).
Observe-se bem que, mesmo para aqueles regidos pela função simbólica da castração no
lado masculino, a relação exposta pelo vetor $-a representa o movimento do desejo
rumo ao que escapa à função simbólica, a saber, o objeto ―a‖, resto de gozo produzido
desde a incidência do significante sobre a carne do falasser, devindo causa de desejo.
No lado feminino da fórmula, retorna, como sublinha Vidal (2005, p. 103), o
―estado de enigma que diz respeito à condição das filhas e mulheres da horda primeva‖:
como estas se relacionam, a nível de estrutura, com o pai da horda?
Para Freud, assim como para Lacan, é a partir da mediação do operador fálico
que a sexuação pode incidir sobre o sujeito. Todavia, se, no lado masculino, temos
―∃xΦx‖, ou seja, um elemento que escapa à regra fálica e, por seu lugar de exceção,
garante sua consistência, no lado feminino Lacan proporá a fórmula ―∃xΦx‖, vale dizer,
não há um argumento da função para o qual a castração não se coloque. Que resulta
desta disposição? Ora, não havendo exceção a esta regra, não existe um elemento
externo ao conjunto que dê a ele consistência. Dito de outro modo, a castração não dirá
tudo sobre uma mulher; na inconsistência desta função, as mulheres não constituirão
uma classe, sob o julgo da qual pudesse ser dado, a estas, uma garantia para a
feminilidade, do que é ser A mulher. Às voltas com o que escapa do gozo fálico elas
devem, artesanalmente, forjar, para além do predicado ―mãe‖ – mediação via Édipo – o
que é ser, uma a uma, uma mulher. Daí Lacan asseverar que não existe ―A‖ mulher,
com letra maiúscula.
Lacan, a respeito dos falantes que ―se alinham sob a bandeira das mulheres‖
(LACAN 1972, p. 98), apresentará uma ―função inédita na qual a negação cai sobre o
quantificador‖ (idem, p. 98): ―∀xΦx‖. Segundo Lacan, tal fórmula deve ser lida não
109

como ―não é o caso que, para todo x, aplica-se o predicado Φ‖ (ser castrado), mas, sim,
da seguinte forma: para os argumentos desta função – os falantes ―sob a bandeira das
mulheres‖ − a propriedade Φ é ―não-toda‖; as mulheres são e não são concernidas pela
castração. Dito de outro modo, se os homens, concernidos pelo mediador fálico,
dirigem-se a um fora da lei simbólica a recorrer ao objeto ―a‖, causa de desejo, as
mulheres, não-todas concernidas por esta função, tem acesso a um gozo ―suplementar‖
àquele regido pela lógica fálica. Lacan pontua, a este respeito, que seu ‗novo‘
quantificador, o não-todo, operante no lado feminino, opõe-se ao gozo advindo desta
posição como ―complementar‖, passível de totalizar-se em relação ao gozo masculino.
Apelando ao falo como mediador, balizado pelo não-todo de sua função, uma
mulher, na parte inferior da fórmula da sexuação, no vetor La (―A mulher‖ não existe,
logo, ―uma mulher‖)-Φ, pode posicionar-se pela via da demanda de amor. Se, como
dissera Lacan, o amor deve ao símbolo (LACAN 1972-3, passim), é como dirigindo-se
a um homem que uma mulher poderá encontrar o semblante de sua femininilidade, que
recobre a falta, no Outro, de um significante que designe ―A mulher‖. No vetor La-S(A)
encontramos o gozo do Outro como gozo suplementar, emergido desde a infinitização
na relação com o real não mediada pelo operador fálico; trata-se do gozo para além da
função fálica, ressonante com a procura de um parceiro não regido pela falta: Deus.
Assim, no último Lacan – como, de certa forma, fora com a pulsão de morte em
Freud, que por seu funcionamento, recusa-se a cifrar-se desde a dialética de
representações no princípio de prazer – há a possibilidade de que o sujeito se depare
com as vicissitudes de um gozo não balizado pelo falo simbólico. Há, portanto, no que
diz respeito à lei da linguagem, a produção de uma zona de extimidade. O supereu pode,
portanto − por contigüidade de registro, sendo resto da lei simbólica – pôr-se em relação
ao sujeito como forma de apresentação da pulsão de morte. A autopunição, como
dissera Freud em O problema econômico do masoquismo (FREUD 1924b), é uma
tentativa de vincular ou balizar este gozo a partir da fusão instintual com Eros.
Embora seja um fato de estrutura – encenado no mito freudiano e matemizado
por Lacan em 1972 nas fórmulas da sexuação, no qual o pai da horda aparece como
exceção que, inocupada, funda o conjunto dos homens – se impõe ao falasser este resto
da lei, o supereu, não apenas herdeiro do complexo de Édipo – como pensara Freud –
mas, mais primordialmente, como exceção à castração, que exige, imperioso: ―Goze!‖
(LACAN 1972-3, p. 11). Esta anterioridade lógica, que ata à linguagem a produção do
impossível e ao pai o lugar de uma das formas de sua subjetivação, leva Lacan, durante
110

seu ensino, a evocar um momento primordial, anterior a estruturação edípica, que


marcaria o surgimento superegóico.
Pinheiro (2009, p. 81) recorta em Lacan dois fragmentos anteriores a seu último
ensino, nos quais este traz a baila esta questão. No primeiro deles, em seu texto sobre a
criminologia proferido com Cénac, ele pontuara que: ―Nossa experiência dos efeitos do
supereu, assim como a observação direta da criança à luz dessa experiência, revela-nos
seu surgimento num estádio tão precoce que ele parece ser contemporâneo ou mesmo
anterior ao surgimento do eu.‖ (LACAN 1950a, p. 138). O agente crítico, pensado
assim, poderia anteceder as relações do sujeito com o mundo externo mediadas pela
construção da imagem de si; tomado desta forma, sua incidência encontra-se ligada a
estados de dispersão libidinal tão radicais quanto o autismo. Esta hipótese encontra-se
corroborada, ainda, por um segundo fragmento, igualmente precoce do ensino de Lacan:
em 1957-8 ele se pergunta se: ―Não haverá atrás de um supereu paterno, um supereu
materno mais exigente, ainda mais opressor, ainda mais devastador, mais insistente, na
neurose, que o supereu paternal‖? (Lacan, 1957-58, p.84). Ora, não nomeará Lacan, em
seu seminário sobre a Angústia (1963-4), o objeto voz – que, como um dos avatares do
objeto ―a‖, escapa ao ordenamento significante – como ―supereu‖?
―Lei insensata‖, ―a um só tempo a lei e sua destruição‖ (LACAN 1953-4, p.123),
Lacan vê nesta faceta do supereu desvelada em seu ensino uma torção que faz gemer a
verdade do superego freudiano. Os crimes por sentimento de culpa, assim, manifestam
uma das formas dispostas para o sujeito, em seu lidar com esta instância enlouquecida e
com o gozo fora-da-lei. Mister se faz, todavia, marcar uma ressalva, para nós,
fundamental: dentre os casos possíveis, os crimes de autopunição são apenas umas das
formas de tratar o gozo. Desde esta perspectiva, a incidência do supereu em atos
criminosos de modo algum pode ser lida como ontologização do criminoso: outros
caminhos para lidar com os imperativos superegóicos, com o que escapa ao simbólico e
com a necessidade de punição podem conduzir o sujeito a outros destinos.

II) Declinações e linhas de fuga


A) Dostoievski, ―crime‖ e castigo
Importante contraponto a um fatalismo − que outorgaria a pura determinação de
crimes pelo sentimento de culpa e necessidade de punição − pode ser encontrado, desde
a lógica da neurose, no célebre texto destinado por Freud a Dostoievski: Dostoievski e o
parricídio (FREUD 1927a).
111

Neste estudo, Freud faz perfilar, lado à faceta do ―artista criador‖ – objeto de
habituais considerações −, aquelas do ―neurótico‖, do ―moralista‖ e do ―pecador ou
criminoso‖. No que tange a este último lado, pergunta-se Freud: ―porque ficar tentado a
classificar Dostoievski entre os criminosos (FREUD 1927a, p. 184)? Ora, se na obra de
deste autor não raro os criminosos ocupavam – desde uma magistral caracterização –
lugar de relevo, num diálogo com as biografias destinadas a este escritor, Freud ressalta
o quanto a ―simpatia‖ do autor russo pelo criminoso era, de fato, ―ilimitada‖, indo

... muito além da piedade a que o infeliz tem direito e que faz
lembrar do ‗temor sagrado‘ com que os epiléticos e os lunáticos
foram tratados no passado. Um criminoso, para ele, é quase um
Redentor que tomou para si próprio a culpa que, em outro caso,
deveria ser carregada pelos outros. Não há mais necessidade de
que alguém mate, visto que ele já matou, e há que lhe ser grato:
não fosse ele ver-nos-íamos obrigados a matar (idem, p. 194).

Com efeito, em concomitância com o Zeitgeist que o circundava, Dostoievski


abordara, em sua obra, o tema ―crime-loucura‖ tocando a discussão que, como vimos
nos capítulos precedentes, a expertise travava nos tribunais, manicômios, livros e mídia.
Em Crime e Castigo (DOSTOIÉVSKI 1866), por exemplo, o autor faz de seu anti-
herói, Raskólnikov, um ―monomaníaco‖ − transgressor e doente −, cujo crime de
assassinato não escapava aos martírios e auto-traições, atualizações do sentimento de
culpa e da necessidade de punição. Seu livro, contudo, não resume-se a este ‗retrato‘;
numa manobra de ―texto dentro de texto‖, Dostoievski faz seu protagonista encontrar-se
com sua própria posição, outrora esquecida, ante a questão do homicídio.
Na casa do juiz de instrução Porfiri Pietróvitch − personagem responsável pelo
processo que investigava o assassinato e a quem o protagonista cogita entregar-se −,
Rodion Românovitch Raskólnikov é relembrado, pelo agente da lei, de um artigo que
escrevera numa revista que, neste ínterim, mudara de nome. Escrito antes do assassinato
ser cometido, o texto, trazido à baila por Porfirii, surpreende Raskólnikov, que apenas
assinara-o com suas iniciais: o juiz de instrução, tocado pelo escrito, descobrira, após
rápida investigação, sua autoria e, diante daquele que o empreendeu, não pode furtar-se
de interpelá-lo. No artigo, Raskólnikov ponderava que, embora a ―natureza humana‖
fosse subdividida em inúmeras possibilidades – e determinada segundo leis −, não lhe
era estranho propor uma polarização entre ―homens ordinários‖ – obedientes e
conservadores da lei − e ―extraordinários‖ – que, por sua veia criativa, a destroem:
112

... Licurgos, Sólons, Maomés, Napoleões e etc., todos, até estes


últimos, têm sido criminosos porque, promulgando novas leis,
violam, por este motivo, as antigas que tinham sido fielmente
observadas pela sociedade e transmitidas de geração em geração
(DOSTOIÉVSKI 1866, p. 348).

Explicitando a autoria e propondo, ainda, sua interpretação ao sentido do artigo,


Porfirii – a quem o protagonista cogitava, mesmo que hesitantemente, se entregar –
surpreendera novamente Raskólnikov: o investigador levara as últimas conseqüências
aqueles enunciados vendo, nestes, uma espécie de defesa do ―direito de matar‖. Neste
ponto do livro, em que o artigo, outrora ―perdido‖ é confrontado com o assassino,
Porfirii pergunta a Raskólnikov se este reconhecia-se entre os homens ―extraordinários‖
que gozariam, em nome de um ―bem‖, do direito de ―suprimir vidas humanas‖:

Escrevendo seu artigo é impossível, eh... eh... que o senhor não


considera-se a si mesmo, ao menos em parte, um desses homens
extraordinários, destinados a pronunciar ―palavras novas‖, no
sentido em que o senhor as compreende... não é isso? [...]
poderia o senhor decidir-se, para livrar-se de embaraços
materiais ou para prestar benefício à humanidade inteira,
antecipar o passo... quer dizer, matar, por exemplo, e roubar?
(DOSTOIÉVSKI 1866, p. 355).

Encarregado de investigar os suspeitos do crime, Porfirii deixa subentendida a


suposição, justificada como ―curiosidade puramente literária‖, de que se Raskólnikov
fora o assassino, este poderia ter antecipado, em seu texto, como num jogo de espelhos,
a próxima imagem, que seria o homicídio. A esta presença ―já lá‖ do homicídio antes de
sua realização, o protagonista responde com um ar de altivo desafio: ―Se eu tivesse me
decidido a antecipar, eu, naturalmente, não ia dizer-lhe‖ (idem, p. 355). Raskólnikov,
junto a sua resposta, não pudera furtar-se um pensamento repleto de desdém: ―‗Que
truque grosseiro. A malícia costurada com um fio visível‘, pensou Raskolnikov,
desanimado‖ (idem, p. 357). Poderíamos reconhecer nas considerações freudianas
deslize semelhante ao de Porfirii quando este expõe que, na relação autor-obra, as
―personagens violentas, homicidas e egoístas‖ por Dostoiévski implicavam ―a
existência de tendências semelhantes dentro de si próprio‖ (idem, p. 184)?
113

Nos comentários tecidos por Freud sobre Dostoiévski, grande parte é destinada a
discussão sobre sua epilepsia, que, segundo ele, tivera seu aparecimento na infância do
autor. Tais crises teriam, naquela época, uma ―significação de morte‖:

... eram anunciadas por um temor da morte e consistiam em


estados sonolentos, letárgicos. A moléstia o acometeu pela
primeira vez quando ainda menino, sob a forma de uma
melancolia súbita e infundada, uma sensação, como mais tarde
contou a seu amigo Soloviev, de que iria morrer ali mesmo. E,
na realidade, seguia-se um estado extremamente semelhante à
morte real. Seu irmão Andriei contava que, mesmo quando
ainda muito moço, Fiodr costumava deixar espalhadas pequenas
anotações antes de dormir, dizendo que tinha medo de poder
cair, durante a noite, num sono semelhante à morte; assim,
implorava para que seu enterro fosse adiado por cinco dias
(FÜLÖP-MILLER e ECKSTEIN, 1925, lx.) (FREUD, 1927a, p.
187).

Freud tomaria, em suas ilações sobre Dostoievski, as ―pequenas anotações‖ do


jovem como sinais de uma identificação – ou de um processo que vai em sua direção −
com um morto. Mais ainda, no ―caso mais significativo‖, esta identificação operaria
como forma de autopunição, erigida não apenas por meio da identificação a um morto,
mas, sim, ―à pessoa que o sujeito deseja que morra‖ (FREUD 1927a, p. 187). Como
vimos (p. 93), Freud havia percebido, desde a experiência clínica exposta em seu
Rascunho N, como os impulsos hostis contra os pais (o desejo de que morram), pode
incorrer, nas neuroses, na punição de si segundo o modelo histérico – ―por intermédio
da idéia de retribuição‖ com ―estados de doença‖ (FREUD 1897, p. 304-5). Dito de
outro modo, Freud propõe a interpretação − desde sua leitura de biografias sobre o autor
russo – de que seria a seu pai, − com quem ele tinha um difícil relacionamento – que se
dirigiria o desejo de morte. Tornava-se, compreensível, via conversão, o fato do talvez
primeiro ataque epilético de Dostoievski ter ocorrido quando da morte de seu pai.
Esta interpretação ‗diurna‘ do tema do parricídio em Dostoievski por Freud,
encontra, por parte do próprio analista, ressalvas que o impedem de tecer, como Porfirii,
truques com ―fio demasiado visível‖: para Freud o parricídio é ―o crime principal e
primevo da humanidade‖ e, ―em todo caso, a fonte principal do sentimento de culpa‖
(FREUD 1927a, p. 188). Mas, se Freud propõe para além da vã psicologia algo de
estrutural no que tange a culpa, neste artigo ele chega mesmo a questionar o crime
primevo como fonte ―única‖ da culpa: ―as pesquisas ainda não conseguiram estabelecer
com certeza a origem mental da culpa e da necessidade de punição‖ (idem, p. 187).
114

De certo modo, desenha-se, no horizonte freudiano, a primordialidade por ele


atribuída em Mal estar na civilização, ao ―eterno conflito entre Eros e a pulsão de
morte‖ (FREUD 1930b, p. 135). A partir desta perspectiva, a culpa pode relacionar-se a
algo ainda mais basal, além do mito do parricídio e de seus desdobramentos edípicos.
Torna-se possível, desde esta outra senda, apreender, para além da autopunição –
tentativa de vincular, desde o masoquismo, Eros e pulsão de morte – outras saídas
legítimas de modo a tratar a injunção superegóica – auto-martírio, conscienciosidade,
ou, mesmo, empuxo ao gozo. Estão lançadas as bases para uma leitura ‗noturna‘ das
alternativas não criminogênicas ao sentimento de culpa. Por este viés destacam-se vias
como os ―inanalisáveis dotes artísticos‖ (FREUD 1927a, p. 184) de Dostoievski.
Partindo das biografias do autor russo e do diário de sua esposa, Freud chama a
atenção para a ―mania de jogo‖ daquele. A princípio, em sua jogatina, Dostoievski
também encontraria uma satisfação autopunitiva: ele nunca descansava antes de perder
tudo; chegando em casa, contava a esposa o que fizera, humilhava-se e convidava-a a
desprezá-lo e a se lamentar por ela ter se casado com um ‗velho pecador‘ (idem, p. 195).
Aliviando sua consciência, recomeçava tudo de novo no dia seguinte. Mas, cabe aqui a
questão: reduziria-se, então, o tratamento aos imperativos superegóicos e a culpa em
Dostoievski apenas à autopunição? Em uma leitura ‗noturna‘ da análise freudiana do
gênio russo ressaltamos que, entre a culpa e o castigo de si, como um resto não redutível
àqueles dois elementos, decantava-se sua obra: ―A jovem esposa se acostumou a este
ciclo, porque a única coisa que oferecia qualquer esperança real de salvação – era a
produção literária que, nunca ia tão bem como quando perdiam tudo e empenhavam
suas últimas posses‖ (idem, p. 195).
Em Escritores criativos e devaneios Freud chamou de ―escolha de material‖ –
mesma expressão usada por ele ao reconhecer, em Dostoievski, ―a existência de
tendências violentas, homicidas e egoístas‖ (idem, p. 184) como em seus personagens –
os recursos para a escrita, obra de arte na qual o sujeito busca satisfação ao ―driblar a
crítica‖ (FREUD 1907, p. 143) – um dos nomes que, mais tarde, Freud ligaria ao
supereu. Há, assim, na escrita, ―a possibilidade de nos deleitarmos com nossos próprios
devaneios, sem auto-acusações ou vergonha‖ (idem, p. 143). ―A verdadeira ars poética
está na técnica de superar este sentimento de repulsa sem dúvida ligado às barreiras que
separam cada ego dos demais‖. Demasiadamente grande, porém, é a exigência de que,
para driblar os imperativos do supereu sejamos escritores do prumo de Dostoievski;
outra saída apontada por Freud – mais cotidiana e acessível – é o humor.
115

O riso destaca-se, desde o texto sobre Escritores criativos, de 1907, como forma
de ―livrar-se da carga pesada imposta pela vida e conquistar o intenso prazer
proporcionado pelo humor‖ (FREUD 1907, p. 143). Pela via do processo humorístico
Freud reitera, em seu texto O humor, de 1927, a queda das barreiras entre o transgressor
e o não transgressor – posição inversa à ‗desumanização‘ do criminoso:

Quando, para tomar o exemplo mais grosseiro, um criminoso,


levado a forca numa segunda-feira, comentou: ‗Bem, a semana
está começando otimamente‘, ele mesmo estava produzindo o
humor; o processo humorístico se completa em sua própria
pessoa e, evidentemente, concede-lhe certo senso de satisfação.
Eu, ouvinte não participante, sou afetado, por assim dizer, a
longo alcance, por esta produção humorística do criminoso;
sinto, como ele talvez, a produção do prazer humorístico (Freud
1927b, p. 165).

No segundo capítulo de nossa tese (p. 38), vimos como procede Lombroso
perante o humor do criminoso: ele relembra ―Bocarmé‖ que, diante do apressar imposto
por um carrasco, brinca: ―Não se inquiete. Sem mim não se começa‖ (LOMBROSO
1895, p. 51). A interpretação lombrosiana do chiste destitui o processo humorístico
vendo, naquele dito, não um enlace que esfuma as diferenças entre o criminoso e ‗seus
outros‘, mas, sim, uma objetalização que o reifica, marca de sua insensibilidade bestial.
Encontramos, assim, um justo encaminhamento à segunda pergunta erigida por
Freud em seu texto de 1916 sobre os Criminosos por sentimento de culpa. À pergunta
―É provável que esta espécie de causação [a culpa] desempenhe um papel considerável
no crime humano?‖ (idem, p. 347) a resposta é: a transgressão pode ser – e não é
necessariamente – uma tentativa de tratar − pela vinculação masoquista entre Eros e
pulsão de morte – as vociferações do supereu e o sentimento de culpa. Por outro lado, a
aproximação da psicanálise com o debate criminológico é prenhe de inúmeras outras
possibilidades: Theodor Reik, por exemplo, interroga os processos psíquicos comuns
aos ―indícios do crime‖ e o ―sintoma analítico‖, relacionando os modos de investigação
de sinais pela via analítica, científica e mítica em Psicoanalisis del crimen: El assessino
desconocido (REIK 1956); há, ainda, autores contemporâneos como Serge Cottet que
atentam que ao se restringir a psicanálise ao tópico dos ―crimes de autopunição‖,
―imediatamente, deixa-se de lado todo um setor da criminologia, como crimes
perversos, crimes de massa, crimes imotivados, ou esquizofrênicos de Guiraud‖
(COTTET 2008, p. 2) – estes últimos tema central de nossa tese.
116

B) O kakon e a estruturação psicótica


Em sua aproximação do tema dos assassinatos imotivados, Guiraud, como vimos
no capítulo anterior, fizera um aporte à teoria freudiana, de forma a apreender, nas
psicoses, uma causalidade para além da psicologia dos motivos compreensíveis. Na
obra de Lacan, além de sua tese sobre o caso Aimée – que marca sua entrada no
discurso analítico – Lacan tornará a evocar o kakon em passagens sempre ligadas ao
debate clínico-teórico sobre a estrutura psicótica. Isto ocorrera, de fato, em dois textos.
Em Formulações sobre a causalidade psíquica, texto de 1946, Lacan retoma, a
propósito da discussão acerca da ―causalidade essencial da loucura‖, o termo kakon e o
escrito em que este emerge, a saber, Os assassinatos imotivados, de Guiraud.
Avaliando, já ali, a particularidade da relação entre psicose e linguagem, Lacan
sublinhará, no que tange aos fenômenos ditos elementares – acontecimentos irredutíveis
ao funcionamento usual do aparelho psíquico tais como a alucinação, interpretações e
intuições delirantes e etc. − , a objetalidade que estes conferem ao louco: ―eles o
desdobram, respondem-lhe, fazem-lhe eco e lêem nele, assim como ele os identifica,
interroga, provoca e decifra‖ (LACAN 1946, p. 166).
Assim, sejam os fenômenos ligados às significações delirantes – sempre
particulares – sejam, ainda, as experiências relativas à perplexidade – inerente ao
inexprimível e à falta de significado −, na peculiar relação do psicótico com a
linguagem resta uma certeza: estes fenômenos lhe concernem. Este sentido último, a
posição objetal do psicótico, torna-se, paradoxalmente, a-semântico: cabe, a posteriori,
ao louco, prover ou não tal certeza de uma significação. Ao tomar a linguagem como
referência – coisa empreendida por Lacan desde sua tese em psiquiatria – importa
menos interrogar sobre a sensorialidade ou organicidade do sintoma que sobre a posição
do sujeito no que ele a narra ou vivencia: o que leva Lacan a dizer que ―toda a loucura é
vivida no registro do sentido‖ (LACAN 1946, p. 166). É este o contexto em que ele
afirma: ―Quão longe vai um Guiraud, mecanicista, quando no seu artigo sobre os
―assassinatos imotivados‖ se dedica a reconhecer que o alienado não procura no objeto
que atinge nada além do kakon de seu próprio ser‖ (idem, p. 175). O kakon retorna,
pois, às elocubrações de Lacan, ligado à questão do ser do louco na linguagem. Coisa
semelhante ocorrerá dois anos depois.
Em Agressividade em psicanálise (LACAN 1948), Lacan aborda o tema, num
texto em que destaca a incidência da imagem na formação do eu, assim como a estrutura
dual do registro imaginário: o eu se constitui desde a assunção da imagem do corpo
117

próprio como e a partir da alteridade. Lacan faz ecoar, assim, o dito de Rimbaud para
quem o ―eu é um outro‖ (LACAN 1948, p. 120). É na ―suspensão‖ (idem, p. 114) desta
dialética – na qual o sujeito é marcado pela discordância fundamental com a imagem de
si – que Lacan ilustrará como, para o psicótico, o ―kakon obscuro‖ opera ao ―expressar
a discordância‖ a partir de uma série de temas delirantes e experiências corporais que
delegam, uma vez mais, ao psicótico, o lugar de objeto a ser gozado. Trata-se de:

... motivação mágica do malefício, telepática, de influência,


lesiva, da intrusão física, abusiva, do desvio da intenção,
espoliadora, do roubo do segredo, profanatória, da violação da
intimidade, jurídica, do preconceito, persecutória, da
espionagem e da intimidação, prestigiosa, da difamação e do
ataque à honra, reivindicatória, do prejuízo e da exploração
(LACAN 1948, p. 113).

Considerando, ainda, esta ―suspensão dialética‖ – e a concomitante objetalização


do louco – noutra passagem deste mesmo texto, Lacan evocará, novamente, o kakon.
Ele assim o faz retomando a expressão ―mal objeto‖ de Melanie Klein, pondo em
primeiro plano aquilo que confronta o sujeito com os limites do princípio do prazer. É
sob este plano de fundo que transcende a discussão sobre a agressividade – sempre
dirigida ao ―semelhante‖ e, portanto, sempre mediada pela dualidade do registro do
imaginário – que Lacan reconhece um limite deste seu escrito. Segundo ele, se seu texto
é ―dedicado à relação narcísica e às estruturas do desconhecimento e objetificação
sistemáticos que caracterizam a formação do eu (idem, p. 118), resta, porém, a elucidar,
a ―primordialidade ligada à posição depressiva, o extremo arcaísmo da subjetivação do
kakon, ligado à formação primária do supereu‖ (idem, p. 118). A ―tensão da culpa‖, a
―nocividade oral‖, a ―fixação da hipocondria‖ e o ―masoquismo primordial‖ –
associados por Lacan ao kakon e anteriores à construção da imagem do corpo próprio
permanecem , em 1948, em aberto.
Ligado, nas referências feitas por Lacan, a um objeto para além dos dispostos no
pólo de semelhança próprio ao registro imaginário, o kakon relaciona-se a algo do
próprio ser do sujeito, objetalizado no psicótico. É em relação às particularidades da
estruturação psicótica no que tange a suas relações com a linguagem que, na parte
seguinte, analisaremos o fora-da-lei fálica, distinto do fora das leis positivas que é o
criminoso, num percurso que nos conduzirá do dizer psicótico à noção lacaniana de
foraclusão do nome do pai.
118

Parte III

A condição psicótica: do fora-da-lei


fálica aos modos foraclusivos de
tratamento do gozo
119

− Capítulo V –
A objetalização científica e a dimensão objetal na psicose:
dois diferentes paradoxos na relação entre fala e linguagem
Nos capítulos anteriores, vimos trabalhando, de forma relativamente sistemática,
o surgimento, moderno, da discussão acerca dos assassinatos imotivados. Na complexa
contenda formada por áreas tão díspares quanto psiquiatria, direito e criminologia, a
psicanálise, convidada tardia, fora convocada a tomar posição. Com efeito, neste
percurso, deparamo-nos com a abordagem – talvez não seja leviano assim denominá-la
− ―clássica‖ desta interface, aproximação esta que opera desde a ênfase na sobre-
determinação inconsciente de certas ações classificadas como criminais, que interessam
à psicanálise não por seu caráter transgressivo, mas, sim, por sua dimensão sintomática.
Tais ações, os crimes por conseqüência do sentimento de culpa, ao contrário do
que se possa sugerir, podem operar não como pura ruptura de laços sociais, mas,
paradoxalmente, como formas dispostas pelo sujeito para tratar a instância enlouquecida
que é o supereu – que pode advir como ―pura cultura da pulsão de morte‖ (FREUD
1923, p. 66) − e com um gozo que, com Lacan, pudemos, ainda que de maneira célere,
qualificar como fora-da-lei, posto que impossível de ser capturado pelo jogo de sinais
que compõe a determinação estrita pela faceta simbólica da linguagem.
Conduzidos que fomos pela força desta argumentação que se nos impôs,
chegamos, logo, a uma conclusão a nosso ver fundamental: uma vez que, como
asseverara Lacan em seu texto sobre a criminologia de 1950a, ―não há instinto
criminoso‖ (idem, p. 148), dentre os casos possíveis, os crimes de autopunição são
apenas umas das formas de tratar o gozo. Desde esta perspectiva, a incidência do
supereu em atos criminosos de modo algum pode ser lida como ontologização do
criminoso: outros caminhos para lidar com os imperativos superegóicos e com o que
escapa ao simbólico podem conduzir o sujeito à vários outros destinos.
Isto que é verdade para a questão criminológica se mostrará verdadeiro, também,
no que tange a especificidade de um fora-da-lei – distinto seja da transgressão seja
daquilo que, nas neuroses, escapa ao registro simbólico; trata-se, nomeemo-lo, o ‗fora
da lei fálica‘, particular aos modos psicóticos de estruturação subjetiva. É em relação às
particularidades da estruturação psicótica que, neste momento, começaremos a nos
debruçar sobre este outro ‗fora-da-lei‘, distinto do ‗fora-das-leis‘ positivas que é o
criminoso, valorizando, desde o testemunho destes sujeitos, o lugar da fala e da
linguagem na psicose.
120

I) Dois paradoxos, duas diferentes objetalidades


Na década de 50 do século passado, a Sociedade Parisiense de Psicanálise,
instituição da qual o Dr. Lacan fazia parte há não muito tempo − visto ter sido sua
admissão um episódio bastante conturbado (ROUDINESCO 1994, p. 84) − punha-se a
partir. Como herdeira legítima da Associação Internacional de Psicanálise, a IPA, este
braço imperioso do freudismo na França, perderia, de uma só vez, psicanalistas da altura
de Jacques Lacan, Daniel Lagache e Françoise Dolto.
O motivo para tal cizânia vinha do avanço inexorável de uma confusão que
precipitara a psicanálise − a partir do engendramento de regras Standard − num
ritualismo que em pouco se diferenciava da sintomatologia obsessiva, nada pouco difícil
de devolver à dimensão da fala. Assim, é em torno de duas faces de uma mesma moeda
− de um lado, uma burocratização na formação e na condução de uma análise e, de
outro, um apagamento dos fundamentos discursivos freudianos − que, no horizonte
psicanalítico, desenhava-se um desfalecimento que ameaçava se alastrar por todo seu
campo de atuação. É este, pois, o contexto no qual Lacan profere seu inflamado
discurso na ―cidade eterna‖, cujo acolhimento pouco satisfatório viria dar o tom de outra
ruptura em sua história65.
Como vimos outrora, foi mesmo por uma cisão de grande magnitude que o
então jovem psiquiatra Lacan se lançava ao discurso analítico. Imbuído do desígnio de
retornar a Freud, num importante congresso em que se encontrava na presença de
psicanalistas de diversos países, Lacan não se furtara a dirigir, a seus colegas, a seguinte
pergunta:
Método de verdade e desmistificação das camuflagens
subjetivas, manifestaria a psicanálise uma ambição desmedida
ao aplicar seus princípios a sua própria corporação, isto é, a
concepção que tem os psicanalistas de seu poder junto ao
doente, de seu lugar na sociedade dos espíritos, de suas
relações com seus pares e de sua missão de ensino? (LACAN
1953, p. 242).

Neste Discurso, Lacan destacara ao menos duas esferas de dificuldades na


sustentação e realização do sujeito pelo discurso analítico, esferas estas que, como
veremos, tocam não apenas em fundamentos técnicos da psicanálise, mas que implicam,
sobretudo, o que se decanta deste discurso nos termos de uma ética.

65
De fato, tal ruptura marcaria a fundação da Sociedade francesa de psicanálise da qual, por algum
tempo, Lacan viria a fazer parte.
121

À primeira esfera, estavam concernidas àquelas aproximações clínicas que


dedicavam demasiado valor ao registro Imaginário, eixo de semelhança, imagem e
simbolismo que, antes de possibilitar antever sua articulação como linguagem,
mergulhavam a psicanálise num quadro não menos fantástico e intricado que aqueles de
autoria de Hyeronimus Bosch (LACAN 1998, p. 100 e 108). Se a dança das
significações e projeções possibilitava despertar o interesse e a consideração pelas
formações imaginárias da clínica psicanalítica, esta, de forma alguma, possibilitava
apreender os fundamentos que norteavam e davam a esta clínica sua consistência e real
dimensão. A psicologia do ego − de inspiração anglo-saxã, desenvolvida sob os
auspícios de analistas imigrados para o ―novo mundo‖ durante as grandes guerras −
acrescentaria, a este quadro, uma série de diretrizes normativas que punham em xeque a
alteridade, predicado que sempre caracterizou a concepção psicanalítica de
Inconsciente.
Paradoxal e ironicamente, este modo de apropriação dos conceitos da
descoberta freudiana consistia, simplesmente, em abolir a mesma, e isto no que ela tinha
de mais original, a saber, a ruptura que esta permitia efetuar com relação ao ideal
moderno de autonomia e liberdade da consciência, do eu e do indivíduo. As
conseqüências clínicas, inerentes a esta posição, não decorreriam menos problemáticas:
caracterizava o manejo clínico inspirado por esta direção de tratamento, o caráter dual,
de ―two-body´s psychology‖, em que o aspecto de disparidade imanente ao inconsciente,
uma vez excluído, deveria, de fato, excluído permanecer. Em seu lugar, deixado vazio
não pelo corte que este deveria operar, mas pelo desconhecimento que era seu motor,
restava a identificação com a pessoa ou supereu do terapeuta, tido como referência
última daquilo que deveria ou não concernir à ―realidade‖.
O discurso analítico enfrentava, ainda, uma segunda esfera de dificuldades, em
seu desígnio de alocar, na cultura, as condições de emergência de um sujeito. Tal ordem
de fatores consistia nas incidências, para a civilização, do modo moderno de operação
das ciências. De fato, este segundo conjunto, nada ficava a dever ao primeiro − a
apropriação da psicanálise por qualquer espécie de ―psicologia do eu‖ − em seu aspecto
paradoxal. É que, se esta nova ordem de saberes fundava na cultura uma série de
possibilidades ao desatrelar o significante da imagem, do puro intuitivo e de sua ligação
com o estritamente empírico, não é menos verdadeiro que, por seu modo unívoco de
intervir − via formalização − este modo de operar concorria, também, para o avanço de
uma verdadeira exclusão de muitas das possibilidades anteriormente criadas.
122

Dentre estas últimas, encontram-se, certamente, a estrutura da fala e o sujeito,


efeitos que o dispositivo psicanalítico, por sua estrutura e posição, permitia apreender.
Assim, quando a ciência matematizada toma de assalto a dimensão da linguagem,
transparece a complexidade que a modernidade imprime a este ser falante que é o
homem. Estamos, pois, perante um caso particular daquilo que Lacan chamara, em
1953, de ―paradoxos‖ (idem, p. 281) para o sujeito, da relação entre a fala e a
linguagem. Podem-se depreender, em torno destes paradoxos, dois extremos: ―À
medida que a linguagem se torna mais funcional, ela se torna imprópria para a fala e, ao
se tornar demasiadamente particular, perde sua função de linguagem‖ (idem, p. 300).
Detenhamo-nos, pois, no exame das duas extremidades desta complexa relação.
Com efeito, na alocução de Roma, Lacan enumera estes ―paradoxos‖ na
quantidade de três: I) a loucura, em que o falante, em uma linguagem petrificada,
parece antes ser falado do que falar; II) o sintoma neurótico, fala que, embora
estruturada, encontra-se aprisionada sob o véu de Maia do recalque; e III) a
possibilidade, fundada na modernidade, de uma objetivação do discurso do falante.
Ateremos-nos, aqui, pois, apenas: ao primeiro, por ser este caso o objeto maior de nossa
tese, e, ao terceiro, pelo qual começaremos − por nos dar o contexto histórico e
estrutural em que opera a psicanálise.

A) Terceiro paradoxo: a objetivação do discurso do falante


Não parece haver dúvidas de que as relações entre o falante e a linguagem, há
alguns séculos, sorfreu uma verdadeira revolução. A linguagem, tal qual os saberes
modernos a apreendem e dela fazem uso, guarda grande discrepância não apenas com as
concepções erigidas na antiguidade, mas, também, em relação a sua apreensão intuitiva,
vale dizer, tal qual esta se dá cotidianamente. Nesta última acepção, a linguagem é
apreendida como utensílio a serviço do anseio humano, seja para nomear coisas, seja
para se fazer compreender sobre um determinado assunto. Nestes casos, a relação entre,
de um lado, o sinal ou palavra e, de outro, um objeto ou sentido, dispõe-se em primeiro
plano. Trata-se, aqui, pois, da dimensão semântica da linguagem, em sua faceta não-
formal e ingênua.
Não obstante, ocorre que, com o advento da ciência moderna −
particularmente a partir do desenvolvimento de certos ramos da matemática − tornou-se
possível operar com os símbolos de modo eminentemente sintático, vale dizer, no que
estes sinais, em suas relações intrínsecas, são regidos por constantes que prescindem
123

tanto dos objetos designados, quanto do sentido resultante de sua interpretação pelo
falante. É este aspecto da linguagem, por exemplo, que nos permite dar um tratamento
matemático aos fenômenos naturais de modo a explicitar as leis que os regem e os
determinam, indo muito além de uma simples experiência particular. Deveu-se,
verdadeiramente, à construção de um real desde esta sintaxe − e não à medida e aferição
empíricas − o grande salto que a ciência alçou nos últimos séculos.
No que nos interessa, tal advento, para o homem, não pôde deixar de ter uma
grande conseqüência: esta sintaxe, ao incidir sobre o falante, aloja, numa dimensão de
linguagem, o efeito não substancial que é o sujeito. E como o homem, a partir da
modernidade, se posicionará perante as incidências que esta estranha esfera
eminentemente sintática da linguagem lhe impõe?
Em verdade, é sabido que, na absoluta maioria das vezes, tal questionamento
nem ao menos vem a ser, pelo falante, colocado. Se este tipo de constatação não resulta
em surpresa, o mesmo não ocorre quando a pergunta insiste, de um modo ou de outro −
mesmo à revelia daquele em que habita − em se apresentar. Frente a isso, o dispositivo
analítico não pode deixar de reconhecer, no impasse de uma questão que persevera, o
nicho de sua operação.
Curiosamente, o dirigir a palavra a um analista − tentativa do falante integrar
certos traços que o impedem de ser Um − é, ao mesmo tempo, a condição de
possibilidade de uma análise para o neurótico e o berço maior de sua resistência à advir
enquanto sujeito. Lacan faz observar que, ali, no momento da chegada do paciente, em
seu pedido de análise, ele busca, sem se dar conta, realizar ―a alienação mais profunda
do sujeito da civilização científica‖ (LACAN 1953, p. 282): ele fala de si como um eu e
se dispõe − a despeito da morbidez de tal posição − como um objeto.
A responsabilidade do analista é, logo, na experiência que ele é chamado a
conduzir, a de sustentar um questionamento que em nada pode ser comparado a
qualquer tentativa de converter o falante a esta alienação mais ―profunda‖ do sujeito da
civilização científica (idem, p. 282). Todavia, veiculando o apagamento do enigma
posto pela linguagem através do sujeito − pois que, como dizia Lacan, ―o que me
constitui como sujeito é minha pergunta‖ (idem, p. 301) − o projeto científico oferece
outro tipo de resposta. Trata-se, de fato, do ‗conforto‘ conferido pela redução da
linguagem ao ideal de uma comunicação unívoca e da alienação do falante nesta como
um de seus objetos.
124

Mas uma saída se oferece ao sujeito para a resolução desse


impasse que delira em seu discurso. A comunicação pode se
estabelecer para ele, validamente, na obra comum da ciência e
nas utilizações que ela ordena na civilização universal; essa
comunicação será efetiva no interior da enorme objetificação
constituída por essa ciência e lhe permitirá esquecer sua
subjetividade. Ele colaborará eficazmente com a obra comum
em seu trabalho cotidiano e povoará seu lazer com todos os
encantos de uma cultura profusa, que, do romance policial às
memórias históricas, das conferências educativas à ortopedia
das relações de grupo, dar-lhe-á meios de esquecer sua vida e
sua morte, ao mesmo tempo que de desconhecer numa falsa
comunicação o sentido particular de sua vida (LACAN 1953,
p. 283)

Reencontramos, aqui, por seu avesso, o processo que, na primeira parte de nossa
tese, vimos como sendo a ontologização do criminoso e do louco mediante sua captura
por um discurso científico. É que, ao contrário do que, a princípio, se poderia imaginar,
não há a objetalização passiva do ser falante, mas, como vimos no capítulo II, p. 16 − a
propósito do comércio de gadgets − um verdadeiro ‗suborno‘ do sujeito em sua relação
com o desejo: sua colaboração eficaz na ―obra comum da civilização universal‖ lhe
permite ―esquecer sua vida e sua morte‖; povoando seu ―lazer com todos os encantos de
uma cultura profusa‖ esta rendição lhe permite, ao mesmo tempo, ―desconhecer numa
falsa comunicação o sentido particular de sua vida‖ (idem, p. 283).
Se a apropriação da linguagem pelo discurso científico a reduz, mediante o
imperativo de univocidade, à sua função informativa, a particularidade que se encontra
envolvida neste questionamento que é o sujeito − assim como este se atualiza no
dispositivo analítico − permite tocar a fala em um aspecto bastante diverso. Mas o que a
experiência psicanalítica possibilita discernir desde a função que lhe é vital, a fala?

B) Fala, linguagem e sujeito na experiência analítica


Em primeiro lugar, cabe, aqui, a seguinte pontuação: uma psicanálise erige-se,
já, como uma ―experiência estruturada‖. Queremos dizer, com isso, que se trata de uma
experiência que não tem como referencial uma vivência pura, inefável, nem, tampouco,
um ser intocado pelo significante. Não pode deixar de resultar claro, ainda, que não é o
caso de uma experiência que se desenvolva aquém de seu contexto na cultura, uma vez
que, tal como se apresenta − e é isto que, durante este tópico, estivemos todo este tempo
a sugerir − este momento não está desatrelado das incidências da primazia dos saberes
científicos.
125

Uma psicanálise é uma experiência do Inconsciente, e, como tal, articulada em


elementos discretos por certas constantes que lhe são imanentes. Não é outra coisa,
senão isto, o que Lacan busca asseverar quando afirma se tratar, em psicanálise, de um
campo de fala e de linguagem. Isto porque é a relação desta sintaxe com o falante a
―outra cena‖ em que adentra Freud, ao acolher em sua escuta os sonhos, as fantasias
neuróticas e o delírio na psicose. Sua descoberta incorre em apreender estas formações
e suas conseqüências para o advento do sujeito, formações estas articuladas de tal forma
que não podem ser reduzidas ao estritamente empírico sem, contudo: 1) deixar de serem
regidas por leis e, 2) de ter desdobramentos na vida concreta do falante. Os fenômenos
inconscientes, tais quais se apresentam em uma análise, concernem a esta ―sintaxe que
habita o falante‖, que se impõe à fala à revelia da consciência. De fato, alguns anos mais
tarde, em seu seminário sobre as psicoses, dirá Lacan que:

A dimensão até o presente elidida na compreensão do


freudismo é a de que o subjetivo não está do lado daquele que
fala. É algo que reencontramos no real. (...) O subjetivo
aparece no real na medida em que temos a nossa frente um
sujeito capaz de se servir do significante, do jogo significante.
(LACAN 1955-56, p. 213).

Com efeito, este aspecto sintático do inconsciente freudiano − que, de forma


real e fugidia se articula em suas leis próprias e modula a existência do sujeito − inflige
ao falante o que Freud chamara ―terceira ferida narcísica‖: o ―eu‖ não é senhor da fala
ou da linguagem, mas somente função de shifter ou, ainda, a imagem evocada pelo
significante, no que este estrutura a relação do eu com o semelhante. Há, neste sentido,
uma ruptura com a concepção intuitiva das funções da fala e da linguagem tal qual estas
são cotidianamente concebidas.
Há pouco chamávamos atenção para o fato de estas serem tratadas, no dia-a-
dia, como uma simples ferramenta a serviço do falante. Entretanto, a psicanálise, assim
como as disciplinas científicas reunidas sobre o predicado ―estrutural‖ − como é o caso
da lingüística moderna e da antropologia de Lévi-Strauss − propuseram uma concepção
de linguagem que, no coração mesmo da existência do homem, se articulava para além
de sua consciência e determinava, por esta articulação, várias das escolhas tidas até
então como livres ações ou, ao menos, como ―motivos‖ para as ações do espírito. Se
estes campos de saber tinham em comum a referência ao saber inconsciente − e nisto é
impossível desconsiderar a primazia da descoberta freudiana − algo particularizava,
entre estes discursos, a psicanálise.
126

É exatamente este algo que, se nos ativermos ao excerto do seminário de


Lacan há pouco destacado por nós, poderemos sublinhar. Trata-se do seguinte trecho:
―O subjetivo aparece no real na medida em que temos a nossa frente um sujeito capaz
de se servir do significante, do jogo significante‖ (LACAN 1955-56, p. 213).
Vemos, neste dito, que, uma vez que nos encontremos concernidos ao campo
analítico, não se trata, em absoluto, de determo-nos exclusivamente na esfera do ―jogo
significante‖. Isto porque, embora seja a intervenção deste jogo de sinais aquilo que
torna possível o surgimento do sujeito, a psicanálise, por sua dimensão ética, apenas
pode ter como direção a aposta, no falante, de uma assunção responsável dos atos,
escolhas e modulações pulsionais que lhe vêm da linguagem. O sujeito só pode ser,
assim, o efeito de apropriação da linguagem que assalta o falante, efeito impossível de
ser reduzido ao sintático tal qual a comunicação científica, pela via do escrito, oferece
seu modelo mais acabado.
Esta sutil opacidade coloca como lugar do sujeito na linguagem não o campo
da sintaxe pura − saber articulado que se propõe verdadeiramente a andar sozinho −
mas, sim, aqueles fenômenos nos quais a suposição de um alguém, naquele tropeço,
sonho, delírio, ato ou modo de gozar se faz necessária:

Há, com efeito, algo radicalmente inassimilável ao significante,


é, simplesmente a existência singular do sujeito. Por que será
que ele está ali? De onde ele sai? Que está fazendo ali? Por que
vai desaparecer? O significante é incapaz de dar-lhe a resposta,
pela simples razão de que ele o coloca simplesmente ―além-da-
morte‖. O significante o considera já como morto, ele o
imortaliza por essência. (LACAN 1955-56, p. 205).

Certamente, ao alienar-se ao significante, é como morto − entidade reduzida


ao nome que lhe serve de lápide − que o falante jogará o carteado que é sua existência.
É fato que o neurótico, por mais que trabalhe tendo a alienação como sua direção,
jamais a atinge por completo. O tipo de resposta que podemos agrupar sobre o título de
neurose consiste, em verdade, tanto na inferência de que há um alguém que se
presentifica naqueles fenômenos que escapam e insistem quanto na de que este alguém
é um outro, que sabe sobre o neurótico e que responderá, por seu saber, em seu lugar.
Seja pela redução do sujeito da enunciação – que através da palavra, inscreve, no real,
uma diferença – ao sujeito do enunciado – o eu objetivado − seja, ainda, pelo suborno
pulsional fornecido por seus gadgets, essa parece ser a utopia do projeto científico.
127

Não obstante, o que a fala enquanto esta se atualiza no dispositivo analítico


permite-nos apreender é que esse outro, correlato de um descompletar da continuidade
da existência do homem moderno, não coincide com uma pessoa. Trata-se de um outro
radicalmente Outro66, posto pela estrutura da própria fala, na qual o sujeito − e não
apenas um eu − recebe seu lugar no instante mesmo da enunciação, no retorno dos
significantes que esta presentifica sobre aquele que fala.
Tal estrutura reduplica, de fato, a estrutura da significância na linguagem, na
qual o sentido é apenas efetivamente disposto pelo efeito de retroação que um
significante exerce em relação ao outro. Assim, dado um universo de discurso, o que
retorna sobre o falante na frase ―Tu és meu filho‖ é ―Eu sou teu pai‖. É somente a
posteriori, a partir do aparecimento do segundo significante, por uma coerção sintática,
que o primeiro e o segundo sinais terão estipuladas suas possíveis interpretações.
Deste modo, o aforismo lacaniano de que ―toda fala exige uma resposta‖
(LACAN 1953, p. 248) tem, em nossa apreensão, ao menos três importantes
implicações: 1) toda fala toca na fundação, pela enunciação, deste lugar que é o Outro –
posto que este lugar não coincide com uma pessoa concreta e específica; 2) desta fala o
falante obtêm, se assentir com uma resposta afirmativa, o efeito de retroação que é a
queda do significante que representa o sujeito e; 3) tal queda tem, na posição do
psicanalista, sua condição de existência, visto ser sua posição ética a de apostar no
advento de um sujeito, que, como tal, é correlativo à assunção de uma responsabilidade,
de um ―eu era (n)isso‖.
Nesta fala no real − independente da consciência do falante por ser antes, e
mesmo a revelia dela, já articulada − neste ―isso fala‖, cabe a distinção de três diferentes
registros, o real, o simbólico e o imaginário:

Comecei por distinguir as três esferas da fala como tal. Vocês


se lembram que podemos, no interior mesmo do fenômeno da
fala, integrar os três planos, o do simbólico, representado pelo
significante, o do imaginário, representado pela significação, e
o do real... (LACAN 1955-56, p. 78).

66
Ao que parece, desde Roma, a grafia do Outro, lugar do inconsciente, havia recebido um O
maiúsculo: ―Isso e dá pela necessidade, tão bem marcada por Freud, do terceiro ouvinte sempre
suposto, e pelo fato de que o chiste não perde seu poder em sua transmissão em etilo indireto.
Em suma, apontando no lugar do Outro o amboceptor que esclarece o artifício da palavra,
eclodindo em sua suprema alacridade‖ (LACAN 1953, p. 272).
128

Decomponhamos, pois, esta citação, bastante condensada de informações. Há


pouco pontuamos o quanto, desde a ciência moderna, passou-se a veicular uma primazia
do sintático em relação ao semântico. Afirmamos, por exemplo, que o elemento discreto
−, ou seja, contável − da sintaxe, pôde se articular em estrutura independentemente de
sua interpretação ou dos objetos que, no mundo dos referentes, ele poderá discriminar.
Pois bem, este elemento de sintaxe − sinal ou símbolo no sentido moderno − em sua
relação com o efeito sujeito, é disto que se trata quando Lacan fala em ―significante‖.

O significante pode estender-se a muitos elementos do domínio


do sinal. Mas o significante é um sinal que não remete a um
objeto, mesmo sobre a forma de rastro, embora o rastro
anuncie, no entanto, seu caráter essencial. Ele é também o sinal
de uma ausência. Mas, na medida em que ele faz parte da
linguagem, o significante é um sinal que remete a outro sinal,
que é como tal estruturado para significar a ausência de outro
sinal, em outros termos, para se opor a ele num par (LACAN
1955-56, p.192).

Este termo − ressurgido da areia dos tempos do estoicismo −, na teoria forjada


por Ferdinand de Saussure, receberá, em Lacan, uma conotação um bocado diferente
daquela que confere o lingüista − que de fato foi o primeiro a merecer este predicado −
de Genebra67. Se o significante lacaniano não coincide, em absoluto, com a concepção
genebrina, não pode deixar de resultar claro que isto é mais verdadeiro na medida em
que, embora se interessem por aspectos estruturais da linguagem, lingüística e
psicanálise guardam uma diferença radical: enquanto ética, a psicanálise tem a direção
de considerar, naquilo que se pretende a ―andar sozinho‖ − a língua − a dimensão do
tropeço e a suposição de um alguém, efeito de comprometimento excluído como tal
pela ciência, que é o sujeito.
Para Lacan, antes de ambicionar ser, de fato, uma ciência lingüística −
combinatória que de modo algum pode, em última instância, excluir totalmente uma
axiomatização de sentenças provenientes das ciências ditas naturais − a ―psicanálise
devia ser a ciência da linguagem habitada pelo sujeito. Na perspectiva freudiana, o
homem é o sujeito preso e torturado pela linguagem‖ (idem, p. 276). Há, logo, neste
discurso que é o analítico, o compromisso com o efeito sujeito, no que este é causado
pela verdadeira impossibilidade de se fazer capturar pelo puro ―jogo do significante‖.

67
Torna-se claro, neste momento, que uma digressão que fizesse verdadeiramente jus a este assunto em
muito excederia o escopo de nosso trabalho. Não obstante, mais adiante em nosso texto, retomaremos
certos pontos que consideramos capitais.
129

O sujeito se atualiza, então, no campo da realidade discursiva, ao descompletar


a bateria significante; é na elisão desta pura combinatória que poderá ele vir a se
representar de forma a não coincidir seja com a expressão lingüística, seja com o
significado, seja com um objeto do mundo físico.
Mostra-se, aqui, a importância da consideração pelos fatores estruturais da
linguagem, quer dizer, seus diferentes registros, entidades e modos de funcionamento. É
que eles permitem apreender o sujeito, diferente: 1) do ser falante, ou pessoa que se põe
a falar a uma analista; 2) da imagem, na qual busca o homem moderno se alienar em sua
relação com seus semelhantes; 3) do organismo vivo, que, em suas leis próprias,
mostra-se estranho ao universo de discurso analítico; e, 4) dos significantes, dispostos
em uma cadeia, na qual o sujeito busca se fazer representar. Deste modo, se há um
ponto que exige da psicanálise o recurso aos diversos campos que se debruçam sobre a
linguagem − em discussões que, como dissera Lacan em 1953, a psicanálise ―só tem a
se beneficiar‖ (LACAN 1953, p. 241) − este ponto é um ponto cego, ou seja, a
consideração pelo sujeito justamente como aquilo que se furta a estes campos.
Por outro lado, a apreciação dos fatores estruturais da linguagem, permite
atingir, com grande rigor, outras esferas de discurso que não apenas a fala em seu
sentido estrito. Buscamos frisar, durante este capítulo, o quanto esta forma de
articulação é privilegiada por poder propiciar a assunção responsável do sujeito em um
ato de enunciação. Todavia, o recurso à estrutura permite, também, ao analista, dispor,
num universo de linguagem, certos fenômenos que apenas podem ser apreendidos em
sua relação com o inconsciente freudiano e de suas leis.
Além do verbal, o discurso inconsciente apresenta outros efeitos: ―... e aqui
entendo por discurso inclusive os atos, os encaminhamentos, as contorções dos
fantoches presos no jogo e o primeiro é você mesmo‖ (LACAN 1955-56, p. 63).
Neste primeiro paradoxo, para o sujeito, da relação entre fala e linguagem,
reevocamos a objetalização promovida pelo projeto científico, em nome de um ideal
absoluto de comunicação, que opera a exclusão de certos efeitos criados pela liberação
do significante da imagem e do empírico. ―Sujeito‖ e ―fala‖ são alguns destes efeitos,
passíveis de serem discernidos pelo dispositivo analítico. No que tange propriamente à
fala, coube à escuta clínica desvelar, em sua estrutura, não seu aspecto informacional,
mas, sim, seu estatuto evocativo e transferencial, − no que esta funda um tipo radical de
alteridade. Trata-se, aqui, do Outro, lugar da fala e da verdade, não coincidente com
uma pessoa a ou b presente no campo da realidade.
130

No entanto, conforme reiteramos ao longo desta tese, a linguagem


formalizada, ou seja, reduzida a sistemas de sinais unívocos, avança − principalmente
através da aliança entre ciência e capitalismo. Este avanço abrange esferas cada vez
mais amplas da vida do falante dispensando-o, a partir da objetivação de seu discurso,
de se fazer comparecer no efeito ético que é o sujeito, seja ao colocar-se como
questionamento sob sua condição ou, ainda, como ato responsável. Nesta
universalização do unívoco, à ―medida que a linguagem se torna mais funcional, ela se
torna imprópria para a fala...‖ (LACAN 1953, p. 300). Transparece, pois, nesta
dobradiça que une capitalismo e ciência, os fundamentos da efetividade da ―concepção
sanitária da penalogia‖, segregação que – como controle e defesa social − se caracteriza
não pela simples exclusão, mas pela tentativa radical de alienar, sem restos, o sujeito
sob determinados significantes, no que Lacan chamou de ―campos de concentração‖
Ora, este tipo de redução ao significante, que se atualiza a todo o momento em
nosso cotidiano, exige uma diferenciação daquilo que ocorre nas diversas formas do que
chamamos psicoses; sendo ambas formas de alienação, resta a nós, como ponto crucial
de nosso trabalho, tentar apreender aquilo que particulariza as psicoses.

C) Primeiro paradoxo: a fala ―para-além‖ do sujeito


O analista, ao tomar em escuta casos de psicose, terá uma estranha impressão:
alguns pacientes falarão de forma verborrágica, chegando, por vezes, à exaustão; outros
se queixarão de escutar vozes que, segundo afirmam, falam deles; há aqueles, ainda, que
discorrerão sob a certeza irremovível de ser objeto de mal-dizeres, amores ou prejuízos.
Perante estes casos, poderíamos nós reconhecer a presença da fala enquanto função
evocativa de um Outro − suposto lugar da verdade, alteridade que se presentifica ao
descompletar o fluxo aparentemente contínuo da consciência? Seria razoável dizer que
o psicótico, tal qual este se apresenta ao dispositivo analítico, realmente fala? Quais são
os problemas postos pela psicose ao ofício do psicanalista de possibilitar que, onde o
dizer torna presente um objeto, possa advir um sujeito? É sobre estas questões que, a
partir deste momento de nosso trabalho, nos poremos a discorrer.
Logo de início, torna-se imprescindível, para nós, frisar que estes pontos, de
maneira alguma, puderam deixar de se fazer presentes à escuta freudiana. Para ilustrar
nossa afirmação, propomos, aqui, debruçarmo-nos, rapidamente, sobre o que talvez seja
o exemplo mais marcante da posição ética de Freud frente à psicose; trata-se, pois, de
seu ―caso Schreber‖.
131

C.1) A posição paradigmática


de Freud em relação à psicose
Foi no início do século recém deposto, no ano de 191168, que Freud efetivou
sua minuciosa aproximação às Memórias de um doente de nervos − livro escrito entre
1900 e 1902 e publicado em 1903 por Daniel Paul Schreber.
Como dificilmente poderia deixar de ser diferente, o pai da psicanálise, em sua
aproximação, tomaria esta obra de uma forma bastante peculiar: se a psiquiatria dirigia
o olhar para tal livro na busca de uma ilustração da fenomenologia da loucura − o que,
inclusive, parece ser costumeiro até hoje − Freud, enquanto psicanalista, não pôde
deixar de ver que aquele livro compunha, verdadeiramente, um texto, um trabalho no
qual encontrava-se Schreber engajado. Curiosamente, esta manobra aparentemente
simples incorreria, por fim, em toda diferença. Decorrera, assim, desta aproximação, o
acolhimento do testemunho relatado nas centenas de páginas do livro de Schreber −
depoimento vivo de um homem sobre a loucura que habitava seu ser. Mas que tipo de
conseqüências éticas esta escuta da palavra de Schreber poderia fazer resultar?
Quanto a nós, pensamos tratar-se, neste ato, do acolhimento de um testemunho
da verdade − no que Schreber o fez presente ao tecer seu monumental relato. Este modo
deveras particular de relação com a linguagem que é o testemunhar é uma das formas
pela qual o falante, ao se apropriar do significante, faz incidir, por seu empenho, o efeito
sujeito. Lacan não deixará de atentar, em seu seminário sobre as psicoses, para o
fundamento ético deste modo de relação do falante com a linguagem: ―O testemunho,
não é por acaso que isto se chama em latim testis, é que se testemunha sempre em cima
dos próprios colhões. Em tudo o que é da ordem do testemunho, há sempre empenho do
sujeito...‖ (LACAN 1956-57, p. 51). Mas, teríamos nós indicações de tratar-se, nas
Memórias, de um testemunho? Se sim, como pôde Freud apreender isto em sua escuta?
Já no prólogo daquele livro, Daniel Schreber escreve a respeito do que
motivara seu ato de publicar uma autobiografia: ―... creio que poderia ser valioso para a
ciência e para o conhecimento de verdades religiosas possibilitar, ainda durante minha
vida, quaisquer observações da parte de profissionais sobre meu corpo e meu destino
pessoal‖ (SCHREBER 1903, p. 25).

68
Notas psicanalíticas sobre um caso autobiográfico de Paranóia (dementia paranoides) (FREUD 1911).
132

De fato, ao tomarmos esta obra desde seu início até seu final, faz-se difícil
ignorar o quanto tal escrito comporta, como característica sua, tanto a dimensão de
remetimento − endereçar de proposições à alteridade − quanto a utilização feita por
Schreber do significante para apresentar sua peculiar posição perante a verdade. Ao
tornar públicos sua história, considerações e pensamentos não estaria ele a partilhar com
o restante da humanidade uma experiência da qual ninguém, a não ser ele, poderia nos
dar testemunho? Tal ato não comporta − de certa forma − algo da dimensão da fala, de
um endereçamento ao Outro no qual o louco demanda, em sua enunciação, alguma
resposta?
Se esta questão comporta, ainda, algo de duvidoso, é fato que, para relacionar-
se de tal modo à linguagem, fez-se necessário, a Schreber, quase uma década de
ininterrupto trabalho em pelo menos duas grandes frentes: 1) pela apropriação do delírio
que se lhe impunha e, 2) através do remanejamento de sua imagem corporal e do campo
da realidade − desmembrados incontáveis vezes em fenômenos tão extraordinários
quanto dolorosos. Chegará ele a nos confidenciar, inclusive, a existência de um tempo,
durante sua segunda internação, em que ele não podia, em absoluto, proferir, ao outro,
sequer uma palavra.
Terrificado com as investidas de ―Deus‖ e das ―almas provadas‖, tinha ele
como único recurso manter-se absolutamente imóvel; ele vivenciava, naqueles instantes,
o império autista de um estupor catatônico. Não menos verdadeiro, também, é o fato de
que, mesmo em outros momentos de sua internação, por muito tempo foi para ele
impossível falar, visto que todos que o rodeavam não passavam, meramente, de
―homens feitos às pressas‖ (SCHREBER 1903). Schreber não hesitará em dizer que será
apenas ao interpolar entre Deus e si uma boa distância, ao evocar a ―Ordem do mundo‖,
que ocorrerá para ele a possibilidade de forjar, uma vez mais, uma alteridade. É somente
neste instante, tão laboriosamente alcançado, que ele poderá pedir ao Real Tribunal de
Dresden69 a suspensão de sua interdição legal e reescrever e organizar suas anotações −
o que resultaria na publicação de suas famosas Memórias. Ora, tal testemunho receberia
uma escuta e uma resposta de Freud.

69
Schreber havia sido nomeado, no ano de 1893, Juiz-presidente da Corte de Apelação de Dresden. Este
cargo comportava o caráter de irreversibilidade, o que significava que a nomeação não podia ser
declinada, pois era determinação direta do rei. Declinar consistia, pois, em crime de ―lesa-majestade‖.
Sendo o cargo vitalício e indeclinável, havia, portanto, a possibilidade de um retorno de Schreber a seu
antigo cargo.
133

Para ilustrarmos nossa última asserção, basta que atenhamo-nos a um pequeno,


porém importantíssimo detalhe: é fato conhecido que, ao publicar suas considerações
sobre as Memórias, Freud não sabia do falecimento de Daniel Paul, ocorrido poucos
meses antes. Na introdução de suas Notas, ele se dirige diretamente a Schreber,
considerando que era possível que o autor das Memórias ―ainda vivesse‖ (FREUD
1911, p. 24). Nesta mesma parte de seu texto, há um ensaio, por parte de Freud, de um
pedido de desculpas frente à possibilidade de Schreber sentir-se de alguma forma
―ofendido‖ com suas considerações.
Freud retoma, ali, as palavras do próprio Schreber e apela, de modo
semelhante ao autor, para o mesmo amor à verdade, em razão do qual ―... todos os
sentimentos de caráter pessoal devem submeter-se a esta ponderação (idem, p. 45)‖.
Assim, Freud respondera a Schreber; ao construir sua análise das Memórias ele
autenticava que, nesta, algo da esfera da fala havia se posto. Conferia-se, então, à letra
de Schreber, o estatuto de palavra: o psicanalista tomaria aquela obra como o relato de
quem ―escreveu sua história clínica e publicou-a‖ (FREUD 1911, p. 23).
Fora mesmo a partir de tal posição que Freud se autorizaria a dispor sua
investigação sobre o escrito schreberiano. A resposta freudiana fundava, então, a
posição ética que assume que, com relação a seu texto-fala, Schreber − enquanto artífice
− estava empenhado. Isto marca toda diferença com relação à forma pela qual aquele
endereçamento fora recebido por seu principal destinatário, o ―conselheiro professor
Doutor Flechisig‖. Até onde é conhecido, este eminente médico nunca respondeu à carta
aberta de Schreber − carta nominalmente a ele endereçada que servira de prólogo àquele
livro − com algo mais que a indiferença. Pode-se especular, talvez, se outro tipo de
resposta não poderia ter feito, ironicamente, toda diferença...
Em verdade, pensamos não ser possível saber se algo diverso do trágico final
vivido pelo Senatspräsident poderia ter acontecido se Flechisig tivesse acatado tal carta
enquanto uma fala. O que sabemos, com certo nível de segurança, é que Schreber havia
submetido todo seu dispendioso trabalho à importância da resposta de Flechisig:

... rogo-lhe, quase diria imploro-lhe (...). Ao apelar para seu


interesse científico, permito-me confiar em que o senhor terá a
plena coragem da verdade, mesmo que isto significasse admitir
alguma pequenez, o que não poderia implicar sério prejuízo à
sua reputação e dignidade aos olhos de qualquer pessoa
sensata. (SCHREBER 1903, p. 30).
134

Assim, se procedermos de forma a tomar as Memórias meramente como uma


ilustração de fenômenos psicóticos − como usualmente acontece, e isso não apenas
pelos psiquiatras − renova-se o risco de perpetrar a perda de todo aquele árduo trabalho
de construção de um endereçamento. Em todo o caso, faz-se ilícito desconsiderar o fato
de que, no final das contas, foi propriamente isto o que, infelizmente, veio a ocorrer.
Poucos anos após a publicação de seu singularíssimo livro, Schreber viria a ter
sua terceira e última internação. Esta crise, mais grave que as anteriores, resultaria em
um gravíssimo processo demencial acabando por culminar em seu falecimento. A
despeito deste trágico fim, é importante reafirmarmos que, de certa forma, uma resposta
a Schreber, ainda que tardia, havia se constituído: ao contrário de Flechisig, Freud,
verdadeiramente, a efetuou.
Esta posição paradigmática − de tomar a palavra do louco em conjunção com
a dimensão enunciativa − efetivara-se unicamente a partir do acolhimento dado àquele
texto-fala que, como tal, exigia, nos limites do dizível, uma resposta. Encontramos,
neste ponto, um primeiro encaminhamento à nossa questão sobre a relação entre o
psicótico e a fala. À pergunta: a fala se põe enquanto tal na psicose? − responderemos
que, se ouvirmos Freud em suas considerações sobre Schreber − e nós o ouvimos −
pensamos que nas psicoses, principalmente as delirantes, há a possibilidade de alojar-
se, para o louco, algo da dimensão da fala. Para sermos um pouco mais precisos,
diremos que, mesmo que o psicótico possa não chegar propriamente a forjar, como
produto final de seu dizer, o sujeito como representado por um significante − o que, em
verdade, ocorre na esmagadora maioria das vezes − ele faz dispor o efeito sujeito no
processo mesmo de constituição do campo onde a fala se coloca.
Ora, a possibilidade desta construção − que remete à suposição de que, já ali,
há empenho de um sujeito − apenas se funda a partir do momento em que admitimos
que o psicótico se encontra, de alguma forma, em relação com a linguagem. No caso
específico de Schreber, vemos que, ao dizer, o psicótico encontra sim seu nicho nas
malhas do Outro, embora o faça de forma bastante peculiar: trata-se de uma alienação
radical ao significante, que explicita a face mortífera da relação entre falante e
linguagem, face esta que, em sua cruel ironia, aloja Schreber num lugar de objeto, não
de um saber ou sistema científico de referência – posto que este objeto é irredutível ao
significante −, mas de gozo.
135

Tal diferenciação marca uma importante objeção às tentativas de se reduzir,


pela operação do discurso científico, o objeto pulsional ao objeto de saber, a ser por este
capturado: trata-se, na conjunção entre o psicótico e o objeto de gozo, de uma posição
subjetiva, advinda desde um contexto linguageiro marcado pela singularidade de como,
para cada um, a linguagem margeia aquilo que lhe escapa. Em seu ato paradigmático,
Freud ‗pede licença‘ a Schreber para confrontá-lo a sua própria verdade, separando − ao
analisar a demanda que abre as Memórias, a saber, a de oferecer o ―corpo‖ e ―destino
pessoal‖ de Schreber à ciência (SCHREBER 1903, p. 25) – o objeto científico da
dimensão objetal que, pulsionalmente, caracteriza suas relações com a alteridade. Não
há, pois, entre a posição psicótica e a objetalização científica, comutabilidade possível,
do mesmo modo que, como veremos ao longo de toda esta parte de nossa tese, o ‗fora-
da-lei‘ positiva diverge, criticamente, do ‗fora-da-lei‘ fálica. Todavia, se a posição
freudiana perante o caso Schreber mostra-se paradigmática, isto não implica, mister se
faz dizer, que haja qualquer imperativo em se fazer do caso Schreber, um paradigma.
Em verdade, vimos o quanto, mesmo neste caso, o ponto de chegada daquele
trabalho não deixou de apresentar algo de problemático, seja pelo lugar nele conferido a
Schreber, seja pela posterior evolução daquela loucura. Mesmo Freud, em suas Notas,
não se furtou a tentar atingir, tanto a partir das Memórias quanto de outros exemplos
clínicos, considerações mais vastas sobre as questões postas em pauta pelo acolhimento
psicanalítico de pacientes psicóticos. Se nem todo psicótico é schreberiano, não menos
ética é a postura de analisar outros tipos de trabalho, na psicose, em suas relações com o
efeito sujeito.
Destarte, o apelo aos fatores estruturais do aparelho psíquico − tal qual estes
puderam ser depreendidos a partir da experiência psicanalítica − torna-se uma
importante ferramenta para que se possa atingir as devidas implicações e conseqüências
éticas, clínicas e teóricas postas em jogo pela loucura. O recurso à fala e à estrutura da
linguagem, vale dizer, o exame detido de seus diversos aspectos, registros e leis, torna-
se, assim, manobra indispensável para a apreensão da psicose em sua dimensão própria.
Como veremos, isto será ainda mais verdadeiro naqueles casos em que o ―dizer
psicótico‖ (LACAN 1956-7, pg 41) − verbalização que, ao ressurgir no real, confere ao
psicótico a posição de objeto a ser gozado − se situe para além da fala e se estabeleça
aquém da assunção do Outro como lugar da verdade. Tal é o passo ético imanente à
postura de Freud frente à psicose, é isto o que nos ensina Lacan em seu De uma questão
preliminar a todo tratamento possível da psicose:
136

O perigo que evocaremos, de delirar com o doente, não é para


nos intimidar, como não intimidou a Freud. Com ele,
sustentamos que convém escutar aquele que fala, quando se
trata de uma mensagem que não provém de um sujeito para
além da linguagem, mas de uma fala para além do sujeito
(LACAN 1956-7, p. 581).

Como, então, apreender, em sua estrutura, o aparente paradoxo de que o


homem, suposto ser falante, é, antes de falar, falado? Mais ainda, perguntemo-nos:
como poderá o campo ético do sujeito vir a se colocar para o louco se este se encontra
numa experiência em que ele é tomado em um dizer delirante que, de tão particular,
―perde‖, paradoxalmente, ―sua função de linguagem‖ (LACAN 1953, p. 300) −, ou seja,
seu enlace com o Outro?

II) Fala, Linguagem e dizer psicótico


Em seu seminário sobre as psicoses, ao tomar em consideração àqueles casos
em que há uma irrupção ruidosa da loucura, Lacan se perguntará: ―Será que o doente
fala?‖ (LACAN 1955-56 p. 45). Sua resposta, realmente muito pouco romântica, será a
seguinte: ―Se não distinguimos a linguagem e a fala é verdade, ele fala, mas como uma
boneca aperfeiçoada...‖ (idem, p. 45). Em verdade, o que a experiência clínica mais
corrente com a psicose nos permite apreender é que o psicótico − principalmente nas
psicoses delirantes − antes de se servir do significante, é maciçamente comandado,
falado e jogado por este.
Assim, o inconsciente, para o louco, desvelará não somente a peculiaridade de
se apresentar descoberto, mas, também, a de operar como uma linguagem ―petrificada‖,
como um dizer no real, radicalmente hostil ao psicótico. Há, portanto, em nosso
objetivo de buscar apreender a complexidade posta em jogo pela clínica da psicose, a
condição de levarmos a seu justo termo as conseqüências da diferença entre a fala, a
linguagem e o dizer psicótico. Para tanto, comecemos por retomar o que afirmamos ter
sido descoberto, através da experiência analítica, como sendo as leis da fala.
Disséramos, há pouco, que a fala, no dispositivo analítico − a associação livre
o comprovou − endossa a existência de certos fenômenos que tomam de assalto o fluxo
da existência do falante introduzindo, nesta, o efeito de verdade como descontinuidade.
Nestes instantes, o inconsciente freudiano − que, de forma real e fugidia se articula em
suas leis próprias − inflige ao falante o que Freud havia chamado de ―terceira ferida
narcísica‖. Desnuda-se, pois, em uma análise, uma forma radical de alteridade.
137

O analista, aquele a quem o falante demanda a restituição de sua frágil


aparência de unidade, tem inicialmente como sua função sustentar, por sua abstinência,
o efeito de corte que o saber inconsciente impõe ao analisante. Há, com efeito, a partir
desta manobra, a manifestação de um Outro radical, posto pela estrutura da própria fala,
ao qual caberá ou não ao paciente instituí-lo como tal, por seu reconhecimento. Mas
como esta estrutura se realiza na fala?

Para nós, a estrutura da fala, eu lhes disse a cada vez que


tivemos aqui de empregar esse termo no seu sentido próprio, é
que o sujeito recebe sua mensagem do outro sob forma
invertida (LACAN 1955-56, p. 47).

A lei da fala, que tem como correlata a instituição do Outro, é que, ao receber
sua mensagem sobre a forma invertida, o falante deparar-se-á com a sintaxe
inconsciente. Vimos já, neste capítulo, um exemplo que pensamos poder ilustrar este
modo de operação: trata-se daquele instante da enunciação em que se efetiva o retorno
de um significante-mestre sobre aquele que fala. Deste modo, na frase ―Tu és meu
filho‖, o que retorna sobre o falante é ―Eu sou teu pai‖. A partir de uma coerção
sintática, vale dizer, estrutural, se dará o aparecimento do segundo significante que
permitirá estipular a ambos seus devidos valores. Se assentir com uma resposta
afirmativa à esta estrutura, a operação de retroação terá como efeito a queda do
significante que representa o sujeito para o Outro significante − o que Lacan chamou,
em 53, de ―fala plena‖. Ora, tal efeito apenas poderá se realizar se o falante, subtraindo-
se à estrutura, não buscar coincidir, integralmente, com a expressão lingüística.
O ato de se fazer reconhecer por meio deste significante que cai − ou, dito de
outro modo, a assunção deste ―tendo sido‖, deste lugar subtraído do jogo do significante
− é este o modo como o sujeito, em relação a cadeia significante, se faz representar. De
fato, fora com o intuito de formalizar a transmissão deste modo de operação −
acrescendo, com isso, mais um recurso para a formação de analistas − que Lacan
construiu, em maio de 1955, um grafo, que ele chamará de esquema £.
138

O esquema £ buscará indicar, antes de tudo, o quanto o falante, para além de


sua relação com seus semelhantes, encontra, no inconsciente, o lugar de sua verdade de
sujeito. O Outro − ao qual ele se ata − é a sintaxe que o habita e que articula a lógica de
seu falar.
... o estado do sujeito S (neurose ou psicose) depende do que se
desenrola no Outro A (...) do qual Freud procurou inicialmente
definir a sintaxe relativa aos fragmentos que nos chegam em
momentos privilegiados, sonhos, lapsos, chistes. (LACAN
1956-57, p. 555).

O falante, deste modo, receberá sua mensagem invertida − proveniente do


Outro − pelo efeito de retroação e de corte que o inconsciente imprime à continuidade
de sua existência. Há, assim, com efeito, uma espécie de ―dupla alienação‖ (LACAN
1955-56, p. 274) que determinará as condições estruturais para o advento do sujeito. Em
primeiro lugar, há a alienação do falante ao significante, no que este, antes de falar é
falado, desejado ou rejeitado, amado ou odiado, por aquele que dele se ocupa. Em
segundo lugar, há a alienação do falante, na paranóia da vida cotidiana, à imagem do
semelhante, a partir da qual ele poderá ou não forjar seu eu, arremedo de unidade. Não
obstante, a constituição de tal instância, o eu, dependerá, sobretudo, da posição que o
universo do significante − no que chamamos de uma ―primeira alienação‖, conferirá a
ele.
Logo, para atingir o lugar de sua verdade que é o inconsciente, o sujeito
deverá transcender a inércia posta pela alienação àquela imagem que é seu eu, imagem
esta dada pela relação deste eu, a’, com o outro, a, ―no muro da linguagem‖. No
entanto, no que concerne à psicose, poderíamos reconhecer tal modo de operação? O
esquema £ se aplica, tal qual o faz com a neurose, à psicose? Nossa resposta será, a
princípio, paradoxal: sim e não. Para aclararmos o que temos a intenção de exprimir,
propomo-nos, aqui, que nos detenhamos em uma célere análise de um caso concreto
que Lacan, em seu trajeto como clínico, pôde acompanhar. Trata-se, logo, do exame de
um caso, razoavelmente estudado por nós − o caso Aimée.
Vimos, anteriormente em nosso trabalho, que, em diversos momentos de sua
história clínica, Marguerite relatara, em seus dizeres, ter sido alvo de uma série de
acusações e injúrias, o que sugere que seu delírio havia assumido um matiz de ―delírio
de observação‖. Segundo Freud, nestes casos, os pacientes vêem retornar sobre si uma
série de comentários que os tomavam na terceira pessoa: ―Agora ela está pensando nisso
de novo‖, ―Agora ele está saindo‖.
139

Para Aimée tais fenômenos se faziam presentes da seguinte forma: ao sair à


rua, havia, para ela, a crença delirante de que as pessoas, ao vê-la, ―caluniam-na‖ e
―observavam-na‖. Destarte, se nas alucinações propriamente ditas o retorno da voz far-
se-ia sem qualquer suporte, na paranóia de Marguerite era através de seus semelhantes,
das pessoas dispostas num eixo de duplicidade com ela, que tais imputações
retornariam. Como poderemos, com o auxílio do esquema construído por Lacan,
apreender o que se passa?
Ao contrário da estrutura quaternária posta em jogo por tal esquema, é licito
notarmos a polarização da relação de Aimée com a palavra em uma dimensão de
dualidade, o que permite pensar uma analogia com o tipo de relação chamada por Freud
de narcísica. Há, com efeito, uma imediação nas relações entre o ―eu‖ e seu duplo, o ―eu
ideal‖. Neste livre trânsito entre o eu e sua imagem, a intervenção de qualquer
alteridade, ou seja, de qualquer disparidade que venha a se dispor no campo da
realidade, seria vivenciada como intrusiva e perturbadora. Assim, estando neste modo
peculiar de relação com a imagem, ela apresentará, frente a qualquer intervenção que
exceda esta relação, seus maiores momentos de crise. A imposição de uma
descontinuidade frente a sua personalidade ou a seus ideais era aquilo que marcava, de
fato, para a paciente, suas recidivas e irrupções delirantes.
Seja sua infância – onde ela se aliaria à mãe perante seu ―pai tirânico‖; seja com
relação à irmã – que tomará seu lugar de mãe e de mulher; seja sua gravidez ou ainda
sua solidão em Paris; estes momentos de crise eram instantes que contrariavam a
disposição a dois de suas relações usuais. Mas, se como dissemos há pouco, a propósito
de nossa retomada do esquema £, o inconsciente − assim como Freud o entende −
intervêm sobre o tecido da consciência de forma a descompletá-lo, a introduzir aí uma
alteridade, como pensar o estatuto do inconsciente nesta relação tão acirrada do
paranóico com sua personalidade e sua imagem?
Lacan dirá, pois, que, na maioria dos casos, o Outro, no dizer psicótico, está,
como lugar da verdade, excluído70: o psicótico não o institui, por seu reconhecimento,
como tal. Mas, se, de certo modo, o psicótico não crê no inconsciente, poderíamos, por
força destas implicações, concluir que o Outro não se põe, de forma alguma, na psicose?

70
Como não pode deixar de resultar claro, não se trata em absoluto de afirmar aqui, que Lacan atribuía,
na década de 50, a inexistência do Outro na psicose. O que queremos dizer com ―excluído como lugar da
verdade‖ encontra-se diretamente ligado ao fato de que a presença do Outro, antes de ser suposta, como é
o caso da neurose, se impõe, na psicose, de forma não simbolizada para o sujeito.
140

A resposta é que não é isso o que a experiência clínica nos permite demonstrar.
É lícito, sim, dizer que tal esfera se põe na psicose, embora, na maioria das vezes, o
Outro se faça presente por meio de uma irrupção pulsional – como veremos no próximo
capítulo a propósito do colapso pulsional identificado por Freud no ―retorno da libido
sobre o eu‖ nas psicoses − e de fenômenos no registro Imaginário − registro onde
reinam o outro e seu duplo, a’, o eu.

O Outro, com um A maiúsculo, eu lhes disse que ele estava


excluído, enquanto detentor do significante71. Por isso ele é
tanto mais potentemente afirmado, entre ele e o sujeito, no
nível do outro com minúscula, do imaginário. É aí que se
passam todos os fenômenos de entre-eu que constituem o que é
a aparente sintomatologia da psicose... (LACAN 1955-56,
p.221).

Ainda que seja importante reconhecer o trabalho feito pelo psicótico de tentar
lidar ao menos pela via das construções imaginárias com a alteridade, faz-se ainda mais
importante frisar, a despeito deste esforço, a instabilidade imanente a este tipo de
relação dual, onde se transita, de um lado a outro, do pólo da paixão irrestrita ao pólo da
agressividade ilimitada.

III) A estrutura na psicose, o passo seguinte


Chegamos, aqui, pois, ao momento de retomar a diferença, por já nós
esboçada, entre a fala e o dizer psicótico. Se a lei da fala é que o sujeito recebe do lugar
do Outro sua mensagem sob a forma invertida, em instantes que cortam a continuidade
de sua existência cotidiana de falante, no dizer psicótico ocorre que, frente à
manifestação do inconsciente, o psicótico poderá vir a responder − a clínica no-lo
permite afirmar − com um estado de perplexidade, através do desdobramento de vários
outros imaginários, ou, ainda, por meio dos chamados ―fenômenos elementares‖ – o
delírio, a alucinação e a dissolução imaginária.
Destarte, o que o dizer psicótico, na fala delirante, possibilita por sua verdade
explicitar é aquilo que Lacan, em seu esquema a nós transmitido, pôde, a partir da
experiência clínica, demarcar: ―o estado do sujeito S (neurose ou psicose) depende do
que se desenrola no Outro A‖ (LACAN 1956-57, p. 555).

71
Grifo nosso.
141

Para Lacan, nos anos 50, o delírio põe, assim, a nu, a anterioridade estrutural
do inconsciente em relação ao sujeito: curiosamente, o delírio, se apresenta já como
corte − fenômeno elementar irredutível à compreensibilidade − que começa, de fato, ―a
partir do momento em que a iniciativa vem de um Outro‖ (LACAN 1955-56, p. 220).
Neste resgate que empreendemos das posições de Freud e Lacan perante as
psicoses, buscamos tornar nítido o quanto a hipótese de que o inconsciente é estruturado
como uma linguagem instituiu-se, tanto para a neurose quanto para a psicose,
correlacionados a certos fundamentos éticos.
Ora, tal direção assim se constituiu, não simplesmente por permitir a
apreensão da peculiar forma de inserção do louco na linguagem − o que, de fato,
poderia estar orientado apenas por uma vontade de saber −, mas, sim, por autenticar os
esforços do psicótico em fazer advir este estranho efeito que a psicanálise denomina
sujeito. Pensamos não ser outro senão este o alicerce que concerne à posição do analista
frente à psicose; é isto, segundo pensamos, o que movera Jacques Lacan, seja em seu
seminário de 1955-56, seja em seu De uma questão preliminar a todo tratamento
possível da psicose, de 1956-57.
Se nós chegamos, ao fim deste capítulo, à verdade de que, em relação ao
sujeito, o inconsciente apresenta uma anterioridade estrutural, será, então, a análise dos
aspectos estruturais postos em jogo na psicose o que nos dará a chave para apreender o
enigma apresentado pela loucura à clínica psicanalítica. Como veremos no próximo
capítulo, é a análise dos mecanismos e vicissitudes pulsionais próprios à psicose – a
Verwerfung a ―rejeição‖ – o que nos permitirá cernir, de Freud a Lacan, − no terceiro e
último capítulo desta parte de nossa tese −, o conceito de foraclusão, essencial para
atingirmos a condição psicótica como ―fora-da-lei fálica‖.
142

− Capítulo VI –
O advento da noção freudiana de ―Rejeição‖
No capítulo precedente, tivemos como nosso desígnio dispor, em linhas bastante
gerais – que serão, ao longo de toda esta parte melhor delineadas −, as diferenças entre a
objetalidade tornada presente na condição psicótica e a objetificação científica − que,
como vimos durante a primeira parte de nossa tese, encontra-se referida à captura do
sujeito num modo de operação da linguagem que, ao desconsiderar a função de resto,
aparta a subjetividade. Aproximamo-nos, pois, neste percurso, do que Jacques Lacan em
1953 havia chamado de ―três paradoxos, para o sujeito, da relação entre fala e
linguagem‖ (LACAN 1953, p. 281).
Dentre estes paradoxos, ativemo-nos, de forma detida, a dois: 1) a objetivação
do discurso do falante – processo vinculado às incidências da ciência que alojou, de um
só golpe, o problema dos ―assassinatos imotivados‖ e a contenda à qual seria convidada
a psicanálise; e, 2) a psicose − em que o falante se encontra imerso em uma relação
desagregadora com o significante, numa faceta intrusiva e hostil da linguagem. Desde o
vigor do espírito clínico presente na investigação freudiana, desvela-se um ―isso fala‖,
corte infligido por Freud ao ideal moderno de um homem como um ser autônomo,
consciente e livre dos constrangimentos supersticiosos da tradição.
O inconsciente − verdadeira memória articulada segundo constantes que lhe são
próprias − apresenta, portanto, uma anterioridade estrutural em relação ao sujeito; seja
na neurose ou na psicose, este será pensado, desde então, como sendo um de seus
efeitos. Pois bem, se o retorno à descoberta freudiana, nos anos 50, receberia seu lugar a
partir de uma série de rupturas decorrentes da hipótese de que ―o inconsciente é
estruturado como uma linguagem‖, o que Lacan virá entender como sendo a lei da fala é
que o sujeito recebe, deste Outro, o inconsciente, ―sua mensagem sob forma invertida‖
(LACAN 1955-56, p. 47). Vimos que tal lei terá, como correlata, a instituição de uma
Outra cena em que o falante se deparará, em sua fala, com esta estranha esfera que é o
inconsciente.
O presente capítulo traz assim, como seu escopo, a empresa de apreender, na
relação do sujeito psicótico com a Outra cena que é o inconsciente, os mecanismos e
vicissitudes pulsionais descobertos por Freud desde sua escuta. Como pensamos são
estas particularidades inerentes ao mecanismo freudiano da rejeição, a Verwerfung, o
que abrirá as portas para que Lacan, nos anos 50, elabore a bases para sua noção de
foraclusão, conceito chave para apreendermos o fora-da-lei fálica, condição psicótica.
143

I) Dentre os mecanismos de defesa, a Verwerfung


No crepúsculo do século XIX, uma jovem passara a apresentar uma estranha
sintomatologia. Esta mulher, ao ler nos jornais matérias sobre falsificadores de moedas,
fora tomada pela idéia de que ―também ela produzia dinheiro falso‖ (FREUD 1894, p.
61). A culpa que lha aturdia, todavia, não a conduzia apenas à idéia de que ela cometera
o crime de falsificação; às manchetes que anunciavam casos de assassinatos seguiam-se
concepções semelhantes: ―não teria sido ela a autora daquela ação‖? (idem, p. 61). Se o
tema dos ―criminosos em conseqüência do sentimento de culpa‖ parece encontrar,
nestes crimes imaginários, seus rudimentos, o ponto destacado por Freud em
Neuropsicoses de defesa, de 1894, será, com efeito, outro.
Esta mulher, embora mergulhada em graves auto-recriminações, permanecia
―perfeitamente cônscia do disparate destas acusações obsessivas‖. Ainda que tivesse
suas ―capacidades críticas embotadas‖ chegando, inclusive, a se acusar, ―perante seus
parentes e seu médico de ter realmente cometido todos estes crimes‖ (idem, p. 61), ela
ainda retinha tais capacidades, guardando a sensação de que tais pensamentos, apesar de
estranhos, lhe eram próprios, associando-os com suas lembranças.
Com efeito, no processo de rememoração a fonte das auto-acusações revelara-se
como sendo não um delito, mas o que ela sentia como uma transgressão aos costumes
esperados de uma dama no final do século XIX, a saber, a masturbação. Curiosa, mas
não fortuitamente, a revelação da dimensão sexual de seu conflito, após poucos meses
de tratamento, possibilitou a queda de tão dispendiosa sintomatologia, evocando, para
quem a escutava, a questão da etiologia das neuroses.
Este caso, relatado em 1894, comporia um dos exemplos utilizados para esboçar
as primeiras formulações propriamente freudianas das diversas estruturas clínicas.
Diferindo-se do espírito de investigação vigente em seu tempo, Freud colocou em
suspenso, no artigo de 1894, a pressuposição de que as neuropsicoses72 eram resultantes
de alguma ―tara hereditária‖ ou ―atrofia degenerativa individual‖ (FREUD 1894, pg.
59). O enfoque freudiano consistiu em tomar, como discurso, as palavras desacreditadas
dos supostos ―degenerados‖ e ―simuladores‖, manobra que inaugurou uma ética que se
desdobrou, e ainda se hoje se desdobra, em um articulado conjunto teórico-prático.

72
Histeria, neurose obsessiva e confusão alucinatória/paranóia são categorias clínicas aproximadas por
Freud, em 1894, por sua causalidade funcional, ou seja, por excederem – desde sua lógica – as afecções
orgânicas ou degenerativas.
144

A Freud, a experiência da então nascente clínica psicanalítica desvelava que o


processo de rememoração e verbalização de certas representações suscitava aflição e
desprazer aos pacientes. Parecia haver, frente a determinadas idéias, uma tendência a
evitar o desprazer, algo que se atualizaria, nas neuroses, como um modo especial de
esquecimento, procedimento que aludia, por parte do paciente, a uma posição de ―não
querer saber‖ (BREUER e FREUD 1895, p. 265). Partindo desta experiência − e
lançando mão de certos princípios metapsicológicos − Freud erigiria as bases para a
construção de hipóteses sobre o modo de operação, ao nível da estrutura, dos diversos
modos de defesa, dando particular ênfase ao recalque.
Em suas formulações, as representações (Vorstellungen) − assim como estas se
tornavam presentes desde a fala dos pacientes − seriam acompanhadas por uma espécie
de ―quota de afeto ou soma de excitação‖ (FREUD 1894, p. 65), sendo vividas, por
aqueles, não apenas como palavras, imagens ou sentido, mas também como experiência
de intensidade. No que concerne a estas magnitudes, o desprazer posto em cena por uma
dada idéia seria explicado, metapsicologicamente, como incremento de excitação no
interior do aparelho psíquico, ocasionado por uma recusa do eu em permitir o acesso da
representação incompatível ao fluxo de associações, ou, ainda, pelo caráter ―traumático‖
imanente a determinados tipos de representações.
A articulação entre as idéias e, também, entre estas e a quota de afeto, encontrar-
se-ia, pois, impedida de ser posta em pleno funcionamento, sendo o excesso de tensão,
ao invadir o aparelho psíquico, sentido como desprazer pela consciência. O conceito de
recalque emergia, então, como tentativa de formalizar por meio de um quadro teórico-
prático, o mecanismo inerente à posição do falante na neurose de ―nada querer saber‖.
Mas como, estruturalmente, apreender esta operação?
Para Freud, o recalque consistiria, em termos metapsicológicos, no processo de
disjunção entre o traço mnêmico − inscrição de uma representação no aparelho psíquico
− e a carga ou quota de afeto referente a esta representação. Enquanto na histeria a
carga de afeto desvinculada da idéia aflitiva viria parasitar, por meio de jogos
simbólicos – analogias, alusões, homofonias − as representações corporais – causando,
por exemplo, paralisias −, na neurose obsessiva tais jogos vinculariam, por meio destas
ligações não evidentes, a libido às idéias obsessivas – inclusive, como no caso da
―falsificadora de moedas‖, às auto-acusações. Em contrapartida a esta lógica, nas
psicoses, Freud chamará a atenção, já em, 1894, para uma forma de
145

... defesa muito mais poderosa e bem sucedida. Nela o ego rejeita
a representação incompatível, juntamente com seu afeto e se
comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido.
Mas a partir do momento em que isso é conseguido, o sujeito fica
numa psicose alucinatória que só pode ser qualificada como
‗confusão alucinatória‘ (FREUD 1894, p. 63-4).

Algo parecia, assim, particularizar as formas psicóticas de defesa, o que, de certa


forma, punha um primeiro limite na designação ―neuropsicoses‖, que agrupava, numa
só expressão, neurose e psicose. Meses mais tarde, em janeiro de 1895 – em carta
dirigida à W. Fliess− Freud tornará a marcar esta especificidade. Nesta missiva,
designada como o ―Rascunho H‖ − dedicado ao estudo da paranóia −, Freud conta-nos a
peculiar história de uma paciente que, tendo hospedado um rapaz na casa que dividia
com seus irmãos, fora posta, por este, ―em dificuldades‖ (FREUD 1895b, p. 254).
Certo dia, ao entrar no quarto em que dormia seu hóspede, a paciente narra ter
cedido à demanda do ―estranho‖ de que ela se aproximasse do leito em que este se
encontrava. Uma vez que ela o faz, o rapaz – a quem até então os irmãos só podiam
bendizer −, de súbito, põe seu pênis nas mãos da jovem, sendo a cena, então, suspendida
em seus desdobramentos. Não muito tempo depois, quando o ―estranho‖ vai embora, a
paciente passara a apresentar ―delírios inequívocos de estar sendo observada e
perseguida‖ (idem, p. 254) por suas vizinhas, que tinham ―pena dela‖ e a vinculavam a
toda sorte de coisas relacionadas ao rapaz.
Em sua tentativa de apreender os mecanismos postos em jogo na formação deste
fenômeno delirante, Freud atenta que, como ocorre nas neuroses, há a tentativa, pela
paciente, de ―esquecer‖ o ocorrido, ―recalcando-o‖ (idem, p. 255) – manobra que lha
pouparia da auto-acusação de ―mulher depravada‖. Não obstante a tentativa de analogia,
Freud depara-se com uma questão: se, como vimos no caso da ―falsificadora de
moedas‖, os disparates – como acusar-se perante a família e seu médico – tem sua fonte
velada e admitem críticas, na paranóia as idéias retornam de modo diferente,
confrontando o paciente com imputações massivas, externas, ―de fora‖. Freud nota,
pois, que é próprio das idéias delirantes não o fantástico ou inverossímil – o que não
permite uma distinção apropriada das idéias obsessivas – mas, sim, a posição que elas
conferem ao sujeito. Se nas obsessões o retorno sintomático do esquecido permite a
dúvida, na paranóia, a ―idéia delirante é sustentada com a mesma energia com que a
idéia, intolerantemente penosa, é rechaçada do ego‖ (idem, p. 257). Assim,
146

As pessoas estavam dizendo aquilo que, de outro modo, ela


diria a si mesma. (...) Ela teria sido obrigada a aceitar o
julgamento proveniente de dentro; já o que vinha do exterior,
podia rejeitar. Dessa forma, o julgamento, a censura era
mantida afastada de seu ego (FREUD 1895b, p. 255).

Destarte, partindo da análise de casos como estes, Freud pondera que, na


paranóia, o retorno da representação rejeitada implicava um rearranjo mais radical do
aparelho psíquico, que se mobiliza ante as imputações ―vindas de fora‖ de sua dialética:
―O conteúdo factual permaneceu inalterado, o que se alterou, porém, foi algo no
posicionamento da coisa toda. Antes, tratava-se de uma auto-recriminação interna, e
agora era uma imputação vinda de fora...‖ (FREUD 1895, p.255). Entretanto, como
apreender as particularidades deste retorno ―de fora‖?
Para buscarmos as especificidades inerentes a este retorno, tomemos ao pé da
letra o modo de funcionamento proposto por Freud para o mecanismo de rejeição;
levemos às últimas conseqüências a idéia – esboçada por ele um ano antes, em seu texto
sobre as Neuropsicoses − de que na rejeição o aparelho psíquico trata uma
representação ―como tendo jamais ocorrido‖ (FREUD 1894, p. 63-4). O recurso à carta
52, escrita por Freud em 06 de dezembro de 1896 e analisada por Lacan73 em seu
seminário sobre as psicoses74, nos permitirá apreender esta operação.
A carta 52 traz edificado um primeiro75 esquema que explicita o modo de
operação inerente ao aparelho psíquico; neste grafo, Freud sustenta que os traços já
inscritos sujeitam-se, periodicamente, a uma re-tradução à medida que novos traços
venham, posteriormente, se inscrever. Deste modo, contrariando a intuição cotidiana,
assim como a tradição filosófica clássica, Freud virá apresentar o aparelho psíquico
como uma série heterogênea de estratificações. Não cabia, pois, conceber o psiquismo
como um reservatório de imagens e experiências inscritas de forma unívoca, mas como
uma complexa articulação dos traços de memória entre si e destes com a quota de
excitação, organização esta que estaria ela mesma sujeita a remanejamentos constantes.

73
Lacan frisa, a este respeito, que não se trata de um modelo construído por um ―professor atrás de uma
mesa e diante de um quadro-negro‖ (LACAN 1955-56, p. 175), mas, sim, do inconsciente tal como este
se apresenta a partir da experiência psicanalítica.
74
Lições de 15 de fevereiro de 56 e 21 de março do mesmo ano.
75
Este modo de conceber o aparelho psíquico persistirá, de fato, por toda a obra de Freud, desde sua
primeira publicação no capítulo 7 de sua Interpretação dos sonhos (FREUD 1900) − a propósito do que
ele ali virá chamar de uma ―regressão tópica‖ no sonho. Passando por todos seus escritos, esta concepção
do inconsciente como uma memória irá receber uma nova ênfase num curto artigo escrito por ele em
1925, Uma nota sobre o bloco mágico.
147

Destacam-se, neste esquema, três diferentes ―memórias‖, todas elas diferentes de


W, die Wahrnehmungen (as percepções) – não havendo em W, propriamente, uma
inscrição de traços psíquicos76 no aparelho psíquico: 1) Wz, Wahrnehmungszeichen,
(traços perceptivos), lugar da primeira inscrição − que agrupa os traços mnêmicos por
simultaneidade, dispondo-os em sincronia, como um sistema; 2) Ub, (Unbewusstsein)
(inconsciente), o segundo registro − lócus de ―lembranças conceituais‖ que se
organizam por relações ―causais77‖; e, 3) Vb (Vorbewusstsein) (o registro pré-
consciente) − ligado às representações verbais e que comanda o acesso dos traços
mnêmicos à Bews − Bewusstsein − a consciência.
A partir da experiência clínica, Freud constrói tal esquema visando a apreender
como, por meio de certas regras, o aspecto quantitativo inerente às representações é
articulado no interior do aparelho psíquico. Trata-se, logo, de uma espécie de gramática
que conjuga, por suas leis próprias, aquilo que posteriormente Freud conceituaria como
pulsão. Nesta articulação, cada transcrição subseqüente de uma representação e sua
quota de afeto inibiria a anterior redistribuindo as excitações. O funcionamento do
aparelho tem, assim, como papel principal, manejar esta excitação vinculando-a e
desvinculando-a das idéias. Todavia, diz-nos Freud, pode ocorrer que no processo de
transcrição uma tradução venha se fazer ausente. As neuroses seriam, neste sentido, o
tipo de casos em que ―a tradução não se fez no caso de uma determinada parte do
material, o que provoca determinadas conseqüências‖ (FREUD 1896c, p. 209). Mas por
que parte do material não se submete à tradução nas neuroses?
Para Freud, aquilo que motiva o recalcamento ―é a natureza sexual do evento‖
(idem, p. 210). Na neurose, o recalque opera, logo, por uma espécie de regressão: pela
estratégia do neurótico de ―nada querer saber‖ do sexual, certas regiões do aparelho
psíquico operariam num modo de funcionamento anterior − o que Lacan dirá tratar-se,
em 1956, de uma regressão ―tópica‖ (LACAN 1955-56, p. 178). Portanto, ocorre que
um traço de memória da fase anterior, não traduzido, mas, já inscrito, retornará na
neurose trazendo um desprazer ―atual‖ reforçado pelo desenvolvimento sexual.

76
Condição de permeabilidade do aparelho, a recepção de estímulos não poderia coincidir com a memória.
77
Aqui, segundo pensamos, trata-se de uma prévia do que, pouco tempo depois, em Interpretação dos sonhos
(FREUD 1900), ele descreverá como as operações de condensação e deslocamento, articuladas em função da
causalidade imanente ao sonho e o aparelho psíquico: o desejo inconsciente.
148

No momento da obra freudiana em que nos encontramos, Freud atribuirá o


retorno ―atual‖ da excitação não à impossibilidade de uma total vinculação da pulsão,
mas a um evento real de sedução, ocorrido num momento prematuro em que no
aparelho faltaria, ainda, material. Este retorno à carta 52 nos permite, porém, isolar a
seguinte conclusão: a condição, na neurose, para que determinada representação seja
recalcada é que esta já esteja inscrita no aparelho psíquico. Trata-se, no retorno do
recalcado, de um elemento que já comporta um lugar na estrutura do aparelho psíquico,
que já se articula como sintoma. Retomemos agora a fórmula freudiana de que na
rejeição a representação é tratada ―como se jamais houvesse ocorrido‖ (FREUD 1894,
p. 63-4).
Partindo do esquema apresentado por Freud e sublinhado por Lacan, teremos
que a condição para que uma representação se comporte efetivamente como ―jamais
ocorrida‖ e ―vinda de fora‖, é que sua inscrição na articulação de traços mnêmicos não
tenha ocorrido. Lacan tomará, então, como ―lugar eleito da Verwerfung‖ (LACAN
1955-56, p. 180), aquilo que, na carta 52, é o lugar da primeira inscrição: Wz −
Wahrnemungzeichen. Ao passar por tal vicissitude, a inscrição rejeitada se torna alheia à
relação dialética com as demais e se porta como estanque em relação ao resto do
sistema. Deste distanciamento radical decorre a lógica que regerá fenômenos como a
significação delirante – insensível à crítica − e a alucinação – que retorna, sobre o
sujeito, conservando a inequivocidade, a certeza de que ‗isto lhe concerne‘.
Logo, ao operar pela rejeição de uma representação temos que a psicose se
difere da neurose pela ocorrência, nesta última, do recalcamento de uma representação;
o retorno daquilo que foi rejeitado não coincide, então, com o retorno do recalcado −
não se trata do retorno de uma representação inscrita, mas, sim, de um retorno desta
como ―vinda de fora‖. Há, logo, no processo de estruturação do sujeito, a possibilidade
de haver uma afirmação em relação à inscrição de um traço − Bejahung − ou, ainda,
uma rejeição desta inscrição − Verwerfung:

Previamente a qualquer simbolização − esta anterioridade não


é cronológica, mas lógica, − há uma etapa, as psicoses o
demonstram, em que é possível que uma parte da simbolização
não se faça (...) Assim pode acontecer que alguma coisa de
primordial quanto ao ser do sujeito não entre na simbolização,
e seja, não recalcado, mas rejeitado (LACAN 1955-56, p. 97).
149

Como vemos, esta formulação de um retorno ―de fora‖ − erigida muito cedo nas
considerações de Freud − faz-se chave para apreender, com Freud e Lacan, a relação
entre inconsciente e psicose. Porém, como é sabido, o problema da ―não inscrição‖,
apresentará em Freud − principalmente a partir de 1920, com a publicação de Além do
princípio de prazer − uma complicação: a noção de ―pulsão de morte‖ incidirá, no
aparelho, como ―libido não-ligada‖, como verdadeira impossibilidade de inscrever, de
forma absoluta, a pulsão à esfera de seus representantes. Desvela-se, então, para a
estrutura do aparelho psíquico, uma exigência mais primordial que o princípio de
prazer, a saber, lidar com aquilo que − como o dirá Lacan em 1973 − ―não cessa de não
se inscrever‖78, com algo que, para todo ser falante, se apresenta como uma espécie de
‗fora-da-lei‘ em relação à dinâmica das representações. Mas como, a partir das
vicissitudes pulsionais, apreender a especificidade do ‗fora-da-lei‘ inerente à rejeição
como mecanismo de defesa próprio à psicose.

A) As vicissitudes pulsionais da psicose


Ao nível dos mecanismos de defesa, vimos como Freud estabeleceu a
diversidade entre a Verdrängung¸ o recalque, − na neurose obsessiva e a na histeria − e
a Verwerfung – que incorreria numa cascata de fenômenos sui generis na paranóia e nas
psicoses alucinatórias. Ainda que estes dois mecanismos, Verwerfung e Verdrängung,
tivessem encontrado certa diferenciação a partir da experiência clínica, restava ainda a
Freud esclarecer o problema da ―escolha da neurose‖: ―Quando é que uma pessoa se
torna histérica em vez de paranóica?‖ (FREUD 1899, pg. 331). O que determinaria o
uso de um mecanismo específico em detrimento de outro?
Fazia algum tempo, Freud havia notado a importância do papel da sexualidade
na sobredeterminação das neuroses79. A ―vida sexual‖ se apresentava constantemente
como um terreno vicejante para as ―representações incompatíveis‖, às quais a neurose
reservava a vicissitude do recalque. O papel determinante do sexual na etiologia das
neuropsicoses seria ampliado em outra carta endereçada a Fliess, esta datada de nove de
dezembro de 1899. Neste escrito, o problema da escolha das neuroses se articula com a
questão das diferentes modalidades de presentificação do pulsional.

78
Lacan serve-se, neste ponto, da apropriação das categorias Aristotélicas de ―possível‖, ―impossível‖ e
―necessário‖. O ―não cessa de não se escrever‖ (LACAN 1973, p. 81) é aquilo que Lacan pontua como
sendo inerente ao ―impossível‖.
79
Podemos ter como exemplo disso textos como: Estudos sobre a histeria (BREUER e FREUD 1895), as
Neuropsicoses de defesa (FREUD 1894) e Novas observações sobre as neuropsicoses de defesa (FREUD
1896).
150

Na histeria e na neurose obsessiva – diz-nos Freud – há um tipo de organização


sexual ―alo-erótica‖, em que o ―objetivo sexual‖, externo ao corpo, é escolhido desde a
―identificação com a pessoa amada‖. Algo diverso ocorreria na paranóia; nesta, haveria
uma espécie de ―irrupção da corrente auto-erótica‖, cuja principal conseqüência seria
um desfalecimento tanto do processo de identificação com a pessoa amada − importante
parâmetro de escolha do objetivo − quanto do próprio eu:

A mais inferior das camadas sexuais é o auto-erotismo, que


dispensa qualquer objetivo psicosexual e visa apenas às
sensações localmente gratificantes. Depois dele vem o alo-
erotismo (homo ou hetero-erotismo), mas é certo que ele
continua a existir como uma corrente subjacente. A histeria (e
sua variante a neurose obsessiva) é alo-erótica, já que sua via
principal é a identificação com a pessoa amada. Já a paranóia
dissolve a identificação, reinstaura todas as pessoas amadas da
infância que foram abandonadas (comparar discussão sobre os
sonhos exibicionistas) e dissolve o próprio ego nas pessoas
externas. Assim, passei a encarar a paranóia como uma
irrupção da corrente auto-erótica, um retorno ao estado
anterior‖. (FREUD 1899, pg. 391).

O retorno da libido sob o sujeito nas psicoses guardaria, assim, segundo Freud,
íntima relação com uma série de fenômenos clínicos, tais como a experiência,
posteriormente explorada por Lacan a partir de seu estudo sobre o estádio do espelho,
de ―corpo espedaçado‖. Como é usual na esquizofrenia, a libido desvinculada, tomando
o psicótico como objeto, pode dissolver a imagem egóica ao desconsiderar objetos
externos em favor de ―sensações localmente gratificantes‖.
Todavia, tornara-se evidente a Freud que um desligamento, entre o objeto
circunscrito por meio de uma representação e a libido que o investe, também ocorre
freqüentemente na ―vida mental normal‖: ―Mas é certo que, na vida mental normal (e
não apenas em períodos de luto), estamos constantemente desligando nossa libido, desta
maneira, de pessoas ou de outros objetos, sem cairmos enfermos‖ (FREUD 1911, pg.
96). Como, então, apreender este paradoxo? A experiência clínica explicitara a Freud
que a retirada da libido do mundo externo nas psicoses pode tornar-se um
acontecimento de estrondosa magnitude; diferentemente do que ocorre na ―vida mental
normal‖ e nas ―neuroses de transferência‖ pode incorrer em uma série de
―conseqüências desastrosas‖ para o sujeito. Este argumento retorna no texto dedicado
por Freud, em 1911, às Memórias de um doente de nervos de Daniel Paul Schreber.
151

Ao considerar os escritos de Schreber − que, como vimos no capítulo anterior


foram tomados por Freud como um ―texto-fala‖ – o fundador da psicanálise faz notar o
lugar de relevo ocupado pelo retorno da libido sobre o sujeito, que agora devém objeto
de um gozo sem mediações. A exemplo da carta de 1899 – em que a libido retirada
desfaz as identificações outrora construídas pelo sujeito, emergindo de forma disruptiva
−, o texto de 1911 ressalta a implosão experimentada por Schreber em fenômenos de
irrealização tais como a ―catástrofe mundial‖ ou experiência de ―fim do mundo‖:

O paciente retirou das pessoas de seu ambiente, e do mundo


externo em geral, a catexia libidinal que até então havia dirigido
para elas. Assim, tudo se tornou indiferente e irrelevante para ele,
e tem de ser explicado através de uma racionalização secundária,
como ‗miraculado, apressadamente improvisado‘. O fim do
mundo é a projeção dessa catástrofe interna; seu mundo subjetivo
chegou ao fim, desde o retraimento de seu amor por ele (idem,
pg. 93).

Nesse desligamento radical da libido − seja por meio do surto ou mesmo por um
processo menos ruidoso − por vezes ocasiona-se a perda de consistência dos objetos e
das pessoas do mundo externo: libidinalmente abandonados, estes se tornam
indiferenciáveis, literalmente dissolvem-se. Este desligamento contrapõe-se, por sua
lógica e desdobramentos, à retirada do investimento libidinal tal qual esta ocorre nas
neuroses. Nestas últimas, como nos dirá Freud em Sobre o narcisismo, uma introdução
(FREUD 1914a), ―o neurótico de forma alguma abandonou sua relação com o mundo,
ele ainda as retém na fantasia (FREUD 1914a, pg. 90)‖.Assim, se nas neuroses a libido
retirada retorna sobre as idéias constituintes da fantasia, diferentemente disso, no
desencadeamento psicótico, as representações ou traços psíquicos − que estruturavam
de forma estável tanto a realidade quanto o eu do sujeito − deixam de mediar o
investimento libidinal; irrompe, no aparelho psíquico, uma corrente maciça de libido
não-ligada à cadeia de representações; o circuito pulsional colapsa e passa a funcionar
sem considerar a dialética entre os traços psíquicos já inscritos, não havendo um objeto
pulsional distinto do sujeito.
Mas como poderíamos apreender, ao analisarmos as vicissitudes do pulsional
nas psicoses – em que há um retorno imediato da libido sob o sujeito −, a proposição de
Freud, em que este assevera que trata-se, na paranóia, da ―irrupção da corrente auto-
erótica, um retorno ao estado anterior (FREUD 1899, p. 391)‖.
152

A.1) O colapso do circuito pulsional


Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (FREUD 1905), vemos como
Freud destaca, em linhas gerais a atividade pulsional no auto-erotismo:

Deve-se insistir em que a característica mais nítida dessa


atividade sexual é que a pulsão não é dirigida para outras
pessoas, mas obtém satisfação no corpo do próprio indivíduo.
É auto-erótico, para chamá-lo por um termo bem escolhido,
introduzido por Havelock Ellis (FREUD 1905, pg. 281).

Por auto-erotismo Freud designa a modalidade da atividade pulsional em que a


pulsão encontra satisfação em uma parte do corpo do infante desconsiderando a
alteridade, seja em relação à realidade externa − constituída a partir da dialética dos
representantes − seja em relação a um objeto libidinal destacado do corpo. Esta
desconsideração, todavia, é falsamente absoluta; como asseverara Freud no mesmo
texto, ao contrário do que o prefixo ―auto‖ poderia evocar, é o contato com a alteridade
– mormente com o outro materno – aquilo que ―desperta a pulsão‖ (idem, p. 211).
Neste estado de coisas em que mesmo uma imagem corporal, fundamento para a
construção do ego, não se encontra erigida80, a pulsão investe não a imagem do corpo
do sujeito, mas sim partes isoladas deste. Dito de outro modo, para Freud, seria apenas
em outro momento, logicamente posterior, que a pretensa totalidade corporal − pretensa
por que ainda refutada pelos orifícios das zonas erógenas (a boca, os olhos, os ouvidos e
o ânus) − auxiliaria a organização de um circuito pulsional que considere qualquer
objeto enquanto destacado do corpo.
O desencadeamento psicótico parece implicar, pois, a emergência maciça da
libido não-ligada às idéias do aparelho psíquico, evocando o que Freud chamara de
irrupção da corrente auto-erótica, ―retorno ao estado anterior‖ (FREUD 1899, p. 391).
Tal irrupção da libido não-ligada pode afetar de forma tão radical a economia libidinal
(até então estabilizada) a ponto de poder incorrer em um colapso mesmo da libido já
investida nos traços constituintes do eu e da realidade, incorrendo em fenômenos como
os que chamamos de dissolução, tais quais os fenômenos de ―corpo espedaçado‖ e
experiências de ―fim de mundo‖.

80
―Uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser
desenvolvido‖ (FREUD 1914, pg. 93).
153

No entanto, poder-se-ia fazer uma forte objeção à nossa posição de relacionar,


no desencadeamento psicótico, o retorno maciço da libido não-ligada com o colapso do
circuito pulsional − a ―irrupção da corrente autoerótica‖. Essa objeção se apóia no fato
de Freud destacar, em suas notas sobre os escritos de Schreber, que a libido retirada do
mundo externo retorna, na paranóia, não a um funcionamento auto-erótico como é caso
da esquizofrenia81, mas sim para o eu do sujeito. Na paranóia, portanto, tratar-se-ia não
da ―irrupção da corrente autoerótica‖, mas sim um retorno ao estádio do narcisismo:

Na paranóia, porém, a evidência clínica vai demonstrar que a


libido, após ter sido retirada do objeto, é utilizada de modo
especial. Recordar-se-á que a maioria dos casos de paranóia
exibe traços de megalomania, e que a megalomania pode, por
si mesma, constituir uma paranóia. Disto pode-se concluir que,
na paranóia, a libido liberada vincula-se ao ego e é utilizada
para o engrandecimento deste. Faz-se assim um retorno ao
estádio do narcisismo (que reconhecemos como estádio do
desenvolvimento da libido), no qual o único objeto sexual de
uma pessoa é seu próprio ego (FREUD 1911, pg. 96).

Em verdade, proceder de forma a contrapor isoladamente as citações da carta de


1899 – em que Freud pontua que há na paranóia uma irrupção da corrente auto-erótica −
à análise de 1911 do caso Schreber – em que Freud pontua um retorno ao estádio do
narcisismo – implicaria, simplesmente, ou contradição ou abandono da posição anterior.
Segundo pensamos, uma disjunção absoluta entre estas proposições não permite tocar a
complexidade do problema disposto pela clínica das psicoses, mascarando a magnitude
que pode adquirir o desencadeamento psicótico.
A noção de um ‗colapso‘ na economia libidinal insistiria na obra freudiana a
propósito da libido nas psicoses, apresentando-se não apenas na carta de 1899, mas,
também, no artigo sobre Schreber: neste, Freud recorre à expressão ―explosão de libido‖
para expor sua radicalidade. Todavia – é certo afirmar − mesmo a expressão ―explosão‖,
por si só, não nos permite apreender a ―irrupção da corrente auto-erótica‖ em detrimento
de um retorno ao estádio de narcisismo. Para tanto é preciso que nos atenhamos a mais
um detalhe da história clínica − endereçada por meio da publicação de seus escritos −
pelo presidente Schreber.

81
Diz-nos Freud à propósito do desencadeamento na esquizofrenia: ―A regressão estende-se não
simplesmente ao narcisismo (manifestando-se sob a forma de megalomania), mas a um completo
abandono do amor objetal e um retorno ao auto-erotismo infantil‖ (FREUD 1911, p. 102).
154

Ao tomarmos o relato schreberiano evidencia-se que o estado de megalomania −


engrandecimento do eu pela via do investimento narcísico − é secundário em relação à
irrupção maciça de libido no aparelho psíquico. Entre os efeitos desta inundação há,
inclusive, o momento em que o próprio eu de Schreber, assim como sua realidade
psíquica, passam literalmente a se dissolver. Diversamente da dissolução, o retorno da
libido para o eu no narcisismo não coincide com o desencadeamento psicótico. Em
verdade, o narcisismo na psicose – sob a forma da megalomania − configura um estado
de coisas tal que o sujeito psicótico, pela reversão da libido para o eu, acaba por recobrir
uma justaposição entre sujeito e objeto da pulsão: ―a sombra do objeto caiu sobre o eu‖
– como dirá Freud alguns anos mais tarde, a propósito das depressões psicóticas em
Luto e melancolia (FREUD 1917a, pg. 281). Apreendida desta forma mesmo a relação
narcísica − característica pregnante do pulsional nas psicoses, segundo Freud − é já uma
tentativa de vincular algo da libido não-ligada aos representantes − neste caso específico
justamente àqueles constituintes do eu.
A isto se pode acrescer que o investimento megalomaníaco nas psicoses é, por
vezes, tornado possível apenas de forma correlata ao processo delirante, o que corrobora
a posição de que é apenas secundariamente em relação à questão do ‗que fazer com a
libido‘ que a megalomania pode vir a se constituir. Assim, para o psicótico delirante, o
delírio apresenta a possibilidade de constituir tanto novas identificações − um novo eu −
quanto estruturar uma nova realidade. Se nos ativermos ao caso específico que estamos
a analisar − o caso Schreber − temos que é somente a partir da construção delirante que
há o investimento não da mesma identidade de outrora − o presidente do tribunal de
apelação −, mas sim uma nova identidade supervalorizada: ―A mulher de Deus‖.
Todavia, nas psicoses não delirantes, como é o caso da esquizofrenia, o estado
de coisas apresenta-se ainda mais complexo. Com a ausência de delírio, é a partir de
invenções ainda mais singulares que poder-se-á organizar minimamente o pulsional de
modo a circunscrever algo da libido não-ligada através de representações.
Ora, a questão do tratamento dado pelo aparelho psíquico à libido não-vinculada,
por outro lado, juntamente com a formulação ―retorno ao estado anterior‖ (FREUD
1899, pg. 391 e FREUD 1920, p. 54), tornar-se-á insígnia do que, nove anos mais tarde,
Freud chamará de pulsão de morte. À exemplo do rejeitado nas psicoses, parte do
pulsional pode portar-se, em relação à estrutura do aparelho psíquico − e isto nas mais
diferentes estruturas clínicas − como ―não inscrito‖. Uma falha estrondosa na ―sujeição‖
do pulsional provocaria um distúrbio análogo a uma neurose traumática:
155

Um acontecimento como um trauma externo está destinado a


provocar um distúrbio em grande escala no funcionamento da
energia do organismo e a colocar em movimento todas as
medidas defensivas possíveis. Ao mesmo tempo, o princípio de
prazer é momentaneamente posto fora de ação. Não há mais
possibilidade de impedir que o aparelho mental seja inundado
com grandes quantidades de estímulos; em vez disso, outro
problema surge, o problema de dominar as quantidades de
estímulo que irromperam, e de vinculá-las no sentido psíquico,
a fim de que delas se possa desvencilhar. (FREUD 1920a, p.
45).

B) Do que não se inscreve no aparelho


ao que não se inscreve na rejeição
Há pouco, buscamos delinear, de forma sucinta, o modo de operação no aparelho
psíquico denominado recalcamento. Ao dedicarmo-nos a esta empresa vimos que algo
bem diferente desta operação ocorre na rejeição, ou seja, o retorno daquilo que foi
rejeitado não coincide com o retorno do recalcado, não se trata do retorno de uma
representação inscrita, mas, sim, de um retorno como ―vindo de fora‖. Tal formulação −
o retorno ―vindo de fora‖, erigida desde muito cedo nas considerações de Freud,
demonstrou-se, a nós, como uma chave para pensar a Verwerfung.
Uma vez atingida a particularidade deste modo de defesa – e sua inerência à
psicose – buscamos, também, explicitar, desde as vicissitudes do pulsional nas psicoses,
uma complexificação do problema da rejeição desde a publicação, em 1920, de Além do
princípio de prazer: o ―retorno ao estado anterior‖ pensado como característico da
libido na paranóia, em 1899, passara a ter, em 1920, ressonâncias com o ―retorno ao
estado anterior‖ como morte, fim das flutuações econômicas do aparelho psíquico.
O problema da ―libido não-ligada‖ − posto em jogo pela impossibilidade de
vincular de uma forma absoluta o pulsional à esfera de seus representantes − colocaria
para a estrutura do aparelho psíquico – nas diferentes estruturas clínicas − uma
exigência mais fundamental que o princípio de prazer, a saber, lidar com aquilo que não
cessa de não se inscrever82. Para nós, entretanto, restaria ainda recolocar um problema:
há algo que é rejeitado e que não se inscreve especificamente na psicose? Um
encaminhamento a esta pergunta viria a ser publicado em Análise de um caso de
neurose infantil (FREUD 1918).

82
Servimo-nos, neste ponto, da apropriação lacaniana das categorias Aristotélicas de ―possível‖,
―impossível‖ e ―necessário‖. O ―não cessa de não se escrever‖ (LACAN 1972-3, p. 198) é aquilo que
Lacan pontua como sendo inerente ao ―impossível‖.
156

Dentre os problemas erigidos a partir do encontro clínico com Sergius Pankejeff


− doravante ―homem dos lobos‖ − Freud torna a marcar a especificidade do mecanismo
da rejeição em relação ao mecanismo de recalcamento: ―Um recalque é algo muito
diferente de uma rejeição‖ (FREUD 1918, p. 102). Porém, ainda que Freud reforçe a
distinção entre a rejeição e o recalque, naquele texto − escrito, portanto, num espaço
mais ou menos homogêneo de tempo − encontram-se tanto notas sobre a diferença entre
recalque e rejeição − tão bem marcadas como ―Um recalque é algo muito diferente de
uma rejeição‖ (idem, pg. 102) − quanto expressões, por parte de Freud, tais como
―havia rejeitado por meio do recalque‖ (idem, pg. 109). Se a clínica presentifica esse
modo de defesa mais radical, a rejeição, por outro, Freud não alçava a rejeição a uma
conceituação tão sistemática como havia feito com o recalcamento, chegando inclusive,
por vezes, a se utilizar de uma união entre estas duas formas bastante diferentes de tratar
uma representação e seu afeto. Como operar com essa delicada questão?
Parece haver, no interior de um mesmo texto, cronologicamente homogêneo,
momentos lógicos diferentes na conceituação freudiana a respeito da rejeição. Por outro
lado, Freud parecia absorvido pelo complexo estado de coisas disposto pela experiência
com o aristocrata russo. Nesse sentido, não é fortuito evocar a quantidade de escritos até
hoje dedicados a este caso, textos que levantam variadas questões, principalmente
articuladas ao estranho diagnóstico de Freud: ―uma neurose obsessiva‖ − decorrida na
infância − ―que acabou espontaneamente, mas deixou atrás de si um defeito, após a
recuperação‖ (FREUD 1918, pg. 20). Sendo assim, operaremos de modo a salientar, de
um lado, as dificuldades inerentes a este tratamento em particular e, de outro, tomando
como fato a heterogeneidade conceitual, ou seja, a existência de diferentes momentos
lógicos da noção de Verwerfung no interior de uma homogeneidade cronológica.
É partindo desta heterogeneidade lógica que destacaremos um novo momento
das elaborações freudianas a respeito do mecanismo de rejeição; neste, encontramos a
afirmação de Freud que parece indicar o quão particular é o objeto sobre o qual a
rejeição tem seu efeito. Até este momento − como intentamos sustentar durante este
capítulo −, é de se notar que Freud, em suas considerações, pontua a rejeição como
operando sobre uma representação, sem especificar se se trata, ou não, de alguma
representação específica. Pois, bem, neste escrito serpeginoso de 1918, Freud asseverará
que o objeto sobre o qual a rejeição tem ação é a ―castração83‖.

83
À objeção de que Freud apenas se referiria sobre a rejeição neste exato momento, no caso do homem dos lobos,
destacamos ainda outra citação, proveniente de seu texto Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica
157

Já tomamos conhecimento da atitude que o nosso paciente


adotou, de início, em relação ao problema da castração.
Rejeitava a castração e apegava-se à sua teoria de relação
sexual pelo ânus. Quando digo que ele a havia rejeitado, o
primeiro significado da frase é o de que ele não teria nada a ver
com a castração, no sentido de havê-la reprimido. Isso não
implicava, na verdade, em julgamento sobre a questão da sua
existência, pois era com se não existisse (FREUD 1918, pg.
107).

Coadunando-se com o exposto por Freud cerca de vinte e quatro anos antes, em
seu artigo sobre as Neuropsicoses, esta negação radical, a não inscrição de uma
representação – no caso a castração – não deixará de ter seus efeitos. Dito de outro
modo, uma vez rejeitada a castração o problema colocado por esta não se encontrará
resolvido; como seu resultado encontrar-se-á o retorno ―vindo de fora‖, naquilo que se
tornou o famoso episódio de alucinação do homem dos lobos:

Quando eu tinha cinco anos, estava brincando no jardim perto


da babá, fazendo cortes com meu canivete na casca de uma das
nogueiras que aparecem em meu sonho também. De repente,
para meu inexprimível terror, notei ter cortado fora o dedo
mínimo da mão (direita ou esquerda?), de modo que ele se
achava dependurado, preso apenas pela pele. Não senti dor,
mas um grande medo. Não me atrevi a dizer nada à babá, que
se encontrava a apenas alguns passos de distância, mas deixei-
me cair sobre o assento mais próximo e lá fiquei sentado,
incapaz de dirigir outro olhar ao meu dedo. Por fim, me
acalmei, olhei para ele e vi que estava inteiramente ileso
(FREUD 1918, pg. 107).

Décadas mais tarde, no ano de 1955, em seu seminário sobre as psicoses, Lacan
se apropriará deste fragmento do texto freudiano para, assim como o precursor da saga
vienense, explicitar a radicalidade do que retorna, sobre o sujeito, a partir da rejeição:
―A relação que Freud estabelece entre este fenômeno [a alucinação] e esse
especialíssimo não saber nada da coisa, mesmo no sentido do recalcado, expresso em
seu texto, traduz-se por isto: o que é recusado na ordem simbólica ressurge no real‖
(LACAN 1955-56, p. 22). A castração, elemento fundamental na constituição de cada
sujeito, rejeitada, tratada como se ―não existisse‖, não deixará, pois, de fazer seu retorno
para o sujeito; retornando no real esta constituirá a posição psicótica.

dos sexo (FREUD 1925c): ―... pode estabelecer-se um processo que eu gostaria de chamar de ‗rejeição‘, processo
que, na vida mental das crianças, não aparece incomum nem muito perigoso, mas em um adulto significaria o começo
de uma psicose‖ (FREUD 1925c, pg. 314-5).
158

Se a inscrição da castração na neurose marca balizas na construção do enigma da


sexuação, da morte e da origem, a rejeição, nas psicoses, abrirá para o psicótico a via,
por certo imperativa, da construção de outras formas de seu equacionamento. Vale
dizer, este enigma, tratado como se ―não existisse‖ não deixa de fazer seu retorno,
mesmo que de uma maneira avassaladora sobre o sujeito. Não seria isto que irrompe no
real o que nos testemunha o ilustre paciente em sua alucinação infantil? De um modo ou
de outro, a conjunção entre rejeição e castração tornaria a aparecer na obra freudiana.
Em 1925, no texto Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica
dos sexos, Freud torna a afirmar esta conjunção reiterando, ainda, as repercussões da
não inscrição de um operador que possibilite a diferenciação entre os sexos. Frente a
questão da diferença entre os sexos, Freud dirá que ―pode estabelecer-se um processo
que eu gostaria de chamar de ‗rejeição‘, processo que, na vida mental das crianças, não
aparece incomum nem muito perigoso, mas em um adulto significa o começo de uma
psicose‖ (FREUD 1925c, p. 314-5). O cerne da diferença entre rejeição e recalque
parece se encontrar, logo, nas conseqüências que retornam sobre o sujeito frente àquilo
que é veiculado pela castração: o acesso à ordem simbólica e as incidências pulsionais
da partilha entre os sexos. Mas como pode vir a se inscrever a castração e decorrer, para
o sujeito, o acesso a sexuação?
Freud pontuará que o pré-requisito para a sexuação do sujeito é a presença do
pai, por meio de um traço psíquico específico, o falo, na ―dissolução do complexo de
Édipo‖. A castração é aquilo que permite, no processo de estruturação do sujeito,
marcar um limite à relação entre a criança e quem dela se ocupa, instaurando, no âmago
de tal relação, uma mediação simbólica. Desde então, não caberá nem à mãe nem ao
filho ter ou ser o falo. Para Lacan, assim como para Freud, é a simbolização resultante
da saída do complexo de Édipo aquilo que determina o acesso do sujeito à lei simbólica,
à sexuação e aos significantes e significados fundamentais da cultura:

O complexo de Édipo quer dizer que a relação imaginária,


conflituosa, incestuosa nela mesma, está destinada à ruína. Para
que o ser humano possa estabelecer a relação mais natural,
aquela do macho com a fêmea, é preciso que intervenha um
terceiro (...) Não é demais dizer − é preciso aí uma lei, uma
cadeia, uma ordem simbólica, a intervenção da ordem da
palavra, isto é, o pai. Não o pai natural, mas do que se chama o
pai. A ordem que impede a colisão e o rebentar da situação no
conjunto está fundada nesse nome do pai. (LACAN 1955-56,
p.114).
159

Sabemos que, para Freud, a diferença sexual entra em jogo para um determinado
sujeito por meio da inscrição de um traço mnêmico muito específico, a saber, o falo.
Resulta disso que tanto para um futuro homem quanto para uma futura mulher, posto
que estes são lugares a serem ocupados segundo a norma fálica, o ―falo‖ é a referência
que torna operacional a via do sexo, visto que, para ambos, a libido sexual é masculina
(FREUD 1905, pg. 226).
A inscrição do falo no aparelho psíquico, inscrição concomitante com a
dissolução do complexo edípico, permite ao neurótico equacionar a castração de forma
a circunscrever um ―fora da cadeia‖ de traços mnêmicos. A função fálica é, pois, uma
função que se desdobra na articulação com as demais representações regidas pelo
princípio de prazer, é uma forma específica de junção entre o pulsional e a cadeia de
representações. Desse modo, o limite desta função, vale dizer, o limite do sexual assim
como este se apresenta como correlato às representações inscritas no aparelho psíquico,
é posto em jogo pelo pulsional em sua face de energia ―não-ligada‖ ou para utilizarmos
um termo que tem uma incidência ainda mais direta, a ―pulsão de morte‖. O que
fundamentalmente Freud apresenta ao mundo em seu Além do princípio do prazer é que
há um fora-da-lei fálica que, enquanto traumático, não pode ser completamente
subjetivado e sexualizado. O falo enquanto articulado ao princípio do prazer não apenas
pode faltar, mas, também, forçosamente falta; seria algo diverso disto aquilo que Freud
procura ressaltar com o termo castração?
Mas, se a inscrição do falo é o que operacionaliza a castração pela diferença
entre o sexual e o para além do falo, na psicose é justamente a ordem fálica enquanto
referência aquilo que é alvo de recusa. Assim, em relação ao enigma do outro sexo, os
problemas postos para o falante na psicose exigem outra via que não a fálica, uma via
de invenção. É o que se faz evidente ao evocarmos, por exemplo, o caso Schreber.
Como Freud mesmo havia marcado a propósito de sua análise das Memórias − e
quando dizemos que ‗ele havia marcado‘ de forma alguma dizemos que ele tinha plena
consciência desta marcação − a psicose colocaria em jogo outra faceta da sexualidade:
―Nenhuma outra parte de seus delírios é tratada pelo paciente tão exaustivamente, quase
poder-se-ia dizer, insistentemente, como sua alegada transformação em mulher‖
(FREUD 1911, pg. 50). Contrariamente ao que o próprio Freud havia sublinhado − a
ênfase do papel da homossexualidade na paranóia e seu retorno através da projeção − é
o problema da diferença sexual a direção do trabalho que se impõe aos delírios do
Senatspräesident:
160

... é surpreendente saber que Schreber faz distinção entre um


estado de beatitude masculino e outro feminino. O estado
masculino de beatitude era superior ao feminino, que parece ter
consistido principalmente numa sensação ininterrupta de
voluptuosidade (idem, p. 46.).

Esse estado de ininterrupta voluptuosidade − a irrupção não dialetizada do


pulsional no aparelho psíquico −, é correlato a um processo central para Schreber, a
―transformação em mulher‖. Mas, se algo como uma tentativa de equacionar a diferença
sexual se faz presente para Schreber, esta repartição, por certo, não participa da partilha
fálica, dependendo, mediante elaboração delirante, da intervenção de outra
representação, a saber, a ―Ordem do mundo‖:

A emasculação, agora, não era mais uma calamidade; tornava-


se ―consoante com a Ordem do mundo‖, assumia seu lugar
numa grande cadeia cósmica de eventos e servia de
instrumento para a recriação da humanidade, após a extinção
desta. ―Uma nova raça de homens, nascidas do espírito de
Schreber‖, assim pensava ele, reverenciaria como ancestral
esse homem que se acreditava vítima de perseguição. Por esse
meio, fornecia-se uma saída que satisfaria ambas as forças em
contenda. Seu eu encontrava satisfação na megalomania,
enquanto que sua fantasia feminina de desejo avançava e
tornava-se aceitável (FREUD 1911, pg. 67).

A ―explosão de libido‖, inundação do aparelho psíquico na psicose desde o


retorno das catexias sob o louco − delegado ao lugar de objeto de gozo −, diz respeito,
então, à emergência do pulsional sem a mediação do falo. O ―retorno de fora‖
característico do mecanismo da rejeição tornaria presente, pois, um ―fora-da-lei‖
bastante específico, o ―fora-da-lei‖ fálico que aloja, não como desvio ou déficit – posto
que algo não se inscreve para todo ser falante –, tratamentos alternativos do gozo. Se a
feminização psicótica de Schreber, assim como a dissolução de sua identidade e de sua
realidade são fenômenos intrinsecamente ligados à rejeição, ao nível da estrutura do
aparelho psíquico, da ordem fálica, estes se desvelam como possíveis recursos a serem
dispostos a favor do psicótico na construção de estabilizações possíveis. Invenções
como as de Schreber, por exemplo, atingem sua efetividade ao equacionar o nome, a
imagem e o objeto por uma via que não a fálica. O esforço lacaniano dos anos 50, no
retorno proposto pelo psicanalista francês a Freud, será o de formalizar aquilo que a
descoberta freudiana permitia atingir e que foi, de certa maneira, desconsiderado pelos
analistas: a foraclusão e a incidência do significante na estruturação psicótica.
161

− Capítulo VII –
Da Verwerfung à foraclusão
Desde o capítulo III desta tese, buscamos explicitar o quanto a noção de kakon −
poderosa ferramenta para apreendermos a lógica disposta pelos assassinatos imotivados
na psicose − fora erigida desde o recurso da psiquiatria à psicanálise. Este recurso,
como pretendemos deixar claro, não fora, contudo, uma via de mão única: se Guiraud o
constrói num aporte a noção freudiana de ―isso‖, Lacan, já nos anos 30 do século
passado, se reapropriará desta noção acentuando sua dimensão ‗econômica‘ − lógica e
libidinalmente organizada. Neste contexto Lacan sublinha que, nos casos kakon, em que
a incompreensibilidade se faz patente, trata-se de ―um esforço para romper o círculo
mágico, a opressão‖ – leiamos, hoje, o gozo – ―do mundo exterior‖ (idem, p. 690).
Destarte, quando Lacan retoma o tema do kakon – não apenas nos anos 30, mas,
cerca de vinte anos depois em Agressividade em psicanálise (1948) e Formulações
sobre a causalidade psíquica (1946) – explicita-se, desde os fenômenos psicóticos, uma
objetalidade que transborda àquela inerente a captura da loucura como objeto científico.
Isto porque, ao contrário da busca pela redução absoluta da fala à linguagem − ideal
comunicacional do projeto científico em sua progressiva formalização −, há, as psicoses
nos fazem sabê-lo, dimensões como as do testemunho. Neste tipo sui generis de relação
entre a linguagem e o falasser que é o testemunho, o psicótico explicita uma experiência
que, apesar de sua viceralidade, implica necessariamente o efeito sujeito: uma vez que
se testemunha ―sempre em cima dos próprios colhões‖, o testemunho implica ―sempre o
empenho do sujeito...‖ (LACAN 1956-57, p. 51). O que, não obstante, o testemunho do
―sujeito do gozo‖ (LACAN 1963-4, p. 192) que é o psicótico nos permite apreender?
Em Agressividade em psicanálise (LACAN 1948), Lacan retoma o panteão dos
temas delirantes para, a partir deste, sublinhar esta objetalidade própria à psicose. Desde
a ―motivação mágica do malefício, telepática, de influência‖ até a ―persecutória‖, ―da
difamação‖, ―do ataque à honra‖ e ―reivindicatória‖ (LACAN 1948, p. 113) – num pólo,
portanto, que recobre desde as idéias delirantes e não sistematizadas que retornam sobre
o corpo do esquizofrênico até a localização do gozo no Outro como é o trabalho
delirante na paranóia −, esta objetalidade ligada às relações do louco com o ―obscuro
kakon‖, concerne, dirá Lacan dois anos mais tarde, a algo do ―próprio ser‖ (LACAN
1946, p. 141) do psicótico. Esta conclusão, clinicamente observável, conduz-nos, pois, à
investigação dos mecanismos e vicissitudes pulsionais próprios a psicose. Fomos
levado, então, às particularidades dispostas pela rejeição, a Verwerfung freudiana.
162

Esta modalidade de defesa, ―mais poderosa e bem sucedida que o recalque‖


(FREUD 1894, p. 63-4) que é a rejeição aloja, por sua operação, uma conseqüência que
sobredetermina os fenômenos psicóticos. Na abolição da idéia e da quota de afeto que
lhe é própria, esta passa a portar-se como ―vinda de fora‖ (FREUD 1895b, p.110) em
relação às representações inscritas no aparelho psíquico, reservando, àquilo que retorna
sobre o sujeito, uma opacidade radical. Ora, mais do que sob uma idéia qualquer, as
pistas deixadas pelo mestre vienense − mormente a partir de suas considerações sobre o
―homem dos lobos‖ e em seu texto Algumas conseqüências psíquicas da distinção
anatômica dos sexos, de 1925 −, apontam para a ―castração‖ como objeto específico da
não inscrição, desta abolição da idéia pela rejeição.
No retorno de Lacan a Freud − retorno a partir do qual o psicanalista francês
propõe apreender o inconsciente como ―estruturado como uma linguagem‖ − a noção
freudiana de Verwerfung atingiria um grau de formalização não possuído originalmente
sob a pena de Freud, ganhando um lugar de relevo para a discernimento da estruturação
na psicose. É neste esteio que Lacan lançará mão da noção de ―foraclusão do nome-do-
pai‖ como forma de apreender a Verwerfung freudiana. O esforço lacaniano dos anos
50, no retorno que ele propõe a Freud, será, então, o de formalizar aquilo que a
descoberta freudiana permitia atingir e que foi, de certa maneira, desconsiderado pelos
analistas: os fatores estruturais do inconsciente. Assim, Lacan construirá, no decorrer de
seus escritos e seminários, modelos formais e topológicos para abordar a intervenção do
pai via complexo de Édipo e, de forma igualmente rigorosa, apreender os efeitos, na
psicose, de alternativas a esta função.
Seguiremos, agora, uma rápida análise destas construções, partindo de um dos
textos princeps para a apreensão psicanalítica das psicoses, De uma questão preliminar
a todo tratamento possível da psicose (LACAN 1956-57), até os desdobramentos que
concernem ao ―fora-da-lei‖ fálico em suas vertentes ―ordinárias‖, em processos e
desencadeamentos ‗não-clássicos‘. Com isto visamos explorar a especificidade e as
declinações do que Lacan chamou de foraclusão do nome-do-pai.

I) O Nome-do-Pai e a estrutura da linguagem


Ao iniciar a presente parte de nossa tese tocamos, de forma célere, no conceito
lacaniano de significante. Trata-se, aqui, da dimensão sintática, vale dizer, dos sinais,
letras ou cadeias sonoras que adquirem seu valor por meio de sua articulação perante os
demais, nas combinações e lugares assumidos por estes entre si.
163

Partindo daquelas constantes extraídas por Freud do funcionamento do


inconsciente − condensação e deslocamento − assim como fazendo recurso à disciplinas
como a lógica simbólica, a antropologia estrutural e a lingüística de Ferdinand de
Saussure e de Roman Jakobson, Lacan resgatará, de um modo vigoroso, os aspectos
sintáticos de tal descoberta. As fantasias, a transferência, o sonho e o delírio −
fenômenos apreensíveis na clínica pela articulação discursiva e não por seu aspecto
referencial − poderiam, então, ser alcançados de um modo rigoroso e em sua dimensão
de linguagem. Esta lógica posicional do significante, a estrutura em seu topos, seria
formalizada a partir da construção do algoritmo saussuriano ―S/s‖ − construção esta
tomada, desde então, como algo essencial para o psicanalista.
A despeito da importância atribuída por Lacan a este algoritmo, ele não tomará o
signo lingüístico como elemento mínimo de uma estrutura. Haveria, ainda, um modo
mais elementar de relação entre o falante e esta sintaxe. Esta relação encontraria, por
Lacan, sua plena articulação formal, na década de 50, em seu seminário sobre A carta
roubada. Trata-se, ali, da redução da estrutura da linguagem a seu caroço semântico,
àquilo que Freud havia descoberto observando a criança que brincava com um carretel
de linha e proferia, num jogo com os sons, o par de fonemas ―Ooo!‖ e ―Aaa!‖. Em
verdade, tal jogo com a presença e ausência maternas, isolado por Freud, já havia
recebido a atenção de Lacan mesmo antes, no ano de 1953:

A forma de matematização em que se inscreve a descoberta do


fonema, como função dos pares de oposição compostos pelos
menores elementos discriminativos captáveis da semântica,
leva-nos aos próprios fundamentos nos quais a doutrina de
Freud aponta, numa conotação vocálica da presença e da
ausência, as origens subjetivas84 da função simbólica (LACAN
1953, p. 286).

Esta postura de Lacan, de relacionar as leis do inconsciente a estas leis


lingüísticas, nós o vimos, guarda grande conformidade com o texto e a descoberta
freudianos. Mas, teria tido Freud, algum vislumbre ou interesse com relação a tal
diálogo? Ora, é curioso notar que a possibilidade de um diálogo entre a psicanálise e
uma ciência da linguagem foi, ―de certa forma‖, considerada como algo bem vindo, pelo
próprio Freud.

84
Grifo nosso.
164

Quando dizemos ―de certa forma‖ queremos dizer, com isso, que, mesmo que
não se tratasse da ―lingüística estrutural‖ − surgida na Europa com Saussure, ou, nos
Estados Unidos com Bloomfield, Sapir e outros – mas, sim de Filologia, em O sentido
antitético das palavras primitivas (FREUD 1910), Freud sugere o benefício passível de
ser esperado de certa aproximação entre a psicanálise e uma ciência da linguagem: ―...
melhor estudaríamos e traduziríamos a língua dos sonhos se soubéssemos mais sobre o
desenvolvimento da linguagem (idem, p. 46)‖.
Em concomitância com aquela relação entre o sujeito e os fonemas explicitada
in vivo por Freud no jogo infantil em 1920 – em Além do princípio de prazer (FREUD
1920) −, Saussure reconhecera, no que Lacan chamou de ―uma tabela de um quarto de
página‖, o quão importante é, para o projeto de uma ciência lingüística, a formalização
dos fonemas de uma língua. Assim, na página 63 do Curso de Lingüística geral
(SAUSSURE 1916) − pode-se ver a apresentação das bases para a construção de uma
disciplina que forneceria, com o rigor de uma ―equação algébrica‖, as combinações
entre os grupos binários de fonemas. No que tange a relação do falante com o campo
dos sinais, mister se faz notar, em Freud e em Saussure, como a noção de uma estrutura
– certas regras que determinam a combinatória de sinais − operaria muito aquém de
uma atribuição de significado: ―um grupo binário implica certo número de elementos
mecânicos e acústicos que se condicionam reciprocamente; quando um varia, essa
variação tem, sobre os outros, uma repercussão necessária que poderá ser calculada‖
(idem, p. 63).
Este diálogo entre a psicanálise e uma ciência da linguagem encontraria,
entretanto, um limite: a discrepância entre estes dois campos de saber reside no fato de
que, para a psicanálise, trata-se, absolutamente, de uma experiência que se constitui em
consonância com o efeito ético de implicação que é o sujeito. Enquanto ética, a
psicanálise tem a direção de considerar, naquilo que se pretende a ―andar sozinho‖ − a
língua − a dimensão do tropeço e a suposição de um alguém, efeito de
comprometimento excluído como tal pela ciência, que é o sujeito. Um exemplo capaz
de ilustrar tão fundamental divergência pode ser colhido a partir do instante em que
lançamos um olhar mais atento sobre um dos momentos mais marcantes da
formalização da cadeia significante por Lacan − seu seminário sobre A carta roubada
(LACAN 1957a).
165

Nesse texto, vemos, de forma explícita, como a questão ética se encontra alojada
como problema central para este psicanalista a partir da enunciação do seguinte dilema:
―o programa que se trata para nós, portanto, é saber como uma linguagem formal
determina o sujeito. Mas o interesse de tal programa não é simples, já que supõe que um
sujeito só o cumprirá colocando algo de si‖ (LACAN 1957a, p. 47). Destarte, esta
relação decisiva entre significante e sujeito, em suas implicações e conseqüências éticas
é algo que, por fim, acaba por marcar um abismo inexpugnável entre a psicanálise e
uma ciência lingüística. Lacan reitera isto ao tomar o espírito freudiano que apreendia,
no ―fort-da‖ − jogo a princípio puramente lógico com o par de oposições significantes
−, a renúncia pulsional que permite a criança se inscrever na cultura e articular, de início
por meio dos fonemas, a ―zorra das palavras‖:

A interpretação do jogo tornou-se então óbvia. Ele se


relacionava à grande realização cultural da criança, a renúncia
pulsional (isto é, a renúncia à satisfação pulsional) que efetuara
ao deixar a mãe ir embora sem protestar(FREUD 1920a, p. 27).

A depuração das leis que regem o funcionamento da linguagem − e explicitam


que o significante percorre seu caminho independente da consciência do falante − entra
em jogo, para Lacan, do mesmo modo que para Freud, apenas em conformidade com
um primeiro passo dado pelo sujeito. Perante esta sintaxe que lhe precede, a criança é,
como sujeito, convocada a assumir uma posição. Frente à ―zorra de significantes‖, o
sujeito pode dizer sim e se inscrever nesta sintaxe, num passo que negativiza seu ser,
instaurando, com isso, uma perda que será o motor de seu engendrar na linguagem ou,
ainda, por meio de sua rejeição, pode acomodar-se um circuito pulsional que lhe confere
o lugar de objeto que satura a função que é o desejo.
Nessa sintaxe, dois modos de articulação implicam, já, um corte em relação à
suposta continuidade de sua existência. Há, diacronicamente, o deslizamento
metonímico, termo a termo, palavra a palavra, cuja fórmula85 seria dada por Lacan a
partir da expressão f ( S...S‘) S ≡ S (-) s. Por outro lado, há, na esfera sincrônica, a
substituição de um termo por outro, de uma palavra por outra. Trata-se da articulação
metafórica, simbolizada por Lacan através da expressão f (S‘/S) S ≡ S (+) s.

85
Tais operações − que resultam das conseqüências para o processo de estruturação do sujeito da
irredutibilidade da ordem significante às significações (S/s) − receberiam de Lacan suas fórmulas, em
1957b, no texto − A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud.
166

A primeira simbolização da criança – que, como vimos no capítulo anterior,


Lacan, com a carta 52, aloja no registro Wahrnemungzeichen − tem como sua condição
a combinatória, muito além da privação, veiculada pela articulação dos traços mnêmicos
alojados pela presença (―Da‖) e ausência (―Fort‖) da mãe. De fato, não se trata, neste
instante, de atribuir a esta experiência inaugural significações como a de ―frustração‖,
por exemplo. Trata-se, sim, neste nível mais elementar da relação do falante com o
significante, de apreender, por meio desta sintaxe, que o primeiro lugar do infante na
estrutura da linguagem é o de objeto do Desejo materno.
Ao atingir esferas mais complexas da linguagem – como a palavra (que envolve
enlace a alteridade) e a significação (que articula os campos da sintaxe e do sentido) −
esta combinatória continuará a impor, ao ser falante, regras. Se na neurose metáfora e
metonímia se atrelam determinando o sentido e formatando os modos de apresentação
da alteridade, na conjuntura psicótica ocorrerão outros desdobramentos: o significado,
tomado apenas em sua articulação metonímica – não evocando o uso da metáfora como
síntese de sentido −, se apresenta ‗indefinido‘, como ‗antecipação de significação‘, em
fenômenos como os de ―mensagem interrompida‖ (LACAN 1956-7, p. 123),
experimentados por Daniel Paul Schreber.
Em alucinações como ―Agora eu vou me...‖ o fragmento ―Agora eu vou me...‖ –
experimentado por Schreber − deixa em aberto o que ele ―vai‖, ―deve‖, ―pode‖, etc.,
fazer. Trata-se, aqui, de um funcionamento diverso daquele que encontra, dentre as
diversas possibilidades sincrônicas, um significante que ancore o significado e imponha
um limite a este fluir, na substituição de um termo por outro, na ―escolha‖ entre ―vai‖,
―deve‖, ―pode‖ como complementos possíveis para a frase. Assim, é apenas num
segundo momento que, para Schreber, a frase ―Agora eu vou me...‖ terá seu sentido
ancorado que pela expressão ―... render ao fato de que sou idiota‖.
A metáfora, operação que permite a substituição entre os significantes, se
encontra, na psicose, desatrelada da esfera metonímica. É, pois, esta substituição, ao
incidir sobre a metonímia, aquilo que marca a ―ancoragem‖ significante/significado e
que vem articular o sentido para o falante. O encontro deste ―ponto de ancoragem‖ −
deste ―ponto de basta‖ − é aquilo que permite que o sentido, outrora apenas antecipado,
possa encontrar alguma resolução a partir do último significante. Desnuda-se, portanto,
aqui, o efeito de posterioridade relativo ao modo de operação da estrutura da linguagem:
será este significante final que, como um ―basta‖, determinará as possíveis significações
do primeiro. Mas, como tal ―basta‖ pode vir a se inscrever para um sujeito?
167

Num instante mítico e logicamente reconstruído, a criança virá ingressar − pela


via da alienação aos significantes do Desejo materno − como objeto para um sujeito,
sua mãe. Caberá, a partir de então, ao lugar reservado por esta mãe ao infante, os
desdobramentos no processo de estruturação do sujeito. Suas idas e vindas podem
denotar uma lei volúvel, sustentada por seus próprios caprichos, ou pelo contrário,
podem se encontrar ancoradas numa referência a um mais além, no caso, a ordem
simbólica que rege e articula os pactos e trocas na cultura.
Será, logo, a renúncia materna de se ocupar exclusivamente da criança o que
permitirá, a esta última, atingir as condições estruturais para acessar uma alteridade que
comporte, pela simbolização de seus limites, um lugar para o sujeito dizer seu sim, a
Bejahung. Lacan distinguirá as implicações e conseqüências deste instante a partir
daquilo que Freud descobriu como sendo o resultado da operação efetuada no fim
complexo de Édipo, a saber, a inscrição da castração e o surgimento – como traço
mnêmico inscrito para o sujeito − da diferença sexual86. Mas como se precipita, via
complexo de Édipo, este traço mnêmico? Em que consiste esta inscrição e quais são
suas conseqüências?
Em A dissolução do complexo de Édipo (1924a), Freud propõe, com relação às
neuroses, que o complexo de Édipo deve, no processo de estruturação, ruir; demolição
esta que encontraria sua efetivação a partir do momento em que a satisfação esperada,
comandada por uma primeira forma de inserção na linguagem – na qual o sujeito
encontra seu lugar como objeto do Outro (mormente materno) −, padece ―por sua falta
de sucesso, por efeitos de sua impossibilidade interna‖ (FREUD 1924a, p. 217).
Destarte, para Freud − assim como também para Lacan − o lugar ocupado pela criança
com relação ao Outro é a base para que o ―sujeito‖ aceda à ordem simbólica e inscreva-
a como tal. É, pois, ao tocar nas incoerências internas desta relação que a criança pode
ser levada a concluir que, além deste modo de conjugar a pulsão, há o laço social sendo
o falo evocado não como objeto positivo no campo da realidade, mas, sim, como
insígnia de um corte, a ‗lei paterna‘. A castração permite, do mesmo modo, num efeito
de posterioridade − idêntico àquele que instala na metonímia das palavras um ―basta‖ −
que objetos como o seio e as fezes sejam, também estes, simbolizados.

86
Sobre tais temas destacam-se, principalmente, dois momentos: um mais precoce, no início de sua obra,
coincide com a publicação de Três ensaios para uma teoria da sexualidade, de 1905. Num período mais
tardio, textos como A dissolução do complexo de Édipo, de 1924, Algumas conseqüências psíquicas da
diferença anatômica entre os sexos, de 1925 e Sobre a sexualidade feminina, de 1931, são aqueles que, na
abordagem freudiana de tal assunto, se destacam.
168

Há, nesta negativização, uma subtração na imagem inerente à fase fálica infantil;
a criança deixa, ao se deparar com as impossibilidades, de ser ―sua majestade, o bebê‖.
Deste modo, a operação da castração evoca, em sua conclusão, aquilo que há de mais
hétero − em contraposição à auto − com relação à diferença sexual: o objeto pulsional
como extrínseco ao sujeito e inatingível no campo da realidade. Lacan reconhecerá,
então, nesta descoberta freudiana, o que há de crucial no papel desempenhado pelo pai.
Trata-se, ali, de uma intervenção que, por seu caráter simbólico, transcende a função
biológica do genitor e que, também, não pode ser resumida às imagens do pai − sejam
aquelas veiculadas nos mais diversos momentos por que passa a cultura ou, ainda, nas
elaboradas e secretas fantasias de filiação que constrói o neurótico.
O pai, portanto, é, aqui, um nome, um lugar atribuído pela mãe a um alguém que
só pode comparecer enquanto suporte deste lugar. Dito em outras palavras, o pai que
importa no processo de estruturação para o sujeito, é aquele que surge como veículo da
castração, como alguém que não se confunde com a lei, mas que a representa. Tal
operação veicula, portanto, não − tal qual busca crer o neurótico − que o pai seja o
detentor do falo, mas que o falo, enquanto significante crucial, é, por si só, um efeito de
corte, algo que, como dirá Lacan em 1956, está sempre ―alhures‖ (LACAN 1955-56, p.
232) em relação ao falante.
Ora, a condição para que tal suporte se faça é que tanto este alguém quanto a
mãe tomem, eles mesmos, posição perante a castração e a diferença sexual. Se tal passo
é dado, o pai operará como um nome, como um termo que permite substituir, por sua
incidência, um primeiro Outro − presentificado para a criança mormente pela mãe − por
um Outro metaforizado, simbolizado como lugar da verdade, do pacto e da troca. O
enigma apresentado para a criança por meio das idas e vindas da mãe terá, então, com a
metáfora paterna, um lugar simbólico para vir a se colocar. Para apreender esta
inscrição ―de um Outro como lugar da lei‖ (LACAN 1956-57, p. 589), Lacan proporá,
nos anos 50, uma fórmula:

Nome do Pai Desejo da Mãe A


. → Nome do Pai
Desejo da mãe significado para o sujeito Falo
169

Se isto é assim nos casos de neurose, temos, entretanto, como vimos a propósito
dos casos de Schreber, do Homem dos lobos e mesmo da psicose em mais larga escala –
uma estruturação alternativa à instauração da ―lei paterna‖. Por conseqüência, a questão
da castração e da diferença sexual se imporão para o louco de outra forma, por meio de
uma modalidade bastante particular de incidência do significante, do Outro e do gozo. A
Verwerfung, alternativa à inscrição da castração e seu retorno ―de fora‖, no ―real‖, terá,
então, em Lacan, a partir do Nome-do-Pai, precisada sua operação:

A Verwerfung será tida por nós, portanto, como foraclusão do


significante. No ponto em que, veremos de que maneira, é
chamado o Nome-do-Pai, pois pode responder no Outro um
puro e simples furo, o qual, pela carência de efeito metafórico,
provocará um furo correspondente no lugar da significação
fálica (LACAN 1956-57, p. 564).

II) A foraclusão do Nome-do-Pai e a clínica com a psicose


O psicótico será, então, o sujeito que partilha das conseqüências de um modo
muito particular de se posicionar na linguagem. No lastro das considerações freudianas
dos mecanismos e vicissitudes postos em cena pelas psicoses, Lacan proporá, a esta
modalidade de equacionar significante e gozo, o nome foraclusão. Mas por que optaria
Lacan por traduzir a Verwerfung freudiana por este termo?
Segundo buscaremos sustentar, com a introdução do termo foraclusão, Lacan
poderia resolver dois ―espinhosos‖ problemas: 1) obter uma tradução que observasse a
especificidade do mecanismo ―rejeição‖ proposto por Freud e, 2) indicar, para além dos
fenômenos imaginários, a estrutura de linguagem do inconsciente como lugar de tal
operação. Mas como, lançando mão de recursos estruturais, ele dispôs esta ―solução‖?
Como vimos outrora, no capítulo anterior, durante a história da psicanálise havia
se apresentado, mesmo em Freud, ambigüidades com relação ao termo Verwerfung.
Havia − nós já o vimos − ocasiões em que com tal termo Freud designava o mecanismo
psicótico de tratar uma idéia como ―jamais ocorrida‖. Todavia, Freud utilizava a mesma
expressão − o substantivo Verwerfung (rejeição, recusa) ou sua forma verbal verwerfen
(recusar, rejeitar) − quando intentava marcar a posição do paciente em simplesmente
recusar ou não querer aceitar alguma idéia. Conviviam, como propusemos (p. 156),
diferentes instantes da formalização desta noção na obra de Freud; ao contrário da
noção de recalque − para o qual se estabeleceu um uso conceitual sólido −, instaurou-se
uma querela em relação a sua tradução para as línguas estrangeiras, inclusive o francês.
170

Um dos primeiros analistas a se deparar com tal problema é o lingüista francês


Edouard Pichon. Para este, segundo ARRIVÉ (1999, p. 121), a tradução de Verwerfung
por ―desmentido‖, equivalente a Verleugnung alemã, ignorava a conotação radical que
Freud atribuíra à Verwerfung – que, como vimos ao longo do capítulo anterior, Freud
relacionou à castração, particularizando este mecanismo como algo próprio à psicose.
Deste modo, sugeriu Pichon traduzir este termo não por ―desmentido‖, mas, sim, por
foraclusão, palavra que apresentava uma face tanto gramatical quanto jurídica. Mas o
que levou Pichon a propor, enquanto psicanalista, gramático e lingüista, a tradução da
Verwerfung freudiana por foraclusão?
Segundo ARRIVÉ (1999) e RABINOVITCH (2001), Pichon justifica sua
escolha desde um tipo de operação gramatical homônimo, a foraclusão. Tal operação
exclui, ao ser efetivada numa frase, certos fatos como existentes ou possíveis. A
foraclusão é um tipo de negação − concentrada na segunda partícula da forma negativa
em francês (pas, jamais, rien) − que nega não apenas a realidade de algo, mas que
exclui este algo desde o passado em que ocorre até o futuro − em que este se projeta
como possibilidade.
Tais partículas, os ―foraclusivos‖, realizam sua operação mesmo na ausência da
primeira partícula ―ne‖ − que guarda, já, valor de negação. Para ilustrar sua intervenção
tomemos o seguinte exemplo, a frase: ―Il est peu probable que j´opère jamais plus‖ [É
pouco provável que eu o opere jamais] (ARRIVÉ 1999, p. 134). Segundo Pichon, as
idéias sobre as quais a foraclusão opera ―são expulsas do campo das possibilidades pelo
locutor [...] Uma operação pelo cirurgião é foracluída do mundo provável, tal como o
cirurgião o percebe‖ (PICHON apud ARRIVÉ, p. 134). Desde o instante da enunciação
desta frase, o referente ―terá sido‖ impossível de se realizar. Mas se esta função
gramatical motivou Pichon a traduzir o termo alemão Verwerfung por forclusion
(foraclusão), também em suas ressonâncias jurídicas este termo se mostra interessante
para pensar, com Lacan, a psicose.
Em sua acepção jurídica, um processo judicial é forclos, vale dizer, prescrito,
quando o prazo para requerer sua abertura se esgota. Desde que isto ocorra, o processo
não pode mais ser aberto. Porém, ao contrário do que ocorre com as psicoses, há, ainda,
uma possibilidade de reversão: se o requerente provar a impossibilidade de ter estado
presente, ou, ainda, demonstrar que há contradição no julgamento que afirmou a perda
de seu direito, uma apelação é possível. De certo modo, este ‗prazo‘ para que − no
processo de estruturação −, a castração se inscrevesse, não fora ignorado por Freud.
171

Em 1924, no texto intitulado A dissolução do complexo de Édipo − contrariando


mais uma vez as posições constitucionalistas − um tempo determinado para que a
castração viesse a se inscrever: o período da infância. Caso tal inscrição não se fizesse −
e, portanto, certo destino à diferença sexual não se equacionasse − diz-nos Freud: ―...
pode estabelecer-se um processo que eu gostaria de chamar de ‗rejeição‘, processo que,
na vida mental das crianças, não aparece incomum nem muito perigoso, mas em um
adulto significaria o começo de uma psicose‖ (FREUD 1924a, p. 314-5)‖. Encontramo-
nos aqui, mais uma vez, em consonância com este mecanismo bastante peculiar a
psicose à qual Freud reconhece, desde muito cedo em sua obra, a vicissitude de tratar
uma representação como ―jamais ocorrida‖.
Como vimos no capítulo anterior, apreendemos que que a condição para que
uma representação se comporte efetivamente como ―jamais ocorrida‖ e ―vinda de fora‖,
é que sua inscrição na articulação de traços mnêmicos não tenha ocorrido;
reconhecendo Lacan, como ―lugar eleito da Verwerfung‖ (LACAN 1955-56, p. 180),
aquilo que, na carta 52, é o lugar da primeira inscrição: Wz − Wahrnemungzeichen. Ao
passar por tal vicissitude, a inscrição rejeitada se torna alheia à relação dialética com as
demais e se porta como estanque em relação ao resto do sistema: o que é recusado na
ordem simbólica ressurge no real‖ (LACAN 1955-56, p. 22). Deste distanciamento
radical decorre a lógica que regerá fenômenos como a significação delirante – insensível
à crítica − e a alucinação – que retorna, sobre o sujeito, conservando a inequivocidade –
a certeza − de que ‗isto lhe concerne‘. Mas que lugar esta genealogia do termo
foraclusão ocupa no escopo de nossa tese?
Ora, as ressonâncias gramática e jurídica do termo foraclusão, embora não
recubram o escopo do mecanismo freudiano da psicose, possibilitaram a Lacan, isolar a
rejeição freudiana dispondo-a nos termos da relação do sujeito com a estrutura e a com
a lei fálica. É, pois, na interlocução com tais acepções que o termo foraclusão – como
estruturante do ‗fora-da-lei fálica‘ − se mostra, para nós, interessante de ser retomado.
No contexto dado pelos anos 50, Lacan colherá frutos bem mais viçosos que
aqueles colhidos por seu conterrâneo, Edouard Pichon. O esforço lacaniano, erigido sob
a égide de uma vigorosa clínica com as psicoses, terminou por lograr êxito em alojar
não só o termo foraclusão, mas a foraclusão do Nome-do-Pai em suas conseqüências
para o sujeito. As conseqüências desta prescrição − desta outra forma de estruturação
que é a foraclusão − serão vividas, pelo louco, na própria estrutura de linguagem do
inconsciente, em seus registros simbólico, imaginário e real.
172

A− Os fenômenos elementares na clínica clássica da psicose:


delírio, alucinação e dissolução imaginária
Destacaremos, logo, dentre estas conseqüências, tal qual o fizera Lacan nos anos
50, no que chamaremos de a ‗clínica clássica das psicoses‘ – na qual o diagnóstico se
constitui a partir da lógica disposta pelos fenômenos elementares (indecomponíveis em
termos da lógica fálica) – tais como o ―delírio‖, os ―fenômenos de mensagem‖
(alucinação) e a dissolução imaginária. Todos estes fenômenos, por sua relação com
fatores estruturais da linguagem − os registros do simbólico, do real e do imaginário −
colocarão em cena a exigência de uma metapsicologia, vale dizer, da construção de
hipóteses explicativas que excedam, por sua natureza estrutural, tanto o puro empirismo,
quanto a fenomenologia − na medida em que, frente a este último pólo, estes fenômenos
fazem incidir um efeito de descontinuidade em relação à consciência.
Tais hipóteses, surgidas no acolhimento clínico de pacientes psicóticos no
interior do dispositivo analítico, serão, assim, ao lado dos textos freudianos, nossos
guias para a apreensão dos problemas e discussões propostos por Lacan, em seu
seminário de 1955-56 e em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose, texto de 1956-57. Esta análise nos permitirá isolar o que Jacques Alain Miller
chamara psicoses ―extraordinárias‖, nas quais o desencadeamento se faz de forma
ruidosa, marcada pela presença dos ―fenômenos elementares‖.

A.1) Primeiro ponto: O delírio como fenômeno elementar


Em 1932, em sua análise de seu caso Aimée, Lacan apreendera a importância da
lógica delirante na determinação da passagem ao ato homicida de sua paciente. O delírio
se afigurava, então, para o jovem psiquiatra, como fenômeno fundamental na paranóia.
Mas como apreender a lógica disposta por este fenômeno?
A princípio, como psiquiatra, se lhe acenavam duas principais formas de abordar
os problemas postos pela clínica da psicose: de um lado, havia um pólo de teorias que
Lacan agrupara sob o nome de ―psiquiatria constitucional‖ – herdeira da teoria da
degeneração, desde a qual a causalidade da loucura residia em elementos individuais
(psíquicos, morais e físicos) −; de outro lado, figurava a ―psiquiatria organicista‖ – que
intentava estabelecer uma determinação eminentemente biológica para as psicoses. Em
sua tese, Lacan dedica dois capítulos para, a partir da lógica de seu caso, sustentar o
quanto tais posições não permitiam atingir este fenômeno em sua lógica e coerência
própria. Restava ao então jovem psiquiatra Lacan, porém, ainda uma carta.
173

A noção de relações de compreensão − oriunda da psicopatologia de K. Jaspers


− prometia apreender de uma forma não reducionista e dinâmica – ao articular desde
noções como as de ―personalidade‖ e ―sentido‖, fatores psicológicos, físicos e sociais –
o fenômeno delirante em suas irradiações para toda a realidade psíquica e objetiva do
louco. Mesmo esta postura, entretanto, mostrara-se insuficiente para Lacan.
Por certo o ‗método compreensivo‘ permitia acolher o dizer paranóico em uma
esfera de linguagem, recusando, então, o regime de inteligibilidade das ciências naturais
– posto em voga pela psiquiatria organicista. Com efeito, ainda hoje tal postura guarda
função: a de encastelamento psiquiátrico ante o avanço, desdobrado durante todo século
passado, da redução biológico-comportamental que culminou, contemporaneamente, na
explosão dos outrora ricos quadros clínicos, pluralisados numa miríade de transtornos.
A via de Karl Jaspers, em sua recusa de toda e qualquer explicação no sentido forte do
termo, não permitia, porém, apreender fenômenos que, mesmo não sendo biológicos,
transcendiam a consciência, nem, tampouco possibilitavam a aproximação do núcleo
opaco presente no próprio cerne da significação delirante. Para tanto, cabia a Lacan, se
este quisesse apreender rigorosamente a complexidade dos problemas postos em jogo
pela semântica delirante, mergulhar nos fatores que, de um modo ou de outro, regeriam
tais significações.
É neste instante que, movido pelas exigências de seu caso princeps, Lacan irá ao
encontro do discurso analítico. Muito além de uma semântica intuitiva − a suposta
compreensibilidade imediata das significações paranóicas − a psicanálise seria a
disciplina que exploraria as leis sintáticas que regeriam tal semântica, retomando, como
finalidade desta articulação, as modulações da esfera pulsional:

O mérito desta nova disciplina, que é a psicanálise, é nos ter


ensinado a conhecer estas leis, a saber: aquelas que definem a
relação entre o sentido objetivo de um fenômeno de
consciência e o fenômeno objetivo a que corresponde: positivo,
negativo ou imediato, essa relação é, com efeito, sempre
determinada (LACAN 1932, p. 248).

De fato, em seu seminário sobre as psicoses, Lacan virá a retomar, com vigorosa
acuidade, a exploração destes aspectos sintáticos do inconsciente freudiano, assim como
estes vêm a se fazer presentes na loucura. Tal ênfase o fará propor, inclusive, num efeito
retroativo (nachträgliche) que, em sua tese, fora G. G. de Clérambault e não qualquer
outro seu único mestre em psiquiatria.
174

Dadas, todavia, as escassas citações que Lacan fez do nome ou conceitos


clérambaultianos em 1932, como entender aquilo que ele propunha com tais
enunciados? Como poderia aquele eminente psiquiatra ter contribuído, mesmo a
posteriori, para a re-significação de seu trajeto empreendido na (e partir de) sua tese
sobre a paranóia?
Dentre as ricas observações que o maître de Lacan em psiquiatria deixou ao
corpo da tradição que, durante a maior parte de sua vida, o acolheu, destacam-se,
sobretudo, duas contribuições: os estudos sobre a erotomania − um dos subgrupos das
―psicoses passionais‖ − e suas valiosas pontuações sobre o automatismo mental.
Estes ―pensamentos antecipatórios, ecos do pensamento, ecos de leitura,
enunciação dos atos e impulsos verbais‖ (MORRON, GIRARD, MAUREL,
TISSERON 1993, p. 29), impunham-se ao louco de tal forma que, gradualmente, viriam
a se tornar sensoriais, tanto sob a forma de impressões auditivas quanto, também, de
sensações sinestésicas. Em outras palavras, ainda que tais aparições, de início, fossem
experimentadas com certa indiferença, sua progressão em caráter ―anidéico‖ − não
conforme uma seqüência significativa de idéias − marcaria o início de um processo que
poderia vir a culminar em uma ―passagem do psíquico puro e do pensamento abstrato
ao verbal e ao sensório da voz‖ (idem, p. 30).
Este caráter estrangeiro e irredutível − por seu efeito de ―cisão no eu‖ − levaria
de Clérambault a tratar este x (que se apresenta para o psicótico) à maneira da
psiquiatria organicista, vale dizer, lançando mão de uma anatomia ou histologia
fantástica, suposta e não demonstrada, que exerceria, para a psicose, o papel de causa.
Haveria, assim, em uma psicose, a possibilidade de que as palavras, em seu caráter
meramente verbal, viessem a se fazer presentes a despeito da intervenção de uma
significação delirante. Esta última, apenas a posteriori, se estabeleceria − como uma
espécie de ―romance‖ − e reintegraria os elementos enigmáticos ao funcionamento usual
do eu. O delírio, longe de se confundir com a psicose, seria o modo pelo qual a
consciência deduziria e re-estabeleceria a continuidade egóica. A busca da causa da
psicose ligar-se-ia, assim, para Clérambault, não a escuta de seu conteúdo, mas, sim,
verdadeiramente, de sua forma.
Lacan, em seu seminário sobre as psicoses, procederia de forma a se apropriar
das constatações de seu ―maître‖ sem, contudo, retornar à posição organicista por ele
recusada desde a tese sobre a psicose paranóica. Mas como isto se fez possível?
175

Ora, conforme pontuamos no primeiro capítulo desta parte de nossa tese, o


inconsciente freudiano, desde sua descoberta, tem como característica imanente a si o
fato de se fazer presente como corte à suposta continuidade da existência do falante.
Destarte, esta gramática que se impõe por meio de seus efeitos, longe de ser
prerrogativa dos casos de psicose − pela introdução de um x incompreensível − é uma
dimensão que se desnuda em diversos instantes da vida do falante. Por isso, se, de certo
modo, Lacan via em de Gaetan Gaetian de Clérambault um maître, ele não deixará, a
exemplo do tratamento que a psicanálise dá a qualquer mestre, de promover sua queda,
para instalar o efeito sujeito.
Ao tecer suas críticas à tradição psiquiátrica em sua abordagem da loucura,
Lacan lançará mão do discurso analítico para evidenciar que a compreensão, este pathos
supostamente jaspersiano, é algo que permeia o espírito assumido pela psiquiatria
mesmo quando esta se articula em uma faceta organicista. Será, assim, a partir da
suposição de uma ―compreensibilidade primeira‖ (LACAN 1955-56, p. 46) que, mesmo
de Clérambault irá propor o automatismo como base para caracterizar a síndrome
mental tanto descrita por ele. Será, logo, ao pressupor o acesso a uma ―endoscopia de
si‖, na relação do sujeito com os processos que nele se dão, que a psiquiatria viria a
predicar estes fenômenos como automáticos.
Para Lacan, é o inconsciente − veto freudiano imposto à concepção de uma
consciência endoscópica de si − a dimensão capaz de atingir o que escapa à
compreensão sem, com isso, implicar uma recorrência ao organismo. Assim, de um
lado, com a noção de estrutura e, de outro, retomando Aristóteles, Lacan se apropriará
do termo clínico automatismo, para, com este, explicitar, no delírio, a autonomia da
articulação inconsciente em suas leis de linguagem, para além da vontade e do eu:

O termo tem um sentido bastante preciso em neurologia, onde


qualifica certos fenômenos de liberação, mas sua retomada
analógica em psiquiatria continua sendo problemática. É,
contudo, o termo mais justo na teoria de Clérambault, se vocês
pensam na distinção, hoje completamente esquecida, que faz
Aristóteles entre o automaton e a fortuna. Se vamos direto ao
significante (...) vemos que o automaton é o que
verdadeiramente pensa por si mesmo, sem vínculo com este
além, o ego, que dá seu sujeito ao pensamento. Se a linguagem
fala sozinha, está aí justamente a oportunidade, ou não, de
utilizar o termo automatismo, e é o que dá, ao termo que de
Clérambault usava, sua ressonância autêntica, seu lado
satisfatório para nós (LACAN 1955-56, p. 345).
176

De certo, demoraria quase uma década para que − no seminário sobre Os quatro
conceitos fundamentais em psicanálise, de 1964 − Lacan concretizasse um emprego
mais sistemático deste termo. Não obstante, o que a psicose coloca a céu aberto por
meio do delírio é aquilo que concerne ao automatismo da linguagem ao reger as
associações inconscientes. Ao contrário do que pensara de Clérambault, o romance
delirante, ou, melhor dizendo, o delírio, é, ele próprio, algo irredutível a um eu e às
tendências pessoais da vida do ―doente‖. O grau de sistematização de que goza a
construção delirante deve-se à presença − já fruto de um trabalho − de um modo de
relação do psicótico com o ―conjunto da linguagem‖ (LACAN 1955-56, p. 140).
Em outras palavras: para o psicótico a dimensão delirante comporta, já ela, uma
tentativa de acomodação de um Outro que − nós o vimos nos capítulos anteriores −
antes de ser instituído pela fala como lugar da verdade, se impõe por proliferações nos
registros real, imaginário e simbólico. O delírio é, logo, uma tentativa de discriminar e
articular sujeito, eu, outro e Outro e domesticar a incidência do pulsional.
A irredutibilidade estrutural do delírio a elementos compreensíveis se torna
ainda mais clara na medida em que tomamos em conta a significação em consonância
com a qual se organiza a construção delirante. Ora, como a experiência clínica nos
permite averiguar, esta significação se impõe com tal força e estranheza que se faz
tarefa hercúlea desconhecer que esta traz, também em seu cerne, algo que mesmo para
os psicóticos é inefável e indizível. Se de fato atentarmos para o aspecto estrutural do
dito do louco, torna-se possível perceber que esta significação, ao se atualizar no dizer,
comporta como sua característica: 1) ser não dialetizável em relação a outras
significações; e, 2) reenviar, pela posição que esta confere ao psicótico, o ―falante-
falado‖ ao lugar de objeto. Deste modo, para além da tonalidade afetiva adquirida pela
temática delirante, faz-se característica crucial de tal significação a inércia em que esta
põe o sujeito perante o Outro, conjunto da linguagem.
Assim, também para aquela perspectiva que pensa como possível a redução do
delírio a uma compreensibilidade primeira, surgirá a verdade do delírio como fenômeno
elementar, vale dizer, como elemento irredutível à consciência e que exige, por sua
articulação, uma aproximação que se dê em torno de fatores estruturais do inconsciente
freudiano. Estes nos permitirão apreender, desde a posição do psicótico como objeto das
incidências desmesuradas da pulsão e da linguagem, que é falso ―conceber que o sentido
de que se trata‖ − apesar da tentação que se apresenta demasiado na clínica − ―é aquele
que se compreende‖ (LACAN 1955-56, p. 14).
177

A.2) Segundo ponto: Os fenômenos de mensagem


Em consonância com o espírito da investigação posto pela hipótese da estrutura
de linguagem do inconsciente, Lacan destinará, em seus dois grandes textos sobre a
psicose, nos anos 50, considerável atenção aos transtornos de linguagem presentes na
clínica com psicóticos. Se, como a pouco intentamos frisar, o delírio e sua significação
manifestam grande inércia frente à dialética da articulação significante, outros avatares
desta lógica se apresentarão ao tomarmos o que Lacan denominou de fenômenos de
mensagem. À análise destes dedicaremos o presente tópico.
A clínica com as psicoses delirantes − principalmente em casos como os delírios
de observação e perseguição − permite, ao psicanalista, a apreensão de certos relatos em
que os psicóticos alegam serem alvos de constantes injustiças, afrontas e maus dizeres.
Estes comentários e atos, que lhe surgem embebidos com a certeza de que estes lhes
visam, chegam a eles, segundo é comum relatarem, através de pessoas que, até aquele
momento, não haviam se oposto ou discordado da lógica disposta pelo eixo imaginário
a - a‘, no qual alojam-se as relações entre o ―eu‖ e o ―outro‖. Entretanto, quando o
contrário disto se dá, aparecem, para estes pacientes, certos eventos que excedem esta
esfera de semelhança e mergulham o sujeito em profunda perplexidade.
A literatura lacaniana nos fornece, a este respeito, ao menos dois exemplos
disto: 1) o caso Aimée, em que, conforme afirmamos na segunda parte de nossa tese, a
paciente apresentava seus momentos de maior crise quando certos episódios
contradiziam a relação imaginária entre ela e a pessoa que ocupava o lugar de seu
duplo; e 2) o caso relatado por Lacan em seu seminário sobre as psicoses, em que uma
de suas pacientes ouve a alucinação Porca. Em que consiste este último caso?
Trata-se, na referência feita por Lacan em seu seminário sobre as psicoses sobre
este caso, de evocar o quanto, na alucinação, este sujeito, ao invés de receber sua
mensagem sob a forma invertida e proveniente do Outro, a recebera da boca do amante
de sua vizinha. Como Lacan bem o salientou, esta vizinha era a mesma amiga que
desempenhava o ―mau hábito‖ de atrapalhar seus momentos a sós com sua mãe, com
quem ela há algum tempo voltara a viver, desde sua separação. Por ocasião de seu
casamento, esta mulher, que deixara a casa materna, reagira à ausência de sua mãe com
a certeza de que, literalmente, lha cortariam em ―rodelas‖ (LACAN 1955-56, p.61).
Ora, nestes casos, a mensagem do sujeito, ao invés de retornar do Outro sob uma
forma invertida, aparecerá, para ele, no real (nas esquizofrenias) ou, ainda, na boca dos
semelhantes (nas paranóias). Há, nestes casos, uma ―pane‖ no circuito da fala.
178

Se basearmo-nos no esquema £, introduzido por Lacan em 1955, pensamos


poder derivar outro esquema de modo a presentificar a particularidade do que, nas
psicoses delirantes, opera através de: 1) uma espécie de cópula entre o sujeito, S, e a
imagem egóica, a‘, assim como 2) a tentativa de redução do Outro, A, ao semelhante a
(pequeno outro), introduzindo, com isso, grande proliferação de imagens de
perseguidores, detratores, e etc...:

Este colapso, em que o Outro − antecedente estrutural do sujeito − antes de


apresentar-se como um lugar se impõe por meio da irrupção de mensagens não
articuladas, é um exemplo do tipo de transtorno de linguagem que Lacan chamará de
fenômenos de mensagem. Nestes casos o significante que retorna sobre o falante não
constitui, por sua estruturação, uma cadeia que represente o sujeito pela diferença posta
pela incidência de outro significante, proveniente da gramática inconsciente. A presença
que a mensagem alucinada torna atual envia, antes, a um significante desencadeado,
externo a esta estrutura.
Assim − utilizando-nos de uma noção empregada por Lacan no início dos anos
50 − se na fala vazia o significante pode ser destinado à ação de recalcamento por
encontrar-se, desde já, inscrito numa estrutura de linguagem, o mesmo não se dará no
caso de uma psicose deflagrada. Se o enigma do Outro depende da pergunta do falante
para se fazer presente enquanto lugar da verdade do sujeito, nos casos de psicose, o
inconsciente se imporá ao louco e exigirá dele, para se tornar algo de sustentável, um
vigoroso trabalho.
Tudo se passará, aqui, para o delirante, ―a partir do momento em que a iniciativa
vem de um Outro‖ (LACAN 1955-56, p. 220). Nestes casos seria, pois, como se para o
enigma do inconsciente a resposta tivesse sido disposta antes da pergunta, ou, ainda,
como Lacan também julgara possível dizer, seria como se a pergunta tivesse se
colocado − para o sujeito na psicose − sozinha:

Estamos certos de que os nevrosados se puseram esta questão.


Os psicóticos, não é tão certo. A resposta lhes veio antes da
questão − é uma hipótese. Ou então a questão se pôs sozinha −
não é impensável (LACAN 1955-56, p. 230).
179

O problema que se impõe ao louco pela irrupção de uma mensagem


desencadeada permite, do ponto de vista estrutural, que distingamos diversos modos de
incidência do inconsciente na psicose e diversas estratégias de alojar, por meio de um
trabalho, um efeito de estabilização. Ante a presença de um Outro massificado, o
paranóico procurará atar o significante intrusivo lançando mão da significação, do
delírio e do eixo imaginário a – a‘ para articular, a partir destes elementos, aquilo que
Freud chamou de ―gramática delirante‖.
Em seu célebre texto a respeito das Memórias, Freud, em 1911, ensaiou, a partir
de uma ―gramática‖, apreender, em grandes linhas, as possíveis declinações da
paranóia: ―constitui fato notável que as principais formas de paranóia conhecidas podem
ser todas representadas como contradições da proposição única ‗eu (um homem) o amo
(um homem)‘‖ (FREUD 1911, p. 82). Portanto, corroborando a hipótese lacaniana de
que o inconsciente tem a estrutura de uma linguagem, podemos verificar que Freud, em
1911, havia desvelado uma sintaxe que articulava todas as quatro grandes formas de
delírio: 1) o de perseguição; 2) a erotomania; 3) o de ciúme e, por fim, 4) a
megalomania:

Os delírios de ciúme contradizem o sujeito, os delírios de


perseguição contradizem o predicado, e a erotomania contradiz
o objeto. Na realidade, porém, é possível um quarto tipo de
contradição — a saber, aquele que rejeita a proposição como
um todo: ‗Não amo de modo algum — não amo ninguém‗. E
visto que, afinal de contas, a libido tem de ir para algum lugar,
essa proposição parece ser o equivalente psicológico da
proposição: ‗Eu só amo a mim mesmo‘. Desta maneira, esse
tipo de contradição dar-nos-ia a megalomania... (idem, p. 88)

Não obstante a elegância e a economia que tal sintaxe atingira, Lacan notara que
dois grandes problemas continuavam a se impor à construção desta articulação
delirante. De um lado, esta parecia depender da hipótese de que a causa da paranóia era
o retorno da homossexualidade recalcada. Por outro lado, a projeção − atribuição ao
pequeno outro ―a‖ de um significante que retorna do Outro sob o sujeito − mostrava-se
insuficiente para dar conta da radicalidade do delírio. Como, então, podemos
encaminhar tais problemas à luz dos instantes posteriores da obra de Freud e de Lacan e
resgatar esta gramática? A fim de iniciarmos nossa procura, atenhamo-nos, agora,
àquilo que levara Freud a pensar que se tratava, na paranóia, do retorno de uma
homossexualidade recalcada.
180

Segundo pensamos, três pontos sobressaem-se quando, ao retornarmos a seu


texto de 1911, interrogamo-nos sobre isto. O primeiro ponto é aquele que advêm da
constatação de que o núcleo delirante presente na escritura das Memórias é a
transformação de Schreber, mediante a influência dos raios divinos, em mulher. Neste
ponto, é um bocado curioso que, a este respeito, Freud tenha, sem aperceber-se deste
fato, disposto, em uma relação de equivalência, passividade e feminização:

Não levantaremos, portanto, penso eu, novas objeções à


hipótese de que a causa ativadora da enfermidade foi o
aparecimento de uma fantasia feminina (isto é, homossexual
passiva) de desejo, que tomou por objeto a figura do médico
(FREUD 1911, p. 67).

Em verdade, tal dificuldade deixa de ser espantosa na medida em que tomamos


em consideração o instante da obra freudiana em que tal afirmação havia sido tecida. Se,
de fato, em Três ensaios sobre uma teoria da sexualidade, de 1905, Freud já apontava
uma dessimetria entre os sexos, seria apenas a partir dos anos 20 − desde sua teorização
sobre a sexualidade feminina, a castração e o falo − que tal diferença seria mais bem
desenvolvida. O mesmo não se dará, entretanto, no que tange ao segundo ponto a ser
por nós assinalado, a transferência, já presente na citação que destacamos.
Neste outro ponto, Freud reconhece o papel assaz relevante e desagregador que
assume a relação entre Schreber e Flechsig no deflagrar do segundo surto. Esta
transferência tornará presente, posteriormente, o pensamento de que ―seria belo ser uma
mulher e submeter-se à cópula‖ e a inundação de libido que culminou no aparecimento
das vozes que lhe exigirão a entrega de seu ―corpo e destino pessoal‖ como objetos da
sondagem e gozo de seu médico. Por último, cabe ainda frisar, que grande parte do que
levara Freud a pensar o caráter homossexual da relação entre Schreber e seu médico e,
depois, entre Schreber e Deus, era, propriamente, o núcleo, apenas esboçado em 1911,
do conceito de narcisismo, em que o eu, perante as incidências pulsionais, seria tomado
como um objeto. Deste modo, a ―dita‖ homossexualidade se apresentava na paranóia
apenas secundariamente, como um efeito da incidência, sobre o eu, de uma irrupção
pulsional. Isto permite apreender, por exemplo, porque Schreber, ―enquanto sadio‖, não
demonstrou ―qualquer sinal de homossexualidade‖ (FREUD 1911, p. 82).
Logo, a hipótese da homossexualidade como causa da paranóia exige ser
relativizada desde as considerações sobre o narcisismo, o retorno do ―rejeitado‖ e a
inundação do aparelho psíquico por uma torrente pulsional no surto psicótico.
181

Por outro lado, resta, ainda, a nós, considerar a posição de Freud de que o
mecanismo da projeção é insuficiente para dar conta da perplexidade e da catástrofe
pulsional que se fazem presentes no retorno de uma mensagem que se impõe de forma
não articulada sobre o sujeito na psicose. Para tocarmos neste ponto, retomemos mais
uma vez o esquema £ da fala.

Conforme vimos no capítulo V (p. 137), o esquema £ é construído, por Lacan,


com o intuito de desvelar a estrutura de linguagem tal qual esta se faz presente na
enunciação. Intenciona-se, com este esquema, captar o aparecimento de um outro
radicalmente Outro, posto pela estrutura da própria fala, na qual o sujeito − e não
apenas um eu − recebe seu lugar no instante exato do enunciar, no retorno de
significantes que esta presentifica sobre aquele que fala. A fala seria, então, um dos
casos em que se torna possível apreender o quanto ―o estado do sujeito S (neurose ou
psicose) depende do que se desenrola no Outro A‖ (LACAN 1956-57, p. 555). Tal
articulação em elementos discretos − o significante − parcializa a intuição de fluxo com
que o falante experimenta sua existência e torna-se atual, para este, através do efeito de
corte. É, logo, no aparecimento do significante como descontinuidade, vindo do lugar
―A‖, que os sinais presentes no enunciado terão seus valores estipulados. Há, pois, uma
anterioridade estrutural do significante em relação ao sujeito, anterioridade que se
desvela na medida em que tal sintaxe é imanente à própria linguagem.
Não obstante, vimos que, no dizer psicótico, ―A‖ não é evocado como lugar,
antes disso o inconsciente se impõe pela veiculação do dizer entre a e a‘, na paranóia,
ou pela materialidade da alucinação sem suporte, como é habitual nas esquizofrenias.
Retomemos, agora, a gramática delirante proposta por Freud. Façamos isso à luz
do esquema £ já evocado por nós. Segundo cogitamos, a projeção opera, nas neuroses,
de tal forma que aquilo que retorna do Outro sobre o sujeito (o significante que o
designa na cadeia significante) não é assumido como se lhe representasse, mas, sim −
através do modo de operação inerente ao eixo imaginário (a – a‘) do esquema £ − é
atribuído ao outro ―a‖. Este mecanismo pode aqui se articular segundo os princípios de
uma verdadeira denegação: ―Não sou eu que..., é ele que...‖. Há, pois, neste uso, uma
junção entre projeção e recalque.
182

Existem, neste caso, denegação e compromisso: o recalcado retorna e, pela


comutatividade entre eu e outro, o falante poderá se acomodar e não atuar através de um
ato responsável. Lacan chamará, no início dos anos 50, esta tentativa do falante de fazer
consistir esta homeostase discursiva de fala vazia. Tal forma de desconhecimento,
habitual na neurose, não incorrerá, porém, para o sujeito, no mergulho em um estado de
perplexidade. Frente ao retorno do significante vindo do Outro, não há uma
desagregação do circuito da fala. Também, aqui, dificilmente ocorrerá algo da ordem de
uma catástrofe pulsional nem, tampouco, um desfalecimento da realidade psíquica.
Poderíamos, então, atribuir a este mecanismo o papel central naquilo que Freud
construiu sob a designação de gramática delirante? A resposta a esta questão será,
percebe o próprio Freud, incerta. A este respeito, ele enumerará dois motivos:

Em primeiro lugar, a projeção não desempenha o mesmo papel


em todas as formas de paranóia; e, em segundo, ela faz seu
aparecimento não apenas na paranóia, mas, também sob outras
condições psicológicas, e de fato é-lhe concedida participação
regular em nossa atitude para com o mundo externo. Pois,
quando atribuímos as causas de certas sensações ao mundo
externo, ao invés de procurá-las (como fazemos no caso dos
outros) dentro de nós mesmos, esse procedimento normal
também merece ser chamado de projeção (FREUD 1911, p.
89).

Neste instante, Freud, ao dar-se conta, já em 1911, da insuficiência da projeção


para a apreensão da singular relação entre o psicótico e o inconsciente, proferirá uma
sentença que alojará não a projeção, mas, sim, a Verwerfung, o ―retorno desde fora‖,
como operação inerente à psicose: ―Foi incorreto dizer que a percepção suprimida
internamente é projetada para o exterior; a verdade é, pelo contrário, como agora
percebemos, que aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora‖ (idem, p. 95).

A.3): Terceiro ponto: A dissolução imaginária


No decorrer de nosso trabalho, intentamos explicitar o quanto a experiência
clínica com a psicose torna presentes fenômenos que não se reduzem apenas à
mecanismos imaginários como a projeção. Há, na esquizofrenia, certos acontecimentos
que se fazem presentes não apenas por uma proliferação no eixo imaginário, mas que,
em verdade, promovem uma verdadeira explosão deste registro, por meio de um
despedaçamento da imagem corporal e da imagem do próprio semelhante.
183

Destes últimos fenômenos Schreber nos deu seu testemunho ao relatar, em suas
Memórias, uma das fases mais dolorosas de sua experiência, a saber, o ―crepúsculo do
mundo‖. Naquele instante, ele não podia sequer dirigir a palavra a ninguém, visto que as
pessoas haviam se tornado, meramente ―homens feitos às pressas‖. À noite, estranhas
criaturas lhe apareciam e se punham a andar por todo seu corpo, impedindo-o, com isso,
de dormir. Durante seus escritos podemos ainda localizar várias referencias seja sobre a
decomposição de seus órgãos seja sobre as alterações que viriam transformar, num
espaço de tempo infinitizado, seu corpo num corpo feminino.
Ora, também para ele houve a presença de fenômenos de mensagem que
emergiam junto à alteração em larga escala de sua realidade. Aqui, porém, estes se
fizeram presentes pela vocalização de mensagens que, para além do suporte a-a‘,
surgem sonorizadas e interrompidas, exigindo por parte de Schreber, grande esforço
para se fazerem suplementar. Lacan, em seu texto De uma questão preliminar a todo
tratamento possível da psicose (1956-67), sublinha alguns deles:

Dessa estrutura, o sujeito nos fornece os seguintes exemplos


(S. 217-XVI [Memórias..., p. 176]): (1) Nun will ich mich
(agora eu vou me...); (2) Sie sollen nämlich... (Você deve de
fato...); (3) Das will ich mir... (nisso eu quero), para nos
atermos a estes, aos quais ele tem que retrucar com seu
suplemento significativo, que não lhe traz dúvidas, a saber: (1)
render-me ao fato de que sou idiota; (2) quanto a você ter
exposto (palavra da língua fundamental) como renegador de
Deus a efeito de libertinagem voluptuosa, sem falar no resto;
(3) pensar bem. (LACAN 1956-57, p. 546)

Como há pouco vimos, nas neuroses o retorno da mensagem do Outro é, muitas


vezes, balizada na articulação ―projeção-recalque‖ − Lacan a isto chamou de ―fala
vazia‖. Nestes casos, há formação de sintoma e solução de compromisso entre o eu e o
recalcado. Contrariamente a isto, nas paranóias, vimos, por meio da gramática delirante
de Freud, que o delírio emerge como uma tentativa de acomodar a aparição
perplexizante do inconsciente. Tanto na paranóia quanto na esquizofrenia (em que a
alucinação não passa pelo crivo do eixo a – a‘ e do sentido) há algo diverso uma ―falha‖
radical da projeção frente à mensagem do Outro. Haveria, neste ―fracasso‖, não uma
formação de compromisso, mas uma dramática transformação que, nas esquizofrenias,
pode culminar na total ―alteração do eu‖, processo de reconstrução que tem como
finalidade possibilitar a acomodação daquilo que foi rejeitado e retorna vindo de fora:
184

A defesa fracassa instantaneamente quando do retorno do


recalcado sob forma distorcida; e os delírios assimilatórios só
podem ser interpretados como o início da alteração do ego,
como uma declaração de derrota, e não como um sintoma de
defesa secundária. O processo termina, quer na melancolia
(sensação de pequenez do ego), (...) quer como acontece mais
freqüentemente e com maior gravidade nos delírios protetores
(megalomania), até o ego ser completamente transformado
(FREUD 1895b, p.168).

Em verdade, ao longo de sua experiência com a psicose − e neste sentido a


análise dos escritos de Schreber é paradigmática − Freud conceberá esta alteração cada
vez menos em termos de ―fracasso‖. Isto porque este processo de alteração pode,
também, comportar um trabalho em que se empenhe o sujeito, mesmo que tal trabalho
se dê pela dolorosa via de uma (re)construção da identidade e realidade. Tais fatores
podem, no decorrer de uma escuta analítica, ser postos a favor do sujeito na tentativa de
apaziguar o retorno ―daquilo que vem de fora‖. Lacan, em 1956, daria o nome de
dissolução imaginária para esta perda de consistência do registro imaginário perante
esta incidência, ―de fora‖.
Vimos que, para Freud, tal ordem de alterações é tratada como efeito de um
evento ao nível da estrutura do aparelho psíquico, nas relações entre pulsão e
representação. É, pois, seguindo esta orientação que, em seu texto sobre as Memórias,
Freud relaciona o surto psicótico com o retorno da libido, retirada do mundo externo,
sobre o ―eu‖ do sujeito. Há, assim, nas paranóias, um ―retorno ao estádio do
narcisismo87‖ ou, na esquizofrenia, um ―retorno ao autoerotismo 88‖ (FREUD 1911).
Como vimos no capítulo anterior, ao desligar a libido do ―mundo externo‖, ao contrário
da ―vida mental normal‖ e das ―neuroses de transferência‖, há a possibilidade, nas
psicoses, de ocorrer uma espécie de ―catástrofe mundial‖ ou experiência de ―fim do
mundo‖:
O paciente retirou das pessoas de seu ambiente, e do mundo
externo em geral, a catexia libidinal que até então havia dirigido
para elas. Assim, tudo se tornou indiferente e irrelevante para ele,
e tem de ser explicado através de uma racionalização secundária,
como ‗miraculado, apressadamente improvisado‘. O fim do
mundo é a projeção dessa catástrofe interna; seu mundo subjetivo
chegou ao fim, desde o retraimento de seu amor por ele (FREUD
1911, p.93-4).

87
Que pode se alastrar até uma não diferenciação entre eu e outro.
88
Freud, em seu Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), critica a posição
Havelock Ellis, que concebia o auto erotismo de forma a excluir a intervenção materna
no despertar da pulsão na criança.
185

Seja por meio do surto − ou, ainda, por meio de um processo menos ruidoso −
pode se deflagrar, para o psicótico, uma inconsistência dos objetos e do mundo externo:
libidinalmente abandonados, estes se tornam indistintos e, literalmente, estes se
dissolvem. Isto se contrapõe, portanto, à retirada do investimento nas neuroses. No ano
de 1914, Freud, em Sobre o narcisismo, uma introdução, nos dirá a este respeito que ―o
neurótico de forma alguma abandonou sua relação com o mundo, ele ainda as retém na
fantasia (FREUD 1914a, p. 90)‖.
Assim, se nas neuroses, o retorno da libido incide sobre as fantasias, no surto
psicótico, as representações que estruturavam de forma até então estável a realidade e o
eu do sujeito deixam de mediar o investimento libidinal. Ora, também para Lacan esta
função do eu como possível mediador do pulsional para o sujeito já havia recebido, em
seu seminário de 1953-54, um encaminhamento. Neste momento, a esquizofrenia, assim
como dois casos de psicose infantil − o caso Dick, de Melanie Klein e o caso Robert, do
Rosine Lefort − levariam-no a tirar conseqüências, para a estruturação da realidade para
o sujeito, da posição por este último assumida perante o significante e o pulsional.
Para explicitar tal função, Lacan retoma as elaborações que o haviam motivado,
alguns anos antes, a republicar, em 1949, suas considerações sobre o ―estádio do
espelho‖. Segundo ele ali o diz, a condição para a assunção da imagem corporal pelo
sujeito deve obedecer às disposições ou coordenadas dadas pelos significantes, a
―matriz simbólica‖. Há, portanto, no processo de estruturação do sujeito, uma espécie de
―dupla alienação‖ (LACAN 1955-56, p. 274): de um lado, o sujeito recebe do Outro o
significante que dará suporte ao advento de uma imagem, o ideal do eu. De outro lado,
há, numa segunda alienação, a apropriação das imagens veiculadas a partir do
semelhante ―a‖, pequeno outro.
Em nosso trabalho, já destacamos a predominância desta ―matriz simbólica‖ −
em sua relação com o sujeito e, portanto, para além do eu − num modelo que
reproduziria, em linhas gerais, esta mesma lógica: trata-se do esquema £, em que ―o
estado do sujeito S (neurose ou psicose) depende do que se desenrola no Outro A‖
(idem, p. 555). Todavia, há, nos casos de esquizofrenia ou em casos de psicose infantil
seja o esfacelamento da imagem corporal seja, ainda, a chance de que tal imagem não
venha, em absoluto, se constituir. Em ambos os casos, o campo da realidade pode vir,
de fato, a se encontrar mergulhado em um estado de profunda indiferenciação. Nestes
casos pode-se chegar, portanto, ao ponto crítico de uma implosão imaginária: não há
―nem outro nem eu‖ (LACAN 1953-54, p. 85).
186

Os acontecimentos que sobrevém para estes sujeitos do mundo externo são


recebidos ora com total apatia, ora como insuportáveis intrusões. Lacan observará, a
este respeito, que há certa ―pobreza‖ do mundo imaginário. Esta pobreza, para além de
um déficit, é uma conseqüência do modo de relação do sujeito com os significantes que
lhe vêm, no processo de simbolização, do Outro. Para falar disto, Lacan utilizará, em
1954, um experimento oriundo da física, que ele irá denominará de ―esquema ótico‖:

Com tal experimento, ele busca sustentar que é preciso que o sujeito
(representado na figura pelo olho) se encontre alojado em uma determinada posição
para que a ―ilusão‖ de uma forma corporal minimamente coesa, como o eu, possa se
constituir. As flores, neste esquema, representam as pulsões desorganizadas que, em
caso de um sucesso na formação da imagem, aparecerão sobre o bocal. Logo, são as
coordenadas simbólicas que indicarão a ―boa posição‖ para que tal imagem apareça.
Para Lacan, este lugar simbólico dado ao sujeito será a ele disposto pelo intermédio da
voz daquele que, da criança, vem a se ocupar.
Vemos como, já aqui, é a mensagem que vem do Outro para o sujeito aquilo que
comanda a operação. É, de fato, a partir desta ―matriz simbólica‖ que se constitui a
primeira diferenciação entre continente e conteúdo, aquilo que concerne e o que não
concerne ao eu. Tal formulação de Lacan, como já o dissemos, deixa claro que não pode
haver para o analista confusão entre ―eu‖ e ―sujeito‖. Desconhecer este passo incorre em
destituir tanto a descoberta freudiana − que desaloja o eu como centro do aparelho
psíquico − quanto os esforços estabelecidos, pelo sujeito, em casos de psicose infantil e
esquizofrenia.
Nestes últimos casos, será justamente esta primeira diferenciação, na
constituição de um eu para o sujeito, aquilo que, no surto, se desagregará: ―... na
esquizofrenia, algo se passa que perturba completamente as relações do sujeito ao real, e
embaralha o fundo e a forma‖ (LACAN 1953-54, p. 135). Portanto, quando o arranjo da
imagem corporal − que ainda que não se confunda com o sujeito vem oferecer certo
suporte ao emaranhado das pulsões − se decompõe, as relações entre o sujeito, sua
187

imagem e a pulsão sofrerão um profundo remanejamento. É isto o que, ao retomarmos


os dizeres de Freud a respeito da a experiência de ―fim de mundo‖ vem se desvelar: há
um desligamento radical da libido do mundo externo e um retorno desta sobre o sujeito.
Nas psicoses, ou mais apropriadamente falando no desencadeamento psicótico, irrompe,
no aparelho psíquico, uma corrente maciça de libido não-ligada às representações; o
circuito pulsional colapsa e passa a funcionar sem considerar a dialética entre os traços
psíquicos já inscritos ou mesmo um objeto pulsional circunscrito como externo ao
sujeito por meio destas representações.

Assim, para Freud e para Lacan, tal ordem de acontecimentos, o delírio, os


fenômenos de mensagem e a dissolução imaginária, vem exigir, por sua relação com o
efeito sujeito, um recurso à estrutura do inconsciente; eles evocam o surgimento de um
significante que, ao contrário de representar o sujeito por seu aspecto simbólico, advirá
proveniente do registro do real, não simbolizado.
Pois bem, se trata-se, na psicose, do retorno da mensagem do Outro sob o sujeito
desde ―fora‖, Lacan observará, nos anos 50, que tal retorno apontará − a exemplo da
significação delirante e da alucinação − um obstáculo à articulação da estrutura
inconsciente. Mas, a partir dos desdobramentos mais tardios do ensino de Lacan, esta
‗clínica clássica das psicoses‘ – que, freudianamente, reúne, desde os diferentes tipos de
desencadeamentos, a esquizofrenia, a psicose maníaco-depressiva e a paranóia −,
encontrará uma relativização no que tange a não inscrição do significante paterno como
qualificativo da foraclusão. É que o Nome-do-pai, doravante nome-do-pai, será
pensado, ele também, como uma suplência, como tentativa de equacionar algo que não
se inscreve para todos e que marca, para cada um, um limite à articulação significante: a
não relação sexual. A ‗não-conexão‘ será, pois, não a exceção, mas a regra, no que diz
respeito à incidência das diferentes dimensões da linguagem para o falasser.

B) Da metáfora paterna à metáfora delirante


Ao aproximarmo-nos do aporte lacaniano à noção de Verwerfung desde a noção
de foraclusão, apreendemos que este conceito, no ensino do psicanalista francês, dera-
se, ao menos num primeiro momento, a partir de uma oposição à inscrição do pai, não
como imagem, ameaça imaginária de castração, ou fenômeno cultural, mas, sim, como
Nome-do-pai, operação que permite, como metáfora, simbolizar as primeiras relações
do falasser com a alteridade, com o significante e com o gozo:
188

A Verwerfung será tida por nós, portanto, como foraclusão do


significante. No ponto em que, veremos de que maneira, é
chamado o Nome-do-Pai, pois pode responder no Outro um
puro e simples furo, o qual, pela carência de efeito metafórico,
provocará um furo correspondente no lugar da significação
fálica (LACAN 1956-57, p. 564).

Por esta perspectiva, a inscrição do significante Nome-do-pai − e seus


desdobramentos em termos de significações falicamente determinadas −, poderia ser
tomada como ‗via régia‘ para a inscrição do sujeito na cultura. Porém, retomenos, aqui,
a fórmula que, segundo Lacan, permite apreender, em sua efetividade, a operação de
inscrição do Nome-do-pai a partir do momento que o falasser, perante este, diz seu sim,
ou seja, desde o momento em que realiza-se a Bejahung deste significante.
Como disséramos, num momento mítico, o sujeito é confrontado, pela presença
e ausência daquele que lhe dispensa cuidados, não com a experiência de frustração por
sua partida, mas, por sua presença como um ―+‖ e sua ausência como um ―-‖. Neste
jogo que alterna ―+‖ e ―-‖ estes sinais podem ser organizados de forma que a ausência
materna possa ser simbolizada não apenas como ―não presença‖ − o que redundaria
numa lógica binária −, mas, de modo que a ausência materna possa ser simbolizada por
um mais além, a presença do pai. Neste caso, mais que uma ternaridade, dispõe-se para
o sujeito uma disposição quaternária, em que a mãe dirige-se, em sua ausência, ao pai,
por buscar junto a este o falo, objeto de seu desejo − que não coincide com o sujeito.
O Nome-do-pai evoca, pois, para o falasser uma forma de encaminhar a questão
do feminino: ‗esta mulher que se ocupa de mim busca, no movimento que provoca seu
desejo, o falo‘. O sujeito é, então, nesta dialética, mergulhado na questão de ser ou não
ser, de ter ou não ter o falo, questão que exigirá por parte deste que se registre a
castração: buscar ser ou ter o falo implica já em não sê-lo, mas tomá-lo como referência
na dialética do desejo. Junto àquela que, por meio desta simbolização terá sido sua mãe,
o infante poderá se aproximar, com o aparato fálico, da questão do ‗que quer uma
mulher‘. Lacan representa este momento de simbolização da seguinte maneira, através
da fórmula da metáfora:
Primeiro significante traumático e sem sentido

Segundo significante substituidor do primeiro


Inscrição de um significante atrelado a um significado
189

Pela simbolização inerente à inscrição do Nome-do-pai, há, na dimensão


sincrônica, metafórica, a substituição de um primeiro significante, traumático e
enigmático, por um segundo significante, que relativiza o primeiro, reservando, como
resultado de sua intervenção, um lugar que permite evocar, no campo do significado,
abaixo da barra, o atrelamento à significação. No caso da metáfora paterna, dá-se, como
já o disséramos, que o significante inicial, traumático − por sua incidência sobre a carne
do falasser − e enigmático − pela opacidade que lhe furta do campo do sentido −, é
significado, a posteriori − a partir da incidência do segundo significante −, como Desejo
materno. Este significante inicial, assim, terá sido o ―Desejo da mãe‖, porque referido à
intervenção do pai:

Nome do Pai Desejo da Mãe A


. → Nome do Pai
Desejo da mãe significado para o sujeito Falo

Se na foraclusão, diz-nos Lacan então, o sujeito é convocado a fazer apelo ao


pai, onde se esperaria o apoio do significante paterno e da significação fálica
comparece, por sua não inscrição, um furo, de um lado, no registro do simbólico (P 0) e,
de outro, no registro imaginário (φ 0). Uma apresentação desta conjuntura para um
psicótico seria trazida por Lacan em seu esquema I, que representa a realidade psíquica
assim como esta se encontrou estruturada, em determinado momento, para Schreber:

No registro imaginário ―I‖


a ausência da significação No registro simbólico ―S‖, a
fálica (φ 0). não inscrição (P0) do sgte do
Nome-do-pai)

A metáfora paterna, assim, operaria como a via régia da estruturação subjetiva,


sua ausência na psicose, seria responsável por uma catástrofe subjetiva em que
pululariam os fenômenos descritos no tópico anterior: o delírio, a alucinação e a
dissolução imaginária. Desde este paradigma a ―solução elegante‖ – por sua efetividade,
desdobramentos e economia – seria, na psicose, a suplência ao pai construída sob a
forma da ―metáfora delirante‖.
190

B. 1) A ―solução elegante‖
Em suas Memórias, Schreber parece ter atribuído às perturbações ocorridas em
seu mundo libidinal uma falta num duplo sentido: de um lado, numa geração anterior,
um Flechisig subtraíra, pelo ―assassinato de almas‖, algo dos integrantes da família
Schreber; de outro lado, este ‗crime‘ fora uma transgressão da ―Ordem das coisas‖, ou
seja, uma espécie de ‗delito em escala cósmica‘. Desde então, caberia a Schreber, como
engrenagem necessária na ―Ordem das coisas‖ − posto que Deus nada entende do
mundo dos vivos − restaurar a harmonia cósmica.
O significante ―Ordem das coisas‖ – delirantemente constituído − emergia, por
outro lado, como forma de tratar a irrupção da alucinação que precipitara-o em seu
segundo surto, mais agudo: ―como seria belo ser uma mulher e se submeter ao coito‖.
Se, pela não inscrição do falo como mediador nas relações com a alteridade Schreber
não pode intentar ser o falo que falta à mãe – dialética própria à neurose – ele seria, ―a
mulher que falta aos homens‖ (LACAN 1957-1958, p. 572) ou talvez, como parece ser
mais condizente com o delírio schreberiano, ―A mulher de Deus‖.

Ordem das coisas Como seria belo ser uma 1


mulher e se submeter à cópula → Ordem das coisas
A mulher
Como seria belo ser uma de Deus
mulher e se submeter à cópula X

Como via para tratar o pulsional, Schreber ensaia uma inédita e não fálica
tentativa de sexuação delirante: ―É surpreendente saber que Schreber faz distinção entre
um estado de beatitude masculino e outro feminino. O estado masculino de beatitude
era superior ao feminino, que parece ter consistido principalmente numa sensação
ininterrupta de voluptuosidade‖ (FREUD 1911, p. 46).
A prevalência, entretanto, do estado ―ininterrupto‖ de volúpia, ligado à
inundação do aparelho psíquico pela libido, não é para Schreber uma diferenciação
descontínua, mas correlata à sua emasculação. Neste processo − deflagrado a partir da
transferência para com seu médico, Flechsig − se parece esboçar-se certa distinção entre
os sexos, não é o caso de pensá-la como partilha fálica; trata-se, antes, de uma
modalização de gozo operada desde o significante delirante ―Ordem das coisas‖. É neste
sentido – como modalização e não como partilha – que o livre trânsito entre os ‗sexos
delirantes‘ coadunou-se com o fenômeno da ―emasculação‖:
191

A emasculação, agora, não era mais uma calamidade; tornava-


se ―consoante com a Ordem das coisas‖, assumia seu lugar
numa grande cadeia cósmica de eventos e servia de
instrumento para a recriação da humanidade, após a extinção
desta. (...) Por esse meio, fornecia-se uma saída que satisfaria
ambas as forças em contenda. Seu eu encontrava satisfação na
megalomania, enquanto que sua fantasia feminina de desejo
avançava e tornava-se aceitável (FREUD 1911, p. 67).

Deste modo, a emasculação de Schreber, assim como a dissolução de sua


identidade e de sua realidade, são fenômenos imanentes não apenas à rejeição, ao nível
do aparelho psíquico, da castração, mas, sim, a uma tentativa de resposta deste louco em
relação ao pulsional. A breve estabilização que se seguiu deu-se apenas por equacionar,
via delírio, uma ancoragem do pulsional por meio de uma metáfora delirante, uma
suplência que − como diz Lacan em seus Escritos − é uma via transexual (LACAN
1957-58, p. 575). Não apenas ele, mas também Deus, se faziam, agora, concernidos por
esta ―Ordem das coisas‖. O resultado desta construção alojaria, porém, Schreber como
objeto de gozo: engrenagem indispensável ao mundo vindouro e ―Mulher de deus‖.

C) Dos limites da metáfora paterna


à pluralização dos nomes-do-pai
Se, porém, a metáfora paterna permitia, por sua intervenção, a simbolização da
incidência de significantes traumáticos e enigmáticos, alojando o falo como mediador e
significado das idas e vindas do Outro, a percepção do real não apenas como ‗não
simbolizado‘, mas, como ‗impossível‘, dispôs uma conjuntura tal que sua efetividade
não poderia ser absoluta, ‗sem restos‘. De certo modo, vimos como Freud pudera
vislumbrar, a propósito da questão da vertente ‗não ligada‘ da pulsão e do ‗retorno ao
estado anterior‘ – característicos da pulsão de morte – os limites da vinculação do
pulsional a esfera representacional. É neste esteio que destacamos (p. 106) a afirmação
freudiana, que aloja no embate mais fundamental que o Édipo − entre Eros e pulsão de
morte −, o horizonte de outros modos possíveis de apresentação do mal-estar:

Esse conflito [eterna luta entre Eros e o instinto de destruição


ou morte] é posto em ação tão logo os homens se defrontem
com a tarefa de viverem juntos. Enquanto a comunidade não
assume outra forma que não seja a da família, o conflito está
fadado a se expressar no complexo edipiano, a estabelecer a
consciência e a criar o primeiro sentimento de culpa (FREUD
1930b, p. 135).
192

Este conflito fundamental que, transbordando o Édipo, presentifica o que escapa


a simbolização − que não se equaciona em termos de representação e que, a fortiori, põe
em xeque a absolutização do pai simbólico como ferramenta universal e infalível −
encontra desdobramentos em outro texto freudiano, A perda da realidade na neurose e
na psicose (FREUD 1924d).
Neste texto, Freud dá um passo além em relação a seu artigo, escrito pouco
antes, Neurose e psicose (FREUD 1923) – em que Freud localiza o conflito na neurose
―entre o eu e o isso‖ e, na psicose, ―entre o eu e a realidade‖. Um ano após, em 1924,
Freud assevera que, na neurose e na psicose, o isso mostra-se ―incapaz‖ de ―adaptar-se a
realidade‖, sendo, de um lado, a ―pulsão recalcada incapaz de conseguir um substituto
completo‖ e, por outro, não podendo a representação da realidade ―ser remodelada em
formas satisfatórias‖ (idem, p. 208). Ante a esta ‗falha‘ Freud concluirá:

Por conseguinte, a diferença inicial assim se expressa no


desfecho final: na neurose, um fragmento da realidade é evitado
por uma espécie de fuga, ao passo que na psicose, a fuga inicial
é sucedida por uma fase ativa de remodelamento; na neurose, a
obediência inicial é sucedida por uma tentativa adiada de fuga.
Ou ainda, expresso de outro modo: a neurose não repudia a
realidade, apenas a ignora; a psicose a repudia e tenta substituí-
la. Chamamos um comportamento de ‗normal‘ ou ‗sadio‘ se ele
combina certas características de ambas as reações — se
repudia a realidade tão pouco quanto uma neurose, mas se
depois se esforça, como faz uma psicose, por efetuar uma
alteração dessa realidade (FREUD 1924d, p. 123).

Surpreendentemente, para Freud, desvela-se não apenas uma falha fundamental


na relação do sujeito com a realidade, mas, também, o recurso que é a resposta psicótica
na construção de uma postura ―sadia‖. Em ambos os casos reitera-se uma via que
permite relativizar a inscrição do pai simbólico, em ao menos dois outros pontos.
Primeiramente, notemos que Lacan − ao alojar a metáfora como articuladora da
incidência traumática do significante – faz da metáfora uma operação que deve ser posta
em marcha, não sendo, portanto, algo necessário ou natural. Dito de outro modo, a
metáfora paterna é já uma suplência em relação a um estado inicial – ainda que mítico –
de coisas no qual o significante inicialmente desarticulado se presentifica, para o sujeito,
como trauma – causando o gozo (LACAN 1972-3, p. 36) – e como enigma – ausência
de significação (sendo esta um efeito da articulação significante). Esta dupla incidência
do significante desarticulado, segundo pensamos, pode ser explicitada pelos algoritmos:
193

S1 → a Significante em sua propriedade de causar o gozo versus S/x Significante que, por sua não articulação a
a propriedade, ressaltada por Lacan até então, de ser apenas outro, não produz efeitos de significado.
o que representa o sujeito para outro significante)

Se, como afirmamos, a incidência do significante desarticulado sobre o falasser


deixará de ser uma exceção, vindo a se tornar, paradoxalmente, uma regra –
paradoxalmente, pois se isto se dá ‗para todos‘, é a ‗cada um‘ que caberão incidências e
desdobramentos sempre singulares −, tal fato ganha corpo desde a introdução por
Lacan, nos anos 70, da noção de ―alíngua‖.
Com este conceito, Lacan engloba aquelas manifestações significantes não
concernentes a um saber estruturado, ou seja, as intervenções linguageiras que ―não se
inscrevem no âmbito social da língua, ignoram a comunicação e não visam ao outro‖
(BASTOS e FREIRE, 2006, p. 33). Dito de outro modo, este conceito lacaniano
permite, de um só golpe: 1) apreender o significante em sua faceta de ―causa de gozo‖
(LACAN 1972-3, p. 36), vale dizer, em sua incidência ―afetiva‖ no corpo do falasser; e,
2) como ―enxame de significantes‖ (idem, p. 196), permite atingir acontecimentos em
que o significante encontra-se não engajado − em sua função de produção de sentido ou
representacional, mas, sim, como incidência ―afetiva‖, gozosa:

Alíngua nos afeta primeiro por tudo que ela comporta como efeitos
que são afetos. Se se pode dizer que o inconsciente é estruturado
como uma linguagem, é nos efeitos de alíngua, que já estão lá como
saber, vão além de tudo o que o ser que fala é suscetível de enunciar
(LACAN 1972-3, p. 196).

Desde este conceito, torna-se possível apreender a estrutura da linguagem e a


articulação significante não como um a priori – o que alojaria a foraclusão psicótica
como déficit em relação à articulação metafórica −, mas como ―elucubração de saber
sobre alíngua‖ (LACAN 1972-3, p. 190) − ou seja, como uma das conjugações
possíveis deste enxame. Dito de outro modo, a passagem de alíngua pelo crivo do
discurso do mestre e sua articulação em elementos discretos, descontínuos − até então
parâmetro na apreensão do inconsciente pensado como ―estruturado como uma
linguagem‖ −, torna-se apenas um subgrupo dentre os diversos tipos de saber-fazer.
Poder-se-ia dizer, então, que em seu último ensino, Lacan desliza a ênfase da
articulação formal do significante para uma vertente mais artesanal do trabalho de
escrita do impossível e do gozo. O conceito de ―alíngua‖, deste modo, ao tomar a
articulação significante como um efeito se erige como importante operador no que tange
a novas parcerias entre o analista e o psicótico.
194

Num outro ponto da relativização da metáfora paterna, encontram-se os limites


daquilo que pode ser esperado da incidência paterna enquanto meramente simbólica.
Isto porque, após anos 50, Lacan fará central para o psicanalista não apenas o enigma do
―que quer uma mulher?‖ – que, via, metáfora paterna, era balizado pelo falo − mas, sim,
aquele que assevera que ―A mulher não existe‖– trabalhado por nós no capítulo IV.
Emerge, desde este deslocamento, tanto a impossibilidade de uma cópula significante
‗sem restos‘ − como parece sugerir a metáfora paterna assim como esta é disposta nos
50 − quanto a emergência, em toda sua profusão, de outro enigma: ‗o que é um pai para
um sujeito?‘ − o que faz suplência, para ‗cada um‘ e não ‗para todos‘, à ―não existência
da relação sexual‖?
Tais questionamentos conduzem-nos a uma espécie de ‗pluralização‘ que não
apenas dessacraliza o Nome-do-pai como via régia da estruturação subjetiva – devindo,
agora, nome-do-pai – mas, que aloja, em seus desdobramentos atuais, sua disposição
como ―nomes-do-pai‖. Isto porque, no último ensino de Lacan, mais que ao pai morto −
significante presente na operação metafórica −, é como vivo, como ato de nomeação ou,
ainda, ao ―tomar uma mulher‖ – em contraposição ―A mulher‖, que não existe – ―como
causa de desejo‖ – que o pai merecerá, por parte do sujeito, ―respeito‖ (LACAN 1975-
6). É, assim, pelo que um pai transmite em sua relação particular com o desejo − e,
portanto, pelo que de sua função não é universalizável −, que se abre a via para o sujeito
da transmissão não de uma metáfora, mas de um saber de ato, de um ―saber fazer aí‖–
no ponto exato em que desvela-se, para o sujeito, a falta de significantes no Outro que
lhe sirvam de garantia.
A dessacralização do nome-do-pai tem, pois, como efeito, desvelar que o pai
atua justamente por ser uma equação simbólica falha, tendo sua efetividade atrelada ao
alojar um lugar ao resto, operação que não se basta em sua faceta simbólica. Um dos
desdobramentos possíveis desta operação é o de, ao encontrar este resto, fazer deste
causa e não impotência; o pai, neste sentido, pode operar como uma père-version. A
este respeito, Lacan afirmará que o pai atua não como metáfora ou dito, mas, sim, como
―justo não-dizer‖, em que algo se transmite sob a ―condição de que não seja demasiado
transparente este não dizer, ou seja, que não se veja imediatamente de que se trata no
89
que ele não diz‖ (LACAN 1975). Este pai contrapõe-se a outro pai possível, o de
Schreber, que, desde o lugar de exceção, ―profere a lei sobre tudo‖ (idem).

89
Seminário 22, lição de 21 de janeiro de 1975.
195

O pai, logo, realiza sua relação com o impossível sendo, ele próprio, um nome
não-todo pronunciável, que participa ele também do enigmático. Isto levaria Lacan, ao
falar do ―Despertar da primavera‖, de Wedekind, a pensá-lo como ―uma face da Deusa‖,
como ―mascarado‖, como ―o nome do nome do nome‖ (LACAN 1974, p. 131).
Este ato, que aloja o indizível no dito, possibilita não a substituição de um
significante por outro, mas, sim, o enodamento do simbólico ao real, a nomeação. Esta
via, a nomeação – portanto, um ato que implica um dizer, sempre singular – é outro
avatar deste pai pluralizado. Nesta vertente o pai não mais apenas pacifica o Outro,
tornando-o o lugar da verdade do sujeito, mas dirige-se ao significante desarticulado,
―causa de gozo‖ e ao resto da operação − impossível de simbolizar − este objeto ―a‖,
indizível, no qual ele reconhece sua causa.
Há, ainda, Lacan faz-nos saber, para além do encaminhamento disposto pela
père-version, outras versões de pai, que marcam, por sua incidência, a passagem do
Nome do pai, ao ―pai do nome‖ (LACAN 1975-6, p. 23). O nome-do-pai torna possível
assim, por sua faceta de nomeação, que se faça do nome uma borda que aponta para o
que se encontra interior-exterior ao simbólico, o real. Neste sentido, aquilo que Lacan
chamará nomes-do-pai pode dizer respeito, também, a operação de nomear cada um dos
diferentes registros de forma a articulá-los: ―Bem, os nomes-do-pai é isso: o simbólico,
o imaginário e o real (...) nomes primeiros enquanto nomeiam algo‖ (LACAN 1974-5).
Em que isto colabora para a elucidação de nosso problema, o fora-da-lei fálica que é a
psicose?
Ora, conforme pontua Zenoni, ―De Lei para todos, fundamento universal, o
Nome-do-pai se desloca assim para uma multiplicidade de suplentes, ou seja, para a
multiplicidade de ‗exceções‘ à lei que tem o papel de fundamento da lei‖ (2007). Estes
desdobramentos, que apontam para maneiras singulares de articular real, simbólico e
imaginário, culminam no que, em suas considerações sobre James Joyce, Lacan chama
de ―Sinthome‖. Formas de articulação dentre as quais a maneira fálica é apenas uma, o
Sinthome – que atrela, borromeanamente os três registros – e formas ainda mais diversas
de atrelamento, acomodação e ancoragem − apontam para suplências cada vez mais
particulares.
196

Chegamos, assim, aos debates clínicos realizados na década de 90 sobre as


psicoses. Dos ―efeitos de surpresa‖ – que remanejam o dispositivo clássico desde a
reecepção de psicóticos, até as psicoses ordinárias – ligadas aos diferentes modos de
gozo que, mesmo sendo não fálicas, não são apreensíveis em termos de um
desencadeamento ruidoso ou fenômenos elementares pregnantes – somos confrontados
a uma clínica não apenas com o fora-da-lei fálica – o que de certo modo, instaura o falo
como referência – mas, sim, com uma clínica dos modos de gozo foraclusivos:

Em um primeiro momento, em Angers, empregamos – era


aleatório, como último recurso – com surpresas, com nossas
surpresas. Estava implícito que nos confrontávamos com certa
rotina ou certo classicismo, e por isso queríamos distinguir
momentos ou casos que se recortaram sobre um fundo de ordem
e provocaram nossa surpresa [...]. No segundo tempo,
preservamos e elegemos como tema ―Casos raros‖. Talvez
quiséssemos fornecer, então, um conceito para nossas surpresas.
Em todo caso, nos vimos conduzidos a explicitar nossa
referência à norma clássica das psicoses e, por causa disto,
discuti-la mais radicalmente. Hoje nos encontramos no terceiro
tempo, na Convenção. Ao ler a recopilação, tive a sensação de
que aquilo que havíamos abordado a partir do ângulo de casos
raros, era abordado agora a partir do ângulo de casos frequentes.
Nos demos conta de que o que havíamos designado como casos
raros em relação com nossa norma de referência, com nosso
metro-padrão, digamos, ―De uma questão preliminar...‖,
revelavam-se na prática cotidiana, muito bem, aliás, como casos
freqüentes (MILLER 1997, p. 201).

Somos, pois, confrontados com a questão: se algo não se inscreve para todos
desde Freud – libido não-ligada e pulsão de morte – até Lacan – inexistência da relação
sexual – haveria o que Miller chamou de foraclusão generalisada?
Quanto a isso, partilhamos a posição de Serge Cottet que, em A hipótese
continuísta nas psicoses (COTTET 1999) atenta − à maneira dos analistas participantes
da Conversação de Arcachon −, para uma modalização da clínica clássica que, sem
desconsiderar o binômio neurose-psicose, pode vir a pensá-lo desde uma ―clínica das
suplências‖ (idem, p. 242). Trata-se, nesta ―clínica da conexão‖ (idem, p. 243), de
pensar lado aos fenômenos que marcam rupturas claras na existência do louco –
fenômenos em que se explicitam a continuidade entre significante e gozo assim como
desligamentos progressivos do Outro:
197

Em suma, temos que admitir que a hipótese continuísta não


serve para suprimir a fronteira neurose-psicose. Ela deve
intervir na maneira de decifrar segundo uma gama infinita e
modos bastantes variados, os efeitos parciais e globais da
foraclusão (COTTET 1999, p. 241).

Prossegue, logo, como particular às psicoses, uma estruturação alternativa à


suplência fálica e a extração do objeto que, nas neuroses, opera como ―causa de desejo‖.
Podemos, agora, abandonar a designação ―fora-da-lei‖ que utilizamos até o momento
para, a despeito da homofonia não apenas diferenciar, mas, também, relativizar o fora-
das-leis positivas que é o dito ―transgressor‖. Este turning point permite instaurar − em
nossos esforços para apreender a especificidade do tratamento kakon ao gozo − a
denominação ‗tratamentos foraclusivos‘ − inerentes ao sujeito que emerge como tendo
―o objeto a no bolso‖ (LACAN 1967). O kakon, assim, emerge como um tipo de
tratamento do gozo que, como veremos no próximo e último capítulo de nossa tese, pela
passagem ao ato e subjetivação posterior a esta, pode produzir uma subtração de gozo
ante a libido que, por retornar sobre o psicótico de forma devastadora, mergulha-o num
estado de urgência.
198

− Capítulo VIII –
Kakon: passagem ao ato e responsabilidade na psicose
No presente e último capítulo intenta-se demonstrar que, para além da
agressividade − aspecto característico da relação imaginária entre a e a‘ − pode haver,
na passagem ao ato, tanto a tentativa de subtrair algo do gozo avassalador quanto,
aproximando ―passagem ao ato‖ e ―ato‖, a busca por inserir, no real, uma diferença
simbólica − mesmo na psicose. Desde este aporte veremos como a agressão posta em
cena por estas ações adquirem, em seu contra-senso, uma efetividade, apreendida por
Lacan desde suas considerações sobre o ato de Christine e Lea Papin: ―um esforço que
visa a romper com o círculo mágico da opressão‖ − leiamos o gozo − ―do mundo
exterior‖ (LACAN 1935, p. 690-691).
Utilizando, portanto, uma vez mais a noção de ―kakon‖ − significando não
apenas ―o mal‖, mas apontando para este fora-da-lei simbólica, aquilo que escapa ao
ordenamento significante − pensaremos o homicídio imotivado como tentativa de tratar
o gozo através de uma tentativa de subtração. Caberá, ainda, sustentar, desde a
conjuntura psicótica, a concepção psicanalítica da ―passagem ao ato‖ não sob a forma
de um ‗desfalecimento da fantasia‘ − que medeia, na neurose, as relações entre sujeito e
objeto a −, mas, sim, participando de uma fórmula mais geral, como ruptura de uma
acomodação até então estável, entre os registros real, simbólico e imaginário.
Este capítulo será dedicado, também, à exploração da difícil questão disposta
pela relação entre as noções, apreendidas à luz da psicanálise, de ―psicose‖ e
―responsabilidade‖. Partindo dos enunciados freudianos, destacaremos como estes
erigem uma noção de responsabilidade atada à hipótese do inconsciente. Como
veremos, tal noção é ela própria atingível apenas por um posicionamento ético perante a
alteridade. Trata-se, neste caso, de um fazer que implique a assunção, pelo falante,
daquilo que, a posteriori, ‗terá sido‘ aquilo que alojara o efeito-sujeito. Tal posição,
partidária do imperativo ético freudiano ―Wo es war soll ich werden‖, tem, no seminário
de Lacan sobre a ética, desvelada sua estrutura: trata-se de um ―juízo sobre nossa ação‖
no qual ―a ação nele implicada comporta, também, ou é reputada comportar, um juízo,
mesmo que implícito‖ (LACAN 1959-60, p. 373). Lacan concluirá que, na construção
desta cadeia, ―a presença do juízo dos dois lados é essencial à estrutura‖. Neste último
capítulo, trabalharemos ainda, de forma a desdobrar nossas posições no âmbito da
prática clínica, um célere exemplo deste manejo.
199

I- Os assassinatos imotivados como ―tentativa de cura‖?


A) Tesouros da clínica psiquiátrica: do fenômeno à economia libidinal
―Furor cego‖, ―tendência sanguinária irresistível‖, ―tendência automática a atos
de atrocidade‖: três expressões utilizadas por Pinel para descrever, na aurora do século
XIX, o que posteriormente viria a ser nomeado ―assassinatos imotivados‖.
Destarte, o tópico A mania-sem-delírio marcada por um furor cego‖ − do Traité
médico-philosophique sur l’alienation mentale (PINEL 1801) –, dilataria a ruptura
imposta pelo projeto científico em relação à percepção usual da loucura. Estupefaciente
era aquela forma de alienação que se impunha não apenas sob a forma de delírios não
evidentes, mas que explicitava, antes, uma‗loucura em forma de ação‘. No que concerne
à conjuntura que precede o ―furor‖, Pinel descreve a sensação de ―horror‖, ―urgência‖,
―desespero‖ e ―luta [interior] insuportável‖ (idem, p. 156), sensações que atestam a
existência de um mal-estar que acossa, nestes casos, o malade:

De início, sentimento de uma ardência escaldante nos


intestinos, com uma sede intensa e uma forte constipação; este
calor se propaga ascendendo até o peito, pescoço, face, com um
colorido mais animado; chegado às têmporas, ele se torna ainda
mais vivo, e produz batimentos mais fortes e mais freqüentes
nas artérias destas partes, como se elas fossem se romper; enfim
a afecção nervosa ganha o cérebro, e então o alienado é
dominado por uma tendência sanguinária irresistível; e se ele
pode dispor de um instrumento cortante, ele é levado a
sacrificar com uma espécie de furor a primeira pessoa que se
oferece a sua vista. Ele goza, entretanto, em outras áreas, do
livre exercício de sua razão, mesmo durante seus acessos;
responde diretamente as questões que se lhe põem, e não deixa
escapar qualquer incoerência em suas idéias, ele sente mesmo
todo o horror da situação; ele é penetrado por remorso, como se
ele estivesse a reprovar-se a tendência imposta (idem, p. 152).

Na descrição pineliana destes acessos, o célebre alienista atenta, logo, para a


existência de um mal-estar que avassala o louco e precede a ação homicida. Com efeito,
esta ilação retorna nas descrições de Esquirol, principal discípulo de Pinel, para quem
esta ‗loucura-ação‘ é a base para a controversa categoria das ―monomanias‖. É através
da participação de Esquirol e da de seus próprios discípulos – que se conjuga, talvez
pela primeira vez, uma descrição destas ações em suas repercussões para o estado geral
do louco. Dentre os efeitos deflagrados por estes homicídios, Esquirol destaca o
―desembaraçar‖ como conseqüência possível para a relação do louco com um estado de
inquietude nomeado, sob a pena daquele autor, como ―agitação‖ e ―angústia‖:
200

Ato cumprido, parece que o acesso termina; alguns


monomaníacos homicidas parecem como que desembaraçados
de um estado de agitação e de angústia que lhes era muito
penoso. Eles estão calmos, sem arrependimento, sem remorso e
sem temor. Eles contemplam sua vítima com sangue-frio;
alguns experimentam e manifestam uma sorte de
contentamento. A maior parte, longe de fugir, continua
próxima ao cadáver, ou vão se declarar aos magistrados,
denunciando a ação que acabaram de cometer. Um pequeno
número, entretanto, se distancia, esconde os instrumentos e
esconde os traços do assassinato. Mas logo após eles traem a si
mesmos, ou se eles são pegos pelos agentes da autoridade, se
atém a revelar sua ação, a fazer conhecer os mínimos detalhes,
assim como os motivos da fuga (ESQUIROL 1838, p. 05).

Em sua apreensão dos assassinatos que põem em xeque a compreensão imediata,


Esquirol desvela, desde o momento em que o ―ato é cumprido‖, o ―fim do acesso‖:
expressões como ―calma‖, ―ausência de arrependimento, remorsos ou medo‖, ―sangue
frio‖, ―auto-traição‖, ―contentamento‖ e ―distanciamento‖ marcam, todas elas, um
contraste com o estado anterior – caracterizado por ele através de termos como
―agitação‖ e ―angústia‖. Fato enigmático, aquelas ações parecem ter a capacidade de
instaurar, nas relações entre o doente e seu mal-estar, ―um antes‖ e ―um depois‖. A este
hiato instaurado pela ação homicida acresce-se mais uma complexidade: as diferentes
formas de posicionamento do louco perante aquelas ações e ao que delas decorre.
Nos ―casos fundadores da psiquiatria criminal‖ (FOUCAULT 1975, p. 138), esta
‗diversidade de reações‘ salta aos olhos: 1) Após expor as razões de seus homicídios –
livrar seu pai, ao matar sua mãe e irmã (e se fazer odiar por matar seu irmão [filho
predileto do pai]) − Pierre Rivière se suicida ante a impossibilidade de ser executado;
2) a famigerada mulher de Sélestat – que, quando questionada sobre sua ação, apenas
balbuciava ―Foi a miséria‖ e ―Deus me abandonou‖ −, fora, logo após esta, mergulhada
num estado próximo ao estupor; 3) Léger, alvo de remorsos e passando a ouvir ―passos‖
que o perseguiam, pôs-se a vagar pelas estradas de volta à cidade, defrontando-se,
assim, com as autoridades; 4) Papavoine, incerto das razões de sua ação, utilizara sua
reconhecida inteligência – chave utilizada pela acusação para condená-lo à morte − para
construir ―motivações políticas‖ para seus homicídios; 5) Cornier, até então indiferente
a mãe de sua vítima, atravessada pela estranha idéia de cometer um homicídio, fez
daquela mulher a testemunha que atestou a autoria de seu feito perante os tribunais...
201

Estas incógnitas − 1) a relação entre os homicídios imotivados e o mal-estar na


loucura; 2) o marco que faz emergir, a partir da ação ―um antes e um depois‖; e, 3) a
relação do louco com as repercussões de seu feito −, dilemas esfíngicos de certa forma
já legíveis nas descrições dos casos de assassinato imotivado desde o século XIX,
restaram obscurecidos por quase cem anos. Se tais acontecimentos punham em xeque a
lógica utilitária dos ―móveis‖ ou ―motivos do crime‖ (LACAN 1950a, p140), a tentativa
de explicação destes homicídios nos termos das teorias atavistas e degenerativas – que
viam nestes fenômenos apenas a evidência da ‗inumanidade‘ do paciente − implicou a
impossibilidade de apreendê-los em sua lógica própria. ―É preciso‖ – assevera Maleval
− que ―a teoria da degeneração ceda terreno‖ ―para que se abra um espaço propício ao
estudo da lógica dos assassinatos imotivados‖ (MALEVAL 2000, p. 39).
No esteio do declínio das teorias atávicas e degenerativas, e com a emergência
da clínica psiquiátrica clássica, a construção deste ―espaço propício‖ começará a se
efetivar: as sutilezas inerentes às variadas conformações de delírio – explicitada em
diferenciações como, por exemplo, aquelas estabelecidas entre ―delírios interpretativos‖
e ―passionais‖ por autores como de Clérambault, Serieux e Capgras − ensaiavam uma
primeira aproximação da lógica interna aos assassinatos imotivados, testando, assim, o
poder heurístico do delírio como ‗pedra de roseta‘ na decifração destas ações.
De acordo com tais caracterizações, nos ―delírios passionais‖ – ―reivindicação‖,
―erotomania‖ e ―ciúme‖ − o delírio seria não erigido em ―conceitos múltiplos e
cambiantes‖ como nos ―interpretativos‖ −, mas, sim, polarizado a partir de uma idéia
norteadora, chamada por de Clérambault ―nó ideo-afetivo‖. Desde esta hierarquização
de idéias, desenvolve-se a noção de ‗objetivo‘, polarização do delírio que permitiria,
pelo efeito mesmo de afunilamento, que se erigisse um alvo preciso, nos três tipos de
delírio passionais: 1) ‗Eu era amado por ‗a‘, que agora me despreza e me quer mal‘
(erotomania); 2) ‗As traições de ‗b‘ se tornaram insuportáveis para mim, é preciso fazer
algo‘ (ciúme); e, 3) ‗Não tenho outra escolha senão fazer justiça com minhas próprias
mãos e, assim, me vingar do dano que ‗c‘ me infligiu‘ (reivindicação).
Na vertente passional do delírio se imporiam a noção de ‗pressa‘ e a ‗urgência‘:
a existência de um postulado – que lhe conferiria certeza quanto ao ‗alvo‘ − renderia a
estes loucos a determinação que os conduziria a atos homicidas mais freqüentes. Sendo
as convicções no delírio passional deduzidas do postulado, sua supressão, à diferença do
interpretativo, faz o delírio tombar, o mesmo ocorrendo quando o alvo elegido pelo
delírio ‒ o rival, o amante ou o agressor ‒ ―partem ou morrem‖.
202

Parece haver, também aqui, nas descrições psiquiátricas clássicas, – a exemplo


do que vimos nos ―casos fundadores da psiquiatria criminal‖ −, a possibilidade de um
apaziguamento do mal-estar sentido pelo psicótico a partir da ação assassina. Surge,
pois, a questão: desde as ideações que conduzem o delirante ao homicídio poderíamos
pensar, no que tange as psicoses passionais, que o delírio em sua lógica explica por si só
o surgimento do mal-estar e a experiência de seu apaziguamento?
Uma forte objeção pode ser levantada em relação à redução dos assassinatos
imotivados à ratio delirante: a despeito do delírio apresentar certa consistência no que
tange às flexões e articulações destes fenômenos psicóticos, a história clínica revela um
instante de ‗irrupção‘ anterior à construção delirante. No momento do desencadeamento
− nem sempre ruidoso −, mesmo nos clássicos delírios de ciúme, reivindicação ou
erotomania há a eclosão da perplexidade, ligada a uma ―iniciativa que vem do Outro‖
(LACAN 1955-56, p. 220). Esta certeza, posteriormente, é semantizada nos termos de
uma significação delirante: ‗Amado‘, ‗lesado‘ ou ‗traído‘, o psicótico é, na objetalização
da qual nos dá testemunho, confrontado com a presença da libido, do gozo, do Outro.
Apreendido desde este viés, o delírio revela-se efeito deste algo mais basal, a relação do
psicótico com a dimensão econômica do aparelho psíquico, o pulsional.
Dito de outro modo, embora o delírio conjugue, em suas diversas formas de
apresentação, o mal-estar que acossa o psicótico desde esta ―iniciativa do Outro‖, nas
diferenciações estabelecidas pela psiquiatria clássica, o surgimento mesmo deste mal-
estar resta não explicado. Com efeito, este limite heurístico da chave interpretativa
delirante é sentido pelo próprio de Clérambault que, confrontado com esta restrição, vê-
se impelido a fazer recurso a um fenômeno mais elementar que o próprio delírio, o
―automatismo mental90‖.
Desde sua noção de ―automatismo‖, Clérambault entenderá o delírio como uma
espécie de ―romance‖, reduzindo-se este à tentativa do psiquismo de dotar de sentido o
‗x‘ incompreensível que se lhe apresenta pela introdução de um fenômeno de natureza
biológica. A organicidade, então, é a aposta de Clérambault que permitiria, num futuro a
ser alcançado, explicar, para além do enquadre e flexões delirantes, a causalidade da
psicose e do mal-estar que lhe é inerente. Restam, porém, problemas: se o mal-estar é
organicamente determinado e se a ação homicida alcança apaziguamento, como explicar
os efeitos da ação ao nível desta fantasiosa estrutura histológica?

90
Fenômenos de pontuais e fugidios de ―pensamentos antecipatórios, ecos de pensamento, ecos de leitura,
enunciação dos atos e impulsos verbais‖ (MORRON, GIRARD, MAUREL e TISSERON 1993, p. 29).
203

Numa via diversa do organicismo – e ainda no interior da psiquiatria clássica − a


―psiquiatria constitucionalista‖ não se encontrará em melhores condições perante a
questão dos assassinatos imotivados. ―Autofilia‖, ―estima exagerada de si mesmo‖ e
―paralógica afetiva‖ (simplificações, desvios e transposições na formação dos conceitos)
− para Serieux e Capgras; ―Superestima de si‖, ―falsidade de juízo‖, ―desconfiança‖ e
―inadaptação social‖ – para Montassut (LACAN 1932, p. 65) – eram características
físicas e psíquicas inatas da qual derivariam, por germinação, os fenômenos psicóticos.
Como apreender, a partir desta perspectiva, que o homicídio imotivado possa ter uma
função apaziguadora, instaurando ‗um antes e um depois‘, se este o mal-estar está ‗já ‘
inscrito, inata e hereditariamente determinado?
Teríamos chegado ao fim das incursões e contribuições clínicas psiquiátricas ao
debate sobre os casos kakon? Ora, a despeito das interpretações de Clérambault sobre a
psicose e o mal-estar que lhe acomete nos termos de uma ‗histologia vindoura‘, as
descrições empreendidas por este aludem, desde o campo da experiência, a outra pista
que não o orgânico no que concerne à lógica envolvida nos assassinatos imotivados.
No mesmo texto em que recortamos as diferenças esboçadas por este autor entre
o delírio passional e o interpretativo, Les délires passionnels. Érotomanie,
Revendication, Jalousie (CLÉRAMBAULT 1921), ele destaca que na terceira etapa das
psicoses passionais, a fase do ―Despeito‖ (em que o ―ser amado‖ se converte em ―ser
desprezado‖), surgem idéias de perseguição – em que o paciente ―persegue ou é
perseguido‖: ―As perseguições não têm por objetivo, senão, a separação com o objeto‖
(idem). Desde a lógica presente na própria clínica, alcançada, portanto, desde a estrutura
do que se apresenta neste campo de experiência – e não fazendo apelo a campos como
uma biologia, hereditariedade e anatomia ademais inexistentes – somos levados a
considerar, nas relações da psicose com a lógica do delírio e o mal-estar que lhe
acomete, mais uma vez a dimensão objetal.
Neste rápido percurso pela tradição clínica psiquiátrica, arrolamos, como termos
de uma equação não decifrada, alguns elementos: 1) a presença de um ‗mal-estar‘ na
psicose anterior ao homicídio; 2) os efeitos de ―antes e depois‖ deflagrados por esta
ação, 3) a relação do psicótico com as repercussões de seu feito; e, 4) a consideração
pelo que Clérambault nomeou ―separação do objeto‖. Esta função de ―separação‖ –
emergida da clínica e que transcende o texto explícito do delírio −, é nos útil para atingir
a efetividade dos homicídios loucos, não apenas no que escapa ao saber do delirante,
mas, também, naqueles casos em que mesmo esta ‗arquitetura‘ se faz ausente.
204

Deparando-se com a ausência desta arquitetura, Paul Guiraud, em texto escrito


em conjunto com Cailleux, − Os assassinatos imotivados, reação liberadora da doença,
nos hebefrênicos − reitera a evolução outrora demarcada desde Pinel e Esquirol: ao mal-
estar difuso, segue-se uma ―violência imotivada atacando um desconhecido, a fabulação
romanesca e mal acabada que segue imediatamente o drama e, enfim, o abatimento
indiferente em que se prolonga o enfermo‖ (GUIRAUD e CAILLEUX 1928, p. 356).
Esta evolução não prosseguirá, entretanto, sem a bússola do freudismo.

B) ―kakon‖: o mal-estar e suas relações com o pulsional


Na história de Paul – caso a partir do qual a questão se apresentou aos autores –
Guiraud e Cailleux explicitam o papel central ocupado pelo mal-estar que, de forma
avassaladora, se abatia sobre este paciente. Perante o profundo estado de desconforto
que lhe aturdia, Paul erigira dois recursos, ambos anteriores à tentativa de homicídio:
1) a bebida, que ―no campo físico‖ agia de forma ―estimulante‖ e que tinha, para ele, a
função bastante específica de ―fazer esquecer‖; e, 2) a adesão à política e à religião no
que eles chamam de ―campo mental‖.
Como sublinhamos no terceiro capítulo de nossa tese (p. 85), fora ao evocar a
idéia de ―mecanismos de defesa‖ − suspendendo, portanto, um aporte ao organicismo
ou à noção inatista de ―constituição mórbida‖ −, que Guiraud e Cailleux recorreriam à
teoria psicanalítica: de acordo com o que asseveravam, a segunda forma de defesa –
aquela erigida no ―campo mental‖ − ―era, como dizem os psicanalistas, uma forma de
sublimação defensiva. Nada extraordinário‖ – prosseguem – ―que [Paul] tenha fundido
a noção de enfermidade (―maladie‖) com aquela do mal social ou que tenha sobretudo
simbolizado a primeira pela segunda‖ (GUIRAUD e CAILLEUX 1928, p. p. 358).
Seria esta ―sublimação defensiva‖, a qual se referem os autores, a idéia freudiana
de um destino pulsional relativo a um alvo ―não sexual‖ (FREUD 1908, p. 174) – ou a
―objetos socialmente valorizados‖ −, processo harmonizado com Eros em sua função de
―unir e ligar‖ (FREUD 1923, p. 53)? Conjecturas à parte, tal ―sublimação‖ sucumbira
ante o mal-estar que acossava Paul, frustrando seu uso no tratamento do pulsional.
Detendo-se nos desdobramentos daquele caso − narrados no testemunho concedido pelo
próprio paciente −, mais que um engajamento político strictu sensu – o que talvez
poderia ser recurso para outro psicótico −, as elucubrações do paciente ―o conduziam‖
não a uma metaforização, mas, sim, ―à idéia de um ‗mal geral‘ e de que ‗era preciso
suprimi-lo‘ (GUIRAUD e CAILLEUX 1928, p. 357-8).
205

Ironicamente, podemos ponderar que a ―sublimação‖ evocada por Guiraud e


Cailleux talvez tenha dado lugar, no caso Paul, ao processo físico de ―re-sublimação‖ −
no qual algo volátil, gasoso, passa para o estado sólido sem efetuar sua passagem pelo
estado líquido. Torna-se assim apreensível que Paul, desde um jogo com a homofonia −
―matar o mal‖ (tuer le mal) = ―matar a mazela‖ (tuer le maladie) −, tenha produzido não
a relativização, flexão ou conjugação delirante de seu mal-estar, mas, sim, construído as
coordenadas simbólicas a partir do qual ele tentará subtrair um objeto que havia
concretizado seu mal-estar na cena da realidade:

A reação violenta aparece assim, por sua vez, como o último


sobressalto de energia de um organismo que mergulha na
indiferença e na inação e como resultado de uma transferência
do desejo ―curar a enfermidade‖ sobre aquele de ―suprimir o
mal social‖: ―matar o mal‖ (tuer le mal) = ―matar a mazela‖
(tuer le maladie). Assim compreendida, a reação anti-social
pode se produzir seja determinada por uma causa ocasional seja
mesmo – como é o caso – sem ter necessidade de qualquer
determinante exterior (idem, p. 358).

A conclusão a que chegam Guiraud e Cailleux, desde o aporte ao freudismo, é,


pois, a de que os homicídios imotivados, embora careçam de ―motivos compreensíveis‖,
eles têm uma causa: são, pois, ―não uma reação sem causa, mas um esforço de liberação
contra a enfermidade transposto patologicamente para o mundo exterior‖ (idem, p. 359).
Não a metaforização, mas a homofonia − no qual não nos furtamos de reconhecer, aqui,
a intervenção de um fazer com ―alíngua‖ (1972, p. 123) [significantes que, em enxame,
comparecem, para o sujeito, desarticulados e sem sentido]; e, não a volatização, mas,
sim, o mal-estar corporizado num objeto − eis algo que a leitura psicanalítica permite
apreender do tratamento do libidinal em jogo nestes assassinatos.
As relações do psicótico com um objeto que ‗encarna‘ seu mal-estar no campo
da realidade − objeto do qual o delirante passional, segundo de Clérambault, tencionava
se separar – retornaria às considerações de Guiraud num segundo texto dedicado ao
tema dos homicídios psicóticos: Os assassinatos imotivados (1932). Neste texto,
Guiraud propõe um termo do grego, ―kakon‖ – o ―mal‖ – para nomear o mal-estar ao
mesmo tempo interior-exterior, que devia ser extirpado. Desde o kakon, o homicídio
imotivado mostra-se como um ―esforço de liberação contra a enfermidade‖; é uma
―tentativa de cura‖ diremos com Maleval (2000, p. 42) e Tendlarz (1999), p. 125), o que
leva o paciente a tentar matar seu kakon, o mal-estar que inunda seu ser. O kakon
permitirá, assim, a Guiraud, reler, desde esta noção, seu caso Paul:
206

Por um ato de violência, Paul tentou suprimir o kakon para usar


a expressão de V. Monakov e de Mourgue (...). Essa tendência
que, se não se exprimiu conscientemente, realizou-se por um
ato de curto-circuito (satisfação direta de uma tendência, sem o
estado de intelectualizações). A invenção romanesca do complô
no porão era uma tentativa de explicação imaginária no só-
depois. (...) A tendência em matar a doença se satisfaz com seu
próprio desconhecimento, quase involuntariamente (GUIRAUD
1932, p. 88).

Todavia, ao resgatar o termo ―kakon‖ em seu Assassinatos imotivados, Guiraud


tornava presente um paradoxo: em meio a uma torrente de referências à psicanálise, ele
retirara, segundo Tendlarz (1999, p. 126), aquele termo helênico para o ‗mal‘ de um
livro pertencente à biologia do século XIX: Introdução biológica ao estudo da
neurologia e psicopatologia (V. Monakov e de Mourgue 1928). Em suas considerações
sobre este tema, prossegue a autora asseverando que, neste livro, o kakon se apresenta
na acepção de ―crises ou complexos neurovegetativos que se produzem nas
psiconeuroses, condicionados por traumatismos de ordem sexual‖ (idem, p. 126). Ora,
de certo modo, ao citar o livro de V. Monakow e de Mourgue, Guiraud punha-se em
consonância não apenas com estes autores, mas, também, com as descrições provindas
da tradição psiquiátrica de um mal-estar que visceralmente afetava os enfermos nos
acessos de loucura anteriores às agressões por eles impetradas:

O paciente empalidece de súbito e começa a transpirar, um


sentimento doloroso de perigo eminente o invade (por exemplo,
uma crise cardíaca), seguido de uma violenta agitação motriz. O
episódio dura apenas alguns minutos, mas o sujeito fica
aterrorizado frente à eventualidade da reaparição destes
fenômenos. O indivíduo crê em um grande perigo, o sente, tenta
defender-se através de seu aparelho reflexo (MONAKOW e
MOURGUE apud TENDLARZ 1999, p. 126).

Tomado a partir desta referência, o kakon – em sua apreensão por Paul Guiraud
− resulta estranhamente perdido entre uma função de mecanismo radical de defesa e
―um complexo aparentemente bulbar de natureza automática‖ (idem, p. 126). Todavia,
para além de qualquer tentativa biologista de apreender os fenômenos psicopatológicos,
o termo kakon sempre ocorrerá, na obra de Lacan, ligado à clínica da psicose, evocando
uma corporalidade outra que não a orgânica. É o que se desvela na primeira referência
ao kakon, ante à exposição de Paul Schiff, Psicanálise de um crime incompreensível,
apresentada à Sociedade psicanalítica de Paris em fevereiro de 1935.
207

Trata-se, nesta exposição de Schiff, de um curioso caso: uma mulher matara sua
própria tia após um acontecimento aparentemente fútil, a saber, um acidente com uma
―caneta lacrimogêneo‖. Contrariando as relações usuais entre psiquiatria e psicanálise −
e dado a incompreensibilidade do crime −, Schiff, psicanalista, fora convidado a dar seu
parecer sobre o caso. É assim que, após cinco semanas de sessões diárias em condições
―pouco favoráveis‖, ele concluirá que a ―explosão homicida‖ ―se torna ‗compreensível‘
quando se traz a luz os móveis profundos da rivalidade masculina entre as duas
mulheres e a raiva latente da acusada por sua tia‖ (R.F.P. 1935, p. 688). Em sua análise,
além de tornar o crime ―compreensível‖ aos tribunais, sua intervenção junto à acusada
permitia ―provocar a confissão que definia‖ certos aspectos relativos à ―materialidade
do crime‖, e, também, depurar o ―grau de participação do eu‖ no homicídio.
Para além das ―plumas médicas‖ na ―expertise judiciária‖ (idem, p. 691), Lacan
chama atenção, junto a Spitz, para a função simbólica de um sintoma corporal trazido
pela paciente, a ―ceratite‖ – inflamação hereditária da córnea. Se, segundo Spitz, a
doença parecia evocar algo da castração para a paciente, na deflagração do furor
assassino pelo ocorrido com a ―caneta lacrimogêneo‖, Lacan reconhece ―o valor
desencadeante de um incidente aparentemente absurdo‖ (idem, p. 690). De forma
similar ao ―curto-circuito‖ elétrico no caso das irmãs Papin – que literalizou a metáfora
do ódio ―arrancar os olhos‖ num circuito em que, entre as irmãs e suas patroas, ―não se
falava de um grupo a outro‖ (LACAN 1933, p. 381) – o acidente com lacrimogêneo
aludia a outra castração escópica não simbolizada: a perda de visão por ceratite.
Tomando como base este corpo, não orgânico, mas relacionado ao simbólico em
suas relações com o pulsional, Lacan pondera que há casos em que ―a realização do
kakon‖ pode tornar-se ―compreensível‖. Era isto o que ocorria em seu caso Aimée, em
que a ação homicida se tornava apreensível ao considerar a dinâmica pulsional daquela
agressão autopunitiva, em espelho, à imagem de si mesmo. Todavia, ele sublinhará que,
mesmo nos casos em que a dinâmica delirante se furta em flexionar o mal-estar
psicótico – dotando-o de um sentido −, desvela-se a função do kakon, em “romper o
círculo mágico‖ (LACAN 1935, p. 690). Na apreensão que Lacan faz do ―kakon‖, há,
portanto, no que tange a sua função, não um apelo ao ideal de um corpo mortificado
pela anatomia – que foraclui o gozo −, mas, sim, ao considerar o mal-estar que retorna
sobre o ser do falante, um corpo vivo, atrelado ao pulsional. É esta função do kakon,
relacionada à pulsão aquilo que atém, desde 1935, a atenção de Lacan.
208

Isto que se esboça em 1935 – o desvelamento do mal-estar pulsional, o kakon –


ligado a um corpo não mortificado pela captura científica − e seu ―tratamento‖ −
tentativa de subtração deste objeto que condensa o mal-estar, num ―esforço que visa a
romper com o círculo mágico da opressão‖ (idem, p. 691) −, encontra desdobramentos
treze anos depois, em A agressividade em psicanálise (LACAN 1948).
Neste texto, Lacan explora os limites e potências de suas teorizações acerca do
registro imaginário, caracterizado pela incidência desnaturalizante da imagem sob a
carne do falasser, experiência indissociável das balizas simbólicas que a amparam. Se,
como vimos em Freud, ―uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo
desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido‖ (FREUD 1914a, pg. 93), partindo de
seu ―estádio do espelho‖, Lacan expõe como ―o sujeito se identifica primordialmente
com a Gestalt visual de seu corpo próprio‖ (LACAN 1948, p. 113). Se, em eco, pode-se
ouvir o dito de Rimbaud para quem o ―eu é um outro‖ (idem, p. 120), as relações do
sujeito com as imagens extrapolam a experiência unificadora e desvelam o que há de
disruptivo em ser atravessado por este vertiginoso caleidoscópio.
Não apenas harmonização, Lacan destaca a violência intrínseca a uma alienação
nesta estrutura dual: a cada momento, o encontro do ―eu‖ com seu duplo, ―o outro‖,
pode manifestar ―uma angústia incontrolável‖ (idem, p. 112), ser insígnia de rivalidade
(―ou eu ou o outro‖), marcar a possibilidade do retorno ao estado de dispersão (na
experiência psicótica do ―corpo despedaçado‖), ou, ainda, traindo o que há de mortífero
no amor, desvelar a estagnação vivida por um Narciso, enamorado por sua ―unidade
ideal‖. Como desconhecer o que há de mortífero na relação com a imagem de si, se, em
sua entrada no discurso psicanalítico, Lacan tivera como cicerone Aimée, que ao
desferir um golpe contra seu ‗eu ideal‘, feria, na mesma ação, a si mesma?
Nada estranho, portanto, que Lacan intente testar a agressividade relativa ao
imaginário como conceito capaz de escalonar, nas psicoses paranóicas, toda uma série
de reações ―beligerantes‖, desde ―a explosão tão brutal quanto imotivada do ato‖,
passando pela ―guerra fria das demonstrações interpretativas‖, até o ―kakon obscuro‖
(idem, p. 113). Porém, se aquele texto é ―dedicado à relação narcísica e às estruturas do
desconhecimento e objetificação sistemáticos que caracterizam a formação do eu (idem,
p. 118), resta a elucidar, ―o extremo arcaísmo da subjetivação do kakon‖, anterior à
construção da imagem do corpo próprio. Neste ponto em que o imaginário desfalece,
emerge, do espelho estilhaçado, algo do ser libidinal do psicótico.
209

A relação, para além do espelho, do psicótico com o pulsional, figurara em


Formulações sobre a causalidade psíquica, texto de 1946, em que Lacan retoma, a
propósito da discussão acerca da ―causalidade essencial da loucura‖, o termo kakon e o
escrito em que este emerge, a saber, Os assassinatos imotivados, de Guiraud.
Avaliando, ali, a particularidade da relação entre psicose e linguagem, Lacan sublinhará,
no que tange aos fenômenos ditos elementares, a objetalidade que estes conferem ao
louco: ―eles o desdobram, respondem-lhe, fazem-lhe eco e lêem nele, assim como ele os
identifica, interroga, provoca e decifra‖ (LACAN 1946, p. 166).
Assim, sejam os fenômenos ligados às significações delirantes – sempre
particulares – sejam, ainda, as experiências relativas à perplexidade – inerente ao
inexprimível e a falta de significado −, na peculiar relação do psicótico com a
linguagem resta uma certeza: estes fenômenos lhe concernem. Ao tomar a linguagem
como referência – coisa empreendida por Lacan desde sua tese em psiquiatria –
importará menos interrogar sobre a sensorialidade ou organicidade do sintoma que
sobre a posição do sujeito no que ele a narra ou vivencia: o que leva Lacan a dizer que
―toda a loucura é vivida no registro do sentido‖ (LACAN 1946, p. 166). É este o
contexto em que ele afirma: ―Quão longe vai um Guiraud, mecanicista, quando no seu
artigo sobre os ―assassinatos imotivados‖ se dedica a reconhecer que o alienado não
procura no objeto que atinge nada além do kakon de seu próprio ser‖ (idem, p. 175). O
kakon retorna, pois, às elocubrações de Lacan, ligado a questão do ser do louco na
linguagem e de seu investimento libidinal como objeto de gozo. Mas, como esta
conjuntura econômica do aparelho psíquico pode nos auxiliar a apreender a radicalidade
do mal-estar que impele o psicótico a, através de uma ação homicida, tentar tratar este
mal-estar através da subtração do kakon?

C) Psicose, gozo e angústia: o objeto ―a‖ ―no bolso‖


No aporte feito por Guiraud à de Mourgue e V. Monakow reencontramos o mal-
estar, corporalmente sentido pelo louco, em relatos que o aproximam das descrições
feitas por Pinel e Esquirol. Se, na acepção daqueles autores o kakon relaciona-se às
―crises ou complexos neurovegetativos que se produzem nas psiconeuroses,
condicionados por traumatismos de ordem sexual‖, vimos, com Lacan, o quanto é o
corpo vivo, pulsional, o que estava em jogo naquelas afecções. Ora, esta referência a
―traumatismos de ordem sexual‖ desvela, na aproximação psicanalítica, a presença não
de uma ‗desregulagem‘ no organismo, mas, sim, da libido.
210

Em nosso percurso pelas vicissitudes libidinais na estruturação da psicose, vimos


como a noção de Verwerfung, a rejeição, presentificava a incidência de uma idéia
abolida pelo aparelho psíquico numa franca oposição à dialética representacional que
conjugava, até então de forma relativamente estável, os traços de memória ao quantum
afetivo. Logo, ao operar pela rejeição de uma representação a psicose diferia da neurose
pela ocorrência, nesta última, do recalcamento de uma representação; o retorno do que
foi rejeitado não coincide com o retorno do recalcado − não se trata do retorno de uma
representação inscrita, mas, sim, de um retorno desta como ―vinda de fora‖.
O desencadeamento psicótico parece implicar, pois, a emergência ―de fora‖ de
algo não-ligado às idéias do aparelho psíquico, deflagrando o que Freud chamara de
irrupção da corrente auto-erótica, ―retorno ao estado anterior‖ (FREUD 1899, p. 391).
Tal irrupção da libido não-ligada poderia afetar de forma tão radical a economia
libidinal (até então estabilizada) a ponto de poder incorrer em um colapso mesmo da
libido já investida nos traços constituintes do eu e da realidade, acarretando fenômenos
como as ―dissoluções‖ −, tais quais os fenômenos de ―corpo espedaçado‖ e experiências
de ―fim de mundo‖ em que seja o ―eu‖, seja a cena do mundo, podem estilhaçar.
Ora, a questão do tratamento dado pelo aparelho psíquico à libido não-vinculada,
por outro lado, juntamente com a formulação ―retorno ao estado anterior‖ (FREUD
1899, pg. 391 e FREUD 1920a, p. 54), tornar-se-á insígnia do que, nove anos mais
tarde, Freud chamará de pulsão de morte. À exemplo do rejeitado nas psicoses, parte do
pulsional pode portar-se, em relação à estrutura do aparelho psíquico − e isto nas mais
diferentes estruturas clínicas − como ―não inscrito‖. Esboça-se, assim, uma analogia,
por nós evocada, entre o retorno ―de fora‖ do rejeitado e a descrição freudiana, em Além
do princípio do prazer (1920), de uma falha estrondosa na ―sujeição‖ do pulsional nas
neuroses traumáticas:

Um acontecimento como um trauma externo está destinado a


provocar um distúrbio em grande escala no funcionamento da
energia do organismo e a colocar em movimento todas as
medidas defensivas possíveis. Ao mesmo tempo, o princípio de
prazer é momentaneamente posto fora de ação. Não há mais
possibilidade de impedir que o aparelho mental seja inundado
com grandes quantidades de estímulos; em vez disso, outro
problema surge, o problema de dominar as quantidades de
estímulo que irromperam, e de vinculá-las no sentido psíquico,
a fim de que delas se possa desvencilhar. (idem, p. 45).
211

Assim, se nas neuroses a libido retirada retorna sobre as idéias constituintes da


fantasia (FREUD 1914a, pg. 90), diferentemente disso, no desencadeamento psicótico,
as representações ou traços psíquicos − que estruturavam de forma estável tanto a
realidade quanto o eu do sujeito − deixam de mediar o investimento libidinal; irrompe,
no aparelho psíquico, uma corrente maciça de libido não-ligada à cadeia de
representações; o circuito pulsional colapsa e passa a funcionar sem considerar a
dialética entre os traços psíquicos já inscritos, não havendo um objeto pulsional distinto
do sujeito. A isto Freud chamara ―irrupção da corrente autoerótica‖.
Freud designa, por auto-erotismo, a modalidade da atividade pulsional em que a
pulsão encontra satisfação em uma parte do corpo do infante desconsiderando a
alteridade, seja em relação à realidade externa − constituída a partir da dialética dos
representantes − seja em relação a um objeto libidinal destacado do corpo. Esta
desconsideração, todavia, é falsamente absoluta; como asseverara Freud no mesmo
texto, ao contrário do que o prefixo ―auto‖ poderia evocar, é o contato com a alteridade
– mormente o outro materno – o que ―desperta a pulsão‖ (FREUD 1905, p. 211).
Neste estado de coisas em que mesmo uma imagem corporal, fundamento para a
construção do ego, não se encontra erigida, a pulsão investe não a imagem do corpo do
sujeito, mas sim partes isoladas deste. Dito de outro modo, para Freud, seria apenas em
outro momento, logicamente posterior, que a pretensa totalidade corporal − pretensa por
que ainda refutada pelos orifícios das zonas erógenas (a boca, os olhos, os ouvidos e o
ânus) − auxiliaria a organização de um circuito pulsional que considere qualquer objeto
como destacado do corpo. A megalomania, tão pregnante nas psicoses delirantes, seria,
nós o vimos (p. 154), uma resposta possível do louco que, através de uma nomeação
delirante – como Schreber fizera ao cunhar a expressão ―mulher de Deus‖ −, permitia
um investimento desta libido deflagrada em termos narcísicos. A ―explosão de libido‖,
inundação do aparelho psíquico na psicose desde o retorno das catexias sob o louco −
delegado ao lugar de objeto de gozo −, diz respeito, então, à emergência do pulsional
sem a mediação da fantasia, ou, ainda, de um objeto exterior a si. Desvela-se, assim, em
relação ao corpo pulsional do psicótico, para além da imagem, seu mal-estar.
Em seu seminário proferido entre 1963 e 1964, Lacan sublinha uma presença
libidinal que, ao afetar o falante, desvela-se para além da lógica especular. Ao mal-estar
que afeta, inclusive corporalmente o sujeito, Lacan chama de angústia. O que é a
angústia? Lacan proporá vários encaminhamentos a esta questão ao longo de seu
seminário; quanto a nós, interessa pensá-la em relação ao objeto na psicose.
212

Freud, em um de seus primeiros escritos dedicados ao tema, seu ―Rascunho ‗J‘‖


− carta sem data endereçada a W. Fliess – descrevera um caso de ―crise de angústia‖,
ocorrido em uma mulher na ausência de seu marido, evocando sinais como ―mal estar
na cabeça e no estômago‖, ―cabeça girando‖, ―sensações de opressão‖ e ―parestesia‖ –
sensações como frio, calor, formigamento, pressão – ―cardíaca‖ (FREUD 1895c, p.
263). Se alguns destes sinais parecem fazer ressonância à descrição do kakon pela
tradição psiquiátrica, Lacan − partindo da idéia, clínica e estruturalmente arregimentada
da existência da angústia na psicose −, propõe que não nos fiemos nesta fenomenologia
para atingirmos a especificidade da manifestação desta conjuntura nesta estrutura:

Com efeito, a questão é, antes, explicar a que título podemos


falar da angústia quando reunimos nesta rubrica experiências
tão diversificadas quanto (...) a angústia que é aquela com que
lidamos em nossos neuróticos, material comum de nossa
experiência; e também a angústia que podemos descrever e
localizar no princípio da experiência mais periférica para nós,
como a do perverso, por exemplo, ou até do psicótico. (Lacan,
1963-4, p. 27)

Para Lacan, pois, a apreensão da angústia não é algo que se faça meramente a
partir de uma ―vivência‖, nem, tampouco, de ―assumir as experiências que a esta se
referem‖ (idem, p. 27). Lacan, assim, separando-se de Freud, proporá que a angústia
não é estritamente relacionada à interdição ou possibilidade de privação de um objeto,
sendo considerada, mormente, ―angústia de castração‖, mas, sim, que esta, em verdade,
―não é sem objeto‖ (idem, p. 101). Este estranho objeto, ―para além da objetividade‖ –
vale dizer, da materialidade, encontrável no campo da realidade −, Lacan denomina
―objeto a‖ – nomeação por ele utilizada para se reportar aos ―objetos anteriores à
constituição do estatuto do objeto comum, do objeto comunicável, do objeto
socializado‖ (idem, p. 98).
Num passo além do objeto perdido, Lacan tomará o ―objeto a‖ como este resto
não simbolizável, subtraído entre o sujeito e o Outro, que institui, entre aqueles, uma
―separação‖ − posteriormente mediadora das relações entre estes campos na dialética do
desejo. Este objeto ―amboceptor‖ (LACAN 1963-4, p. 185) – termo retirado, por Lacan,
da medicina, relacionado aos anticorpos que reagem tanto a elementos do organismo
quanto aos possíveis invasores −, entre sujeito e Outro, não pertencente a nenhum dos
dois campos, eleva o estatuto do objeto em psicanálise da condição de objeto perdido
àquele de ―causa do desejo‖.
213

Lacan pensa este objeto como operador de uma relação com o corpo para além
da imagem de si, vinculando, num circuito econômico, as relações do sujeito com algo
que se recorta como falta. Irrepresentável – mas, ao mesmo tempo efeito da relação da
linguagem em sua incidência sobre a carne do falasser –, este objeto é alcançado − no
que Lacan chama de ―maturação do objeto a‖ (LACAN 1963-4, p. 282) − quando o
sujeito se separa do seio no desmame, das fezes na defecação, da voz na fala e do olhar
na visada. Quanto ao objeto ―a‖, diz-nos, Lacan, trata-se da relação da linguagem com
uma ―parte de nós mesmos, a parte de nossa carne que permanece necessariamente
aprisionada na máquina formal, sem o que o formalismo lógico, para nós, não seria
absolutamente nada‖ (idem, p. 237).
O encontro com ―a‖ − quando algo no campo da realidade o evoca gerando o
efeito de estranheza, Umheimlichkeit −, opera de forma a confrontar o sujeito, mesmo
na neurose, com sua angustiante dimensão objetal; ante o ―duplo que lhe escapa‖ (idem,
p. 100), ―a‖, o sujeito defronta-se, para além da tela da fantasia – que, desde Freud,
conjuga as diversas formas de relação com o objeto −, com o ―desejo do Outro‖. O
encontro angustiante com este duplo, não imaginário, mas real do sujeito, implica, pois,
não apenas a emergência da presença do Outro não encoberta pelo véu da fantasia, mas,
sobretudo, uma ―identificação mais misteriosa com o objeto do desejo como tal‖ (idem,
p. 46). Certa objetalidade, portanto, demonstra não ser apenas algo próprio à psicose: se
o louco é confrontado com a incidência venal de um Outro real – ―ser que pesa por seu
gozo‖, que ―esmaga sob seu gozo‖ (idem, p. 73) –, ao neurótico cabe operar, desde sua
relação com o Outro do desejo, uma separação que o permita advir – num saber-fazer
com sua dimensão objetal − como sujeito. Lacan chama, em nota acrescentada em 1966,
(época da publicação dos Écrits), ao ―Esquema R‖ da realidade, construído em 1956-7
no texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, de ―extração
do objeto a‖ (LACAN 1966c, p. 559-60) este processo.
Nesta nota, desvela-se este processo através da transformação do quadrângulo
R numa figura topológica. Dois cortes recortam os pólos ―im‖ e ―MI‖; sendo a área
hachurada resultante torcida de forma que se atem e fixem os segmentos a e a‘:

+
214

Por efeito da operação de corte, mostram-se heterogêneos o sujeito S –


representado pela banda de Moebius – e o ―objeto a‖ – representado pelo que resta do
corte − os dois triângulos que recobrem os campos I imaginário e S simbólico. Lacan
afirmará, então, que ―é como sujeito originariamente recalcado, que o S, S barrado do
desejo, suporta aqui o campo da realidade, e este só se sustenta pela extração do objeto
a que, no entanto, lhe fornece seu enquadre‖ (LACAN 1966c, p. 560). A constituição da
realidade como correlata à fantasia é, pois, apanágio do neurótico; a ―extração do objeto
a‖ do campo da realidade constitui uma perda da realidade própria ao funcionamento
fálico. Quando, por algum motivo, a fantasia falha e perdem-se as balizas que suportam
a diferença entre ―S‖ e ―a‖, surge o confronto ao desejo do Outro e a angústia.
Se, porém, a emergência da angústia é correlata a esta falha que faz com que ―a
falta falte‖, poderíamos pensar que, nas psicoses, pela estruturação alternativa à tela da
fantasia, não haveria angústia? O que ocorre em verdade é algo bem diferente disto:
uma vez que o sujeito é confrontado com avatares da pulsão sem mediação da tela da
fantasia, posto que este é um recurso neurótico, o psicótico é assolado por uma invasão
de gozo. O confronto com a angústia, diferentemente do que se dá com o neurótico, não
se fará sentir pela divisão – barra do desejo incidindo sobre o sujeito. Como assevera
Beneti, para o psicótico em sua relação com o objeto:

―... trata-se de uma certeza sem nenhum efeito de divisão. Ele


não falta e é exatamente por isso que não o deixa em paz. Esse
gozo que o atravessa e que ele descreve com tantos fenômenos,
como algo que o parasita vindo do exterior é exatamente o que
vai desencadear sua angústia. (BENETI, 2006, p.102).

Há que se referir, assim, ao considerarmos a relação do psicótico com a


angústia, para além do sujeito barrado e a extração do objeto a do campo da realidade, a
uma estruturação alternativa: Lacan, apelando para seu esquema da divisão do sujeito,
evoca um tempo, ―mítico‖ (LACAN 1963-4, p. 192), em que esta perda entre os campos
do sujeito e do Outro efetivada pela queda, entre ambos, deste objeto amboceptor que é
o ―a‖, não se deu. O sujeito que desta conjuntura emerge é o ―sujeito do gozo‖ (idem, p.
192) que Lacan não grafará como S de a barrado, mas somente como S. Em
Apresentação das memórias de um doente de nervos (LACAN 1966d) Lacan retoma o
termo ―sujeito do gozo‖ para identificar, na paranóia, a operação de ―identificar o gozo
no lugar do Outro como tal‖ (idem, p. 221). Lacan dirá em Pequeno discurso aos
psiquiatras (LACAN 1967) que em relação com a ―causa‖, o psicótico é ―livre‖:
215

Há homens livres [...] os verdadeiros homens livres são


justamente os loucos. Não há demanda do objeto a, pois ele
o tem. É o que ele chama, por exemplo, de suas vozes. Ele
não o tem no lugar do Outro, e sim à sua disposição. [...]
Chamamos o bom Deus dos filósofos de causa sui, causa de
si. Digamos que o louco tem a sua causa no bolso, e é por
isso que ele é louco (LACAN 1967).

Concernindo a algo do corpo vivo, o gozo ‒ e não a um organismo ―em pane‖


‒ e evocando as vicissitudes libidinais nas diferentes estruturas clínicas, a angústia é um
dos sinais da inundação de libido que o psicótico sofre. É isto o que, pela tentativa de
subtração do kakon, o louco busca tentar tratar. Parafraseando Lacan, em uma apreensão
mais tardia da angústia, diremos que ―a angústia é isso: é o que do interior do corpo
existe quando há algo que o atormenta‖ (LACAN 1974-5). Resta, entretanto, pensar a
ação homicida e seus efeitos sobre este sentimento avassalador da angústia.
Uma pista nos é dada por Lacan ainda em seu seminário sobre a angústia.
Neste, Lacan propõe que o encontro com ―a‖ suscita a angústia, um afeto que ―não
engana‖ (LACAN 1963-4, p. 88); dito de outro modo, a angústia desvela uma certeza,
uma ―certeza assustadora‖. Ante esta presença angustiante, todavia, Lacan evoca a
efetividade do agir: ―agir é arrancar da angústia a própria certeza. Agir é efetivar uma
transferência de angústia‖ (idem, p. 88). Assumindo a evidência clínica do efeito
apaziguador das ações nos ―casos kakon‖, debruçar-nos-emos, agora, sob sua dinâmica
a partir de um conceito que evoca algo deste agir: a ―passagem ao ato‖.

D) a passagem ao ato: inscrição de diferenças


Em A quién mata el asesino ? (TENDLARZ e GARCIA 2008) Tendlarz indica
que a noção de ―passagem ao ato‖ emerge num contexto distinto do psicanalítico.
Introduzida pela criminologia do século XIX na psiquiatria clássica, tal concepção
designa a ―impulsividade de condutas auto e hétero-agressivas, criminais, violentas ou
delinqüentes‖ (idem, p. 20). Com efeito, nossas pesquisas permitem-nos corroborar esta
afirmação: livros como Psicologia do amor, de Gaston Danville91 − em que o autor
interroga o amor desde a psicopatologia – situam a passagem ao ato como concretização
de obsessões que invadem e angustiam seja o doente, seja o apaixonado.

91
Gaston Danville é o pseudônimo de Armand Blocq, escritor e filósofo interessado em psicologia
experimental, particularmente no que tange a ―conflitos de personalidade‖ e ―patologia do funcionamento
da mente humana‖ (ALONSO GARCIA 2005-6, p. 6). Além de novelas, Danville se interessava pela
discussão criminológica apresentando trabalhos nesta área. Sendo um dos criadores da revista Mercure de
France, ele produzia contos de literatura fantástica nos quais utilizava conhecimentos em psicopatologia.
216

Numa discussão que desvela, em seus primórdios, o debate psiquiátrico sobre os


―crimes e delírios passionais‖, reporta Danville que ―as obsessões podem não
permanecer apenas puras idéias, mas conduzir irresistivelmente ao ato‖ (DANVILLE
1894, p. 112). Segundo ele, ―a idéia implantada em definitivo no espírito do doente não
apenas exerce a tirania obsessiva, mas adquire uma importância inusitada que necessita
sua passagem ao ato, e dá lugar às tendências impulsivas‖ (idem, p. 112). Esta impulsão,
―conseqüência fatal da obsessão‖, atualizaria um virtual ‗já inscrito‘ no psiquismo;
vemos, pois, aqui, ressonâncias da idéia de um instinto ou tendência que, como vimos,
caracteriza o lombrosianismo e a teoria da degeneração. Curiosa, mas não fortuitamente,
este também fora o sentido do que talvez tenha sido uma das primeiras formas de
utilização desta expressão por Lacan.
Em 1931, no texto Estrutura das psicoses paranóicas, o jovem psiquiatra Lacan
sublinha, num esforço de se contrapor à redução da paranóia aos termos de uma
psicologia normal, a estrutura fenomenológica destes quadros clínicos. Aproximando-se
dos mestres franceses da psiquiatria da época, como Serieux e Capgras, Lacan utiliza as
descrições daqueles para tirar, destas, conseqüências no sentido de uma descontinuidade
nosográfica, diagnóstica e mesmo médico-legal. No que tange a este último ponto,
Lacan − que um ano depois, a partir de seu encontro com Aimée, tomará uma posição
extremamente crítica em relação à noção de ―constituição paranóica‖ − reproduz as
posições que vimos desdobrarem-se no debate que propunha diferenciar os delírios
interpretativos dos passionais – tomando os ―passionais‖ como sujeitos cuja ―reação
assassina é o caso que se põe mais freqüentemente‖ (LACAN 1931, p. 441).
Na trilha das posições devindas clássicas na psiquiatria francesa, Lacan dirá que
―o delírio passional é totalmente orientado rumo ao ato e a ele passa de forma eficaz.
Este último é sempre determinado por um paroxismo emocional e ansioso‖ (idem, p.
441). Em sua posição no ano de 1931, Lacan proporá, então, que, ao contrário dos
delírios interpretativos, no desencadeamento nas psicoses passionais, o postulado
delirante ―sustenta um estado estênico eminentemente próprio à passagem ao ato‖
(idem, p. 441): ―Como nas outras impulsões-obsessões, o ato alivia o sujeito da pressão
da idéia parasita, assim depois de hesitações numerosas, o cumprimento do ato põe fim
ao delírio, que se revela desta forma, a base da impulsividade degenerativa‖ (idem, p.
441). Num tempo zero de suas elaborações sobre a passagem ao ato, o jovem psiquiatra
Lacan precisará de atravessar o ―Rubicão-Aimée‖ para se deparar com o pulsional
freudiano para além da psiquiatria constitucional e dos limites da chave delirante.
217

Em 1966, no escrito De nossos antecedentes – no qual Lacan retoma o encontro


com aquele que terá sido seu caso princeps −, Lacan atribuiu, realmente, àquela
experiência, o valor não apenas de um evento em seu percurso, mas, verdadeiramente,
de uma transformação em sua posição:

... o efeito como que de insuflação que, em nosso sujeito, dera à


luz este anteparo a que chamam delírio, a partir do momento
em que sua mão tocou com uma agressão não inofensiva uma
das imagens de seu teatro, duplamente fictícia para ela por ser a
de uma atriz na realidade, reduplicou a conjugação de seu
espaço poético com uma escansão abissal. Assim, nos
aproximamos da maquinaria da passagem ao ato e, quando
mais não fosse, a nos contentarmos com o cabide da
autopunição que nos estendia à criminologia berlinense pela
boca de Alexander e Staub, desembocamos em Freud.
(LACAN 1966b, p. 70).

A tomada em escuta daquela mulher − a fundação, por meio da transferência,


deste espaço de palavra em que um ―crime‖ se irrealiza – terá suscitado, a posteriori, a
aproximação de Lacan de uma noção de passagem ao ato ‗despsiquiatrizada‘. Num
futuro anterior, terá se tratado, no caso Aimée, de um ponto em que se articulam um
jogo de cena – no qual se perfilavam, como num teatro, ―ficção‖ e ―espaço poético‖ – e
uma ação que impunha um corte, ―escansão abissal‖. Neste escrito, pouco posterior ao
seminário A angústia, a declaração de Lacan em seus Antecedentes ecoa a conotação
adquirida pelo vocábulo ―passagem ao ato‖ naqueles anos: em 1964, Lacan explorou os
limites da cena no teatro subjetivo desde o caso freudiano da ‗jovem homossexual‘.
Trata-se, neste caso, de uma jovem que, a partir do nascimento de seu irmão,
passara a apresentar uma postura ‗viril‘, passando a acompanhar uma dama de ‗conduta
duvidosa‘ aos olhos da cidade. Certo dia, estando a caminhar com esta mulher, a jovem
passa por seu pai – que estava a caminho de seu escritório −, e este lhe desfere um olhar
de reprovação. Uma vez que os cortejos da jovem lhe enfastiavam, a Dama, então,
decide pôr fim aos galanteios da jovem que, tomada pela situação, se deixa cair de uma
ponte. Lacan, ao retomar este caso apresentado por Freud em A psicogênese de um caso
de homossexualismo numa mulher (FREUD 1920b), destaca, desde esta precipitação,
um termo: ―Niederkommen‖, traduzível em português como ―deixar-se cair‖, ―largar de
mão‖, ―dar a luz‖, ―partejar‖, ―vir abaixo‖, ―despencar‖. Lacan resume assim a ‗cena
fantasmática‘, espaço psíquico de onde ―despenca‖ a jovem homossexual:
218

Já que fui decepcionada em meu apego por ti, meu pai, e que eu
mesma não posso ser tua mulher submissa nem teu objeto, é Ela
que será minha Dama, e, quanto a mim, serei aquele que
sustenta, que cria a relação idealizada com o que foi repelido de
mim mesma, com o que, de meu ser de mulher, é insuficiência.
De fato, não nos esqueçamos de que a moça abandonara o
cultivo de seu narcisismo, seus cuidados, sua coqueteria e sua
beleza, para se transformar no cavaleiro servidor da Dama
(LACAN 1963-4, p. 124-5).

A posição de Lacan em sua interpretação do caso é a de que a jovem,


virilizando-se de forma quase caricata ao buscar ser ‗um cavalheiro‘, buscava
―promover o falo como tal ao lugar de a‖ (idem, p. 126) positivando-o. Por outro lado,
sublinhando o termo ―nierderkommen‖, introduzido por Freud, Lacan destaca, desde a
queda da cena, uma modalidade ―súbita‖ de relação do sujeito com sua objetalidade, ―ao
que ele é como a‖ (idem, p. 124). Neste limite entre cena e mundo (―onde o real se
comprime‖), este ato desvela sua orientação: ―o sujeito como que retorna à exclusão
fundamental em que se sente‖ (idem, p. 124).
Na desaprovação do pai e com o fim do enlace com a Dama, a cena põe-se a
ruir; confrontada com a castração, com o falo que ela não é, a jovem é lançada num
momento de grande embaraço; algo despenca da cena, é subtraído. Lacan dirá, então,
que, após este ―embaraço supremo‖ ocorre a emoção – pensada não como sentimento,
mas como distúrbio que impele a ação. A partir da ―impossibilidade de enfrentar o que a
namorada lhe faz‖ (idem, p. 123) a angústia lhe sobrevém. Positivando o falo, este
objeto que faz alusão ao objeto do desejo e não fazendo dele suporte da castração − pela
negatividade que lhe é própria −, a jovem vê ser-lhe devolvida a ―castração‖ (idem, p.
126).Nesta saída de cena, neste precipitar-se pela janela no qual Lacan reconhece a
incidência nos casos de melancolia, trata-se da ―partida errante para o mundo puro, no
qual o sujeito sai à procura, ao encontro de algo rejeitado, recusado por toda parte‖
(idem, 130).
Na contramão deste movimento, Lacan situa outra modalidade de ato, o ―acting
out‖: se, de certo modo, a passagem ao ato se caracteriza como ‗saída de cena‘, o que
ocorre no acting out é algo assaz diverso: trata-se de um ‗subir ao palco‘. De certo
modo, enquanto a passagem ao ato é concomitante a um transbordamento de angústia −
momento de ―embaraço supremo‖, marca do retorno da castração sobre o sujeito,
seguido da emoção, distúrbio do movimento −, o acting out envolve, em verdade, uma
espécie de ―evitação da angústia‖:
219

Acting out é, essencialmente, alguma coisa que se mostra na


conduta do sujeito. A ênfase demonstrativa de todo acting out,
sua orientação para o Outro, deve ser destacada. O que se
mostra diferente do que é. O que é isso, ninguém sabe, mas
que é outra coisa, ninguém duvida (LACAN 1963-4, p. 137).

Trata-se, pois, no acting out, de uma ―mostração velada‖, velada ao sujeito no


momento em que ele − ―Outrificado‖, como diz Lacan −, cego sob a luz dos holofotes,
desconhece a dimensão da cena que ele próprio desempenha. Há, portanto, no acting,
não o engodo, mas, em sua relação com o Outro, uma estrutura de ficção: ―isto poderia
ser verdade‖ (idem, p. 140). No acting out, o essencial a ser mostrado é esse resto, o a
em cena. Lacan ilustra isto desde um caso de Ernst Kris, analista da primeira geração.
Neste caso de Kris, um Schollar ―brilhante‖ queixa-se ao analista de sua suposta
―incapacidade‖ em produzir publicações originais, sentido-se ele um ―plagiário‖. Certa
vez, após ―pôr um texto de pé‖, diz a seu analista ter encontrado numa biblioteca toda
sua tese num artigo publicado. A problemática do sujeito revela a Kris, entretanto, ter
raízes mais obscuras: este sujeito encontrava-se entre um pai ―que nunca chegou a
publicar nada‖ e um avô que os ―esmagava‖ por ser ―uma personagem produtiva e
muito fecunda‖ (LACAN 1953-4, p. 75). A intervenção de Kris fora a de, tomando em
leitura o artigo referido, encontrado na biblioteca, indicar ao paciente ―que não há ali o
essencial das teses introduzidas pelo sujeito‖ (idem, p. 75).
A esta intervenção de Kris o paciente não responde, a princípio com nada senão
o silêncio. Na sessão seguinte, porém, o paciente relata ter ido a um restaurante para
comer um prato de que gostava particularmente: ―miolos frescos‖ (idem, p. 76). ―Com
os miolos frescos, o paciente simplesmente faz um sinal para Ernst Kris: tudo que o
senhor diz é verdade, mas simplesmente não toca na questão; restam os miolos frescos‖
(LACAN 1963-4, p. 139). ―Transferência selvagem‖, ―sintoma‖, ―começo da
transferência‖ o acting out é, ao contrário da passagem ao ato, não um ―largar de mão‖,
mas, um ―pegar pela mão‖, um apelo à interpretação e ao Outro.
Que não se veja, porém, nos contrastes entre ―passagem ao ato‖ e ―acting out‖ o
privilégio de uma destas operações em relação a outra: tratam-se de modalidades de
relação com o que Lacan sublinhou como sendo um objeto impossível de ser capturado
pela máquina formal significante. Mas, no que concerne à elucidação dos assassinatos
imotivados na psicose – lidos por nós desde a noção de kakon −, pensamos caber aqui a
pergunta: como pensar este ―sair de cena‖ da passagem ao ato psicótica se Lacan evoca
a noção de cena a partir da fantasia − desde Freud, referida à neurose?
220

Para entender esta questão atentemos para um detalhe. Lacan, ao se pronunciar


sobre a ‗saída de cena‘, do lançar-se para fora da janela da fantasia, o faz da seguinte
maneira: ―Se vocês quiserem referir-se à fórmula da fantasia, a passagem ao ato está do
lado do sujeito na medida em que este aparece apagado ao máximo pela barra‖ (idem, p.
129). Ora, nesta citação, Lacan se utiliza da condicional ―se vocês quiserem referir-se à
fórmula da fantasia‖ para, a partir da fantasia, da barra e da extração do objeto a, pensar
a passagem ao ato. Ora, se Lacan se utiliza da condicional para definir a passagem ao
ato, resta, portanto, no mínimo a dúvida de que esta seja a única forma.
Querelas à parte, sendo a psicose diversa da neurose, proporemos, logo, não a
―fantasia‖ como mediação das relações com o pulsional, mas, sim, o delírio – rede
significante que pode modalizar a presença do Outro −, a alucinação – vias alternativas
ao que o neurótico acredita se tratar de uma ―auto-estrada‖ (LACAN 1955-6), e outras
invenções – que vão desde os acontecimentos de corpo na esquizofrenia até a
construção de duplos no autismo. Uma vez que isto assim se passa, entenderemos, aqui,
que a cena da qual o sujeito se precipita não será, na psicose, a fantasia strictu sensu,
mas a conjuntura ou acomodação até então relativamente estável ou possível entre os
registros do real, simbólico e imaginário. A passagem ao ato na clínica da foraclusão
estrita, como diríamos com Cottet, poderá ser pensada, por nós, então, como a produção
de um objeto que despenca, que é ―largado de mão‖, uma subtração que o bane não da
cena fantasmática, mas, sim, de uma conjuntura psicótica.
Do mesmo modo, a presença do embaraço – figurada, por Lacan, como a barra
que traz a marca da castração sobre o sujeito −, dirá respeito, para nós, não a uma perda
própria à neurose, mas, sim, a uma perda ainda mais fundamental, ligada à estrutura da
própria linguagem em sua relação com o ser do falante. Lacan chama esta perda advinda
da impossibilidade de capturar o objeto numa cópula que remete ao instintivo − ou
ainda, de uma relação totalizante entre os significantes −, de ―Não relação sexual‘. Se ao
neurótico resta reiterar esta perda ante a impossibilidade da cena fantasmática em velar
todos os rincões do real, o psicótico, por outro lado, buscará produzir, desde
determinada ‗conjuntura simbólica-real-imaginária‘ um pequeno intervalo que marcará
já uma distância entre si e o objeto que ele ‗traz no bolso‘, reiterando que, deste objeto o
psicótico se aproxima, mas com este ele não coincide. Nem reduzida a uma explosão de
libido, nem referendando uma cópula do louco como ―objeto do gozo do Outro‖, a
passagem ao ato tenta operar uma negativização; visa a produzir um pequeno intervalo a
ser usado pelo psicótico para mediar suas relações com o gozo.
221

D.1) A passagem ao ato e diferença I:


a subtração de gozo
Que outros indícios, porém, que não o furtar-se da cena – doravante ‗conjuntura
psicótica‘ −, teríamos para sustentar que, na passagem ao ato, ocorre a produção de uma
diferença no sentido de uma subtração? Ora, no seminário A Angústia Lacan recorre,
por vezes, à expressão ―passagem ao ato‖ para falar do processo pelo qual um objeto,
separando-se do corpo do falasser, é ‗passado ao ato‘ no sentido de ‗subtraído‘. Este é o
caso, por exemplo, do que ocorre com os objetos a inventariados em seu ―catálogo de
objetos‖ (LACAN 1963-4), dentre os quais citaremos – para ilustrar os efeitos de
subtração próprios à passagem ao ato −, os objetos anal e vocal.
Na lição intitulada ―A voz de Javé‖, em que Lacan analisa a pulsão invocante,
ele destaca isto que se separa entre sujeito e Deus no rito hebraico: a ―voz‖, relação com
o significante ―não somente articulado (...) mas emitido, vocalizado (idem, p. 273).
Mediador das relações entre Javé e seu povo, o som do ―chofar‖ – espécie de berrante −,
presentifica um objeto advindo da emissão vocal do significante, produção de uma
separação junto ao corpo ―que completa a relação do sujeito com o significante, no que
poderíamos chamar, numa primeira apropriação, de sua passagem ao ato‖ (idem, p.
273). Trata-se, Lacan o pontua, de uma relação com o vocal para além do significante
articulado ou mesmo do fonema – no qual ele reconhece já uma articulação.
Algo semelhante será destacado por Lacan na lição seguinte de seu seminário,
no qual ele retoma, de seu ―catálogo‖, outra modalidade de apresentação do objeto a: as
fezes, não como ―dom‖ ou objeto de demanda entre sujeito e Outro, mas, sim, como
objeto negativizado, subtraído, ‗passado ao ato‘: ―Todos sabem que Freud sublinhou
desde o início o caráter de dádiva das ocasiões em que a criança pequena solta,
intempestivamente, algo de seu conteúdo intestinal. Essas ocasiões, vocês me permitirão
chamá-las (...) de ocasiões de passagem ao ato (idem, p. 285).
Há, portanto, a possibilidade de tomarmos estas pequenas subtrações como algo
correlato a ―passagem ao ato‖ – passível de ocorrer nas diferentes estruturas clínicas.
Estas pequenas subtrações adquirem, porém, na psicose, um valor diverso da incidência
da negativização fálica no que Lacan chama ―extração do objeto a‖ − que separa, de
forma radical, sujeito e objeto na tela da fantasia. Trata-se, na psicose, de produzir um
tipo de subtração consistente com a perda que todo ser falante vivencia ao ser tomado
pela linguagem. Aproximamo-nos, assim, da tentativa de subtração do mal-estar, o
gozo, através de um assassinato imotivado, passagem ao ato homicida.
222

Ante esta perda que se impõe à carne do falasser desde a incidência significante,
a psicose, caracterizada não apenas pela rejeição da via fálica, mas, sobretudo, pela
proposição de formas de lidar com o gozo que passamos a chamar, desde o capítulo
passado, de ‗foraclusivas‘ – por se caracterizarem por este manejo com o ―objeto a no
bolso‖ −, terá recursos próprios para tentar computar esta perda fundamental.
Pela via delirante, temos, por exemplo, aquilo que Freud nos ensinara a escutar
no acolhimento do monumental testemunho que Schreber delega à alteridade. Ao
debruçarmo-nos sob o material que ele nos oferta, vemos como Schreber testa os limites
da via delirante para, a seu modo, tentar articular algo desta perda. Em suas Memórias,
ele parece ter atribuído as perturbações ocorridas em seu mundo libidinal a uma falta
num duplo sentido: de um lado, no ―assassinato de almas‖, um Flechisig atentara, numa
geração anterior, contra um dos integrantes da família Schreber; de outro lado, de
alguma forma, esta falta fora, também, uma transgressão da ―Ordem das coisas‖, ou seja
uma espécie de crime em escala cósmica.
Por outro lado, coube a Schreber equacionar a impossibilidade por ele sentida
de alojar a cópula impossível com Deus: há certo fracasso do paranóico em localizar o
gozo no lugar do Outro (LACAN 1966d, p. 221). Schreber de certo modo acomoda algo
desta impossibilidade em seu delírio ao evocar, na realização plena desta cópula, sua
relação com o que Freud chama de assintótico: apenas num futuro estendido ao infinito
– ou seja, no mínimo num ‗impossível atual‘ − que ele completará sua transformação
em ―mulher de Deus‖, parturiente da ―nova raça de homens schreberianos‖. Não fora
esta acomodação aquilo que permitira uma parcialização de seu delírio e motivara-o a
submeter sua construção à opinião de ―profissionais‖ que teceriam considerações ―sobre
seu corpo e seu destino pessoal‖ (SCHREBER 1903, p. 25)?
Hipóteses à parte, há, nós o pensamos, desde a localização de uma perda via
concepção delirante, a possibilidade de uma subtração mínima de gozo e a construção
de uma modalização deste − que pode atingir, na psicose, uma estabilização. Opomos,
então, à ―extração do objeto‖ na neurose − pela incidência do -φ que é o falo −, à
denominação ―subtração de gozo‖ − que embora demarque uma perda, opera de forma
diversa do engendramento do campo do desejo e da causação do sujeito ―barrado‖.
Assim, mister se faz, para nós, ressaltar, como fez Freud, que o delírio pode assumir
importante papel na estabilização dos quadros psicóticos; produzindo uma mediação
entre o sujeito e um Outro repleto de gozo, computando a perda em algum nível.
223

A referência Schreberiana a seu corpo chama a nossa atenção, entretanto, para as


psicoses não delirantes, nas quais o gozo retorna sobre o corpo do falasser, como é o
caso das esquizofrenias. É, com efeito, a este respeito que Lacan, em O Aturdito
(LACAN 1972), chamara a atenção para a relação problemática do esquizofrênico com
seus órgãos e corpo, relação esta para a qual o recurso dos discursos estabelecidos
mostram-se contextualizações não efetivas.
Para o falante, que traça sua relação com o corpo desde a esfera de ―ter‖ e não de
―ser‖, esta falta a ser o corpo é tratada pelo recurso aos diferentes registros da
linguagem, sendo no caso específico da neurose, dirigido um apelo à lógica fálica como
forma de, a partir dos ―significantes primordiais da cultura‖ (LACAN 1955-6, p. 228),
atingir meios partilhados de construção de sua resposta. Mas, como tomar, nesta
problemática, o que ocorre na esquizofrenia?
Miller em A invenção psicótica dirá que: ―Na esquizofrenia, os órgãos passam
fora do corpo no sentido de que eles ganham vida, tem vida própria, e cumprem seus
papéis sozinhos‖ (MILLER 2003, p. 8). A referência, não a um ―corpo sem órgãos‖,
mas a ―órgãos sem corpo‖ (idem, p. 10), permitem-nos interrogar como, para o falante,
há um hiato entre o órgão e sua função. Ora, se o ―objeto a‖, a ―linguagem‖, a ―libido‖ e
o ―falo‖ são órgãos ―fora do corpo‖, advindos desde o ―corpo primeiro da linguagem‖
(LACAN 1970, p. 406), eles transbordam, e muito, a imagem corporal, tida por
evidente. Não é algo diverso disto o que a esquizofrenia põe em xeque. Evocando o
caso de um paciente que se auto-intitula ―cabine de telefone sem telefone‖ Miller busca
apreender a importância deste saber-fazer com o corpo: ―a reintegração no corpo do
órgão fora do corpo talvez seja o que os anéis, a faixa na testa do esquizofrênico
asseguram, ou seja, outros meios simbólicos de reunificar o corpo e sustentá-lo, e ali, de
fato, sem estar num discurso estabelecido (MILLER 2003, p. 15).
As invenções esquizofrênicas, diferentes da referência aos discursos partilhados,
são invenções por se basearem não em criações a partir ―do nada‖, mas em rearranjos
dos recursos disponíveis: é desde esta particularidade que o psicótico é chamado a
organizar simbólico, imaginário e real, de modo a instrumentalizar, minimamente seus
órgãos. Mas, como a esquizofrenia reitera a importância do lugar da subtração de gozo?
Para apreendermos a tentativa não fálica de negativização esquizofrênica,
utilizaremos dois conceitos recortados por Miller em seu Biologia lacaniana (MILLER
1999), as noções de ―significantização‖ e a de ―corporização‖.
224

Neste texto, Miller sublinha o último ensino de Lacan, que toma como algo
fundamental a dimensão do significante como ―causa de gozo‖. O significante é
pensado por Lacan em seu Seminário XX desde a coincidência do sujeito do
significante − causado pela faceta sintática da linguagem − com o ser falante afetado
pelo inconsciente. É desde esta coalizão que Miller propõe que a condição do gozo é o
ser falante como vivo, ou, dito em outras palavras, que ―a vida é condição do gozo‖
(MILLER 1999, p. 8). Mas, como esta incidência instaurada pela ação do significante
que se inscreve na carne do falasser nos auxilia a lançar luz sobre o trabalho do
esquizofrênico sobre o corpo e, mais ainda, como ela colabora para pensarmos este
trabalho em termos de uma tentativa de subtração de algo do gozo?
No caso em que o paciente ―cabine de telefone‖ busca se vincular a seu corpo
por meio de adereços e da nomeação ―cabine de telefone sem telefone‖, talvez
possamos pensar este processo em torno do que Miller chamara de ―significantização‖
(idem, p. 57). Por este processo, ele entende o que Lacan várias vezes em seu ensino
chamara de ―elevação ao significante‖, processo correlato ao ―assassinato da Coisa‖.
Neste processo, de acordo com Miller, é preciso ―certa anulação da coisa inicial e uma
estilização para que se opere a significantização‖ (Idem, p. 57). Miller evoca, para
ilustrar isto o exemplo dado por Lacan em seu discurso de Roma, Função e campo da
fala e da linguagem (LACAN 1953):
Ele nos dá em seu discurso de Roma o exemplo detalhado das
―andorinhas-do-mar‖ com o peixe que elas significantizam.
Normalmente, as andorinhas-do-mar devoram o peixe chegando
mesmo a disputá-lo para devorá-lo. (...) Mas, ocorre que
observa-se uma festa das andorinhas-do-mar que se faz por
meio de um peixe que elas abstêm-se de comer: ele se torna o
instrumento da festa e as andorinhas-do-mar passam o peixe de
bico em bico. Aí está, basta dizer que o peixe festivo, este peixe
grupal, é símbolo, isto é, que ele subtrai-se ao impulso de auto-
conservação (idem, p. 57).

A curiosa referência à significantização no mundo animal nos permite relativizar


o suposto paradigma desta operação, o falo: a princípio é ele que é destacado como
objeto que, na estruturação do sujeito barrado, deve ser elevado à ‗dignidade de
significante‘. Trata-se, pois, a nosso ver, de uma propriedade do significante, e não
exclusividade do falo apresentar-se como presença de uma ausência; na dimensão
simbólica um sinal é caracterizado justamente por evocar ausências seja de outro sinal −
que ele não é −, seja, ainda, do que pode ser por ele representado – no caso um sujeito
para outro significante. A negativização, assim, é uma potência do significante.
225

Parece, portanto, possível pensar a nomeação ―cabine telefônica sem telefone‖ –


que anula ―a coisa anterior‖, retirando-o da cena do mundo − como propiciadora, em
algum nível, de uma subtração no real outrora transbordante, daí, também, a chance
deste paciente atingir alguma estabilização. Há, porém, além da ―significantização‖,
outro processo na relação do falasser com o corpo na esquizofrenia que atesta o valor
terapêutico de uma subtração, a ―corporização‖.
Segundo Miller este conceito ―é de alguma forma o avesso da significantização‖.
É, sobretudo o significante entrando no corpo (MILLER 1999, p. 57). Trata-se, neste
último caso, do significante ―afetando o corpo do ser falante , (...) espedaçando o gozo
do corpo e fazendo salientar o mais de gozar‖. A negativização aqui, operaria por certa
desvitalização do vivo, introduzida pela incidência, na carne do falasser, do significante.
O corpo, neste sentido mais cru − daí utilizarmos o termo carne − ofertar-se-ia ao
significante como uma superfície de escrita, como um lugar para a ―sulcagem‖. Ao
traumatizar este corpo no real − não limitado pelo falo e não imaginarizado − o
significante, devido a sua incorporeidade − ou seja, sua não redução ao empírico −,
instauraria negativização e parcialização, daí a figura evocada por Miller do corpo
espedaçado, daí, também, o trabalho de tentativa de subtração de gozo presente no
paciente ―cabine-telefônica‖: os piercings por ele utilizados trazem, assim, a marca
destas pequenas auto-mutilações que, equipando o corpo, transformam-no em uma
estação de ‗transmissão‘ e ‗recepção‘ das vozes que ele alucina.
Desde a perspectiva de uma tentativa de subtração de gozo, vemos como Lacan
subverte, em 1963, a acepção psiquiátrica do termo − que fora a dele em 1931. Esta
noção passará a evocar, em Lacan, não uma ‗virtualidade perigosa‘, mas o esforço de
produzir, em relação à cena – apreendida por nós pelo que chamamos ‗conjuntura
psicótica‘ – um efeito de subtração. Se a expressão ―passagem ao ato‖, ipsi litteris, não
figura em Freud − embora seu uso tenha se consagrado ao verter, para o francês, a
noção freudiana de ―acting out‖ – é desde os princípios da clínica psicanalítica,
desvelados pela ―escansão abissal‖ (LACAN 1966b, p 60), corte e subtração desferidos,
no real, pela lâmina de Aimée, que Lacan a apreenderá.
Num a posteriori, Lacan se esforçará, portanto, para não sobrepor, como a
consagrada tradução francesa, as duas concepções. Para além de uma ‗justaposição‘, o
acting out freudiano desvela, ainda, algo mais − também irredutível à teorias instintivas
caracterológicas ou degenerativas: a passagem ao ato como inscrição da diferença como
marca no real e a possibilidade de uma mudança de posição subjetiva.
226

D.2) A passagem ao ato e diferença II:


inscrição de uma diferença e emergência do ―novo‖
Vimos, no quarto capítulo de nossa tese, que Freud propusera em Psicopatologia
da vida cotidiana, inúmeros exemplos – como lapsos e equívocos cotidianos −, nos
quais a determinação inconsciente afetava o sujeito não apenas na esfera do pensamento
puro, mas, também, em seus desdobramentos nos termos de ações. Nestas situações, ―os
pensamentos inconscientes expressam-se como modificações de outros pensamentos‖
(FREUD 1905, p. 271) chegando, inclusive, a parasitar as ações motoras, desvelando,
nestas, uma relação do inconsciente com o corpo que remete à incidência do pulsional e
ao saber inconsciente. O processo de rememoração permitiria, a posteriori, reaver as
coordenadas simbólicas que determinavam tais ações.
Ocorre, entretanto, que a experiência clínica impôs a Freud um passo além na
investigação do inconsciente: em 1914, no texto Recordar, Repetir, Elaborar, Freud
expõe situações em que algo se atualizava nas sessões com os pacientes e que se opunha
a uma rememoração sob a forma de idéias. Mais que uma resistência a superar, o acting
apresentava uma maneira diversa do inconsciente se apresentar: ―o paciente não recorda
coisa alguma do que esqueceu e recalcou, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it
out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente,
saber o que está repetindo (FREUD 1914b, p. 165). Deste modo de funcionamento
Freud cita alguns exemplos: pacientes que não se recordam da relação desafiadora com
seus pais, mas assim agem com o analista; pacientes que não lembram ter sentido
vergonha em suas experiências sexuais, e que, aparentemente sem motivo algum,
envergonham-se perante o clínico.
Antes que uma objeção ou limite ao tratamento, a repetição do que falha em ser
rememorado em termos de saber inconsciente desvela-se, a Freud, um recurso: é com
ela que o paciente ―começará o tratamento‖, esta é ―sua maneira de recordar‖ (idem, p.
166). Desdobrada desde a clínica com neuróticos, esta noção punha em xeque certa
idéia de que seria próprio às psicoses o aparecimento de ações imotivadas – ao se
entender, por ―imotivado‖, fenômenos que desafiam a compreensibilidade, o recurso ao
sentido imediato e coletivamente partilhado. Nestes fenômenos clínicos, não apenas não
psicóticos ―atuavam‖ junto ao médico, mas, também, eram submetidos a esta forma de
incidência do inconsciente ―em cada diferente atividade e relacionamento que podem
ocupar sua vida na ocasião‖ (FREUD 1914b, p. 166).
227

Se a rememoração punha em jogo a historicização do sujeito − o re-significar


dos traços que lhe marcam −, a ―compulsão à repetição‖ torna presente algo de ―atual‖,
―presente‖, um ―fragmento da vida real‖ do paciente. Esta noção de ―acting out‖ é
retomada por Freud oito anos depois, em Além do princípio do prazer (FREUD 1920a),
texto em que reiteram-se os riscos de uma concepção de análise que desconheça os
limites da rememoração: ―o paciente não pode recordar a totalidade do que nele se acha
recalcado, e o que não lhe é possível recordar pode ser exatamente a parte essencial‖
(idem, p. 29). A ―repetição‖ do material não rememorável, advindo das vicissitudes
pulsionais infantis, ―são invariavelmente atuadas (acted out) na esfera da transferência‖.
A ―compulsão à repetição‖ – sob a forma dos ―sonhos traumáticos‖, repetição de um
mau destino, jogos infantis com o traumático − presentificam algo de ―demoníaco‖ para
o sujeito, dispondo algo mais primordial que o princípio do prazer: o imperativo de
vincular a pulsão de morte, libido não-ligada, ―retorno ao estado anterior‖.
Verdadeira impossibilidade de inscrever, de forma absoluta, a pulsão à esfera de
seus representantes, a pulsão de morte desvelava para a estrutura do aparelho psíquico, a
tarefa de lidar com aquilo que − como o dirá Lacan em 1973 − ―não cessa de não se
92
inscrever‖ , com algo que, para todo ser falante, se apresenta como um ‗fora-da-lei‘
em relação à dinâmica das representações. Aproximamo-nos, aqui, de um fazer que se
impõe ao falante além das intelectualizações, desconhecimento radical posto que
emergido do não inscritível como saber. Nesse ponto – em que se presentifica isto que
falha em se inscrever como articulado e, por outro lado, exige trabalho do sujeito, Freud
aponta a oportunidade de ocorrer uma mudança de posição que atrela a dimensão ética à
terapêutica:
O paciente tem de criar coragem para dirigir a atenção para os
fenômenos de sua moléstia. Sua enfermidade em si não deve
parecer-lhe desprezível, mas sim tornar-se um inimigo digno de
sua têmpera, um fragmento de sua personalidade, que possui
sólido fundamento para existir e da qual coisas de valor para
sua vida futura têm de ser inferidas (FREUD 1914b, p. 168).

Em Direção do tratamento e princípios de seu poder (LACAN 1958) Lacan,


reitera esta possibilidade de mudança, de franqueamento e transformação, inerentes à
idéia de ―passagem ao ato‖, relida, por Lacan, em congruência com a noção freudiana
de ―acting out‖ − negligenciada por muitos analistas antes dele.

92
Partindo das categorias aristotélicas, Lacan apreende o que ―não cessa de não se
escrever‖ (LACAN 1973, p. 81) como referente ao ―impossível‖.
228

É incrível que, embora desde sempre gritantes, alguns traços da


ação do homem como tal não tenham sido esclarecidos pela
análise. (...) Essa face de proeza, de desempenho, de saída
estrangulada pelo símbolo – o que, portanto, a torna simbólica
(...) – aquilo, enfim, pelo qual se fala em passagem ao ato, esse
Rubicão cujo desejo próprio está sempre camuflado na história
em benefício de seu sucesso, tudo aquilo que a experiência do
que o analista chama de acting out lhe dá um acesso quase
experimental, já que herda disso todo o artifício, tudo isso, na
melhor das hipóteses, o analista o rebaixa a uma recaída do
sujeito, e na pior, a uma falha do terapeuta (LACAN 1958, p.
644-5).

Em 1958, onde ainda equivalia os sintagmas acting out e passagem ao ato,


Lacan chama, assim, a atenção para a dimensão de ―proeza‖, ―desempenho‖ e ―saída‖
―aquilo pelo qual se fala em passagem ao ato, esse Rubicão cujo desejo próprio está
sempre camuflado na história em benefício de seu sucesso‖ (LACAN 1958, p. 644-5).
Esta referência ao ―Rubicão93‖ implica uma aproximação da passagem ao ato daquilo
que, anos mais tarde, em seu seminário sobre O ato psicanalítico (LACAN 1967-8),
Lacan virá a chamar de ―ato‖.
Em seu seminário de 1967, Lacan retoma este evento histórico para evocar que,
no que tange a um ato, este coloca, para o sujeito, ―algo de novo‖, assim como o fato de
que o ato ―tem conseqüências‖. Deste modo, para além da dimensão da inscrição de
uma diferença como subtração, temos, também, a possibilidade de pensar a passagem ao
ato não como a concretização de uma idéia, instinto ou virtualidade ‗já lá‘, mas como
um franqueamento, no qual se inscreve no real uma diferença que pode transformar o
estatuto daquele que ‗terá sido‘ seu autor. Tal propriedade levara Lacan a incluir a
passagem ao ato na ―gama de atos‖ (idem). Em verdade, num passo para além disso,
Lacan propõe, no coração de um seminário dedicado ao ato psicanalítico, que a
passagem de analisando a analista é, com efeito, uma ―passagem ao ato advertida‖
(LACAN 1967-8). Se, como vemos agora, podemos ver esta aproximação entre estas
noções, mister se faz interrogarmos, desde as características do que Lacan chamou de
―ato em geral‖, os casos kakon.
93
Rubicão, era o nome de um rio localizado no norte da península itálica, na Roma antiga. No ano de 49
antes de Cristo, Caio Júlio César, então general, transgredia as leis romanas ao franquear este limite que
proibia os generais romanos de atravessá-lo com suas tropas − medida que visava a manter o efetivo perto
do núcleo do império. Quando César atravessou este rio, violando a lei, tornou-se inevitável o conflito
armado. Ao empreender este feito, César sabia que não tinha volta, ele mudara o rumo da história. Nesta
conjuntura limítrofe, em que César se pusera em oposição às coordenadas simbólicas que compunham as
leis do Estado, ele teria proferido a famosa frase: Alea jacta est (‗a sorte está lançada‘ ou ‗os dados estão
lançados‘). A expressão, ―atravessar o Rubicão‖, portanto, passaria a ser usada para referir-se a qualquer
pessoa que tome uma decisão arriscada de maneira irrevogável, sem volta.
229

De início, partindo do que elaborara Freud desde os atos falhos – visto por nós
em nossas considerações sobre a Psicopatologia da vida cotidiana −, Lacan dirá que um
―correlato significante‖ ―não falta jamais no que constitui um ato‖ (LACAN 1967-8). A
noção psicanalítica de ato – não estritamente do ato psicanalítico, mas do ―ato em geral‖
−, permite-nos, logo, apreender o ato em relação à incidência significante, com sua
marcação a partir de uma conjuntura de linguagem e dispondo uma diferença no real.
Esta concepção refuta, portanto, de forma crítica, os problemas envolvidos na
concepção do ato como descarga de tensão puramente motora ou, segundo o modelo
arco-reflexo, uma relação necessária seja sob a forma de um reflexo incondicionado ou,
ainda, de uma ação secretória (LACAN 1967-8). Desta inscrição da diferença simbólica
no real temos um exemplo patente: o caso de Celso Renno Lima discutido por Jacques
Alain-Miller em 1988.
Em Do Delírio ao ato ou da Clínica ao Matema (LIMA 1994), Lima fala de um
paciente do qual passara a tratar. Este último, tendo longo percurso de internações
psiquiátricas e um ‗histórico de agressividades‘, havia sido indicado a Lima junto a uma
série de advertências. Certo dia, durante uma intervenção, o analista recebe do paciente
um soco no rosto; chorando o paciente parecia se lamentar: ―Agora você também vai
embora como os outros. Eu sei, você vai embora‖ (idem). Após este fugidio instante, ao
tornar a olhar para o rosto do analista, relata Lima que o paciente solta,
inadvertidamente, uma gargalhada: ―Agora sim, eu fiz seu olho diferente do outro!‖.
Invadido pela presença delirante de um olhar que o transbordava, estando, como dizia, o
paciente, ―sem saída‖, este se precipita ao ato. Da ―mãe quase cega‖ até a ―presença
maligna daqueles óculos‖ que poderiam o cegar, impôs-se, pela dessimetria entre um
olho e outro, uma diferença no real. Miller a este respeito pondera que:

Isso dá uma chave para entender o que lhe interessa no ato de


agressão. O fundamental, para ele, é introduzir uma diferença
entre os dois semelhantes. Que significação tem isto senão que
no fato de fazer os dois semelhantes diferentes, constitui-se para
ele uma marca (idem)?

Este ‗inscrever uma diferença no indiferenciado‘ – e, é claro, a manutenção do


analista no caso – conduziram o paciente da experiência desagregadora ao acesso, sob
transferência, ao par de oposição mínima ―S1‖ e ―S2‖, ―um olho diferente de outro‖,
possibilidade de se construir, posteriormente, junto a Lima, seja uma demanda seja a
ulterior estabilização delirante.
230

Se no instante da passagem ao ato, assim como no ―ato em geral‖, como diz


Lacan, ―não há sujeito‖ (LACAN 1967-8), este franqueamento permite ao falasser,
―agido‖, encontrar sua ―presença renovada‖, alcançando efeitos do ato como
propiciador de ―algo novo‖. Assim, no que diz respeito à dimensão do ato, Lacan
reconhecerá que ―um ato é ligado à determinação de um começo, e muito
especialmente, ali onde há necessidade de fazer um, precisamente porque não existe.‖
(LACAN 1967-8). Não apenas ―contrasenso‖ e ―ruptura‖, o ato, para Lacan, é prenhe de
efeitos de criação, de um reposicionamento do sujeito, da inauguração de uma nova
forma de modalizar as relações com o gozo. Reencontramos, aqui, pois, características
fundamentais para, ao ‗elevar a passagem ao ato à dignidade de ato‘, pensarmos sua
incidência não apenas como subtração de gozo, mas, também, como introdução de uma
diferença no real que pode se desdobrar num reposicionamento do sujeito.
É, com efeito, levados que somos por esta dimensão das conseqüências da
passagem ao ato – e da tomada daquilo que nela se precipitou sob transferência −, que
chamaremos agora a atenção para outra característica fundamental da noção de ato:
traço não menos fundamental do ato, Lacan dirá que o ato, ―tem conseqüências‖ (idem).
Isto, em verdade é algo que, como sublinhamos no começo deste capítulo, se impõe
desde a fenomenologia clínica dos assassinatos imotivados. É que, se a evolução dos
casos kakon implica um mal-estar avassalador, uma ação e, depois, apaziguamento −
sob a forma do que Guiraud chamou ―indiferença‖, é preciso, justamente, que, como
ato, sejam colhidas suas conseqüências, a fim de que a diferença possa emergir.
Como vimos nos casos fundadores da psiquiatria criminal, impunha-se, ao louco,
tão importante quanto o apaziguamento alcançado pela subtração de algo do gozo,
tomar conseqüências ante este ―antes e depois‖ do encontro angustiante com o kakon.
Neste ponto, tudo se relativiza: a ―indiferença‖ encontrada pelo psicótico − na subtração
que permite uma distância mínima com este objeto que ele tem no bolso − pode tornar-
se anulada se ao louco é negada a chance de, a partir desta, poder tirar conseqüências.
Não ocorrera algo parecido com Althusser94 que, após a passagem ao ato que subtraíra
sua esposa da cena de sua vida, pusera-se a escrever um livro no qual publicisava não
apenas o que ele acreditava terem sido as coordenadas simbólicas de sua ação, mas,
sobretudo, as conseqüências da demissão de sua relação com o ocorrido?

94
Cf. em O futuro dura muito tempo (1992).
231

Em O futuro dura muito tempo (ALTHUSSER 1992), Althusser sublinha os


paradoxos da cultura perante os homicídios imotivados: se, de um lado, os meios de
comunicação fazem, com tais casos, ―o maior escarcéu‖ (idem, p. 10) – sobretudo num
caso em que está envolvido ―um nome prestigioso‖ −, de outro, a sociedade ―ignorará as
reações do homicida ―não culpado‖, os esforços desesperados que ele empreende para
tentar compreender e se explicar as razões, próximas ou distantes, de um drama no qual
foi literalmente jogado em estado de inconsciência e delírio‖ (idem, p. 31). Na
contramão deste movimento, lançando mão de seu prestígio e deste drama no qual foi
―literalmente jogado‖, Althusser, como Schreber em suas Memórias, tenta inscrever, em
sua autobiografia, as coordenadas simbólicas para a elaboração daquela experiência:

Escrevo este livro em outubro de 1982, ao sair de uma prova


atroz de três anos, cuja história, quem sabe, contarei talvez um
dia, se por acaso ela puder esclarecer outras, bem como suas
circunstâncias e o que sofri (psiquiatria e etc...). Pois eu
estrangulei minha mulher, que era tudo para mim, durante uma
crise intensa e imprevisível de confusão mental, em novembro
de 1980; ela que me amava a ponto de querer apenas morrer, na
falta de poder viver; e talvez eu lhe tenha, com minha confusão
e minha inconsciência, ‗prestado este serviço‘, do qual ela não
se defende, mas do qual morreu (idem, p. 10).

Fato corrente em nossa experiência com psicóticos envolvidos em assassinatos


imotivados, a exclusão dos dizeres do paciente acerca de seu feito mostra-se uma ação
demissionária e desumanizadora – no sentido de que isto reitera a objetivação do louco
como ―incapaz‖, ―perigoso‖, etc. O que retorna sobre o louco privado da possibilidade
de subjetivação pode ser, assim, tão ou mais prenhe de horror que a experiência mesma:
1) Silas, até então não acolhido em seus dizeres sobre o homicídio, era avassalado agora
por uma nova idéia: ele seria violentado. Logo, ao chegar ao manicômio judiciário, ele
dispôs de um último recurso: selar a seu corpo com excrementos; 2) Luiz Paulo, sentado
frente à cena do ocorrido, ―não sabia o que esperar‖. A saída para ele, até encontrar
acolhimento para sua palavra, estava em ―se entupir de remédios‖; 3) Lucélia, que
recebera a explicação de um médico de que o que fizera se tratava de ―uma reação
neurofisiológica‖, restava num estado de profunda apatia. Tomada em escuta ela dirá,
sobre seu feito: ―Agora que o senhor me perguntou, acho que fiz o que fiz por causa de
uma macumba... queriam a minha casa‖; 4) Joice, que deixara de se alimentar ―por não
ter mais fome‖, após algumas consultas, fala de como passou a sonhar com seus filhos
mortos que abraçavam-na e perdoavam-na pelo ocorrido.
232

Maleval, em Parricídio e foraclusão do nome-do-pai (MALEVAL 2001),


sublinha a importância crucial das conseqüências tiradas pelos sujeitos nos termos de
uma subjetivação desta experiência que, embora envolta em sofrimento e horror, não
deixa de ter sido a deles. Com efeito, após o apaziguamento momentâneo alcançado
pelo sujeito, Maleval, recuperando uma citação de Bouvier, ressalta a diversidade de
reações possíveis ao ato homicida:

Uns se sentem responsáveis, querem pagar pelo que fizeram e


ficam deprimidos; outros oscilam entre uma reação depressiva,
consecutiva à conscientização do gesto e de suas conseqüências,
e uma atividade delirante, que se poderia facilmente considerar
como defensiva; os demais, enfim, ficam delirantes e continuam
a afirmar sua não culpabilidade, espontaneamente, como se eles
se vissem colocados em causa‖ (BOUVIER apud MALEVAL
2001, p. 89).

Maleval complementa esta citação de Bouvier retomando, deste uma conclusão:


―não basta ‗curar‘, é preciso ―elaborar a culpabilidade‖, ―encontrar meios para reparar o
crime‖, ―investir em novos objetivos na existência‖, etc. Se a culpabilidade ―nem
sempre é suficiente para permitir a estabilização do sujeito‖ (idem, p. 91), por outro
lado, não será o caso de esperar da justiça ferramentas para tratá-los:

Decerto, os efeitos do julgamento, mesmo quando é levada em


consideração a responsabilidade do sujeito, permanecem
imprevisíveis e aparentemente aleatórios. Em contrapartida, se
o psicótico se encontra rejeitado pela sociedade humana, a
conseqüência mais comumente observada reside em uma nova
passagem ao ato (...) numerosos são os que se suicidam, alguns
reiteram um homicídio semelhante, outros encontram uma
morte acidental e etc. (MALEVAL 2001, p. 91).

Em uma direção que se aproxima daquela de Maleval, Tendlarz, em Asesinato


em una escuela (2005) chama a atenção para a importância do lugar de subjetivação da
experiência aterradora que é o assassinato imotivado. Indo um passo além do objeto de
nossa tese, ela ali aborda passagens ao ato homicidas nas diferentes estruturas clínicas:
neurose, psicose e perversão. Quanto a nós, que investigamos os casos kakon – lidos
como passagens ao ato homicidas na psicose −, sublinharemos, na citação a seguir, a
importância da subjetivação nos casos de psicose:

A passagem ao ato homicida se encontra na neurose, na psicose


como na perversão, e em cada quadro clínico seu estatuto se
modifica. Trata-se de não privar o criminoso enfermo da
possibilidade de subjetivar seu crime para que não perca o que
233

nos anos 50 denomina sua ―humanidade‖. Vale dizer, permitir


ao paciente a subjetivação de seu ato ao reintegrá-lo dentro de
uma trama discursiva, para que não fique de fora, alheio,
alienado ao acontecido (TENDLARZ 2005).

A questão da subjetivação aponta, pois, para o campo das conseqüências da ação


homicida para o sujeito psicótico. É neste ponto que, distinta de uma culpa objetiva
imputada de fora sob o psicótico, ou que opere como um reforço das autoacusações
superegóicas, encontramos a noção de responsabilidade.

II) Rumo à responsabilidade


No capítulo II de nossa tese abordamos, a propósito da noção de ―concepção
sanitária da penalogia‖, o problema da responsabilidade. Neste, vimos que o sanitarismo
em penalogia, entre capitalismo e ciência, tendia a implodir a noção de responsabilidade
em pró daquela de ―defesa‖ ou ―controle social‖, instaurando, desde a expertise médica
– mormente a análise psiquiátrica do criminoso −, uma forma de apaziguar o mal-estar
inerente as contradições e embates estruturantes do laço social. Neste sentido, o
transgressor – desumanizado −, seria tomado como uma espécie de ―parasita‖ no ―corpo
social‖, devendo, à maneira de um micróbio, ser segregado. Ante isto, Lacan evocou,
nos anos 50, o conceito de responsabilidade.
É nos anos 50, em seus textos sobre a criminologia, que Lacan profere o famoso
dizer: ―a responsabilidade, isto é, o castigo‖ (LACAN 1950a, p. 128). Naquele contexto
sublinhamos que, nas relações entre a punição e responsabilidade, não é pela violência,
exemplo ou segregação que Lacan une estes termos, mas, sim, pelo que ele chamou de
―assentimento subjetivo‖ (idem, p. 128) ou ―assunção lógica‖. Dito de outro modo, o
que interessa a Lacan não é a apologia à punição ou castigo como resposta a questão da
transgressão, mas, sim, que a punição − que, quando aplicada, não deve sê-la pelo
analista − importa como retorno, ao criminoso: 1) do sentido de sua ação − posto que
cada sociedade exprime, de forma particular, a relação entre ―lei e castigo‖ (LACAN
1950a, p. 128); e, fundamentalmente 2) da importância de elaboração de uma resposta,
desde uma subjetivação da ação como intrínseca à singularidade do sujeito em suas
relações com as tensões e contradições inerentes ao laço social. Verdadeiro golpe de
judô – que transforma o movimento do oponente em movimento contra o oponente −, é,
antes, pela destituição do caráter de controle ou policial do castigo e em função de sua
conjunção à resposta do sujeito que a punição pode se articular à responsabilidade.
234

Mais ainda, com as interrogações lacanianas e a posição paradigmática


presentificada por Freud no caso Halsman, à psicanálise se faz possível – uma vez que
cada sociedade exprime, de forma particular, a relação entre ―lei e castigo‖ (LACAN
19501, p. 128) −, questionar esta relação. É neste sentido que Lacan, em 1933, chama
atenção para o caráter ―burguês‖ (LACAN 1933, p. 375), da noção de responsabilidade
pessoal, que busca centrar no individuo, sob a forma de culpabilização, questões que são
estruturantes do laço social, ou efeito da relação não do indivíduo, mas, sim, do ‗efeito-
sujeito‘ em suas relações com a linguagem.
Por outro lado, como intentamos sustentar ao longo de nossa tese, a psicose
explicita uma lógica diversa de uma transgressão às leis positivas, o que chamamos de
‗outro‘ fora-da-lei, o fora-da-lei fálico. Nos casos kakon – forma psicanalítica de lermos
a estrutura dos assassinatos imotivados −, não se tratará de seu valor, para o louco,
como ―crime‖, ―transgressão‖ ou ―delito‖, mas, sim, como uma tentativa radical de
cura, de subtrair algo do gozo e produzir, a partir desta subtração, uma diferença no real.
Não há, logo, que se esperar que venha operar, nestes casos, o que Lacan chamou de
―significação expiatória do castigo‖ (LACAN 1950a, p. 123).
Mister se faz, como assevera Dzu (2001), a crítica ao a priori de um ―imperativo
de responsabilidade‖ (idem, p. 329), atado à idéia de previsão e periculosidade. Desde
uma lógica que opera com o a posteriori − ponto em que, no ‗caso a caso‘, o impossível
de ser predito se traduz em exigência de trabalho para o louco −, tomaremos a noção de
responsabilidade como ‗responsividade‘, articulada à concepção de sujeito como efeito
do ato, emergido desde os diferentes registros da linguagem. Se o real da experiência
retorna para o psicótico, crucial é, pois, um ‗lugar‘ para que este possa, após a
emergência do que lhe é desagregador, elaborar seu trabalho. Cabe-nos, porém,
perguntarmo-nos: a lógica explicitada pela noção de responsabilidade por Lacan em
1950 – para além da ―significação expiatória do castigo‖ −, pode nos auxiliar a pensar a
subjetivação do psicótico desta experiência que é o assassinato imotivado?
Atenhamo-nos, para encaminhar nossa posição junto a esta pergunta, de forma a
resgatar os princípios dispostos por Lacan para a noção de responsabilidade já nos anos
50: nesta Lacan sublinha tratar-se de um ―assentimento subjetivo‖ (idem, p. 128) ou
―assunção lógica‖. A concepção de uma ―assunção lógica‖ ou ―assentimento subjetivo‖
implica, primeiramente, que o psicótico aloje um lugar para o ocorrido. Ora, o que a
experiência clínica nos permite asseverar é que não apenas os pacientes põem-se a falar
espontaneamente sobre o acontecido, mas que este impõe-se a eles para elaboração.
235

Insistência parecida fora desvelada a Freud quando este, ao tomar o paradigma


das formações do inconsciente, o sonho, se perguntara se devemos ou não nos sentir
responsáveis por eles; questão que, em verdade, se apresentara a Freud desde sua
Interpretação dos sonhos (FREUD 1900). Em O sentido moral dos sonhos, capítulo de
seu texto princeps, Freud toca, pela primeira vez, nas conseqüências mais radicais da
noção de inconsciente para a dimensão ética do sujeito. Evocando a posição de diversos
autores sobre o assunto, ele ainda apresenta, ali, um posicionamento tímido, limitando-
se apenas a expor a questão.
Postura diversa seria tomada por Freud quando, muitos anos depois, em Notas
adicionais sobre a interpretação dos sonhos como um todo (1925d), ele aborda, uma
vez mais, a questão da responsabilidade. Neste escrito, ao contrário da posição tomada
em 1900, Freud é incisivo: analisando as relações entre conteúdo manifesto e conteúdo
latente, Freud põe duas questões: 1) alguns dos sonhos são aparentemente imorais e, na
verdade, ―não são maus‖ (FREUD 1925d, p. 146) – não sendo, portanto, controlados
porque ―não dizem a verdade‖; e, 2) outros sonhos são imorais, ―não receberam censura
e são realmente cruéis‖, as coisas passando-se como tendo a censura ―chegado tarde‖.
Freud, entretanto, após erguer esta divisão a impugna: a análise leva a conclusão de que
a despeito do que manifestamente se apresenta ao sonhador, a ―maioria dos sonhos‖, por
debaixo da censura, se revelam ―causados por impulsos egoístas, sádicos, pervertidos ou
incestuosos‖ (idem, p. 146). Feita esta afirmação ‗bombástica‘ Freud lança a pergunta:
―Devemos‖, ainda ―assim nos responsabilizar pelos sonhos?‖.
A resposta de Freud não é menos incisiva: ―Obviamente temos de nos considerar
responsáveis pelos impulsos maus dos próprios sonhos‖ (idem, p 147) – diz ele. ―Que
mais se pode fazer com eles? A menos que o sonho seja inspirado por espíritos
estranhos, ele faz parte de seu próprio ser‖. Freud prossegue asseverando que ―tenho
que assumir responsabilidade‖; ―se em defesa digo que o desconhecido, inconsciente e
recalcado em mim não é meu ‗eu‘, não estarei baseando na psicanálise minha posição‖.
Dito de outro modo, agir de forma diversa implica conseqüências: ―talvez serei mais
bem ensinado pelas críticas de meus semelhantes, pelos distúrbios em minhas ações e
pela confusão em meus sentimentos‖ (idem, p. 147). Se sou forçado a admitir, no
mínimo, que ―o que estou repudiando não apenas está em mim, mas vez e outra ‗age‘
também desde mim para fora‖ (idem, p. 147), é ao levar em conta este ‗demoníaco‘ que
Freud atenta para o fato de que desconhecer a experiência resulta forçosamente, em seu
retorno para o sujeito. Não será diferente com aquilo que retorna como acting.
236

Como vimos, há pouco, a propósito de nosso resgate do acting freudiano, Freud


se posiciona perante aquilo que o paciente presentifica como resistindo ao processo de
rememoração e se faz presente como atuação, não de forma a sublinhar o fracasso de
sua técnica, mas, sim, um ponto de junção entre terapêutica e ética:

O paciente tem de criar coragem para dirigir a atenção para os


fenômenos de sua moléstia. Sua enfermidade em si não deve
parecer-lhe desprezível, mas sim tornar-se um inimigo digno de
sua têmpera, um fragmento de sua personalidade, que possui
sólido fundamento para existir e da qual coisas de valor para
sua vida futura têm de ser inferidas (FREUD 1914b, p. 168).

Deveríamos, então, como pontua Freud em Recordar, repetir, elaborar (FREUD


1914) nos responsabilizar inclusive por este tipo de fazer que, transbordando o princípio
do prazer, opera desde os limites do rememorável mesmo como saber inconsciente?
Neste ponto Lacan dá uma importante contribuição: no contexto de seu seminário sobre
O sinthoma (LACAN 1975-6), Lacan − que poucos anos antes havia explicitado a ―não
existência da relação sexual‖ e as incidências particulares de ―alingua‖ (significante
desarticulado, operando, em relação ao sujeito como ―causa do gozo‖ − proporá que:
―Não se é responsável, senão na medida de nosso savoir-faire‖ (idem, p. 61). Ora, na
medida em que a determinação inconsciente, no formalismo que ela presentifica,
implica que o sujeito compareça, neste, ―colocando algo de si‖, desvela-se, para o
falante, o que, em A ciência e a verdade (LACAN 1966a), Lacan chama de ―terrorismo
do sujeito‖: ―de nossa posição de sujeitos, somos sempre responsáveis‖ (idem, p. 873).
Qual seria, frente a isto, a posição do analista? Nossa responsabilidade, como analistas,
é a de ―reconhecer‖ e não ―abolir o sujeito‖: ―É essa a responsabilidade do analista toda
vez que ele intervém pela fala (LACAN 1953, p. 301).
Uma vez, porém, que, no instante do ato ―não há sujeito‖, como abrirmos lugar
para a subjetivação da experiência irruptiva através da responsabilidade? Pois bem, a
subjetivação, este ‗colher conseqüências‘ – por um sujeito que não causa mas que é
efeito – é concomitante à dimensão ética. Em seu seminário dedicado a Ética da
psicanálise (LACAN 1959-60), Lacan desvela a estrutura desta dimensão:
A ética consiste essencialmente – é sempre preciso tomar a
partir das definições – num juízo sobre nossa ação, exceto que
ela só é importante na medida em que a ação nela implicada
comporta, também, ou é reputada comportar, um juízo, mesmo
que implícito – a presença do juízo dos dois lados é essencial à
estrutura (LACAN 1959-60, p. 373).
237

Há, assim, desde a articulação do ato como significante na trama discursiva, a


chance de, a partir do ―novo começo‖ que ele pode instituir, se colher as conseqüências
para o sujeito. Neste caso, a linguagem opera, como assevera Lacan desde Função e
campo da fala e da linguagem em psicanálise (LACAN 1953), como ―futuro anterior‖:
―O que se realiza em minha história não é o passado simples daquilo que foi, uma vez
que ele já não é, nem tampouco o perfeito composto do que tem sido naquilo que sou,
mas o futuro anterior do que terei sido para aquilo em que me estou transformando‖
(idem, p. 301). Operação desde a qual ―terei sido responsável‖.
Não teria Aimée, após a passagem ao ato que ela impetra, tomado esta posição?
Lacan no-lo diz que sim: após o apaziguamento – alcançado dias após o ocorrido –
Aimée – tendo o delírio tombado – propõe um juízo que supunha que, quanto à ação
homicida e sua causa, ela estava engajada: ante as colegas de cárcere ela diz: ―Como
pude crer nisso?‖ (LACAN 1932, p. 153). Neste ato, ele próprio ético, aloja-se um juízo
que supõe outro juízo: o de que, naquele ato, em sua crença, ela estava presente.
Haveria, então, conexão possível entre a passagem ao ato – que, como ato,
ocorre no tempo da instantaneidade − e a assunção lógica – tempo em que, depois do
feito, o sujeito toma, perante este, uma posição? Barros (2005), neste sentido, nos
auxilia a sustentar a possibilidade de apreender o ato não apenas como instantaneidade,
mas, também, como estrutura:
Visto como estrutura (...) o ato comporta duas faces ou dois
tempos, o instante de seu lançamento e o de suas conseqüências
onde se darão as leituras do ato que ―realizará sua plenitude de
ato‖. São as leituras que no a posteriori ao instante de
lançamento do ato terão como conseqüências produzir os
sentidos dos atos e, principalmente, efeitos sobre o sujeito. São
esses efeitos subjetivos, como veremos, que, determinarão se
um ato é começo ou novo começo para o sujeito (idem, p. 56).

Se como cita Maleval, ―não basta ‗curar‘‖, é preciso ―investir em novos


objetivos na existência‖, tomar a responsabilidade como este juízo que supõe que,
no momento do ato, se estava engajado, se faz uma dobradiça ética que permite a
subjetivação da experiência. Desde este passo o ato pode desvelar-se instituinte não
apenas da subjetivação, mas, inclusive, de um ―novo começo‖ nas relações do
psicótico com o pulsional. Nos dizeres de Miller, ―A história não está terminada‖,
―julgar um ato por suas conseqüências é abri-lo ao futuro‖ (MILLER apud
BARROS, 2005, p.62). ―Wo eS war, soll ich werden‖ – ―onde isso era, como sujeito,
devo advir‖ − ecoa o dito freudiano.
238

É chegada a hora de, desde o percurso efetuado por nosso trabalho, retornarmos
não ao ponto inicial em que introduzimos nossa tese – posto que não se trata de um
retorno ao ‗mesmo‘ −, mas àquilo que ‗terá deflagrado‘ nosso trabalho: o caso S, com o
qual introduzimos (p. 1) a questão que move nossa tese.

A) Caso ―S‖
A.1) A chegada: fundação da ―alíngua de transferência‖
Com andar hesitante e olhar repleto de profunda desconfiança, ambos emergidos
de um corpo enrijecido e mecanizado, chegou a nós a paciente ―S‖. Em suas primeiras
sessões ela relata idéias de perseguição − resistentes à sistematização − e alucinações
que tornavam presentes, para ela, a face traumática da linguagem. É ao final de um
desses primeiros encontros que S. surpreende-nos ao dizer que, mesmo os atendimentos
sendo, segundo ela, de grande valia, ela ―não querer mais voltar‖. Perguntada a respeito,
S. justifica: ―É que me faltam as palavras‖. Nossa intervenção, correlata ao desejo de
que algo do discurso analítico pudesse ali incidir, foi dizer: ―As palavras, encontramos
juntos. O que acha?‖. Com um sorriso sem graça, S. aquiesce à intervenção.
Na sessão seguinte, a paciente conta, com riso tenso, o que disse a outra interna:
―Meu Deus, agora tenho que achar palavras para dar nas sessões!‖. Curioso foi o efeito
que se deu e que surpreendeu tanto a nós quanto à paciente: um riso escapou de nossa
boca. Ela, rindo por ricochete, conclui que, apesar de lhe ―faltarem palavras‖, gostaria
de falar nas sessões sobre os ―ciúmes neuróticos‖ que tinha de seu ex-marido e que até
hoje a faziam sofrer. A perturbadora tensão, misto de desconfiança e ―timidez‖ − como
ela mesma o diz − se desloca da solitária descrença para o campo da palavra.
Confrontada com a questão do desejo − que, neste caso, comparece através do
desejo do analista de que algo do discurso psicanalítico ali interviesse − a paciente é
tomada por um riso tenso. Entretanto, ao falar de sua história tendo como parceiro não
um Outro onipotente que a avassala, mas uma alteridade capaz de ser surpreendida –
inclusive por sua vontade de prosseguir ou não −, há uma cessão de algo até então
refratário à alteridade em direção a este laço social mínimo que é o dispositivo clínico.
Cabe-nos, não obstante, interrogar: O que esta mulher dá? A resposta: suas palavras.
O humor, aqui, institui-se de forma que o ouvinte é levado a sustentar uma
alteridade que não comparece como vontade de gozo ou como escárnio. Por outro lado,
a surpresa desvelara, aqui, importante função: surpreendendo-se com as construções que
lhe são endereçadas, o analista pôde usar-se do ―não-tudo saber‖ para se tornar suporte e
239

destinatário do ‗dizer psicótico‘. Como ‗ao menos um a não gozar do louco‘, faz-se
possível a surpresa não como perplexidade, mas como catalisador à disposição do louco
para a construção de alguma alteridade possível. No início do tratamento fundam-se,
assim, as condições de um espaço de palavra desde uma operação que trata o gozo – por
uma ‗cessão‘ (palavras) e pela construção de um enlace mínimo – através do humor.
Em outro trabalho, O litoral e a surpresa: os estágios preliminares do chiste
(FREIRE e COSTA 2008) atentamos para o uso do humor pelo psicótico desde o que
Freud chamara de ―estágios preliminares do chiste95‖. Ora, desde jogos humorísticos
como estes, da incidência da surpresa e da cessão de ‗algo‘, somos levados a considerar
o enlace transferencial remetido não à ―suposição de saber‖, mas à noção de ―alíngua 96
de transferência‖ emergida na Conversação de Antibes (MILLER 1997c). Considerando
as psicoses ordinárias e neo-desencadeamentos − distintos das rupturas ―clássicas‖ –
este debate privilegiou enlaces e manejos clínicos em situações nas quais a articulação
significante como tal não se coloca. Se a referência à linguagem como ―elucubração de
saber‖ (LACAN 1972-3, p. 190), ou seja, como saber estruturado, mostra-se, em certos
casos, imprópria, o conceito de ―alíngua‖ mostra-se importante operador no que tange a
novas parcerias entre o analista e o psicótico.
Tal concepção repercute, pois, desde Lacan, sobre o motor da transferência:
―quando enunciei que a transferência era motivada pelo sujeito suposto saber, isso era
apenas uma aplicação particular, especificada, do que se faz nesta experiência‖
(LACAN 1972-3, p. 197). Assim, a hipótese da sessão de Antibes é a de que o que
motiva a neo-transferência ―não é o sujeito suposto saber, mas a ‗alíngua de
transferência‘, enquanto o que permite que um significante possa fazer sinais de algo
que está fora do sentido: onomatopéia, cifra, marca‖ (MILLER 1999, p. 150). Neste

95
Nestes ―estágios preliminares‖ do chiste Freud identifica duas fases: o ―jogo‖, que dispensa a terceira
pessoa, extrai satisfação da ―similaridade do som‖ e da ―repetição do familiar‖; e o ―gracejo‖, exigência
de que estes jogos ‗façam sentido‘. Entre estas fases, porém, há brincadeiras coletivas em que as crianças
fruem dos sons das palavras e partilham satisfação humorística, como nos jogos ―uni-duni-tê‖ e ―adoleta‖.
96
Ao considerar o significante, à revelia do sentido e desde homofonia − Lacan, entre 1971 e 1973, marca
uma báscula em seu ensino. A partir da noção de ―alíngua‖ ele relativiza o inconsciente ―estruturado
como uma linguagem‖, e designa, por tal termo, a relação do falante com o significante pela via do gozo
do verbo – do enxame significante como ―causa do gozo‖ (LACAN, 1972-3/1985, p. 36). O termo,
―alíngua‖, surgiu no seminário de Lacan sobre O Saber do psicanalista: na lição de 4/11/1971, a partir de
um tropeço, Lacan troca o título do livro ―Vocabulário de Psicanálise‖ por ―Vocabulário de Filosofia‖ −
de André Lalande. Lacan autentica seu ato falho e forja, desde a homofonia com ―Lalande‖, a expressão
―Lalangue‖, ou, la (a) + langue (língua): alíngua.
240

‗deslocamento de ênfase‘, propicia-se, em detrimento da máquina da transferência,


aquilo que pode devir ―sulco, ravinamento‖ , inscrição de algo na psicose. Nesta língua,
construída entre analista e louco, trata-se de ―fazer chover a chuva de interpretações,
(...) lavrar mais sulcos. O uso que o psicótico faz de nossa presença é lavrar mais uns
sulcos do que outros; temos que ajudá-lo, com método (MILLER 1997c, p. 346). Mas
como esta modalidade transferencial nos auxiliou no caso ―S‖? Veremos, a seguir, que a
transferência permitiu a ―irrealização‖ e subjetivação da experiência traumática.

A.2) Irrealização, subjetivação e responsabilidade


A partir do enlace transferencial, ―S‖, buscara reconstruir as coordenadas
simbólicas de sua história. Mobilizando recursos dos diversos registros da linguagem,
ela buscará subjetivar seja os fenômenos que lhe aturdiam – visões de rostos nos cantos
de sua cela, vozes de pessoas que parecem conhecidas e etc. −, seja o que ela, a partir da
escuta, passara nomear como ―o ocorrido‖. As perturbações atuais, perante o mal-estar
que ela vivera naquele último, ―em nada com aquele podiam se comparar‖. Frágil
recurso, ela desenvolvera, desde o ocorrido, junto ao enrijecimento de seu corpo, um
―tique‖ que a ajuda a ―conter‖ as vozes: ―Sinto um estalinho junto do ouvido, no meu
cérebro; quando levo a cabeça até o ombro (direito) isso me alivia‖.
De fato, nas primeiras sessões, ―S‖ – que, desde sua ―internação‖, se tornara
―gorda‖ −, faz movimentos mecanizados, ‗em bloco‘ − cabeça, tronco e membros se
movendo ‗em uníssono‘. Certa indiferença caracterizava, também, suas relações com a
alteridade, sendo-lhe nada concernente questões como a solidão, o encarceramento, a
falta de prazos para sair, agressões – mesmo as graves −, ocorridas entre as internas,
perspectivas de futuro, etc. Mesmo sua chegada até mim dera-se, não a partir de uma
demanda sua, mas, sim, a partir de uma sugestão de atendimento dada pela equipe que,
a par da pesquisa que eu empreendia, me falou do caso.
Em verdade, muito para além deste traço de ―S‖, o acesso aos internos no HCTP
era bastante restrito; os pacientes ficando a maior parte do tempo nas ―enfermarias‖ –
pavilhões contendo ‗cômodos‘ com grades sendo, também estes, selados. O trânsito
clínico-paciente dava-se, com efeito, a partir de ―agentes penitenciários‖ que pouco ou
nada eram permeáveis a uma lógica mais próxima do cuidado. Raras eram as ocasiões
em que este ―trânsito‖ era mais fluido: o ‗banho de sol‘ e os encontros aleatórios quando
os pacientes eram chamados pela equipe, médico plantonista, etc. eram parca exceção
aos momentos de claustro. Foi seguindo a lógica de que, ―com a oferta se cria a
241

demanda‖ que, nos desfiladeiros da instituição, chegara ―S‖; a partir daí, cabia alojar
intervenções diversas do imperativo de segregação ou adaptação. Mas o que, a despeito
deste trânsito restrito nos trazia ―S‖?
Após o enlace transferencial, duplamente dispendioso para ―S‖ e para nós,
conta-nos ela que, quando criança, lembra ter sido cuidada por sua mãe, até que esta,
―que é como ela‖, fora internada. Nesta ocasião, passara a viver com o pai e a madrasta.
―Era normal‖ – qualifica ela o fato de, quando achada, ―S‖ mal ter cabelos devido a
quantidade de feridas que trazia em sua cabeça.
Passando a morar com seu pai, ―S‖ mal tinha amigos, ―não se interessava em
brincar com outros‖. Ademais, mesmo que o quisesse, seu pai não permitia sua saída.
Fato insistente nas sessões que tivéramos durante quase dois anos, ―S‖ reiteradamente
conta do que fazia quando sua casa recebia visitas: ―não sei por que, quando chegava
alguém de fora, eu me escondia debaixo da cama e não saía‖.
Em sua adolescência, ela fora convidada por sua madrinha a morar com esta, a
fim de ajudá-la a cuidar de sua filha em Brasília. ―S‖, então, aquiesce o convite − ou
melhor, não o nega. Lá, por desentendimentos com o marido de sua madrinha, − que lhe
―tratava muito mal‖ agredindo e ―fazendo-a de empregada‖ −, ela sai de casa e passa a
trabalhar como faxineira. É neste momento que conhece o pai de seus filhos. ―Como
isto se deu?‖ – pergunto. ―Ele me chamou para morarmos junto e eu fui‖ – responde ela.
É deste homem que ela diz, na sessão em que se engaja transferencialmente a partir do
humor, querer falar de seus ―ciúmes neuróticos‖; achando as palavras para tal, ela relata
ter vivido, com este, uma primeira ―estranheza‖ em sua vida: ela tinha ciúmes muito
grandes deste homem. Como mais tarde ela poderia concluir, os ciúmes que sentia eram,
em parte, justificáveis: ele efetivamente a traia. Todavia, o que ela chamou de
―estranheza‖ era atribuído a um primeiro fenômeno corporal, ―um calor que subia de
sua barriga até sua cabeça, ‗nublando‘ a visão‖.
Certo dia, tendo ela já três filhos com este homem, ―S‖ diz que esquecera no
fogo uma panela cheia de óleo fervente. Estando em sua varanda de costas para a
cozinha ela não via a fumaça que saia da porta e janelas. Sua vizinha de fundos,
sentindo cheiro de queimado, entra na casa ―pela parte de trás‖ e, panela na mão, pôs-se
a lançar, pela porta da cozinha, o conteúdo fervente. Infortunadamente, neste momento,
―S‖ entrava, junto a sua filha, pela porta: ―Eu e minha filha tivemos queimaduras no
mesmo lugar da perna, mas além das minhas serem mais profundas, queimei também
meu colo e braço. Quase morri‖.
242

Internada no hospital, ―S‖ demoraria a retornar para sua casa. Em seu retorno,
porém, as relações com seu marido pioram, chegando num ápice quando esta encontra-o
junto a uma mulher em sua cama. Enraivecida, ela tenta agredir seu companheiro; sendo
ele mais forte, não tardaria para que ela fosse subjugada: ―Você não é mais mulher para
mim‖. ―S‖ recebera, neste momento crítico, uma resposta negativa para uma pergunta
que talvez ela, por estrutura, nunca tenha feito. A experiência de estranheza, iniciada
desde os ―ciúmes neuróticos‖ agora transborda-a: ―esta frase me deixou desnorteada,
mexe com minha cabeça até hoje. Nunca mais fui igual‖.
Depois da agressão, relacionamento terminado, ―S‖ passara a viver com sua filha
− que também se queimou −, sendo os outros dois filhos deixados com parentes em
estados vizinhos. Neste meio tempo, seu pai militar falece lhe deixando uma pensão e
seu irmão morre afogado. Esta nova vida a dois, entretanto, lhe fornecera um refúgio
que a estabilizaria, refúgio este que, ainda que tivesse durado alguns anos, estava prestes
a terminar: a filha, já crescida, ―junta-se‖ a um homem, a bengala imaginária sobre a
qual ―S‖ se apoiava se parte. Desprovida deste suporte ―S‖ diz ter recebido a visita de
uma ―mulher estranha‖ que, em nome de uma enquete sobre um produto alimentício,
tocara sua campainha, pondo-se a ―perguntar sobre sua casa, sua renda, um monte de
coisas‖. Neste outro mal-encontro com o feminino – não em oposição a dualidade, mas,
sem o apoio desta −, uma certeza, luminosa, lhe acena: aquela ―mulher estranha‖ queria
―lhe envenenar‖; o porque, ela não sabia.
Após a partida daquela mulher que ela logo dispensa, ―S‖ passa a ouvir
zumbidos em seu ouvido tão altos que ela, para abafá-los, passa a bater panelas; sua
―cabeça gira‖, as luzes dos postes lhe acompanham. Devassada pela cena de um
espetáculo que ela não consegue nomear, ela se encontra com a mancha que soterra
aquele quadro com o nonsense: ―S‖ diz ter encontrado, nos arredores de sua casa, uma
espécie de ―pequeno bracelete, como aqueles que se coloca no braço de um bebê‖, no
qual ela, com dificuldades diz ter conseguido ler: ―Elba Ramalho ataca novamente‖.
Nas diferentes sessões em que ela retoma este ‗encontro‘ – não foram, em verdade,
muitas −, este dito nunca adquire sentido. Esta expressão, tampouco como nomeação –
cifragem do real que pode prescindir do sentido −, mostra-se efetiva.
Numa experiência de visceral desamparo, ―S‖ busca, na família e amigos, ajuda.
―Isso é coisa da sua cabeça, logo vai passar‖ – retornam-lhe eles. Apavorada, ela vende
―por pouco ou nada‖ sua casa, e ―vem andando‖ e ―de carona‖ de Brasília até São
Gonçalo, onde tem irmãs. Com o dinheiro que tinha e com a pensão que recebia de seu
243

pai, ela aluga um pequeno apartamento: ―Tudo vai melhorar!‖ – diziam seus parentes
em ritornelo. Num hospital, ela disse ter começado a receber, mensalmente, medicação
―para depressão‖ – citando, para explicitá-la, nome de antipsicóticos. ―Não sabia que
psicólogo conversava com a gente dessas coisas! Ninguém me ouvia‖. De todo modo, é
pouco depois que, ouvindo da ―mulher do banco‖ que não havia chegado sua pensão –
como posteriormente descobriu a equipe, devido a não renovação de sua documentação
−, ela entra em desespero. Emerge, neste momento, uma voz que lhe apresenta uma
dolorosa opção: ―ou você mata ou vai ter que doar órgãos‖.
Se, no momento de um primeiro desencadeamento ela ouvira de seu
companheiro que ―ela não era mulher para ele‖, a voz que ouvira após outro ‗mal-
encontro‘ com mulheres − sendo o primeiro com a amante de seu marido, o segundo
com a estranha mulher, o terceiro com a bancária −, emergia a possibilidade de uma
perda mais radical em seu ser. A quem pedir ajuda? ―S‖ procura a família e o hospital,
vai até mesmo a uma delegacia: ―Vocês têm que fazer alguma coisa, vejam o que estão
tentando fazer comigo!‖. Dias depois, indo mais uma vez ao banco − e ouvindo, de
outra bancária, a mesma resposta − ela, então, faz sua escolha: ―Fui até o banco, ela
estava sentada lá e toquei fogo. Estava fora de mim. Não senti nada no coração por ter
feito isso. Me senti ate meio leve‖.
―O que você pensa disso hoje?‖ – pergunto a ela. ―É horrível! Eu, que sempre
ensinei a meus filhos que ninguém tem o direito de tirar a vida de alguém, matei. Como
pude fazer isto? É a primeira vez que falo disso...‖. ―Agora, você falou disso‖– pontuo
eu, sublinhando aquela fala em sua dimensão de dizer, desvelamento de uma assunção
simbólica que difere das versões anteriores dada por ela da história, seja à polícia, seja à
perícia. Nem redenção, nem alívio; evocar, por seu dizer, aquela experiência envolta em
horror era apenas o início para que ―S‖, a partir deste primeiro passo na subjetivação do
assassinato imotivado, pudesse, tirar, deste, conseqüências. De alguma forma, se ela
escolhera ―matar‖ à ―doar órgãos‖, retornava para ela a amputação do órgão que é sua
palavra, dada a seus filhos sob a forma de transmissão. Com efeito, fora a partir deste
―dar palavras‖ que, não pelo horror, mas pelo humor, que ela construíra vínculo.
Após alguns anos de internação, as visitas que ela recebia – com as quais ―S‖,
por muito tempo, não tinha assunto, por ―faltarem-lhe palavras‖ −, começavam a lhe
interessar; esboçavam-se as diferenças entre ―estar ali‖ e ―estar lá fora‖. À medida que
um futuro passou a se fazer imaginável, ―S‖ fala de seu ―sonho‖ em rever os filhos que
há muito não via. Neste meio tempo, uma meia-irmã de ―S‖ dispôs-se a cuidar dela
244

quando saísse do HCTP. Não muito depois, com o início das saídas para passar os finais
de semana com os familiares, ela encontra, no salão de beleza que sua irmã tem em
casa, a possibilidade de, quando sair, ―talvez‖ trabalhar com ela.
Após quase dois anos de trabalho, findando nosso trabalho no HCTP, fomos,
junto a uma amiga da equipe, ao CAPS próximo a casa desta meio-irmã para catalisar a
inclusão de ―S‖ em um novo tratamento. Trazendo sobre si a marca de uma experiência
extremamente desagregadora, mas, não se reduzindo a esta, seria possível a ―S‖
instaurar, em suas relações com o gozo e com a alteridade, ―algo de novo‖?
245

− Considerações finais −
Ao findarmos a primeira parte de nossa tese, asseveramos que, no que concerne
a participação da psicanálise no debate sobre os assassinatos imotivados, vislumbramos,
como desdobramentos possíveis de nossa intervenção, ao menos três diferentes esferas:
1) aquela junto ao paciente: a) sob condição de que este formalize seu endereçamento e
b) visando a deflagrar no encontro com este, o efeito singular que é o sujeito; 2) no
nível da instituição: c) desvelando os efeitos de universalização e objetivação e
d) alojando estratégias como a ―prática entre vários‖, dispositivo que visa não ao Um
universalizante, mas, sim, ao que escapa, como ―único‖; e, 3) na esfera política:
convocando, sempre que possível, a polis nas tensões discursivas que a estruturam, a
debater sobre as formas dispostas em seu cerne como resposta ao louco transgressor.
Para além de uma espécie de divisão, estas três esferas − clínica, institucional e política
–, são exigências, que se impõem ao analista pelo campo de experiência em sua
aproximação dos ―casos kakon‖. É a partir desta resposta multifacetada – que encontra
na ética psicanalítica seu ponto de enodamento −, que forjaremos, neste momento,
nossas considerações finais.

1) A dimensão clínica: uma equação eminentemente falha


Durante o último capítulo, puséramos a retomar de maneira célere os ‗tesouros
da clínica psiquiátrica‘ para, desde a fenomenologia disposta nos casos de assassinatos
imotivados, erigirmos certos ―termos de uma equação não decifrada‖, a saber: 1) a
presença de um ‗mal-estar‘ na psicose anterior ao homicídio; 2) os efeitos de ―antes e
depois‖ deflagrados por esta ação, 3) a relação do psicótico com as repercussões de seu
feito; e, 4) a consideração pelo que Clérambault nomeou ―separação do objeto‖; e, como
agora, podemos retomar da descrição devinda clássica por Guiraud, o fato de que tais
ações ocorrem ―sem o estado de intelectualizações‖, doravante ponto ―5‖. Buscamos
deixar claro que as noções psicanalíticas de ―kakon‖, a ―passagem ao ato‖ e
―responsabilidade‖ são formas de tentarmos − desde a lógica do que Cottet chamou de
―clínica da conexão‖ (COTTET 1999, p. 243) −, articular estes elementos.
No que concerne ao primeiro ponto – ―a presença de um mal-estar na psicose
anterior ao homicídio‖ −, identificamos, desde Pinel e Esquirol como um avassalador
incômodo corporal – a angústia −, acompanha, pari passu, as descrições que envolvem
aquilo que mais tarde, com Guiraud, receberia a nomeação ―kakon‖, o mal.
246

A angústia, entretanto, em sua particularização na psicose, exige não ser tomada


como franqueamento da fantasia – que, desde Freud, medeia as relações do neurótico
com o objeto −, mas como ruptura de uma conjuntura até então estável – estabilidade
esta atingida via ―delírio‖, ―acontecimento de corpo‖, etc. − que conjuga real, simbólico
e imaginário. Por outro lado, se, para Lacan, ―agir é arrancar da angústia a própria
certeza. Agir é efetivar uma transferência de angústia‖ (LACAN 1963-4, p. 88),
assumindo aquilo que a experiência desvela como efeito apaziguador das ações nos
―casos kakon‖, recorremos, para apreender sua lógica, a um conceito que evoca uma
forma bastante particular de manifestação deste agir: a ―passagem ao ato‖. Atentando
para o efeito de ―antes e depois‖ relatado pelos pacientes e salientado pelas descrições
desde Pinel até Guiraud, os assassinatos imotivados, como passagem ao ato, operariam
como tentativas radicais de subtração de um gozo que retorna sobre o objeto que o
sujeito traz consigo e que com ele o louco busca não se confundir. Pontuações de Lacan
acerca do objeto vocal e anal nos permitiram esta aproximação.
De outro lado, na interface entre o acting freudiano e a noção de passagem ao
ato lacaniana, aproximamo-nos desta manifestação do pulsional desde um fazer que se
impõe ao falante de forma diversa aquela das intelectualizações. Há, portanto, nesta
manifestação do agir, opacidade ao saber inconsciente: se a rememoração punha em
jogo a historicização do sujeito − o re-significar dos traços que lhe marcam −, a
―compulsão à repetição‖ torna presente algo de ―atual‖, ―presente‖, um ―fragmento da
vida real‖ do paciente. Este desconhecimento radical − emergido do não inscritível
como saber −, torna presente, entretanto, a oportunidade de uma mudança de posição
em relação ao gozo, que atrela a dimensão ética à terapêutica: ―O paciente tem de criar
coragem para dirigir a atenção para os fenômenos de sua moléstia‖ – diz, nos Freud.
Segundo ele, a enfermidade ―não deve parecer-lhe desprezível‖, mas ser tomada como
―fragmento de sua personalidade, que possui sólido fundamento para existir e do qual
coisas de valor para sua vida futura têm de ser inferidas‖ (FREUD 1914b, p. 168).
―Proeza‖, ―desempenho‖ e ―saída‖, (LACAN, 1958), a passagem ao ato − como
pertencente a ―gama dos atos‖ (LACAN 1969-70) −, torna possível a inscrição de uma
diferença no real, da construção de ―um antes e depois‖ – não apenas como tentativa
selvagem de subtração do gozo −, mas, sobretudo como um ‗Rubicão‘ − possibilidade
de catalisar a instauração de um ―novo começo‖ nas relações até então instituídas entre
o psicótico e o gozo que ele é convocado a modalizar.
247

As noções de ―kakon‖ e ―passagem ao ato‖ articulam, pois: a presença de um


‗mal-estar‘ na psicose anterior ao homicídio; os efeitos de ―antes e depois‖ deflagrados
por tal ação; o fato, descrito por Guiraud, de tais ações ocorrerem ―sem o estado de
intelectualizações‖; e a consideração pelo que Clérambault nomeou ―separação do
objeto‖ – não ―extração do objeto‖, mas modalização de sua presença ―no bolso‖ do
psicótico. Resta, ainda, apreendermos o ―ponto 3)‖: a relação do psicótico com as
repercussões de seu feito. Neste instante que somos guiados rumo à noção psicanalítica
de responsabilidade.
Parodiando Freud, podemos dizer que a responsabilidade consiste em atribuir ao
assassinato imotivado o valor de uma experiência com ―sólido fundamento para existir e
da qual coisas de valor para sua vida futura têm de ser inferidas‖ (FREUD 1914b, p.
168). Noção diversa das questões em volta do problema da responsabilidade penal –,
para a psicanálise o conceito de responsabilidade se caracteriza não pela segregação,
mas, sim, por seus desdobramentos em termos de ‗vida‘:

As significações que ela revela no sujeito culpado não o excluem


da comunidade humana. Ela possibilita um tratamento em que o
sujeito não fica alienado em si mesmo. A responsabilidade por
ela restaurada nele corresponde à esperança, que palpita em todo
ser condenado, de se integrar num sentido vivido. Mas, por este
fato, ela afirma também que nenhuma ciência das condutas pode
reduzir a particularidade de cada devir humano, e que nenhum
esquema pode suprir, na realização de seu ser, a busca em que
todo homem manifesta o sentido da verdade (LACAN 1950b, p.
131).

O que torna tal manobra possível? É pela ―mola da transferência‖ que se tem
―acesso ao mundo imaginário do criminoso, que pode ser para ele‖ − e não para as
instâncias que demandam ações punitivas e de controle à psicanálise − ―a porta aberta
para o real‖ (LACAN 1950a, p. 137). A ―irrealização‖ – apropriação do feito desde
coordenadas reais, simbólicas e imaginárias – é estratégia crucial para o analista.
Uma ‗equação‘ que articule os cinco pontos por nós recortados das descrições
dos assassinatos imotivados deveria, pois, traduzir estes fenômenos, ao nível estrutural,
sob os termos ―kakon‖, ―passagem ao ato‖ e ―responsabilidade‖: ‗Se a passagem ao ato
é uma tentativa radical de tratar o kakon, a responsabilidade é uma das vias para que o
psicótico, ante a experiência desagregadora que é o assassinato imotivado, possa a
integrar num sentido – não como significação, mas, como orientação, direção −, ligado
ao ―vivo‖. Uma equação deste tipo, não obstante, deve ser tomada por nós como falha
248

por princípio: nenhuma captura em termos de formalização é capaz de, como diz Lacan,
―reduzir a particularidade de cada devir humano‖ (LACAN 1950b, p. 131). Desde o
caso-a-caso, é nossa responsabilidade, como psicanalistas, ―não abolir‖ o sujeito
reduzindo-o meramente ao capturável num formalismo. Com o estudo do kakon abre-se
um campo cujo interesse é não epistemológico, mas ético, no sentido de manter vivo um
lócus de intervenções que exige considerações dos psicanalistas que a ele se dedicam. É
desde esta posição ética que interrogamos as soluções universais e totalizantes, é desde
esta posição que interrogamos os hospitais de custódia e tratamento judiciário.

2) A dimensão institucional: a supervisão em estágio


Os HCTPs – hospitais de custódia e tratamento judiciário – são instituições que
se erigem de forma a abrigar portadores de transtornos mentais que infringiram o código
penal e, considerados inimputáveis, receberam não uma pena a ser cumprida, mas, sim,
por sua periculosidade, a forma de ―tratamento compulsório‖ chamada de ―medida de
segurança‖. Em hipótese incapazes de ―determinarem-se segundo seu entendimento‖ e
de ―responderem pelas conseqüências de seus atos‖, tais pacientes encontram-se levados
a instituições que ilustram o que Erving Goffmann, em 1961, chamou de ―instituição
total‖. Segundo este autor tais espaços são organizados de forma ―fechada‖, vale dizer,
tendendo a ―conquistar‖ a totalidade do tempo e do interesse de seus ―participantes‖.
Na contramão deste modo de funcionamento, propusemos, durante o período de
tempo em que estivéramos a frente da equipe interdisciplinar de estagiários do HCTP
Heitor Carrilho, o desafio de, junto a estes, fazer operar intervenções a nível
institucional como o dispositivo de ―Ouvidoria‖. Neste dispositivo tratou-se de apostar:
1) na responsabilidade institucional – no que tange aos serviços e condições mínimas
para a já difícil estadia dos pacientes na instituição −; e, 2) na busca pela participação
ativa, sob a forma de acolhimento das propostas dos próprios pacientes, em relação à
dinâmica institucional: a construção de uma existência possível na psicose não pode ser
constituída sem que algo do sujeito se apresente, inclusive em suas idiossincrasias.
Outra forma de intervenção institucional advinha da própria existência de nossa
supervisão: se aos estagiários não se outorgam ―ainda‖ as atribuições inerentes a seu
saber acadêmico – ―eles ainda não são profissionais‖ (sic)− tampouco eles se encontram
desguarnecidos de referências para suas intervenções. Como um ―ornitorrinco‖ − animal
cujas características aviárias não o impedem de ser um mamífero − o estagiário ocupa
um lugar ―extimo‖ − interior-exterior − na instituição.
249

Nesta ―curiosa‖ posição os estagiários transmutam-se em uma objeção viva a


uma instituição que arroga, para si, ares de uma ‗instituição total‘; eles são, por sua
―extimidade‖, ―não-todos‖ concernidos à suas engrenagens . O encontro com esta faceta
do ―não-todo‖ oferece a oportunidade de que − a cada questionamento dos estagiários −
o técnico, o agente penitenciário e o paciente possam dizer a experiência que é a deles,
se deparar com o que contextualiza sua ação, e, se fazer, talvez, responsáveis. Ao nível
político, porém, nós como analistas, podemos questionar, para além do trabalho que
visa a descompletar, de dentro, o HCTP, a própria existência destas instituições.

3) A Dimensão política: de nosso engajamento na polis


No esteio do movimento em que a ciência fornece à defesa e profilaxia social,
hipertrofiada pela ―máquina louca do capitalismo‖ (TENDLARZ 2009, p. 15), uma
efetividade jamais vista outrora, processos de segregação como a ―concepção sanitária
da penalogia‖ se expandem, como diz Lacan, em ―escala planetária‖. Se já em seus
textos sobre a criminologia ele chamara a atenção para a proliferação de ―campos de
concentração‖ − ou seja, de extermínio da singularidade − em Petit discours aux
psychiatres de Sainte-Anne (LACAN 1967), Lacan retoma tal questão atrelando esta
expansão às transformações instauradas pela ciência no tecido social, transformações a
partir da qual ―os avanços da civilização universal vão se traduzir, não apenas por um
certo mal-estar como o senhor Freud já se apercebeu, mas por uma prática que nós
veremos se tornar mais e mais estendida (...): a segregação‖ (idem).
Ao lado dos seculares manicômios judiciários – e da franca expansão da
segregação sob a forma do crescimento exponencial do encarceramento no mundo −,
novos avatares científico-capitalistas ganham a cena da cultura. Foi o que vimos
quando, em nosso segundo capítulo, destacamos projetos como Unidade Experimental
de Saúde, na Vila Mariana, em São Paulo – que, em nome da ―periculosidade‖ reverte
as ―medidas socioeducativas‖ em ―protetivas‖ (‗tratamento compulsório‘ por tempo
indeterminado) −, e iniciativas como o mapeamentos cerebral de jovens infratores em
Porto Alegre que ressuscitam, ‗curiosamente‘ para a parcela pobre da população, a
noção de um instinto criminoso ou assassino travestidos de determinações bioquímicas,
distúrbio neurofisiológicos, etc. Mas como posicionarmo-nos perante estes avanços do
―império universal‖, atrelados, por Lacan, ao menos desde 1950, à proliferação do
capital, ao ―movimento acelerado da produção‖ e ao que ele ali chamou de ―mercado
comum‖ (LACAN 1963-4, p. 164)?
250

Ainda que ocorra a objetivação e diluição da singularidade do infrator pelo


processo de universalização científico, a aposta lacaniana em 1950 será bastante clara: é
preciso haver, na ação psicanalítica neste campo, ―a conciliação necessária entre os
direitos do indivíduo‖ e ―os progressos abertos pela ciência para nossa manobra
psicológica do homem‖ (LACAN 1950b, p. 130). Aos analistas não resta, pois, outra
via que não os ―progressos abertos pela ciência‖, posto que ―o sujeito sobre o qual opera
a psicanálise é o sujeito da ciência‖ (LACAN 1966a p. 873); sua práxis é partícipe do
corte cartesiano a qualquer ―referência humanista‖ (idem, p. 871) ou ‗ontológica‘ − que
buscam alojar uma ‗natureza humana‘ em contraposição à existência pontual e
evanescente que é aquela do sujeito. De outro lado, a psicanálise, desde o conceito de
pulsão, permite a refutação da idéia de um instinto homicida.
Crucial se faz, a nós, portanto, mantermos os compromissos éticos inerentes a
nossa posição como analistas mesmo em situações tão limite quanto os assassinatos
imotivados e a questão do crime e sua ‗função‘ no corpo social. Em nossa tese, vimos
como a noção psicanalítica de responsabilidade naufraga nas posições de Bonaparte –
que, em nome da ―profilaxia social‖, pedira a construção de ―asilos-prisão‖ para melhor
prevenção e contenção de loucos homicidas (BONAPARTE 1927, p. 108) −, e mesmo
na de Franz Alexander, que dedicou, ao menos em parte, seu trabalho livro o Criminoso
e seus juízes (ALEXANDER e STAUB 1928), à tarefa de ―compreender melhor o
criminoso‖ em nome da ―defesa dos interesses da sociedade‖, de forma a ―assegurar
uma aplicação mais justa da lei‖ (idem, p. 12-13), alojando-se na ante-sala do juiz.
Algo parecido é visto mesmo hoje, quando, sob a forma de lamúrias, analistas
queixam-se das mazelas e decadências próprias a nossa contemporaneidade; a solução
que estes apontam, entretanto, pouco diferem de uma lógica totalitária que não deixa de
ressonar com o que Lacan nomeou como ―campo de concentração‖: o apelo ao aumento
e recrudescimento das leis positivas como suposta tentativa de restaurar, para o sujeito,
o campo de referências simbólicas à autoridade ‗em franca decadência‘... Esta estratégia
que reduz a responsabilidade psicanalítica à penal, a culpabilização ou à moralização e
que propõe o endurecimento e universalização das leis positivas − confundidas com as
leis simbólicas – é ética, epistemológica e politicamente questionável. Tais posições
traem não o engajamento como psicanalistas, mas o retorno de um moralismo; é isto o
que, à maneira do ‗fóssil-vivo‘ que é o atávico lombrosiano, adentra por certas
intervenções de ‗psicanalistas‘ de forma monolítica.
251

Na contramão destas posições, há o que Lacan destacou como ―a conciliação


necessária entre os direitos do indivíduo‖ e ―os progressos abertos pela ciência para
nossa manobra psicológica do homem‖ (LACAN 1950b, p. 130). Nestas, encontramos
iniciativas como o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário97 (―PAI-PJ‖) −,
desenvolvido sob os auspícios de Fernanda Otoni de Barros-Brisset – que tivéramos a
oportunidade de conhecer pessoalmente − e o projeto disposto por Renata Costa-Moura
Dzu, o PAI-PAC98 − em vias de implantação no estado do Espírito Santo. Estes
projetos marcam uma nova forma de participação de psicanalistas em seu engajamento
no debate acerca dos assassinatos imotivados.
É, pois, furtando-nos, cotidianamente, em cada uma de nossas intervenções, em
responder desde os papéis de policial, legislador e juiz, que o analista, ao sustentar seu
discurso na interface com a justiça, faz-se catalisador do real, daquilo que, impossível
de capturar nos moldes de qualquer sistema linguageiro, exige seu lugar de extimidade.
É desde este real que, no caso a caso, somos convocados a responder e encontramos as
condições de nosso manejo.

97
Com cerca de dez anos de funcionamento este programa, construído em parceria com o
Tribunal de justiça de Minas Gerais, propõe atenção integral ao ―louco infrator‖, pondo em
xeque a medida de segurança sob a forma de internação em manicômio judiciário e dispondo, ao
paciente, o tratamento ambulatorial – também previsto por lei. Este tratamento junto à rede de
saúde mental e à comunidade, em que ―o envolvimento da família e de toda a sociedade é
fundamental‖ (BARROS-BRISSET 2010, p. 7), vem desdobrando interessantes efeitos na
direção nacional da atenção concedida ao louco infrator.
98
Programa de atendimento integral ao paciente judiciário, autor de ato criminoso, que se
instalará no município de Cariacica, localidade do único Hospital de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico do Estado do Espírito Santo. Este projeto traz como objetivo principal dispor, ao
paciente com medida de segurança, uma alternativa ao sistema penitenciário assim como sua
vinculação à rede de saúde mental.
252

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− Filmografia−

DA VIDA DAS MARIONETES. Título original: Aus dem Leben der Marionetten.
País: Alemanha. Linguagem: alemão. Data de realização: 07 de novembro de 1980.
Duração: 104 min. Som: Mono. Cor: colorido. Diretor: BERGMAN, I.

ENTRE ELAS... Título original: Sister my sister. País: USA. Linguagem: inglês. Data
de realização: 14 de julho de 1995. Duração: 104 min. Som: Dolby digital. Cor:
colorido. Diretor: Meckler, N.

ENSAIO DE UM CRIME. Título original: Ensayo de um crimen. País: México.


Linguagem: espanhol. Data de realização: 19 de maio de 1955. Duração: 89 min. Som:
Mono. Cor: preto e branco. Diretor: Buñuel, L.

LES BLESSURES ASSASSINES Título original: Les blessures assassines. País:


França. Linguagem: francês. Data de realização: 22 de novembro de 2000. Duração: 94
min. Som: Dolby digital. Cor: colorido. Diretor: Denis, J.P.

M, O VAMPIRO DE DUSSELDORF. Título original: M. País: Alemanha. Linguagem:


alemão. Data de realização: 31 de agosto de 1931. Duração: 117 min. Som: Mono. Cor:
preto e branco. Diretor: Lang, F.

MANHUNTER. Título original: Manhunter. País: USA. Linguagem: inglês. Data de


realização: 15 de agosto de 1986. Duração: 119 min. Som: 70 mm 6 track. Cor:
colorido. Diretor: Mann, M.

O ANTICRISTO Título original: Antichrist. País: Dinamarca, Suécia, Itália, Polônia,


França, Alemanha. Linguagem: inglês. Data de realização: 28 de agosto de 2009.
Duração: 108 min. Som: Dolby digital. Cor: colorido. Diretor: Trier, L. V.

O ALUCINADO. Título original: El. País: México. Linguagem: espanhol. Data de


realização: 9 de julho de 1953. Duração: 92 min. Som: Mono. Cor: preto e branco.
Diretor: Buñuel, L.
266

O SILÊNCIO DOS INOCENTES. Título original: The silence of the lambs.. País:
USA. Linguagem: inglês. Data de realização: 17 de maio de 1991. Duração: 118 min.
Som: Dolby SR. Cor: colorido. Diretor: Demme, J.

POSSUÍDOS Título original: Bug. País: USA, Alemanha. Linguagem: inglês. Data de
realização: 24 de agosto de 2007. Duração: 102 min. Som: Dolby digital. Cor: colorido.
Diretor: Friedkin, W.

PSICOPATA AMERICANO. Título original: American Psycho. País: USA.


Linguagem: inglês, espanhol, cantonês. Data de realização: 22 de dezembro 2000.
Duração: 102 min. Som: Dolby Digital. Cor: colorido. Diretor: Harron, M.

PSICOSE. Título original: Psycho. País: USA. Linguagem: inglês. Data de realização:
25 de agosto de 1960. Duração: 109 min. Som: Mono. Cor: preto e branco. Diretor:
Hitchcock, A.

REPULSA AO SEXO. Título original: Repulsion. País: USA. Linguagem: inglês. Data
de realização: 3 de outubro 1965. Duração: 105 min. Som: Mono. Cor: preto e branco.
Diretor: Polansky, R.

RETRATO DE UM ASSASSINO. Título original: Henry: portrait of a serial killer.


País: USA. Linguagem: inglês. Data de realização: setembro de 1990. Duração: 83 min.
Som: Dolby. Cor: colorido. Diretor: MacNaughton, J.

SENTENÇA DE UM ASSASSINO. Título original: Jump!. País: Austria. Linguagem:


inglês. Data de realização: 19 de junho 2008. Duração: 105 min. Som: Mono. Cor:
colorido. Diretor: Sinclair, J.

SEVEN – OS SETE PECADOS CAPITAIS. Título original: Se7ven. País: USA.


Linguagem: inglês. Data de realização: 22 de setembro 1995. Duração: 127 min. Som:
Dolby Digital. Cor: colorido. Diretor: Fincher, D.
267

SPIDER, DESAFIE SUA MENTE. Título original: Spider. País: UK, Canadá.
Linguagem: inglês. Data de realização: 03 de janeiro de 2003. Duração: 98 min. Som:
Dolby digital. Cor: colorido. Diretor: Cronemberg, D.

TAXI DRIVER. Título original: Taxi driver. País: USA. Linguagem: inglês e espanhol.
Data de realização: 22 de março de 1976. Duração: 113 min. Som: Dolby SR. Cor:
colorido. Diretor: Scorsese, M.

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