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São Paulo
2021
CLAUDIO DE OLIVEIRA FILHO
São Paulo
2021
PELOS CAMINHOS DO ÓDIO - DA PULSÃO AO NARCISISMO.
Banca Examinadora
Examinador 1:
____________________________________
Prof. Dra. Renata Udler Cromberg
Doutora em Psicologia Social
IP-USP
Examinador 2:
____________________________________
Prof. Dra. Elisa Maria Ulhoa Cintra
Doutora em Psicologia Clínica
PUC-SP
Examinador 3:
____________________________________
Prof. Dra. Maria Neuma Carvalho de Barros
Doutora em Psicologia Clínica
Universidade Católica de Pernambuco
Examinador 4:
____________________________________
Prof. Dra. Liliana Liviano Wahba
Doutora em Psicologia Clínica
PUC-SP
Orientador:
____________________________________
Prof. Dr. Renato Mezan
Doutor em Filosofia pela Universidade de São
Paulo – USP
RESUMO
From the contemporary social panorama and the incidence of hatred in the
psychoanalytic clinic, whether manifest or unconscious, the research proposal is a
study on hatred in the social, metapsychological and psychopathological dimensions,
having Freud and Klein's psychoanalysis as a reference. From the reading of these
authors, the ideas were presented following the chronological publication order of
texts. The bibliographic review served to investigate the relationship between hatred,
narcissism, and the death drive, trying to establish which of these concepts the
affection would be closest to. The idea of ‘narcissism of small differences’ and the
notion of aggressive drive made it possible to analyze contemporary expressions of
hatred in society, based on Freudian contributions. Regarding metapsychology, it is
possible to conclude that Freud initially approached hatred to the drive (sadism) and,
later, to narcissism also to the death drive. In turn, Klein keeps the hatred in the
pulsatory register, close to the death drive, taking little care of narcissism in his theory.
This author develops the theory of positions (schizoparanoid and depressive), in which
there is participation of hatred. Freudian theory also leaves the concept of narcissism
limited, keeping it closer to Eros after 1920. Finally, Green and Rosenfeld articulate
between narcissism and death drive, with the concepts of death narcissism and
destructive narcissism. In order to illustrate the concepts presented, we chose to
analyze the film We need to talk about Kevin, in which the character presents hatred
as a form of connection to the object, failing to separate himself from his mother. Such
psychic functioning points to a schizoparanoid position, in which there is no integration
between love and hate, which resumes the Kleinian theory.
Ao orientador, Prof. Dr. Renato Mezan, pela receptividade e respeito que teve
comigo, com meu projeto e trabalho, desde o início desta jornada. Sempre o admirei
pela sabedoria e erudição, hoje tenho mais um motivo.
À Renata Cromberg, que com um simples comentário, em meu percurso inicial,
serviu como ponte aos projetos futuros. Obrigado por ensinar-me tanto, muito além de
ler Freud.
À Elisa Cintra, que inspirou-me neste caminho.
Às professoras Neuma e Liliana, por aceitarem prontamente o convite de
participar da banca.
Aos colegas da turma 2013 do Sedes (Tereza, Carina, Miranda, Thaís
Romana, Dedé, Isa, Paula, Ana Gebrim, Sil, Lucas, Paulo, Vera, Carol, Camila, Lu
Chauí, Maíra, Thomas e ao Pedro - in memorian), pela presença, pela confiança, pela
torcida e por todo carinho partilhado. Este trabalho passa por caminhos meus que
cruzaram com os de vocês! Obrigado aos que me encorajaram a estar aqui.
Aos colegas Ari, Dani Smid e Lúcia, pelas boas lembranças do início de
percurso.
À Thais Duarte por todo o apoio para encarar este desafio.
Aos colegas do mestrado (Marcela, Helena, Juliana, Patrícia, Adriana, Victor,
Andréa, Carla, Claudia, Kátia, Rachelle, Ariane, Marcos, Alexandre, Carlos, Carol,
Anna Sylvia e Ariane e, em especial, à Gabi - que fez dobradinha Sedes). Apesar da
distância do ensino remoto, conseguimos boas partilhas.
Aos amigos, Anaídes, Dina, Henrique, Milton e Kátia, pelo carinho de tantos
anos.
A Débora, por toda sensibilidade e pela presença constante, mesmo com tantos
compromissos e responsabilidades maternas. Sempre arranjamos tempo um para o
outro.
Ao Alê, por todo o respeito e consideração. Obrigado de coração.
Ao meu supervisor, Ricardo, por me acompanhar tão respeitosamente em uma
das minhas tarefas 'impossiveis'.
Aos professores do curso Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (Maria
Laurinda, Cristina Ocariz, Isabel Viluttis, Atílio Bombana, Mara Caffe, Flávio Ferraz,
Mirian Uchitel, Silvia Alonso e Sandra Navarro- in memorian), por tanto aprendizado,
e aos que me acompanharam nestes últimos dois anos, na PUC, Edna Kahale, Alfredo
Naffah e Luís Claudio Figueiredo. Obrigado pela inspiração, em um momento, onde é
difícil respirar sem medo.
A Daniel Senos e Douglas, pelas valiosas dicas de leitura. Vocês fizeram a
diferença.
Ao meu analista João Rodrigo, pelo cuidado e pela experiência de uma análise.
Obrigado por acreditar em mim, mesmo quando eu ainda não o fazia.
Aos meus pacientes, pela partilha, que me transforma a cada dia em que
estamos juntos.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................9
CONCLUSÕES........................................................................................................145
BIBLIOGRAFIA........................................................................................................163
9
INTRODUÇÃO
1
DIAS, M. M. Os ódios: Clínica e política do psicanalista. São Paulo: Iluminuras, 2012.
2 Nome fictício utilizado por mim.
11
do capítulo no qual analisei o filme, percebi que a lembrança do filme não se deu ao
acaso. Reconheci em Kevin e Maurício a forte presença do ódio aos genitores (e não
só a eles). Kevin tinha uma intensa ligação com a mãe, ainda que pela via do ódio,
expresso através da violência e destrutividade, juntamente a manifestações de
aparente indiferença. A decisão pela análise do filme permite-me uma futura
publicação deste material na forma de um livro e/ou artigo, sem ferir o compromisso
ético com uma pessoa que me confiou sua história e seu sofrimento.
Na redação da dissertação, retomei os três caminhos acima descritos: o
metapsicológico, o clínico e o sociocultural. Com relação a este, surpreendeu-me que
algumas revistas de instituições de formação psicanalítica dedicaram edições4 inteiras
sobre a temática, com muitos autores debruçados sobre o tema que estava
interessado em estudar.
Freud mostrou interesse em transferir conceitos da psicologia individual ao
campo social e, assim, contribuiu para outras ciências humanas usarem referências e
dialogarem com a psicanálise. Ele assim o fez em alguns de seus textos, em diferentes
momentos de sua obra, em que novas questões teóricas advindas de sua experiência
clínica eram articuladas e pensadas no contexto cultural.
São os textos contemporâneos à primeira tópica e o primeiro dualismo
pulsional5: Moral sexual civilizada e doença nervosa, Totem e tabu e Reflexões para
os tempos de guerra e morte, respectivamente de 1908, 1913, 1915. É a partir do novo
dualismo pulsional (proposto em 1920), que temos, respectivamente em 1927 e 1930,
O futuro de uma ilusão e O mal-estar na cultura, texto que relaciona a pulsão agressiva
ao meio sociocultural. Por fim, temos Por que a guerra?, de 1933 e Moisés e o
monoteísmo (1939), ao final de sua vida.
Realizei no primeiro capítulo, após breve introdução, a conceituação e
contextualização no momento atual sobre o meu tema de pesquisa, recorri às ideias
presentes em alguns dos textos pesquisados, pois articulam a questão do ódio à
sociedade contemporânea. Com relação à obra freudiana, escolhi Totem e tabu,
Reflexões para os tempos de guerra e paz, Psicologia das massas e análise do Eu,
Mal-estar na cultura e Moisés e o monoteísmo, pois enfatizam a questão do ódio e da
4 Revista Brasileira de Psicanálise, da Febrapi – SBPSP, Vol. 53, n. 1, 2019; Revista de Psicanálise
da SPPA, Vol. 24, n. 3, 2017.
5 Penso que se faz necessário, ao estudar a obra freudiana, situar cronologicamente e abordar o
contexto teórico que o leva a produzir determinado texto, onde novos conceitos são construídos, pois
se evitam confusões teóricas importantes. Tentei seguir minha proposta na produção da dissertação.
13
morte no futuro de seu percurso teórico. A autora promoveu grandes avanços teóricos
na psicanálise pós-freudiana: a teoria sobre as posições depressiva e
esquizoparanoide (com angústias e defesas próprias) e relação delas com o ódio. Tal
teoria foi também referência para a análise do filme que ilustra esta dissertação.
No quarto capítulo, trouxe minhas reflexões e apontamentos sobre o
personagem Kevin, um garoto que vive intensamente ódio em relação aos objetos,
afeto que vai se intensificando, ao ponto de culminar em um massacre por ele
realizado. Fiz uma análise psicanalítica da obra, articulando a metapsicologia dos
autores escolhidos ao material artístico.
Por fim, apresentei minhas conclusões, a partir da pesquisa realizada, que foi
norteada pelas seguintes questões:
Qual a relação entre narcisismo, pulsão de morte e ódio? Qual dos conceitos
metapsicológicos melhor se articula a este afeto? Ou seja, de que lado (narcisismo ou
pulsões) podemos situar o ódio? Seria o narcisismo ou a pulsão de morte o conceito
psicanalítico que melhor explica o ódio?
Guiado por essas questões, percorro por diferentes caminhos na minha escrita,
usando o referencial psicanalítico: a teoria (dentro de uma perspectiva histórica de
formulação conceitual), a análise de uma obra, que mobiliza intensos afetos, para
aplicação das ideias teóricas, que também serão pensadas à luz de situações atuais,
no primeiro capítulo da dissertação e nas conclusões, como forma de uma leitura
crítica do momento social e político brasileiro. Concordo com a posição de Lacan6 que
afirma: “Deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir
alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”.
Dentro dessa linha de pensamento, a teoria psicanalítica, que também sai da
clínica, e serve de instrumento na análise da cultura contemporânea e, no caso desta
dissertação, de uma produção cinematográfica também.
Para o presente estudo, elaborei um trabalho de revisão bibliográfica, tomando
como base textos de autores da Psicanálise, principalmente Freud e Klein, além de
outros que procuram discutir e enriquecer as teorias deles. Na tentativa de ilustrar os
conceitos relacionados ao meu tema, recorri ao relato de uma história de ficção
apresentada em um filme. Minha pesquisa forneceu conceitos e elementos teóricos
para fazer uma análise da obra cinematográfica escolhida e, que não se deu ao acaso,
pois pude perceber muitos elementos da psicodinâmica do paciente, cujo caso clínico
inicialmente desejava descrever, ao personagem Kevin.
Dentre as poucas recomendações que Freud faz aos praticantes da
psicanálise, há a expressão livre das ideias e pensamentos a serem relatadas pelo
paciente, além da escuta caracterizada por uma atenção, por ele considerada
flutuante, na qual o analista não se deve prender ao discurso lógico e consciente do
relato, mas ficar atento ao destoante, ao inusitado, ao oculto, análogo ao conteúdo
latente do sonho, que difere do manifesto na cena onírica. Naffah7 considera que há
uma forma de fazer pesquisa nesta modalidade de trabalho, tão peculiar e
incompreendida pelos não familiarizados com a Psicanálise. Procurei fazer minha
análise do material ilustrativo usando a “escuta” analítica, aberta e formulada, a partir
de hipóteses que o material descrito permite contruir. Diferentemente de uma
pesquisa quantitativa, apresento uma leitura singular de uma história, que poderia ser
diferente da feita por outro colega que pretendesse analisar a mesma obra. Considero
que minha análise não pretende estabelecer o estatuto de verdade, a ser replicada
experimentalmente. Por sinal, verdade é um conceito ambíguo para a Psicanálise, que
se afasta da consciência e da razão. Por outro lado, há uma série de conceitos,
definições e possibilidades de leituras de fenômenos humanos que ela nos oferece e
que lhe conferem um estatuto científico, ainda que dotado de natureza muito peculiar.
7
NAFFAH NETO, A. A Pesquisa Psicanalítica. Jornal de Psicanálise, Vol. 39, n. 70, São Paulo, jun. 2006.
16
caracteriza a primeira etapa do pensamento do autor. Com o desenvolver de sua teoria e clínica, Freud
vai assumindo uma postura mais pessimista para a psicanalista.
5 PEREIRA, D. R.; COELHO JÚNIOR, N. E. O relato de uma experiência estranha – O surgimento do
13 GREEN, A. Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago, 2008.
14 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio
– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.
15 MEZAN, R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
16 CAPER, R. Inveja, narcisismo e a pulsão destrutiva. In: ROTH, P.; LEMMA, A. (Orgs.).
a raiva não visa aniquilar o objeto, apenas equivale a uma descarga de intensidade,
não se configurando como uma defesa. Ela pode mobilizar, pois é resultado da
impossibilidade da vivência de prazer e, por isso, relaciona-se ao desejo. No ódio, é a
sobrevivência do Eu que está ameaçada, segundo a autora. Essa concepção será
utilizada na análise do ódio presente na personagem Kevin, no Capítulo 4.
Nos quadros de não neurose, Minerbo20 afirma que o ódio permanece não
integrado. Eles se aproximam mais de um funcionamento psicótico, mesmo que
transitório21. Green propõe a expressão “casos limites” e os situa no limite da psicose,
mas os diferencia dela, assim como faz em relação à neurose. Tais casos não se
relacionam a um quadro nosográfico específico, mas contemplam específicas formas
de funcionamento psíquico, onde predominam fortemente a cisão, o ato e o não
representável.
No funcionamento não neurótico, Minerbo considera que não há contenção da
violência pulsional predominante no psiquismo. Na neurose, a frustração é
responsável pela agressividade; já nas mentes não neuróticas, há um funcionamento
primitivo relacionado ao ódio, à pulsão de morte e à destrutividade, que ficam em
posição primária. Na mesma direção desta autora, Falcão22 e Ferrari Filho23
reconhecem a vertente patológica do ódio relacionando-o à pulsão de morte, ao
narcisismo e a falhas do objeto primário.
É importante ressaltar que as visões desses autores não contemplam a análise
do ódio na dinâmica edipiana. Nela, tem-se desejo, amor e ódio relacionados a ambos
os genitores (ou figuras materna e paterna). Mesmo que haja uma discussão restrita
ao pré-edípico, os autores em questão trazem importantes considerações para se
pensar a psicopatologia.
Kernberg apud Simanke24 considera os afetos condicionadores de ações
humanas e afirma que é na forma extrema de agressão que o ódio aparece como
de morte – Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, Vol. 3, n. 24, 2017.
24 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio
Mas,convém relembrar que a filosofia trata das questões ligadas à razão e consciência, das quais
Freud claramente afasta-se com a concepção de inconsciente.
35 ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
22
O intuito da primeira parte deste capítulo é buscar referências que possam fazer
pensar as contemporâneas livres manifestações de ódio nos contextos político e
social, não apenas no Brasil, já que no início da elaboração desse projeto havia uma
polarização destrutiva e agressiva em relação às eleições presidenciais. Em
2020/2021, o mesmo afeto reaparece na polarização das ideias no contexto de uma
pandemia de coronavírus. Pessoas que agridem as que optaram por permanecer em
reclusão, que utilizam máscaras de proteção, ao saírem de casa, manifestantes que
participam de carreatas contra o governo que define o fechamento do comércio e a
manutenção da quarentena. Brasileiros que banalizam a pandemia, ignoram
ostensivamente as regras de isolamento social e agem através de sua ira contra os
cidadãos que não se alinham à postura do governo federal. A mesma polarização
política e intolerância reaparecem em uma situação diferente, mas com a mesma
dinâmica. Sem falar nos ataques racistas ocorridos nos Estados Unidos, em 2020, e
na invasão ao Capitólio, em 2021, por parte de pessoas que não aceitavam o resultado
de uma eleição democrática.
As referências a seguir, ainda que se afastem dos autores principais que serão
a base da análise do ódio na clínica, oferecem contribuições importantes para o estudo
da relação entre narcisismo e ódio no âmbito coletivo.
Assim, Rosa, Alencar e Martins36 destacam a pobreza do debate político nas
eleições de 2014, com visível polarização, a mesma tendência, que, de maneira mais
acentuada, ocorreu em 2018, quando a explicitação de manifestações de ódio por
parte de um dos candidatos, além de intensificar posicionamentos polarizados radicais
e, consequentemente, conflitos, trouxe muita hostilidade, medo e sofrimento. Esse tipo
de discurso permitiu uma identificação coletiva pela via do ódio. Thaler37 destaca que
existem períodos da história com maior exacerbação do ódio e Koltai aponta para a
36 ROSA, M. D.; ALENCAR, S.; MARTINS, R. Licença para odiar: uma questão para a psicanálise e a
política. In: ROSA, M. D.; COSTA, A. M. M.; PRUDENTE, S. (Orgs.) As escritas do ódio – psicanálise
e política. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2018.
37 THALER, L. Editorial da Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre,
exclusividade do ódio e por ele ser mobilizado em seu desejo, quando se refere ao
totalitarismo, que “requer o ódio como cimento do laço social”.38
Rosa, Alencar e Martins39 discutem as consequências negativas da
operacionalização política pela via das paixões, em detrimento do pensamento,
através do ódio. Tal modalidade de paixão, em função da sua natureza narcísica
(assim como as demais), prejudica a função civilizatória – pela autorização da
manifestação livre do ódio –, pois aniquila-se o outro, não havendo uma experiência
com ele. Isso se relaciona à lógica paranoica, onde um outro mau precisa ser
destruído para a preservação do sujeito. Tal premissa não leva em conta que o mais
odiado no outro está igualmente presente em si. A presença do outro da diferença
perturba a noção de completude imaginária e, por essa razão, ele presentifica o mal.
Como destaca Koltai40: “[...] o ódio de si está na raiz do ódio do outro e da sociedade,
levando o sujeito a rejeitar sua própria miséria psíquica sobre um outro, transformado
na causa de todos os seus males”.
Alguns autores, como Simanke41, Koltai42, Rosa, Alencar e Martins,43 apontam
para fatores como desilusão, frustração e desesperança política como elementos que
explicam o surgimento do ódio no contexto coletivo, sendo ele uma resposta a tais
sentimentos. Koltai44 define o “etos do rancor” em oposição e como resposta ao sonho
de emancipação individual e coletivo perdido e o relaciona às políticas do ódio,
marcadas pela descrença e pelo desprezo pela política, manifestos nos ataques às
instituições que garantem a democracia e a forma política da sua expressão. A mesma
autora levanta a hipótese de um estado melancólico social, consequência da ausência
do luto dos sonhos de progresso do século XIX que foram perdidos. Neste contexto,
a crueldade melancólica presente na violência contra o outro, com o qual o
melancólico está identificado, também aparece nos discursos de ódio na esfera social.
Desde Freud já se sabe que a melancolização decorre da incapacidade para a
realização de luto.
38 KOLTAI, C. O ódio na política, políticas do ódio. In: ROSA, M. D., COSTA, A. M. M.; PRUDENTE, S.
(Orgs.) As escritas do ódio – psicanálise e política. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2018, p. 261.
39 ROSA, M. D.; ALENCAR, S.; MARTINS, R. Licença para odiar: uma questão para a psicanálise e a
política. In: ROSA, M. D.; COSTA, A. M. M.; PRUDENTE, S. (Orgs.). As escritas do ódio –
psicanálise e política. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2018.
40 KOLTAI, C., op. cit., p. 260.
41 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio
45 RINALDI, D. O discurso do ódio, uma paixão contemporânea. In: ROSA, M. D.; COSTA, A. M. M.;
PRUDENTE, S. As escritas do ódio – psicanálise e política. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2018.
46 Lacan formulará esse registro nos anos 50, já a ideia do estádio do espelho é produzida
anteriormente.
47
ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 194.
48 LACAN, J. (1949) O estádio do espelho como formador da função do eu. In: LACAN, J. Escritos. Rio
Zahar,1998.
50 Dias propõe que o ódio em uma análise deva estar a serviço da desalienação. Ele propõe a vivência
de uma primeira manifestação transferencial negativa, marcada pela hostilidade. A partir dela que
virá uma transferência positiva. In: DIAS, M. M. Os ódios: clínica e política do psicanalista. São
Paulo: Iluminuras, 2012.
51 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio
52 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio
– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019, p. 136.
53 BROIDE, E. E. O que é o ódio? De onde ele vem? In: Rosa, M. D.; COSTA, A. M. M.; PRUDENTE,
o ódio, como considera Rinaldi. As redes sociais agem também, com a exclusão do
simbólico, seguindo a lógica da identificação imaginária e, por essa razão, criam um
solo fértil às manifestações do ódio. Com sua função mediadora, a fala fica ausente e
usa-se violentamente as palavras de acordo com essa autora. Afirma Rinaldi:
Sob o manto da ‘rede’ pode-se dizer qualquer coisa, na tentativa de destruir
o outro, caluniá-lo, sem responsabilização nem compromisso com a verdade,
porque a verdade passa a ser aquela que um número grande de pessoas
‘curtiu’ e/ou repassou para seus ‘amigos’.54
54 RINALDI, D. O discurso do ódio, uma paixão contemporânea In: ROSA, M. D.; COSTA, A. M. M.;
PRUDENTE, S. (Orgs.). As escritas do ódio – psicanálise e política. São Paulo: Escuta/FAPESP,
2018, p. 37.
55 FULBER, V. G. Retórica de ódio, cultura e pulsão. Estudos de psicanálise, Vol. 51, Belo Horizonte,
2019.
56 BOIANOVSKY, D. Mais uma vez, por que a guerra? Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP,
fanatismo religioso, que na sua dimensão narcísica acaba por desumanizar os infiéis,
pois propaga ódio aos que permanecem do outro lado: “do mal e do pecado”,
rompendo com a possibilidade de uma pluralidade discursiva ou um Estado laico e
democrático. Esta visão maniqueísta polariza a política e parte da sociedade brasileira
contemporânea.
A proposta freudiana acima permitiria manter as conquistas da civilização, dada
a impossibilidade da eliminação da pulsão destrutiva e, como consequência, torna-se
incompatível a articulação dos princípios éticos à dinâmica pulsional. Desta forma, o
ódio relaciona-se tanto ao individual presente na clínica psicanalítica quanto ao
social. Vários autores propõem a análise desta dupla vertente, como Broide60 e Rosa,
Alencar e Martins61.
Após a apresentação das ideias de diferentes autores, tem-se a seguir a análise
dos textos sociais de Freud, com destaque à questão do ódio no aspecto pulsional e
no narcisismo, assim como na visão lacaniana, em que imaginário, agressividade e
ódio relacionam-se ao Eu, portanto, ao narcisismo.
60 BROIDE, E. E. O que é o ódio? De onde ele vem? In: ROSA, M. D.; COSTA, A. M. M.; PRUDENTE,
S. (Orgs.). As escritas do ódio – psicanálise e política. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2018.
61 ROSA, M. D.; ALENCAR, S.; MARTINS, R. Licença para odiar: uma questão para a psicanálise e a
política. In: ROSA, M. D.; COSTA, A. M. M.; PRUDENTE, S. (Orgs.). As escritas do ódio –
psicanálise e política. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2018.
62 Com relação ao estatuto mitológico de Totem e tabu, Rego Barros o reafirma na medida em que o
mito é uma tentativa para explicar uma impossibilidade. Ele questiona: “[...]como os orangotangos,
como os chamava humoristicamente Lacan, se reuniram para matar o pai, se eram pré-humanos?
Ou seja, em torno de que aliança simbólica se poriam de acordo?” In: BARROS, R. R. Compulsões
e Obsessões: uma neurose de futuro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 88.
63 Zimerman cita a presença do ódio em vários mitos além do Édipo. Tais narrativas revelam para o
autor pulsões, fantasias, conflitos e sentimentos. O mesmo autor considera que eles estão para a
28
que a funda e do tabu do incesto. Como destaca Koltai64, Freud tinha muita simpatia
por esta obra65, apesar dela ter sido alvo de críticas, pois havia realizado uma
pesquisa a partir de autores da Antropologia66 para relacionar conceitos dela ao
Complexo de Édipo, fenômeno que esse autor já defendia a existência de maneira
universal, desde a carta 71 endereçada a Fliess, em 1897 até o final da sua obra,
como afirma Koltai. Freud nunca alterou as ideias de Totem e tabu e as resgata mais
de uma vez em outros textos, como descreverei mais adiante, neste capítulo.
Freud67 defende a ideia de que fatos ancestrais, a partir de uma situação
consumada na horda primitiva, são herdados e permanecem vivos em nosso
inconsciente, na fantasia e no desejo parricida e incestuoso. O autor parte da noção
de horda – extraída de Darwin68 – que era uma forma de organização, onde os filhos
estavam submetidos a um pai violento e cruel, sem acesso às mulheres do grupo.
Este pai é o que institui uma forma de lei, mas da qual ele próprio permanece excluído.
Tomados pelo ódio, eles realizam o assassinato paterno e, em seguida, alimentam-se
do pai. Devorando-no, eles incorporam69 e se identificam com seus atributos. O crime
praticado pelos irmãos não foi seguido da ocupação do lugar paterno por um
substituto. Após o ato surge a culpa e o pai torna-se mais presente e poderoso, passa
a ser amado, permitindo o surgimento da ambivalência. Essa culpa faz-se presente
no totemismo, enquanto primeira forma de religião, na Cultura fundada e no neurótico.
Para Freud, cada um dos totens instituídos – cada qual uma representação do pai da
horda – fica como seu substituto, que é temido, venerado e respeitado, mas também
odiado. A partir dessas criações, formam-se grupos distintos (clãs), cada qual
submetido e caracterizado por um totem, assim como a necessidade da exogamia,
humanidade assim como o sonho está para o indivíduo. In: ZIMERMAN, D. Os quatro vínculos.
Porto Alegre: Artmed, 2004,
64 KOLTAI, C. Totem e tabu – Um mito Freudiano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 39.
65 Strachey considera que Freud passa de um estado anterior de hesitação em relação a essa obra à
consideração de que ela representa sua melhor produção, em 1921, chegando a citá-la em sua autobiografia.
66 Koltai (2010) desenvolve um capítulo onde resgata toda a discussão envolvendo Psicanálise e
Antropologia, simpatias e antipatias às hipóteses freudianas de 1913. O capítulo pode ser lido na
íntegra em Totem e tabu – Um mito freudiano.
67 FREUD, S. (1913 [1912-1913]) Totem e Tabu. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras
prazer, talvez nos fale da sua necessidade de que a psicanálise fosse considerada como Ciência e
é alvo de crítica de muitos autores psicanalistas.
69 Com relação ao conceito da incorporação, Freud o caracteriza como relacionado à fase oral sendo
um fim sexual provisório, forma de amor com identificação ao objeto, sendo ambivalente. Tal
modalidade de identificação está presente na gênese da melancolia, descrita por Freud em 1917.
29
pois relações sexuais entre “irmãos” do mesmo grupo são proibidas e passíveis de
punição.
Na presente obra, Freud70 relaciona o primitivo ao neurótico e à criança, com
base na análise do pequeno Hans, onde esse autor constatou os desejos incestuosos
e assassinos do garoto em relação ao pai e o deslocamento – como mecanismo de
funcionamento do inconsciente – da imago paterna ao animal, como se dá no
totemismo. Para Koltai71, tal constatação nos aproxima da origem comum do totem e
do Édipo, que carrega a recordação do crime praticado contra o pai da horda e a
história do individual da neurose, mas eles se diferenciam, pois o neurótico fantasia
aquilo que o primitivo colocou em ato, no lugar da ideia.
A neurose obsessiva é trazida por Freud para exemplificar a presença do tabu
na patologia, em que a forte ambivalência dessa psiconeurose – marcada pela
hostilidade inconsciente dirigida ao objeto também amado – faz-se presente nas fortes
proibições e nos desejos simultâneos de realizar as transgressões. O autor72 analisa
a palavra tabu, que já carrega em si um duplo significado: puro (sagrado) e impuro
(proibido), enquanto formação social, pautada na sobrenaturalidade, na superstição,
fazendo-se presente em todas as religiões. O tabu representa uma defesa frente ao
ódio, pois o caráter perseguidor da alma do morto é consequência da projeção hostil nele.
Freud73 propõe a existência de uma escala na compreensão humana sobre o
mundo, onde inicialmente haveria o animismo, a onipotência do pensamento mágico,
submetendo a natureza a si e relacionada ao narcisismo, seguida da religiosidade –
que não abandona o estágio anterior – e pode ser comparada à dependência infantil
da criança ao pai – com forte ambivalência afetiva – e, por fim, a ciência, com o
predomínio da maturidade, da aceitação da realidade. Se considerarmos esta
perspectiva, as manifestações anticiência e negacionistas da realidade na atualidade
revelam formas primárias e infantis de visão do mundo por parte de seus apoiadores.
Totem e tabu propõe a origem da religião, a partir da criação de outra versão
paterna, a que protege e não desampara seus filhos, mas nela pode-se encontrar a
expressão da ambivalência, onde o amor entre iguais aparece, ao mesmo tempo em
70 FREUD, S. (1913 [1912-1913]) Totem e Tabu. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
71 KOLTAI, C. Totem e tabu – Um mito Freudiano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
72 FREUD, op. cit., p. 111.
73 Ibidem
30
que a hostilidade é dirigida aos outros, externos ao grupo. Tal ideia também aparecerá
no texto sobre as massas e na noção de “narcisismo das pequenas diferenças”.
Freud74 formulará a instância supereu dez anos depois e afirmará que ele
apresenta proibições, como o tabu dos primitivos, pois experiências do Eu seriam
incorporadas ao Isso, após repetições em sucessivas gerações75, garantindo uma
herança da espécie. Freud apresenta essa filogênese – que se faria presente na
ontogênese – em vários momentos de sua obra e Giovacchini qualifica positivamente
esse “lamarckismo” nas ideias freudianas. Para o autor:
Freud era um lamarckiano. Acreditava na hereditariedade dos traços
adquiridos, mas indagava de que modo isso seria possível em termos da
estrutura psíquica proposta em sua hipótese. Concluíra que depois de
repetidas por sucessivas gerações, as experiências do ego terminam
incorporando-se ao id e se tornando parte da herança da espécie. Esses
elementos agora constitucionais contribuem para a formação do superego.
As proibições originárias, exemplificadas nos tabus primitivos, estão
incorporadas ao superego moderno. Quanto ao ego, Freud postulou que o
superego talvez esteja “revivendo formas de egos anteriores e trazendo-as à
ressurreição”. Embora a moderna teoria da evolução rejeite a perspectiva
lamarckiana, nem por isso as ideias freudianas deixam de apresentar
interesse (...) As ideias de Freud podem ser fantasiosas, mas o estudo do
superego, através da análise de pacientes sofrendo de estados mentais
primitivos, frequentemente revela qualidades tão arcaicas, que caberia
perguntar se elas são resultado da ontogenia ou da filogenia.76
74 FREUD, S. (1923) O ego e o id. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas
de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
75 Fulber parte desta ideia do supereu transmitido através de gerações e explica a agressividade do
superego dominador e sádico – derivado da mesma instância dos pais – para pensá-lo na sociedade
brasileira escravocrata, sádica e dominadora. In: FULBER, V. G. Retórica de ódio, cultura e pulsão.
Estudos de psicanálise, Vol. 51, Belo Horizonte, 2019.
76 GIOVACCHINI, P. Roteiro à leitura de Freud. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985, p. 163.
77 FREUD, S. (1930) O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 135.
31
78 FREUD, S. (1915) Reflexões para os tempos de guerra e morte. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
32
79 FREUD, S. (1921) Psicologia de grupo e análise do ego. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira
das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
80 Goldenberg questiona a razão pela qual Freud baseou-se em Le Bon. Para ele, tal aproximação
permitiu a Freud uma reformulação da ideia sobre inconsciente, assim como o afastamento do
inconsciente coletivo de Jung. Segundo o autor, Freud também pôde, a partir da elaboração do texto
sobre as massas, aproximar-se e tratar da história do próprio movimento psicanalítico, com intensos
conflitos entre os discípulos e deles com o fundador. Eles criticaram a obra de Freud pela ênfase nas
outras disciplinas, afastando-se da psicanálise. In: GOLDENBERG, R. Psicologia das massas e
análise do Eu: solidão e multidão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
81 FREUD, S. (1921) Psicologia de grupo e análise do ego. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira
das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
33
82 Freud retoma no estudo sobre os grupos muitas das noções desenvolvidas no texto sobre o
narcisismo.
83 FREUD, S. (1921) Psicologia de grupo e análise do ego. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira
das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
84 GOLDENBERG, R. Psicologia das massas e análise do Eu: solidão e multidão. Rio de Janeiro:
tabu da virgindade, Strachey89 afirma que esta noção aparece em alguns textos
freudianos; inicialmente, neste texto, no artigo sobre a psicologia dos grupos e em o
O mal-estar na Civilização. No primeiro texto, Freud relaciona a formação de um grupo
sentido como estranho e alvo da hostilidade, no caso dos homens em relação às
mulheres, a partir da angústia de castração, que a ausência do pênis nas mulheres
desperta. No texto sobre a psicologia coletiva, Freud trabalha essa mesma ideia, mas
no contexto da formação de grupos, onde laços libidinais mantêm a coesão do coletivo
e a hostilidade é dirigida ao “pequeno traço” de diferenciação presente no outro,
externo ao grupo. Na época, Freud afirma desconhecer a fonte do ódio relacionado a
esta hostilidade. Em uma nota de rodapé no texto de 1921, o autor afirma ter feito um
paralelo entre ódio e pulsão de morte em Além do princípio de prazer. Já, em O mal-
estar na civilização, Freud apresentará a relação entre pulsão de morte, agressividade
e o narcisismo das pequenas diferenças.
Retomando o exposto na introdução, talvez a procura pelo dispositivo das rodas
de conversa ou outros coletivos, que permitam a inserção junto aos pares e a
mensagem do slogan: “ninguém solta a mão de ninguém”, promovam a atenuação do
medo e a restituição do grupo de pares com seus laços libidinais. Seria uma
alternativa, uma forma de sobrevivência a ser buscada em períodos tão hostis?
É nesse texto retomada a ideia de identificação90 como forma alternativa de
vínculos e Freud propõe uma identificação primária e precoce – anterior ao complexo
de Édipo – com os pais. O autor diferencia alguns tipos de identificação, desde formas
relacionadas ao sintoma, passando por modalidades relacionadas ao objeto perdido
(na homossexualidade e na melancolia) até chegar à identificação do grupo ao líder.
Freud91 não aceita a ideia da pulsão gregária, preferindo recorrer às ideias de
Totem e Tabu sobre o pai da horda, terrível, originário e que é revivido na figura do
hipnotizador. Semelhante relação terrível à do pai primitivo e seus filhos é encontrada
na relação grupo-líder, em que o pai ideal domina os Eus individuais de cada elemento
89 FREUD, S. (1918 [1917]) O tabu da virgindade. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
90 O conceito de identificação vai ser importante nas teorizações futuras sobre a constituição do Eu, no
texto de 1923, assim como resultado da trama edipiana em ambos os sexos. A ideia de um Eu
enquanto instância e como um precipitado de identificações com objetos amados e que foram
abandonados é uma importante ideia apresentada em O Eu e o Isso.
91 FREUD, S. (1921) Psicologia de grupo e análise do ego. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira
das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
35
do grupo. Nas massas, o objeto tomado por ideal relaciona-se ao ideal não atingido
pelo Eu, que se satisfaz narcisicamente.
A análise de coletivos, como Igreja e Exército, faz-se presente quando Freud92
os reconhece como grupos artificiais com elevada organização. O ódio presente na
ambivalência afetiva do grupo é reprimido e reaparece na intolerância com os que
permanecem fora dele, ou seja, no narcisismo das pequenas diferenças.
A manifestação pulsional direta, encontrada na união de um casal,
diferentemente do amor inibido em sua finalidade presente nas formações coletivas,
impede a manutenção dos grupos. Daí a impossibilidade e impedimento da presença
feminina nesses grupos artificiais, que poderia atuar como fator de desagregação. Na
mesma direção, a questão pulsional intensamente presente e fixada a um objeto
explicaria o caráter associal da neurose, pois impede a utilização da libido na coesão
grupal. Como afirma Koltai:
É por isso que Freud reconhece nas neuroses ‘caricaturas’ das grandes
produções sociais, em que a histeria pode ser vista como uma obra de arte
deformada, a neurose obsessiva como uma forma de religiosidade, ela
também deformada, e a mania paranoica como um sistema filosófico
deformado.93
92 FREUD, S. (1921) Psicologia de grupo e análise do ego. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira
das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
93 KOLTAI, C. Totem e tabu – Um mito Freudiano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 39.
94 FREUD, S. (1930) O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras
98 FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 167.
99 Strachey (1969) afirma que, na carta 75 a Fliess de 1897, Freud levanta a hipótese de uma repressão
orgânica necessária à repressão posterior pela civilização e a relaciona à mudança para a postura
bípede, com menor exposição dos órgãos genitais, e deslocando o sentido predominantemente
olfativo para a visão e, daí, a vergonha na exibição deles. Do mesmo ano, o rascunho N já relaciona
a renúncia ao incesto à conquista civilizatória. Prefácio do Editor. O mal-estar na civilização. In:
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio
de Janeiro: Imago, 1996.
100 FREUD, S. (1930) O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras
102 FREUD, S. (1930) O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
103
Freud resgatou o segundo dualismo pulsional proposto em 1920 em outros textos, como O Eu e o
Isso, O problema econômico do masoquismo e Mal-estar na civilização.
104 FREUD, op. cit.
105 Ibidem
106 Ibidem
38
pouco difere o pensamento de uma atitude, pois ele permanece na posição de vigia
interno. Relaciona-se tanto ao temor da punição quanto ao desejo de assassinato,
pois é o resultado psíquico de uma trama com os genitores, que envolve amor e ódio,
o complexo de Édipo.
Quando desvincula esta severidade do superego à educação recebida, em uma
nota de rodapé, Freud afirma que a mesma consideração é adequadamente feita por
Melanie Klein. Por outro lado, Freud107 relativiza tal independência, pois o supereu
depende de fatores inatos, mas também ambientais.
Freud também considera a existência de um supereu cultural, cuja gênese é
semelhante à do individual, relacionada à influência de grandes líderes e que opera
com exigências ideais rígidas e severas.
Em O mal-estar na civilização, o conceito de narcisismo das pequenas
diferenças é resgatado. Afirma o autor:
Evidentemente, não é fácil aos homens abandonar a satisfação dessa
inclinação para a agressão. Sem ela, eles não se sentem confortáveis. A
vantagem que um grupo cultural, comparativamente pequeno, oferece,
concedendo a esse instinto um escoadouro sob a forma de hostilidade contra
intrusos108, não é nada desprezível. É sempre possível unir um considerável
número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para
receberem as manifestações de sua agressividade [...] Dei a esse fenômeno
o nome de ‘narcisismo das pequenas diferenças’, denominação que não
ajuda muito a explicá-lo. Agora podemos ver que se trata de uma satisfação
conveniente e relativamente inócua da inclinação para a agressão, através
da qual a coesão entre os membros da comunidade é tornada mais fácil. 109
(grifo nosso)
Cabe ressaltar que Gabbard110 considera o fato de Freud não perceber o grave
potencial desta tendência agressiva, pois ela pode originar formas extremas de
hostilidade e crueldade, como nossa história já pode revelar e demonstra atualmente.
Para Saroldi111, a repressão pulsional transforma a libido em sintomas, como
Freud já defendia em 1908, porém a novidade é a transformação da agressividade
dirigida ao outro em sentimento de culpa. Escreve a autora:
Cada renúncia efetuada pressupõe a existência de uma consciência anterior.
No entanto, essa mesma renúncia torna-se uma ‘fonte dinâmica’, uma
107 FREUD, S. (1930) O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
108 O intruso como diferente ao grupo.
109 FREUD, S. (1930), op. cit., pp. 118-119.
110 GABBARD, G. Love and Hate in the analytic setting – The library of object relations. Jason
Por outro lado, a renúncia pulsional, como forma de regulação coletiva, está na
gênese da hostilidade contra a própria Cultura, fato que se configura como outro paradoxo.
Problematizando tais ideias, e se utilizando do pensamento de Bauman113,
Saroldi114 questiona de que forma a busca incessante de prazer, satisfação livre de
desejos, desconsiderando o princípio da realidade115, tão presente em nossa
atualidade, podem ser pensadas quando consideramos os pressupostos freudianos
de que, para a manutenção da civilização, renúncias são necessárias. O
questionamento dessa autora relaciona-se à hipótese de Barros sobre a livre
manifestação da agressividade. Cito Barros116:
Talvez esta situação de crise e instabilidade existenciais esteja a sinalizar que
o trabalho cultural tem sido insuficiente para viabilizar subjetivação e
simbolização e possibilitar que libido e hostilidade, amor e ódio – forças
psíquicas que fundam a subjetividade e habitam o humano desde sempre –
sejam utilizados em favor do sujeito.117
sociais com as propriedades do estado físico líquido da matéria, como fluido, volúvel, maleável e efêmero.
114 SAROLDI, op. cit.
115 O princípio do prazer de natureza econômica rege o psiquismo com o objetivo de diminuir o
desprazer, já o princípio da realidade, atuando junto com o outro princípio, assume papel regulador,
pois considera a realidade externa para modular a obtenção da satisfação (LAPLANCHE;
PONTALIS, 2001).
116 BARROS, M. N. C. A trama paradoxal do ódio no psiquismo. Tese de Doutorado, Universidade
secundário, penso que, ao eliminar a dimensão pulsional, ele retira um elemento teórico
importante para pensar a problemática que sua obra levanta.
40
120 Tal conceito apresentado por Andrade equivale à noção de narcisismo primário anobjetal.
Apresentarei as noções freudianas de narcisismo primário e secundário no próximo capítulo.
121 ANDRADE, V. M. O narcisismo e o mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2014.
41
assim como durante toda a vida. É ao narcisismo primário que a falta da conquista do
narcisismo secundário conduz. A fraqueza deste é compensada pelo anterior e
relacionada à falha de objetos primários, que são internalizados. Assim, o poder
narcísico equivale à onipotência infantil, segundo Andrade. De modo geral, o autor
considera que o poder apresenta dois objetivos: um de natureza narcísica e outro com
tendência a considerar o objeto. Uma vez que a ciência revela a insuficiência do
homem, negá-la, como é tendência atual, permite a permanência na onipotência que
apresenta expectativas e restos do narcisismo primário. O autor propõe a passagem
dela para uma potência, com a possibilidade da realização de ideais, que podem
aproximar as três instâncias psíquicas.
Para Andrade125, cabe à psicanálise permitir a passagem do narcisismo
primário ao secundário, no manejo clínico de pacientes com patologias narcisistas,
predominantes no momento atual.
Para finalizar parte do percurso na obra freudiana, no texto Moisés e o
monoteísmo, o autor126 defende a origem egípcia de Moisés, questiona sua suposta
origem humilde e acredita que ele participava de uma religião monoteísta da qual teria
transferido elementos aos hebreus, que rompem futuramente com tal religião – de
Aton – e escolhem um novo Deus, Yahvé, primitivo e terrível, traços que futuramente
serão descritos na personalidade de Moisés. Posteriormente, este será assassinado,
fato historicamente escondido e defendido por Freud. Deste fato e das consequências
dele, resultam o reaparecimento127 da religião de Moisés e a transformação de Yahvé
no Deus dele, que se constitui como uma figura mítica e híbrida, com características de ambos.
Procurando relação com os conceitos da psicanálise, Freud128 retoma mais
uma vez as ideias do texto de 1913, afirmando que o crime contra Moisés foi
encabeçado por um filho, gerando a fantasia de castigo, que o fez atribuir a culpa
coletiva para si. Assim, caminhamos do monoteísmo judaico ao cristianismo, que
revela traços do politeísmo combatido por Moisés, cuja morte traz a fantasia do
Messias (filho de Deus) na figura de Jesus Cristo, que o judaísmo nega, assim como
apresentada no texto.
128 FREUD, op. cit.
43
pp. 91-92.
131 O complexo de Édipo permite identificações estruturantes, que constituem o superego, e
ambivalentes.
44
uma forma social de prazer, que opera pelos mesmos mecanismos, a condensação e
o deslocamento. O componente agressivo recalcado da piada tem outra modalidade
de retorno à consciência. No chiste, a agressividade é contra o alvo da piada, um dos
três elementos necessários. Como nos afirma Freud5, o outro indiferente é capturado,
torna-se aliado do contador da piada e, pela via da risada, sente prazer junto com o
contador. Aqui temos uma ligação coletiva pela via da hostilidade.
Pela análise dos chistes, Freud tem um conjunto das manifestações ou
formações do inconsciente para a Psicanálise: os sonhos, os sintomas, os atos falhos
e os chistes. A agressividade do chiste, assim como outros conteúdos inadmissíveis
à consciência, nas demais formações, é recalcada e é no subtexto que as ofensas
estão contidas. O desejo inconsciente de violência (ataque) assim pode aparecer.
Mezan6 destaca, nesse terceiro período, a presença do ódio expresso na
violência no pai da horda de Totem e tabu, assim como na patologia. A questão do
ódio ficará evidente no caso do Homem dos Ratos, ao estudar a neurose obsessiva,
que será desenvolvido mais adiante neste capítulo, na análise da relação do ódio na
etiologia dessa neurose.
Há um quarto e último período, a partir de 1920, onde, segundo Mezan7, a
violência aparece como “unificadora de conceitos”, passando do lugar da patologia
para a normalidade. Desse modo, ela engloba a compulsão à repetição, como modo
de funcionamento do psiquismo. Para o autor:
A repetição revela-se assim como a forma pela qual a violência se inscreve
no sujeito. Por outro lado, a repetição por si só não pode dar conta do conflito
substitutivo do sujeito; é preciso que haja violência para que a oposição possa
assumir seu papel constituinte. Ela começa no próprio ‘indivíduo’, como
pulsão de morte oposta a Eros; continua nas relações interpessoais que o
ordenam como ser humano; e reaparece como foco dos conflitos que o
capacitam – ou incapacitam – a viver entre outros homens.8
5 FREUD, S. (1905) Os chistes e sua relação com o inconsciente. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. VIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
6 MEZAN, op. cit.
7 Ibidem
8 Ibidem, p. 333.
9 MEZAN, R. Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva, 1982.
46
10 Como já afirmado, uma concepção de Édipo completo, tanto em meninos quanto em meninas, é
formulada por Freud considerando em ambos a presença do amor e ódio pelo pai, assim como amor
e ódio pela mãe.
11 MEZAN, R. Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva, 1982.
12 Ibidem, p. 334.
13 ZIMERMAN, D. Os quatro vínculos. Porto Alegre: Artmed, 2004.
14
Barison resgata a ideia de Paula Heiman, que faz uma analogia da pulsão sexual ao filho
Primogênito, que ganhou o nome de libido, diferentemente da pulsão de morte, que foi um filho
tardio. In: BARISON, O. L. Cântico Negro: O uso clínico do conceito de pulsão de morte. Revista
Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 54, n. 1, 2020.
15 BARROS, M. N. C. A trama paradoxal do ódio no psiquismo. Tese de Doutorado, Universidade
não faz uma abordagem direta frequentemente, preferindo analisar noções como
sadismo e agressão, onde há manifestação do ódio. Esta tendência freudiana trouxe
um desafio à presente pesquisa no rastreamento do tema em uma obra tão vasta.
Para os autores17, antes da formulação do segundo dualismo pulsional, a
agressividade já estava descrita no âmbito da clínica, na resistência e na transferência
estabelecida por Dora, como já descrito. Baseado no verbete pesquisado, outro
exemplo da presença do ódio na teoria freudiana aparece no sonho referido em 1900:
Sonho de morte das pessoas queridas e, como citado, a noção do chiste hostil
servindo à agressão.
Quatro textos de Freud são importantes para apresentar a metapsicologia do
ódio em sua obra: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Introdução ao
narcisismo (1914), A pulsão e seus destinos (1915) e Além do princípio de prazer (1920).
Já no primeiro texto, Freud18 define o conceito de pulsão19 considerando-a
como representante psíquico de algo de natureza interna ao corpo, ou seja, a
representação psíquica da excitação se dá pela pulsão, movimento que desloca o
sujeito, exigindo trabalho ao psiquismo. É dotada de uma fonte somática, cujo
reconhecimento se dá de maneira indireta, finalidade, que é sempre sua satisfação e
objeto, o elemento mais variável. É esta plasticidade em relação ao objeto 20 que fará
Freud iniciar o primeiro dos três ensaios, onde também irá discutir os desvios na
finalidade; dessa forma, analisará fenômenos como a homossexualidade, a perversão
e o fetichismo. Freud quer defender a tese da presença da sexualidade infantil e do
seu caráter perverso polimorfo, destacando o fato de que seria a manutenção e
fixação em traços dela que caracterizariam a perversão adulta, também irá relacionar
ódio e agressividade ao sadismo. Ele o estudará também associado aos estágios mais
precoces da libido. O autor defende a ideia de que manifestações presentes na vida
sexual do perverso encontram-se também na sexualidade da criança, ou seja, há
resquícios da perversão na sexualidade adulta. Para Simanke21, nessa obra, Freud
17 LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
18 FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
19 Apesar da utilização nesta pesquisa da Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, da Editora Imago, que trata o conceito pulsão por instinto, optou-se
pela utilização do termo pulsão.
20
Em uma nota de rodapé acrescida posteriormente à obra, Freud considera que, diferentemente da
Antiguidade, a ênfase na sexualidade de sua época estava no objeto.
21 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio
22 FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
23 Ferraz defende a ideia da presença de ódio nesta patologia, considerando-a como forma de
erotização do ódio. In: FERRAZ, F. C. Tempo e ato na Perversão. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2005. Zimerman afirma que o ódio está presente na psicose, na neurose e principalmente na
perversão. In: ZIMERMAN, D. Os quatro vínculos. Porto Alegre: Artmed, 2004.
24 Freud, sempre que possível, trouxe a psicopatologia e o desenvolvimento atípico, em aproximação
com a “normalidade”, além de realizar comparações entre diferentes quadros, como neurose e
perversão nesse texto, melancolia e neurose obsessiva, em 1917, assim como neurose, psicose e
fetichismo, em 1938. Com relação ao fetiche, há hostilidade e sentimento de amor no seu tratamento,
como afirma Freud em 1927, em O fetichismo. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
25 FREUD, S. op. cit., p. 149.
26 FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
49
27 FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 158.
28 Ibidem
50
genital, o que pode ser visto na terceira edição de 1915 dos Três ensaios. A crueldade
que domina o período pré-genital se fundirá à genitalidade no futuro. A concepção
sobre sadismo e crueldade será um fundamento importante para o pensamento
kleiniano, a ser descrito no próximo capítulo. Strachey29 afirma que, na terceira edição,
foi excluída a ideia de um instinto agressivo independente em relação à sexualidade.
Para este autor, a ideia do narcisismo auxiliou Freud a recusar a ideia anterior, pois a
agressividade e o ódio ligados à autopreservação e à libido acabavam definitivamente
com a ideia de um impulso agressivo independente.
Laplanche e Pontalis30 reconhecem um momento anterior à noção que viria a
ser elaborada posteriormente, a da pulsão de morte. Nessa fase, temos uma pulsão
de domínio independente31, relacionada à fase anal, ligada à musculatura, que é
indiferente em relação ao prejuízo causado ao outro, não objetivando a destruição,
desvinculada do prazer, e que pode preservar o objeto, não envolvendo o ódio, sendo
não sexual. Quando na forma de agressividade manifesta, ela já aparece relacionada
ao sadismo, como pulsão parcial que envolve ódio e libido e, desta forma, relacionada
à sexualidade.
A ideia do narcisismo ajudou Freud a resolver a questão de uma pulsão
agressiva autônoma, como destacam autores como Mezan e Laplanche & Pontalis.
Na formulação sobre o narcisismo, considera-se que há um fluxo de libido do Eu aos
objetos e vice-versa. Partindo deste princípio, não cabe dizer que as pulsões sexuais
são opostas às pulsões do ego32, como Freud pensava anteriormente. Pelo exposto
acima, ego e sexualidade não se opõe, mas aproximam-se.
Como afirma Mezan33, Freud defendia inicialmente a ideia de uma unificação
pulsional sob o primado da genitalidade. Quando esta fosse adquirida, o amor tornar-
se-ia oposto ao ódio e seria possível a existência da ambivalência. Mezan propõe a
ideia de uma unificação anterior, no narcisismo – etapa intermediária entre
autoerotismo e escolha do objeto –, que já implica uma unificação. Após o
29 STRACHEY, 1969. Prefácio do Editor. O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileiras das obras completas de Sigmund Freud. Vol. XXI, Rio de Janeiro: Imago, 1996.
30 LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
31 Para Mezan (2014), ela mais se assemelha a uma ação egoica do que a uma pulsão. In: MEZAN,
R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 154.
32 Segundo Mezan (2014), em 1910 no artigo sobre as perturbações psicogênicas da visão aparece o
termo ‘pulsões do ego’, como oposta às pulsões sexuais e responsáveis pela autoconservação. A
ideia da libido que se desloca do ego aos objetos parece incompatível com a ideia da pulsão do ego
ser oposta às pulsões sexuais. Segundo o autor, assim o ego fica mais próximo da sexualidade que
seu oponente. In: MEZAN, R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
33 MEZAN, R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
51
34 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio
– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.
35 Ibidem, p. 129.
36 FREUD, S. (1914) Introdução ao narcisismo. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
38 Freud advertia quanto à inadequação da análise da obra de um artista a partir da biografia do seu
autor. Com relação ao trabalho sobre da Vinci, a análise é feita a partir das anotações pessoais
encontradas em um diário por ele elaborado.
52
43 FREUD, S. (1915) Os instintos e suas vicissitudes. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
44 A ideia do narcisismo primário absoluto, embora aceita por Freud, é um tema de ampla discussão na
psicanálise. Alguns analistas defendem um estado de narcisismo anobjetal absoluto. Por outro lado,
outros discordam da possibilidade de tal situação. Para Cromberg (2006), o narcisismo corresponde
ao investimento do eu, antecedido por outra etapa, embora seja considerado primário por Freud. In:
CROMBERG, R. U. Paranoia. 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.
45 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio
48 Na ausência do objeto, ele pode ser alucinado e a necessidade ligada à autoconservação pode ser
temporariamente suprimida na fantasia. Com relação a essa ideia freudiana, questiona Cromberg:
“a alucinação nasce da insatisfação ou cessa por causa dela?”. In: CROMBERG, R. U. Paranoia. 3.
ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006, p. 85.
49 FREUD, S. (1915) Os instintos e suas vicissitudes. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
50 MEZAN, R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
51 Ibidem
52 Tal ideia será revista e Freud defenderá a posição de um masoquismo primário em relação ao
58 Baseado na ideia de Fliess, propõe Freud a condição psíquica bissexual para o ser humano. Vai
buscar, na ideia de uma primeira gônada indiferenciada, o reforço da biologia para tal formulação.
59 FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 151.
60 FREUD, S. (1915) Os instintos e suas vicissitudes. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
61 BIRMAN, J. As pulsões e seus destinos: do corporal ao psíquico. Rio de Janeiro: Civilização
primeiros objetos, segundo a autora. Esta ideia será desenvolvida no próximo capítulo
desta dissertação.
Na perspectiva do eu prazer narcísico, em oposição ao mundo mau
desprazeroso, podemos articular a oposição amar/ser amado, de natureza narcísica.
Nessa etapa, ocorre a introjeção e identificação por parte do Eu daquilo que o objeto
lhe ofereceu de bom. Também há projeção de parte do Eu ao mundo externo, a
externalização da parte que equivale ao estranho e odiado. O ódio narcísico está
presente na repulsa ao objeto. A origem do ódio é relacionada à constituição do eu
(narcisismo) e externalidade.
Na etapa do eu realidade objetivo/definitivo, a oposição ocorre entre o amar e
o odiar. O ódio é uma relação do Eu total com objetos e é o narcisismo sua fonte. O
amor, agora considerado secundário, busca os objetos do prazer. Antes de serem
opostos, amor e ódio estavam relacionados ao prazer e desprazer. Agora podem
transformar-se em opostos e se unirem na ambivalência em relação ao mesmo objeto,
segundo Birman. Retomando a questão desta pesquisa, se permanecêssemos
restritos a esse momento do pensamento de Freud, o ódio fica ria explicado a
partir do narcisismo.
A aquisição da capacidade de reconhecer o amor pelo objeto é possível com a
superação da condição do eu narcísico e, assim, pode-se adquirir a capacidade de
oferecer prazer e ter satisfação com o outro. Tal período articula-se ao princípio da
realidade e ao Eu realidade, como propõe Birman.62 63
A fixação no narcisismo desvincula o contato com o princípio da realidade e
prejudica formas de relação mais amadurecidas com o outro, nas quais pode haver
ódio e amor excluindo a polaridade amor ao bom, que é meu, e ódio radical ao objeto
externo, mau, que a minha fúria deseja destruir. Não estaríamos falando de um
fenômeno desta natureza ao analisarmos os fenômenos contemporâneos e reações
emocionais tão frequentes em nossos dias?
Para a oposição amar/odiar e a aquisição da ambivalência, teria que haver um
eu realidade definitivo. Propõe o autor que “o amor é representado comumente como
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
69 Strachey (1969/1996) descreve uma ideia freudiana – pouco desenvolvida e questionada pelo próprio
Freud e que se encontra em uma correspondência dele com Marie Bonaparte – que, no início da vida,
a libido era interna e a agressividade estava fora, mas a situação altera-se com o desenvolvimento,
destacando a interioridade da pulsão de morte e a externalidade (não só) da libido. Essa nota
introdutória do Editor encontra-se em O mal-estar na civilização. (1930). In: FREUD, S. Edição
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XX1. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
70 LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
71 LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
59
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
76 FREUD, S. (1920) Além do princípio de prazer. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
77 Ibidem
61
83 FREUD, S. (1920) Além do princípio de prazer. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
84 Gerchmann e Antunes afirmam que a biologia reconheceu a existência de forças opostas à vida no
interior da célula, a apoptose celular. In: GERCHMANN, A.; ANTUNES, C. A. O ódio primário e os
processos de individualização – Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.
Na mesma direção, Zimerman propõe uma reflexão sobre o afastamento da psicanálise das outras
ciências, quando optou por se prender à metapsicologia, gerando um certo vazio técnico-teórico.
Relacionando o ódio à bioquímica, o autor afirma haver um aumento dos níveis de óxido nítrico em
situações de medo e passividade. Conjuntamente a esta substância, a serotonina relaciona-se ao
comportamento agressivo, pois tem sua concentração diminuída. In: ZIMERMAN, D. Os quatro
vínculos. Porto Alegre: Artmed, 2004.
85 FREUD, op. cit.
86 Podemos aplicar essa ideia à noção da união dos integrantes na psicologia das massas, mas a
destruição é provocada pela pulsão de morte, quando surge o intolerável diferente, que acende o
narcisismo das pequenas diferenças.
87 MEZAN, R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
88 MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
89 Ibidem
63
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
64
95 LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
96 MENEZES, L. C. O ódio e a destrutividade na metapsicologia freudiana. In: MENEZES, L. C.
Fundamentos de uma clínica freudiana. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.
97 Em 1905, o objeto constitui o elemento contingente, o mais variável que serve para a satisfação
da pulsão. Em 1915, ele é o elemento diferente do eu prazer purificado, que se opõe a ele. O
objeto equivale a um não eu. É nesta formulação que Freud relaciona o ódio ao narcisismo,
segundo Menezes.
98 MENEZES, op. cit.
99 LAPLANCHE; PONTALIS, op. cit.
100 MENEZES, op. cit.
101 Ibidem
65
102 MEZAN, R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
103 LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
104 FREUD, S. (1923) O ego e o id. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. X. Rio de Janeiro: Imago,
1996, p. 125.
114 MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
67
Dessa forma o desejo parricida, ódio e culpa explicam a origem das diversas
patologias.
115 Mezan propõe a noção de modelos, dentro da obra freudiana, que é baseada no paradigma
pulsional. Nele há vários modelos, cada um constituído por certas teorias. Para ele a neurose
obsessiva fornece elementos para a constituição de um modelo, cuja matriz é o ódio. As ideias de
Totem e tabu sobre onipotência e narcisismo constituem relações secundárias ao modelo.
O autor propõe outros três modelos, um baseado na histeria, outro na psicose e um terceiro na
melancolia, que se relaciona ao da neurose obsessiva. Cada modelo apresenta uma psicopatologia
de base, com seus conflitos e defesas, uma descrição de aparelho psíquico e de uma teoria do
desenvolvimento, além de uma concepção de processo analítico. Cada escola pós-freudiana tem
uma matriz clínica de referência (baseada em um dos modelos), uma leitura específica da obra
freudiana e um contexto na formação delas. A psicologia do Ego, parte do kleinismo e as relações
de objeto originam-se respectivamente dos modelos baseados na neurose obsessiva, melancolia e
psicose. In: MEZAN, R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
116 Os quadros psicopatológicos são estudados comparativamente por Freud e outros autores, aliás,
diversos quadros psicopatológicos e sua natureza sexual, foram elaborados em 1887, antes da
formulação do conceito da sexualidade infantil, e as cartas entre Freud e Fliess foram trocadas
desde o ano da elaboração dos manuscritos até 1902. In: CROMBERG, R. U. Paranoia. 3. ed. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.
118 DELORENZO, R. Neurose obsessiva. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.
119 Ibidem, p. 33.
68
Ernst Lanzer, ou “o homem dos ratos”120 – nome que lhe foi dado por Freud –,
procura tratamento apresentando inibições, medos (que algo pudesse acontecer a
duas pessoas que ele amava: seu pai e uma dama), impulsos suicidas (como cortar a
própria garganta), rituais (colocar e retirar uma pedra no caminho por onde passaria a
dama que amava), obsessões (seus pensamentos magicamente poderiam tornar-se
realidade ou serem acessados pelos pais) e isolamento, sintomas intensificados nos
últimos anos. Também apresentava delírios, pois rompia com a realidade externa,
quando desconsiderava a morte de seu pai, que ocorrera alguns anos antes. Os
pensamentos delirantes com traços de megalomania aparecem na fantasia de que
seus pensamentos pudessem ser realizados (à semelhança do pensamento mágico
da criança e do homem primitivo), nas superstições em que acreditava e
desacreditava ao mesmo tempo.
Recorda lembranças infantis, como ver uma de suas governantas nua, e
estabelece uma fantasia: ao satisfazer sua pulsão escópica, algo de ruim aconteceria
ao pai. Também relata a Freud que, em certa ocasião, profere ao pai, na forma de
insultos, palavras não ofensivas, mas que estavam carregadas de hostilidade, pois
fora agredido por este, após ter mordido uma outra pessoa. Na mesma ocasião, seu
pai faz uma profecia em relação a seu futuro: ele seria um notável homem ou um criminoso.
Já na carreira militar, escuta uma história de tortura relatada por um capitão,
onde ratos confinados invadiam o intestino do torturado, pois o objeto de
aprisionamento dos animais tinha sua saída aproximada ao ânus da vítima. Faz do
suplício a ele relatado uma ameaça à dama e ao pai (já morto), caso não realizasse o
pagamento de uma dívida, que envolvia vários personagens e a Ernst gerou muita
angústia. Ele pediu novos óculos, que foram pagos pela funcionária do correio, mas
lhe foi equivocadamente informado (pelo mesmo capitão do relato cruel) que um
tenente havia feito o acerto. Assim, em seu pensamento, se não desse o dinheiro a
ele, quitando a dívida, seria aplicado o suplício às duas vítimas. Mesmo sabendo que
uma funcionária deveria receber o pagamento e não o tenente, o homem dos ratos
pensa, em sua obsessão, que o dinheiro deveria ser entregue ao segundo, que
120 FREUD, S. (1909) Notas sobre um caso de neurose obsessiva. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. X. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
69
121 DELORENZO, R. Neurose obsessiva. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p. 70.
122 FREUD, S. (1909) Notas sobre um caso de neurose obsessiva. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. X. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
123 FARIAS, C. P.; CARDOSO, M. R. Compulsão e domínio na Neurose obsessiva: a marca pulsional.
70
fase anal sádica, com o recalque da satisfação pulsional. Estas pulsões parciais são
ligadas ao ódio e à agressividade e encontram satisfação no retorno ao Eu, através
da autopunição. Se por um lado, através da formação reativa, o Eu sai da passividade,
através de manifestações amorosas, o ódio permanece no sadismo inconsciente.
Freud124 desenvolve uma breve ideia na redação do caso sobre o erotismo
anal, elaboração que continuará posteriormente. Relaciona este prazer aos sintomas
da neurose obsessiva e seus traços de caráter. Dois outros textos são escritos no
mesmo período, são eles: Atos obsessivos e práticas religiosas (1907) e Caráter e
erotismo anal (1908). Ao analisar os atos obsessivos, Freud125 os compara a uma
forma de religião privada, com ritualística que obedece a leis próprias, aparentemente
sem sentido, mas que não podem ser deixadas de serem realizadas – lei singular
relacionada à interdição dos desejos e proibições, relacionadas ao sentimento de
culpa obsessivo. É pela análise do material reprimido que é possível chegar a uma
representação do conteúdo inconsciente. Para o autor, na neurose obsessiva, os
instintos de natureza sexual (pulsões parciais) operam por deslocamento. Por outro
lado, em ambos os rituais, na religião e na neurose obsessiva, são encontrados atos
de penitência. Tais cerimoniais obsessivos correspondem a defesas do Eu e suas
ações relacionam-se a pensamentos onipotentes, segundo Farias e Cardoso126. Para
estas autoras, elas são as únicas atividades presentes, considerando o contexto de
inibições e estagnações presentes na dinâmica obsessiva.
Como destaca Ferraz127, assim como na religião, na neurose obsessiva, os
desejos não são abolidos, mas proibidos. Com relação ao tabu do toque, afirma o
autor que a interdição deste ato relaciona-se à possibilidade do toque sexual e
agressivo, estendendo-se às ideias que igualmente não se tocam, pela via do
isolamento. Fédida apud Ferraz128 extrapola a neurose obsessiva em seu aspecto
patológico para usá-la como ferramenta de compreensão das manifestações humanas
a partir do lugar da sexualidade na civilização. No processo civilizatório, o ato (toque)
proibido foi substituído pelo pensamento e o neurótico obsessivo vive às voltas com
das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
126 FREUD, op. cit.
127 FERRAZ, F. C. Tempo e ato na Perversão. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.
128 Ibidem, p. 239.
71
129 Para Farias e Cardoso, a noção de compulsão já aparece em Freud, antes de 1920, mas em relação
à sexualidade.
130 DELORENZO, R. Neurose obsessiva. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.
131 Ibidem, p. 63.
132 Ibidem, p. 43.
133 FREUD, S. (1913) A disposição a neurose obsessiva – uma contribuição ao problema da escolha
da neurose. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud.
Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
134 Strachey apresenta a cronologia da publicação realizada por Freud das fases do desenvolvimento.
Em 1913, a anal sádica, seguida pela fase oral, em 1915. Em 1923, o autor propõe a existência da
fase fálica. O editor comenta que a fase proposta em 1913 foi introduzida nos Três ensaios em 1915.
O autoerotismo e o estágio narcísico já haviam sido descritos anteriormente. A disposição a neurose
obsessiva – uma contribuição ao problema da escolha da neurose (1913). In: FREUD, S. Edição
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
135 FREUD, S. (1913 [1912-1913]) Totem e Tabu. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
72
do mito, o incesto não foi consumado – pelo menos pelos filhos, que não tinham
acesso às mulheres – permanecendo no campo do desejo, diferentemente da ação
parricida, consumada e que se torna estruturante da Cultura.
Como descrevi no capítulo anterior, há uma relação de proximidade entre a
identificação imaginária e o ódio e, para Delorenzo, o obsessivo permanece situado
entre o Eu e a imagem. Como já afirmado também, o ódio relaciona-se à constituição
do eu e do objeto, sendo que o primeiro visa manter e destruir o objeto.
Para Delorenzo:
[...] o eu é, em sua primeira aparição, essa instância frágil apanhada na malha
imaginária que a configura, pela palavra que a reconhece e pela imagem que a
totaliza. E se é na dependência desse reconhecimento que vive o eu, qualquer
movimento do objeto, passível de desfigurá-lo, é afastado com o ódio.136
136 DELORENZO, R. Neurose obsessiva. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p. 52 e 53.
137 MENEZES, L. C. O Homem dos ratos e o lugar do pai. In: MENEZES, L. C. Fundamentos de uma
clínica freudiana. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.
73
passagem pelo complexo de Édipo. Para o autor, a falha estrutural, fonte permanente
de ódio, relaciona-se ao pai morto, derrotado e insuficiente, que não impede a posse
da figura materna; assim sendo, um pai que não permite ao filho à inacessibilidade à
mãe, cujo desejo insatisfeito, ele terá que corresponder. Dessa forma, permanece um
ódio inconsciente por essa figura, na possibilidade e perspectiva de sua
reconstituição, de que ele possa permanecer e ser mantido, através do erotismo
arcaico, caracterizado por ódio intenso, como propõe Menezes.
2.2.2 Paranoia
138 FREUD, S. (1896) Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa. In: FREUD, S. Edição
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
139 FREUD, S. (1911) Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia
(dementia paranoides). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
140 Freud diferencia o interesse limitado da psiquiatria por esta formação, que foge à racionalidade, em
74
Nas encruzilhadas do ódio: paranoia, masoquismo, apatia. São Paulo: Escuta, 2000.
143 Strachey considera que a terceira parte do caso Schreber mais o texto sobre os dois princípios do
funcionamento mental podem ser considerados os precursores dos textos sobre a metapsicologia
escritos nos próximos anos. Esse autor apresenta tal ideia na introdução da coletânea dos artigos
da metapsicologia reunidos no volume 14 das Obras Completas.
144 FREUD, S. (1911) Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia
(dementia paranoides). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
76
desejo intolerável a Schreber, que se submete ao conteúdo que vem de fora, a sua
transformação em mulher.
Na tentativa de formular uma teoria sobre a paranoia, com os elementos que
tinha disponíveis, Freud vai pensá-la em relação à ideia do narcisismo, sendo esta
patologia uma fixação narcísica defensiva, pois Freud já havia estudado a relação
entre homossexualidade e narcisismo no texto sobre Leonardo da Vinci, em 1910, e
a relaciona agora à paranoia, que corresponde a uma defesa em relação ao desejo
homossexual. Freud145 propõe que a ideia desenvolvida por Schreber em estado de
semivigília, relacionada a seu amor pelo Dr. Flechsig, precisou ser afastada da
consciência e levou ao desenvolvimento da doença. A libido homossexual presente
em relação ao pai e ao irmão não pôde ser transferida a um filho, cuja ausência era
lamentada por ele, como destaca Freud.
Como já visto, durante o desenvolvimento do Eu, há uma fase preliminar à
constituição dele – o autoerotismo – seguida do narcisismo e posteriormente o amor
objetal, inicialmente homossexual e, posteriormente, heterossexual. No movimento
regressivo da paranoia, a libido reflui da escolha objetal homossexual ao narcisismo.
Esta modalidade de escolha é de natureza narcísica, como Freud já pensara
anteriormente, na análise de da Vinci. Freud propunha que, no desenvolvimento
normal, há o deslocamento da tendência homossexual para a interação social
masculina, na forma de camaradagem e amor à humanidade.
Freud146 propõe mapear a localização do ódio, afeto predominante na paranoia,
a partir de diferentes contradições do pressuposto: ‘Eu, homem, amo outro homem’,
sendo que a projeção pode aparecer na etapa intermediária. Assim, no delírio de
perseguição, temos: ‘Eu o odeio, não o amo’, que pela via da projeção, torna-se: ‘ele
me odeia’; nesse caso, tem-se a mudança do verbo. Pela recusa e inversão no oposto,
torna-se: ‘eu o odeio, pois ele me persegue’, assim o ódio está justificado. Ele se
explica pela perseguição de um outro anteriormente amado. Na erotomania, muda-se
o objeto: ‘eu não o amo, eu a amo’, que pela via da projeção, torna-se ‘ela me ama’.
Com relação ao delírio de ciúmes, a alteração dá-se no sujeito, onde ‘eu não o amo,
145 FREUD, S. (1911) Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia
(dementia paranoides). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
146 Ibidem
77
ela o ama’. Por fim, no delírio de grandeza: ‘eu não o amo, apenas amo a mim’, onde
há uma supervalorização do ego. Freud elabora uma gramática do delírio ao afirmar:
Ora, poder-se-ia supor que uma proposição composta de três termos, tal
como ‘eu o amo’, só pudesse ser contestada por três maneiras diferentes. Os
delírios de ciúme contradizem o sujeito, os delírios de perseguição
contradizem o predicado, e a erotomania contradiz o objeto. Na realidade,
porém, é possível um quarto tipo de contradição – a saber, aquele que rejeita
a proposição como um todo. ‘Não amo de modo algum – não amo ninguém!’ 147
2.2.3 Melancolia
147 FREUD, S. (1911) Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia
(dementia paranoides). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 72.
148 Ibidem
149 PERES, U. T. Uma ferida a sangrar-lhe a alma. In: FREUD, S. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac
Naify, 2011.
150 Ibidem
78
151 FREUD, S. (1917[1915]) Luto e melancolia. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
152 No prefácio do editor, Strachey (1969) destaca que Freud havia comparado luto e melancolia
Na melancolia tem-se uma divisão no Eu e uma parte toma a outra como objeto de
crítica, um adoecimento da consciência moral e, com todo o desenvolvimento
posterior do pensamento de Freud, podemos falar em uma patologia do supereu 155.
O autor fala que foi a censura que causou a doença. Na patologia, as queixas feitas
ao próprio Eu são dirigidas ao outro, o objeto de amor, com o qual o Eu se identificou,
mas isso está fora da consciência.
Segundo Freud156, o Eu é tratado como objeto na melancolia e foi a forte ligação
com este, a pré-condição para instauração do quadro patológico. A identificação
substituiu o investimento erótico e, dessa forma, não se renuncia ao objeto amoroso,
pois ele permanece no Eu. Não se retira a libido do objeto, mas transforma-se nele
por amor.
No texto ‘Introdução ao Narcisismo’, como citado, Freud157 apresenta um tipo
de escolha amorosa com base narcísica e, quando ocorre esse tipo de escolha, tem-
se uma regressão ao narcisismo, se há dificuldades na relação com o objeto. Foi a
revolta, a decepção frente à relação objetal prejudicada, que promove o retorno da
libido ao Eu via identificação, onde as críticas que deveriam ser dirigidas ao outro são
deslocadas ao próprio Eu, sendo algumas idênticas, como nos aponta Freud. A
melancolia aproxima a ideia do narcisismo e relação de objeto. Esse é uma etapa que
antecede a escolha de objeto para Freud e a identificação narcísica fica na base do
transtorno melancólico, onde há uma regressão ao narcisismo. Garcia-Roza158 propõe
um esquema que nos permite sintetizar os conceitos acima:
Escolha Narcísica → Identificação Narcísica → Perda de Objeto →
Identificação com o Objeto
Explica Garcia-Roza:
Para que as coisas tenham se passado dessa forma, Freud pressupõe que a
escolha inicial de objeto tenha sido feita sobre uma base narcísica, escolha
que é convertida em identificação narcísica. Essa é a razão pela qual o
investimento de objeto, quando encontra algum obstáculo, regressa ao
narcisismo.
A noção de identificação narcísica é a contribuição principal de ‘Luto e
melancolia’ para o estudo sobre o Narcisismo. 159
155 Freud considera o supereu do melancólico como a pura cultura da pulsão de morte em ‘O eu e o id’
(1923). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud.
Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
156 FREUD, S. (1917[1915]) Luto e melancolia. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras
das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
158 GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana. Vol. III. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
159 Ibidem, p. 77.
80
160 GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana. Vol. III. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
161 No tipo de identificação presente na melancolia, ocorre uma incorporação do objeto. O Eu modificado
pela identificação substitui o objeto perdido. Através dela, sempre há uma alteração no ego, mesmo
quando não se trata da melancolia. Para que o Id abandone o objeto, a identificação é necessária.
O ego e o id (1913). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund
Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
162 FREUD, S. (1917[1915]) Luto e melancolia. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras
justifica a culpa pela perda no enlutado. Freud164 propõe condições para a melancolia:
regressão da libido, perda do objeto165 e ambivalência. A última muito presente
também na neurose obsessiva.
A libido narcísica, energia ligada ao próprio Eu, explica tanto a melancolia
quanto a paranoia. Na primeira, Freud propõe dois destinos para a catexia: uma parte
retrocede via identificação e há retorno à etapa do sadismo, em função da ambivalência.
A melancolia corresponde a uma perda não simbolizada que incapacita o Eu.
O objeto é mais poderoso que o Eu, o que explica sua destruição na melancolia e é
por essa razão que se afirma: “a sombra do objeto caiu sobre o Eu”. O Eu do melancólico é
o que foi perdido.
Seria a regressão da libido ao narcisismo responsável pelo surgimento da
mania – às vezes, ausente no quadro melancólico. Nela, a energia encontra-se livre,
pois é como se o Eu tivesse ficado livre do objeto, que é inconsciente tanto na mania
quanto na melancolia, ou seja, há um triunfo sobre o objeto, o que explica o excesso
de excitação nesta condição. Toda essa energia evidencia a vitória do Eu sobre o
objeto. Tanto no luto quanto na melancolia, para Freud, temos a mesma condição
econômica na medida em que a libido se separa pouco a pouco do objeto e, com o
abandono dele, finaliza-se o processo da melancolia.
Em 1923, Freud166 reconhece a identificação como constitutiva do Eu e é a
possibilidade de alojamento do objeto de amor no Eu que permite o seu abandono,
em um movimento regressivo típico da fase oral do desenvolvimento. Geralmente, a
pulsão de morte aparece mesclada à pulsão de vida e, como consequência da
identificação, há defusão pulsional, promovendo dessexualização do objeto, que libera
a pulsão de morte e que, no caso da melancolia, acentua o caráter severo, cruel e
sádico do supereu na relação com o Eu. A pulsão de morte livre, desvinculada da
neles havia manifestações obsessivas. Em função disso, como considera Mezan, Abraham propõe
que as duas doenças têm a fixação na mesma fase, fazendo-o dividir a fase anal em duas subfases,
onde ambas têm relação com a destruição do objeto. A subfase de expulsão está relacionada à
psicose maníaco-depressiva; já a subfase de retenção seria o ponto de fixação que explica a
neurose obsessiva. Também há uma vinculação da melancolia à segunda etapa da fase oral para
Abraham, segundo Mezan. In: MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham, Psicologia USP,
São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999.
164 MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham, Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999.
165 Mezan propõe três situações envolvendo a questão da perda do objeto. Ela pode ser consequência
do ódio ou se relacionar ao desinvestimento libidinal nele, além da possibilidade de ele poder ser
alucinado, pois a relação anterior com ele já constituiu uma marca mnêmica. In: MEZAN, R. O
tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
166 FREUD, S. (1923) O ego e o id. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas
libido, encontra-se no supereu do melancólico, sendo esta uma das poucas situações
onde temos a pulsão de morte desvinculada de Eros, segundo Freud.
Situações de dificuldade na elaboração de lutos prolongados ou a ausência
desse trabalho abrem a possibilidade para a melancolia. No capítulo 1, apresento a
hipótese de Koltai sobre uma melancolização social contemporânea relacionada a
uma perda problemática coletiva não superada.
Baseado em Abraham, Fenichel167 propõe uma análise comparativa das três
patologias apresentadas. Na neurose obsessiva, há uma regressão à fase anal sádica
ulterior, de natureza retentiva, com desejo de dominar, segurar e prender,
caracterizando uma relação com objeto parcial ambivalente. Por outro lado, a paranoia
representa uma fixação na fase anal sádica inicial – relacionada ao mecanismo da
projeção – com desejos de expulsar, sujar, queimar o objeto parcial odiado. Por fim, a
melancolia corresponde a uma fixação na fase oral168 canibalesca – de sucção –
caracterizada pelo prazer em morder, destruir, visando esvaziar, roubar, e é
considerada ambivalente, marcada pela incorporação total do objeto, que caracteriza
uma relação com objeto narcísico – equivalente ao eu.
Tanto a melancolia quanto a paranoia e a neurose obsessiva são patologias
ligadas ao ódio e à pulsão de morte, que apresentam diferentes destinos em relação
a eles. Com relação ao objeto, ele apresenta-se interno na melancolia e externo na
neurose obsessiva e, neste caso, evidenciando uma separação dele em relação ao
Eu, diferentemente do estado fusional da melancolia e das psicoses em geral.
Segundo Mezan169, Abraham considera que na melancolia e na paranoia há uma
restituição do objeto atacado, que é introjetado na primeira ou retorna pela
externalidade na segunda.
167 FENICHEL, O. Teoria psicanalítica das neuroses. Rio de Janeiro: Atheneu, 1981.
168 Mezan afirma que Abraham estudou o erotismo oral, sua relação com amor e ódio, psicopatologia
e sua influência no desenvolvimento posterior, pois ele permanece em fases posteriores, onde há
resíduos dessa forma de relação. Mezan destaca a relação de objeto presente no erotismo oral, que
corresponde a uma forma de tomada do objeto. In: MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl
Abraham, Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999.
169 MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham, Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999.
83
175 CROMBERG, R. U. Paranoia. 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006, p. 132.
176 DELORENZO, R. Neurose obsessiva. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.
177 STEIN, C. As erínias de uma mãe: Ensaio sobre o ódio. São Paulo: Escuta,1988.
178
FREUD, S. (1921) Psicologia de grupo e análise do ego. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
179 STEIN, op. cit.
85
Ódio, que nas palavras do autor, difere da agressividade hostil, sendo ele a
sombra do objeto que cai sobre o Eu. Stein180 relaciona o ódio da mãe ao ódio de si.
Ao mesmo tempo em que ele corresponde à possibilidade de distanciamento em
relação à mãe, ele restitui a díade; assim, serve à separação, oposição e
reaproximação da dupla. É na melancolia que se presentifica a perseguição pelas
erínias, que difere do ódio assassino. O ódio de si do melancólico é o ódio do objeto
– a sombra dele que cai sobre o eu. Assim, Stein181 vai desenvolver a noção de uma
melancolia constitutiva, não patológica, pois o laço permanente com a mãe representa
o ódio imortal. Nesse sentido, o ódio pré-edípico explica a gênese da melancolia.
Contudo, neste caso, ela é de outra natureza, de caráter estrutural.
Considerando a morte do pai em Totem e tabu, o pai morto representa um ideal,
equivale à representação da morte no luto, que reafirma a presença de um pai,
segundo Stein182. O autor propõe que Freud identifica-se com esse pai, com a face
heroica de Édipo. É pela inclusão da relação entre a figura materna e a melancolia
constitutiva que reconhecemos as dimensões materna e paterna no superego, o
superego moral (resultante da resolução do complexo de Édipo) e o arcaico (pré-
edípico e relacionado à mãe).
Para o autor:
Mas da mesma forma que a luz – ou seja, a ciência – provém do luto do pai,
a negra melancolia está ligada à figura de uma mãe; mais precisamente, esta
melancolia está fundada sobre o ódio inextinguível, imortal, que assegura um
laço indestrutível com uma mãe.183
180 STEIN, C. As erínias de uma mãe: Ensaio sobre o ódio. São Paulo: Escuta,1988.
181 Ibidem.
182 Ibidem.
183 Ibidem, p. 47.
184 MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
185 CROMBERG, R. U. Paranoia. 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.
86
186 Embora Freud não tenha reconhecido e enfocado a violência sádica do pai de Schreber, chegando
a valorizar suas condutas, Daniel Gottlieb (do alemão Amor de Deus) a atua sobre o filho.
Curiosamente, o nome do pai significa “amor de Deus”, figura a quem Schreber se entregará para
salvação da humanidade.
187 CROMBERG, R. U. Paranoia. 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.
188
MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
87
efetuada pela mãe nos cuidados dispensados ao bebê, sedução necessária e constitutiva da
dinâmica pulsional.
192 FARIAS, C. P.; CARDOSO, M. R. Compulsão e domínio na Neurose obsessiva: a marca pulsional.
Abraham influenciou o pensamento kleiniano, pelo fato de ele ter dado ênfase
à parte sádica da libido e também por ter lançado a ideia de certas formas de erotismo
que correspondem às modalidades de relação com objetos, oral, anal, fálica, e que
podem coexistir, como propõe Mezan4. Este autor afirma que para Abraham o
erotismo oral permanece nas próximas fases e a relação de apreensão do objeto que
deve ser considerada, independente da zona erógena.
Como esclarecem Cintra e Figueiredo:
Klein fala dessa hybris por excelência que é a voracidade presente no
dinamismo oral, anal e fálico. A voracidade, na sua dimensão propriamente
oral, se expressa por meio das fantasias de sucção vampiresca e da
incorporação oral do objeto de amor. Em sua manifestação sádico-anal, a
voracidade se expressa pelo excesso de possessividade, do desejo de
controle e completo domínio muscular sobre o objeto – que leva o dinamismo
esfincteriano à fantasia de estreitar e estrangular o objeto. Na sua forma
uretral e fálica, trata-se da ambição desmesurada, ou ainda da competição e
das fantasias de penetrar, tomar posse e triunfar sobre o objeto. 5
pp. 59-60.
91
foi Laplanche que desenvolveu a noção de teoria da sedução generalizada, onde a mãe, através
da sexualidade materna, vai invadir o corpo da criança com suas fantasias sexuais inconscientes,
que por seu excesso frente à imaturidade da criança é traumática para ela. Esta sedução traumática
e constitutiva é um fator a que toda criança está submetida.
9 MONEY-KYRLE, R. Prefácio. In: KLEIN, M. Amor, Culpa e Reparação – e outros trabalhos 1921-
10 As notas introdutórias aos textos da autora feitas pelo editor, autores como Figueiredo e Cintra,
Laplanche e Pontalis, e Hinshelwood vão nos permitindo criar essa historicidade.
11 MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham, Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999.
12 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
13 O próprio trabalho onírico apresenta tal modalidade de funcionamento.
93
pulsionais (ou como dizia Klein, instintivas) constituem fatos mentais e seriam formas
de memórias em sensações, como propõem Cintra e Figueiredo14.
Com relação à noção de posição, uma ideia que não exclui o conceito de fases
do desenvolvimento, encontram-se justificativas para a sua utilização em diversos
autores consultados (Cintra e Figueiredo 15, Laplanche e Pontalis16, Hinshelwood17,
entre outros).
A “teoria das posições” foi uma construção secundária no pensamento da
autora, após uma primeira fase de desenvolvimento teórico. Segundo Cintra e
Figueiredo 18, falar em posição permite a ideia de sincronicidade, com dominância de
um polo, algo semelhante a um pêndulo, que se desloca continuamente entre uma
dupla polaridade. Outros exemplos que também podem dar figurabilidade, aliás de
natureza corporal semelhante à tendência kleiniana, são inspiração e expiração,
contração e relaxamento cardíacos, sempre interdependentes. Além de fornecer os
exemplos citados, Cintra e Figueiredo19 destacam a relação dialética entre as
posições, o vínculo da psicopatologia a elas, embora diferentes quadros apresentem
aspectos que envolvem as duas posições, ou seja, uma doença não é causada por
dificuldades relativas a uma delas apenas. As formas de lidar com as realidades
interna e externa variam em cada uma das posições. Elas descrevem fantasias,
relações de objetos que delas se constituem e que não apresentam sucessão estática
e permanente. Uma criança20 ou adulto, que tenha atravessado a posição depressiva,
pode apresentar angústias referentes à posição esquizoparanoide, a partir de uma
situação perturbadora, experimentada ao longo da vida. A própria culpa
experimentada na posição depressiva pode reconduzir o psiquismo a uma dinâmica
mais esquizoparanoide.
O objetivo deste capítulo é comentar os textos que correspondem à formulação
do conceito de posições depressiva, anos 30, e esquizoparanoide, anos 40. As
14 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
15 Ibidem
16 LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
17 HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
18 CINTRA; FIGUEIREDO, op. cit.
19 Ibidem
20
Os autores destacam a ênfase que Klein oferece ao primitivo e mecanismos profundos da vida
psíquica, da referência à criança no psiquismo do adulto – algo que a aproxima de Ferenczi, de quem,
para os autores, ela é fiel discípula.
94
Para ela, a ambivalência está presente desde a fase oral precoce. In: LAPLANCHE, J.; PONTALIS,
J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
95
de objeto dez anos depois da formulação acima. Mesmo com esta alteração, a noção kleiniana
ainda pode ser considerada bem distinta das freudianas.
30
CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
31 Ibidem
97
Posteriormente, nos anos 30, Klein não considerava mais o sadismo associado
à libido, como componente dela, passando a descrevê-lo como efeito de uma pulsão
separada, manifesta na clínica, onde ela analisava as brincadeiras infantis e
observava claramente a agressividade sádica. No mesmo período, Klein vai
diferenciar as duas modalidades de angústias – culpa e persecutoriedade.
As noções de ódio, destruição e agressividade atravessam a obra kleiniana, em
que, da noção de ataques decorrentes do sadismo relacionado à libido, caminha-se
para reconhecer o ódio como representante da pulsão de morte e chegando à noção
de inveja, em 1957, que reconfigura noções anteriores.
Para Hinshelwood36, Klein pensa o desenvolvimento a partir do conflito entre
pulsão de morte e pulsão de vida e, apesar da fusão das duas categorias pulsionais,
o predomínio da pulsão de morte leva a inveja, masoquismo, perversão, agressão
patológica, entre outros. A projeção da pulsão destrutiva faz com que o objeto externo
corporifique a ameaça, assim, a destrutividade permanece dentro e fora, na imago do
objeto perseguidor. Para Klein, agressão equivale a pulsão de morte e destrutividade.
A noção de superego37 precoce é consequência da violência pulsional
retornada à própria pessoa. Klein também pensa na relação entre superego cruel
arcaico e a identificação com a mãe (ideia já descrita no capítulo anterior e
desenvolvida por psicanalistas contemporâneos), que constitui uma imago materna
dentro da criança, e também às fases pré-genitais da libido, nas quais os objetos
atacados sadicamente, quando introjetados, irão compor o núcleo superegóico e, é
em função do sadismo, que o superego se torna terrível, quando o objeto é
internalizado. Como esse processo envolve fantasias sádicas (vorazes e hostis) a
partir de um desejo frustrado, há um superego cruel38, diretamente proporcional à
frustração.
Cintra e Figueiredo39 consideram que inicialmente era o sadismo da criança
equivalente à severidade do superego, mas a noção de projeção, desenvolvida nos
anos 30, amplia a concepção anterior. O sadismo projetado, posteriormente
40 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio
– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.
41 FIGUEIREDO, L. C. A falta que Bion faz: considerações sobre as relações de objeto e a intersubjetividade
nas teorias psicanalíticas. Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 54, n. 1, 2020.
42 KLEIN, M. (1935) Uma contribuição a psicogênese dos estados maníaco-depressivos. In: KLEIN, M.
[...] Melanie Klein é a teórica das perdas, do luto e da melancolia não só como
episódios contingentes e acidentais, mas como partes integrantes e
indispensáveis da travessia existencial de cada um de nós. A saúde mental
não significa escapar a esse destino, e sim, ao contrário, assumi-lo.44
44 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004, p. 92.
45 Ibidem
101
46 Nota da Comissão Editorial Inglesa, In: KLEIN, M. Obras Completas de Melaine Klein. Vol I. Rio de
Janeiro: Imago, 1996, p. 302.
47 Ibidem
48 Segundo Barros, para Klein, a ansiedade equivale a uma angústia indeterminada. In: BARROS, M.
51 KLEIN, M. (1935) Uma contribuição a psicogênese dos estados maníaco-depressivos. In: KLEIN, M.
Obras Completas de Melaine Klein. Vol I. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 312.
52 Ibidem, p. 313.
103
53 KLEIN, M. (1935) Uma contribuição a psicogênese dos estados maníaco-depressivos. In: KLEIN, M.
Obras Completas de Melaine Klein. Vol I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
54 Ibidem.
55 KLEIN, M. (1935) Uma contribuição a psicogênese dos estados maníaco-depressivos. In: KLEIN, M.
Obras Completas de Melaine Klein. Vol I. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 326.
56 KLEIN, M. (1935) Uma contribuição a psicogênese dos estados maníaco-depressivos. In: KLEIN, M.
61 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO, L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004,
p. 93.
62 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO, L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
63 Na introdução feita por Segal63, no livro Amor, culpa e reparação, ela afirma que Klein, com a ideia
M. Obras Completas de Melaine Klein. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
106
separação do amor e do ódio. Tal mecanismo preserva o bom objeto e o ego frágil
cinde para dar conta do excesso de pulsão de morte e por causa da ambivalência
constitutiva do humano. Esta é a causa dos processos de cisão, que é um importante
e necessário mecanismo de defesa na etapa precoce do desenvolvimento. Desde o
início, as relações objetais parciais estão relacionadas a processos projetivos e
introjetivos, a partir do intercâmbio com o meio externo, e é, pela via da projeção, que
a angústia é diminuída. Klein pensa em processos simultâneos que se dão no Eu e
nos objetos, por exemplo, a cisão do objeto equivale também a uma cisão no ego66,
que existe desde o início da vida. Em concordância com Winnicott, ela afirma:
A meu ver, é mais útil a ênfase dada por Winnicott à não integração do ego
arcaico. Eu diria também que falta, em grande medida, coesão ao ego arcaico
e que uma tendência à integração se alterna com uma tendência à
desintegração, a um despedaçamento. Acredito que estas flutuações são
características dos primeiros meses de vida.67
66 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO, L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
67 KLEIN, M. (1946) Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In: KLEIN, M. Obras Completas de
Melaine Klein. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 2006, p. 23.
68 Antes de formular a posição esquizoparanoide, a ideia de perseguição já estava presente na obra da
autora.
69 KLEIN, M., op. cit.
70 KLEIN, M. Nota Introdutória da Comissão Editorial: Inveja e ingratidão e outros trabalhos. In: KLEIN,
M. Obras Completas de Melaine Klein. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
71 Ibidem
107
ela não acredita que só o objeto mau é internalizado, também acredita na introjeção
precoce do seio bom. Cito a autora:
Divirjo também da concepção de Fairbairn de que ‘o grande problema do
esquizoide é como amar sem destruir pelo amor, enquanto o grande
problema do depressivo é como amar sem destruir pelo ódio’. Essa conclusão
é consoante não apenas com sua rejeição do conceito de pulsões primárias
de Freud, mas também com sua subestimação do papel que a agressão e o
ódio desempenham desde o início da vida. Como resultado dessa
abordagem, ele não dá peso suficiente à importância das ansiedades e
conflitos arcaicos e seus efeitos dinâmicos sobre o desenvolvimento.72
(grifo nosso)
72 KLEIN, M. Nota Introdutória da Comissão Editorial: Inveja e ingratidão e outros trabalhos. In: KLEIN,
M. Obras Completas de Melaine Klein. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 2006, p. 23.
73 KLEIN, M., op. cit.
74 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO, L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
108
75
Assim como Freud, Klein pensa em fantasias filogeneticamente transmitidas, como a concepção
sádica do coito.
76 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO, L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004, p. 161.
109
Através dela, a mãe equivale ao self mau do bebê, pois abriga partes dele.
Como também podem ser expulsas partes boas, o excesso da identificação projetiva
pode criar dependência em relação ao objeto. Não apenas objetos maus são
expelidos na direção do corpo materno, há projeção de amor via excrementos. Partes
do self são expelidas junto com os excrementos para dentro da mãe, configurando
importante forma de relação de objeto.
Os objetos reintrojetados são portadores de aspectos perigosos e odiosos do
self. Tal situação relaciona-se a estados paranoides de hostilidade, com grande
desconfiança dos objetos. Klein considera inicialmente que o sadismo ocorre no
período mais posterior durante o primeiro ano, revendo esta posição mais tarde, e o
considerando presente desde as fases mais precoces da vida. Com relação às
fantasias, as sádicas são atribuídas às fases oral e anal e dominam os impulsos pré-
genitais. Com relação aos impulsos, Klein sugere que os pré-genitais opõem-se aos
genitais, como descreve Hinshelwood78. O autor reconhece que, para Klein, a
agressividade impulsiona o ego na direção da genitalidade, através da mobilização de
sentimentos amorosos.
Klein afirma que sempre ansiedades primitivas são revividas, mesmo em um
desenvolvimento satisfatório, com a elaboração da posição depressiva. A diminuição
das ansiedades precoces, juntamente com a menor idealização, permite maior
percepção da realidade, estabelecimento de relações satisfatórias e unificação do
ego. Contudo, mecanismos primitivos modificados em menor grau permanecem.
Sempre há flutuações entre as posições, com seus fenômenos entrelaçados e
misturados presentes em toda a vida.
Posteriormente, na década seguinte no percurso teórico da autora, a
formulação do conceito de inveja79, como excessiva agressão sádica observável em
crianças e psicóticos, representou uma construção teórica importante.
77 KLEIN, M. (1946) Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In: KLEIN, M. Obras Completas
de Melaine Klein. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 2006, p. 27.
78 HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
79
Vários autores comentam o texto Inveja e gratidão na obra Revisitando “Inveja e gratidão”,
organizada por Priscilla Roth e Alessandra Lemma, publicada pela Editora Blucher em 2020, da
110
uma defesa frente à inveja e é capaz de transformar um objeto bom em mau. O alvo
dela é o que o seio retém em si, ela quer destruir o objeto e a sua criatividade, quer
retirar o que ele tem de bom e depositar as partes más do self nele. Há uma
significativa diferença nesta nova concepção, pois a inveja quer destruir o bom objeto
e não o objeto mau, temido e perseguidor, que assim é, por ser frustrador. A noção
anteriormente defendida por Klein era a da destruição e ódio ao objeto mau.
Para Klein, a inveja primária corresponde à do seio, posteriormente deslocada
ao pênis, ambos objetos que proporcionam prazer. A inveja relaciona-se ao superego
invejoso, cruel83, sádico e pulsional, que pode destruir a capacidade amorosa de
reparação, impedindo a elaboração da posição depressiva. Também uma intensidade
elevada dela dificulta a passagem pela posição esquizoparanoide. Em relação à
psicopatologia, Cintra e Figueiredo consideram que um alto nível de inveja está
relacionado às psicoses84. Na mesma direção, Simanke85 propõe que mesmo em um
ambiente saudável e generoso, a inveja constitutiva explica formações
psicopatológicas relacionadas ao ódio, pois o ambiente torna-se hostil, a partir da
projeção de objetos internos maus.
Se a inveja desvaloriza e destrói o bom objeto, também carrega a fusão entre
as pulsões de morte e de vida, como propôs Sigal apud Hinshelwood86, na sua revisão
do conceito de inveja. Ela é uma das modalidades de fusão pulsional, em que há
predomínio da pulsão de morte. Cintra e Figueiredo87 reconhecem a dupla vertente da
inveja na própria origem da palavra na língua francesa, que significa desejo e inveja,
simultaneamente. Destacam os autores uma ligação da pulsão de morte a Eros,
porém Klein não pensou da mesma maneira, quando formulou o conceito de inveja,
que permaneceu vinculada à pulsão de morte.
Para a autora, há uma capacidade para a gratidão relacionada à pulsão de vida,
que diminui a inveja e permite integração do amor ao ódio e o uso do seio, em tudo
que ele pode oferecer de gratificação e prazer.
88
MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
89 HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
90 BARROS, M. N. C. A trama paradoxal do ódio no psiquismo. Tese de Doutorado, Universidade
pp. 69-70.
113
Para efeito de uma comparação mais ampla e síntese das ideias, seguem dois
quadros comparativos. O primeiro apresenta uma comparação entre as duas posições
elaboradas por Melaine Klein (Quadro 1) e no segundo são comparadas as noções
de agressividade e ódio nos diferentes períodos da produção teórica dos autores
citados (Quadro 2).
Com relação à questão que norteou esta pesquisa, Hinshelwood e outros
autores, como Rocha Barros94, reconhecem que Klein pouco aborda a questão do
narcisismo, exceto quando o aproxima da noção de identificação do ego com o objeto
idealizado e da identificação projetiva, que mistura sujeito e objeto, e envolve ódio,
pulsão de morte e narcisismo. É nesta construção teórica que Klein aproxima um
pouco mais narcisismo e ódio, que ficará bem mais vinculado à pulsão de morte na teoria.
94
ROCHA BARROS, E. M. Prefácio à edição brasileira. In: ROSENFELD, H. Impasse e interpretação.
Rio de Janeiro: Imago, 1988.
114
95 Andrade faz uma relação entre a passagem da primeira à segunda e a transição do narcisismo
primário ao secundário. In: V. M. ANDRADE. O narcisismo e o mal-estar na civilização. Rio de
Janeiro: Imago, 2014.
115
96
A concepção lacaniana sobre o ódio foi apenas mencionada brevemente no Capítulo 1, em função
do destaque à presença dela em alguns dos textos lidos. Lacan trata de maneira diversa a questão
do ódio em sua obra.
116
1 Agradeço as observações apontadas pela psicanalista Evelise Paulis, revisora deste trabalho, e que
ampliaram minhas interpretações iniciais.
2 Alguns fragmentos da mesma obra foram utilizados no curso sobre o pensamento de André Green,
realizado na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 2018. O material serviu como
ilustração para as ideias do autor sobre “mãe morta” e “função desobjetalizante”.
117
3
Personagem fora da lei e destemido, rouba dos ricos para dar aos pobres e que combate a tirania da
nobreza. Kevin identifica-se com este personagem, com a injustiça contra a qual ele luta, ao retirar a
riqueza de alguém que a possui e que não a compartilha com o outro. É generoso, ao mesmo tempo
que se configura como um fora da lei. A mãe de Kevin pode ser vista como portadora de uma riqueza
não compartilhada com o filho.
118
gavetas, além de pintar o quarto dele com o mesmo azul que era o anterior, na casa
onde ele matou os familiares. Vai visitá-lo e pergunta ao filho a razão do que ele fizera.
Kevin lhe responde que antes tinha certeza e hoje tem dúvida. A mãe também diz a
ele que Kevin não lhe parece feliz e o garoto questiona se, em algum momento, ele
havia sido. Eles se abraçam em seguida.
4
Festa espanhola anual, marcada por regras e espaço definido. Nela, há a possibilidade de uma
vivência lúdica e socialmente circunscrita de algo de natureza mais pulsional.
123
Kevin a questiona sobre os motivos da ida dela ao seu encontro. O que poderia
mobilizar Eva ao encontro do filho? Seria um movimento reparatório? De que natureza
este seria? Por que Kevin ia ao encontro da mãe, sempre da mesma maneira?
Aparecem várias cenas envolvendo comida e alimentação, destacando a
oralidade, primeira forma de erotismo que marca a interação mãe-bebê. Mas este
marcado pelo desinvestimento, ataques e carência. Ao que tudo indica a gravidez
representou um aprisionamento para a mãe, uma perda indesejada de liberdade.
A luz clara intensa aparece ao final do filme, após a afirmação da mãe sobre o
aparente estado de infelicidade do filho e de ele próprio duvidar das razões de seus
crimes. A cena revela uma esperança de um encontro do protagonista com seu mundo
interno e da possibilidade de falar sobre ele, sobre o crime, revelando uma
aproximação verdadeira entre mãe e filho.
Antes disso, percebe-se que a mãe o vê através da perspectiva da doença, do
distúrbio e da periculosidade que ele representa e pelas suas potencialidades de
ataque e violência. Kevin corresponde a um objeto persecutório. De maneira
complementar, também Eva é a mãe perigosa para seu filho, que precisa ser atacada,
um objeto externo mau, que tem forte relação ao objeto interno presente no Eu do
menino. Conforme exposto no capítulo anterior, Klein afirma que os objetos
carregados de ódio neles projetados transformam-se em perseguidores externos e
internos, depois de introjetados. Todas as ações, mesmo as que pareciam um simples
desejo de aproximação, eram respondidas com manifestações sádicas por Kevin,
talvez por serem consideradas perigosas. E se Eva se aproximasse e depois voltasse
a desaparecer? O garoto já havia experimentado a dor de um objeto primário ausente.
O ódio de ambos pode aparecer em várias cenas do filme, mas o amor fica
como uma possibilidade suscitando no telespectador dúvida sobre sua existência.
Desde a redação dos Três Ensaios, Freud defende a ideia de que a amamentação é
o protótipo de uma relação amorosa e que a interação com o seio deixa importantes
e significativas marcas para futuras relações amorosas. Fica claro no filme que estes
aspectos foram conturbados na interação precoce entre mãe e filho.
Como afirmado anteriormente, através de Freud, é possível pensar o
surgimento do ódio, a partir da presença do objeto alheio ao Eu, que mobiliza este
afeto, em resposta ao narcisismo. No filme, o ódio não seria uma resposta desse Eu
tão ferido narcisicamente, tão pouco integrado, tão vulnerável frente ao objeto primário
de extrema ausência e que desencadeou vivências de grande frustração? Apoiado
124
na ideia de Freud de que o narcisismo dos pais é revivido na sua experiência com o
bebê majestade, constituindo o narcisismo primário da criança, Eva claramente não
conseguiu fazer um investimento inicial na figura do filho. Ela estava contrariada com
a gestação, visivelmente deprimida e assustada com o bebê, que gritava pela sua
presença inacessível. A falta radical de investimento levou o garoto a um considerável
sofrimento narcísico e a hipótese de que seus atos agressivos vingativos davam-no
uma sustentação narcísica pode ser levantada.
Assim como dificuldades na amamentação, Klein5 considera que os estados
emocionais maternos, como ansiedade, relacionam-se às experiências com o seio.
Em uma explícita referência à importância do objeto externo no desenvolvimento
infantil, Klein afirma que as dificuldades maternas na alimentação e cuidados gerais
com a criança impedem a internalização do seio bom, tão necessária à organização e
estruturação do Eu. Considera a autora:
(O fato de uma boa relação com a mãe e com o mundo externo ajudar o bebê
a superar suas ansiedades paranoides arcaicaslança nova luz sobre a
importância dessas experiências iniciais. Desde a sua criação, a psicanálise
sempre deu muita importância às experiências iniciais da criança, mas creio
que só ao sabermos mais sobre a natureza e o conteúdo de suas ansiedades
arcaicas, e a interação constante entre suas experiências reais e sua vida de
fantasia, poderemos compreender totalmente por que o fator externo é tão
importante).6
5 KLEIN, M. (1957) Inveja e gratidão. In: KLEIN, M. Obras completas de Melanie Klein. Vol. III. Rio
de Janeiro: Imago, 1996, p. 210.
6
KLEIN, M. (1935) Uma contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos. In.:
KLEIN, M. Obras completas de Melaine Klein. Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 326.
7 FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte. Escritos psicanalíticos 1909-1933.
mas de uma forma sempre embrutecida, pois ele o faz dizendo que ela está gorda. O
casal não havia conversado sobre um fato de tamanha relevância, talvez eles não
conseguissem falar sobre gestações e filhos. Kevin aparece como o sintoma de uma
família marcada por fugas, desencontros e silêncios.
É fácil o expectador captar o sadismo de Kevin, identificar-se com o sofrimento
de Eva, mas reconhecer o sadismo de Eva e o masoquismo de Kevin pode oferecer
uma análise mais ampla a esta trágica dinâmica. Kevin reconhece e nomeia a
crueldade da mãe, com quem se identifica. Klein defendia a existência de uma
identificação inicial do menino com a mãe, a ser superada ao longo do
desenvolvimento. A mesma autora considera que o conflito pulsional/ambivalência
forçam o ego do bebê a fazer cisões, não patológicas e sim necessárias, que o
protegem. Assim, parte da pulsão de morte pode ser projetada no seio (objeto parcial),
que se torna mau. O seio que frustra é um seio mau, nele é projetado o ódio pelo
desconforto sentido e ele se torna a causa do mal sentido. Eva mostrou-se um objeto
extremamente frustrador, desconectado e afetivamente ausente. Há uma capacidade
constitucional para um bebê suportar frustrações, em certos limites. As cenas do
desenvolvimento inicial de Kevin revelam excessos de privação, muito maiores que a
capacidade de o bebê suportar ansiedades primitivas.
Embora Klein tenha trabalhado muito o conflito pulsional, como afirmado
anteriormente, ela considera a experiência com o seio e cuidados oferecidos pela mãe
de grande importância, pois a internalização de um bom objeto é um fator decisivo na
constituição do ego e da saúde psíquica. O terror de Eva na cena em que as crianças
brincam no Dia das Bruxas e pedem doces, ao mesmo tempo que seus armários e
geladeira estão vazios, podem ser metáforas das ansiedades persecutórias frente às
crianças e à sua carência interna frente à demanda delas. Ansiedades de natureza
persecutória são projetadas na imago das crianças e no filho da protagonista. Para
diminuir a persecutoriedade frente aos objetos temidos, tanto no meio externo quanto
no psiquismo, é fundamental a presença de um objeto bom internalizado no ego. Teria
Eva um núcleo protetor interno desta natureza?
Se Freud considera que o Eu é antes de tudo corporal, Klein relaciona as
primitivas fantasias a fenômenos corporais. Assim, fome pode criar um objeto mau
que ataca o bebê e que ele odeia. Como já mencionado, Kevin sofria e odiava um seio
que na sua fantasia o atacava, a partir dos momentos de frustração/privação.
127
15 O’SHAUGHNESSY, E. Sobre a gratidão. In: ROTH, P.; LEMMA, A. (Orgs.) Revisitando “Inveja e
gratidão”. São Paulo: Blucher, 2020.
130
16 SPILLIUS, E. B. Uma visão da evolução clínica kleiniana. Rio de Janeiro: Imago, 2007.
17 KLEIN, M. (1927) Tendências criminosas em crianças normais. In: KLEIN, M. Obras completas de
Melanie Klein. Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
131
tendências criminosas. Para ela, o medo e a culpa frente a ele levam ao crime. Para
a autora, as crianças normais apresentam tendências criminosas em seu
desenvolvimento normal e, nos atos criminosos, existem fantasias infantis que não
foram elaboradas, pois houve forte repressão e fixações violentas podem acontecer.
Quando integradas e elaboradas, as fantasias violentas podem aparecer na produção
artística e nas brincadeiras infantis. As sublimações posteriores estão relacionadas às
atividades reparatórias. A agressividade pode ser integrada em atividades e
brincadeiras, após a passagem pela posição depressiva, que visa integrar amor e ódio
ou mitigá-lo através do amor, como propõe Klein em 1940, no texto sobre o luto. Kevin
mantém atividades e brincadeiras muito reveladoras de uma violência não integrada.
Ao brincar, descarrega ódio e agressividade em estado bruto. Diferentemente do
esperado nas brincadeiras infantis, o garoto não faz atividades reparatórias do seu
sadismo, que comumente diminuem a culpa e as ansiedades depressivas pelos
ataques cometidos. Ele estraga objetos e não aparecem situações nas quais algum
nível de reparação acontece.
O superego da criança está relacionado ao de seus pais e às próprias fantasias
sádicas. Dada a intensidade do sadismo do garoto, pensar no massacre como defesa
frente a este superego faz certo sentido. Tal ideia de Klein aproxima-se da concepção
de Freud sobre a relação entre superego e necessidade de punição18.
Como visto no Capítulo 3, Klein começa a reconhecer o sadismo infantil antes
de associá-lo à pulsão de morte, como o fará depois. Assim, ela articula também
sentimento e pulsão, como ódio à pulsão de morte. Quando Freud fala em ódio, há
uma manifestação da pulsão de morte, mas fusionada à libido, o ataque que envolve
prazer. Há amor nas agressões realizadas por Kevin à mãe, pois como considera Mezan:
O ódio pelo objeto não me leva a me aproximar dele; ao contrário, leva a me
afastar dele. Se me aproximo do objeto, ainda que seja para destruí-lo,
controlá-lo, agredi-lo, xingá-lo ou feri-lo, já está presente nessas equações
uma certa dose de libido.19
18 Mesmo com essa aproximação reconhecida, convém lembrar que Freud não aceita a noção kleiniana
de superego precoce.
19 MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham. Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999, p. 81.
132
tempo vai se percebendo que, em seu ambiente próximo, ninguém podia fazer uso da
palavra para ser escutado, para poder dar expressão à sua subjetividade, para
comunicar-se. Franklin propõe que a esposa vá falar com outra pessoa sobre suas
dificuldades com o filho do casal, banalizava as queixas dela, impedindo-na de
verbalizar seus conflitos, que eram por ele negados. Eva não falou sobre suas
dificuldades com ninguém ao longo do filme, cujo título fala da sua necessidade. A
mãe também não conseguiu escutar o medo do filho, quando ele seria transferido para
outro presídio. De certa forma, Eva nega e minimiza o sentimento do garoto que se
aflige pela entrada no mundo adulto.
A linguagem implica simbolização e representação do objeto, processos que
envolvem a presença e ausência dele. Uma ausência radical impede o acesso à
simbolização. Se é possível representar algo ausente, é porque ele não esteve faltante
plena ou excessivamente. Desde A interpretação dos sonhos, Freud propõe a ideia
da marca psíquica deixada pelo objeto nas experiências de prazer e da relação disso
com o desejo. Como afirmado no capítulo anterior, Klein20 considera que a
simbolização fica prejudicada em função do sadismo intenso, que pode ser resposta
à frustração despertada pela ausência do objeto. Fortes ansiedades inibem a
capacidade representacional das crianças, que exige certo grau de ansiedade, como
Klein observou ao atender o inibido garoto Dick. Em Kevin, a intensa agressividade
sádica provavelmente prejudicou seu desenvolvimento na direção de aquisições
simbólicas. Sem elas, o objeto é a coisa em si, como já afirmado acima e tais estados
confusionais são comuns nas psicoses e outros estados não neuróticos.
Em Além do princípio do prazer, Freud21 considera que estímulos internos
podem ser sentidos como se estivessem localizados fora do organismo. Assim, a fome
pode ser análoga a algo que vem de fora. O excesso de estímulos tem efeito
traumático, em função do excesso de excitação, que invade o psiquismo. Como já
descrito no capítulo 2, a energia precisa ser ligada e, enquanto não é, segue-se o
princípio da compulsão à repetição. Se a energia permanece desligada, pois não
encontra canais para ligação e simbolização, a pulsão de morte – pulsão não ligada –
pode ser descarregada, eliminada na forma de violência. Mezan22 considera que a
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
22 MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham. Psicologia USP, São Paulo, Vol.10, n. 1, 1999, p. 76.
133
pulsão de morte: “[...] não pode ser facilmente ligada a representações. Se não for
totalmente desprovida da representação, a pulsão de morte é pelo menos inapta a
acolher representações [...] Representações inconscientes são fantasias [...]”.
No texto de 1920, Freud volta a falar na “vivência de dor”, noção presente no
texto pré-psicanalítico de 1895, o Projeto para uma psicologia científica, configurando-
na como trauma, segundo Caropreso23. Tais vivências decorrem do excesso de
excitação e falhas nos mecanismos protetores, a serem desempenhados pela
presença do objeto. É a recordação e reaproximação com o objeto falho que resulta
na liberação do afeto doloroso, que promove a descarga, evitando assim a
representação do objeto. Segundo a autora24, a vivência da dor passa a explicar
desenvolvimentos normais e patológicos em Além do princípio de prazer. É a
experiência de ligação, a ser realizada pelo Eu, que poderia inibir o afeto e a descarga.
Nas cenas iniciais do filme, quer apoiados no “projeto” ou na ideia de “compulsão à
repetição”, formulada mais de 20 anos depois, vemos intensas experiências de dor,
distantes das ligadas ao prazer, que Freud descreve em 1900 e que seriam
responsáveis pela representação psíquica dos objetos e mobilizadoras do desejo.
Caropreso25 diferencia a transição que Freud faz em 1900, dando prioridade às
vivências de prazer, no capítulo VII de A interpretação dos sonhos, onde há outro
destino para as experiências dolorosas. Embora o “projeto” fique no campo na
neurofisiologia, um texto pré-psicanalítico, negado e rejeitado por Freud, as ideias nele
presentes podem aproximar-se do texto de 1920, que darão uma nova configuração
à teoria freudiana.
Em franca experiência de dor, Kevin grita desesperadamente e, para Eva, o
ensurdecedor barulho de uma britadeira parece ser melhor que a situação com o filho.
A mãe não consegue ser um objeto capaz de acolher as angústias e fazer um
mecanismo mínimo de para excitação. Seu estado emocional desorganizado e
desesperado não lhe permite uma interação saudável com ele. Há uma série de
repetições de desencontros problemáticos na interação entre eles.
Estaria Eva vivendo, ou melhor, revivendo suas angústias de filha? Estaria em
contato com o bebê desesperado e mau acolhido que foi? O filme permite que se
23 CAROPRESO, F. Trauma, pulsão de morte e sexualidade na etapa final da obra freudiana. In:
FULGÊNCIO, L.; KUPERMANN, D.; BIRMAN, J.; CUNHA, E. L. (Orgs.) Amar a si mesmo e amar
ao outro – narcisismo e sexualidade na psicanálise contemporânea. São Paulo: Zagodoni, 2016.
24 Ibidem
25 CAROPRESO, op. cit.
134
construa uma hipótese: que conflitos mãe e filho, ao que tudo indica, são
transgeracionais, pois a avó materna de Kevin convida a filha para almoçar com ela
no Natal e o convite é recusado, quando Eva também mente à sua mãe. Que marcas
trazem à Eva a relação com sua mãe? A psicanálise ensina que certas vivências
trazem fantasias arcaicas das mais remotas experiências.
Em sua experiência com jovens que têm gravidez precoce e indesejada,
Lemma26 considera que a mãe invejosa identifica patologicamente seu filho com a sua
própria mãe privadora, permanecendo o ódio ao bebê, como resposta ao desejo da
atual mãe em relação ao seio do passado. Para a autora, esse bebê atormenta a mãe
e é falsamente percebido como carregado de intenções malignas. Há também a
sensação de que o filho rouba-lhe a liberdade. Lemma27 diz que neste caso há uma
percepção mais próxima da realidade do fato, menos destrutiva e patológica.
Percepções de ambas as naturezas, mais ou menos destrutivas, poderiam ocupar as
fantasias de Eva, sendo as segundas explicitamente verbalizadas por ela. A cena
onde Eva mergulha seu rosto e aparece a imagem do garoto corroboram com a
hipótese da confusão identificatória entre eles. A mãe também aparece vestindo uma
roupa do filho. A cena do espelhamento na água também pode ser interpretada como
fantasia de Eva torturar e afogar o filho.
Quando Eva tentava interagir com o garoto, as interações precárias
mobilizavam intensos sentimento de culpa e frustração na mãe e se transformavam
em puro ataque ao menino, momentos de descontrole, manifestações de puro ódio.
Tanto pela mãe quanto por Kevin, as realidades psíquicas experimentadas, a partir
das relações com objetos que são introjetadas, trazem o predomínio da violência e do ódio.
Eva comunica-se por este afeto com seu filho, ao mesmo tempo que Kevin não pode
experimentar uma comunicação amorosa com a mãe.
Retomando um aspecto central da obra, considero que a aparente relação, às
vezes, distante entre a dupla mostra a dimensão fusional, onde ambos permanecem fixados.
A ideia de um terceiro objeto a romper a relação dual entre mãe e filho parece algo a
ser repelido e atacado pelo garoto, seja na cena em que ele, nos braços da mãe,
manda o pai embora, seja na cena onde ele talvez mais agressivamente destrói o
escritório de Eva. A eliminação total e radical dos terceiros, que Eva pode vir a ter,
26
LEMMA, A. Mantendo a inveja em mente: as vicissitudes da inveja na maternidade adolescente. In:
ROTH, P.; LEMMA, A. (Orgs.). Revisitando “Inveja e gratidão”. São Paulo: Blucher, 2020.
27 Ibidem
135
além da dupla com o filho, aparece quando ele só deixa a mãe viva, matando o pai e
a irmã. Por amá-la, Kevin deixa a mãe viva e somente para si.
Extremamente ligado à mãe, que lhe deu acolhimento em um momento de
adoecimento, ele exclui o pai. Kevin mantém-se em relações sempre duais com seus
genitores (a mãe é excluída ou o pai é). Por outro lado, a noção de Édipo precoce em
Klein nos aproxima da concepção de que há sempre um objeto não bebê
(independentemente de ser uma pessoa ou não) ao qual dirige-se a mãe. Por
exemplo, Eva lamenta perder seu objeto – trabalho – em função do nascimento do
filho. Na tentativa de resgatá-lo, monta um escritório que é todo danificado
sadicamente pelo filho. A ausência materna, que está deslocada a um terceiro, pode
trazer ao garoto uma sensação que lhe parece insuportável e perene, vivência de dor
muito experimentada. Eva tenta criar um espaço próprio, algo que foi perturbado com
a gestação. Diz ao filho sobre a necessidade de lugares próprios e singulares, mas
Kevin quer invadir o espaço materno e o faz jogando tinta nele. Teria este episódio
alguma relação com o massacre que ele faria na adolescência, considerando que ela
representa uma etapa de separação dos pais e reedita conflitos anteriores?
Por outro lado, antes da morte do marido, Eva e Franklin falam sobre a
separação do casal. Ao escutar a conversa, Kevin fica perturbado com isso. Seria um
momento de culpa pelos ataques fantasiados à união do casal, como propõe Klein?
Ele ficaria com o pai por decisão de Franklin e matá-lo daria a Kevin a permanência
ao lado da mãe.
Em função do excesso de projeção e de ataques ao objeto, como sua forma de
interação e dinâmica psíquica, e da ausência da função metaforizante, e do pobre
acesso ao universo simbólico, há predomínio da ilusão imaginária, com fantasias mais
persecutórias. O excesso de projeção ficava como um obstáculo significativo e
impedia a aproximação do Eu, pouco integrado, à realidade.
Essa dinâmica psíquica constituída por muitos objetos parciais, marca das
grandes cisões leva-me a pensar também o personagem com base nas definições de
Minerbo28 sobre os quadros de não-neurose. A autora os relaciona a traumas,
identificações patológicas e falhas do objeto primário. São quadros que se apresentam
mais relacionados a problemas de ordem narcísica. As defesas (negação, projeção,
idealização, cisão) e angústias (de destruição, de separação), que são típicas da
31 GABBARD, G. Love and Hate in the analytic setting – The library of object relations. Jason
Aronson, USA, 1996.
32 SMITH, H. Círculos viciosos de inveja e punição. In: ROTH, P.; LEMMA, A. (Orgs.). Revisitando
sente-se à vontade para convidar o filho para um momento de interação entre eles.
Ele aceita, mas recusa, jantando antes e zombando das tentativas de diálogo com
Eva. A interação hostil no restaurante pode ser pensada como uma defesa frente à
ameaça que a “generosidade do seio” traz. É pela natureza odiosa e destrutiva da
desqualificação do objeto que Caper39 considera o narcisismo ameaçado como
antivida e antidesenvolvimento, atributos que Freud deu à pulsão de morte.
Considerando o fenômeno em função do narcisismo, Caper defende uma leitura mais
psicológica e menos biológica dele. Para o autor, este enfoque é o adquirido pela
análise, através do viés da pulsão. Dentro desta perspectiva, Eva e Kevin invejam-se
mutuamente. Ela não oferece o seio bom ao filho, que se nega a interagir com ela,
ferindo-a narcisicamente como mãe, não a reconhecendo.
Smith40 destaca a existência de círculos viciosos envolvendo inveja – culpa e
ataque: os ataques decorrentes da inveja ao seio, com o qual não se viveu uma
experiência de gratificação, desenvolvem intensos sentimentos de culpa e a
necessidade de punição, expressa na desvalorização do self, que potencializa a inveja
e a destruição, além do ódio.
Diferenciando os ataques invejosos de interações agressivas, Fonagy
considera que os primeiros:
A ideia deste autor não seria uma explicação para o aspecto de triunfo e glória
que Kevin manifesta após o massacre? Abaixa-se e agradece como se respondesse
a aplausos. Em seguida, entrega-se passivamente à polícia. Em ato, o garoto vira
Robin Hood, o flecheiro ambíguo, que comete crimes por amor.
Seria algo de uma natureza mais constitucional, ou melhor pulsional, que marca
a natureza destrutiva das relações de Kevin com seus objetos? É possível pensar em
tais aspectos constituídos, a partir de uma intersubjetividade doente, para pensar seu
39 CAPER, R. Inveja, narcisismo e pulsão destrutiva. In: ROTH, P.; LEMMA, A. (Orgs.) Revisitando
“Inveja e gratidão”. São Paulo: Blucher, 2020.
40 SMITH, H. Círculos viciosos de inveja e punição. In: ROTH, P.; LEMMA, A. (Orgs.). Revisitando
42 GABBARD, G. Love and Hate in the analytic setting – The library of object relations. Jason
Aronson, USA, 1996.
43 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio
destrutividade. In: GABBARD, G. Love and Hate in the analytic setting – The library of object
relations. Jason Aronson, USA, 1996.
45 ZIMERMAN, D. Os quatro vínculos. Porto Alegre: Artmed, 2004.
46 MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
141
contribuição à clínica psicanalítica contemporânea. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, pp. 212-213.
51 ZIMERMAN, D. Os quatro vínculos. Porto Alegre: Artmed, 2004.
142
um mau objeto, sendo esta última causa a mais intensa e que corresponde a uma
frustração causada por um objeto do qual se depende.
Como já afirmado, Klein52 propõe uma oscilação nas posições, havendo um
retorno sempre possível e esperado à posição esquizoparanoide, mesmo tendo sido
alcançada a posição depressiva. Nesse caso, não é possível a reconhecer como uma
conquista no desenvolvimento de Kevin, que vive só, ferido narcisicamente e cheio de
ódio. É possível levantar a hipótese de um sutil deslocamento a um funcionamento
menos dissociado do personagem no diálogo final com a mãe, quando o garoto já diz
não ter certeza da sua motivação criminosa, quando ele questiona se já foi feliz um
dia, abrindo espaço para dúvida, culpa e possíveis reparações. Eva poderia ter se
aproximado de um objeto bom a ser introjetado pelo filho, conduzindo-o a um
funcionamento mais deslocado para a posição depressiva, menos ambivalente, mais
integrado, onde cabe a dúvida? Para a elaboração desta posição, o objeto deve
permanecer e sobreviver aos ataques e ao ódio para que ele possa ser integrado.
Por sua vez, Eva até pode ter atingido anteriormente uma posição de maior
integração, como a depressiva, mas a gravidez – que traz certos lutos e muitas
fantasias à mulher – a reconduziu à posição esquizoparanoide. Klein defendia a ideia
de as experiências de luto suscitarem defesas mais psicóticas, como descrito no
capítulo anterior. Perceptivelmente, a protagonista estava tomada de ansiedades e
defesas desta natureza, a partir do trauma sofrido, quando seu filho comete os crimes.
Nas cenas mais finais do filme, Eva refaz o quarto do filho, como descrito na
canção de Chico Buarque apresentada na epígrafe do capítulo e que poeticamente
nos fala de dor, morte e perda. Seria a atitude materna um mecanismo de reparação?
Uma negação? Parece uma mãe que arruma o quarto de uma criança que vai nascer,
mas há uma negação, uma defesa maníaca que nega a realidade da perda, pois Kevin
não usará mais aquelas roupas. Eva cria um quarto para o filho ao mesmo tempo que
permanece sem um espaço para si, dormindo na sala da casa mal-cuidada e precarizada.
Os atos de limpeza da mãe, após as pichações ao automóvel e residência, são
manifestações de defesas obsessivas que tentam aplacar ansiedades primitivas
persecutórias e também diminuir a culpa, presente nas posições
esquizoparanoide e depressiva. Eva limpa compulsivamente as paredes, suas
52 KLEIN, M. (1946) Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In: KLEIN, M. Obras Completas de
Melaine Klein. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
143
mãos, em uma tentativa de anular os estragos causados pelo filho e por ela própria,
quando fusionada a ele. Por outro lado, o interior da casa – espaço interno da mãe –
permanece todo escuro, sujo, empobrecido e desarrumado. Durante algum tempo,
Eva tentou ser um objeto separado, depois de ser um objeto tão distante, que se
configurou como traumático – com seu olhar longe durante a gestação e após o parto.
Após a chacina, Eva melancolizada mostrava um Eu sem vida, eclipsado pela “sombra
do objeto”, que cai sobre ele. Na sua leitura sobre Luto e melancolia, Ogden53
considera a ambivalência como o viver com vivos em sintonia com o morto, algo além da
permanência do amor e ódio.
As defesas maníacas são onipotentes, envolvem negação da vulnerabilidade e
do desamparo, e dão a sensação de triunfo. Kevin faz amplo uso delas, quando nega
a dependência em relação ao objeto, que ele despreza e deprecia. Ogden54 propõe
que a mania corresponde a uma forma inadequada de se fazer um trabalho de luto.
Ela impede a reparação dos ataques realizados, quando estes são negados ou o
objeto da agressão é tornado indiferente, tornando-se indiferente.
Como afirmado no capítulo anterior, mecanismos reparatórios permitem
relação com o objeto total, permitindo a passagem da não-neurose para a neurose,
atravessamento não definitivo dentro do pensamento de vários autores. Assim,
momentos de funcionamento não neurótico podem existir, mesmo tendo uma
dinâmica de funcionamento neurótico sido alcançada ou ser predominante. No
Capítulo 1, foram apresentadas as considerações de Minerbo55, que não considera
uma superioridade da neurose sobre a não neurose. Nesta dinâmica, prevalece o ódio
no psiquismo e a não-integração dele pode destruir o vínculo.
Siemens apud Simanke56 estabelece uma diferença, com base na filosofia
nietzschiana, entre ressentimento, ódio e desprezo. O último é uma reação subjetiva
frente ao que é considerado inferior, o ódio seria um sentimento entre equivalentes, já
o ressentimento implica em uma posição frente ao outro, que é considerado superior.
Kevin deixa Eva com forte sentimento de inferioridade frente ao aparente desprezo,
ao mesmo tempo mostra-se ressentido e odiando. Esta multiplicidade de posições faz
53
OGDEN, T. “Luto e melancolia” de Freud e as origens da teoria das relações de objeto.
Leituras criativas. São Paulo: Escuta, 2014.
54 Ibidem
55 MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
56 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal. Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio
pensar nas várias defesas e vários estados emocionais que tomam o garoto na
relação com seu objeto. Sendo aparentemente indiferente, protege-se do vínculo, liga-
se fortemente ao objeto pelo sadismo e se ressente pela ausência da mãe. Stitzman57,
por outro lado, considera o desprezo como uma forma de evitação do contato.
Sobre gratidão, é ela que permite a constituição de um bom objeto, que
preserva o Eu dos objetos internos perseguidores, tal objeto é fonte de vida e
confiança. Sua conquista depende de uma experiência boa com um objeto real. Em
algum momento o filme nos mostra algo desta natureza?
O abraço final mostra Kevin mais verdadeiramente nos braços de Eva, um
primeiro encontro genuíno talvez, seguido de uma despedida.
CONCLUSÕES
“[...] é impossível deixar de lado o papel do ódio
como elemento independente na vida psíquica –
quer o chamemos agressividade, interesse do ego,
ódio pelo objeto, tendência a fugir da intrusão.
Afinal de contas, não é possível fazer uma teoria da
alma humana sem levar em conta que as pessoas
sentem hostilidade umas pelas outras e em relação
a si mesmas.” (Mezan)
1 RINALDI, D. O discurso do ódio, uma paixão contemporânea. In: ROSA, M. D.; COSTA, A. M. M.;
PRUDENTE, S. (Orgs.). As escritas do ódio – psicanálise e política. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2018.
2 DIAS, M. M. Os ódios: clínica e política do psicanalista. São Paulo: Iluminuras, 2012.
147
6
ANDRÉ, J. Vocabulário básico da psicanálise. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015, p. 113-114.
7 BOIANOVSKY, D. Mais uma vez, por que a guerra? Revista Brasileira de Psicanálise – SBP-SP,
Vol. 54, n. 1, 2020.
8 FREUD, S. (1926 [1925]) Inibições, sintomas e ansiedade. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira
das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
149
9 FREUD, S. (1926 [1925]) Inibições, sintomas e ansiedade. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
10 ROSA, M. D.; ALENCAR, S.; MARTINS, R. Licença para odiar: uma questão para a psicanálise e a
política. In: ROSA, M. D.; COSTA, A. M. M.; PRUDENTE, S. (Orgs.). As escritas do ódio –
psicanálise e política. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2018, p. 29.
150
11
SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio
– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.
12 FREUD, S. (1915) O inconsciente. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas
pulsão de morte, que não o representa, mas sim da autoagressão, reforçando a ideia
de que afeto difere de pulsão. Propondo manter a proximidade do ódio na relação do
Eu com os objetos e explicar sua origem, desvinculada do pulsional, Mezan afirma:
Parece que o ódio se define mais facilmente a partir da relação com o objeto
do que em relação às pulsões. Esta é uma ideia que vale a pena explorar,
porque é uma boa pista.
Durante os primeiros anos deste século, Freud fez diversas tentativas para
explicar de onde vem o ódio, sem no entanto o definir como antagonista da
pulsão sexual [...]
[...] é difícil derivar diretamente o ódio da libido, e o oposto da libido é uma
tendência ao zero e a aniquilação, que não é ódio. A pulsão de morte é
silenciosa; o ódio é ruidoso, alimenta a cólera, a raiva, a indignação, a
vingança etc. Por outro lado, todas estas emoções têm um componente
erótico, embora não se reduzam a vínculos eróticos. 16
16 MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham. Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1,
1999, p. 79.
17 Se inicialmente ela era explicada pelo mecanismo do recalque, posteriormente, é a regressão da
libido que passa a ser a noção mais esclarecedora para a sua origem.
153
apresenta uma face narcísica importante, onde se percebe o ódio mais articulado ao
narcisismo. Nela, também há uma regressão da libido, mas a outra fase pré-genital: a
fase oral de devoração (canibalesca). Tanto na melancolia quanto na neurose
obsessiva, há uma hostilidade implícita, seja na formação reativa desta ou nas
autorrecriminações da primeira.
No estudo da paranoia, há o ódio narcísico de Schreber que altera a realidade.
O ódio que foi anteriormente amor e, seguindo toda a gramática proposta por Freud
apresentada no Capítulo 2, aparecem as várias formas de delírio. Também há um
movimento regressivo da libido, que reflui dos objetos ao Eu.
É possível reconhecer que, para Freud, o narcisismo aparece em diferentes
contextos: como fase do desenvolvimento, na forma de escolha de objeto, ligado às
patologias e, também, vinculado a importante fenômeno de interação social, o
‘narcisismo das pequenas diferenças’.
Se no início da pesquisa, havia uma tentativa de localizar a gênese do ódio em
uma das vertentes – narcisismo ou pulsão de morte, a ideia de Green sobre o
narcisismo de morte articula ambas. Ao formular sua teoria, considera o par pulsão-
objeto (representação – relação), as modalidades psicopatológicas denominadas
“casos limites”, a experiência clínica com tais pacientes e a crise que sofre a
psicanálise na atualidade. Tentando superar os entraves que Freud encontrou, com
os conceitos presentes na própria obra deste autor, Green articula as pulsões de vida
e morte, nas suas tendências intrínsecas, ao narcisismo, propondo a existência de
duas modalidades dele: narcisismo de vida (narcisismo do Um ou positivo, que foi
aquele do qual Freud se ocupou) e narcisismo de morte (ou negativo). Associa-os às
funções objetalizante e desobjetalizante, respectivamente. Para o autor18, Freud não
propôs algo que corresponderia à libido, a energia da pulsão de vida, para a pulsão
de morte. De maneira semelhante, como afirmado anteriormente, Barison19 resgata
as considerações de Heimann, que compara o status das duas pulsões, em Freud,
aos filhos: primogênito, no caso Eros, e ao filho tardio, a pulsão de morte,
considerando que só coube ao primeiro um nome mais específico.
Para finalizar, cabe destacar que este autor procurou dar outro significado à noção
de pulsão de morte, ao invés de excluí-la da teoria psicanalítica, na medida em que ela o
auxiliava a pensar sobre o funcionamento dos casos limites, que não compreendem um
quadro psicopatológico específico, mas uma variedade deles, com predominância de
outras defesas, como cisão, negação e falhas no mecanismo de simbolização.
Afirma Green, reconhecendo a importância do narcisismo e sua teorização
incompleta em Freud:
O escrito de Freud sobre o narcisismo é um desses que lemos e relemos
constantemente e sempre tiramos proveito. O narcisismo é um conceito que
recobre os diversos campos da perversão, da psicose, da vida amorosa, para
permanecer nos limites da psicanálise. O mais notável consiste na forma com
que este conceito vai sofrendo eclipses e voltas brilhantes na psicanálise pós-
freudiana. Já no próprio Freud, como observamos anteriormente, a
formulação da última teoria das pulsões relega o narcisismo a um segundo
plano, isto é, o investimento libidinal das pulsões de autoconservação, para
recordar a definição de Freud [...] não diz nada acerca do impacto da teoria
das pulsões de morte sobre o narcisismo.23
30 HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992, p. 166.
159
31 HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992, p.145.
32 ROSENFELD, H. Uma abordagem clínica para a teoria psicanalítica das pulsões de vida e de
morte: uma investigação dos aspetos agressivos do narcisismo. In: Melaine Klein Hoje Volume 1.
Rio de Janeiro: Imago, 1991.
33 O autor utiliza a expressão “impulsos destrutivos”.
34 GREEN, A. Pulsão de morte, narcisismo negativo e função desobjetalizante. In: GREEN et al. A
objeto promove a defusão pulsional e liberação da pulsão de morte, que pode ser
pensada a partir da intersubjetividade.
Smith38 considera amor e ódio como derivados e não pulsões. O autor também
afirma que Klein tentou encontrar “estados puros” de ódio, inveja, gratidão, na sua
obra, ao mesmo tempo que ela negava tais existências. Smith reconhece esta
tendência quando a autora usa expressões como “genuíno, pleno” e justifica tal
tendência no desejo dela em manter a ideia de conflito, noção também sempre
sustentada por Freud. Smith problematiza a concepção moral de certos conceitos,
como inveja. Para o autor, se Klein, ao mesmo tempo, afirma a existência e
desconsidera os estados puros, Brenner apud Smith defende a não existência deles
e isso melhor permite manter a ideia de ambivalência, que explica a coexistência de
amor e ódio, assim como inveja e gratidão. Smith afirma:
A teoria de Brenner não admite a ideia de nada puro, em qualquer estado –
nem amor nem ódio. Até mesmo a genuinidade deve ser uma formação de
compromisso que se defende contra um afeto doloroso, e todo objeto bom,
todo momento de gratidão, deve ser constituído tanto por desejos agressivos
quanto amorosos, defesas e autopunição; o estado de mente em questão é
simplesmente o resultado desses componentes subjacentes disputando por
expressão.39
38 SMITH, H. Círculos viciosos de inveja e punição. In: ROTH, P.; LEMMA, A. (Orgs.). Revisitando
“Inveja e Gratidão”. São Paulo: Blucher, 2020.
39 Ibidem, p. 324.
40 MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham. Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999.
162
[...] não quer dizer que o amor objetal esteja isento de ambivalência ou de
narcisismo. A meu ver, esta é uma excelente definição de normalidade em
Psicanálise; nada tem nada a ver com média estatística, mas admite um
critério qualitativo-dinâmico, ligado à qualidade da relação com o objeto,
determinada por uma certa proporção entre o interesse pelo outro e o
interesse por si mesmo, assim como entre agressividade e amor. 41
41 MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham. Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999,
p. 69.
42 GREEN, A.; URRIBARRI, F. Do pensamento clínico ao paradigma contemporâneo – diálogos.
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