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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

CLAUDIO DE OLIVEIRA FILHO

PELOS CAMINHOS DO ÓDIO - DA PULSÃO AO NARCISISMO.

São Paulo
2021
CLAUDIO DE OLIVEIRA FILHO

PELOS CAMINHOS DO ÓDIO - DA PULSÃO AO NARCISISMO.

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo como exigência parcial
para a obtenção do título de Mestre em
Psicologia Clínica – Núcleo de Método
Psicanalítico e Formações de Cultura.

Área de concentração: Tratamento e


Prevenção Psicológica

Orientador: Professor Doutor Renato Mezan

São Paulo
2021
PELOS CAMINHOS DO ÓDIO - DA PULSÃO AO NARCISISMO.

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo como exigência parcial
para a obtenção do título de Mestre em
Psicologia Clínica – Núcleo de Método
Psicanalítico e Formações de Cultura.

Área de concentração: Tratamento e


Prevenção Psicológica

Orientador: Professor Doutor Renato Mezan

Banca Examinadora

Examinador 1:

____________________________________
Prof. Dra. Renata Udler Cromberg
Doutora em Psicologia Social
IP-USP

Examinador 2:

____________________________________
Prof. Dra. Elisa Maria Ulhoa Cintra
Doutora em Psicologia Clínica
PUC-SP

Examinador 3:

____________________________________
Prof. Dra. Maria Neuma Carvalho de Barros
Doutora em Psicologia Clínica
Universidade Católica de Pernambuco

Examinador 4:

____________________________________
Prof. Dra. Liliana Liviano Wahba
Doutora em Psicologia Clínica
PUC-SP

Orientador:

____________________________________
Prof. Dr. Renato Mezan
Doutor em Filosofia pela Universidade de São
Paulo – USP
RESUMO

A partir do panorama social contemporâneo e da incidência do ódio na clínica


psicanalítica, seja manifesto ou inconsciente, a proposta da pesquisa é um estudo
sobre o ódio nas dimensões social, metapsicológica e psicopatológica, tendo como
referencial a psicanálise de Freud e Klein. A partir da leitura destes autores, as ideias
foram apresentadas seguindo a ordem cronológica da publicação dos textos. A
revisão bibliográfica serviu à investigação da relação entre ódio, narcisismo e pulsão
de morte, procurando estabelecer a qual destes conceitos o afeto estaria mais
próximo. A ideia do ‘narcisismo das pequenas diferenças’ e a noção de pulsão
agressiva permitiram analisar as manifestações contemporâneas de ódio na
sociedade, a partir das contribuições freudianas. Com relação à metapsicologia, é
possível concluir que Freud aproximou inicialmente o ódio à pulsão (sadismo) e,
posteriormente, ao narcisismo e também à pulsão de morte. Por sua vez, Klein
mantém o ódio no registro pulsional, próximo à pulsão de morte, ocupando-se pouco
do narcisismo em sua teoria. Esta autora desenvolve a teoria das posições
(esquizoparanoide e depressiva), nas quais há participação do ódio. A teoria freudiana
também deixa o conceito de narcisismo limitado, mantendo-o mais próximo de Eros,
após 1920. Por fim, Green e Rosenfeld fazem articulações entre narcisismo e pulsão
de morte, com os conceitos de narcisismo de morte e narcisismo destrutivo. Para
ilustrar os conceitos apresentados optou-se pela análise do filme Precisamos falar
sobre Kevin, no qual o personagem apresenta o ódio como forma de ligação ao objeto,
não conseguindo separar-se da mãe. Tal funcionamento psíquico aponta para uma
posição esquizoparanoide, na qual não há integração entre amor e ódio, o que retoma
a teoria kleiniana.

Palavras-chave: Ódio; Pulsão; Narcisismo; Sadismo; Pulsão de morte; Narcisismo


das pequenas diferenças; Narcisismo de morte; Narcisismo destrutivo.
ABSTRACT

From the contemporary social panorama and the incidence of hatred in the
psychoanalytic clinic, whether manifest or unconscious, the research proposal is a
study on hatred in the social, metapsychological and psychopathological dimensions,
having Freud and Klein's psychoanalysis as a reference. From the reading of these
authors, the ideas were presented following the chronological publication order of
texts. The bibliographic review served to investigate the relationship between hatred,
narcissism, and the death drive, trying to establish which of these concepts the
affection would be closest to. The idea of ‘narcissism of small differences’ and the
notion of aggressive drive made it possible to analyze contemporary expressions of
hatred in society, based on Freudian contributions. Regarding metapsychology, it is
possible to conclude that Freud initially approached hatred to the drive (sadism) and,
later, to narcissism also to the death drive. In turn, Klein keeps the hatred in the
pulsatory register, close to the death drive, taking little care of narcissism in his theory.
This author develops the theory of positions (schizoparanoid and depressive), in which
there is participation of hatred. Freudian theory also leaves the concept of narcissism
limited, keeping it closer to Eros after 1920. Finally, Green and Rosenfeld articulate
between narcissism and death drive, with the concepts of death narcissism and
destructive narcissism. In order to illustrate the concepts presented, we chose to
analyze the film We need to talk about Kevin, in which the character presents hatred
as a form of connection to the object, failing to separate himself from his mother. Such
psychic functioning points to a schizoparanoid position, in which there is no integration
between love and hate, which resumes the Kleinian theory.

Keywords: Hatred; drive; Narcissism; Sadism; death drive; narcissism of small


differences; death narcissism; destructive narcissism
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior Brasil (CAPES) – Código de Financiamento: 001
AGRADECIMENTOS

Ao orientador, Prof. Dr. Renato Mezan, pela receptividade e respeito que teve
comigo, com meu projeto e trabalho, desde o início desta jornada. Sempre o admirei
pela sabedoria e erudição, hoje tenho mais um motivo.
À Renata Cromberg, que com um simples comentário, em meu percurso inicial,
serviu como ponte aos projetos futuros. Obrigado por ensinar-me tanto, muito além de
ler Freud.
À Elisa Cintra, que inspirou-me neste caminho.
Às professoras Neuma e Liliana, por aceitarem prontamente o convite de
participar da banca.
Aos colegas da turma 2013 do Sedes (Tereza, Carina, Miranda, Thaís
Romana, Dedé, Isa, Paula, Ana Gebrim, Sil, Lucas, Paulo, Vera, Carol, Camila, Lu
Chauí, Maíra, Thomas e ao Pedro - in memorian), pela presença, pela confiança, pela
torcida e por todo carinho partilhado. Este trabalho passa por caminhos meus que
cruzaram com os de vocês! Obrigado aos que me encorajaram a estar aqui.
Aos colegas Ari, Dani Smid e Lúcia, pelas boas lembranças do início de
percurso.
À Thais Duarte por todo o apoio para encarar este desafio.
Aos colegas do mestrado (Marcela, Helena, Juliana, Patrícia, Adriana, Victor,
Andréa, Carla, Claudia, Kátia, Rachelle, Ariane, Marcos, Alexandre, Carlos, Carol,
Anna Sylvia e Ariane e, em especial, à Gabi - que fez dobradinha Sedes). Apesar da
distância do ensino remoto, conseguimos boas partilhas.
Aos amigos, Anaídes, Dina, Henrique, Milton e Kátia, pelo carinho de tantos
anos.
A Débora, por toda sensibilidade e pela presença constante, mesmo com tantos
compromissos e responsabilidades maternas. Sempre arranjamos tempo um para o
outro.
Ao Alê, por todo o respeito e consideração. Obrigado de coração.
Ao meu supervisor, Ricardo, por me acompanhar tão respeitosamente em uma
das minhas tarefas 'impossiveis'.
Aos professores do curso Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (Maria
Laurinda, Cristina Ocariz, Isabel Viluttis, Atílio Bombana, Mara Caffe, Flávio Ferraz,
Mirian Uchitel, Silvia Alonso e Sandra Navarro- in memorian), por tanto aprendizado,
e aos que me acompanharam nestes últimos dois anos, na PUC, Edna Kahale, Alfredo
Naffah e Luís Claudio Figueiredo. Obrigado pela inspiração, em um momento, onde é
difícil respirar sem medo.
A Daniel Senos e Douglas, pelas valiosas dicas de leitura. Vocês fizeram a
diferença.
Ao meu analista João Rodrigo, pelo cuidado e pela experiência de uma análise.
Obrigado por acreditar em mim, mesmo quando eu ainda não o fazia.
Aos meus pacientes, pela partilha, que me transforma a cada dia em que
estamos juntos.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................9

CAPÍTULO 1 – PARA INÍCIO DE CONVERSA..........................................................16


1.1. Conceituando o ódio – um desafio para a psicanálise.....................16
1.2. Contextualizando o ódio.....................................................................22
1.3. O ódio nos textos sociais de Freud....................................................27

CAPÍTULO 2- A METAPSICOLOGIA E A PSICOPATOLOGIA DO ÓDIO EM


FREUD.......................................................................................................................44
2.1 A metapsicologia freudiana e o ódio.......................................................44
2.2. Psicopatologia do ódio...........................................................................67
2.2.1 Neurose obsessiva.......................................................................68
2.2.2 Paranoia.......................................................................................73
2.2.3 Melancolia....................................................................................77
2.3 A questão do ódio e da mãe na psicopatologia – paranoia e melancolia
–, uma expansão na compreensão das patologias......................................83

CAPÍTULO 3 – KLEIN: A TEÓRICA DO AMOR, DO ÓDIO E DA INVEJA...............89

CAPÍTULO 4 – O ÓDIO DE KEVIN..........................................................................116


4.1 Falando sobre Kevin..............................................................................117
4.2 A análise da obra....................................................................................122

CONCLUSÕES........................................................................................................145

BIBLIOGRAFIA........................................................................................................163
9

INTRODUÇÃO

Alguns caminhos conduziram-me ao tema de pesquisa: o Ódio. Para iniciar,


vou elencar trajetos, que passam pelas minhas experiências durante o período da
formação em psicanálise no Instituto Sedes Sapientiae e no meu retorno à instituição,
quando participei de um projeto, as rodas de conversa, além das minhas vivências em
um país (ou melhor, em um mundo), onde o ódio assume protagonismo nos cenários
político e social.
Durante o curso de formação, estudei melancolia e supereu, chegando a
elaborar dois trabalhos sobre esses temas, que se relacionam muito teoricamente pois
estava às voltas com eles na prática clínica. Eles começaram a dialogar, teórica e
clinicamente, principalmente quando os relacionava ao ódio, à pulsão de morte e ao
narcisismo. A elaboração sobre a temática da melancolia foi resgatada neste presente
trabalho, mas não fiquei restrito a este quadro psicopatológico, pois não é o único que
trata da questão do ódio, incluí a neurose obsessiva e a paranoia em um dos capítulos,
onde também abordei o conceito de ódio na teoria freudiana.
Já no segundo semestre de 2018, fazia uma disciplina como ouvinte na PUC e
elaborava melhor meu desejo de cursar o mestrado, ao mesmo tempo em que o Brasil
estava às voltas com as eleições presidenciais, um debate muito polarizado e que
trazia muitos discursos de ódio por mim escutados na clínica e na sociedade em geral.
Assim que saiu o resultado do primeiro turno, muito preocupado e sentindo a
necessidade de estar com meus pares, retornei ao Instituto Sedes Sapientiae, para
participar de uma primeira reunião, na qual surgiu a possibilidade de um espaço de
escuta e partilha: nascia o projeto das rodas de conversa. O dispositivo de escuta era
composto por psicanalistas de vários departamentos que ofereciam reuniões de duas
horas de duração para que as pessoas falassem do seu sofrimento com relação à
situação política. Não havia partidarismo no trabalho do grupo, ou seja, qualquer
pessoa poderia participar, independentemente do candidato que estava na sua
intenção de voto. As rodas tinham um número variável de integrantes, no limite de,
aproximadamente, 15 pessoas. Sempre estávamos em duas ou três pessoas
coordenando os grupos e havia ainda um colega na retaguarda, caso houvesse uma
situação que necessitasse de uma escuta individualizada. Ao longo das rodas nas
quais estive, percebia situações permeadas por muito ódio, conflitos intrafamiliares,
brigas entre grupos, nos quais estavam inseridos os participantes, situações com
10

variáveis nuances de agressividade e muita violência, ansiedade e sofrimento


também. Um medo generalizados tomava conta das pessoas, que não conseguiam
pensar, elaborar, dialogar e conviver e que se sentiam vulneráveis a partir do ódio
explicitamente verbalizado. Eu me via muito nas situações descritas pelos
participantes. Na minha clínica, política e ódio tomaram conta das sessões, com
muitos pacientes assustados e angustiados; outros viviam situações de violência na
rua e dentro de suas famílias. A situação colocava os limites da convivência, os limites
da clínica e eu me perguntava: De onde vinha tanto ódio? O que era possível fazer
com isso? Também me chamavam a atenção o interesse e o incentivo de meus
professores e colegas de profissão quando eu comentava sobre meu tema de
pesquisa. Tudo isso somava-se ao meu desejo de aprofundamento sobre as questões
referentes ao ódio.
Pensei em trazer um caso clínico para ilustrar a dissertação. Não foi apenas
um caso específico que me veio à mente, quando iniciei a redação deste trabalho. A
temática do ódio é frequente na clínica de qualquer profissional que se disponha a
escutar pessoas, o afeto pode estar de certa forma consciente, mas muito
inconsciente também, nas dimensões intrapsíquica e intersubjetiva. A própria
transferência, mecanismo clínico importante para qualquer praticante da técnica
psicanalítica, também contempla o ódio. Dias1 propõe e defende a posição de que
este afeto possa e deva ser trabalhado no contexto de uma análise. Por fim, escolhi
um relato clínico sobre um paciente que atendi por alguns anos e cujo tratamento
finalizei em 2015. Maurício2 trazia na sua história de vida muitas agressões e
humilhações, que lhe proporcionaram grandes feridas narcísicas e muito ódio por seus
familiares. Ele não o verbalizava, mas os agredia; as vezes, tentava mostrar-se
indiferente, não se aproximava de tal afeto e de nenhum outro. Ao mesmo tempo,
revelava uma intensa fixação a estas figuras, que não podiam ser abandonadas. Eu
percebia o ódio como elo de ligação.
Quando se opta pela inclusão de um atendimento em um trabalho que será
divulgado amplamente, vem a questão sobre a melhor maneira de tratar a questão
ética, que envolve tornar pública a história de vida e do tratamento de um paciente,
que foi atendido sob a garantia de um sigilo. Havia pensado em apresentar apenas
minhas reflexões clínicas, dispensando-me da necessidade de solicitar o termo de

1
DIAS, M. M. Os ódios: Clínica e política do psicanalista. São Paulo: Iluminuras, 2012.
2 Nome fictício utilizado por mim.
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consentimento ao paciente, que já se encontrava com seu atendimento finalizado há


quase cinco anos. Pensei muito a respeito e algumas questões me ocorriam.
Pela fragilidade do paciente em questão, pelo rumo do caso e do vínculo
posteriormente constituído, mais ao final do tratamento, não solicitar um termo de
consentimento livre e esclarecido parecia-me mais razoável. Acreditei que esse
manejo seria protetor ao paciente, ao mesmo tempo que me permitiria escrever a
clínica para que eu pudesse articular a ela os conceitos teóricos. Como alternativa à
solicitação do termo ao paciente, algumas estratégias podem ser adotadas, como: não
apresentar detalhes que permitam ao paciente reconhecer-se, além de alterar alguns
fatos, sem comprometer a dinâmica e a singularidade do caso, assim como se pode
escrever fatos significativos de maneira mais genérica e inespecífica. Na época, não
me pareceu necessário solicitar permissão a um paciente cujo tratamento encerrou-
se há certo tempo e que deveria entrar em contato comigo para atender a uma
demanda minha, que pouco se relaciona a uma necessidade sua. Encontrei
referências para esta opção a partir da leitura da tese de Márcia Goldstein 3, A
resolução nº 510/16 do Conselho Nacional de Saúde e a pesquisa psicanalítica com
material clínico do paciente. Por outro lado, caso Maurício tivesse acesso ao meu
trabalho, quem garante que não se reconheceria no texto? Eu reproduziria uma
quebra de confiabilidade, algo semelhante ao que se deu em seu desenvolvimento,
pois, afinal de contas enquanto ele foi atendido, eu nunca disse que usaria seu
material clínico para um trabalho meu.
Coincidências à parte, o professor Luís Cláudio Figueiredo ofereceu uma
disciplina no segundo semestre de 2020, que abordou o tema ódio, a partir de
produções cinematográficas e literárias. As discussões aconteciam a partir de
conceitos teóricos aplicados à análise dos personagens de filmes. Desde a elaboração
do meu projeto de pesquisa, eu já havia optado pela inclusão da análise do ódio a
partir das contribuições teóricas de Freud e Klein. Bem convencido de que poderia
trazer um filme a ser relatado como um caso clínico, lembrei do paciente inicialmente
escolhido e do filme Precisamos falar sobre Kevin. Posteriormente, durante a redação

3GOLDSTEIN, M. S. A resolução nº 510/16 do Conselho Nacional de Saúde e a pesquisa psicanalítica


com material clínico do paciente. Tese de Doutorado, PUC-SP, São Paulo, 2020.
A tese de Marcia Schivitarese defendida em 2020 na PUC, à qual tive acesso, traz uma ampla
discussão sobre as posições que podem ser tomadas na apresentação de material clínico. Entre
outros fatores, ela sugere que cada caso seja analisado, procurando preservar emocionalmente o
paciente, sem desconsiderar a utilidade da divulgação do material clínico.
12

do capítulo no qual analisei o filme, percebi que a lembrança do filme não se deu ao
acaso. Reconheci em Kevin e Maurício a forte presença do ódio aos genitores (e não
só a eles). Kevin tinha uma intensa ligação com a mãe, ainda que pela via do ódio,
expresso através da violência e destrutividade, juntamente a manifestações de
aparente indiferença. A decisão pela análise do filme permite-me uma futura
publicação deste material na forma de um livro e/ou artigo, sem ferir o compromisso
ético com uma pessoa que me confiou sua história e seu sofrimento.
Na redação da dissertação, retomei os três caminhos acima descritos: o
metapsicológico, o clínico e o sociocultural. Com relação a este, surpreendeu-me que
algumas revistas de instituições de formação psicanalítica dedicaram edições4 inteiras
sobre a temática, com muitos autores debruçados sobre o tema que estava
interessado em estudar.
Freud mostrou interesse em transferir conceitos da psicologia individual ao
campo social e, assim, contribuiu para outras ciências humanas usarem referências e
dialogarem com a psicanálise. Ele assim o fez em alguns de seus textos, em diferentes
momentos de sua obra, em que novas questões teóricas advindas de sua experiência
clínica eram articuladas e pensadas no contexto cultural.
São os textos contemporâneos à primeira tópica e o primeiro dualismo
pulsional5: Moral sexual civilizada e doença nervosa, Totem e tabu e Reflexões para
os tempos de guerra e morte, respectivamente de 1908, 1913, 1915. É a partir do novo
dualismo pulsional (proposto em 1920), que temos, respectivamente em 1927 e 1930,
O futuro de uma ilusão e O mal-estar na cultura, texto que relaciona a pulsão agressiva
ao meio sociocultural. Por fim, temos Por que a guerra?, de 1933 e Moisés e o
monoteísmo (1939), ao final de sua vida.
Realizei no primeiro capítulo, após breve introdução, a conceituação e
contextualização no momento atual sobre o meu tema de pesquisa, recorri às ideias
presentes em alguns dos textos pesquisados, pois articulam a questão do ódio à
sociedade contemporânea. Com relação à obra freudiana, escolhi Totem e tabu,
Reflexões para os tempos de guerra e paz, Psicologia das massas e análise do Eu,
Mal-estar na cultura e Moisés e o monoteísmo, pois enfatizam a questão do ódio e da

4 Revista Brasileira de Psicanálise, da Febrapi – SBPSP, Vol. 53, n. 1, 2019; Revista de Psicanálise
da SPPA, Vol. 24, n. 3, 2017.
5 Penso que se faz necessário, ao estudar a obra freudiana, situar cronologicamente e abordar o

contexto teórico que o leva a produzir determinado texto, onde novos conceitos são construídos, pois
se evitam confusões teóricas importantes. Tentei seguir minha proposta na produção da dissertação.
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agressão em diferentes épocas. Na apresentação das ideias, fiz algumas menções a


outros textos sociais de Freud, além de aos de outros psicanalistas que se propuseram
a analisar as obras que escolhi.
No segundo capítulo, apresentei alguns textos de Freud que trabalhavam direta
ou indiretamente a temática ódio. São eles: Três ensaios sobre a sexualidade,
Introdução ao narcisismo, Os instintos e suas vicissitudes e Além do princípio de
prazer.
No primeiro texto, Freud defende a ideia da sexualidade infantil, apresenta
fases do desenvolvimento da libido e a noção de pulsão parcial. É a este último
conceito que o ódio tem relação, por meio da ideia do sadismo. Na medida em que o
ódio articula-se ao narcisismo, como havia percebido no atendimento clínico e no filme
que pretendo discutir, resgatei a leitura do texto sobre o narcisismo, de 1914. Um ano
depois, preocupado em sistematizar os conceitos da psicanálise, Freud escreve Os
instintos e suas vicissitudes, dez anos depois dos três ensaios, onde postula a
metapsicologia como objeto do estudo psicanalítico e faz uma detalhada descrição
sobre o conceito de pulsão (trieb). Desenvolve a temática do ódio, articulada à ideia
do narcisismo na constituição do psiquismo, da sua relação á externalidade, ao objeto
e retoma a noção do sadismo. Nesse texto articula o afeto ao encontro com o objeto,
estranho ao Eu. O sadismo e o masoquismo são pensados também a partir do
narcisismo. De 1920, há o texto Além do princípio de prazer, no qual o autor descreve
a insuficiência deste princípio, propõe o conceito de compulsão à repetição e formula
a ideia da pulsão de morte em oposição à pulsão de vida (Eros).
Ainda no Capítulo 2, resgato alguns textos referentes às psicopatologias
marcadas pelo ódio, a neurose obsessiva, a paranoia e melancolia. Os maiores
desenvolvimentos sobre estes quadros ocorrem entre 1908 e 1917, embora já tenham
sido citados desde o período pré-psicanalítico (anterior a 1900) – em rascunhos que
acompanhavam a correspondência trocada entre Freud e Fliess, durante o ano de
1897 – e posteriormente também. Nas três afecções, aparece a temática do ódio, mas
ela difere na etiologia da doença. Quero acrescentar que, ainda que se verifique a
presença do ódio em outros quadros (histeria, esquizofrenia, borderline etc.), optei por
não os abordá-los neste trabalho.
No terceiro capítulo, apresentei alguns pressupostos elaborados por Melanie
Klein, que observou inicialmente presença e a influência do sadismo infantil no
desenvolvimento da criança, manifesto ou reprimido, para relacioná-lo à pulsão de
14

morte no futuro de seu percurso teórico. A autora promoveu grandes avanços teóricos
na psicanálise pós-freudiana: a teoria sobre as posições depressiva e
esquizoparanoide (com angústias e defesas próprias) e relação delas com o ódio. Tal
teoria foi também referência para a análise do filme que ilustra esta dissertação.
No quarto capítulo, trouxe minhas reflexões e apontamentos sobre o
personagem Kevin, um garoto que vive intensamente ódio em relação aos objetos,
afeto que vai se intensificando, ao ponto de culminar em um massacre por ele
realizado. Fiz uma análise psicanalítica da obra, articulando a metapsicologia dos
autores escolhidos ao material artístico.
Por fim, apresentei minhas conclusões, a partir da pesquisa realizada, que foi
norteada pelas seguintes questões:
Qual a relação entre narcisismo, pulsão de morte e ódio? Qual dos conceitos
metapsicológicos melhor se articula a este afeto? Ou seja, de que lado (narcisismo ou
pulsões) podemos situar o ódio? Seria o narcisismo ou a pulsão de morte o conceito
psicanalítico que melhor explica o ódio?
Guiado por essas questões, percorro por diferentes caminhos na minha escrita,
usando o referencial psicanalítico: a teoria (dentro de uma perspectiva histórica de
formulação conceitual), a análise de uma obra, que mobiliza intensos afetos, para
aplicação das ideias teóricas, que também serão pensadas à luz de situações atuais,
no primeiro capítulo da dissertação e nas conclusões, como forma de uma leitura
crítica do momento social e político brasileiro. Concordo com a posição de Lacan6 que
afirma: “Deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir
alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”.
Dentro dessa linha de pensamento, a teoria psicanalítica, que também sai da
clínica, e serve de instrumento na análise da cultura contemporânea e, no caso desta
dissertação, de uma produção cinematográfica também.
Para o presente estudo, elaborei um trabalho de revisão bibliográfica, tomando
como base textos de autores da Psicanálise, principalmente Freud e Klein, além de
outros que procuram discutir e enriquecer as teorias deles. Na tentativa de ilustrar os
conceitos relacionados ao meu tema, recorri ao relato de uma história de ficção
apresentada em um filme. Minha pesquisa forneceu conceitos e elementos teóricos
para fazer uma análise da obra cinematográfica escolhida e, que não se deu ao acaso,

6 LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 321.


15

pois pude perceber muitos elementos da psicodinâmica do paciente, cujo caso clínico
inicialmente desejava descrever, ao personagem Kevin.
Dentre as poucas recomendações que Freud faz aos praticantes da
psicanálise, há a expressão livre das ideias e pensamentos a serem relatadas pelo
paciente, além da escuta caracterizada por uma atenção, por ele considerada
flutuante, na qual o analista não se deve prender ao discurso lógico e consciente do
relato, mas ficar atento ao destoante, ao inusitado, ao oculto, análogo ao conteúdo
latente do sonho, que difere do manifesto na cena onírica. Naffah7 considera que há
uma forma de fazer pesquisa nesta modalidade de trabalho, tão peculiar e
incompreendida pelos não familiarizados com a Psicanálise. Procurei fazer minha
análise do material ilustrativo usando a “escuta” analítica, aberta e formulada, a partir
de hipóteses que o material descrito permite contruir. Diferentemente de uma
pesquisa quantitativa, apresento uma leitura singular de uma história, que poderia ser
diferente da feita por outro colega que pretendesse analisar a mesma obra. Considero
que minha análise não pretende estabelecer o estatuto de verdade, a ser replicada
experimentalmente. Por sinal, verdade é um conceito ambíguo para a Psicanálise, que
se afasta da consciência e da razão. Por outro lado, há uma série de conceitos,
definições e possibilidades de leituras de fenômenos humanos que ela nos oferece e
que lhe conferem um estatuto científico, ainda que dotado de natureza muito peculiar.

7
NAFFAH NETO, A. A Pesquisa Psicanalítica. Jornal de Psicanálise, Vol. 39, n. 70, São Paulo, jun. 2006.
16

CAPÍTULO 1 – PARA INÍCIO DE CONVERSA

“Quando eu amo, eu devoro todo meu coração


Eu odeio, eu adoro, numa mesma oração,
quando eu canto” (Chico Buarque)

“O ódio precisa mudar seu gerente de marketing”


(Stitzman)

1.1 Conceituando o ódio – um desafio para a psicanálise

Tarefa nada fácil, principalmente porque a tradição judaico-cristã o nega,


condena, reprime. Parece que afirmar que a pessoa odeia significa diminuí-la,
moralmente condená-la. O ato sublime de amar ao próximo, enquanto mandamento
religioso, faz do amor algo a ser almejado, valorizado. Nas palavras de Anne Loncan1:
“Para abordar a questão do ódio, ressaltemos, em primeiro lugar, que ele é geralmente
proscrito da vida social, ao mesmo tempo que é uma de suas forças motrizes mais
poderosas”. Stitzman2 3 compartilha da mesma posição da autora e define o ódio como
uma tormenta emocional, ao mesmo tempo que o considera fundamental para a
sobrevivência e vitalidade psíquica.
A psicanálise, que procura iluminar4 as sombras, o primitivo e o pulsional, pode
dar outros significados, sentidos e até certa positividade ao ódio, ao situá-lo com uma
função psíquica que estrutura e defende o sujeito. Muitos dos autores pesquisados
trazem esta mesma perspectiva ao ódio.5 6 7
Também há o conceito de ambivalência, exposto no trecho da canção de Chico
Buarque apresentado acima, tão importante à psicanálise enquanto conquista no

1 LONCAN, A. O ódio – Prefigurações filosóficas de suas implicações para a psicanálise – Revista


Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019, p. 34.
2 STITZMAN, L. Framework: ódio, áreas de vibrância: ideias para psicanalistas – Revista de Psicanálise

da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, Vol. 24, n. 3, 2017.


3 Stitzman discute o vínculo do ódio usando o referencial bioniano. Afirma que Bion não ampliou o

estudo desse vínculo em sua obra.


4 Durante meu exame de qualificação, Renata Cromberg destaca que este Freud mais iluminista

caracteriza a primeira etapa do pensamento do autor. Com o desenvolver de sua teoria e clínica, Freud
vai assumindo uma postura mais pessimista para a psicanalista.
5 PEREIRA, D. R.; COELHO JÚNIOR, N. E. O relato de uma experiência estranha – O surgimento do

ódio no analista. Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.


6 GERCHMANN, A.; ANTUNES, C. A. O ódio primário e os processos de individualização – Revista

Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.


7 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio

– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.


17

desenvolvimento psíquico, quando se consegue reunir amor e ódio em relação ao


mesmo objeto.
Neuma Barros8 faz uma ampla pesquisa sobre as definições do ódio, desde
dicionários das línguas portuguesa e estrangeiras, até diferentes dicionários de
psicanálise no apêndice A de sua tese A trama paradoxal do ódio, em que a autora
fornece uma importante observação sobre a definição de ódio. Ela destaca a ausência
de um verbete específico sobre o ódio em alguns dos grandes dicionários
especializados em psicanálise, como o de Roudinesco e Plon, e o de Laplanche e
Pontalis. O ódio aparece em outros verbetes a ele relacionados e isso remete ao lugar
descentralizado ocupado pelo tema no pensamento de Freud, segundo a autora.
Para defini-lo, fiz um recorte menor que o de Barros.
De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa9, ódio significa:
1. Aversão intensa, geralmente motivada por medo, raiva ou injúria sofrida;
Já no Dicionário Prático da Língua Portuguesa Michaelis10, odiar significa:
1. ter ódio a, 2. abominar, sentir aversão ou repugnância, 3. indispor ou intrigar,
4. ter, sentir raiva de si mesmo. Antônimo: amar.
A esta definição segue, ódio:
1. Rancor profundo que se sente por alguém ou por alguma coisa.
2. Aversão, raiva.
3. Antipatia. Antônimo: amor, afeto.
Apesar da frequente utilização de agressividade, ódio e destrutividade como
sinônimos, Green11 faz uma diferenciação entre agressividade e destrutividade. Uma
mesma distinção é formulada por Barros12, que problematiza a consideração de
ambas as palavras como equivalentes, pois a autora defende uma positividade do
ódio, como fator de afirmação subjetiva. No final de sua obra, Freud considerava a
agressividade e a destrutividade como externalizações da pulsão de morte fusionada
a Eros. Assim, este autor aproxima os dois conceitos ao pulsional.

8 BARROS, M. N. C. A trama paradoxal do ódio no psiquismo. Tese de Doutorado, Universidade


Católica de Pernambuco, Recife, 2013.
9 HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em: https://houaiss .uol.com.br

/pub/apps/www/v5-2/html/index.php#1. Acesso em: 20 jan. 2020.


10 DICIONÁRIO Prático da Língua Portuguesa Michaelis. São Paulo: Melhoramentos, 2010.
11 GREEN, A. Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago, 2008.
12 BARROS, op. cit.
18

Para Green13, a agressividade está vinculada às fases libidinais, por exemplo,


sádica oral ou sádica anal, nas quais é possível observar um claro desejo de controle
absoluto e uma vontade de submetimento do objeto. Por outro lado, a destrutividade
não implica prazer inconsciente, tendo uma dimensão narcísica, com predomínio da
onipotência, objetivando a destruição do narcisismo do objeto e a negação dele.
Assim, nessa perspectiva, a agressividade estaria relacionada à sexualidade e a
destrutividade mais ligada a pulsão de morte/ narcisismo, se optarmos por uma linha
de pensamento que deseje diferenciar agressividade de destrutividade. O autor em
questão desenvolve uma ferramenta conceitual, o narcisismo de morte, mais
articuladora e muito rica para pensar a questão desta pesquisa, que será apresentado
no último capítulo.
Por outro lado, como veremos adiante, Richard Simanke14 e outros autores,
como Renato Mezan15, tentam diferenciar agressividade de sadismo.
Seguindo a mesma tendência, Caper16 considera que é uma tentativa infeliz de
dar inteligibilidade à pulsão de destruição considerá-la como equivalente à
agressividade. Afirma este autor:
Mas a agressividade não é inerentemente destrutiva em si mesma: afinal, é
possível defender a própria vida ou a vida dos entes amados e, nesse caso,
a agressividade está à serviço da vida, não da morte. Confundir a pulsão
destrutiva com agressividade não faz justiça a nenhum dos dois.17

Em sua obra Paranoia, Renata Cromberg diferencia afeto de sentimento, sendo


o primeiro relacionado à pulsão e o segundo, uma manifestação. Assim, pode-se dizer
que não é a pulsão que sente. Ela é constituída por dois elementos: um afeto e uma
representação. Para a autora: “Poderíamos dizer que os sentimentos ligados ao afeto
de ódio seriam a irritação, a raiva, a ironia, o cinismo, etc. Amor e ódio formam um par
constante, no qual um pode se transformar no outro, como destino pulsional”.18
Na mesma tentativa, Minerbo19 propõe uma diferenciação da raiva e do ódio a
partir da localização e função da hostilidade no psiquismo. Enquanto o ódio relaciona-
se às falhas do objeto primário, pela possibilidade da vivência de angústias primitivas,

13 GREEN, A. Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago, 2008.
14 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio
– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.
15 MEZAN, R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
16 CAPER, R. Inveja, narcisismo e a pulsão destrutiva. In: ROTH, P.; LEMMA, A. (Orgs.).

Revisitando “Inveja e Gratidão”. São Paulo: Blucher, 2020.


17
Ibidem, p. 81.
18 CROMBERG, R. U. Paranoia. 3.ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006, p. 214.
19 MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
19

a raiva não visa aniquilar o objeto, apenas equivale a uma descarga de intensidade,
não se configurando como uma defesa. Ela pode mobilizar, pois é resultado da
impossibilidade da vivência de prazer e, por isso, relaciona-se ao desejo. No ódio, é a
sobrevivência do Eu que está ameaçada, segundo a autora. Essa concepção será
utilizada na análise do ódio presente na personagem Kevin, no Capítulo 4.
Nos quadros de não neurose, Minerbo20 afirma que o ódio permanece não
integrado. Eles se aproximam mais de um funcionamento psicótico, mesmo que
transitório21. Green propõe a expressão “casos limites” e os situa no limite da psicose,
mas os diferencia dela, assim como faz em relação à neurose. Tais casos não se
relacionam a um quadro nosográfico específico, mas contemplam específicas formas
de funcionamento psíquico, onde predominam fortemente a cisão, o ato e o não
representável.
No funcionamento não neurótico, Minerbo considera que não há contenção da
violência pulsional predominante no psiquismo. Na neurose, a frustração é
responsável pela agressividade; já nas mentes não neuróticas, há um funcionamento
primitivo relacionado ao ódio, à pulsão de morte e à destrutividade, que ficam em
posição primária. Na mesma direção desta autora, Falcão22 e Ferrari Filho23
reconhecem a vertente patológica do ódio relacionando-o à pulsão de morte, ao
narcisismo e a falhas do objeto primário.
É importante ressaltar que as visões desses autores não contemplam a análise
do ódio na dinâmica edipiana. Nela, tem-se desejo, amor e ódio relacionados a ambos
os genitores (ou figuras materna e paterna). Mesmo que haja uma discussão restrita
ao pré-edípico, os autores em questão trazem importantes considerações para se
pensar a psicopatologia.
Kernberg apud Simanke24 considera os afetos condicionadores de ações
humanas e afirma que é na forma extrema de agressão que o ódio aparece como

20 MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.


21 A autora prefere analisar os quadros a partir de modos específicos de vinculação intersubjetiva e
subjetivação. Eles são desenvolvidos a partir das vivências singulares e do estabelecimento de
defesas frente ao sofrimento. Assim, ela se aproxima da ideia kleiniana de modo de funcionamento
psíquico. Minerbo também deixa clara a inexistência de uma suposta hierarquia da neurose sobre a
não-neurose, que pode manifestar-se temporariamente no funcionamento psíquico de todos nós.
22 FALCÃO, L. O ódio, a nova ação psíquica e a progressiva complexidade narcísica – Revista de

Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, Vol. 3, n. 24, 2017.


23 FERRARI FILHO, C. A. Odeio, então existo! Fanatismo, uma linguagem (possível?) ao narcisismo

de morte – Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, Vol. 3, n. 24, 2017.
24 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio

– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.


20

predominante. Assim como a violência, o ódio decorre da intensificação da raiva, afeto


que promove ações agressivas, mas defensivas. Na mesma linha dos outros autores,
não considera a agressão negativa em certos limites.

Cromberg25 aponta para consequências patológicas da ausência do ódio na


subjetividade. Tal ideia é reafirmada por Barros26, que também se utiliza da
experiência clínica para descrever o duplo sentido no ódio, pois, paradoxalmente,
além da destrutividade, ele se relaciona à estruturação do psiquismo, bem como de
sua preservação, relacionado à criatividade e saúde. Em função disso, a mesma
autora discute a incoerência da consideração de ódio e destrutividade como
sinônimos. Simanke27 propõe algo semelhante às autoras, ampliando tal ideia,
reconhecendo três modalidades de subjetivação frente ao ódio e à necessidade de
sua superação: os incapazes de odiar, que revelam uma insuficiência egoica; os
fixados no ódio, revelando adesão do ego ao objeto; e os que vivenciam e superam o
ódio, com o ego mais desenvolvido e que alcançam a capacidade de perdoar.
Na mesma direção, Stitzman28 considera a retirada do ódio importante prejuízo
ao desenvolvimento individual. Este autor a compara ao processo de mutilação emocional,
destacando o lado nocivo disso.
Será que é possível, assim, considerar maior destrutividade quando há
predomínio da pulsão de morte no psiquismo e isso tornaria o ódio patológico, como
propõe Minerbo29? Por outro lado, a preponderância de Eros coloca a agressividade
a serviço do Eu, da manutenção da sua integridade e limites dos seus contornos? Foi
apenas com este aspecto do narcisismo vinculado à pulsão de vida e à sobrevivência
que Freud permaneceu em sua teoria.
No texto Além do bem e do mal, Simanke30 também propõe uma diferenciação
das formas construtivas e destrutivas do ódio, destacando que a positividade do afeto
na primeira modalidade garante importante conquista adaptativa, a partir da
integração da agressividade, embora não negue os aspectos ligados à destrutividade

25 CROMBERG, R. U. Paranoia. 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.


26 BARROS, M. N. C. A trama paradoxal do ódio no psiquismo. Tese de Doutorado, Universidade
Católica de Pernambuco, Recife, 2013.
27 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio

– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.


28 STITZMAN, L. Framework: ódio, áreas de vibrância: ideias para psicanalistas – Revista de

Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, Vol. 24, n. 3, 2017, p. 462.


29 MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
30 SIMANKE, op. cit.
21

e à psicopatologia. Assim, ele propõe adjetivar o ódio e também a investigação desse


afeto nas relações intersubjetivas, na vertente psicopatológica. Na mesma direção,
Zimerman31 32 diferencia agressividade construtiva da destrutiva, considerando a
dimensão quantitativa da agressividade na violência.
Simanke33 apresenta uma interessante e resumida análise filosófica sobre o
ódio, baseado em Keith Green, que reconhece quatro teorias do ódio: em São Tomás
de Aquino, Spinoza, Nietzsche e Freud. Em concordância, os dois primeiros não
aceitam moral e racionalmente o ódio, que é considerado paixão básica, primária, por
Nietzsche e Freud34. A aproximação de Simanke sobre o estatuto do ódio na filosofia
convidou-me a fazer um levantamento sobre meu tema de pesquisa no Dicionário de
Filosofia, de Nicola Abbagnano35, onde curiosamente também não há nenhum verbete
sobre ódio e destrutividade. Limitei-me a não entrar mais nesta disciplina, pois me
afastaria do objetivo desse trabalho. Contudo, chama a atenção, mais uma vez, a
ausência deste verbete em um dicionário especializado e muito conhecido.
Foram utilizados os dicionários de Laplanche e Pontalis, e o de Hinshelwood,
mesmo na ausência de um verbete específico sobre o ódio, pesquisando os verbetes
a ele relacionados. No primeiro, a pesquisa ficou limitada ao conceito na perspectiva
freudiana, enquanto o segundo já é um dicionário específico da psicanálise kleiniana.
Por enquanto, segue a questão: se há uma condenação do afeto, como explicar
atualmente (e não somente) sua ampla disseminação, divulgação discursiva
e atuações de ódio? A ideia do narcisismo fornece um importante elemento para
pensar sobre essa questão, que será melhor desenvolvida nas páginas seguintes
através da noção de “narcisismo das pequenas diferenças” e da noção de ódio enquanto
“paixão” do ser.

31 ZIMERMAN, D. Os quatro vínculos. Porto Alegre: Artmed, 2004.


32 Zimerman propõe, além da existência dos três vínculos formulados por Bion (amor, ódio e
conhecimento), um quarto vínculo: o do reconhecimento.
33 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio

– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.


34 Existe uma dúvida se Freud teve ou não acesso à obra de Nietzsche, produzida anteriormente à sua.

Mas,convém relembrar que a filosofia trata das questões ligadas à razão e consciência, das quais
Freud claramente afasta-se com a concepção de inconsciente.
35 ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
22

1.2 Contextualizando o ódio

“A razão, quando deixa de ser crítica e se torna


apenas instrumental, em vez de iluminar, produz
seus monstros, a barbárie da qual ela gostaria tanto
de poder tomar distância.” (Cromberg)

O intuito da primeira parte deste capítulo é buscar referências que possam fazer
pensar as contemporâneas livres manifestações de ódio nos contextos político e
social, não apenas no Brasil, já que no início da elaboração desse projeto havia uma
polarização destrutiva e agressiva em relação às eleições presidenciais. Em
2020/2021, o mesmo afeto reaparece na polarização das ideias no contexto de uma
pandemia de coronavírus. Pessoas que agridem as que optaram por permanecer em
reclusão, que utilizam máscaras de proteção, ao saírem de casa, manifestantes que
participam de carreatas contra o governo que define o fechamento do comércio e a
manutenção da quarentena. Brasileiros que banalizam a pandemia, ignoram
ostensivamente as regras de isolamento social e agem através de sua ira contra os
cidadãos que não se alinham à postura do governo federal. A mesma polarização
política e intolerância reaparecem em uma situação diferente, mas com a mesma
dinâmica. Sem falar nos ataques racistas ocorridos nos Estados Unidos, em 2020, e
na invasão ao Capitólio, em 2021, por parte de pessoas que não aceitavam o resultado
de uma eleição democrática.
As referências a seguir, ainda que se afastem dos autores principais que serão
a base da análise do ódio na clínica, oferecem contribuições importantes para o estudo
da relação entre narcisismo e ódio no âmbito coletivo.
Assim, Rosa, Alencar e Martins36 destacam a pobreza do debate político nas
eleições de 2014, com visível polarização, a mesma tendência, que, de maneira mais
acentuada, ocorreu em 2018, quando a explicitação de manifestações de ódio por
parte de um dos candidatos, além de intensificar posicionamentos polarizados radicais
e, consequentemente, conflitos, trouxe muita hostilidade, medo e sofrimento. Esse tipo
de discurso permitiu uma identificação coletiva pela via do ódio. Thaler37 destaca que
existem períodos da história com maior exacerbação do ódio e Koltai aponta para a

36 ROSA, M. D.; ALENCAR, S.; MARTINS, R. Licença para odiar: uma questão para a psicanálise e a
política. In: ROSA, M. D.; COSTA, A. M. M.; PRUDENTE, S. (Orgs.) As escritas do ódio – psicanálise
e política. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2018.
37 THALER, L. Editorial da Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre,

n. 3, Vol. 24, 2017.


23

exclusividade do ódio e por ele ser mobilizado em seu desejo, quando se refere ao
totalitarismo, que “requer o ódio como cimento do laço social”.38
Rosa, Alencar e Martins39 discutem as consequências negativas da
operacionalização política pela via das paixões, em detrimento do pensamento,
através do ódio. Tal modalidade de paixão, em função da sua natureza narcísica
(assim como as demais), prejudica a função civilizatória – pela autorização da
manifestação livre do ódio –, pois aniquila-se o outro, não havendo uma experiência
com ele. Isso se relaciona à lógica paranoica, onde um outro mau precisa ser
destruído para a preservação do sujeito. Tal premissa não leva em conta que o mais
odiado no outro está igualmente presente em si. A presença do outro da diferença
perturba a noção de completude imaginária e, por essa razão, ele presentifica o mal.
Como destaca Koltai40: “[...] o ódio de si está na raiz do ódio do outro e da sociedade,
levando o sujeito a rejeitar sua própria miséria psíquica sobre um outro, transformado
na causa de todos os seus males”.
Alguns autores, como Simanke41, Koltai42, Rosa, Alencar e Martins,43 apontam
para fatores como desilusão, frustração e desesperança política como elementos que
explicam o surgimento do ódio no contexto coletivo, sendo ele uma resposta a tais
sentimentos. Koltai44 define o “etos do rancor” em oposição e como resposta ao sonho
de emancipação individual e coletivo perdido e o relaciona às políticas do ódio,
marcadas pela descrença e pelo desprezo pela política, manifestos nos ataques às
instituições que garantem a democracia e a forma política da sua expressão. A mesma
autora levanta a hipótese de um estado melancólico social, consequência da ausência
do luto dos sonhos de progresso do século XIX que foram perdidos. Neste contexto,
a crueldade melancólica presente na violência contra o outro, com o qual o
melancólico está identificado, também aparece nos discursos de ódio na esfera social.
Desde Freud já se sabe que a melancolização decorre da incapacidade para a
realização de luto.

38 KOLTAI, C. O ódio na política, políticas do ódio. In: ROSA, M. D., COSTA, A. M. M.; PRUDENTE, S.
(Orgs.) As escritas do ódio – psicanálise e política. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2018, p. 261.
39 ROSA, M. D.; ALENCAR, S.; MARTINS, R. Licença para odiar: uma questão para a psicanálise e a

política. In: ROSA, M. D.; COSTA, A. M. M.; PRUDENTE, S. (Orgs.). As escritas do ódio –
psicanálise e política. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2018.
40 KOLTAI, C., op. cit., p. 260.
41 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio

– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.


42 KOLTAI, op. cit.
43 ROSA; ALENCAR; MARTINS, op. cit.
44 KOLTAI, op. cit.
24

Autores lacanianos, como Rinaldi,45 trazem a esse debate a relação entre as


paixões do ser (amor, ódio e ignorância) e os registros (real, simbólico e imaginário).
O ódio situa-se na intersecção entre os registros imaginário e real. Excluindo o
simbólico, o sujeito permanece nesse primeiro, preso à ignorância e aderido ao ódio.
Como definem Roudinesco e Plon, no Dicionário de psicanálise, o imaginário46
relaciona-se ao Eu narcísico e seus atributos como ilusão e alienação, da união com
o corpo da mãe. Está ligado ao “estádio do espelho”, formulado por Lacan, e à sua
relação dual com o semelhante, ou melhor, com sua imagem.
Explicam Roudinesco e Plon que esse estádio corresponde à:
Expressão cunhada por Jacques Lacan, em 1936, para designar um
momento psíquico e ontológico da evolução humana, situado entre os
primeiros seis e dezoito meses de vida, durante o qual a criança antecipa o
domínio sobre sua unidade corporal através de uma identificação com a
imagem do semelhante e da percepção de sua própria imagem num espelho.47

Lacan48 considera que há um mecanismo de constituição do Eu mediado pela


figura materna; assim, o Eu se forma a partir do outro, em uma experiência alienante
de aprisionamento, pois a prematuração com a qual uma criança nasce a impede de
constituir uma unidade, que é conquistada a partir de uma ação de espelhamento. A
constituição se dá por uma imagem, logo, no campo do imaginário, com a participação
de uma figura materna. Esse texto refere-se à passagem do autoerotismo ao
narcisismo. Para Lacan49, a agressividade é uma tentativa de diferenciar-se do outro
e ao qual se está alienado. Ela não é consequência da frustração, mas corresponde
a um processo de separação, pois, a partir da experiência alienante, o Eu se torna
aprisionado50. Assim, podemos pensar também em um processo constitutivo de
separação, posterior à identificação imaginária e primária. Como afirma Simanke51,
relacionando a presença do outro e o narcisismo: “o outro imaginário é o protótipo

45 RINALDI, D. O discurso do ódio, uma paixão contemporânea. In: ROSA, M. D.; COSTA, A. M. M.;
PRUDENTE, S. As escritas do ódio – psicanálise e política. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2018.
46 Lacan formulará esse registro nos anos 50, já a ideia do estádio do espelho é produzida

anteriormente.
47
ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 194.
48 LACAN, J. (1949) O estádio do espelho como formador da função do eu. In: LACAN, J. Escritos. Rio

de Janeiro: Zahar, 1998.


49 Idem (1948) A agressividade em psicanálise. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro:

Zahar,1998.
50 Dias propõe que o ódio em uma análise deva estar a serviço da desalienação. Ele propõe a vivência

de uma primeira manifestação transferencial negativa, marcada pela hostilidade. A partir dela que
virá uma transferência positiva. In: DIAS, M. M. Os ódios: clínica e política do psicanalista. São
Paulo: Iluminuras, 2012.
51 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio

– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019, p. 136.


25

primordial do ego”. Para o autor, Lacan diferencia-se assim da explicação pulsional


de Freud e discorda da noção de agressividade mais adaptativa, relacionada às
pulsões do ego. Segundo Simanke: “[...] a destrutividade humana, sobretudo aquela
voltada para o seu semelhante, se explicaria pelas origens imaginárias do sujeito
numa relação inextricável de identificação e rivalidade mortífera com o outro”.52
O autor diferencia um “mal-estar na cultura” lacaniano que difere da mesma
noção em Freud, que será explicado a seguir. Para este, o mal-estar é consequência
da pulsionalidade em conflito. Dentro da perspectiva lacaniana, a relação com o objeto
primário é de natureza paranoica, imaginária, o que revela a precocidade do ódio.
Como destaca Broide53, o ódio pode apresentar-se não apenas com o objetivo
de eliminar o outro, pode almejar seu rebaixamento, sua submissão, ferindo o
narcisismo do outro, alimentando mutuamente o ódio da dupla. Verificamos esta
tendência nos conflitos sociais e políticos marcados pela polaridade absoluta
mencionados anteriormente. O ódio está na base da homofobia, do racismo e da
misoginia, tão combatidos e muito presentes na atualidade.
Considerando a teoria dos registros, a identificação imaginária está relacionada
à agressividade e é este registro, o imaginário, responsável pelo desejo da eliminação
do outro, com a aproximação do real da diferença. Atualmente, o fundamentalismo de
base paranoica intensificado aparece no discurso totalizante e reducionista, no qual
prevalecem certezas e verdades absolutas simplificadoras e que servem para excluir
qualquer convívio com a diversidade, permitindo a livre expressão e até atuação do
ódio.
Articulando melhor os conceitos, a dimensão imaginária da verdade plena e da
perfeição narcísica está relacionada à noção de Eu ideal, o do narcisismo, base do
sentimento de onipotência, com todo seu potencial destrutivo. Lacan vai diferenciá-lo
do Ideal do eu, uma das funções do superego. Esta instância é herdeira da passagem
pelo complexo de Édipo, que dá acesso à Cultura e ao universo simbólico.
O mal radical fica localizado no outro externo, no externo e se usa a hostilidade
discursiva nas comunicações de extrema violência feitas na internet, nas notícias
falsas, que transformam mentiras em pseudoverdades e direcionam mais facilmente

52 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio
– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019, p. 136.
53 BROIDE, E. E. O que é o ódio? De onde ele vem? In: Rosa, M. D.; COSTA, A. M. M.; PRUDENTE,

S. (Orgs.) As escritas do ódio – psicanálise e política. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2018.


26

o ódio, como considera Rinaldi. As redes sociais agem também, com a exclusão do
simbólico, seguindo a lógica da identificação imaginária e, por essa razão, criam um
solo fértil às manifestações do ódio. Com sua função mediadora, a fala fica ausente e
usa-se violentamente as palavras de acordo com essa autora. Afirma Rinaldi:
Sob o manto da ‘rede’ pode-se dizer qualquer coisa, na tentativa de destruir
o outro, caluniá-lo, sem responsabilização nem compromisso com a verdade,
porque a verdade passa a ser aquela que um número grande de pessoas
‘curtiu’ e/ou repassou para seus ‘amigos’.54

Na mesma direção, mas acrescentando a dimensão pulsional à agressividade


e ao ódio, afirma Fulber55 que a internet é utilizada de maneira a canalizar o ódio e a
pulsão agressiva para o exterior. A autora também explica esses fenômenos a partir
da ausência do registro simbólico. Da mesma forma, Boianowsky56 também considera
esse ambiente mais permissivo à manifestação perversidade e do ódio, desvinculada
do pensamento e da crítica. Segundo o pensamento da autora, na crise civilizatória
atual, há inimigos, ódio, mentiras, que configuram uma realidade paralela aos
intolerantes que almejam verdades absolutas e soluções simplificadas.
Dias57 propõe a transformação das vociferações desta tendência estéril e
destrutiva em vozes, como elemento da estrutura política democrática, que implica a
coexistência da diferença e que permite ao ódio ocupar o lugar de indignação, através
da linguagem e da via discursiva. Como afirma o autor, as vociferações envolvem
discursos radicais potencialmente destrutivos, que têm veracidade pela presença do
ódio e se satisfazem através da violência. É como se o grito criasse uma verdade a
ser imposta ao outro. De maneira alternativa, o ódio da indignação é capaz de superar
essa tendência, permitindo a experiência com um outro. Assim, Dias 58 propõe um
reposicionamento, retirando a palavra do meio dos gritos, onde ela e a
singularidade se perdem.
Apesar de Freud apostar na prevalência das forças intelectuais sobre as
pulsionais, Koltai59 considera que isso não foi possível e destaca o surgimento do

54 RINALDI, D. O discurso do ódio, uma paixão contemporânea In: ROSA, M. D.; COSTA, A. M. M.;
PRUDENTE, S. (Orgs.). As escritas do ódio – psicanálise e política. São Paulo: Escuta/FAPESP,
2018, p. 37.
55 FULBER, V. G. Retórica de ódio, cultura e pulsão. Estudos de psicanálise, Vol. 51, Belo Horizonte,

2019.
56 BOIANOVSKY, D. Mais uma vez, por que a guerra? Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP,

Vol. 54, n. 1, 2020.


57 DIAS, M. M. O retorno das vociferações. In: ROSA, M. D.; COSTA, A. M. M.; PRUDENTE, S. (Orgs.)

As escritas do ódio – psicanálise e política. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2018.


58 Ibidem.
59 KOLTAI, C. Totem e tabu – Um mito Freudiano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
27

fanatismo religioso, que na sua dimensão narcísica acaba por desumanizar os infiéis,
pois propaga ódio aos que permanecem do outro lado: “do mal e do pecado”,
rompendo com a possibilidade de uma pluralidade discursiva ou um Estado laico e
democrático. Esta visão maniqueísta polariza a política e parte da sociedade brasileira
contemporânea.
A proposta freudiana acima permitiria manter as conquistas da civilização, dada
a impossibilidade da eliminação da pulsão destrutiva e, como consequência, torna-se
incompatível a articulação dos princípios éticos à dinâmica pulsional. Desta forma, o
ódio relaciona-se tanto ao individual presente na clínica psicanalítica quanto ao
social. Vários autores propõem a análise desta dupla vertente, como Broide60 e Rosa,
Alencar e Martins61.
Após a apresentação das ideias de diferentes autores, tem-se a seguir a análise
dos textos sociais de Freud, com destaque à questão do ódio no aspecto pulsional e
no narcisismo, assim como na visão lacaniana, em que imaginário, agressividade e
ódio relacionam-se ao Eu, portanto, ao narcisismo.

1.3 O ódio nos textos sociais de Freud

Freud, sempre que possível, trazia seus conhecimentos teóricos, construídos a


partir da experiência clínica, para a análise da sociedade e da Cultura. Sendo o
homem inserido em uma sociedade, Freud defende a inexistência da psicologia
individual desvinculada da grupal, pois a primeira é necessariamente social, na
medida em que indivíduos encontram-se sempre na e em relação a outros, que são
objetos de amor-ódio. Em função desse posicionamento, Freud abordou o ódio, a
agressividade e a destrutividade em vários de seus textos sociais.
Situando-os em ordem cronológica, considera-se significativa a presença do
ódio em Totem e Tabu, texto que explica a passagem à Cultura, a partir do mito62 63

60 BROIDE, E. E. O que é o ódio? De onde ele vem? In: ROSA, M. D.; COSTA, A. M. M.; PRUDENTE,
S. (Orgs.). As escritas do ódio – psicanálise e política. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2018.
61 ROSA, M. D.; ALENCAR, S.; MARTINS, R. Licença para odiar: uma questão para a psicanálise e a

política. In: ROSA, M. D.; COSTA, A. M. M.; PRUDENTE, S. (Orgs.). As escritas do ódio –
psicanálise e política. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2018.
62 Com relação ao estatuto mitológico de Totem e tabu, Rego Barros o reafirma na medida em que o

mito é uma tentativa para explicar uma impossibilidade. Ele questiona: “[...]como os orangotangos,
como os chamava humoristicamente Lacan, se reuniram para matar o pai, se eram pré-humanos?
Ou seja, em torno de que aliança simbólica se poriam de acordo?” In: BARROS, R. R. Compulsões
e Obsessões: uma neurose de futuro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 88.
63 Zimerman cita a presença do ódio em vários mitos além do Édipo. Tais narrativas revelam para o

autor pulsões, fantasias, conflitos e sentimentos. O mesmo autor considera que eles estão para a
28

que a funda e do tabu do incesto. Como destaca Koltai64, Freud tinha muita simpatia
por esta obra65, apesar dela ter sido alvo de críticas, pois havia realizado uma
pesquisa a partir de autores da Antropologia66 para relacionar conceitos dela ao
Complexo de Édipo, fenômeno que esse autor já defendia a existência de maneira
universal, desde a carta 71 endereçada a Fliess, em 1897 até o final da sua obra,
como afirma Koltai. Freud nunca alterou as ideias de Totem e tabu e as resgata mais
de uma vez em outros textos, como descreverei mais adiante, neste capítulo.
Freud67 defende a ideia de que fatos ancestrais, a partir de uma situação
consumada na horda primitiva, são herdados e permanecem vivos em nosso
inconsciente, na fantasia e no desejo parricida e incestuoso. O autor parte da noção
de horda – extraída de Darwin68 – que era uma forma de organização, onde os filhos
estavam submetidos a um pai violento e cruel, sem acesso às mulheres do grupo.
Este pai é o que institui uma forma de lei, mas da qual ele próprio permanece excluído.
Tomados pelo ódio, eles realizam o assassinato paterno e, em seguida, alimentam-se
do pai. Devorando-no, eles incorporam69 e se identificam com seus atributos. O crime
praticado pelos irmãos não foi seguido da ocupação do lugar paterno por um
substituto. Após o ato surge a culpa e o pai torna-se mais presente e poderoso, passa
a ser amado, permitindo o surgimento da ambivalência. Essa culpa faz-se presente
no totemismo, enquanto primeira forma de religião, na Cultura fundada e no neurótico.
Para Freud, cada um dos totens instituídos – cada qual uma representação do pai da
horda – fica como seu substituto, que é temido, venerado e respeitado, mas também
odiado. A partir dessas criações, formam-se grupos distintos (clãs), cada qual
submetido e caracterizado por um totem, assim como a necessidade da exogamia,

humanidade assim como o sonho está para o indivíduo. In: ZIMERMAN, D. Os quatro vínculos.
Porto Alegre: Artmed, 2004,
64 KOLTAI, C. Totem e tabu – Um mito Freudiano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 39.
65 Strachey considera que Freud passa de um estado anterior de hesitação em relação a essa obra à

consideração de que ela representa sua melhor produção, em 1921, chegando a citá-la em sua autobiografia.
66 Koltai (2010) desenvolve um capítulo onde resgata toda a discussão envolvendo Psicanálise e

Antropologia, simpatias e antipatias às hipóteses freudianas de 1913. O capítulo pode ser lido na
íntegra em Totem e tabu – Um mito freudiano.
67 FREUD, S. (1913 [1912-1913]) Totem e Tabu. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras

Completas de Sigmund Freud. Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.


68 O apego de Freud à biologia, presente tanto em Totem e Tabu quanto em Além do princípio de

prazer, talvez nos fale da sua necessidade de que a psicanálise fosse considerada como Ciência e
é alvo de crítica de muitos autores psicanalistas.
69 Com relação ao conceito da incorporação, Freud o caracteriza como relacionado à fase oral sendo

um fim sexual provisório, forma de amor com identificação ao objeto, sendo ambivalente. Tal
modalidade de identificação está presente na gênese da melancolia, descrita por Freud em 1917.
29

pois relações sexuais entre “irmãos” do mesmo grupo são proibidas e passíveis de
punição.
Na presente obra, Freud70 relaciona o primitivo ao neurótico e à criança, com
base na análise do pequeno Hans, onde esse autor constatou os desejos incestuosos
e assassinos do garoto em relação ao pai e o deslocamento – como mecanismo de
funcionamento do inconsciente – da imago paterna ao animal, como se dá no
totemismo. Para Koltai71, tal constatação nos aproxima da origem comum do totem e
do Édipo, que carrega a recordação do crime praticado contra o pai da horda e a
história do individual da neurose, mas eles se diferenciam, pois o neurótico fantasia
aquilo que o primitivo colocou em ato, no lugar da ideia.
A neurose obsessiva é trazida por Freud para exemplificar a presença do tabu
na patologia, em que a forte ambivalência dessa psiconeurose – marcada pela
hostilidade inconsciente dirigida ao objeto também amado – faz-se presente nas fortes
proibições e nos desejos simultâneos de realizar as transgressões. O autor72 analisa
a palavra tabu, que já carrega em si um duplo significado: puro (sagrado) e impuro
(proibido), enquanto formação social, pautada na sobrenaturalidade, na superstição,
fazendo-se presente em todas as religiões. O tabu representa uma defesa frente ao
ódio, pois o caráter perseguidor da alma do morto é consequência da projeção hostil nele.
Freud73 propõe a existência de uma escala na compreensão humana sobre o
mundo, onde inicialmente haveria o animismo, a onipotência do pensamento mágico,
submetendo a natureza a si e relacionada ao narcisismo, seguida da religiosidade –
que não abandona o estágio anterior – e pode ser comparada à dependência infantil
da criança ao pai – com forte ambivalência afetiva – e, por fim, a ciência, com o
predomínio da maturidade, da aceitação da realidade. Se considerarmos esta
perspectiva, as manifestações anticiência e negacionistas da realidade na atualidade
revelam formas primárias e infantis de visão do mundo por parte de seus apoiadores.
Totem e tabu propõe a origem da religião, a partir da criação de outra versão
paterna, a que protege e não desampara seus filhos, mas nela pode-se encontrar a
expressão da ambivalência, onde o amor entre iguais aparece, ao mesmo tempo em

70 FREUD, S. (1913 [1912-1913]) Totem e Tabu. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
71 KOLTAI, C. Totem e tabu – Um mito Freudiano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
72 FREUD, op. cit., p. 111.
73 Ibidem
30

que a hostilidade é dirigida aos outros, externos ao grupo. Tal ideia também aparecerá
no texto sobre as massas e na noção de “narcisismo das pequenas diferenças”.
Freud74 formulará a instância supereu dez anos depois e afirmará que ele
apresenta proibições, como o tabu dos primitivos, pois experiências do Eu seriam
incorporadas ao Isso, após repetições em sucessivas gerações75, garantindo uma
herança da espécie. Freud apresenta essa filogênese – que se faria presente na
ontogênese – em vários momentos de sua obra e Giovacchini qualifica positivamente
esse “lamarckismo” nas ideias freudianas. Para o autor:
Freud era um lamarckiano. Acreditava na hereditariedade dos traços
adquiridos, mas indagava de que modo isso seria possível em termos da
estrutura psíquica proposta em sua hipótese. Concluíra que depois de
repetidas por sucessivas gerações, as experiências do ego terminam
incorporando-se ao id e se tornando parte da herança da espécie. Esses
elementos agora constitucionais contribuem para a formação do superego.
As proibições originárias, exemplificadas nos tabus primitivos, estão
incorporadas ao superego moderno. Quanto ao ego, Freud postulou que o
superego talvez esteja “revivendo formas de egos anteriores e trazendo-as à
ressurreição”. Embora a moderna teoria da evolução rejeite a perspectiva
lamarckiana, nem por isso as ideias freudianas deixam de apresentar
interesse (...) As ideias de Freud podem ser fantasiosas, mas o estudo do
superego, através da análise de pacientes sofrendo de estados mentais
primitivos, frequentemente revela qualidades tão arcaicas, que caberia
perguntar se elas são resultado da ontogenia ou da filogenia.76

Com relação a Totem e tabu, algumas considerações podem ser feitas, se


retomarmos a questão do ódio. É ele que está na origem da Cultura, sendo primário,
permitindo a constituição dela, que também nos protege do ódio do outro, ideia que
Freud desenvolverá melhor futuramente, nos anos 1930. Foi a partir do ato odioso e
violento que o amor entre os irmãos encontrou caminho para aparecer. A fraternidade
cria um novo pacto que garante a autopreservação e a hostilidade seria deslocada
para fora da horda, do coletivo. Cito Freud:
Seus filhos o odiavam, mas também o amavam. Depois que o ódio foi
satisfeito pelo ato de agressão, o amor veio para o primeiro plano, no remorso
dos filhos pelo ato. Criou o superego pela identificação com o pai; deu a esse
agente o poder paterno, como uma punição pelo ato de agressão que haviam
cometido contra aquele, e criou as restrições destinadas a impedir uma
repetição do ato. 77

74 FREUD, S. (1923) O ego e o id. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas
de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
75 Fulber parte desta ideia do supereu transmitido através de gerações e explica a agressividade do

superego dominador e sádico – derivado da mesma instância dos pais – para pensá-lo na sociedade
brasileira escravocrata, sádica e dominadora. In: FULBER, V. G. Retórica de ódio, cultura e pulsão.
Estudos de psicanálise, Vol. 51, Belo Horizonte, 2019.
76 GIOVACCHINI, P. Roteiro à leitura de Freud. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985, p. 163.
77 FREUD, S. (1930) O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras

Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 135.
31

Partindo dessa premissa da anterioridade do ódio em relação ao amor, Freud


contraria sua tese anterior de que o amor é primário. Ele formulará melhor a noção da
precocidade do ódio dois anos depois no texto sobre as pulsões.
No texto social Reflexão para os tempos de guerra e morte, Freud78 discute a
mudança da atitude em relação à morte durante o período da guerra. Questiona o
valor que é dado à vida pelas diferentes nações, separadas pelo ódio e se mostra
desiludido frente a isso. Para Freud, fica evidente o ódio de um povo em relação a
outro que, embora civilizados, desconhecem-se mutuamente.
Segundo o autor, a violência só cabe ao Estado, ao qual os cidadãos estão
submetidos como uma criança, que aceita as arbitrariedades em nome do patriotismo,
mas é, na barbárie, que o homem dá vazão ao ódio, à violência individual que foi
reprimida pela educação. Para Freud, a pulsionalidade sofre alguns destinos, como a
sublimação, formação reativa, inibição e os instintos egoístas são modificados pelo
erotismo, ao longo do desenvolvimento. Assim, a mudança se dá a partir de
mecanismos de natureza interna, mas a educação também fornece sua contribuição.
Como os instintos apresentam-se em pares de opostos, a ambivalência – que já fora
identificada e definida por Freud no estudo da neurose obsessiva e em Totem e tabu
– possibilita a formação reativa.
Apesar de a renúncia ter possibilitado a civilização, os instintos encontram
oportunidades de satisfação temporária, como na guerra. Em outras palavras, na
supressão da censura, há liberação da crueldade e da violência. Recorrendo à noção
e à possibilidade da regressão, Freud afirma que o arcaico e primitivo do humano não
desaparece, coexistindo nos estágios posteriores do desenvolvimento. Para o autor,
o ódio mútuo permanece mesmo em períodos em que a guerra não está presente.
Na segunda parte do texto descrito, Freud retornará a outros pontos de Totem
e tabu, quando compara a reação do homem civilizado e do primitivo em relação à
morte. No inconsciente não há registro da morte, ele desconhece a negação e nele
opostos podem coexistir. Por outro lado, no homem primitivo, ao mesmo tempo que
há uma rejeição a ela, também permanece o desejo da morte do outro. A ambivalência
é mais acentuada nele – que permanece no inconsciente do homem civilizado, assim
como o desejo de matar o estranho, que pode ser qualquer outro. Ou seja, há sempre

78 FREUD, S. (1915) Reflexões para os tempos de guerra e morte. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
32

ambivalência em relação aos objetos amados e próximos, que correspondem ao


outro, estranho, ao mesmo tempo que não há noção da própria morte. Por fim, Freud
propõe a potencialidade sempre presente da guerra.
Alguns anos depois, Freud irá se ocupar da psicologia grupal, assim como a
influência do líder nas formações coletivas em Psicologia de grupo e análise do ego.
Neste texto, Freud79 baseia-se em outros teóricos, como Gustave Le Bon80 e
McDougall, e fará um aprofundamento das características das massas, articulando-as
aos conceitos desenvolvidos pela psicanálise. Defende a ideia de uma mente coletiva
grupal diferente à totalidade das mentes dos indivíduos.
Afirma Freud81 que no grupo o material inconscientemente reprimido em cada
um ressurge intensamente, ou seja, os atos impulsivos não aguardam para serem
realizados, pois há diluição dos impulsos no grupo, onde o pertencimento gera a
onipotência dos sentimentos, que podem ser exacerbados. Perdem-se o teste de
realidade, a dúvida e suas inibições. Assim, as atitudes no grupo diferem das
individuais e a inibição da racionalidade passa pela intensificação das paixões e
emoções na grupalidade.
Ao definir o humano como ser de horda – bem como ao comparar a psique da
massa à da criança e do primitivo –, Freud recupera ideias de Totem e tabu e também
vai resgatar a temática da hipnose e sugestão, que já era usada para explicar a
relação massa-líder, mas que por ele será melhor desenvolvida. Freud destaca a
importância do papel do hipnotizador (afinal de contas, já tivera contato com hipnose
em sua prática, antes da utilização da associação livre) e faz analogia entre a relação
transferencial e hipnose, na qual quem a aplica fica no lugar de ideal, algo próximo ao
que ocorre na paixão, com sua natureza patológica, tema que Freud também
desenvolve nesta obra. Nela, há possibilidade de que um objeto ocupe uma posição
de ideal não atingido, que captura e empobrece o ego, pelo depósito no objeto da
libido que estava disponível no Eu.

79 FREUD, S. (1921) Psicologia de grupo e análise do ego. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira
das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
80 Goldenberg questiona a razão pela qual Freud baseou-se em Le Bon. Para ele, tal aproximação

permitiu a Freud uma reformulação da ideia sobre inconsciente, assim como o afastamento do
inconsciente coletivo de Jung. Segundo o autor, Freud também pôde, a partir da elaboração do texto
sobre as massas, aproximar-se e tratar da história do próprio movimento psicanalítico, com intensos
conflitos entre os discípulos e deles com o fundador. Eles criticaram a obra de Freud pela ênfase nas
outras disciplinas, afastando-se da psicanálise. In: GOLDENBERG, R. Psicologia das massas e
análise do Eu: solidão e multidão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
81 FREUD, S. (1921) Psicologia de grupo e análise do ego. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira

das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
33

Freud utiliza a ideia de libido, aqui relacionada ao amor (posteriormente ela


será a energia da pulsão de vida), para explicar a organização, dependência do grupo
ao redor do líder e a decorrente falta de liberdade, pois cada um permanece preso ao
líder e aos demais por fortes laços emocionais, evidenciando uma superação do
narcisismo82. Freud83 levanta a possibilidade de a formação grupal constituir-se a
partir do ódio, seja por uma pessoa ou por um coletivo. Mesmo unidos pelo ódio, a
ligação grupal opera pela ação da libido. Goldenberg84 fornece uma metáfora
interessante ao comparar cada indivíduo a um tijolo, que compõe a parede, e a libido
a um cimento que os une, promovendo a ligação. É pelo amor inibido em sua
finalidade, pela identificação entre os membros e destes ao líder, que o grupo mantém-
se coeso, uníssono, fenômeno que explica também a idealização das lideranças.
Recorrendo à noção de Ideal do Eu, Freud85 afirma que o líder, na figura deste ideal,
fica no lugar dos egos (eus) individuais, pois a idealização envolve a perda do Eu. É
pela diminuição do narcisismo que o egoísmo transforma-se em altruísmo e as
diferenças desaparecem na massa, com significativa limitação das singularidades.
Aqui também temos elementos da psicanálise para pensar a sociedade
apaixonada da atualidade, onde não é raro encontrarmos o amor cego ao candidato
X e hostilidade ao inimigo Y e vice-versa. Das filiações cegas, desprovidas de críticas
onde prevalece o narcisismo da crença, superando a crítica e o pensamento, já que o
líder presentifica o ideal não atingido.
Na ausência das ligações libidinais, Freud86 reconhece dois destinos possíveis,
no coletivo e no individual, respectivamente: o pânico, que desagrega o grupo, e a
angústia na neurose. Nas palavras de Goldenberg: “[…] o narcisismo, a satisfação
pulsional direta em meu benefício, seria ‘entrópico’, desagregador (cada um por si), e
o amor, ‘neguentrópico’, fator de coesão social […]”.87
Freud88 trabalha com a ideia do “narcisismo das pequenas diferenças” e o
relaciona à intolerância aos outros, fora do grupo. Em uma nota de rodapé no texto O

82 Freud retoma no estudo sobre os grupos muitas das noções desenvolvidas no texto sobre o
narcisismo.
83 FREUD, S. (1921) Psicologia de grupo e análise do ego. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira

das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
84 GOLDENBERG, R. Psicologia das massas e análise do Eu: solidão e multidão. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2014.


85 FREUD, op. cit.
86 Ibidem
87 GOLDENBERG, op. cit., p. 57.
88 FREUD, S., op. cit.
34

tabu da virgindade, Strachey89 afirma que esta noção aparece em alguns textos
freudianos; inicialmente, neste texto, no artigo sobre a psicologia dos grupos e em o
O mal-estar na Civilização. No primeiro texto, Freud relaciona a formação de um grupo
sentido como estranho e alvo da hostilidade, no caso dos homens em relação às
mulheres, a partir da angústia de castração, que a ausência do pênis nas mulheres
desperta. No texto sobre a psicologia coletiva, Freud trabalha essa mesma ideia, mas
no contexto da formação de grupos, onde laços libidinais mantêm a coesão do coletivo
e a hostilidade é dirigida ao “pequeno traço” de diferenciação presente no outro,
externo ao grupo. Na época, Freud afirma desconhecer a fonte do ódio relacionado a
esta hostilidade. Em uma nota de rodapé no texto de 1921, o autor afirma ter feito um
paralelo entre ódio e pulsão de morte em Além do princípio de prazer. Já, em O mal-
estar na civilização, Freud apresentará a relação entre pulsão de morte, agressividade
e o narcisismo das pequenas diferenças.
Retomando o exposto na introdução, talvez a procura pelo dispositivo das rodas
de conversa ou outros coletivos, que permitam a inserção junto aos pares e a
mensagem do slogan: “ninguém solta a mão de ninguém”, promovam a atenuação do
medo e a restituição do grupo de pares com seus laços libidinais. Seria uma
alternativa, uma forma de sobrevivência a ser buscada em períodos tão hostis?
É nesse texto retomada a ideia de identificação90 como forma alternativa de
vínculos e Freud propõe uma identificação primária e precoce – anterior ao complexo
de Édipo – com os pais. O autor diferencia alguns tipos de identificação, desde formas
relacionadas ao sintoma, passando por modalidades relacionadas ao objeto perdido
(na homossexualidade e na melancolia) até chegar à identificação do grupo ao líder.
Freud91 não aceita a ideia da pulsão gregária, preferindo recorrer às ideias de
Totem e Tabu sobre o pai da horda, terrível, originário e que é revivido na figura do
hipnotizador. Semelhante relação terrível à do pai primitivo e seus filhos é encontrada
na relação grupo-líder, em que o pai ideal domina os Eus individuais de cada elemento

89 FREUD, S. (1918 [1917]) O tabu da virgindade. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
90 O conceito de identificação vai ser importante nas teorizações futuras sobre a constituição do Eu, no

texto de 1923, assim como resultado da trama edipiana em ambos os sexos. A ideia de um Eu
enquanto instância e como um precipitado de identificações com objetos amados e que foram
abandonados é uma importante ideia apresentada em O Eu e o Isso.
91 FREUD, S. (1921) Psicologia de grupo e análise do ego. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira

das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
35

do grupo. Nas massas, o objeto tomado por ideal relaciona-se ao ideal não atingido
pelo Eu, que se satisfaz narcisicamente.
A análise de coletivos, como Igreja e Exército, faz-se presente quando Freud92
os reconhece como grupos artificiais com elevada organização. O ódio presente na
ambivalência afetiva do grupo é reprimido e reaparece na intolerância com os que
permanecem fora dele, ou seja, no narcisismo das pequenas diferenças.
A manifestação pulsional direta, encontrada na união de um casal,
diferentemente do amor inibido em sua finalidade presente nas formações coletivas,
impede a manutenção dos grupos. Daí a impossibilidade e impedimento da presença
feminina nesses grupos artificiais, que poderia atuar como fator de desagregação. Na
mesma direção, a questão pulsional intensamente presente e fixada a um objeto
explicaria o caráter associal da neurose, pois impede a utilização da libido na coesão
grupal. Como afirma Koltai:
É por isso que Freud reconhece nas neuroses ‘caricaturas’ das grandes
produções sociais, em que a histeria pode ser vista como uma obra de arte
deformada, a neurose obsessiva como uma forma de religiosidade, ela
também deformada, e a mania paranoica como um sistema filosófico
deformado.93

Em O mal-estar na Civilização94, Freud retoma a situação paradoxal entre


indivíduo e cultura, na medida em que ela o protege, mas é ameaçada constantemente
pela atividade pulsional, primordial e independente dele, representada pela dupla
pulsional: pulsões de vida e de morte. O acesso à cultura e sua manutenção
dependem da contenção pulsional. Freud procurará fazer um deslocamento deste
conflito para a dimensão intrapsíquica, como veremos adiante.
Ao abordar a temática deste texto, alguns autores, como Mezan 95 e Saroldi96,
fazem um retorno às ideias do texto Nervosismo Moderno e Moral Sexual Civilizada97,
onde Freud já descreve a coerção civilizatória sobre a sexualidade e sua relação com
a patologia, onde a neurose da sociedade moderna origina-se pelo excesso de libido
acumulada. A civilização funciona retirando energia da sexualidade, ou seja, pela

92 FREUD, S. (1921) Psicologia de grupo e análise do ego. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira
das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
93 KOLTAI, C. Totem e tabu – Um mito Freudiano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 39.
94 FREUD, S. (1930) O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras

Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.


95 MEZAN, R. Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva, 1982.
96 SAROLDI, N. O mal-estar na civilização: as obrigações do desejo na era da globalização. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.


97 O texto de 1908 situa-se no período em que o primeiro dualismo pulsional, primeira tópica do aparelho

psíquico e estudo das psiconeuroses eram os pressupostos teóricos disponíveis de Freud.


36

restrição da sexualidade e ampliação da cultura. A ênfase da restrição é externa e,


neste momento, Freud não trabalha com a ideia de uma pulsão agressiva
independente. Precisará de mais de uma década para desenvolver tal ideia e
considerá-la derivada da pulsão de morte. A ideia do conflito entre cultura e pulsões
também foi apresentada acima no texto de reflexões sobre a guerra.
Embora Freud98 dê ênfase à restrição vinda do exterior (através da educação
infantil) na contenção da sexualidade, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade,
o autor também considera a não necessidade da educação para a repressão pulsional
das crianças, ao afirmar: “Na realidade, porém, esse desenvolvimento é
organicamente99 condicionado e fixado pela hereditariedade, podendo produzir-se, no
momento oportuno, sem nenhuma ajuda da educação”.
Para pensar no inevitável ‘mal-estar’, Freud100 afirma que a agressividade tem
origem pulsional, mas por outro lado, Eros – pulsões de vida – permite a origem de
grupos, mas há conflitos também, pois o amor entre dois, o apego ao ser amado,
confronta-se com os interesses do grupo, ou seja, o social deseja reunir os indivíduos,
que se mantêm unidos ao grupo familiar. Esta ideia já era existente em 1921 no texto
no texto sobre os grupos.
A sublimação, enquanto destino da pulsão sexual, coloca-se pela necessidade
da formação coletiva e sobrevivência do grupo. Dessa forma, a cultura frustra as
pulsões, opõe-se à manifestação livre da sexualidade. Freud101 acredita nas restrições
da atividade sublimatória, que envolve defusão pulsional. A capacidade para
sublimação é individualmente variável, restrita a uma minoria e que consumia energia
psíquica para sua realização, para o autor.
A ideia freudiana de amor inibido em sua finalidade sexual, ou seja,
dessexualizado, e a inibição da agressividade estão no fundamento do mandamento
religioso amplamente conhecido: “amar ao próximo como a si mesmo”. Este se

98 FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 167.
99 Strachey (1969) afirma que, na carta 75 a Fliess de 1897, Freud levanta a hipótese de uma repressão

orgânica necessária à repressão posterior pela civilização e a relaciona à mudança para a postura
bípede, com menor exposição dos órgãos genitais, e deslocando o sentido predominantemente
olfativo para a visão e, daí, a vergonha na exibição deles. Do mesmo ano, o rascunho N já relaciona
a renúncia ao incesto à conquista civilizatória. Prefácio do Editor. O mal-estar na civilização. In:
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio
de Janeiro: Imago, 1996.
100 FREUD, S. (1930) O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras

Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.


101 Ibidem
37

configura como formação reativa, quando pensamos na sexualidade e agressividade


limitadas pela cultura.
Mas Freud102 avança na proposta de fazer inter-relações entre a psicologia
individual e as questões sociais ao afirmar que o mesmo conflito entre indivíduo e
sociedade apresenta-se no intrapsíquico, o conflito entre o Eu e o Supereu, manifesto
no sentimento inconsciente de culpa e na necessidade de punição.
A agressividade – o excesso de violência –, que ameaça a Cultura, levando
risco de desintegração, muda de posição, internaliza-se. Assim, a estruturação do
supereu, com o retorno da agressividade ao próprio sujeito, resguarda a Cultura do
perigo em questão. A pulsão agressiva equivale à pulsão de morte103, conceito
formulado dez anos antes, associada a Eros. Em outras palavras, a agressividade
seria uma forma de externalização da pulsão de morte, ou melhor, de parte dela
combinada com a pulsão de vida.
A submissão à autoridade externa pelo Eu dá-se em função da internalização
da autoridade dos pais e pelo medo do Eu frente à perda do amor deles. Para Freud104,
mau significa ameaça da perda de amor, em função da nossa condição humana
fundante, que é desamparada. O supereu é amplamente discutido nesse texto, sendo
considerado herdeiro do complexo de Édipo, que se manifesta pela necessidade de
punição e sentimento inconsciente de culpa, como descrito acima.
Freud105 discute a agressividade, estabelecendo a relação proporcional de que
quanto maior a agressividade reprimida, maior a rigidez da consciência moral
(supereu). A internalização dos mandamentos inicialmente impostos do meio externo,
pelas figuras parentais, é responsável pelo sentimento de culpa, visível na neurose e
na moralidade universal. Curiosamente, no texto, Freud106 defende que os menos
agressivos apresentam supereus mais exigentes. Seria o retorno a si mesmo, como
destino da pulsão, da agressividade infantil dirigida aos pais que justifica a
rigorosidade do superego, não se relacionando apenas à severidade da educação
recebida. Quanto maior a renúncia da agressividade pela presença da realidade,
maior o aumento da severidade do supereu, que a incorpora. Para essa instância,

102 FREUD, S. (1930) O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
103
Freud resgatou o segundo dualismo pulsional proposto em 1920 em outros textos, como O Eu e o
Isso, O problema econômico do masoquismo e Mal-estar na civilização.
104 FREUD, op. cit.
105 Ibidem
106 Ibidem
38

pouco difere o pensamento de uma atitude, pois ele permanece na posição de vigia
interno. Relaciona-se tanto ao temor da punição quanto ao desejo de assassinato,
pois é o resultado psíquico de uma trama com os genitores, que envolve amor e ódio,
o complexo de Édipo.
Quando desvincula esta severidade do superego à educação recebida, em uma
nota de rodapé, Freud afirma que a mesma consideração é adequadamente feita por
Melanie Klein. Por outro lado, Freud107 relativiza tal independência, pois o supereu
depende de fatores inatos, mas também ambientais.
Freud também considera a existência de um supereu cultural, cuja gênese é
semelhante à do individual, relacionada à influência de grandes líderes e que opera
com exigências ideais rígidas e severas.
Em O mal-estar na civilização, o conceito de narcisismo das pequenas
diferenças é resgatado. Afirma o autor:
Evidentemente, não é fácil aos homens abandonar a satisfação dessa
inclinação para a agressão. Sem ela, eles não se sentem confortáveis. A
vantagem que um grupo cultural, comparativamente pequeno, oferece,
concedendo a esse instinto um escoadouro sob a forma de hostilidade contra
intrusos108, não é nada desprezível. É sempre possível unir um considerável
número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para
receberem as manifestações de sua agressividade [...] Dei a esse fenômeno
o nome de ‘narcisismo das pequenas diferenças’, denominação que não
ajuda muito a explicá-lo. Agora podemos ver que se trata de uma satisfação
conveniente e relativamente inócua da inclinação para a agressão, através
da qual a coesão entre os membros da comunidade é tornada mais fácil. 109
(grifo nosso)

Cabe ressaltar que Gabbard110 considera o fato de Freud não perceber o grave
potencial desta tendência agressiva, pois ela pode originar formas extremas de
hostilidade e crueldade, como nossa história já pode revelar e demonstra atualmente.
Para Saroldi111, a repressão pulsional transforma a libido em sintomas, como
Freud já defendia em 1908, porém a novidade é a transformação da agressividade
dirigida ao outro em sentimento de culpa. Escreve a autora:
Cada renúncia efetuada pressupõe a existência de uma consciência anterior.
No entanto, essa mesma renúncia torna-se uma ‘fonte dinâmica’, uma

107 FREUD, S. (1930) O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
108 O intruso como diferente ao grupo.
109 FREUD, S. (1930), op. cit., pp. 118-119.
110 GABBARD, G. Love and Hate in the analytic setting – The library of object relations. Jason

Aronson, USA, 1996.


111 SAROLDI, N. O mal-estar na civilização: as obrigações do desejo na era da globalização. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.


39

espécie de gerador da consciência, e cada nova renúncia aumenta sua


rigidez.112

Por outro lado, a renúncia pulsional, como forma de regulação coletiva, está na
gênese da hostilidade contra a própria Cultura, fato que se configura como outro paradoxo.
Problematizando tais ideias, e se utilizando do pensamento de Bauman113,
Saroldi114 questiona de que forma a busca incessante de prazer, satisfação livre de
desejos, desconsiderando o princípio da realidade115, tão presente em nossa
atualidade, podem ser pensadas quando consideramos os pressupostos freudianos
de que, para a manutenção da civilização, renúncias são necessárias. O
questionamento dessa autora relaciona-se à hipótese de Barros sobre a livre
manifestação da agressividade. Cito Barros116:
Talvez esta situação de crise e instabilidade existenciais esteja a sinalizar que
o trabalho cultural tem sido insuficiente para viabilizar subjetivação e
simbolização e possibilitar que libido e hostilidade, amor e ódio – forças
psíquicas que fundam a subjetividade e habitam o humano desde sempre –
sejam utilizados em favor do sujeito.117

Em sua obra O narcisismo e o mal-estar na civilização, Victor Andrade118


propõe uma outra leitura para o mal-estar na civilização e para as patologias atuais,
de natureza narcísica.
Andrade afirma que, apesar de a psicanálise não apresentar uma ideia única a
respeito da compreensão sobre o narcisismo119, este fenômeno pode explicar a
origem do mal-estar na Cultura. Ele afirma que as relações sociais são relações
objetais e desta maneira influenciadas pelo narcisismo. Ao fazer uma análise
detalhada sobre a noção de ego na obra freudiana, considera que faltou a Freud uma
metapsicologia do Eu e propõe sua avaliação a partir da autoestima, que está

112 SAROLDI, N. O mal-estar na civilização: as obrigações do desejo na era da globalização. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p.116.
113 Bauman foi um filósofo e sociólogo polonês que propôs uma forma de análise que considera relações

sociais com as propriedades do estado físico líquido da matéria, como fluido, volúvel, maleável e efêmero.
114 SAROLDI, op. cit.
115 O princípio do prazer de natureza econômica rege o psiquismo com o objetivo de diminuir o

desprazer, já o princípio da realidade, atuando junto com o outro princípio, assume papel regulador,
pois considera a realidade externa para modular a obtenção da satisfação (LAPLANCHE;
PONTALIS, 2001).
116 BARROS, M. N. C. A trama paradoxal do ódio no psiquismo. Tese de Doutorado, Universidade

Católica de Pernambuco, Recife, 2013.


117 Ibidem, p. 8.
118 ANDRADE, V. M. O narcisismo e o mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2014.
119 Embora Andrade tenha uma concepção diferente da freudiana sobre os narcisismos primário e

secundário, penso que, ao eliminar a dimensão pulsional, ele retira um elemento teórico
importante para pensar a problemática que sua obra levanta.
40

relacionada ao mal-estar. Ela seria considerada e conquistada a partir da onipotência


do narcisismo primário, que seria sua fonte, além das relações objetais e das
realizações em direção ao ideal do Eu.
O Eu ideal relacionado ao narcisismo secundário, uma conquista no
desenvolvimento saudável, depende da introjeção de um objeto idealizado e, por essa
razão, também envolve relação com ele.
O autor propõe a noção de antinarcisismo, com um movimento de
desagregação; já o narcisismo representaria um processo de agregação. O primeiro
equivaleria a um processo por ele denominado de narcisismo total 120, que seria o
vivido pelo bebê no útero de sua mãe. É a partir dele que se dará, após o nascimento,
a identificação primária, que seria a do bebê com a mãe, pois necessita do objeto,
embora ele seja indiferenciado do ego precoce da criança. O objeto é por assim dizer
equivalente ao Eu do bebê, que se sente onipotente, pois o objeto fusionado a ele o
supre de tudo.
Essa identificação corresponde à fase do narcisismo primário, de natureza
fusional, e é a partir deste que se constituirá uma relação de objeto, que implica a
perda desta onipotência primária, pois, pela via da indiferenciação, ele acredita na sua
onipotência, que na verdade corresponde à do objeto.
A partir de uma relação de objetos satisfatória, o narcisismo secundário é
constituído com a estruturação de um duplo ego, sendo um original e outro de
natureza ideal, fruto da internalização do objeto ideal onipotente. A identificação
secundária visa recuperar a onipotência perdida, ao reconhecê-la pertencente ao
objeto, e por isso apresenta restos do narcisismo primário ao mesmo tempo que
procura formar o Eu ideal. A onipotência do objeto é negada pela onipotência primária
e a constituição dele dá-se pela internalização do objeto idealizado. É na tentativa do
ego de se aproximar do Eu ideal que se conquista a externalidade e a independência,
através de um Eu mais livre do superego e com aspectos do Id mais integrados a ele.
O autor relaciona ainda estados borderline a problemas na passagem entre os
narcisismos, onde há a constituição de um objeto desconsiderado ou depreciado. Para
Andrade121, já que o desenvolvimento do Eu relaciona-se ao processo de narcisismo
secundário, é na relação problemática com os objetos e na elevação do narcisismo

120 Tal conceito apresentado por Andrade equivale à noção de narcisismo primário anobjetal.
Apresentarei as noções freudianas de narcisismo primário e secundário no próximo capítulo.
121 ANDRADE, V. M. O narcisismo e o mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2014.
41

primário que se encontraria o mal-estar na civilização. Essa relação constitui um


paradoxo, pois de um lado a civilização permite a complexização das relações, ao
mesmo tempo em que nela há a permanência do desejo da onipotência primária
perdida e não do ideal constituído da síntese do narcisismo primário com as relações
de objeto, a partir da qual se estruturaria o superego mais integrado e a autoestima
do ego, mais autônomo e em contato com a realidade externa.
Para o autor, o princípio da realidade é intersubjetivo e as relações objetais
constituem os fundamentos da sociedade. O Eu ideal corresponde ao núcleo do
narcisismo secundário. Andrade122 também afirma que é na permanência do
narcisismo onipotente que a realidade é negada. Ele se relaciona à repulsa ao
diferente, que o desconsidera e, assim, também explica a opressão às minorias. Freud
apresenta essa ideia com o conceito de narcisismo das pequenas diferenças,
anteriormente descrito. É este repúdio, na extrema idealização, que o narcisismo
primário manifesta.
A partir daí, a agressividade é descarregada de maneira pervertida, como a
qualifica Andrade123, com o propósito de exterminar a vida. Desta maneira, para o
autor, a agressividade perde sua ação protetora na subjetividade.
É através da conquista do narcisismo secundário que o convívio com a
diversidade pode ocorrer na civilização. Nas palavras do autor, a Cultura envolve o
narcisismo secundário, relações objetais, com indivíduos diversos e diferenciados,
com um grau razoável de narcisismo primário neles. Este é perene, mas é seu
predomínio em uma sociedade que o torna o diferente ameaçador. O mesmo autor
considera que tendências atuais, como a negação do conhecimento científico,
relaciona-se à onipotência presente no narcisismo primário. Nele, a dominância do
supereu deixa o Eu submetido ao ideal. Para Andrade124, Eus ideais acrescidos de
narcisismo primário representam consequências desastrosas à civilização.
O autor problematiza a noção de pulsão de poder, que por ele também é
questionada e que corresponderia a uma tendência da pulsão de vida na direção do
objeto e não um derivado da pulsão de morte. A pulsão de poder também corresponde
a uma etapa do desenvolvimento do Eu que contém restos de narcisismo primário
também. Cabe lembrar que, no narcisismo secundário, o anterior também persiste,

122 ANDRADE, V. M. O narcisismo e o mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2014.


123 Ibidem
124 Ibidem
42

assim como durante toda a vida. É ao narcisismo primário que a falta da conquista do
narcisismo secundário conduz. A fraqueza deste é compensada pelo anterior e
relacionada à falha de objetos primários, que são internalizados. Assim, o poder
narcísico equivale à onipotência infantil, segundo Andrade. De modo geral, o autor
considera que o poder apresenta dois objetivos: um de natureza narcísica e outro com
tendência a considerar o objeto. Uma vez que a ciência revela a insuficiência do
homem, negá-la, como é tendência atual, permite a permanência na onipotência que
apresenta expectativas e restos do narcisismo primário. O autor propõe a passagem
dela para uma potência, com a possibilidade da realização de ideais, que podem
aproximar as três instâncias psíquicas.
Para Andrade125, cabe à psicanálise permitir a passagem do narcisismo
primário ao secundário, no manejo clínico de pacientes com patologias narcisistas,
predominantes no momento atual.
Para finalizar parte do percurso na obra freudiana, no texto Moisés e o
monoteísmo, o autor126 defende a origem egípcia de Moisés, questiona sua suposta
origem humilde e acredita que ele participava de uma religião monoteísta da qual teria
transferido elementos aos hebreus, que rompem futuramente com tal religião – de
Aton – e escolhem um novo Deus, Yahvé, primitivo e terrível, traços que futuramente
serão descritos na personalidade de Moisés. Posteriormente, este será assassinado,
fato historicamente escondido e defendido por Freud. Deste fato e das consequências
dele, resultam o reaparecimento127 da religião de Moisés e a transformação de Yahvé
no Deus dele, que se constitui como uma figura mítica e híbrida, com características de ambos.
Procurando relação com os conceitos da psicanálise, Freud128 retoma mais
uma vez as ideias do texto de 1913, afirmando que o crime contra Moisés foi
encabeçado por um filho, gerando a fantasia de castigo, que o fez atribuir a culpa
coletiva para si. Assim, caminhamos do monoteísmo judaico ao cristianismo, que
revela traços do politeísmo combatido por Moisés, cuja morte traz a fantasia do
Messias (filho de Deus) na figura de Jesus Cristo, que o judaísmo nega, assim como

125 ANDRADE, V. M. O narcisismo e o mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2014.


126 FREUD, S. (1939 [1934-1938]) Moisés e o Monoteísmo: três ensaios. In: FREUD, S. Edição
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XXIII. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
127 Freud faz uma analogia à noção de retorno do recalcado presente no sintoma neurótico à situação

apresentada no texto.
128 FREUD, op. cit.
43

o assassinato de Moisés. Jesus Cristo vem para pagar os pecados da humanidade,


no caso, o assassinato do pai.
Apesar de Freud ter aproximado os dois textos, Parente129 faz uma distinção
importante ao considerar que o pai da horda de Totem e tabu é aprisionador e cruel,
diferentemente de Moisés, que busca e permite a liberdade e emancipação de um povo.
Em sua análise, como Parente, afirma Koltai, diferenciando os dois textos:
[...] queremos apenas lembrar que o próprio Freud voltou mais uma vez
insistentemente à questão do que é um pai em Moisés e o monoteísmo, obra
em que insere uma última modificação do dispositivo edípico, ainda que
mantenha a lógica do pai traído e morto por seus seguidores/ filhos. Nessa
obra, o pai da horda e o gozo que esse representa por meio da figura de
Moisés, que revive o chefe da horda de modo invertido, pois, em vez de ser
aquele que recusa o amor, é aquele que ama e fornece as leis, introduzindo
os escravos no mundo da cultura.130 (grifo nosso).

Assim como Freud, que partiu de um Édipo131 mais simplificado – onde o


menino odeia o pai e ama a mãe – para uma visão de um complexo maior, onde há
ambivalência em relação à mesma figura (pai e mãe), há uma ampliação dos afetos
também na passagem de um texto ao outro – de Totem e tabu ao sobre Moisés.
Os textos sociais de Freud foram abordados neste capítulo e neles, a questão
do ódio, que pode ser destacada e desenvolvida conforme o autor foi ampliando e
reformulando suas ideias, a partir da clínica. Em Totem e tabu, Freud resgata algumas
ideias construídas a partir da clínica da neurose obsessiva. Ele repensa o ódio, a partir
da dimensão narcísica, no narcisismo das pequenas diferenças e da destrutividade,
consequência da pulsão de morte. Excluindo a dimensão pulsional, a problemática do
ódio fica restrita à esfera narcísica. Autores como Lacan e Andrade mantêm-se no
eixo “mal-estar” – narcisismo, cada um à sua maneira. Dentro da proposta de análise
simultânea dos eixos narcísico e pulsional desta pesquisa, a consideração de ambos
amplia a teoria, visto que não são ambos mutuamente exclusivos.
Partindo da dimensão social para a individual, cabe apresentar o ódio dentro
dos fundamentos freudianos, nas dimensões metapsicológica e psicopatológica.

129 PARENTE, A. A. M. O umbigo da língua de Moisés de Freud. Revista Brasileira de Psicanálise –


SBP-SP, Vol. 54, n. 1, 2020.
130 KOLTAI, C. Totem e tabu – Um mito Freudiano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010,

pp. 91-92.
131 O complexo de Édipo permite identificações estruturantes, que constituem o superego, e

ambivalentes.
44

CAPÍTULO 2 – A METAPSICOLOGIA E A PSICOPATOLOGIA DO ÓDIO EM FREUD

“O ódio tem certezas que o amor não tem. O ódio


sabe, conhece perfeitamente o seu objeto (o do
amor é desconhecido); o que o prende a ele é
capaz de uma permanência no ser, às vezes uma
vida conjugal inteira, que o laço de amor mais
raramente manifesta. Associa-se frequentemente o
ódio à destruição, esquece-se que ele é também
'um tônico, ele faz viver’ (Balzac).”
(Jacques André)

2.1 A metapsicologia freudiana e o ódio

No livro Freud: a trama dos conceitos, Mezan1 reconhece quatro períodos na


obra de Freud relacionados indiretamente ao tema desta dissertação. O autor trata a
questão da violência, mas a mesma divisão pode ser considerada em relação ao ódio:
no primeiro período, de 1893 a 1897, a violência aparece vinculada ao trauma da
sedução. Nesse contexto, ela explicaria a neurose, tanto a histeria quanto a neurose
obsessiva. Na primeira, a sedução praticada por um adulto próximo a uma criança
teria sido vivida de maneira passiva; já na segunda, a sedução é praticada ativamente.
Freud2 desenvolve também a ideia de que na neurose obsessiva, anteriormente ao
papel ativo na sedução, haveria uma cena de vivência passiva e, por essa razão, ele
considerava a neurose obsessiva um dialeto da histeria. Convém lembrar que, em tal
momento, a ideia da sexualidade infantil não estava presente, sendo
considerado pré-psicanalítico 3.
No segundo período, situado entre 1897 e 1905, a violência também
permanece relacionada à patologia, segundo o autor. Este período corresponde a um
momento no qual Freud dedica-se ao estudo da histeria. E nele há o atendimento de
Dora, onde o ódio aparece na transferência e na contratransferência.
Em uma terceira fase, de 1905 a 1920, embora não incluído por Mezan4 nesse
período, é reconhecido, no texto de Freud sobre o chiste (1905), a questão da
agressividade vinculada ao afeto latente da piada. Diferentemente do sonho, ela é

1 MEZAN, R. Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva, 1982.


2 FREUD, S. (1896) Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa. In: FREUD, S. Edição
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol.III. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
3 Historicamente considera-se a publicação de A Interpretação dos Sonhos, publicada em 1900, como

o marco fundador da psicanálise.


4 MEZAN, R. Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva, 1982.
45

uma forma social de prazer, que opera pelos mesmos mecanismos, a condensação e
o deslocamento. O componente agressivo recalcado da piada tem outra modalidade
de retorno à consciência. No chiste, a agressividade é contra o alvo da piada, um dos
três elementos necessários. Como nos afirma Freud5, o outro indiferente é capturado,
torna-se aliado do contador da piada e, pela via da risada, sente prazer junto com o
contador. Aqui temos uma ligação coletiva pela via da hostilidade.
Pela análise dos chistes, Freud tem um conjunto das manifestações ou
formações do inconsciente para a Psicanálise: os sonhos, os sintomas, os atos falhos
e os chistes. A agressividade do chiste, assim como outros conteúdos inadmissíveis
à consciência, nas demais formações, é recalcada e é no subtexto que as ofensas
estão contidas. O desejo inconsciente de violência (ataque) assim pode aparecer.
Mezan6 destaca, nesse terceiro período, a presença do ódio expresso na
violência no pai da horda de Totem e tabu, assim como na patologia. A questão do
ódio ficará evidente no caso do Homem dos Ratos, ao estudar a neurose obsessiva,
que será desenvolvido mais adiante neste capítulo, na análise da relação do ódio na
etiologia dessa neurose.
Há um quarto e último período, a partir de 1920, onde, segundo Mezan7, a
violência aparece como “unificadora de conceitos”, passando do lugar da patologia
para a normalidade. Desse modo, ela engloba a compulsão à repetição, como modo
de funcionamento do psiquismo. Para o autor:
A repetição revela-se assim como a forma pela qual a violência se inscreve
no sujeito. Por outro lado, a repetição por si só não pode dar conta do conflito
substitutivo do sujeito; é preciso que haja violência para que a oposição possa
assumir seu papel constituinte. Ela começa no próprio ‘indivíduo’, como
pulsão de morte oposta a Eros; continua nas relações interpessoais que o
ordenam como ser humano; e reaparece como foco dos conflitos que o
capacitam – ou incapacitam – a viver entre outros homens.8

De acordo com a formulação freudiana, o complexo de Édipo permitirá uma


identificação com as figuras parentais. Neste complexo, o ódio está presente e Mezan9
propõe que o mecanismo de identificação envolve defusão pulsional – necessária a
ele – e, por este motivo, ocorre um incremento da agressividade. O autor destaca
também a violência na presença da fantasia de castração. Segundo ele, temos aí a

5 FREUD, S. (1905) Os chistes e sua relação com o inconsciente. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. VIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
6 MEZAN, op. cit.
7 Ibidem
8 Ibidem, p. 333.
9 MEZAN, R. Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva, 1982.
46

violência contra o falo, mobilizadora de angústia e medo, assim como a presença do


ódio10.
Outra angústia é a vivida pelo Eu que deve servir aos três senhores: ao Id, à
realidade externa e ao supereu que, nas palavras de Mezan11, é um registro
pulsional, tópico e relacional, ligado à moralidade violenta, assim como à Cultura.
Pergunta o autor:
Quanto ao superego, como concebê-lo de outra forma que violência
internalizada pela violência? O Édipo é o complexo estruturante do sujeito por
reunir em si as determinações gêmeas da violência do desejo e da violência
da autoridade, contra as quais se ativa implacavelmente a violência da
castração, engendrando a violência da angústia e por vezes a violência da neurose.12

Em seu livro intitulado Os quatro vínculos, Zimerman13 destaca o fato de que a


importância inicial na obra de Freud era destinada à libido14, sendo as questões
relativas ao ódio estudadas um pouco mais tarde. Para ele, o texto metapsicológico
de 1915 fala da coexistência entre amor e ódio, que se opõem ou se substituem. Tal
desconsideração da presença do ódio em outros momentos anteriores da obra
freudiana dá uma restrição temporal à formulação metapsicológica sobre o ódio em
Freud.
Diferentemente, Barros15 faz uma separação da mesma temática, dividindo-a
em quatro momentos: primeiros textos (de 1893 a 1900), textos metapsicológicos da
primeira tópica (1900 a 1914), o ódio no primeiro dualismo pulsional e nos textos da
segunda tópica.
No Vocabulário da Psicanálise, de Laplanche e Pontalis16, há uma análise mais
ampla sobre o conceito de ódio na obra de Freud. O verbete que o descreve é o que
trata da agressividade e começa por questionar a ideia de um reconhecimento tardio
do conceito de agressividade na obra, visto que Adler já defendia a ideia de uma
pulsão agressiva em 1908. Com relação ao ódio, os autores consideram que Freud

10 Como já afirmado, uma concepção de Édipo completo, tanto em meninos quanto em meninas, é
formulada por Freud considerando em ambos a presença do amor e ódio pelo pai, assim como amor
e ódio pela mãe.
11 MEZAN, R. Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva, 1982.
12 Ibidem, p. 334.
13 ZIMERMAN, D. Os quatro vínculos. Porto Alegre: Artmed, 2004.
14
Barison resgata a ideia de Paula Heiman, que faz uma analogia da pulsão sexual ao filho
Primogênito, que ganhou o nome de libido, diferentemente da pulsão de morte, que foi um filho
tardio. In: BARISON, O. L. Cântico Negro: O uso clínico do conceito de pulsão de morte. Revista
Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 54, n. 1, 2020.
15 BARROS, M. N. C. A trama paradoxal do ódio no psiquismo. Tese de Doutorado, Universidade

Católica de Pernambuco, Recife, 2013.


16 LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
47

não faz uma abordagem direta frequentemente, preferindo analisar noções como
sadismo e agressão, onde há manifestação do ódio. Esta tendência freudiana trouxe
um desafio à presente pesquisa no rastreamento do tema em uma obra tão vasta.
Para os autores17, antes da formulação do segundo dualismo pulsional, a
agressividade já estava descrita no âmbito da clínica, na resistência e na transferência
estabelecida por Dora, como já descrito. Baseado no verbete pesquisado, outro
exemplo da presença do ódio na teoria freudiana aparece no sonho referido em 1900:
Sonho de morte das pessoas queridas e, como citado, a noção do chiste hostil
servindo à agressão.
Quatro textos de Freud são importantes para apresentar a metapsicologia do
ódio em sua obra: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Introdução ao
narcisismo (1914), A pulsão e seus destinos (1915) e Além do princípio de prazer (1920).
Já no primeiro texto, Freud18 define o conceito de pulsão19 considerando-a
como representante psíquico de algo de natureza interna ao corpo, ou seja, a
representação psíquica da excitação se dá pela pulsão, movimento que desloca o
sujeito, exigindo trabalho ao psiquismo. É dotada de uma fonte somática, cujo
reconhecimento se dá de maneira indireta, finalidade, que é sempre sua satisfação e
objeto, o elemento mais variável. É esta plasticidade em relação ao objeto 20 que fará
Freud iniciar o primeiro dos três ensaios, onde também irá discutir os desvios na
finalidade; dessa forma, analisará fenômenos como a homossexualidade, a perversão
e o fetichismo. Freud quer defender a tese da presença da sexualidade infantil e do
seu caráter perverso polimorfo, destacando o fato de que seria a manutenção e
fixação em traços dela que caracterizariam a perversão adulta, também irá relacionar
ódio e agressividade ao sadismo. Ele o estudará também associado aos estágios mais
precoces da libido. O autor defende a ideia de que manifestações presentes na vida
sexual do perverso encontram-se também na sexualidade da criança, ou seja, há
resquícios da perversão na sexualidade adulta. Para Simanke21, nessa obra, Freud

17 LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
18 FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
19 Apesar da utilização nesta pesquisa da Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas

Completas de Sigmund Freud, da Editora Imago, que trata o conceito pulsão por instinto, optou-se
pela utilização do termo pulsão.
20
Em uma nota de rodapé acrescida posteriormente à obra, Freud considera que, diferentemente da
Antiguidade, a ênfase na sexualidade de sua época estava no objeto.
21 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio

– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.


48

cita o sadismo-masoquismo nos estágios genital e pré-genitais, revelando a mescla


entre agressão e sexualidade, e falará, na dimensão afetiva, sobre a possibilidade da
fusão do amor e ódio ou da transformação de um em outro.
Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), há uma primeira
formulação teórica sobre a pulsão agressiva, mais ligada ao sadismo tanto no primeiro
quanto no segundo ensaio. Ela é uma pulsão parcial do instinto sexual, predominante
nas primeiras fases da libido, as pré-genitais.
Freud22 vai explicar outras condutas diferentes da relação heterossexual adulta
já no primeiro ensaio, onde também descreve as consequências da fixação a um
objeto, no caso da perversão fetichista23. Para o que nos interessa, considerando a
temática da dissertação, é neste mesmo ensaio que o autor relaciona sadismo à
pulsão sexual, no caso, parcial, e ao comportamento sexual ‘normal’, embora
estivesse descrevendo as perversões24. Freud também relaciona agressividade à
sexualidade masculina. Para ele:
A sexualidade da maioria dos varões exibe uma mescla de agressão, de
inclinação a subjugar, cuja importância biológica talvez resida na necessidade
de vencer a resistência do objeto sexual [...] Assim, o sadismo corresponderia
a um componente agressivo autonomizado e exagerado da pulsão sexual,
movido por deslocamento para o lugar preponderante.25 (grifo nosso)

Dessa forma, considera perigosas a forte predominância e a independência do


sadismo na expressão da sexualidade adulta. Ao descrever a masturbação infantil dos
meninos, caracterizada preferencialmente pelo esfregamento manual, relaciona
novamente a pulsão de domínio à futura sexualidade masculina.
Dentro do contexto das pulsões sexuais, Freud26 afirma que a sexualidade
infantil é autoerótica, constituída por pulsões parciais originárias de zonas erógenas e
que podem surgir como pares de opostos, apoiadas em fenômenos biológicos. A

22 FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
23 Ferraz defende a ideia da presença de ódio nesta patologia, considerando-a como forma de

erotização do ódio. In: FERRAZ, F. C. Tempo e ato na Perversão. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2005. Zimerman afirma que o ódio está presente na psicose, na neurose e principalmente na
perversão. In: ZIMERMAN, D. Os quatro vínculos. Porto Alegre: Artmed, 2004.
24 Freud, sempre que possível, trouxe a psicopatologia e o desenvolvimento atípico, em aproximação

com a “normalidade”, além de realizar comparações entre diferentes quadros, como neurose e
perversão nesse texto, melancolia e neurose obsessiva, em 1917, assim como neurose, psicose e
fetichismo, em 1938. Com relação ao fetiche, há hostilidade e sentimento de amor no seu tratamento,
como afirma Freud em 1927, em O fetichismo. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
25 FREUD, S. op. cit., p. 149.
26 FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Edição Standard

Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
49

pulsão parcial de crueldade, na forma passiva do masoquismo, também está presente


no sintoma neurótico, pois o masoquismo equivale ao sadismo retornado à própria
pessoa. Isto exemplifica a variabilidade do objeto, que pode ser o outro ou o próprio
sujeito. O autor faz uma aproximação entre perversão, neurose e sexualidade infantil.
Para Freud, o masoquismo encontra-se mais distante da meta sexual, já que o
sadismo é primário. Com relação a este, o autor propõe em uma linearidade, que vai
de uma atitude mais ativa até a fixação na satisfação, pela via do domínio e imposição
de maus-tratos ao objeto sexual.
Freud defende a ideia de duas formas – ativa e passiva – na finalidade sexual.
Inicialmente, estas duas formas, neste caso relacionadas ao sadismo e masoquismo,
ficavam restritas à perversão, mas Freud posteriormente as desvinculará da
perversão, articulando-as à sexualidade em geral.
Como já afirmado, o autor considerará o sadismo como um elemento agressivo
independente e intenso da pulsão que se tornou dominante.
Com menção explícita ao ódio, Freud escreve:
É também por intermédio dessa ligação da libido com a crueldade que se dá
a transformação do amor em ódio, das moções afetuosas em moções hostis,
que é característica de um grande número de casos de neurose e até, ao que
parece, da paranoia em geral. 27

No primeiro ensaio, além de Freud estabelecer uma relação entre


pulsão/crueldade ao componente agressivo da libido, ele defende a ideia da
composição múltipla da pulsão sexual.
No segundo ensaio, Freud28 também vai falar das origens diversas e do caráter
independente, em relação à sexualidade, dos impulsos de crueldade, mas da
possibilidade de uma união precoce a ela, e ainda relacionará tais origens
independentes à autoconservação.
Para o autor, a união permanente entre pulsões cruéis e erógenas é perigosa.
Neste caso, teríamos a dimensão patológica. É necessário diferenciar este aspecto
(sadismo ou crueldade adulto/genital) da crueldade pré-genital da sexualidade infantil.
Freud não se preocupa em fazer uma distinção muito específica ao redigir esse texto.
O autor afirma não ter feito um estudo profundo do instinto de domínio ou
apoderamento, acredita que o impulso de crueldade origina-se dele, em uma fase pré-

27 FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 158.
28 Ibidem
50

genital, o que pode ser visto na terceira edição de 1915 dos Três ensaios. A crueldade
que domina o período pré-genital se fundirá à genitalidade no futuro. A concepção
sobre sadismo e crueldade será um fundamento importante para o pensamento
kleiniano, a ser descrito no próximo capítulo. Strachey29 afirma que, na terceira edição,
foi excluída a ideia de um instinto agressivo independente em relação à sexualidade.
Para este autor, a ideia do narcisismo auxiliou Freud a recusar a ideia anterior, pois a
agressividade e o ódio ligados à autopreservação e à libido acabavam definitivamente
com a ideia de um impulso agressivo independente.
Laplanche e Pontalis30 reconhecem um momento anterior à noção que viria a
ser elaborada posteriormente, a da pulsão de morte. Nessa fase, temos uma pulsão
de domínio independente31, relacionada à fase anal, ligada à musculatura, que é
indiferente em relação ao prejuízo causado ao outro, não objetivando a destruição,
desvinculada do prazer, e que pode preservar o objeto, não envolvendo o ódio, sendo
não sexual. Quando na forma de agressividade manifesta, ela já aparece relacionada
ao sadismo, como pulsão parcial que envolve ódio e libido e, desta forma, relacionada
à sexualidade.
A ideia do narcisismo ajudou Freud a resolver a questão de uma pulsão
agressiva autônoma, como destacam autores como Mezan e Laplanche & Pontalis.
Na formulação sobre o narcisismo, considera-se que há um fluxo de libido do Eu aos
objetos e vice-versa. Partindo deste princípio, não cabe dizer que as pulsões sexuais
são opostas às pulsões do ego32, como Freud pensava anteriormente. Pelo exposto
acima, ego e sexualidade não se opõe, mas aproximam-se.
Como afirma Mezan33, Freud defendia inicialmente a ideia de uma unificação
pulsional sob o primado da genitalidade. Quando esta fosse adquirida, o amor tornar-
se-ia oposto ao ódio e seria possível a existência da ambivalência. Mezan propõe a
ideia de uma unificação anterior, no narcisismo – etapa intermediária entre
autoerotismo e escolha do objeto –, que já implica uma unificação. Após o

29 STRACHEY, 1969. Prefácio do Editor. O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileiras das obras completas de Sigmund Freud. Vol. XXI, Rio de Janeiro: Imago, 1996.
30 LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
31 Para Mezan (2014), ela mais se assemelha a uma ação egoica do que a uma pulsão. In: MEZAN,
R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 154.
32 Segundo Mezan (2014), em 1910 no artigo sobre as perturbações psicogênicas da visão aparece o
termo ‘pulsões do ego’, como oposta às pulsões sexuais e responsáveis pela autoconservação. A
ideia da libido que se desloca do ego aos objetos parece incompatível com a ideia da pulsão do ego
ser oposta às pulsões sexuais. Segundo o autor, assim o ego fica mais próximo da sexualidade que
seu oponente. In: MEZAN, R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
33 MEZAN, R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
51

autoerotismo, as pulsões parciais se reúnem numa unidade, o ego, o corpo tomado


como objeto, e a partir daí tem-se a escolha do objeto, primeiramente objeto
homossexual, seguido de objeto heterossexual. Esquematicamente o
desenvolvimento freudiano pode ser pensando assim:
Autoerotismo (pulsões parciais) → narcisismo (unificação pulsional) → escolha objetal
homossexual → escolha objetal heterossexual.
Antes do texto sobre as pulsões e seus destinos, o ódio era considerado uma
extensão do sadismo e pensado em relação às pulsões parciais. Amor e ódio eram
equivalentes às pulsões. Para Simanke34, a concepção do amor como antecessor
baseia-se no fato da ênfase dada ao estudo da histeria, que era explicada em função
da sexualidade na época. O autor destaca o fato de que o texto freudiano de 1913 sobre
a neurose obsessiva já cita a precedência do ódio. Afirma Simanke:
Enquanto Freud pensara as relações entre amor e ódio exclusivamente do
ponto de vista instintual, o amor aparecera como a paixão primordial, a
expressão do fluxo total dos impulsos sexuais. O ódio, considerado quase
que exclusivamente algo derivado do sadismo, era visto como uma das
vicissitudes do instinto sexual e, nesse sentido, como secundário ao amor e
tendo neste sua condição.35

Em Introdução ao narcisismo36, Freud dedica-se a um texto específico sobre a


constituição do Eu e analisa o narcisismo a partir da dimensão econômica da
metapsicologia. Strachey37 afirma que este fenômeno já aparecia como etapa do
desenvolvimento, na análise da homossexualidade de Leonardo da Vinci 38, em 1910,
no texto sobre Schreber, que o situa em uma perspectiva desenvolvimentista, e
também em Totem e tabu.
Como desdobramentos importantes deste texto, a partir da noção de Ideal do
Eu e da escolha narcísica de objeto, temos dois: o sobre a psicologia dos grupos,
descrito no capítulo anterior, e outro sobre a melancolia, que será desenvolvida mais
adiante.

34 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio
– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.
35 Ibidem, p. 129.
36 FREUD, S. (1914) Introdução ao narcisismo. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras

Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.


37 STRACHEY, 1969. Prefácio do Editor. Introdução ao narcisismo (1914). In: FREUD, S. Edição

Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
38 Freud advertia quanto à inadequação da análise da obra de um artista a partir da biografia do seu

autor. Com relação ao trabalho sobre da Vinci, a análise é feita a partir das anotações pessoais
encontradas em um diário por ele elaborado.
52

Além de retirar o narcisismo do campo da patologia, Freud o relaciona ao


desenvolvimento normal e ao egoísmo da autopreservação. Para ele, o narcisismo
aparece no sono, na hipocondria e na vida amorosa. Recorrendo à metáfora da
emissão de pseudópodos pelas amebas, retoma a teoria do fluxo da libido, do eu aos
objetos, mas que destes pode retornar ao Eu, correspondendo ao narcisismo
secundário. Anteriormente ao deslocamento da libido aos objetos, ela se encontra no
Eu, constituindo uma etapa de narcisismo primário. O autor considera que o Eu não
se apresenta desde o início, assim algo (uma “nova ação”, nas palavras de Freud)
deve ser adicionado ao autoerotismo39 constituindo o narcisismo. Pela paranoia,
Freud caminha à compreensão da psicologia do Eu e dos destinos do represamento
da libido nele, como delírio de grandeza da psicose análogo ao pensamento mágico.
O estágio de narcisismo primário será considerado consequência do
renascimento do narcisismo dos pais, que fora abandonado por estes, e pode ser
depositado no ideal de perfeição do filho, que se torna “sua majestade o bebê”, como
Freud denomina. Laplanche e Pontalis40 reconhecem duas noções de narcisismo em
Freud: inicialmente, ele se relaciona a uma etapa intermediária como descrito acima
e, posteriormente, como um estado mais primitivo, de indiferenciação em relação ao
mundo externo, algo análogo à vida intrauterina.
Além de Freud detalhar a diferença entre dois tipos de escolha de objeto (de
apoio e narcísica41), ele descreve no texto a existência de um Eu ideal substituto do
narcisismo perdido da infância e para o qual este se desloca, sendo seu substituto.
Em outras palavras, o Eu ideal tem a perfeição narcísica infantil. No ideal do Eu, há a
influência do narcisismo parental e ele também se relaciona ao mecanismo de
autovigilância, comparando o Eu a um ideal. Esse conceito servirá de base para a
formulação do supereu, nove anos depois, tornando-se uma de suas funções, a de
avaliar o Eu segundo um ideal. Embora Freud, no texto em questão, fale do Eu ideal
e do Ideal do Eu sem muita diferenciação42 entre os conceitos, é o segundo termo que
permanecerá nos textos futuros.

39 Em 1905, nos Três Ensaios, Freud já o descreve como manifestação da sexualidade.


40 LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
41 Esta modalidade de escolha desempenhará um importante papel na gênese da melancolia. Nela, a

escolha amorosa dá-se a partir da própria pessoa.


42 Coube a Lacan fazer uma diferenciação sobre tais conceitos, relacionando aos registros imaginário

e simbólico no Seminário 1, Os escritos técnicos de Freud.


53

O conceito de narcisismo é importante para o tema desta dissertação, pois a


ele ficará articulado o ódio, a partir de 1915, quando, em Os instintos e suas
vicissitudes43, Freud questiona a ideia de que o ódio origina-se a partir do amor –
como afirmou em 1905 – concluindo que ele tem sua origem própria, na luta do Eu
pela autoconservação e afirmação, ou seja, ele se relaciona a sobrevivência e a
autopreservação. Também o considera paixão primária, anterior ao amor. Freud
considera que o ódio está na esfera do Eu.
Nesse texto, o autor separa agressividade e ódio do sadismo, relacionando-os
às pulsões do eu. O ódio surge da repulsa do Eu narcísico ao mundo externo, que se
relaciona à etapa do narcisismo primário44, de satisfação autoerótica, sem a
necessidade do objeto e que implica desprazer nas relações com os objetos estranhos
ao Eu, que é a instância “do prazer purificado”, nas palavras de Freud, pois tudo que
é bom está nele, internamente, ao mesmo tempo em que o mau está fora, na
exterioridade – e alheio a ele – pertencendo ao objeto. O ódio fica no polo do
narcisismo e não é ele que tende ao objeto, mas sim a sexualidade. Anteriormente o
ódio era equivalente a uma continuidade do sadismo e, como afirma Simanke45, foi
somente após Freud separar ódio da sexualidade que ele falará dele em relação ao
amor. Ele passa a ser relação do Eu com objetos, pois é o Eu quem odeia e ama seus
objetos. Dessa forma, temos uma perspectiva do ódio desvinculada da pulsão sexual.
Segundo Pereira e Coelho Júnior46, o ódio, na sua função de separação,
diferencia o Eu do objeto, cria fronteiras. O ódio e a repulsa são necessários para tal
discriminação. O narcisismo pode ser considerado a fonte do ódio, que não recebe
energia pulsional da libido. Simanke47 aponta para o lado sombrio do narcisismo
implícito em Freud, pois o ódio narcísico pode destruir o objeto.
Assim, podemos atribuir duas funções ao ódio: na proteção do Eu e na relação
primária com o objeto, cuja presença também é necessária à sobrevivência do Eu e

43 FREUD, S. (1915) Os instintos e suas vicissitudes. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
44 A ideia do narcisismo primário absoluto, embora aceita por Freud, é um tema de ampla discussão na

psicanálise. Alguns analistas defendem um estado de narcisismo anobjetal absoluto. Por outro lado,
outros discordam da possibilidade de tal situação. Para Cromberg (2006), o narcisismo corresponde
ao investimento do eu, antecedido por outra etapa, embora seja considerado primário por Freud. In:
CROMBERG, R. U. Paranoia. 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.
45 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio

– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.


46 PEREIRA, D. R.; COELHO JÚNIOR, N. E. O relato de uma experiência estranha – O surgimento

do ódio no analista. Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.


47 Ibidem
54

será seguido do surgimento do amor. Ambos os afetos relacionam-se ao Eu e aos


objetos e não às pulsões, sendo que o ódio pode ser associado apenas ao desprazer
e não ao prazer sexual. Desprazer provocado e deslocado ao meio externo e à
insatisfação promovida pelo objeto, que não gratifica as pulsões, sejam sexuais ou de
autoconservação.
Em 1915, Freud também retoma as características das pulsões, o destino das
pulsões parciais, inicialmente independentes e relacionadas ao prazer de órgão, mas
que se unificam depois, na função reprodutiva, sob tutela da pulsão sexual. De acordo
com o princípio do prazer, as pulsões sexuais podem ser satisfeitas através da
fantasia, já as pulsões de autoconservação exigem o objeto real48 e se regulam pelo
princípio da realidade. De acordo com a noção de “apoio”, a sexualidade apoia-se na
autoconservação.
Na sistematização do estudo das pulsões, Freud49 descreve os quatro destinos
pulsionais: transformação em oposto (amor em ódio), retorno à própria pessoa (que
explica a transformação do sadismo em masoquismo), repressão e sublimação. As
duas primeiras são vicissitudes narcísicas, como qualifica Mezan50. Nesse texto,
Freud volta a descrever o sadismo e o masoquismo a partir de suas novas
descobertas teóricas, como o narcisismo e a nova formulação sobre o ódio. Em outras
palavras, Freud vai incluir a participação do Eu no sadismo e masoquismo. Ele quer
incluir sua ideia recém-desenvolvida – o narcisismo – aos conceitos já descritos em 1905.
Como descreve Mezan51, Freud defende a posição de um sadismo anterior52 e
é, na passagem da atividade à passividade, que ele transforma-se em masoquismo e
apenas nesse momento há vinculação do prazer sexual à dor. É pela via da
identificação com o masoquista que o sádico sente prazer, pois anteriormente não
havia prazer sexual, apenas agressão ao outro, ou seja, a tendência inicialmente não
é de natureza sexual. Mezan53 considera a agressividade como não sexual e somente

48 Na ausência do objeto, ele pode ser alucinado e a necessidade ligada à autoconservação pode ser
temporariamente suprimida na fantasia. Com relação a essa ideia freudiana, questiona Cromberg:
“a alucinação nasce da insatisfação ou cessa por causa dela?”. In: CROMBERG, R. U. Paranoia. 3.
ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006, p. 85.
49 FREUD, S. (1915) Os instintos e suas vicissitudes. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das

Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
50 MEZAN, R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
51 Ibidem
52 Tal ideia será revista e Freud defenderá a posição de um masoquismo primário em relação ao

sadismo, a partir do segundo dualismo pulsional, descrito no texto O problema econômico do


masoquismo, de 1924.
53 MEZAN, R. Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva, 1982.
55

posteriormente, quando erotizada, origina o sadismo, que envolve um processo de


erogenização. Nesse momento, Freud não considera uma origem pulsional para a
agressividade, como fizera anteriormente.
Laplanche apud Mezan54 diferencia dois significados para o sadismo em Freud,
ou seja, dois objetivos: dominar e humilhar o objeto (agressividade não sexual) e
causar dor (sexual). A segunda finalidade não é objetivo pulsional inicial. Assim, temos
a ideia da agressividade primária dessexualizada voltada ao objeto – não vinculada
ao sexual – que é alvo do domínio e que até pode chegar a ser destruído. A pulsão
de apoderamento ou de domínio55 e o narcisismo explicam a transformação da
agressividade em sadismo, que seria a forma sexualizada dela. A ideia de apoio da
sexualidade em uma função não sexual está mantida nesta concepção, como afirma
Mezan, apoiado nas ideias de Laplanche, para quem a agressividade não é
inicialmente sexualizada.
Dessa forma, Freud tem a ideia da pulsão de domínio – enquanto agressividade
não sexual relacionada ao narcisismo para pensá-la na articulação com o sadismo.
Ela vira sadismo por meio de um processo que envolve o narcisismo e a sexualização
da agressividade.
Para Laplanche e Pontalis56, a passagem das formas não sexual à sexual,
voltada para si, onde a finalidade masoquista (sentir dor) é anteriormente sádica
(produzir dor), pois antes de atingir a forma passiva (sofrer), passa pela forma reflexiva
média (fazer-se sofrer), a partir da ativa (fazer sofrer). O sujeito faz o objeto lhe
provocar dor, antes de sofrê-la. Essa ideia do sadismo como forma erogenizada do
ódio difere da noção do ódio como continuidade do sadismo, forma pela qual Freud
explica a neurose obsessiva em 1908, segundo Mezan57, para quem o ódio ganha
outra formulação, a partir da noção de narcisismo. Freud precisou ter este novo
elemento teórico para separar o ódio de outros conceitos, como sexualidade

54 MEZAN, R. Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva, 1982.


55 Com relação à pulsão de domínio, Mezan (2014) diferencia três formulações ao longo da obra
freudiana:
1. Sua origem é diferente da crueldade da criança (1905) que surge a partir desta;
2. Tem relação com a atividade na dualidade ativo/passivo, descrita na fase anal sádica (1913);
3. Relacionada à musculatura e nela apoiada (1915).
O autor não a vê muito como uma pulsão e propõe que, mesmo considerada como pulsão, ela pode
causar prejuízos ao objeto na fase anal sádica, onde há pouca diferenciação entre amor e ódio na
relação com o objeto.
Como afirmado no capítulo 1, Andrade (2014) também a questiona.
56 LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
57 MEZAN, R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
56

(sadismo) e agressão. Mas o ódio voltará a se aproximar da pulsão no futuro, no caso


com a pulsão de morte.
Em Os instintos e suas vicissitudes, Freud relaciona amor e ódio a sujeito-
objeto e prazer-desprazer, assim como sadismo e masoquismo a ativo-passivo. Nos
Três Ensaios, ele já afirma:
[...] ficaríamos tentados a relacionar a presença simultânea desses opostos
com a oposição entre masculino e feminino que se combina na
bissexualidade58, oposição que amiúde é substituída na psicanálise pelo
contraste entre ativo e passivo.59

Assim, a noção de ambivalência pode aparecer, de uma forma mais genérica,


em todas essas duas finalidades de uma mesma pulsão, não permanecendo restrita
ao amor e ódio.
Agora não mais como equivalentes às pulsões, Freud60 propõe três formas
opostas para o amor e ódio: amar em oposição ao odiar, amar em oposição ao ser
amado e amor/ ódio em oposição à indiferença. Essas três formas de oposição serão
desenvolvidas com base no texto de Birman, que revisa a teoria das pulsões de 1915.
Segundo Birman:
Antes de mais nada, a oposição amar/ odiar não é a única que pode ser
estabelecida entre esses dois termos. Rigorosamente, existiriam pelo menos
duas outras oposições em pauta. Assim, a oposição amar/ ser amado e a
oposição pela qual o amar e odiar se oporiam em conjunto à condição da
indiferença constituiriam outras variações possíveis do amar. Dessa maneira,
na leitura teórica proposta por Freud, o que estaria em questão seria a
oposição amar/odiar como ponto de chegada de uma posição iniciada pela
oposição amar-odiar/ indiferença, sendo esta seguida pela oposição amar/
ser amado.61

Pode-se relacionar a primeira oposição ao momento mítico descrito


anteriormente, de puro fechamento no narcisismo originário. O objeto cujo encontro
se faz necessário pelas pulsões de autoconservação perturba a quietude inicial.
Nessa etapa do eu realidade inicial, marcada pelo autoerotismo, a indiferença precede
o ódio. Klein não concorda com esse estado anobjetal, pois as pulsões criam os

58 Baseado na ideia de Fliess, propõe Freud a condição psíquica bissexual para o ser humano. Vai
buscar, na ideia de uma primeira gônada indiferenciada, o reforço da biologia para tal formulação.
59 FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Edição Standard

Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 151.
60 FREUD, S. (1915) Os instintos e suas vicissitudes. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das

Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
61 BIRMAN, J. As pulsões e seus destinos: do corporal ao psíquico. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2009, p. 142.


57

primeiros objetos, segundo a autora. Esta ideia será desenvolvida no próximo capítulo
desta dissertação.
Na perspectiva do eu prazer narcísico, em oposição ao mundo mau
desprazeroso, podemos articular a oposição amar/ser amado, de natureza narcísica.
Nessa etapa, ocorre a introjeção e identificação por parte do Eu daquilo que o objeto
lhe ofereceu de bom. Também há projeção de parte do Eu ao mundo externo, a
externalização da parte que equivale ao estranho e odiado. O ódio narcísico está
presente na repulsa ao objeto. A origem do ódio é relacionada à constituição do eu
(narcisismo) e externalidade.
Na etapa do eu realidade objetivo/definitivo, a oposição ocorre entre o amar e
o odiar. O ódio é uma relação do Eu total com objetos e é o narcisismo sua fonte. O
amor, agora considerado secundário, busca os objetos do prazer. Antes de serem
opostos, amor e ódio estavam relacionados ao prazer e desprazer. Agora podem
transformar-se em opostos e se unirem na ambivalência em relação ao mesmo objeto,
segundo Birman. Retomando a questão desta pesquisa, se permanecêssemos
restritos a esse momento do pensamento de Freud, o ódio fica ria explicado a
partir do narcisismo.
A aquisição da capacidade de reconhecer o amor pelo objeto é possível com a
superação da condição do eu narcísico e, assim, pode-se adquirir a capacidade de
oferecer prazer e ter satisfação com o outro. Tal período articula-se ao princípio da
realidade e ao Eu realidade, como propõe Birman.62 63
A fixação no narcisismo desvincula o contato com o princípio da realidade e
prejudica formas de relação mais amadurecidas com o outro, nas quais pode haver
ódio e amor excluindo a polaridade amor ao bom, que é meu, e ódio radical ao objeto
externo, mau, que a minha fúria deseja destruir. Não estaríamos falando de um
fenômeno desta natureza ao analisarmos os fenômenos contemporâneos e reações
emocionais tão frequentes em nossos dias?
Para a oposição amar/odiar e a aquisição da ambivalência, teria que haver um
eu realidade definitivo. Propõe o autor que “o amor é representado comumente como

62 BIRMAN, J. As pulsões e seus destinos: do corporal ao psíquico. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2009, p. 142.
63 Na mesma direção, caminha a noção kleiniana de objeto parcial, de natureza narcísica, ao objeto

total, independente e substrato da ambivalência afetiva.


58

a manifestação da tendência sexual do sujeito em face ao outro e dos seus objetos


de satisfação, não sendo, pois, circunscrito à condição de pulsão parcial”.64
Comparando as oposições acima ao desenvolvimento do Eu, temos na
concepção de Birman65: o eu real originário, seguido do eu narcísico e atingindo o eu
realidade objetivo. É nesta etapa que a unificação66 da pulsionalidade parcial, sob o
primado da genitalidade, possibilita a oposição entre os afetos – amor e ódio –
presentes na ambivalência. A capacidade amorosa implica uma superação da
condição narcísica marcada pelo ódio ao objeto, ao externo, ao estranho.
Como afirmam Laplanche e Pontalis67, será apenas no capítulo 6 de Além do
princípio de prazer que Freud68 considerará um impulso agressivo independente. A
pulsão de morte, inicialmente voltada para o interior do organismo, é autodestrutiva.
A ideia do deslocamento da agressividade para o meio externo é desenvolvida em O
mal-estar na civilização, dez anos depois69. Desta forma caminha-se da
autodestrutividade à heterodestrutividade.
A partir da segunda teoria pulsional, a agressividade ganhará um estatuto
diferente, pois parte da pulsão de morte é expulsa do interior ao meio externo através
da agressão.
No verbete pesquisado do Vocabulário da Psicanálise, de Laplanche e
Pontalis70, a pulsão de agressão é a pulsão de morte deslocada ao exterior, com o
auxílio da musculatura, fundida com a sexualidade. A pulsão de morte apresenta-se
“mesclada” à pulsão de vida, como defende Freud, e dessa forma, relaciona a dupla
pulsional à sexualidade-agressividade.
Porém, segundo Laplanche e Pontalis71, na ideia da compulsão à repetição,
fundamento defendido em Além do princípio de prazer – a partir da tentativa de

64 BIRMAN, J. As pulsões e seus destinos: do corporal ao psíquico. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2009, p. 141.
65 Ibidem
66 Como afirmado anteriormente, Mezan já propõe uma unificação na etapa do narcisismo.
67 LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
68 FREUD, S. (1920) Além do princípio de prazer. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das

Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
69 Strachey (1969/1996) descreve uma ideia freudiana – pouco desenvolvida e questionada pelo próprio

Freud e que se encontra em uma correspondência dele com Marie Bonaparte – que, no início da vida,
a libido era interna e a agressividade estava fora, mas a situação altera-se com o desenvolvimento,
destacando a interioridade da pulsão de morte e a externalidade (não só) da libido. Essa nota
introdutória do Editor encontra-se em O mal-estar na civilização. (1930). In: FREUD, S. Edição
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XX1. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
70 LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
71 LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
59

explicar situações traumáticas –, a pulsão de morte não está relacionada ao


comportamento de agressão. No texto, a formulação dessa pulsão aparece
posteriormente à ideia da compulsão à repetição.
Para os autores, a pulsão de morte difere da simples agressividade,
correspondendo à redução absoluta das tensões, no aspecto econômico. Alguns anos
depois, Freud pensará na agressividade entre as instâncias psíquicas da segunda
tópica (Eu, Isso e Supereu) e teremos dois aspectos da agressividade: o intrapsíquico
e o intersubjetivo. O Id com o ódio ao objeto (a ser atuado pelo Ego) e o superego –
como formação reativa e em relação à violência do pai da horda –, que desloca sua
agressividade a si próprio, como destaca Mezan72. Este autor propõe que a mudança
do conflito em Freud passa das pulsões para as instâncias.
A noção de defusão pulsional, já apresentada, libera a pulsão de morte no seu
papel de destruição de unidades. A desintrincação pulsional ocorre durante o
processo de sublimação, no movimento regressivo da libido para posterior fixação,
além disso, no processo de identificação. Na maioria das vezes, a pulsão de morte
permanece fusionada a Eros.
Em Além do princípio de prazer, Freud73 resgata suas formulações anteriores
sobre os princípios do prazer e seu correlato, o da constância. Dentro de uma
perspectiva econômica da metapsicologia, descreve o princípio do prazer como
aquele cuja tendência é manter a excitação em um nível baixo, pois seu excesso
corresponde ao desprazer. O princípio da constância, como seu próprio nome diz,
tende a manter a estabilidade produzida pelo outro princípio. Em oposição ao princípio
do prazer, tendência de funcionamento do aparelho psíquico, está o princípio da
realidade, que retarda a sua satisfação. Assim, o Eu impede um funcionamento
regulado apenas pela pulsionalidade e, portanto, o princípio da realidade protege o
psiquismo.
Mas agora, nesse momento da sua teoria, Freud74 propõe a existência de um
princípio do Nirvana, segundo o qual haveria uma tendência da eliminação total das
excitações, zerando as tensões, que levariam um retorno a um estado inorgânico e à
morte. Freud75 propõe um princípio ‘aquém’ do princípio do prazer, ais originário, pois

72 MEZAN, R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.


73 FREUD, S. (1920) Além do princípio de prazer. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
74 Ibidem
75 FREUD, S. (1920) Além do princípio de prazer. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das
60

o do Nirvana levaria ao zero de excitação, abaixo da tendência à manutenção de um


nível baixo de excitação, a do princípio anteriormente formulado.
Em sua construção teórica, Freud76 apoia-se em situações contrárias ao
princípio do prazer, como as neuroses traumáticas, com seus sonhos recorrentes e
carregados de angústia, que não se explicam pelo paradigma da realização de
desejos – descrito em A interpretação dos sonhos – e também nas brincadeiras
infantis – que visam dominar situações desprazerosas – e, assim, chega à noção de
compulsão à repetição. Tal tendência econômica do psiquismo visa o domínio das
situações traumáticas, vividas passivamente. Agora o traumático retorna à teoria
freudiana, com a tendência da repetição compulsiva para transformar a vivência
passiva em ativa, permitindo controlar a situação disruptiva, com a possibilidade de
elaboração e submeter o psiquismo ao princípio do prazer, a partir da ligação do
excesso de energia.
Em textos anteriores sobre a técnica psicanalítica, Freud já defendia a ideia da
repetição de situações, com marcas da sexualidade infantil, na relação de
transferência criada durante o tratamento, onde há resistências, criadas a partir do
conflito entre as fantasias inconscientes e a consciência, e que deveriam ser
elaboradas. Situações anteriores – infantis – são reproduzidas na relação com o
psicanalista e, assim, podem ser interpretadas e resignificadas. Freud defende esta
concepção para a condução do tratamento psicanalítico. Diferentemente, na
compulsão à repetição, não há essa elaboração, a princípio, e a angústia opera como
sinal do perigo, aqui temos uma outra formulação de Freud sobre a angústia e sobre
a ideia de repetição. Neste caso, há uma ameaça ao Eu, à sua integridade. O ‘aquém’
da compulsão à repetição fala do seu aspecto mais primitivo.
Freud77 usa o modelo da vesícula como escudo protetor contra estímulos, no
caso, externos, mas que não a protege dos internos, que são sentidos como os
primeiros. Assim, a estimulação interna – a excitação da pulsionalidade – produz
efeitos semelhantes aos estímulos externos, por exemplo. O excesso de energia,
consequência do trauma, choque que promoveu a ruptura da vesícula, exige trabalho
de ligação, pois a energia desligada necessita ser prontamente eliminada e assim é

Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
76 FREUD, S. (1920) Além do princípio de prazer. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
77 Ibidem
61

feito na forma de passagens ao ato (sem simbolização, como pura descarga de


intensidades) ou somatizações (eliminação no corpo). É através do processo
secundário que a energia pode ser ligada, postergando a descarga. Ela flui por meio
de uma rede de representações, em um funcionamento normal do aparelho psíquico.
O trauma agora é o impacto promotor da ruptura da vesícula. Ele que era externo
decorrente da sedução, na teoria de 1895, agora passa a ser interno e externo
também, mas relacionado à dimensão econômica e ao excesso de energia.
Justamente o baixo investimento permitiu a ruptura do invólucro e, baseado nessa
concepção, Freud formula uma nova ideia para a angústia, ela é sinal ou, como
formula Giovacchini78, ela hipercatexiza sistemas organizadores, pois sendo a energia
retirada de outras partes para fazer a ligação do excesso traumático, ela é transferida
para as proximidades da região da ruptura da vesícula. O sonho traumático gera a
angústia – que não é mais relacionada ao desejo sexual infantil –, ela vem do Eu, e o
sintoma79 também sofre uma reformulação por parte de Freud: ele equivale a uma
tentativa do Eu frente ao perigo, ele evita a angústia, segundo Mezan.80
A compulsão à repetição é uma tentativa de fazer a ligação dos excessos para,
posteriormente, o funcionamento do psiquismo seguir pelo princípio do prazer, pois
ela opera em um mecanismo anterior a este princípio. Feita a ligação, a repetição é
interrompida. Como propõe Giovacchini:
Mais do que os estados de energia com os processos primário e secundário,
ou a magnitude da excitação, é a modificação da catexia dentro de uma certa
unidade de tempo que determina a qualidade da excitação. 81

Para o mesmo autor, atualmente não usamos este aspecto econômico no


trabalho clínico, onde permanece o enfoque na estrutura psíquica (ou, como prefere
Minerbo, no seu funcionamento, na psicodinâmica); por outro lado, ele considera a
noção de compulsão à repetição uma importante contribuição freudiana para a
atividade clínica82. Tal prática corrobora a posição do referido autor já que são
observados fenômenos transferenciais, que envolvem repetições de material que
pode ser simbolizado e elaborado, como também recorrência de situações

78 GIOVACCHINI, P. Roteiro à leitura de Freud. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.


79 Anteriormente como uma das manifestações do inconsciente, Freud definia o sintoma como
satisfação substituta de um desejo.
80 MEZAN, R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
81 GIOVACCHINI, op. cit., p.150.
82 Ibidem
62

traumáticas, sem representação, além das passagens ao ato de pura descarga e


somatizações.
Após descrever a compulsão à repetição, Freud83 irá propor o conceito de
pulsão de morte, que opera juntamente com a pulsão de vida (que reúne o narcisismo,
a autoconservação, a sexualidade e a libido – sua energia), em um entrelaçamento
ou uma mescla ou fusão pulsional; apesar disso, tem-se um antagonismo entre
elas. Baseando-se em fundamentos biológicos84, de natureza celular e orgânica,
Freud85 defende a existência da dupla pulsional e propõe uma correlação entre elas e
fenômenos de assimilação e desassimilação. Também vai enfatizar a tendência
regressiva da pulsão de morte à natureza geral das pulsões. Dentro dessa
perspectiva, a pulsão de morte é a pulsão por natureza, pois ela conduz a um
momento anterior, o retorno ao inorgânico. Há um caminho na direção à morte a ser
desviado pela pulsão de vida, pois Eros visa ampliar, ligar e compor unidades maiores86.
Mezan87 afirma que a definição de pulsão no texto de 1915 está mais
relacionada à sexualidade e, com a nova definição cinco anos depois, ela está mais
próxima da pulsão de morte, que é a promotora das separações, rupturas,
paralisações, que tende à simplificação no lugar de conjuntos mais complexos. Ela
ataca o Eu e os objetos, como afirma Minerbo88, e se relaciona à noção de função
desobjetalizante de Green. Outros apontamentos serão feitos sobre esta noção, na
medida que ela articula narcisismo e pulsão de morte, no último capítulo. Na mesma
direção, a partir do segundo dualismo pulsional de Freud, Mezan89 propõe que o ódio
relacionado ao narcisismo e à pulsão de morte promove autoagressão e

83 FREUD, S. (1920) Além do princípio de prazer. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
84 Gerchmann e Antunes afirmam que a biologia reconheceu a existência de forças opostas à vida no

interior da célula, a apoptose celular. In: GERCHMANN, A.; ANTUNES, C. A. O ódio primário e os
processos de individualização – Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.
Na mesma direção, Zimerman propõe uma reflexão sobre o afastamento da psicanálise das outras
ciências, quando optou por se prender à metapsicologia, gerando um certo vazio técnico-teórico.
Relacionando o ódio à bioquímica, o autor afirma haver um aumento dos níveis de óxido nítrico em
situações de medo e passividade. Conjuntamente a esta substância, a serotonina relaciona-se ao
comportamento agressivo, pois tem sua concentração diminuída. In: ZIMERMAN, D. Os quatro
vínculos. Porto Alegre: Artmed, 2004.
85 FREUD, op. cit.
86 Podemos aplicar essa ideia à noção da união dos integrantes na psicologia das massas, mas a

destruição é provocada pela pulsão de morte, quando surge o intolerável diferente, que acende o
narcisismo das pequenas diferenças.
87 MEZAN, R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
88 MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
89 Ibidem
63

desinvestimento do objeto. Assim, o autor aproxima narcisismo e pulsão de morte para


explicar as várias dimensões da destrutividade.
Ainda comparando a diferença nas duas formulações sobre o conceito de
pulsão, no livro O tronco e os ramos, Mezan90 afirma que, na formulação anterior à
‘Além do princípio de prazer’, ela era a tensão necessária ao trabalho psíquico que
promove a descarga e, seguindo um fluxo, novas tensões surgem, criando um
movimento automático e cíclico. Para o autor, a matriz do funcionamento nesta
concepção é a tensão e a pulsão está relacionada à representação. Formula este
autor a seguinte proposição: “Porque pulsão é pulsão, a repetição é repetição”.91
Na formulação do segundo dualismo pulsional, Mezan afirma que o
funcionamento da pulsão é o movimento automático da repetição – que pode ser
bloqueada pela ligação. A pulsão de morte é modalidade pulsional desligada. A
repetição que leva ao movimento regressivo é precedente à pulsão, para o autor, que
propõe outra relação: “porque a repetição é repetição, a pulsão é pulsão”.92
Minerbo93 também diferencia a localização das pulsões nas formulações
freudianas anteriores à criação da segunda tópica (Id-Eu-Supereu). Assim, o local
inicialmente considerado para as pulsões é fora do aparelho (no limite entre o
somático e o psíquico) e o inconsciente equivale ao recalcado. Posteriormente, elas
passam a habitar o Id – o reservatório pulsional – no segundo modelo de aparelho psíquico.
Com a virada teórica de 1920 agora iniciada, Freud é forçado a rever suas
ideias sobre o sadismo e o masoquismo – e não só elas, é obrigado a rever a tópica
psíquica e a teoria da angústia. Em O problema econômico do masoquismo94, Freud
defende a existência da pulsão de morte associada à libido no interior do organismo,
o masoquismo primário. O deslocamento de parte da pulsão de morte ao exterior,
através da libido, corresponderia ao sadismo, e o retorno deste ao organismo
corresponde ao masoquismo secundário. A parte não projetada da pulsão de morte,
também em ligação com a libido, corresponde ao masoquismo erógeno. Freud
defende a existência de um masoquismo moral relacionado ao sentimento de culpa e
à necessidade de punição, na relação entre o eu e o supereu. Freud considerava, em

90 MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.


91 MEZAN, R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p.184.
92 Ibidem
93 MINERBO, op. cit.
94 FREUD, S. (1924) O problema econômico do masoquismo. In: FREUD, S. Edição Standard

Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
64

1905, o sadismo anterior, sendo o masoquismo o seu retorno à própria pessoa. Em


1915, esse também é primário, mas é considerado junto com o masoquismo articulado
ao Eu. Nessa nova formulação, quem se torna primário é o masoquismo. A mesma
concepção da presença de parte da pulsão de morte associada à libido permanecendo
no interior do psiquismo é defendida por Klein.
Laplanche e Pontalis95 consideram que Freud usou de maneira imprecisa o
termo sadismo em 1905, tornando-o equivalente à agressividade. Klein permanece
fazendo a mesma aproximação, será mostrado no Capítulo 3. Na mesma linha de
pensamento, Menezes96 reconhece a mesma tendência de Freud que torna ódio e
sadismo indistintos. O autor afirma que Freud considerava o sadismo como pulsão
parcial, ao mesmo tempo que sugeria a inconveniência da pulsão sexual se manter
unida à crueldade na perversão. Esse autor enfatiza que o sadismo, enquanto pulsão
parcial, difere do ódio, assim como o objeto97 da pulsão tem outra concepção no texto
Os instintos e suas vicissitudes. Menezes98 propõe que o ódio ocupa uma posição
marginal na primeira teoria pulsional. Para ele, a pulsão de destruição corresponde ao
objetivo do ódio na teoria das pulsões de 1915. O autor considera mais relevante a
aproximação feita entre ódio e narcisismo, em 1915, do que a noção de pulsão de
morte formulada cinco anos depois para pensar a origem do ódio. Assim como
Laplanche e Pontalis99, Menezes100 considera o principal tema de Além do princípio
de prazer a compulsão à repetição.
A pulsão de morte erotizada equivale agora ao sadismo utilizado na função
sexual. A pulsão de destruição tem uma função semelhante à do ódio narcísico
proposto por Freud em 1915, segundo Menezes101. Para este autor, o texto de 1920
e o sobre o masoquismo são os que melhor permitem pensar os destinos do ódio,
mas não sua origem. Seguindo as ideias do mesmo autor, pensando na fusão das
pulsões de vida e de morte, a pulsão sexual apresenta seu componente sádico, que
é dominante nas fases pré-genitais da libido, nas pulsões parciais anal e oral.

95 LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
96 MENEZES, L. C. O ódio e a destrutividade na metapsicologia freudiana. In: MENEZES, L. C.
Fundamentos de uma clínica freudiana. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.
97 Em 1905, o objeto constitui o elemento contingente, o mais variável que serve para a satisfação

da pulsão. Em 1915, ele é o elemento diferente do eu prazer purificado, que se opõe a ele. O
objeto equivale a um não eu. É nesta formulação que Freud relaciona o ódio ao narcisismo,
segundo Menezes.
98 MENEZES, op. cit.
99 LAPLANCHE; PONTALIS, op. cit.
100 MENEZES, op. cit.
101 Ibidem
65

Formulações teóricas diferentes podem aproximar ódio do narcisismo, como


fez Freud, ou aproximá-lo da pulsão de morte e agressividade, como fará Klein. Uma
visão articuladora e ampla nos é dada por Green, que baseado na dupla pulsão-objeto,
propõe a existência do narcisismo de morte, com a função desobjetalizante, próximos
ao ódio e à pulsão de morte.
As duas modalidades pulsionais agora elaboradas não serão abandonadas por
Freud até o final da sua obra e serão o embasamento para as construções teóricas
de Klein, por exemplo. Mezan102 aponta para o fato de Freud ter dado mais ênfase às
instâncias da segunda tópica, do conflito entre elas, e ter mantido a noção de pulsão
de morte mais voltada para fenômenos da clínica. Esse autor está em sintonia com as
ideias de Laplanche e Pontalis103, que reconhecem o deslocamento da noção de
pulsão de morte para o aspecto clínico. Por outro lado, é reconhecido que Freud
retoma sua segunda teoria pulsional e enfatiza a noção de pulsão de morte na relação
com o supereu, ao afirmar que ele é a pura cultura desta pulsão. Em 1923 104, Freud
resgata a segunda teoria pulsional para, em seguida, propor uma segunda tópica. O
conflito permanece entre as instâncias formuladas e a elas estarão relacionadas as pulsões.
Autores como Menezes105, Simanke106 e Mezan107 permitem uma melhor
compreensão do percurso que Freud fez para diferenciar sadismo de ódio e
agressividade.
Embora Menezes108, como afirmado acima, valorize mais a formulação
freudiana que aproxima a relação entre ódio e narcisismo, pelo menos para pensar a
gênese do ódio, Barros defende que a formulação do conceito de pulsão de morte não
exclui o estudo dos afetos que Freud realizou em Os instintos e suas vicissitudes. A
autora afirma: “Antes à margem e de difícil integração na primeira teoria das pulsões,
o ódio passa a ser naturalmente associado à pulsão de morte”.109

102 MEZAN, R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
103 LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
104 FREUD, S. (1923) O ego e o id. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas

de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.


105 MENEZES, L. C. O ódio e a destrutividade na metapsicologia freudiana. In: MENEZES, L. C.

Fundamentos de uma clínica freudiana. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.


106 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do

ódio – Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.


107 LAPLANCHE; PONTALIS, op. cit.
108 SIMANKE, op. cit.
109 BARROS, M. N. C. A trama paradoxal do ódio no psiquismo. Tese de Doutorado, Universidade

Católica de Pernambuco, Recife, 2013, p. 73.


66

Diferentemente desta autora, Gerchmann e Antunes110 afirmam que o ódio é a


expressão da pulsão de morte, mas há também participação da pulsão de vida, que o
enfraquece. Para os autores, quando não há o atenuante da pulsão de vida, surge a
indiferença e não o ódio, como expressão da pulsão de morte. Se partirmos do
princípio de que a pulsão de morte promove desligamentos, faz sentido relacioná-la à
indiferença, como propõem estes autores. Na mesma direção, pode se pensar que se
há uma ligação mesmo que através do ódio, temos inclusa a participação da pulsão
de vida, que visa unir e ligar. O ódio ao objeto relaciona-se às raízes da
individualidade, enquanto a identidade está relacionada à ligação objetal, segundo
Gerchmann e Antunes.111
Em 1923, em O ego e o id, Freud112 questiona a sua ideia sobre a
transformação do amor em ódio, na tentativa de uma vinculação da pulsão de morte
ao ódio e da pulsão de vida ao amor, mas é em uma nota de rodapé acrescida ao
texto sobre o pequeno Hans que Freud abertamente estabelece esta relação, quando
afirma, em 1923:
[...] fui obrigado a afirmar a existência de um ‘instinto agressivo’, mas este é
diferente do de Adler. Prefiro chamá-lo de ‘instinto destrutivo’, ou de ‘instinto
de morte’... Sua oposição aos instintos libidinais encontra uma expressão na
polaridade familiar de amor e ódio.113

Podemos também considerar as dinâmicas afetivas em questão e relacioná-las


aos mecanismos de fusão e defusão pulsional. Na aproximação que Minerbo114 faz
dos quadros de não-neurose à pulsão de morte e ao ódio, é esta modalidade pulsional
que é colocada em ato, pelo fato de não estar ligada, sem a simbolização, ou seja, é
simplesmente descarregada. Nos quadros de não neurose (ou em estados não
neuróticos), o ego encontra-se impotente frente às pulsões. É justamente no caminho
das patologias do ódio que seguirá este trabalho.

110 GERCHMANN, A.; ANTUNES, C. A. O ódio primário e os processos de individualização – Revista


Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.
111 Ibidem
112 FREUD, S. (1923) O ego e o id. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas

de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.


113 FREUD, S. (1909) Análise de uma fobia em um menino de 5 anos. In: FREUD, S. Edição

Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. X. Rio de Janeiro: Imago,
1996, p. 125.
114 MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
67

2.2 Psicopatologia do ódio

Mantendo a proposta da apresentação dos conceitos, segundo uma lógica


temporal, primeiro será descrita a Neurose obsessiva, a partir do estudo do caso O
homem dos ratos, publicado em 1909, seguido da Paranoia, a partir da análise do
caso Schreber, de 1911 e, por fim, as considerações sobre a Melancolia, de 1917115.
Esta não foi descrita ou formulada a partir de um caso clínico ou de registros
autobiográficos, como no caso Schreber, mas em sua diferenciação116 em relação ao
estado de luto. As três psicopatologias, que serão expostas a seguir, já haviam sido
tratadas em alguns dos manuscritos117 anexados às cartas de Freud a Fliess.
Como afirma Delorenzo118, Freud relaciona a culpa a atos obsessivos, tormento
melancólico e delírios de acusação paranoicos. Segundo a autora:
Desejo de morte, tentação incestuosa, pecado e consciência moral vão se
articular, nesses primeiros ensaios freudianos, como noções complementares.
Fenômenos clínicos serão descritos ali, todos centrados na temática dos
“impulsos hostis contra os pais”, a partir da qual Freud delineará as bases
inaugurais de uma clínica diferencial da culpa. Em todos eles – na obsessão,
na histeria, na melancolia e na paranoia – a punição será a moeda a pagar
pelo desejo parricida.119.

Dessa forma o desejo parricida, ódio e culpa explicam a origem das diversas
patologias.

115 Mezan propõe a noção de modelos, dentro da obra freudiana, que é baseada no paradigma
pulsional. Nele há vários modelos, cada um constituído por certas teorias. Para ele a neurose
obsessiva fornece elementos para a constituição de um modelo, cuja matriz é o ódio. As ideias de
Totem e tabu sobre onipotência e narcisismo constituem relações secundárias ao modelo.
O autor propõe outros três modelos, um baseado na histeria, outro na psicose e um terceiro na
melancolia, que se relaciona ao da neurose obsessiva. Cada modelo apresenta uma psicopatologia
de base, com seus conflitos e defesas, uma descrição de aparelho psíquico e de uma teoria do
desenvolvimento, além de uma concepção de processo analítico. Cada escola pós-freudiana tem
uma matriz clínica de referência (baseada em um dos modelos), uma leitura específica da obra
freudiana e um contexto na formação delas. A psicologia do Ego, parte do kleinismo e as relações
de objeto originam-se respectivamente dos modelos baseados na neurose obsessiva, melancolia e
psicose. In: MEZAN, R. O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
116 Os quadros psicopatológicos são estudados comparativamente por Freud e outros autores, aliás,

este sempre efetuava comparações entre patologias, ou entre a normalidade e a doença,


procurando dar maior inteligibilidade aos conceitos. Freud propunha aproximar estado patológico da
normalidade, mostrando que a diferença entre eles ocorre no aspecto quantitativo. Assim, ele
ofereceu uma certa tendência de estudo aos demais psicanalistas.
117 Como descreve Cromberg, eles totalizam 14, identificados de A a N, com a descrição sobre os

diversos quadros psicopatológicos e sua natureza sexual, foram elaborados em 1887, antes da
formulação do conceito da sexualidade infantil, e as cartas entre Freud e Fliess foram trocadas
desde o ano da elaboração dos manuscritos até 1902. In: CROMBERG, R. U. Paranoia. 3. ed. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.
118 DELORENZO, R. Neurose obsessiva. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.
119 Ibidem, p. 33.
68

2.2.1 Neurose obsessiva

Ernst Lanzer, ou “o homem dos ratos”120 – nome que lhe foi dado por Freud –,
procura tratamento apresentando inibições, medos (que algo pudesse acontecer a
duas pessoas que ele amava: seu pai e uma dama), impulsos suicidas (como cortar a
própria garganta), rituais (colocar e retirar uma pedra no caminho por onde passaria a
dama que amava), obsessões (seus pensamentos magicamente poderiam tornar-se
realidade ou serem acessados pelos pais) e isolamento, sintomas intensificados nos
últimos anos. Também apresentava delírios, pois rompia com a realidade externa,
quando desconsiderava a morte de seu pai, que ocorrera alguns anos antes. Os
pensamentos delirantes com traços de megalomania aparecem na fantasia de que
seus pensamentos pudessem ser realizados (à semelhança do pensamento mágico
da criança e do homem primitivo), nas superstições em que acreditava e
desacreditava ao mesmo tempo.
Recorda lembranças infantis, como ver uma de suas governantas nua, e
estabelece uma fantasia: ao satisfazer sua pulsão escópica, algo de ruim aconteceria
ao pai. Também relata a Freud que, em certa ocasião, profere ao pai, na forma de
insultos, palavras não ofensivas, mas que estavam carregadas de hostilidade, pois
fora agredido por este, após ter mordido uma outra pessoa. Na mesma ocasião, seu
pai faz uma profecia em relação a seu futuro: ele seria um notável homem ou um criminoso.
Já na carreira militar, escuta uma história de tortura relatada por um capitão,
onde ratos confinados invadiam o intestino do torturado, pois o objeto de
aprisionamento dos animais tinha sua saída aproximada ao ânus da vítima. Faz do
suplício a ele relatado uma ameaça à dama e ao pai (já morto), caso não realizasse o
pagamento de uma dívida, que envolvia vários personagens e a Ernst gerou muita
angústia. Ele pediu novos óculos, que foram pagos pela funcionária do correio, mas
lhe foi equivocadamente informado (pelo mesmo capitão do relato cruel) que um
tenente havia feito o acerto. Assim, em seu pensamento, se não desse o dinheiro a
ele, quitando a dívida, seria aplicado o suplício às duas vítimas. Mesmo sabendo que
uma funcionária deveria receber o pagamento e não o tenente, o homem dos ratos
pensa, em sua obsessão, que o dinheiro deveria ser entregue ao segundo, que

120 FREUD, S. (1909) Notas sobre um caso de neurose obsessiva. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. X. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
69

restituiria a moça. Chegou ao ponto de ir de trem ao encontro do tenente e o convencer


a realizar a ação, pagar a moça. Em seus relatos, Freud ouve uma segunda dívida, a
do pai do paciente, que não fora paga. Este pegou empréstimo com um amigo para
pagar uma dívida de jogo, mas não realizou o pagamento dela. O paciente estava
identificado com o pai devedor e, transferencialmente, Freud ocupava o lugar do
capitão cruel, que determinou que a dívida referente aos óculos fosse paga ao tenente.
Também havia prazer e horror no relato do paciente sobre a tortura envolvendo os ratos,
fato que foi percebido por Freud.
A relação de identificação com o pai também se dava em relação à escolha da
dama. Assim como o pai fizera, Ernst deveria deixar a moça pobre e ficar com uma rica.
Pela via das significações com a palavra rato (sujeira, sífilis transmitida pelo
pênis, dinheiro, violência, mordida), Freud fez interpretações que relacionavam
ambivalência (amor e ódio em relação ao pai e à dama), erotismo anal (horror e prazer
no relato da tortura, a fantasia da penetração anal – este erotismo foi despertado pelo
relato do suplício), desejos parricidas inconscientes (desejo da morte do pai, de
assassinar o pai) e a autorrecriminação, fenômenos característicos da neurose obsessiva.
Como escreve Delorenzo:
Esses ratos, objetos excrementícios, objetos sexuais, por excelência,
estreitamente enlaçados ao desejo e ao gozo, são objetos parciais, cruéis e
agressivos, que dão ao conflito o selo do pulsional: sadismo e erotismo anal.
Sabemos que Freud enfatiza, em seu registro, a identificação do sujeito,
criança, com o rato repugnante e voraz, que penetra e morde. E como
observa ainda, em seu paciente, a compaixão pelo animal cruelmente morto,
vendo no rato um semelhante seu.121

O caso clínico e a análise de Freud trazem importantes elementos para o tema


da dissertação, pois o autor122 propõe a ambivalência, com o predomínio da
hostilidade, responsável pelas obsessões mais o conflito edipiano, que envolve ódio,
como elementos entrelaçados e presentes na neurose obsessiva.
O exemplo da pedra retirada e recolocada na estrada, por onde se deslocaria
a dama, mostra a tendência da anulação de uma ação por outra e a relação de ambas
com a ambivalência. A racionalização serve para mascarar o ódio inconsciente,
reprimido pelo amor. Este não elimina o ódio, que permanece no inconsciente. Como
afirmam Farias e Cardoso123, na neurose obsessiva, há uma regressão da libido à

121 DELORENZO, R. Neurose obsessiva. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p. 70.
122 FREUD, S. (1909) Notas sobre um caso de neurose obsessiva. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. X. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
123 FARIAS, C. P.; CARDOSO, M. R. Compulsão e domínio na Neurose obsessiva: a marca pulsional.
70

fase anal sádica, com o recalque da satisfação pulsional. Estas pulsões parciais são
ligadas ao ódio e à agressividade e encontram satisfação no retorno ao Eu, através
da autopunição. Se por um lado, através da formação reativa, o Eu sai da passividade,
através de manifestações amorosas, o ódio permanece no sadismo inconsciente.
Freud124 desenvolve uma breve ideia na redação do caso sobre o erotismo
anal, elaboração que continuará posteriormente. Relaciona este prazer aos sintomas
da neurose obsessiva e seus traços de caráter. Dois outros textos são escritos no
mesmo período, são eles: Atos obsessivos e práticas religiosas (1907) e Caráter e
erotismo anal (1908). Ao analisar os atos obsessivos, Freud125 os compara a uma
forma de religião privada, com ritualística que obedece a leis próprias, aparentemente
sem sentido, mas que não podem ser deixadas de serem realizadas – lei singular
relacionada à interdição dos desejos e proibições, relacionadas ao sentimento de
culpa obsessivo. É pela análise do material reprimido que é possível chegar a uma
representação do conteúdo inconsciente. Para o autor, na neurose obsessiva, os
instintos de natureza sexual (pulsões parciais) operam por deslocamento. Por outro
lado, em ambos os rituais, na religião e na neurose obsessiva, são encontrados atos
de penitência. Tais cerimoniais obsessivos correspondem a defesas do Eu e suas
ações relacionam-se a pensamentos onipotentes, segundo Farias e Cardoso126. Para
estas autoras, elas são as únicas atividades presentes, considerando o contexto de
inibições e estagnações presentes na dinâmica obsessiva.
Como destaca Ferraz127, assim como na religião, na neurose obsessiva, os
desejos não são abolidos, mas proibidos. Com relação ao tabu do toque, afirma o
autor que a interdição deste ato relaciona-se à possibilidade do toque sexual e
agressivo, estendendo-se às ideias que igualmente não se tocam, pela via do
isolamento. Fédida apud Ferraz128 extrapola a neurose obsessiva em seu aspecto
patológico para usá-la como ferramenta de compreensão das manifestações humanas
a partir do lugar da sexualidade na civilização. No processo civilizatório, o ato (toque)
proibido foi substituído pelo pensamento e o neurótico obsessivo vive às voltas com

Revista Psicologia Clínica, Vol. 25, n. 1, Rio de Janeiro, Jul. 2013.


124 FREUD, S. (1909) Notas sobre um caso de neurose obsessiva. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. X. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
125 FREUD, S. (1907) Atos obsessivos e práticas religiosas. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira

das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
126 FREUD, op. cit.
127 FERRAZ, F. C. Tempo e ato na Perversão. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.
128 Ibidem, p. 239.
71

seus pensamentos, hiperinvestidos afetivamente, mas afastado do ato. Ainda que,


nessa neurose, existam atos, ações compulsivas, eles não são manifestações diretas
do erótico e do ódio. As compulsões129 obsessivas relacionam-se mais
especificamente à pulsionalidade (proibições frente às pulsões) e se manifestam
através do mecanismo da anulação, uma ação tem como objetivo eliminar outra. Os
sintomas que isolam o obsessivo afastam-no de seus desejos e que devem sempre
permanecer ocultos, em segredo, mortificados, pois são desejos incestuosos e
violentos, como afirma Delorenzo130. Nas palavras desta autora: “[...] desejo de posse,
de morte, desejo sádico, criança perversa”131. Ela assim o descreve: “O obsessivo,
refém da sua irredutível divisão, é ele ao mesmo tempo – a um só tempo – o insensato
obrigado a embarcar para o exílio permanente de si e o cidadão que o escorraça para
fora de seus muros.”132
No texto de 1908, Freud destaca a erotização do processo de defecação e sua
relação ao caráter obsessivo, que se forma a partir de pulsões a ele relacionadas
(pulsões parciais anais). Entre estes traços, Freud os exemplifica como teimosia,
moderação, meticulosidade e ênfase na ordem e organização.
Em 1913133, Freud desenvolve a ideia de uma fase134 sádica anal, como estágio
do desenvolvimento da libido relacionada a esta pulsão parcial. Futuramente, com o
desenvolvimento da segunda tópica psíquica e a noção de superego, Freud irá
enfocar na necessidade de punição e autocensura presentes na neurose obsessiva.
A noção de superego já estava implícita nos conceitos de instância ideal e
identificação com o pai morto de Totem e tabu. Neste texto, Freud135 também
descreveu a relação entre o primitivo, a criança e o obsessivo, enfatizando o papel do
ódio no desejo assassino, assim como o incestuoso. Destaco que no desenvolvimento

129 Para Farias e Cardoso, a noção de compulsão já aparece em Freud, antes de 1920, mas em relação
à sexualidade.
130 DELORENZO, R. Neurose obsessiva. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.
131 Ibidem, p. 63.
132 Ibidem, p. 43.
133 FREUD, S. (1913) A disposição a neurose obsessiva – uma contribuição ao problema da escolha

da neurose. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud.
Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
134 Strachey apresenta a cronologia da publicação realizada por Freud das fases do desenvolvimento.

Em 1913, a anal sádica, seguida pela fase oral, em 1915. Em 1923, o autor propõe a existência da
fase fálica. O editor comenta que a fase proposta em 1913 foi introduzida nos Três ensaios em 1915.
O autoerotismo e o estágio narcísico já haviam sido descritos anteriormente. A disposição a neurose
obsessiva – uma contribuição ao problema da escolha da neurose (1913). In: FREUD, S. Edição
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
135 FREUD, S. (1913 [1912-1913]) Totem e Tabu. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das

Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
72

do mito, o incesto não foi consumado – pelo menos pelos filhos, que não tinham
acesso às mulheres – permanecendo no campo do desejo, diferentemente da ação
parricida, consumada e que se torna estruturante da Cultura.
Como descrevi no capítulo anterior, há uma relação de proximidade entre a
identificação imaginária e o ódio e, para Delorenzo, o obsessivo permanece situado
entre o Eu e a imagem. Como já afirmado também, o ódio relaciona-se à constituição
do eu e do objeto, sendo que o primeiro visa manter e destruir o objeto.
Para Delorenzo:
[...] o eu é, em sua primeira aparição, essa instância frágil apanhada na malha
imaginária que a configura, pela palavra que a reconhece e pela imagem que a
totaliza. E se é na dependência desse reconhecimento que vive o eu, qualquer
movimento do objeto, passível de desfigurá-lo, é afastado com o ódio.136

Segundo a autora, o objeto é da ordem da dependência e deve ser mantido sob


controle pelo obsessivo, que procura estabelecer, na relação imaginária, a constante
reestruturação do Eu que, nesta neurose, está ameaçado de destruição e, por isso,
sempre defendido, rígido e isolado, pois esta perda de natureza imaginária equivale à
morte. Esta dimensão imaginária relaciona-se à paranoia, também como já mencionado.
Assim como na fase anal, a questão do obsessivo relaciona-se ao dar, perder,
a quem está no controle, quem diz não, à atividade e à submissão. Se por um lado há
um Eu grandioso do controle e do poder, há um objeto valioso produzido por ele, mas
que irá desaparecer. O objeto da fase anal, as fezes, que ele deve entregar ou reter,
que são objetos de interação entre o Eu e o objeto. Ainda em relação à analidade e o
narcisismo, Delorenzo aponta para a ambiguidade da atitude materna: pede algo
intensamente investido eroticamente e valorizado pela criança, sua primeira produção,
que será descartado, pela mãe. Para a autora, a partir daí, surge a dúvida – marca do
obsessivo – relacionada ao pedido materno, que gera angústia, já que a criança
identifica-se às fezes – objeto a ser separado de si, produzido por si – que vale, é
demandado, mas ao mesmo tempo não vale, é desprezado.
Também com relação a neurose obsessiva e narcisismo, ao fazer uma análise
em outra perspectiva do Homem dos Ratos, Menezes137 reconhece nesta patologia
uma cumplicidade narcísica do obsessivo com sua mãe, onde o ódio contra o pai é
decorrente da sua falha, pois este foi insuficiente na função de interdição, na

136 DELORENZO, R. Neurose obsessiva. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p. 52 e 53.
137 MENEZES, L. C. O Homem dos ratos e o lugar do pai. In: MENEZES, L. C. Fundamentos de uma
clínica freudiana. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.
73

passagem pelo complexo de Édipo. Para o autor, a falha estrutural, fonte permanente
de ódio, relaciona-se ao pai morto, derrotado e insuficiente, que não impede a posse
da figura materna; assim sendo, um pai que não permite ao filho à inacessibilidade à
mãe, cujo desejo insatisfeito, ele terá que corresponder. Dessa forma, permanece um
ódio inconsciente por essa figura, na possibilidade e perspectiva de sua
reconstituição, de que ele possa permanecer e ser mantido, através do erotismo
arcaico, caracterizado por ódio intenso, como propõe Menezes.

2.2.2 Paranoia

Inicialmente, nos textos de 1894 e 1896, Freud preocupa-se em diferenciar as


neuroses atuais das psiconeuroses de defesa, procura também explicar como as
defesas se processam e acaba por incluir a paranoia no contexto das psiconeuroses
ou psicoses de defesa. Esta própria caracterização indica que para ele, ela
representava um quadro defensivo frente a um conflito intolerável à consciência, que
era reprimido. Por isso, ela permanecia ao lado da neurose obsessiva, da histeria,
mas com mecanismo defensivo próprio, a projeção. Pela recusa da representação e
do afeto, perde-se parte ou todo contato com a realidade externa, o Eu que recusa,
foge à psicose. A defesa funciona como se nunca a representação tivesse chegado à
consciência e é, pela deformação dos elementos, que eles não podem ser
reconhecidos. É também pela via da projeção que se explica a desconfiança do outro.
No texto Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa, Freud138 vai
desenvolver a primeira formulação sobre a alteração do Ego na paranoia, além do seu
mecanismo específico, a projeção.
Apesar dessa rápida incursão pelo quadro paranoico, Freud139 utilizará o
livro autobiográfico de Daniel Schreber para elaborar suas ideias originais sobre a
paranoia. A obra fornece-lhe importantes subsídios para descrever tal patologia
relacionando-a aos conceitos de libido e narcisismo. Na parte 1, preocupa-se mais
com a descrição do caso e nas demais faz articulação à teoria. Assim como fizera em
outras ocasiões, parte de um fenômeno, no caso o delírio140, para descrever o

138 FREUD, S. (1896) Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa. In: FREUD, S. Edição
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
139 FREUD, S. (1911) Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia

(dementia paranoides). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
140 Freud diferencia o interesse limitado da psiquiatria por esta formação, que foge à racionalidade, em
74

funcionamento psíquico ‘normal’. Freud considerava a impossibilidade do tratamento


das psicoses pela psicanálise, em função da indisponibilidade do investimento libidinal
na figura do terapeuta, necessária para o estabelecimento da transferência,
mecanismo de onde ele opera; ao mesmo tempo, usa este conceito para falar da
relação entre Schreber e seu médico.
Daniel Schreber vem de uma família burguesa, é um culto intelectual, doutor
em Direito e juiz. Desenvolve uma primeira crise, diagnosticada por hipocondria grave,
é tratado pelo Dr. Flechsig, consegue restabelecer-se e desenvolve um sentimento de
gratidão pelo médico cuidador. O mesmo sentimento era partilhado pela esposa de
Daniel. Freud propõe que a dependência do paciente o levou a um sentimento de
natureza erótica. Apesar de feliz no casamento, ressentia-se pela ausência de filhos.
Após a nomeação para a presidência da Corte de Apelação, tem sonhos sobre o
retorno da enfermidade e uma ideia, que lhe ocorre em estado de semivigília, sobre
os benefícios em ser uma mulher para submeter-se ao coito com um homem. Rechaça
a ideia indigna e, posteriormente, tem uma segunda crise, com sintomas
hipocondríacos, delírio de perseguição e morte (acreditava estar morto e em
decomposição), grande sensibilidade sensorial, alucinações (auditiva e visual), seu
corpo – alvo do ataque – era o local de inúmeros padecimentos. Em função do intenso
sofrimento, tenta suicídio e pede que lhe deem cianureto. Na parte 2, Freud levanta
hipóteses sobre o sonho de recaída: este pode ter-lhe trazido a lembrança do médico
ou seria a manifestação de um desejo de revê-lo. Posteriormente, vai desenvolver um
delírio religioso, onde este atrai a si os nervos de Deus, que se torna futuramente um
perseguidor, que usa partes de si na criação dos homens e as recuperava a partir dos
mortos, ou seja, suas almas.
Há perseguidores, como Flechsig (que representa a figura transferencial do
paciente, reconhecida por Freud) e Deus, que não compreende os vivos e a quem
Schreber se submetia ou apresentava rebeldia hostil. Ambos desejam arruiná-lo.
Relata que palavras invadem sua mente, anunciando tragédias, e fazem ofensas.
Schreber será o único sobrevivente de uma destruição terrestre e, através da
feminização141 142 do seu corpo, trará a redenção da humanidade. De uma sensação

comparação ao da psicanálise, que pretende estudá-lo em sua gênese.


141 Freud considerou esse delírio como primário.
142 Enriquez aponta para importantes fatores ao discutir a relação da paranoia com à figura materna, a

partir do desejo de feminização do corpo na paranoia masculina – exemplificado no caso Schreber


– e sua relação com a homossexualidade e representação do corpo na fantasia. In: ENRIQUEZ, M.
75

de humilhação e abuso, há um segundo momento, em que a condição é aceita e,


assim, se daria a resolução do conflito, pois Schreber se torna objeto de gozo e prazer
a Deus, para a criação de uma nova legião de homens nascida pelo espírito dele, ou
seja, ele dará à luz à nova humanidade, como missão de salvamento. Freud relata a
passagem de Schreber do ceticismo (sua condição inicial) à religiosidade e da
intensificação da voluptuosidade, de natureza feminina, espalhada pelo corpo todo,
diferentemente da masculina, centrada nos genitais. Schreber fez sua própria defesa
para retornar à sua condição social e conseguiu. Teve alta um ano depois e publicou
sua obra autobiográfica (1903). Acontece mais uma internação posteriormente, que
durou até sua morte, quatro anos após a publicação das suas memórias, seguida do
adoecimento de sua esposa.
Freud já havia elaborado sua teoria sobre a libido e pôde aplicá-la ao caso, que
a corrobora. O delírio, até então sinônimo de insanidade, foi tomado como objeto de
análise, correspondendo a uma tentativa de cura, como forma de ligação do excesso
de libido que está no eu – a libido que flui dos objetos ao eu e dele aos objetos. Pela
retirada dela dos objetos, vem o terror da aniquilação e, através da produção do
delírio, a libido retorna a eles, ao exterior, daí a noção de tentativa de cura, como
descrito na parte 3143 do texto.
Em função da prevalência da projeção, Freud optou pela denominação
paranoia e estabeleceu diferenças em relação à esquizofrenia, pois, na primeira, não
há ruptura com a realidade, embora Daniel apresentasse fenômenos de natureza
esquizofrênica também.
Freud144 levanta a hipótese do medo da castração, em função da condenação
da atividade autoerótica masturbatória infantil, relacionando-o ao delírio da
feminização, correspondente a uma atitude passiva (posição feminina) perante o pai,
no caso, Deus. O irmão de Schreber estaria ligado à figura do médico para Freud. No
caso analisado, não há uma fantasia inconsciente de posição feminina, nem sua
elaboração, como se dá na neurose. Ela é posta em ato e garante a realização de um

Nas encruzilhadas do ódio: paranoia, masoquismo, apatia. São Paulo: Escuta, 2000.
143 Strachey considera que a terceira parte do caso Schreber mais o texto sobre os dois princípios do
funcionamento mental podem ser considerados os precursores dos textos sobre a metapsicologia
escritos nos próximos anos. Esse autor apresenta tal ideia na introdução da coletânea dos artigos
da metapsicologia reunidos no volume 14 das Obras Completas.
144 FREUD, S. (1911) Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia
(dementia paranoides). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
76

desejo intolerável a Schreber, que se submete ao conteúdo que vem de fora, a sua
transformação em mulher.
Na tentativa de formular uma teoria sobre a paranoia, com os elementos que
tinha disponíveis, Freud vai pensá-la em relação à ideia do narcisismo, sendo esta
patologia uma fixação narcísica defensiva, pois Freud já havia estudado a relação
entre homossexualidade e narcisismo no texto sobre Leonardo da Vinci, em 1910, e
a relaciona agora à paranoia, que corresponde a uma defesa em relação ao desejo
homossexual. Freud145 propõe que a ideia desenvolvida por Schreber em estado de
semivigília, relacionada a seu amor pelo Dr. Flechsig, precisou ser afastada da
consciência e levou ao desenvolvimento da doença. A libido homossexual presente
em relação ao pai e ao irmão não pôde ser transferida a um filho, cuja ausência era
lamentada por ele, como destaca Freud.
Como já visto, durante o desenvolvimento do Eu, há uma fase preliminar à
constituição dele – o autoerotismo – seguida do narcisismo e posteriormente o amor
objetal, inicialmente homossexual e, posteriormente, heterossexual. No movimento
regressivo da paranoia, a libido reflui da escolha objetal homossexual ao narcisismo.
Esta modalidade de escolha é de natureza narcísica, como Freud já pensara
anteriormente, na análise de da Vinci. Freud propunha que, no desenvolvimento
normal, há o deslocamento da tendência homossexual para a interação social
masculina, na forma de camaradagem e amor à humanidade.
Freud146 propõe mapear a localização do ódio, afeto predominante na paranoia,
a partir de diferentes contradições do pressuposto: ‘Eu, homem, amo outro homem’,
sendo que a projeção pode aparecer na etapa intermediária. Assim, no delírio de
perseguição, temos: ‘Eu o odeio, não o amo’, que pela via da projeção, torna-se: ‘ele
me odeia’; nesse caso, tem-se a mudança do verbo. Pela recusa e inversão no oposto,
torna-se: ‘eu o odeio, pois ele me persegue’, assim o ódio está justificado. Ele se
explica pela perseguição de um outro anteriormente amado. Na erotomania, muda-se
o objeto: ‘eu não o amo, eu a amo’, que pela via da projeção, torna-se ‘ela me ama’.
Com relação ao delírio de ciúmes, a alteração dá-se no sujeito, onde ‘eu não o amo,

145 FREUD, S. (1911) Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia
(dementia paranoides). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
146 Ibidem
77

ela o ama’. Por fim, no delírio de grandeza: ‘eu não o amo, apenas amo a mim’, onde
há uma supervalorização do ego. Freud elabora uma gramática do delírio ao afirmar:
Ora, poder-se-ia supor que uma proposição composta de três termos, tal
como ‘eu o amo’, só pudesse ser contestada por três maneiras diferentes. Os
delírios de ciúme contradizem o sujeito, os delírios de perseguição
contradizem o predicado, e a erotomania contradiz o objeto. Na realidade,
porém, é possível um quarto tipo de contradição – a saber, aquele que rejeita
a proposição como um todo. ‘Não amo de modo algum – não amo ninguém!’ 147

Pela projeção (mecanismo que acontece não somente na paranoia, mas


também fora do contexto psicopatológico), algo da ordem perceptiva interna vira
externo e sofre alteração. Além disso, Freud148 propõe outro mecanismo para explicá-
la: pelo recalcamento, a libido sofre desligamento da externalidade e, pela via
projetiva, o delírio seria o retorno dela. A ideia recalcada atrai a libido ao Eu, ocorrendo
fixação dela. O desligamento da libido é silencioso e o reinvestimento libidinal produz
o ruído, na forma de delírio.
Apesar da retirada da libido dele, o mundo externo não é excluído na paranoia.
Freud recorre à noção de narcisismo e recalcamento para explicá-la nesse momento.
Um novo mecanismo psíquico, posteriormente descrito por Freud, a recusa, vai
descrevê-la no futuro.

2.2.3 Melancolia

Peres149 apresenta o panorama conceitual anterior à elaboração de Luto e


melancolia destacando outros textos importantes, que poderiam compor com ele, uma
certa trilogia freudiana. Para a autora150, os textos A transitoriedade, Considerações
atuais sobre guerra e morte e Luto e melancolia compõem um trio, que pensa a
questão do luto e da morte, embora seja apenas no último que um quadro
psicopatológico estará mais descrito, no caso a melancolia.

147 FREUD, S. (1911) Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia
(dementia paranoides). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 72.
148 Ibidem
149 PERES, U. T. Uma ferida a sangrar-lhe a alma. In: FREUD, S. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac

Naify, 2011.
150 Ibidem
78

Em Luto e melancolia, Freud151 inicia apresentando a analogia feita entre


sonhos/ perturbações narcísicas e luto normal/melancolia152, tema que fornece
desdobramentos das ideias sobre narcisismo.
O luto decorre da perda de alguém ou algo que ocupe lugar especial na vida
de uma pessoa. Freud153 desconsidera o luto como algo patológico e desaconselha
tratamento deste, pois tal estado permite o prolongamento do objeto no psiquismo.
Nele, o sujeito não se encontra fusionado ao objeto, há uma diferenciação entre o Eu
e o objeto perdido e seu trabalho de elaboração implica, para o autor, um desligamento
da libido lembrança a lembrança, processo gradual e que libertaria o Eu para futuros
investimentos. Seria a satisfação narcísica pela vida que promoveria a ruptura com o
objeto, assim dá-se o encerramento do trabalho do luto. Diferentemente, há algo
perdido que é retirado da consciência do melancólico. Na melancolia, tem-se um
enlutamento permanente com a vida, perde-se o interesse no mundo e há uma perda
em relação a si próprio, em sua autoestima. Assim, no melancólico, há uma captura
pelo mundo interno, marcando seu isolamento frente a um mundo externo. A própria
pessoa é tomada como destino pulsional, sendo a autorrecriminação exclusiva da
melancolia, pois nela não há uma separação entre o eu e o objeto. Em função da
situação fusional com ele, não se sabe o que foi perdido. Temos um sujeito envolvido
em um intenso trabalho interno, semelhante ao luto, mas no caso da melancolia é o
Eu que se esvazia, ou seja, há empobrecimento egoico, manifesto no delírio de
inferioridade, que toma a cena. Na situação do enlutado, o mundo, e não o Eu, torna-
se vazio. Na melancolia encontramos antecipação da perda, medos ligados ao
empobrecimento, que revelam a relação entre dinheiro e libido. O autor apresenta um
enigma que toma o melancólico: O que o absorve de tal forma? A perda objetal é
retirada da consciência e se tem uma perda de natureza mais ideal, segundo Freud154.

151 FREUD, S. (1917[1915]) Luto e melancolia. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
152 No prefácio do editor, Strachey (1969) destaca que Freud havia comparado luto e melancolia

anteriormente, em 1897 e em 1910, quando participou de um debate sobre o suicídio. Strachey


destaca que Abraham propôs a Freud a forte ligação entre a oralidade e a melancolia.
Em uma nota de rodapé no texto de 1917, Freud afirma que Abraham fez o mesmo paralelo com o
luto ao estudar a melancolia. Luto e melancolia (1917) [1915]). In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Em um texto que apresenta um amplo panorama sobre o pensamento de Abraham, Mezan afirma
que este autor foi importante estudioso da psicose maníaco-depressiva, da relação desta com a
figura materna e as perdas de objeto. In: MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham,
Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999.
153 FREUD, op. cit.
154 Ibidem
79

Na melancolia tem-se uma divisão no Eu e uma parte toma a outra como objeto de
crítica, um adoecimento da consciência moral e, com todo o desenvolvimento
posterior do pensamento de Freud, podemos falar em uma patologia do supereu 155.
O autor fala que foi a censura que causou a doença. Na patologia, as queixas feitas
ao próprio Eu são dirigidas ao outro, o objeto de amor, com o qual o Eu se identificou,
mas isso está fora da consciência.
Segundo Freud156, o Eu é tratado como objeto na melancolia e foi a forte ligação
com este, a pré-condição para instauração do quadro patológico. A identificação
substituiu o investimento erótico e, dessa forma, não se renuncia ao objeto amoroso,
pois ele permanece no Eu. Não se retira a libido do objeto, mas transforma-se nele
por amor.
No texto ‘Introdução ao Narcisismo’, como citado, Freud157 apresenta um tipo
de escolha amorosa com base narcísica e, quando ocorre esse tipo de escolha, tem-
se uma regressão ao narcisismo, se há dificuldades na relação com o objeto. Foi a
revolta, a decepção frente à relação objetal prejudicada, que promove o retorno da
libido ao Eu via identificação, onde as críticas que deveriam ser dirigidas ao outro são
deslocadas ao próprio Eu, sendo algumas idênticas, como nos aponta Freud. A
melancolia aproxima a ideia do narcisismo e relação de objeto. Esse é uma etapa que
antecede a escolha de objeto para Freud e a identificação narcísica fica na base do
transtorno melancólico, onde há uma regressão ao narcisismo. Garcia-Roza158 propõe
um esquema que nos permite sintetizar os conceitos acima:
Escolha Narcísica → Identificação Narcísica → Perda de Objeto →
Identificação com o Objeto
Explica Garcia-Roza:
Para que as coisas tenham se passado dessa forma, Freud pressupõe que a
escolha inicial de objeto tenha sido feita sobre uma base narcísica, escolha
que é convertida em identificação narcísica. Essa é a razão pela qual o
investimento de objeto, quando encontra algum obstáculo, regressa ao
narcisismo.
A noção de identificação narcísica é a contribuição principal de ‘Luto e
melancolia’ para o estudo sobre o Narcisismo. 159

155 Freud considera o supereu do melancólico como a pura cultura da pulsão de morte em ‘O eu e o id’
(1923). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud.
Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
156 FREUD, S. (1917[1915]) Luto e melancolia. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras

Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.


157 FREUD, S. (1914) Sobre o Narcisismo: Uma introdução. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira

das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
158 GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana. Vol. III. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
159 Ibidem, p. 77.
80

Para esse autor, o conceito de identificação narcísica secundária, assim


denominada, é um segundo momento da mesma modalidade anterior de identificação,
que articula narcisismo com melancolia, pois narcisismo e identificação narcísica
apresentam modos semelhantes de funcionamento libidinal.
Da noção de um processo patológico, em 1917, Freud caminha para pensar a
identificação como processo constitutivo do Eu, que corresponderia a um conjunto de
resíduos de objetos abandonados.
Na escolha narcísica de objeto, este equivale ao ideal do Eu, há uma escolha
a partir do próprio sujeito. Freud a define como uma modalidade de escolha das
mulheres, perversos e homossexuais, mas não a restringe a esses grupos. Para
Garcia-Roza160, há um prenúncio do conceito de identificação narcísica em Totem e
tabu, com a noção de canibalismo, onde através da devoração 161 do objeto
incorporam-se suas qualidades.
A ambivalência também merece destaque ao se estudar a melancolia, pois é
uma resposta em relação à perda do objeto, que pode acentuar a ambivalência
anterior em relação a este, ou seja, o objeto era amado e odiado ou pode passar a ser
odiado por ter sido perdido. Pela regressão, o ódio retorna ao Eu (sadismo que vira
masoquismo), havendo ódio ao próprio sujeito. Como a ambivalência e,
principalmente, o ódio estão fora da consciência, evidencia-se assim o aspecto
inconsciente da melancolia. Por influência da repressão, tem-se o retorno do sadismo,
após a escolha de objeto ter regredido à identificação narcísica. O ódio é dirigido ao
objeto com o qual o Eu se identificou, objeto agora interno e presente no Eu. Pensando
dessa forma, o suicídio na melancolia é o desejo de matar o outro, com o qual se deu
a identificação. Isso fica fora da consciência do melancólico. Como já considerado, o
que fica na consciência é o conflito entre o Eu e a instância crítica. Para Freud162,
assim como na melancolia, o Eu é dominado pelo outro também na paixão. O autor
aproxima neurose obsessiva163 e luto patológico em função da ambivalência, o que

160 GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana. Vol. III. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
161 No tipo de identificação presente na melancolia, ocorre uma incorporação do objeto. O Eu modificado
pela identificação substitui o objeto perdido. Através dela, sempre há uma alteração no ego, mesmo
quando não se trata da melancolia. Para que o Id abandone o objeto, a identificação é necessária.
O ego e o id (1913). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund
Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
162 FREUD, S. (1917[1915]) Luto e melancolia. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras

Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.


163 Mezan afirma que Abraham identificou em pacientes momentos livres da depressão ou da mania e
81

justifica a culpa pela perda no enlutado. Freud164 propõe condições para a melancolia:
regressão da libido, perda do objeto165 e ambivalência. A última muito presente
também na neurose obsessiva.
A libido narcísica, energia ligada ao próprio Eu, explica tanto a melancolia
quanto a paranoia. Na primeira, Freud propõe dois destinos para a catexia: uma parte
retrocede via identificação e há retorno à etapa do sadismo, em função da ambivalência.
A melancolia corresponde a uma perda não simbolizada que incapacita o Eu.
O objeto é mais poderoso que o Eu, o que explica sua destruição na melancolia e é
por essa razão que se afirma: “a sombra do objeto caiu sobre o Eu”. O Eu do melancólico é
o que foi perdido.
Seria a regressão da libido ao narcisismo responsável pelo surgimento da
mania – às vezes, ausente no quadro melancólico. Nela, a energia encontra-se livre,
pois é como se o Eu tivesse ficado livre do objeto, que é inconsciente tanto na mania
quanto na melancolia, ou seja, há um triunfo sobre o objeto, o que explica o excesso
de excitação nesta condição. Toda essa energia evidencia a vitória do Eu sobre o
objeto. Tanto no luto quanto na melancolia, para Freud, temos a mesma condição
econômica na medida em que a libido se separa pouco a pouco do objeto e, com o
abandono dele, finaliza-se o processo da melancolia.
Em 1923, Freud166 reconhece a identificação como constitutiva do Eu e é a
possibilidade de alojamento do objeto de amor no Eu que permite o seu abandono,
em um movimento regressivo típico da fase oral do desenvolvimento. Geralmente, a
pulsão de morte aparece mesclada à pulsão de vida e, como consequência da
identificação, há defusão pulsional, promovendo dessexualização do objeto, que libera
a pulsão de morte e que, no caso da melancolia, acentua o caráter severo, cruel e
sádico do supereu na relação com o Eu. A pulsão de morte livre, desvinculada da

neles havia manifestações obsessivas. Em função disso, como considera Mezan, Abraham propõe
que as duas doenças têm a fixação na mesma fase, fazendo-o dividir a fase anal em duas subfases,
onde ambas têm relação com a destruição do objeto. A subfase de expulsão está relacionada à
psicose maníaco-depressiva; já a subfase de retenção seria o ponto de fixação que explica a
neurose obsessiva. Também há uma vinculação da melancolia à segunda etapa da fase oral para
Abraham, segundo Mezan. In: MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham, Psicologia USP,
São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999.
164 MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham, Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999.
165 Mezan propõe três situações envolvendo a questão da perda do objeto. Ela pode ser consequência

do ódio ou se relacionar ao desinvestimento libidinal nele, além da possibilidade de ele poder ser
alucinado, pois a relação anterior com ele já constituiu uma marca mnêmica. In: MEZAN, R. O
tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
166 FREUD, S. (1923) O ego e o id. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas

de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.


82

libido, encontra-se no supereu do melancólico, sendo esta uma das poucas situações
onde temos a pulsão de morte desvinculada de Eros, segundo Freud.
Situações de dificuldade na elaboração de lutos prolongados ou a ausência
desse trabalho abrem a possibilidade para a melancolia. No capítulo 1, apresento a
hipótese de Koltai sobre uma melancolização social contemporânea relacionada a
uma perda problemática coletiva não superada.
Baseado em Abraham, Fenichel167 propõe uma análise comparativa das três
patologias apresentadas. Na neurose obsessiva, há uma regressão à fase anal sádica
ulterior, de natureza retentiva, com desejo de dominar, segurar e prender,
caracterizando uma relação com objeto parcial ambivalente. Por outro lado, a paranoia
representa uma fixação na fase anal sádica inicial – relacionada ao mecanismo da
projeção – com desejos de expulsar, sujar, queimar o objeto parcial odiado. Por fim, a
melancolia corresponde a uma fixação na fase oral168 canibalesca – de sucção –
caracterizada pelo prazer em morder, destruir, visando esvaziar, roubar, e é
considerada ambivalente, marcada pela incorporação total do objeto, que caracteriza
uma relação com objeto narcísico – equivalente ao eu.
Tanto a melancolia quanto a paranoia e a neurose obsessiva são patologias
ligadas ao ódio e à pulsão de morte, que apresentam diferentes destinos em relação
a eles. Com relação ao objeto, ele apresenta-se interno na melancolia e externo na
neurose obsessiva e, neste caso, evidenciando uma separação dele em relação ao
Eu, diferentemente do estado fusional da melancolia e das psicoses em geral.
Segundo Mezan169, Abraham considera que na melancolia e na paranoia há uma
restituição do objeto atacado, que é introjetado na primeira ou retorna pela
externalidade na segunda.

167 FENICHEL, O. Teoria psicanalítica das neuroses. Rio de Janeiro: Atheneu, 1981.
168 Mezan afirma que Abraham estudou o erotismo oral, sua relação com amor e ódio, psicopatologia
e sua influência no desenvolvimento posterior, pois ele permanece em fases posteriores, onde há
resíduos dessa forma de relação. Mezan destaca a relação de objeto presente no erotismo oral, que
corresponde a uma forma de tomada do objeto. In: MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl
Abraham, Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999.
169 MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham, Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999.
83

2.3 A questão do ódio e da mãe na psicopatologia – paranoia e melancolia –,


uma expansão na compreensão das patologias

Alguns autores pesquisados, como Delorenzo170, Stein171 e Cromberg172,


trazem a questão da relação pré-edipiana, da criança com a mãe, para uma análise
ampliada da psicopatologia relacionada ao ódio.
Inicialmente, Freud desconsiderou o arcaico, relacionado à relação com a mãe,
pelo menos até iniciar sua teorização a respeito da sexualidade feminina, questão que
só foi trabalhada por ele no início dos anos 30, segundo Cromberg. Para a autora,
Freud vai se voltar à relação da menina com a mãe anterior ao Édipo, quando ele se
propôs a estudar a sexualidade feminina. Ele irá enfatizar a importância no
desenvolvimento da feminilidade da relação precoce da menina com a mãe, antes da
entrada na triangulação edípica, que envolve a presença paterna. A partir da relação
menina-mãe, que envolve várias pulsões parciais, há o desenvolvimento da
hostilidade, não mais restrita à entrada da menina no Complexo de Édipo. Como
propõe Cromberg, baseado em Freud, esta primeira vinculação – identificação é a
mais significativa no desenvolvimento feminino. A identificação feminina posterior é
um processo secundário a esta primeira modalidade. Assim, temos dois tempos de
identificação feminina com a mãe na constituição do feminino.173
Para a autora, Freud também elaborou a ideia da presença da
homossexualidade na gênese da paranoia feminina, mas acabou por chegar à
consideração de que a paranoia feminina relaciona-se à interação na fase pré-edípica.
Nas palavras de Cromberg:
Além disso, que nesta dependência da mãe se acha o germe da posterior
paranoia na mulher. Tal germe se acharia no temor de ser morta ou devorada
pela mãe, angústia que radica na hostilidade contra a mãe por causa das
restrições que impõe no curso da educação e cuidados corporais, com o
mecanismo projetivo facilitado pela imaturidade da organização infantil. 174

A mesma autora destaca o fato de que, embora Freud tenha apresentado as


ideias acima no contexto da descrição do desenvolvimento sexual da menina, os
pressupostos desenvolvidos nas relações precoces com a mãe podem ser

170 DELORENZO, R. Neurose obsessiva. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.


171 STEIN, C. As erínias de uma mãe: Ensaio sobre o ódio. São Paulo: Escuta,1988.
172 CROMBERG, R. U. Paranoia. 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.
173 CROMBERG, R. U. Paranoia. 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006, p. 130 e 131.
174 Ibidem
84

considerados para os meninos. Por outro lado, Cromberg problematiza tal


situação ao questionar:
Não haveria aqui um desconcerto e uma hesitação em atribuir igual
importância à fase pré-edípica na trajetória psicossexual do menino? Ou seja,
que no menino também está presente a fantasia passiva em relação à mãe
fálica – ser a mulherzinha da mamãe –, e não apenas a mulherzinha do papai
[…]”175

Tais considerações nos permitem ter uma maior ampliação conceitual na


compreensão de diversas patologias psíquicas e pensar em uma dinâmica
intersubjetiva mais ampliada.
Antes de finalizar esta seção, convém nos determos nas ideias referentes à
presença do ódio materno no psiquismo da mãe. Para Delorenzo176 e Stein177, fica
claro que Freud manteve-se restrito ao ódio na relação do menino ao pai, não
descrevendo da mesma forma a presença do ódio na e pela mãe, de certa forma
idealizando-a, chegando a descrever a relação do filho com sua mãe como a única
que exclui a ambivalência. Embora, ele afirme o desejo de morte na relação com a
mãe, priorizando sua presença nas meninas, por outro lado, nega a hostilidade
materna. Apesar de Freud178 considerar a presença e a repressão de sentimentos
hostis nas relações duradouras, reconhece a exceção à regra na relação da mãe pelo
filho. Em uma nota de rodapé no capítulo 6 do texto sobre a psicologia dos grupos,
assume declaradamente esse ponto de vista.
Em As erínias de uma mãe, Stein179 vai propor um novo mito que
complementaria o Édipo e que inclui o ódio materno na trama. O autor desenvolve a
relação entre o supereu e a mãe, pois é Jocasta, a mãe de Édipo, quem invoca as
erínias, figuras mitológicas vingadoras, para perseguir e punir o filho que desejou
saber a verdade dos fatos, conhecê-la e assim transgrediu o tabu materno,
desprendendo-se da relação dual, contrariando a mãe, perversa, incestuosa e que o
odeia. As erínias manifestam-se como remorso, permanecendo um vínculo
indestrutível na relação mãe e filho.

175 CROMBERG, R. U. Paranoia. 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006, p. 132.
176 DELORENZO, R. Neurose obsessiva. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.
177 STEIN, C. As erínias de uma mãe: Ensaio sobre o ódio. São Paulo: Escuta,1988.
178
FREUD, S. (1921) Psicologia de grupo e análise do ego. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
179 STEIN, op. cit.
85

Ódio, que nas palavras do autor, difere da agressividade hostil, sendo ele a
sombra do objeto que cai sobre o Eu. Stein180 relaciona o ódio da mãe ao ódio de si.
Ao mesmo tempo em que ele corresponde à possibilidade de distanciamento em
relação à mãe, ele restitui a díade; assim, serve à separação, oposição e
reaproximação da dupla. É na melancolia que se presentifica a perseguição pelas
erínias, que difere do ódio assassino. O ódio de si do melancólico é o ódio do objeto
– a sombra dele que cai sobre o eu. Assim, Stein181 vai desenvolver a noção de uma
melancolia constitutiva, não patológica, pois o laço permanente com a mãe representa
o ódio imortal. Nesse sentido, o ódio pré-edípico explica a gênese da melancolia.
Contudo, neste caso, ela é de outra natureza, de caráter estrutural.
Considerando a morte do pai em Totem e tabu, o pai morto representa um ideal,
equivale à representação da morte no luto, que reafirma a presença de um pai,
segundo Stein182. O autor propõe que Freud identifica-se com esse pai, com a face
heroica de Édipo. É pela inclusão da relação entre a figura materna e a melancolia
constitutiva que reconhecemos as dimensões materna e paterna no superego, o
superego moral (resultante da resolução do complexo de Édipo) e o arcaico (pré-
edípico e relacionado à mãe).
Para o autor:
Mas da mesma forma que a luz – ou seja, a ciência – provém do luto do pai,
a negra melancolia está ligada à figura de uma mãe; mais precisamente, esta
melancolia está fundada sobre o ódio inextinguível, imortal, que assegura um
laço indestrutível com uma mãe.183

A imortalidade da mãe expressa na perseguição realizada pelas erínias, o ódio


que restitui a unidade e que também representa o entrave à análise, no caso, o ódio de si.
Em Minerbo184 e Cromberg185, encontram-se referências à relação entre cena
primária, ódio e paranoia descrita por Aulaigner. Ambas destacam a importância desta
autora para a compreensão da paranoia, a partir da configuração familiar do doente.
Na constituição psíquica da paranoia, aparece um casal unido pelo ódio,
formado por uma mãe, desprovida de desejo, e um pai idealizado, muito erotizado,
mas que gera muita angústia. Entre o casal que se relaciona permanentemente a partir
do ódio, fica uma criança estimulada a odiar e receptora de mensagens desta

180 STEIN, C. As erínias de uma mãe: Ensaio sobre o ódio. São Paulo: Escuta,1988.
181 Ibidem.
182 Ibidem.
183 Ibidem, p. 47.
184 MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
185 CROMBERG, R. U. Paranoia. 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.
86

natureza. A mãe destaca a periculosidade do pai e a criança faz um vínculo com um


dos genitores – geralmente a mãe. Essa fica aterrorizada pela angústia de castração
que a violência paterna desperta. O pai violento186, que exerce seu sadismo em nome
de uma boa educação, é percebido pela criança que também o busca, quando sai da
fase oral, de extremo vínculo materno. Como consequência de uma tentação
homossexual, cria-se uma angústia e necessidade de negar a homossexualidade.
Após a desidealização paterna, o ódio toma a cena, ou seja, a subjetividade é
constituída por ele e a partir dele. Ocorre a vinculação à mãe e o combate ao pai,
diferentemente do complexo de Édipo, pois não implica a separação entre mãe e filho
e identificação dele com o pai. No conflito erotizado, a mãe também é considerada
perigosa e, como afirma Minerbo187, o casal disputa a função materna. A mãe precisa
manter o conflito: uma luta permanente com o pai de seu filho, que não é o do desejo
materno. A criança reconhece a erotização do conflito e se percebe como fruto do ódio
– testemunho da cena primária.
Para a autora, se não há uma saída via identificação simbólica, ocorre o
processo identificatório com o ódio, que é o da sua origem. A imagem paterna é
preservada como o mal, que precisa ser sempre confirmado e combatido em aliança
com a mãe, que tem seu sofrimento idealizado. Cria-se uma ilusão no par imaginário
eu-objeto, mãe-criança.
Assim, o paranoico vive para odiar e ter alguém que o odeie. Ele é necessário
de maneira plena, na gênese de suas relações. O paranoico frequentemente responde
a partir da vivência da cena primária caracterizada pelo ódio, fantasiado como
desunião, rejeição, onde o pai violento não pôde ser substituído pelo pai simbólico.
Em outras palavras, o paranoico cria suas representações de mundo, a partir da
violência da cena primária, como se seus óculos tivessem a lente do ódio, elemento
que serve para acessar a realidade, mas o combate ao perseguidor é indireto, pois
ele não é morto pelo paranoico, pelo contrário, cria-se uma fixação nas relações
sádicas e hostis. Minerbo188 considera que, pela projeção do ódio e do superego, há

186 Embora Freud não tenha reconhecido e enfocado a violência sádica do pai de Schreber, chegando
a valorizar suas condutas, Daniel Gottlieb (do alemão Amor de Deus) a atua sobre o filho.
Curiosamente, o nome do pai significa “amor de Deus”, figura a quem Schreber se entregará para
salvação da humanidade.
187 CROMBERG, R. U. Paranoia. 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.
188
MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
87

a criação do inimigo e a fantasia de ser preterido, como a justificativa para a


hostilidade.
Como afirma Cromberg189, onde haveria desejo e amor, encontra-se ódio e
conflito, segundo uma teoria delirante primária, que revela uma equivalência desejo-ódio.
A agressividade erotizada fica como marca das relações do paranoico com o outro.
Além da ideia de Menezes anteriormente descrita, complementando as ideias
sobre a neurose obsessiva, Farias e Cardoso190. baseadas em Dorey e Kristeva,
trazem algumas considerações sobre a relação pré-edipiana da criança obsessiva, no
caso, o filho e sua mãe. Neste relacionamento, marcado pelo excesso e desprovido
de erotismo, há uma intensa e, ao mesmo tempo, pobre satisfação das demandas da
criança, com um controle onipotente por parte da mãe fria e rígida em relação ao filho,
sem considerar a singularidade da criança. Assim, há uma sedução191 feita por
formação reativa – mecanismo de defesa muito utilizado na neurose obsessiva.
Kristeva apud Farias e Cardoso192 propõe que a mãe percebida como severa
corresponde a uma mãe depressiva que esconde essa condição da criança, que
inevitavelmente a carregará dentro de si. Nessa relação de aprisionamento e
complementaridade, há uma identificação da criança com essa posição de prótese
fálica da mãe. O futuro obsessivo tenderá a anular o desejo do outro como o seu assim
o fora, excluindo a dimensão erótica nas relações. Através da relação agressiva e
hostil, a interação onipotente estabelecida pela mãe é reatualizada, na forma de um
domínio exercido pela via do poder e da intrusão, segundo Dorey apud Farias e
Cardoso193. Para as autoras, no exercício das relações de dominação e onipotência,
o obsessivo traz a marca da relação com a mãe desprovida de desejo e da dimensão
erótica194. Na interação com o outro desejante, este não é percebido em sua
singularidade e necessita ser dominado e controlado. Se a relação violenta com o
objeto primário é vivida passivamente, ela é recolocada pelo obsessivo em ato e vivida
de maneira ativa agora. Estaria a compulsão obsessiva agindo na tentativa de o

189 CROMBERG, R. U. Paranoia. 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.


190 FARIAS, C. P.; CARDOSO, M. R. Compulsão e domínio na Neurose obsessiva: a marca pulsional.
Revista Psicologia Clínica, Vol. 25, n. 1, Rio de Janeiro, Jul. 2013.
191 A noção de sedução aqui apresentada refere-se à noção laplanchiana de sedução generalizada,

efetuada pela mãe nos cuidados dispensados ao bebê, sedução necessária e constitutiva da
dinâmica pulsional.
192 FARIAS, C. P.; CARDOSO, M. R. Compulsão e domínio na Neurose obsessiva: a marca pulsional.

Revista Psicologia Clínica, Vol. 25, n. 1, Rio de Janeiro, Jul. 2013.


193 Ibidem
194 Ibidem
88

neurótico obsessivo viver ativamente o excesso vivido de maneira passiva? Se


considerarmos tal hipótese, pode-se pensar que agora a compulsão obsessiva
desloca-se do sexual para o traumático.
Ao longo do Capítulo 2, foi possível perceber que a questão do ódio toma outra
posição na obra freudiana, a partir do estudo da neurose obsessiva. Até então, o
sadismo derivava-se da pulsão de domínio, que deseja controlar o objeto. Freud
acreditava que, na neurose obsessiva, há uma repressão do sadismo intenso, onde o
amor recalcaria o ódio. O estudo desta patologia levará Freud a desenvolver as ideias
presentes em Totem e tabu, apresentado e comentado no Capítulo 1. Foi através da
morte do pai da horda que o ódio foi controlado e ficou vinculado à figura do totem. O
banquete totêmico promoveu a diminuição do ódio, afeto que também está presente
na paranoia de Schreber. Na tentativa de articular o narcisismo à primeira teoria das
pulsões, Freud reconhece a gênese própria do ódio, relacionado ao Eu narcísico,
transformando o narcisismo em fonte de ódio. Na mesma tendência de vincular ódio
e objeto, como fizera no texto sobre as pulsões, Freud o faz na descrição da
melancolia, onde o objeto odiado permanece alojado, pela via da identificação, no
interior do Eu.
Na parte final do Capítulo, foram acrescidas concepções que ampliam as
teorizações freudianas sobre o ódio, destacando a participação da figura materna na
gênese dos quadros, deslocando a compreensão deles para o estágio pré-edípico.
Este enfoque escolhido nos conduz à teoria kleiniana, que será mostrada no próximo capítulo.
89

CAPÍTULO 3 – KLEIN: A TEÓRICA DO AMOR, DO ÓDIO E DA INVEJA

“Minha boca saliva porque eu tenho fome


E essa fome é uma gula voraz que me traz cativa.
Atrás do genuíno grão da alegria
Que destrói o tédio e restaura o sol
No coração do meu corpo um porta-joia existe
Dentro dele um talismã sem par
Que anula o mesquinho, o feio e o triste
Mas que nunca resiste a quem bem o souber
burilar” (Caetano Veloso)

No trecho acima encontram-se alguns conceitos utilizados por Melaine Klein e


que serão desenvolvidos ao longo deste capítulo: voracidade, objeto interno bom e
capacidade de amar. A autora construirá sua teoria a partir na noção da existência de
um conflito entre amor e ódio, a partir do dualismo pulsional freudiano de 1920.
Em Klein, a pulsão de morte expressa-se pela agressividade e fica como eixo
de suas formulações teóricas, mas em um sentido diferente do proposto por Freud.
Por isso, torna-se importante começar o capítulo com esta diferenciação. Segundo
Zimerman:
Diferentemente de Freud, na concepção kleiniana, a pulsão de morte alude a
uma força, inata, que, voltada para a preservação da vida, luta com uma
instintiva energia agressiva – diretamente ligada e confundida com o conceito
dela, de ‘inveja primária’ – a qual, quando estiver num patamar excessivo, se
transforma numa agressão sádico-destrutiva (portanto, carregada de ódio,
contra os objetos frustradores de suas necessidades básicas).1

Analisando o trecho acima, percebe-se uma diferença significativa sobre a


concepção de pulsão de morte para Freud e Klein. Se para ele, esta opera na direção
ao zero de excitação, da eliminação total dela, como função que tende ao retorno do
estado anterior à vida, para Klein, pulsão de morte equivale ao impulso agressivo
destrutivo, logo, mais próximo ao ódio, algo inato que se assemelha a este. Se ela
aproximou mais ódio da pulsão de morte, Freud o deslocou mais para a direção do
narcisismo, pelo menos em um primeiro momento. Posteriormente, ele o aproximará
da pulsão de morte também.
Em consequência dos ataques ao objeto, consequência do impulso agressivo,
expresso no sadismo, surge um sentimento de culpa e medo da destruição realizada
e, como possibilidade de retaliação a ser sofrida, surge a persecutoriedade, onde os

1 ZIMERMAN, D. Os quatro vínculos. Porto Alegre: Artmed, 2004, p. 113.


90

objetos atacados pelo sadismo (representante da pulsão de morte) fariam um contra-


ataque ao bebê, em uma espécie de lei de Talião.
No Dicionário do Pensamento Kleiniano, no capítulo Agressão, sadismo e
pulsões componentes, Hinshelwood2 começa diferenciando as concepções de Freud
e Klein sobre os estágios do desenvolvimento da libido, que correspondem às fases
que permitem certas modalidades de prazer, experiências e formas de relação. Neles
há predomínio de certas zonas erógenas. Em uma certa fase podem ocorrer fixações,
a partir de regressões, mas, como propõe Freud, há uma ideia de progressão linear
de uma a outra. Diferentemente da concepção dele, para Klein, todos os componentes
estavam presentes no primeiro ano de vida. Nas palavras de Hinshelwood:
Ela realmente não lançou fora a teoria da libido e a sequência das fases
sexuais infantis. Apegou-se a ela formalmente, ao mesmo tempo em que
apontava para o fato de que as fases não mais progridem como um horário
de estrada de ferro (a própria analogia de Abraham). Elas são comprimidas
todo o tempo, mas ainda apresentam uma sequência de dominância de
impulsos a princípio, os impulsos orais dominam os anais; depois, estes
começam a afirmar-se e se tornam dominantes em relação aos orais e genitais.3

Abraham influenciou o pensamento kleiniano, pelo fato de ele ter dado ênfase
à parte sádica da libido e também por ter lançado a ideia de certas formas de erotismo
que correspondem às modalidades de relação com objetos, oral, anal, fálica, e que
podem coexistir, como propõe Mezan4. Este autor afirma que para Abraham o
erotismo oral permanece nas próximas fases e a relação de apreensão do objeto que
deve ser considerada, independente da zona erógena.
Como esclarecem Cintra e Figueiredo:
Klein fala dessa hybris por excelência que é a voracidade presente no
dinamismo oral, anal e fálico. A voracidade, na sua dimensão propriamente
oral, se expressa por meio das fantasias de sucção vampiresca e da
incorporação oral do objeto de amor. Em sua manifestação sádico-anal, a
voracidade se expressa pelo excesso de possessividade, do desejo de
controle e completo domínio muscular sobre o objeto – que leva o dinamismo
esfincteriano à fantasia de estreitar e estrangular o objeto. Na sua forma
uretral e fálica, trata-se da ambição desmesurada, ou ainda da competição e
das fantasias de penetrar, tomar posse e triunfar sobre o objeto. 5

Cabe ressaltar a importância de se fazer duas considerações iniciais, antes de


desenvolvermos mais amplamente as ideias da autora. Quando se estuda a obra de

2 HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.


3 Ibidem, p. 70.
4 MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham, Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999.
5 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004,

pp. 59-60.
91

Freud, dividida nas fases do desenvolvimento psicossexual, tem-se a impressão de


que as fases foram simultaneamente elaboradas, não sabemos qual a ordem da
concepção teórica delas – exceto se procurarmos historicamente como se deu a
construção teórica de cada uma delas. Em Klein, pelo descrito acima, há uma ideia
de fases do desenvolvimento, embora tenhamos uma combinação, uma
sincronicidade delas, ou seja, há um sadismo oral e anal desde cedo, ao mesmo
tempo que impulsos genitais precoces também aparecem na criança. A pulsão sádica
de domínio pré-sexual será posteriormente ligada à sexualidade. As noções de fases
pré-genitais e genital já aparecem nos primeiros textos da autora, antes da formulação
do conceito de posição.
No verbete Agressão, sadismo e pulsões componentes, Hinshelwood6
apresenta quatro textos relacionados à questão da agressão: A descoberta do
sadismo na criança pequena, de 1920, As primeiras origens do superego, da culpa e
do remorso, de 1927, Situações infantis de ansiedade, de 1929, e O sadismo como
manifestação da pulsão de morte, de 1932.
Para Cintra e Figueiredo7, a genitalidade precoce decorre das frustrações oral
e anal mais a sedução materna8. Também a insatisfação em relação à mãe permite a
busca de satisfação no pai. Isso não impediu a autora de utilizar as ideias de Freud
sobre as fases da libido, que foram complementadas, ao serem subdivididas, por
Abraham, discípulo de Freud e analista de Melanie Klein.
Uma ideia possível é a que as formulações sobre as posições
(esquizoparanoide e depressiva) em Klein foram teoricamente concebidas ao mesmo
tempo ou formuladas segundo a mesma cronologia com a qual elas surgem, no
desenvolvimento da criança. No prefácio do livro Amor, culpa e reparação, Money-
Kyrle9 afirma a necessidade de diferenciar, no conjunto da obra kleiniana, as ideias
surgidas mais tardiamente das outras mais antigas e o percurso do pensamento da
autora para localizar o contexto da produção dos novos conceitos. É sob essa
perspectiva que será feita a análise neste capítulo.

6 HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.


7 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
8 Embora Freud fale sobre o fato de a mãe erogeneizar o corpo de bebê, através de seus cuidados,

foi Laplanche que desenvolveu a noção de teoria da sedução generalizada, onde a mãe, através
da sexualidade materna, vai invadir o corpo da criança com suas fantasias sexuais inconscientes,
que por seu excesso frente à imaturidade da criança é traumática para ela. Esta sedução traumática
e constitutiva é um fator a que toda criança está submetida.
9 MONEY-KYRLE, R. Prefácio. In: KLEIN, M. Amor, Culpa e Reparação – e outros trabalhos 1921-

1945. Rio de Janeiro: Imago, 1996.


92

Procurando fazer uma análise histórica10 da construção das ideias sobre as


posições, o percurso teórico se deu de maneira bem diferente: a posição
depressiva foi formulada anteriormente e em conjunto com outras posições:
paranoide, maníaca e obsessiva. Estas acabaram sendo abandonadas
posteriormente. As duas últimas tornaram-se modalidades de reparação, fenômeno
de extrema importância na posição depressiva, resultado da culpa pelos ataques
feitos ao objeto.
Em 1935, Klein descreve o desenvolvimento em termos de posição depressiva
e paranoide, que ganhará o estatuto de posição esquizoparanoide na década
seguinte. No mesmo texto em que Klein formula esta posição, a autora desenvolverá
a noção de identificação projetiva, conceito já pré-formulado em seus textos
anteriores, mas que ganha um estatuto mais definido e de grande importância não só
para ela, como para seus discípulos. A década seguinte aos conceitos formulados em
1946, será o período da descoberta e do desenvolvimento conceitual sobre inveja,
que articulará conceitos anteriores e fornecerá outra possibilidade de compreensão
às suas ideias. A observação e descrição de sintomas depressivos em crianças é
anterior à formulação da posição depressiva. Mezan11 destaca o fato de que Abraham
já havia descrito a depressão infantil e sua relação à perda do objeto, antes da
formulação do conceito de posição depressiva por Klein.
Outro aspecto a que cabe destaque, antes de iniciar a descrição do
pensamento kleiniano, é a noção da forte concretude de imagens que suas ideias
apresentam, mas, como destacam Cintra e Figueiredo12, nosso próprio aparelho
psíquico funciona por meio de representações, na forma de imagens13, onde a
figurabilidade descrita por Klein, como fantasias, representa processos mentais
arcaicos. Basta observar brincadeiras e comportamentos infantis para verificar certas
fantasias e predomínio de alguns impulsos, para não nos espantarmos tanto com
algumas fantasias descritas por Klein. Ela usava a brincadeira da criança como sua
forma de associação livre e dessa forma, formulou a ideia que necessidades

10 As notas introdutórias aos textos da autora feitas pelo editor, autores como Figueiredo e Cintra,
Laplanche e Pontalis, e Hinshelwood vão nos permitindo criar essa historicidade.
11 MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham, Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999.
12 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
13 O próprio trabalho onírico apresenta tal modalidade de funcionamento.
93

pulsionais (ou como dizia Klein, instintivas) constituem fatos mentais e seriam formas
de memórias em sensações, como propõem Cintra e Figueiredo14.
Com relação à noção de posição, uma ideia que não exclui o conceito de fases
do desenvolvimento, encontram-se justificativas para a sua utilização em diversos
autores consultados (Cintra e Figueiredo 15, Laplanche e Pontalis16, Hinshelwood17,
entre outros).
A “teoria das posições” foi uma construção secundária no pensamento da
autora, após uma primeira fase de desenvolvimento teórico. Segundo Cintra e
Figueiredo 18, falar em posição permite a ideia de sincronicidade, com dominância de
um polo, algo semelhante a um pêndulo, que se desloca continuamente entre uma
dupla polaridade. Outros exemplos que também podem dar figurabilidade, aliás de
natureza corporal semelhante à tendência kleiniana, são inspiração e expiração,
contração e relaxamento cardíacos, sempre interdependentes. Além de fornecer os
exemplos citados, Cintra e Figueiredo19 destacam a relação dialética entre as
posições, o vínculo da psicopatologia a elas, embora diferentes quadros apresentem
aspectos que envolvem as duas posições, ou seja, uma doença não é causada por
dificuldades relativas a uma delas apenas. As formas de lidar com as realidades
interna e externa variam em cada uma das posições. Elas descrevem fantasias,
relações de objetos que delas se constituem e que não apresentam sucessão estática
e permanente. Uma criança20 ou adulto, que tenha atravessado a posição depressiva,
pode apresentar angústias referentes à posição esquizoparanoide, a partir de uma
situação perturbadora, experimentada ao longo da vida. A própria culpa
experimentada na posição depressiva pode reconduzir o psiquismo a uma dinâmica
mais esquizoparanoide.
O objetivo deste capítulo é comentar os textos que correspondem à formulação
do conceito de posições depressiva, anos 30, e esquizoparanoide, anos 40. As

14 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
15 Ibidem
16 LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
17 HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
18 CINTRA; FIGUEIREDO, op. cit.
19 Ibidem
20
Os autores destacam a ênfase que Klein oferece ao primitivo e mecanismos profundos da vida
psíquica, da referência à criança no psiquismo do adulto – algo que a aproxima de Ferenczi, de quem,
para os autores, ela é fiel discípula.
94

posições fornecem-me importantes conceitos para pensar o material ilustrativo no


próximo capítulo, além de abordarem a temática do ódio.
Para Hinshelwood21, a psicanalista dá grande importância à participação do
sadismo, que seria a forma extrema da agressão. Foi muito influenciada pelas ideias
de Abraham22 sobre as fases precoces do desenvolvimento e o elemento sádico da
libido, sendo a agressão um fator importante do desenvolvimento. Como afirma
Mezan23, Abraham permanece fiel à noção de ambivalência e à teoria da libido,
propondo que parte desta é de natureza sádico-agressiva. Para esse autor, no
pensamento de Abraham, o conflito permanece no campo da libido, que tem
tendências opostas. Ele dividia as fases24 oral, anal e genital em duas, mas reconhecia
nelas certa linearidade.
Klein irá aproximar-se da noção de pulsão de morte e na complementaridade
da pulsão de vida – nos anos 30. A noção de angústia, como consequência da pulsão
de morte, é uma ideia permanente, a partir de então. A autora considera que a pulsão
de morte pode estar unida à libido ou defusionada, sendo assim responsável pela
ansiedade de aniquilação.
Para Klein, a angústia não é desencadeada pela libido, como pensava
inicialmente Freud, na sua primeira teoria da angústia. Da noção de conflito pulsional,
Klein caminha para a teoria das relações de objeto, com seu dinamismo envolvendo
amor e ódio.
Ao atender crianças com intensas inibições no desenvolvimento da capacidade
da formação de símbolos, em especial na descrição do caso Dick, Klein percebe que
impulsos epistemofílicos relacionam-se a componentes da agressividade, ou seja, do
sadismo, que é deslocado à mãe que frustra e, em especial, ao seu corpo. Tais
impulsos equivalem ao sadismo anal sublimado, a partir da pulsão de domínio – noção
já desenvolvida por Freud. Nas inibições, houve uma expulsão precoce do sadismo,
pouco tolerado pela criança. Se por um lado, a eliminação dele é uma defesa para a
diminuição da ansiedade, ela é obstáculo à simbolização, pois para Klein:

21 HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.


22
Spillius considera que Klein permanece mais ligada a Abraham e Freud até 1935 em relação à
noção de fases da libido. In: SPILLIUS, E. B. Uma visão da evolução da clínica kleiniana. Rio de
Janeiro: Imago, 2006.
23
MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham. Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999.
24 Os estados paranoides descritos por Klein associam-se inicialmente à fase anal e depois à fase oral.

Para ela, a ambivalência está presente desde a fase oral precoce. In: LAPLANCHE, J.; PONTALIS,
J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
95

Uma certa quantidade de ansiedade é a base necessária para que a


formação de símbolos e a fantasia ocorram em abundância; é essencial que
o ego possua a capacidade adequada de tolerar a ansiedade, a fim de
elaborá-la de forma satisfatória.25
Com base na citação acima, se considerarmos a ansiedade em questão como
representante da pulsão de morte, é possível pensar que haja uma potencialidade
desta no psiquismo, pois, o simbolismo é de extrema importância no desenvolvimento
infantil.
Apoiada em Segal, Spillius26 diferencia a maneira como ocorre a formação de
símbolos em cada uma das posições. Na esquizoparanoide, há um símbolo que
equivale ao objeto, eles se confundem. Já na posição depressiva, o símbolo é criado
pelo Eu, havendo uma separação entre este e o objeto, que é representado por ele.
Klein desenvolve uma noção de extrema importância, que é a de objeto interno,
cuja gênese se dá a partir de fenômenos corporais, em função de equivalências, que
permitem a criação de relações simbólicas pela criança, para a ocorrência de
fantasias e é, a partir delas, que esses objetos são constituídos. Em outras palavras,
as pulsões – ou, na linguagem da autora, os instintos – têm representações psíquicas
que equivalem às fantasias e constituem objetos. Assim, a capacidade alucinatória é
inata, diferente da concepção freudiana, que a vê como resposta à ausência do objeto,
que anteriormente se fez presente. As experiências, em especial as corporais,
produzem fantasias que envolvem objetos parciais bons e maus. Dessa forma, a
pulsionalidade irá corresponder a um fato psíquico e criar objetos internos, e a relação
com a realidade externa é consequência das relações entre objetos, como, por
exemplo, a fome permite que uma experiência seja criada, envolvendo o ataque de
um seio mau.
Klein também difere de Freud deslocando a ideia de pulsão para um campo
mais emocional, em uma visão mais psicológica, como afirma Barros27. Através do
corpo, as pulsões se expressam, ele não é sua fonte. Elas se configuram como
experiências emocionais que produzem amor e ódio. A autora afirma:

Em sua natureza psicológica, as pulsões são experiências emocionais,


paixões relacionadas a pessoas. As pulsões de vida e de morte estão

25 KLEIN, M. (1930) A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do Ego. In: KLEIN, M.


Obras Completas de Melaine Klein. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 253.
26
SPILLIUS, E. B. Uma visão da evolução da clínica kleiniana. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
27 BARROS, M. N. C. A trama paradoxal do ódio no psiquismo. Tese de Doutorado, Universidade

Católica de Pernambuco, Recife, 2013, p. 90.


96

encerradas na experiência, e amor e ódio são forças motivacionais


fundamentais, polos do conflito na experiência humana.28

Barros diferencia, também, a concepção de objeto da pulsão em Freud e Klein.


Enquanto ele acredita na contingência do objeto da pulsão29, sendo um meio
secundário para satisfazê-la, Klein acredita que ele – o objeto – é criado a partir das pulsões.
Objetos bons, que se introjetados, constituem fonte de segurança e de vida e
os objetos maus, que assim se apresentam, pois recebem a agressividade projetada,
a partir da frustração, e equivalem a perigos de diversas naturezas (destruição,
aniquilamento, envenenamento, devoração etc.). Eles constituem imagos de terror
distorcidas pela pulsão, que são incorporadas ao Eu e também presentes no mundo
externo, que fica assim alterado pelas fantasias. Por outro lado, os objetos bons, se
extremamente idealizados, convertem-se em objetos maus e perseguidores.
Em um primeiro momento de sua obra, Klein ainda mistura sadismo com
sexualidade, mas a destrutividade posteriormente será descrita independentemente,
a partir da noção de pulsão de morte.
Diferentemente do pensamento de Freud, Melanie Klein pensa na presença
precoce das tendências edipianas. A concepção de um Édipo precoce afasta a autora
da formulação freudiana, mas por outro lado este conceito, além da noção de sadismo
e de um superego arcaico e cruel, são construções a partir da experiência clínica da
autora. Inicialmente, há a ideia de um superego precoce e de um Édipo de mesma
natureza, que se relaciona às experiências de inclusão e exclusão, e que corresponde
ao momento do desmame. A ideia da precocidade edípica é justificada pela frustração
que um bebê enfrenta desde cedo, onde há, além dele e de sua mãe, um outro, a
quem se dirige a mãe nos momentos de ausência. Há uma angústia de perda ligada
a esta triangulação, segundo Cintra e Figueiredo30.
Para esses autores31, o movimento que impulsiona ao desenvolvimento para
Klein é conduzido pelo ódio, a partir da frustração, e as primeiras defesas são

28 BARROS, M. N. C. A trama paradoxal do ódio no psiquismo. Tese de Doutorado, Universidade


Católica de Pernambuco, Recife, 2013.
29 Como já afirmei no capítulo anterior, com base nas ideias de Menezes, Freud muda a concepção

de objeto dez anos depois da formulação acima. Mesmo com esta alteração, a noção kleiniana
ainda pode ser considerada bem distinta das freudianas.
30
CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
31 Ibidem
97

construídas contra o sadismo32. Como afirma Barros33, o desenvolvimento da libido


dá-se do ódio (predominante na etapa pré-genital) para o amor (dominante na etapa genital).
Se para Freud o ódio cria o objeto e a externalidade, a partir de um primeiro
momento narcísico, como descrito no capítulo anterior; para Klein, ele está articulado
à estruturação de um superego, ao conflito com o amor nos objetos parciais e
integrado a ele nos objetos totais, além da presença dele na inveja primária. A autora
defenderá a ideia de uma passagem do superego cruel para uma consciência moral,
ao longo do desenvolvimento, ou se quisermos relacioná-lo às posições: do superego
da posição esquizoparanoide ao da posição depressiva.
Como destacam Cintra e Figueiredo 34, é pelo reconhecimento do outro que se
dá a possibilidade de inserção no social, regulamentado por leis e é a isso que a
elaboração da posição depressiva conduz. Fenômenos antissociais, como atacar,
matar, destruir e agredir, correspondem a situações relacionadas à posição
esquizoparanoide, ondo o ódio ao objeto predomina. Tal correlação vai nos fornecer
elementos para pensar as questões formuladas no primeiro capítulo. Não estamos
funcionando socialmente em um modo esquizoparanoide? Posição de natureza
narcísica, com objetos (visões) polarizados (parciais), desintegrados, com
preocupação exclusiva do Eu em detrimento absoluto do outro (o que eu acredito
apenas é o que é verdadeiro), o mal e o bem plenos, a exacerbação do narcisismo
das pequenas diferenças e a nossa sociedade gritando a partir da moralidade da lei
de Talião. Também relacionando a posição esquizoparanoide e a sociedade, afirma Simanke:
Situações regressivas individuais ou coletivas podem reativar essa
configuração a qualquer momento, o que se manifesta claramente na
demonização ou no endeusamento de certos personagens, algo
característico dos fenômenos de massa.35

Que situação regressiva podemos pensar na gênese deste funcionamento


coletivo? Seria a desilusão, o luto não elaborado dos sonhos emancipatórios a que se
refere Koltai, descrito no Capítulo 1? Seria o desamparo a que a desigualdade social
conduz?

32 Cronologicamente, a etapa da maior intensidade do sadismo no desenvolvimento diminui.


Inicialmente, era considerada contemporânea ao desmame, depois aparece desvinculada de
processos fisiológicos/ orgânicos. A ideia de um sadismo primário é semelhante à primeira
formulação de Freud sobre este. Como exposto no Capítulo 2, posteriormente Freud defende a
ideia de um masoquismo primário, em 1924.
33 BARROS, M. N. C. A trama paradoxal do ódio no psiquismo. Tese de Doutorado, Universidade

Católica de Pernambuco, Recife, 2013.


34 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
35 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio

– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019, p. 137.


98

Posteriormente, nos anos 30, Klein não considerava mais o sadismo associado
à libido, como componente dela, passando a descrevê-lo como efeito de uma pulsão
separada, manifesta na clínica, onde ela analisava as brincadeiras infantis e
observava claramente a agressividade sádica. No mesmo período, Klein vai
diferenciar as duas modalidades de angústias – culpa e persecutoriedade.
As noções de ódio, destruição e agressividade atravessam a obra kleiniana, em
que, da noção de ataques decorrentes do sadismo relacionado à libido, caminha-se
para reconhecer o ódio como representante da pulsão de morte e chegando à noção
de inveja, em 1957, que reconfigura noções anteriores.
Para Hinshelwood36, Klein pensa o desenvolvimento a partir do conflito entre
pulsão de morte e pulsão de vida e, apesar da fusão das duas categorias pulsionais,
o predomínio da pulsão de morte leva a inveja, masoquismo, perversão, agressão
patológica, entre outros. A projeção da pulsão destrutiva faz com que o objeto externo
corporifique a ameaça, assim, a destrutividade permanece dentro e fora, na imago do
objeto perseguidor. Para Klein, agressão equivale a pulsão de morte e destrutividade.
A noção de superego37 precoce é consequência da violência pulsional
retornada à própria pessoa. Klein também pensa na relação entre superego cruel
arcaico e a identificação com a mãe (ideia já descrita no capítulo anterior e
desenvolvida por psicanalistas contemporâneos), que constitui uma imago materna
dentro da criança, e também às fases pré-genitais da libido, nas quais os objetos
atacados sadicamente, quando introjetados, irão compor o núcleo superegóico e, é
em função do sadismo, que o superego se torna terrível, quando o objeto é
internalizado. Como esse processo envolve fantasias sádicas (vorazes e hostis) a
partir de um desejo frustrado, há um superego cruel38, diretamente proporcional à
frustração.
Cintra e Figueiredo39 consideram que inicialmente era o sadismo da criança
equivalente à severidade do superego, mas a noção de projeção, desenvolvida nos
anos 30, amplia a concepção anterior. O sadismo projetado, posteriormente

36 HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.


37 Apesar de construir uma teoria diferente do supereu, que o considerava herdeiro do complexo de
Édipo e tardio, Klein aproxima-se de Freud ao relacioná-lo à pulsão de morte.
38 Klein propõe a relação entre o superego e tendências criminosas em delinquentes e crianças
normais. Ele se relaciona ao sadismo pré-genital dominante no psiquismo precoce. Tendências
criminosas em crianças normais (1927). In: KLEIN, M. Obras Completas de Melaine Klein. Rio de
Janeiro: Imago, 1996
39
CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO, L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
99

introjetado, descreve a origem do supereu arcaico, violento e sádico, pois cruel. Na


formulação dessa década, o ódio é quem inicia a gênese do superego, assim como o
conflito edipiano e é a presença intensa do sadismo que interfere no desenvolvimento.
Simanke40 considera que Melanie Klein promove uma síntese das duas
formulações sobre o ódio em Freud: uma pulsional e outra intersubjetiva. A primeira
relacionada ao segundo dualismo pulsional, ao seu destino, e a segunda, como
resposta ao objeto, à sua presença.
Com relação ao aspecto da intersubjetividade e da importância do fator
ambiental na teoria kleiniana, Figueiredo41 apresenta argumentos para não
aceitarmos Klein uma autora que desconsidera o fator ambiental. Para o autor, Klein
parte da ideia da existência de dois espaços: dentro e fora, que é condição para a
ocorrência da identificação projetiva, além do conhecimento prévio que o bebê tem da
mãe, a quem cabe gratificá-lo ou frustrá-lo, na dinâmica que caracterizará as primeiras
fantasias de objetos bons e maus. A presença materna é fundamental para que
ocorram processos de identificação de ambas as naturezas, na posição
esquizoparanoide, que implica necessariamente a presença do outro, também é
fundamental na passagem pela posição depressiva, onde as atividades de reparação
do objeto constituem fenômeno de extrema relevância. Elas demandam a presença
do objeto para acontecer. Na dinâmica entre os mundos interno e externo, para o
autor, assim como a externalidade é consequência da percepção, a partir do mundo
interno, este é reorganizado pela externalidade, ou seja, há uma organização que se
processa internamente e que depende dos objetos da experiência. A própria
frustração que o ambiente pode proporcionar desmedidamente aumenta a projeção e
posterior introjeção do sadismo, que se relaciona à pulsão e frustração causada pelo objeto.
O texto de 193542, de grande complexidade teórica, juntamente com outro de
194043 parecem complementar-se, assim ‘Contribuição à psicogênese dos estados
maníacos depressivos’ e ‘O luto e suas relações com os estados maníacos
depressivos’ dão à autora uma tendência teórica, como reconhecem Figueiredo e Cintra:

40 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio
– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.
41 FIGUEIREDO, L. C. A falta que Bion faz: considerações sobre as relações de objeto e a intersubjetividade

nas teorias psicanalíticas. Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 54, n. 1, 2020.
42 KLEIN, M. (1935) Uma contribuição a psicogênese dos estados maníaco-depressivos. In: KLEIN, M.

Obras Completas de Melaine Klein. Vol I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.


43 KLEIN, M. (1940) O luto e suas relações com os estados maníaco-depressivos. In: KLEIN, M. Obras

Completas de Melaine Klein. Vol I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.


100

[...] Melanie Klein é a teórica das perdas, do luto e da melancolia não só como
episódios contingentes e acidentais, mas como partes integrantes e
indispensáveis da travessia existencial de cada um de nós. A saúde mental
não significa escapar a esse destino, e sim, ao contrário, assumi-lo.44

O texto de 1940 sobre o luto, no qual a autora o diferencia da forma mais


patológica – algo como Freud fizera mais de vinte anos antes –, também permite um
maior desenvolvimento da noção de posição depressiva, posição que não exclui a
ambivalência, momento do confronto entre amor e ódio, posição a ser elaborada, que
envolve maior contato com a realidade e integração, com os limites e com a perda de
ideais45, segundo esses autores. A nota explicativa da Comissão Editorial diferencia
a visão de Klein da freudiana, pois para a autora há estados maníaco-depressivos
mesmo no trabalho de luto normal. Esta concepção diverge da diferenciação feita no
Capítulo 2 entre luto e melancolia.
Klein vai desenvolver a noção de transição de um objeto parcial para o objeto
total, que tem sua construção iniciada na época do desmame. Concomitantemente à
integração do objeto, ocorre a maturação do ego, em função das ocorrências
simultâneas em ambos. Com a consolidação de um objeto total, com o qual o ego
pode identificar-se, ocorre estados de preocupação e cuidado com ele, geradores de
culpa pelos estragos que o ódio possa ter realizado no, antes, objeto mau, alvo do
sadismo infantil, pois o seio odiado que priva é o mesmo que gratificou. Anteriormente,
eles eram percebidos e sentidos como distintos.
Temos agora angústias depressivas, que promovem movimentos de
reparação, por amor ao objeto destruído. Na fase de intenso sadismo, as angústias
que predominavam eram de natureza persecutória e se relacionavam ao objeto parcial
mau, que seria destruído e atacava o Eu.
Como as angústias anteriores, denominadas paranoide e persecutória,
permanecem na posição depressiva, defesas maníacas podem ser acionadas. Elas
são de natureza psicótica, pois negam os ataques realizados e têm caráter onipotente.
Medos em relação à preservação do ego ainda permanecem, mas há ansiedades em
relação à preservação do objeto, pois a posição depressiva ambivalente ainda contém
o sadismo. De agora em diante, há uma ênfase teórica maior da autora tanto no ódio
quanto no amor, diferente do período anterior cujo destaque era para agressividade,
segundo a nota explicativa da Comissão Editorial Inglesa.

44 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004, p. 92.
45 Ibidem
101

Também, com relação à amplitude de ação das defesas maníacas, na mesma


nota, encontra-se a seguinte afirmação:
A isso se relaciona uma mudança em suas defesas: ele passa a mobilizar as
defesas maníacas para aniquilar os perseguidores e lidar com a nova
experiência da culpa e do desespero. Melanie Klein deu a este grupo
específico de relações de objeto, ansiedades e defesas o nome de posição
depressiva.46

Como exposto anteriormente, neste texto, ela propõe, além da posição


paranoide, as posições depressiva, maníaca e obsessiva. Cinco anos depois vai
agrupar defesas maníacas e obsessivas à posição depressiva, considerando que o
excesso das primeiras é prejudicial à constituição do objeto bom. Antes de adotar a
noção de pulsão de morte, Klein já descreve o conceito de reparação47, em 1929, que
é mobilizada pelas ansiedades48 depressivas, culpa e medo de perder o objeto. Pela
introjeção do objeto bom no Eu, desenvolve-se a capacidade amorosa, cujo prejuízo
desta leva à doença depressiva e maníaco-depressiva. Na época em que sua teoria
priorizava o sadismo, ela se dedicou mais às angústias paranoides, período em que
ela começa a usar a noção de clivagem. A cisão é um mecanismo importante que
protegerá o ego, assim como faz a projeção, em função da presença da pulsão de
morte e a angústia a ela associada. Cisão e projeção permitem a eliminação de parte
dela no meio externo.
A onipotência que envolve a negação da dependência, dos ataques realizados,
além da desvalorização do objeto – presente na doença maníaco-depressiva – serão
descritas por Klein. A autora considera o uso de tais defesas na posição depressiva,
assim como a presença de ansiedades paranoides, sendo elas consequências destas,
pois as defesas maníacas visam eliminar perseguidores.
No texto, Klein49 resgata a noção de sadismo em relação ao corpo materno,
além da noção dos movimentos de introjeção e projeção. Defesas precoces protegem
de ansiedades primitivas, como a negação da realidade e expulsão de perseguidores.
Na dimensão da psicopatologia Klein50 pretende estudar a relação entre depressão,

46 Nota da Comissão Editorial Inglesa, In: KLEIN, M. Obras Completas de Melaine Klein. Vol I. Rio de
Janeiro: Imago, 1996, p. 302.
47 Ibidem
48 Segundo Barros, para Klein, a ansiedade equivale a uma angústia indeterminada. In: BARROS, M.

N. C. A trama paradoxal do ódio no psiquismo. Tese de Doutorado, Universidade Católica de


Pernambuco, Recife, 2013.
49 KLEIN, M. (1935) Uma contribuição a psicogênese dos estados maníaco-depressivos. In: KLEIN, M.

Obras Completas de Melaine Klein. Vol I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.


50 Ibidem
102

paranoia e mania, apoiando-se no estudo de Freud e Abraham sobre a melancolia. A


autora relaciona superego aos objetos, afirmando que na melancolia há
simultaneamente objetos maus e bons atuando e há também desconfiança em relação
à bondade de parte dos objetos. Assim, aproximam-se as ansiedades paranoicas e
depressivas e podemos diferenciá-las, dependendo da necessidade de preservação
predominante: do ego (paranoide) ou do objeto (depressiva). Nessa fase, ainda há
intenso sadismo, onde o ódio pode perturbar a reparação das partes do objeto bom.
Defensivamente, pode ser criado um objeto perfeito idealizado, para negar a
destruição realizada, e isso se relaciona à ansiedade depressiva.
Afirma Klein:
Em última análise, é o conhecimento inconsciente por parte do ego de que o
ódio também está lá, juntamente com o amor, e de que a qualquer momento
ele pode se tornar o elemento mais poderoso (a ansiedade do ego de se
deixar levar pelo id e destruir o objeto amoroso) que traz o sofrimento, o
sentimento de culpa e o desespero subjacentes ao pesar. Essa ansiedade
também é responsável pelas dúvidas a respeito da benevolência do objeto bom.51

O Eu alterado pela presença dos objetos parciais tem sua


sobrevivência possível através da preservação do objeto bom que é feito de maneira
amorosa, mas em um ambiente perigoso, e é a presença do bom objeto que permitirá
uma identificação egoica, estruturante e fundamental. O uso da projeção pode eliminá-
lo, juntamente aos perseguidores. Temos uma maior diferenciação entre os dois tipos
de objetos, amor e ódio, muito interligados. O medo de que o bom objeto seja perdido
equivale ao medo de que ele morra e a culpa corresponde ao apego. Se projetado,
ele pode ser perdido e é o medo da destruição causada pelo ódio que deprime.
O paranoico introjeta um objeto bom, mas não mantém ou se identifica com ele,
seja pelas ansiedades intensas ou pela desconfiança que o transforma em um
perseguidor. Para Klein52, na paranoia:
“[...] essa capacidade de observação e seu senso de realidade são
distorcidos, pois a ansiedade persecutória faz com que o paranoico observe
as pessoas principalmente no intuito de verificar se são perseguidores ou
não”.

Em qualquer criança, surgem dúvidas em relação ao objeto bom e à própria


capacidade amorosa, além do medo da destruição do objeto bom pelo predomínio do
ódio, reconhecido pelo ego, juntamente com o amor.

51 KLEIN, M. (1935) Uma contribuição a psicogênese dos estados maníaco-depressivos. In: KLEIN, M.
Obras Completas de Melaine Klein. Vol I. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 312.
52 Ibidem, p. 313.
103

Seguindo a proposta da autora, Klein53 diferencia a paranoia da depressão,


afirmando que há muitos perseguidores na primeira, pois há um objeto fragmentado
pelas excessivas cisões. No segundo caso, a ansiedade é consequência da
destruição causada ao objeto. Na depressão, há identificação com os objetos bons
atacados e que sofrem. Nela, temos sentimentos da perda do objeto amoroso
acrescidos de ansiedades paranoides, que defendem das ansiedades depressivas,
sempre apoiadas nas anteriores. A culpa pelos ataques e danos realizados ativa
angústias de perseguição mais primitivas.
Na mesma proposta, diferenciando mania de depressão, Klein54 afirma que o
Eu foge tanto da depressão quanto da paranoia quando recorre à mania. Nela o ego
nega a dependência do objeto bom e aumenta sua força. Freud defende uma visão
semelhante ao considerar que, durante a mania, o Eu está temporariamente livre do
objeto. Ela tem como objetivo negar o medo do objeto e fazer reparações ao mesmo
tempo. Permite também a ressurreição dos objetos destruídos defensivamente,
através da onipotência.
Assim como na neurose obsessiva, para Klein, os objetos são separados na
mania, mas nesta há uma forma violenta de separação. Nela, a desqualificação do
objeto, negando a dependência, corresponde a uma identificação parcial. A
capacidade de reparação aumentada diminui a necessidade de controle e de domínio
dos objetos. O sofrimento ocorre porque sentimentos amorosos aparecem junto dos
destrutivos, pois o canibalismo em relação ao seio está intenso. Afirma Klein: “[...]
esses dois tipos de relação de objeto se misturam e se matizam reciprocamente numa
intensidade cada vez maior ao longo do desenvolvimento”.55
A mãe enquanto objeto total permite uma identificação com ela e, assim, a
posição depressiva torna-se predominante. A isso relacionam-se sentimentos de
perda pela ausência do seio, que se encontra no auge na ocasião do desmame. Se
há falha na internalização do objeto bom, desenvolvem-se sintomas melancólicos
relacionados à perda do objeto amado, para Klein56. Sem ele, a criança fica entregue
aos perseguidores. Ao reencontrar o seio, desenvolve-se a mania em função da

53 KLEIN, M. (1935) Uma contribuição a psicogênese dos estados maníaco-depressivos. In: KLEIN, M.
Obras Completas de Melaine Klein. Vol I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
54 Ibidem.
55 KLEIN, M. (1935) Uma contribuição a psicogênese dos estados maníaco-depressivos. In: KLEIN, M.

Obras Completas de Melaine Klein. Vol I. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 326.
56 KLEIN, M. (1935) Uma contribuição a psicogênese dos estados maníaco-depressivos. In: KLEIN, M.

Obras Completas de Melaine Klein. Vol I. Rio de Janeiro: Imago, 1996


104

necessidade de controle dos objetos. Superar a posição depressiva implica a


presença da mãe57, como já descrito.
Para a autora, se por um lado, o bom objeto funciona como uma defesa frente
aos perseguidores, por outro lado, é ameaçado pelos perseguidores e pela voracidade
a ele dirigida58. Através dela, há posse do bom e destruição dele, ao mesmo tempo.
A diminuição do sadismo e a elaboração da agressividade dependem da
confiança na capacidade amorosa e do amor. Para poder elaborar a posição
depressiva, fenômenos reparatórios envolvendo defesas maníacas e obsessivas são
necessários. As falhas nesse processo, para Klein59, diferenciam neurose de psicose,
em função da localização do objeto bom. A fuga para objetos bons idealizados e
completos, na psicose, implica a negação da realidade externa. Por outro lado, a fuga
para objetos bons externos cria dependência em relação a eles e enfraquecimento do
ego, que ainda se mantém integrado na neurose. A aquisição de um objeto total, o
contato com ambivalência e culpa, promotores de reparações, criaram limites entre a
neurose e não neurose.
Durante os cinco primeiros anos, como afirmam Cintra e Figueiredo60, há uma
oscilação entre as posições e a necessidade de elaborar a posição depressiva,
fenômeno que é concomitante ao atravessamento do complexo de Édipo, permitindo
o reconhecimento dos objetos separados, capazes de serem amados, odiados e
abrindo possibilidade à atividade sublimatória, desenvolvida desde as primeiras
reparações. A elaboração dessa posição permite a aquisição de um espaço psíquico
para outras e novas elaborações. Ela implica intensificação de desejos libidinais e
mecanismos introjetivos.
Estabelecendo uma relação entre a posição depressiva e o complexo de Édipo,
afirmam Cintra e Figueiredo:

O complexo de Édipo e a posição depressiva sempre estiveram associados,


no pensamento kleiniano, como duas diferentes maneiras de abordar esse
“nó cego” e nuclear da vida, que envolve temporalização e transitoriedade.

57 Na mesma direção, Winnicott fala da necessidade da presença materna (ambiente suficientemente


bom) durante o ciclo benigno para a conquista da capacidade do concernimento. In: ABRAHAM, J.
A linguagem de Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.
58 KLEIN, M. (1935) Uma contribuição a psicogênese dos estados maníaco-depressivos. In: KLEIN, M.

Obras Completas de Melaine Klein. Vol I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.


59 Ibidem
60 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO, L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
105

Além disso, o complexo de Édipo implica sempre o complexo de castração, a


passagem dos ideais absolutos para os ideais que podem ser realizados.61

Em 1940, Klein vai retrabalhar a noção da posição depressiva agora a


relacionando ao luto. Neste texto, ela considera a atenuação do ódio pelo amor nesta
posição. Na sua exigência de elaboração, o trabalho do luto normal envolve várias
angústias, de ambas as naturezas: psicóticas e depressivas, como o medo de ser
perseguido por objetos maus e pela ausência do objeto bom, que protegeria o ego, a
negação da importância do objeto perdido – defesa maníaca –, presença de
ressentimento e ódio, pela sensação de ter sido abandonado, a idealização do objeto
bom perdido e outras situações, que prejudicam tal elaboração. Ele reativa a posição
depressiva infantil, aprofundando a relação com os objetos introjetados, como
destacam Cintra e Figueiredo62. A posição depressiva63 fica como um ponto de
ancoragem para que haja elaboração das situações de perda ao longo da vida.
Na sequência, o texto kleiniano de 194664, marco importante da obra,
descreverá a posição esquizoparanoide, antes denominada apenas posição
paranoide – posição brevemente construída na década anterior e que serviu de
comparação para a descrição da posição depressiva –, e a formulação do conceito de
identificação projetiva, principal defesa da posição esquizoparanoide, relacionada ao
funcionamento mais precoce. Como afirma a Nota Explicativa da Comissão Editorial
do livro Inveja e gratidão e outros trabalhos65, Klein já havia descrito fantasias (de
invasão ao corpo materno) e mecanismos projetivos e expulsivos de partes do self,
que estão reunidos nesse novo conceito, a identificação projetiva.
No texto, a autora descreve ansiedades típicas da psicose presentes no início
da vida das crianças e afirma que pontos de fixação nesta etapa do desenvolvimento
explicariam a doença psicótica. A cisão do primeiro objeto, no caso, o seio, qualificado
como bom ou mau, em função de ter sido gratificador ou frustrador, promove uma

61 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO, L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004,
p. 93.
62 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO, L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
63 Na introdução feita por Segal63, no livro Amor, culpa e reparação, ela afirma que Klein, com a ideia

da posição depressiva, dá elementos para pensar na possibilidade de reparação criativa, da


curiosidade investigativa, na origem da pulsão epistemofílica. Conceitos que extrapolam a dimensão
clínica e que nos permitem pensar a sociedade, a cultura e a educação. SEGAL, H. (1987) Nova
Introdução. In: KLEIN, M. Obras Completas de Melaine Klein. Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
64 KLEIN, M. (1946) Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In: KLEIN, M. Obras Completas de

Melaine Klein. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 2006.


65 KLEIN, M. Nota Introdutória da Comissão Editorial: Inveja e ingratidão e outros trabalhos. In: KLEIN,

M. Obras Completas de Melaine Klein. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
106

separação do amor e do ódio. Tal mecanismo preserva o bom objeto e o ego frágil
cinde para dar conta do excesso de pulsão de morte e por causa da ambivalência
constitutiva do humano. Esta é a causa dos processos de cisão, que é um importante
e necessário mecanismo de defesa na etapa precoce do desenvolvimento. Desde o
início, as relações objetais parciais estão relacionadas a processos projetivos e
introjetivos, a partir do intercâmbio com o meio externo, e é, pela via da projeção, que
a angústia é diminuída. Klein pensa em processos simultâneos que se dão no Eu e
nos objetos, por exemplo, a cisão do objeto equivale também a uma cisão no ego66,
que existe desde o início da vida. Em concordância com Winnicott, ela afirma:
A meu ver, é mais útil a ênfase dada por Winnicott à não integração do ego
arcaico. Eu diria também que falta, em grande medida, coesão ao ego arcaico
e que uma tendência à integração se alterna com uma tendência à
desintegração, a um despedaçamento. Acredito que estas flutuações são
características dos primeiros meses de vida.67

Há direcionamento do sadismo para o corpo materno e disso que se originarão


as fantasias de perseguição68, como os medos de envenenamento, devoração,
diversas formas de destruição. A cisão é protetora do psiquismo, pois permitirá a
eliminação da angústia, que poderia dominá-lo69. Ataques são defesas contra
impulsos destrutivos, que têm reforço pelos objetos externos maus introjetados. Há
um deslocamento na seguinte direção: interno – externo – interno. A projeção do
sadismo converte o objeto externo em perigoso, sádico, destruidor, capaz de aniquilar,
matar, destruir, envenenar. Este objeto posteriormente introjetado aumenta a
persecutoriedade paranoide.
Klein é reconhecidamente influenciada por Fairbairn, autor que propõe uma
fase com mecanismos esquizoides e ela70 muda a denominação da posição mais
precoce no desenvolvimento, pela prevalência de tais mecanismos, em que há
isolamento em relação ao ambiente – autossuficiência –, ainda que possamos
identificar, na mesma posição, momentos de fusão com o objeto, ou seja, situações
de pura indiferenciação. Klein71 justifica sua discordância em relação a Fairbairn, pois

66 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO, L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
67 KLEIN, M. (1946) Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In: KLEIN, M. Obras Completas de
Melaine Klein. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 2006, p. 23.
68 Antes de formular a posição esquizoparanoide, a ideia de perseguição já estava presente na obra da

autora.
69 KLEIN, M., op. cit.
70 KLEIN, M. Nota Introdutória da Comissão Editorial: Inveja e ingratidão e outros trabalhos. In: KLEIN,

M. Obras Completas de Melaine Klein. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
71 Ibidem
107

ela não acredita que só o objeto mau é internalizado, também acredita na introjeção
precoce do seio bom. Cito a autora:
Divirjo também da concepção de Fairbairn de que ‘o grande problema do
esquizoide é como amar sem destruir pelo amor, enquanto o grande
problema do depressivo é como amar sem destruir pelo ódio’. Essa conclusão
é consoante não apenas com sua rejeição do conceito de pulsões primárias
de Freud, mas também com sua subestimação do papel que a agressão e o
ódio desempenham desde o início da vida. Como resultado dessa
abordagem, ele não dá peso suficiente à importância das ansiedades e
conflitos arcaicos e seus efeitos dinâmicos sobre o desenvolvimento.72
(grifo nosso)

Através da citação acima, pode-se perceber que a autora reafirma a


importância e o papel do ódio nas fases precoces do desenvolvimento.
Segundo Klein73, na posição esquizoparanoide, a idealização e a negação são
mecanismos presentes, em que pela via da primeira, o seio frustrador afasta-se do
seio ideal, intensamente generoso e gratificador, e, pela segunda, o seio mau –
frustrador e perseguidor – desaparece de forma mágica. São defesas de natureza
psicótica e também presentes no psiquismo de adultos normais.
Para Cintra e Figueiredo74, Klein considera a identificação projetiva como
primeira forma de relação agressiva que cria uma indiferenciação entre Eu e objeto,
assim, ela origina um objeto narcísico. Na próxima década, Klein vai descrever
aspectos mais positivos da identificação projetiva (além de um mecanismo de defesa),
por exemplo, a empatia. Com a noção da identificação projetiva, Klein também
aproxima o ódio do narcisismo, pelo fato de que esse processo cria um objeto
narcísico, a partir da projeção do ódio e de partes do self no interior do objeto. Tal
fenômeno diminui a separação eu/ self-objeto. A noção de narcisismo é pouco
desenvolvida por Klein, ficando restrita à noção de objeto narcísico produzido pela
identificação projetiva, por exemplo. Esta ideia será melhor descrita em outro capítulo.
A divisão dos objetos é importante no início do desenvolvimento, pois visa
preservar o bom objeto e lidar com o excesso de pulsão de morte e ambivalência. A
cisão é condição para a identificação projetiva. A pulsão de morte na forma de ameaça
de desintegração, de aniquilamento, ligada aos objetos, transforma-os em
perseguidores, que estimulam a destrutividade e ódio. Ela é a matriz do ódio e vai se
criando um círculo vicioso, onde temos a seguinte dinâmica: angústia de

72 KLEIN, M. Nota Introdutória da Comissão Editorial: Inveja e ingratidão e outros trabalhos. In: KLEIN,
M. Obras Completas de Melaine Klein. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 2006, p. 23.
73 KLEIN, M., op. cit.
74 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO, L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
108

aniquilamento → projeção no objeto → criação de perseguidores → estimulação da


agressividade e do ódio e introjeção do objeto mau → angústia → projeção →
aumento da persecutoriedade e ameaças.
Tudo isso cria imagos de terror, destrutivas e fantasias com os objetos são
construídas no psiquismo, onde os objetos furiosos pelo ataque recebido ficam mais
vingativos e a introjeção deles sadicamente agredidos leva ao medo da destruição
sobre si, tanto por parte dos objetos externos quanto dos internos. Lembrando que os
fenômenos que se dão no objeto também ocorrem no ego, a introjeção sádica dos
objetos maus e a fragilidade dos objetos bons precocemente incorporados criam uma
grande vulnerabilidade no Eu.
Segundo Melaine Klein, a partir das fantasias infantis, o corpo materno é um
local onde são encontrados objetos, como bebês, excrementos, pênis paterno –
objetos com equivalência, pois são todos parciais –, que foi incorporado a ela durante
o ato sexual75. Essa fantasia faz o corpo da mãe abrigar coisas que poderiam ser
descobertas, roubadas, destruídas, feridas, possuídas, controladas e ingeridas.
Quando ocorre o ataque, ele se dá ao casal, já que o pai encontra-se combinado à
mãe – casal formado durante o coito que persegue a criança –, a ansiedade
persecutória é decorrente da possibilidade de retaliação pelo casal unido. Para
produzir os ataques, relacionados a impulsos orais, anais e uretrais, o bebê usa armas
fantasiadas, como dentes, unhas, fezes, urina, até seu próprio corpo. Descrevendo a
fantasia do casal combinado, afirmam Cintra e Figueiredo:
[...] envolve a ideia de um casal parental continuamente gratificando-se
sexualmente e excluindo de forma violenta e cruel a criança. Essa fantasia
lembra a descrição do “coito sádico”, considerada por Freud uma das
fantasias originárias. Em ambas as fantasias, a figura dos pais encontra-se
infiltrada de muita violência e sadismo, combinando prazer sexual com um
poder muito grande de excluir e voltar-se contra a criança.76

Se por um lado, os movimentos projetivos equivalem a defesas frente às


angústias intensas e como forma de preservação do bom objeto, ele implica a
expulsão de parte do Eu juntamente com os objetos e, dessa forma, se cria uma
relação narcisista, com mistura entre objeto e ego.
Segundo Klein:
Muito ódio contra partes do self é agora dirigido contra a mãe. Isso leva a
uma forma particular de identificação que estabelece o protótipo de uma

75
Assim como Freud, Klein pensa em fantasias filogeneticamente transmitidas, como a concepção
sádica do coito.
76 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO, L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004, p. 161.
109

relação de objeto agressiva. Sugiro o termo ‘identificação projetiva’ para


esses processos [...] Nos distúrbios psicóticos, essa identificação de um
objeto com as partes odiadas do self contribui para a intensidade do ódio
dirigido contra outras pessoas. No que diz respeito ao ego, a excessiva
excisão e a excessiva expulsão de partes suas para o mundo externo
debilitam consideravelmente o ego.77

Através dela, a mãe equivale ao self mau do bebê, pois abriga partes dele.
Como também podem ser expulsas partes boas, o excesso da identificação projetiva
pode criar dependência em relação ao objeto. Não apenas objetos maus são
expelidos na direção do corpo materno, há projeção de amor via excrementos. Partes
do self são expelidas junto com os excrementos para dentro da mãe, configurando
importante forma de relação de objeto.
Os objetos reintrojetados são portadores de aspectos perigosos e odiosos do
self. Tal situação relaciona-se a estados paranoides de hostilidade, com grande
desconfiança dos objetos. Klein considera inicialmente que o sadismo ocorre no
período mais posterior durante o primeiro ano, revendo esta posição mais tarde, e o
considerando presente desde as fases mais precoces da vida. Com relação às
fantasias, as sádicas são atribuídas às fases oral e anal e dominam os impulsos pré-
genitais. Com relação aos impulsos, Klein sugere que os pré-genitais opõem-se aos
genitais, como descreve Hinshelwood78. O autor reconhece que, para Klein, a
agressividade impulsiona o ego na direção da genitalidade, através da mobilização de
sentimentos amorosos.
Klein afirma que sempre ansiedades primitivas são revividas, mesmo em um
desenvolvimento satisfatório, com a elaboração da posição depressiva. A diminuição
das ansiedades precoces, juntamente com a menor idealização, permite maior
percepção da realidade, estabelecimento de relações satisfatórias e unificação do
ego. Contudo, mecanismos primitivos modificados em menor grau permanecem.
Sempre há flutuações entre as posições, com seus fenômenos entrelaçados e
misturados presentes em toda a vida.
Posteriormente, na década seguinte no percurso teórico da autora, a
formulação do conceito de inveja79, como excessiva agressão sádica observável em
crianças e psicóticos, representou uma construção teórica importante.

77 KLEIN, M. (1946) Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In: KLEIN, M. Obras Completas
de Melaine Klein. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 2006, p. 27.
78 HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
79
Vários autores comentam o texto Inveja e gratidão na obra Revisitando “Inveja e gratidão”,
organizada por Priscilla Roth e Alessandra Lemma, publicada pela Editora Blucher em 2020, da
110

Klein considera a inveja primária inata expressa como sadismo e agressão


voltados a objetos bons, diferentemente da concepção anterior, sobre a agressão
paranoide voltada para objetos maus frustradores, que querem retaliação, pois
sofreram ataques. Assim, pulsão de morte e inveja se equivalem, pois ambas atacam
objetos amados. Segundo Cintra e Figueiredo, na inveja, há ambas as pulsões (de
vida e de morte fusionadas), mas com predomínio da segunda, daí o ataque aos
objetos, porém, Klein relaciona inveja à pulsão de morte apenas.
Como esclarecem esses autores80, Klein acredita que algumas crianças são
mais capazes de usufruir o objeto bom, ou seja, são bebês mais aptos à gratidão. Por
outro lado, algumas mais vorazes e insatisfeitas, são mais invejosas. Os autores
reconhecem que, apesar da presença da pulsão de morte na voracidade, há presença
libidinal na inveja. A intolerância frente à experiência de privação relaciona-se à
voracidade, onde há Eros, porém bebês mais vorazes estão mais sujeitos à frustração,
inveja e ódio.
Cintra e Figueiredo81 consideram a noção de inveja como uma aproximação do
conceito de pulsão para Klein. O seio bom com seus bons atributos é alvo do ódio e
precisa ser destruído. É o desejo de posse exclusiva e a noção de dependência dele
que produzem sentimentos de ciúme e ódio.
Na mesma direção, afirma Simanke: “Com a introdução do conceito de inveja,
o bom objeto, total ou parcial, passa a ser odiado não apesar da sua bondade e
generosidade, mas justamente por causa dela”.82
O ódio produzido pela inveja é direcionado à própria existência do objeto, pois
o bebê quer esvaziá-lo daquilo que ele tem de bom. Na perspectiva de Cintra e
Figueiredo, se ele me é negado, é porque outro o usufrui –, a noção de Édipo precoce
assim se apresenta, assim como a fantasia dos pais gratificando-se mutuamente. A
ideia do casal combinado em coito como figura perseguidora também se relaciona à
inveja, que pode ser elaborada através do ciúme, que a apresenta em sua base, como
afirmam esses autores.
Pela inveja, o objeto é atacado e sua bondade é colocada em dúvida. O seio
pode ser depreciado – mecanismo mais presente – ou idealizado, que corresponde a

qual foram extraídas algumas ideias apresentadas nesta dissertação.


80 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO, L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
81 Ibidem
82 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio

– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019, p.138.


111

uma defesa frente à inveja e é capaz de transformar um objeto bom em mau. O alvo
dela é o que o seio retém em si, ela quer destruir o objeto e a sua criatividade, quer
retirar o que ele tem de bom e depositar as partes más do self nele. Há uma
significativa diferença nesta nova concepção, pois a inveja quer destruir o bom objeto
e não o objeto mau, temido e perseguidor, que assim é, por ser frustrador. A noção
anteriormente defendida por Klein era a da destruição e ódio ao objeto mau.
Para Klein, a inveja primária corresponde à do seio, posteriormente deslocada
ao pênis, ambos objetos que proporcionam prazer. A inveja relaciona-se ao superego
invejoso, cruel83, sádico e pulsional, que pode destruir a capacidade amorosa de
reparação, impedindo a elaboração da posição depressiva. Também uma intensidade
elevada dela dificulta a passagem pela posição esquizoparanoide. Em relação à
psicopatologia, Cintra e Figueiredo consideram que um alto nível de inveja está
relacionado às psicoses84. Na mesma direção, Simanke85 propõe que mesmo em um
ambiente saudável e generoso, a inveja constitutiva explica formações
psicopatológicas relacionadas ao ódio, pois o ambiente torna-se hostil, a partir da
projeção de objetos internos maus.
Se a inveja desvaloriza e destrói o bom objeto, também carrega a fusão entre
as pulsões de morte e de vida, como propôs Sigal apud Hinshelwood86, na sua revisão
do conceito de inveja. Ela é uma das modalidades de fusão pulsional, em que há
predomínio da pulsão de morte. Cintra e Figueiredo87 reconhecem a dupla vertente da
inveja na própria origem da palavra na língua francesa, que significa desejo e inveja,
simultaneamente. Destacam os autores uma ligação da pulsão de morte a Eros,
porém Klein não pensou da mesma maneira, quando formulou o conceito de inveja,
que permaneceu vinculada à pulsão de morte.
Para a autora, há uma capacidade para a gratidão relacionada à pulsão de vida,
que diminui a inveja e permite integração do amor ao ódio e o uso do seio, em tudo
que ele pode oferecer de gratificação e prazer.

83 Klein considera a presença de figuras severas causadoras de terror desintegradas do superego


arcaico, separadas e alojadas no inconsciente da criança, segundo Cintra e Figueiredo. In: CINTRA,
E. M.; FIGUEIREDO, L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
84 CINTRA, E. M.; FIGUEIREDO, L. C. Melaine Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004.
85 Ibidem
86 HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
87 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio

– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.


112

Minerbo88 questiona o seio bom, ao qual está direcionada a inveja,


considerando que a experiência pode transformar algo em mau. Para a autora, um
bebê voraz pode se identificar com um objeto mau. Minerbo também amplia a lógica
oral da inveja para outras modalidades, como a anal (poder) e fálica (desejo/ sedução).
Na parte final do capítulo pesquisado, Hinshelwood89 traz uma discussão sobre
a pulsão de morte. Para ele, críticos desta formulação freudiana consideram que
Freud parte de exemplos da biologia, propondo um conceito a partir da especulação,
de uma pulsão silenciosa que apenas faz barulho quando projetada. Por outro lado,
Klein não concebe sua natureza silenciosa e não se via afastada do pensamento
desse autor, considerando-se sua seguidora. Para Klein, segundo Barros90, o
superego cruel é a voz da intensidade da pulsão de morte. Para alguns psicanalistas,
segundo Hinshelwood91, a frustração libidinal, por si só, já explica a agressividade,
sem necessidade de relacioná-la à pulsão de morte. Como já dito, Klein separa
agressão da frustração com o conceito de inveja primária. Por fim, no verbete
pesquisado, encontra-se o argumento de que Klein teria valorizado a pulsão de morte
em detrimento da noção de libido nas suas teorizações. A autora falará mais do amor
ao final da sua obra, com a noção de gratidão. Para ela, a pulsão de morte é um dado
clínico, assim como para Freud, que a concebeu pelo mesmo viés, através da
observação da compulsão à repetição, sonhos traumáticos, situações em que há
interrupção do princípio do prazer. Para Simanke92, a noção de inveja em Klein
corresponde ao Além do princípio de prazer em Freud, pela visão pessimista que ela carrega.
Segundo Klein, a interferência do sadismo (pulsão de morte) no
desenvolvimento promove uma fixação libidinal. Nas palavras de Hinshelwood:
A ênfase de Klein incidia sobre a interferência no desenvolvimento libidinal
por parte do sadismo, que assinala os pontos de fixação da libido.
[...] Para os kleinianos, a pulsão de morte não é silente, mas ativa como
importante fator que perturba e modifica grandemente a progressão natural
do desenvolvimento libidinal através das fases iniciais, enquanto que os
psicanalistas clássicos minimizam a importância clínica da pulsão de morte e
enfatizam o desenvolvimento epigenético da libido e do ego. [...]93

88
MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
89 HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
90 BARROS, M. N. C. A trama paradoxal do ódio no psiquismo. Tese de Doutorado, Universidade

Católica de Pernambuco, Recife, 2013.


91
Ibidem
92 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio

– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.


93 HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992,

pp. 69-70.
113

Para efeito de uma comparação mais ampla e síntese das ideias, seguem dois
quadros comparativos. O primeiro apresenta uma comparação entre as duas posições
elaboradas por Melaine Klein (Quadro 1) e no segundo são comparadas as noções
de agressividade e ódio nos diferentes períodos da produção teórica dos autores
citados (Quadro 2).
Com relação à questão que norteou esta pesquisa, Hinshelwood e outros
autores, como Rocha Barros94, reconhecem que Klein pouco aborda a questão do
narcisismo, exceto quando o aproxima da noção de identificação do ego com o objeto
idealizado e da identificação projetiva, que mistura sujeito e objeto, e envolve ódio,
pulsão de morte e narcisismo. É nesta construção teórica que Klein aproxima um
pouco mais narcisismo e ódio, que ficará bem mais vinculado à pulsão de morte na teoria.

94
ROCHA BARROS, E. M. Prefácio à edição brasileira. In: ROSENFELD, H. Impasse e interpretação.
Rio de Janeiro: Imago, 1988.
114

Comparando as posições esquizoparanoide e depressiva95:

Quadro 1 Posição esquizoparanoide Posição depressiva

Objeto Parcial – narcísico – usado de Total – separado do outro –


acordo com a necessidade – considerado
indiferenciação ego e objeto – ele
pode ter sua importância diminuída
– delírio de inferioridade ou tornar-
se ideal

Preocupação com o ego com o objeto

Angústias persecutórias – de aniquilamento Depressivas decorrentes da


possibilidade de ter destruído o objeto
– pode reativar as angústias da outra
posição

Defesas cisão, idealização, identificação defesas maníacas (que envolvem


projetiva (principal) negação e desvalorização do objeto)
e obsessivas (na tentativa de realizar
reparações)

Presença do ódio intenso, no sadismo – predomínio Ambivalência – diminuição dela ao


longo da elaboração da posição –
diminui a agressividade – a integração
dela cria uma autenticidade pessoal

Temporalidade agora daqui a pouco – a transitoriedade das


coisas, que não deixa de perder a
beleza

Moralidade superego cruel, sádico e violento, consciência moral – reconhecimento


segue a lei de talião, do outro, da diferença – acesso às leis
eliminação do outro sociais

Psicopatologia a partir Psicoses – esquizofrenia, paranoia depressão, neuroses


da ausência de (desconfiança do bom objeto)
superação ou pelo Não neurose
predomínio do tipo de
angústia

95 Andrade faz uma relação entre a passagem da primeira à segunda e a transição do narcisismo
primário ao secundário. In: V. M. ANDRADE. O narcisismo e o mal-estar na civilização. Rio de
Janeiro: Imago, 2014.
115

Abaixo um quadro comparativo que sintetiza concepções sobre o


ódio/agressividade em diferentes períodos da produção em Freud, Klein e Lacan96, com
seus textos de referência para cada período:
Quadro 2:
Freud Klein Lacan
1ª teoria pulsional: Agressividade relacionada Assim como Freud, não diferencia sexualidade Anos 40: identificação
às pulsões de autoconservação, no seu valor de sadismo. O sadismo da criança equivale ao imaginária e sua relação com
adaptativo, e às pulsões sexuais: sadismo do superego. a agressividade.
presente em todas as fases da libido – sadismo Textos de referência: todos os dos anos 20 Primeira relação com o objeto
é uma pulsão parcial, diferente de ódio, que é paranoica, pensada no
somente quando erotizado pulsionaliza-se. contexto da alienação ao
Ódio não ocupa posição central na teoria – outro, quando se dá a
posição marginal e se relaciona a vários outros constituição do Eu, através da
conceitos identificação.
Patologias: relação com a libido (segundo o É a origem do mal-estar na
modelo metapsicológico da histeria) civilização, sua concepção é
Texto de referência: Três ensaios sobre a diferente da freudiana
teoria da sexualidade (1905) Textos de referência:
A agressividade (1948) e O
estádio do espelho (1949)
A agressividade difere da
violência
Teoria pulsional: libido do Eu e libido Com a noção de pulsão de morte, diferencia
objetal agressividade de sadismo: as pulsões sádicas
Separa sadismo da agressividade. Ele são autônomas em relação à libido
corresponde a uma forma erotizada dela. Texto de referência: A psicanálise de
Descreve a origem primeira do ódio, que crianças (1932)
antecede o amor- Ele é uma resposta narcísica A angústia é consequência da pulsão de morte,
à presença do objeto. que é a matriz do ódio.
Sadismo e masoquismo envolvem a Através do conflito pulsional, formula a teoria
participação do Eu – das posições e as relaciona ao conflito entre
Texto de referência: As pulsões e seus amor e o ódio, que se unem na ambivalência,
destinos (1915) na posição depressiva (1935).
Amor e ódio referem-se à relação do Eu com O supereu equivale ao sadismo da criança
os objetos projetado (1933).
Estabelece relação entre sadismo e pulsão
epistemofílica. Noção de ódio constitutivo,
consequência da frustração (semelhante a
Freud)
2ª teoria pulsional: relaciona agressividade à Anos 50, o seio bom é a causa da inveja, A noção de ódio como paixão
pulsão de morte, uma forma de eliminá-la, relacionada à pulsão de morte. fundamental, na intersecção
relaciona a pulsão de morte à sexualidade- na Faz uma diferenciação entre frustração e dos registros imaginário e
questão do sadismo e masoquismo. Aproxima ódio. real, com a exclusão do
ódio e pulsão de morte, quando formula a Texto de referência: Inveja e Gratidão (1957) simbólico- anos 50- fala da
segunda tópica do aparelho psíquico. origem narcísica do ódio
Textos de referências: Mal-estar na Texto de referência: Os
civilização (1930), O problema econômico escritos técnicos de Freud
do masoquismo (1924) e O Eu e o Isso (1954)
(1923). Freud separa frustração de ódio

96
A concepção lacaniana sobre o ódio foi apenas mencionada brevemente no Capítulo 1, em função
do destaque à presença dela em alguns dos textos lidos. Lacan trata de maneira diversa a questão
do ódio em sua obra.
116

CAPÍTULO 4 – O ÓDIO DE KEVIN

“Nas noites de frio é melhor nem nascer


Nas de calor se escolhe, é matar ou morrer”
(Cazuza)

“Oh, pedaço de mim


Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu”
(Chico Buarque)

Freud utilizou-se de obras artísticas para aplicar os conhecimentos da


psicanálise, analisou esculturas e obras literárias, principalmente. Assim, trouxe a
possibilidade de aplicarmos sua teoria e método fora e para além da prática clínica.
Além deste estímulo, a disciplina oferecida pelo Professor Luís Cláudio
Figueiredo, no segundo semestre de 2020, mostrou que uma obra cinematográfica
permite uma boa análise1 de conflitos e subjetividades, além da articulação com
conceitos da psicanálise. Tanto o tema, quanto o referencial teórico abordados eram
os mesmos já escolhidos para este trabalho.
Como já afirmado, a escolha do filme: Precisamos falar sobre Kevin2 foi
pensada, a partir de uma dupla vertente: o impacto que o ódio de Kevin (e de Eva)
exerce sobre o telespectador e o fato da personagem lembrar muito o paciente que
seria apresentado na dissertação. Maurício tinha muitas defesas maníacas e
angústias de natureza paranoide e esquizoide. Assim como Kevin, Maurício parecia
não poder abrir mão de um ódio cego, por vezes destrutivo das suas relações e estéril.
Não havia possibilidade de que objetos tão maus pudessem abrigar qualidades e isso
servia a dois propósitos: afastar-se deles e, ao mesmo tempo, manter-se fortemente
aderido a eles.
O filme será apresentado como um caso clínico e, na sequência, percepções
sobre a estética do filme. Posteriormente, segue a análise dos fatos apresentados, à
luz da metapsicologia de Freud e Klein.

1 Agradeço as observações apontadas pela psicanalista Evelise Paulis, revisora deste trabalho, e que
ampliaram minhas interpretações iniciais.
2 Alguns fragmentos da mesma obra foram utilizados no curso sobre o pensamento de André Green,

realizado na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 2018. O material serviu como
ilustração para as ideias do autor sobre “mãe morta” e “função desobjetalizante”.
117

4.1 Falando sobre Kevin

Kevin é um adolescente que comete um massacre na escola onde estuda,


utilizando-se de arco e flechas. Ele se interessa pelo tiro com arco desde a infância,
quando sua mãe lhe conta a história de Robin Hood3, em um momento de
adoecimento do garoto. Esta foi uma das poucas interações amorosas que eles
tiveram, um encontro entre tantos desencontros. Encostado à mãe, ele manda o pai
sair do quarto nesta ocasião. Eva sorri pela atitude do garoto, pois ele a escolhera,
um fato inédito, pois os contatos aparentemente mais amorosos, próximos e calmos
aconteciam apenas com seu pai. É nesta ocasião, que Eva conta ao filho a história
que o fará apaixonar-se pela arqueria. Após o fugaz momento de encontro, o garoto
rejeita a mãe em seguida. Quando ganha seu primeiro arco e flecha de brinquedo,
atira uma flecha nela. Ele pratica esta atividade com aptidão no ambiente doméstico,
estimulado por seu pai.
No dia do massacre, ele também o assassinou, assim como sua irmã, apenas
a mãe sobrevive. Ele não a mata. Eva encontra os corpos dos familiares no jardim da
casa, local onde o jovem praticava a atividade.
Ele foi um filho não desejado, parece que a mãe engravidou acidentalmente,
não conseguindo investir afetiva e libidinalmente no bebê. A concepção do garoto
acontece logo após o reencontro do casal. Franklin pergunta à Eva: “Promete que não
vai embora?”.
Alterado pela gestação, seu corpo não era exibido com satisfação e
compartilhado com as demais gestantes do grupo do qual ela participava.
Aparentemente não gostava de interagir com outras mulheres na mesma condição
durante o período de gravidez. Na hora do parto, Eva tenta segurar a expulsão do
bebê, mesmo sendo solicitada a contribuir para o nascimento do filho e é aconselhada
nesse momento: “Pare de resistir!”
Ela fica extremamente alterada emocionalmente após o parto, mostra-se
deprimida, alheia ao mundo e ao filho e se angustia muito com o choro e cuidados
com o bebê. Ela o nina de maneira muito desajeitada, parecendo aflita; certa vez,

3
Personagem fora da lei e destemido, rouba dos ricos para dar aos pobres e que combate a tirania da
nobreza. Kevin identifica-se com este personagem, com a injustiça contra a qual ele luta, ao retirar a
riqueza de alguém que a possui e que não a compartilha com o outro. É generoso, ao mesmo tempo
que se configura como um fora da lei. A mãe de Kevin pode ser vista como portadora de uma riqueza
não compartilhada com o filho.
118

levanta-o e o afasta de seu corpo, interagindo de forma desesperada e perturbada


com seu filho. Em outra ocasião, extremamente transtornada pelo choro incessante
do filho, Eva para o carrinho do bebê ao lado de uma britadeira, cuja intensidade
sonora parecia-lhe melhor que o choro do filho. Ela precisava aliviar-se do barulho
infernal que o choro do filho lhe parecia. Os gritos desesperados de Kevin torturavam-
na e a enchiam de desespero. Em um momento, exausta, a mãe pede que o pai não
acorde o garoto, pois ela acabara de fazê-lo dormir e o Franklin contraria este pedido,
acordando o filho, que não chora em seus braços. Ele banaliza a fadiga da esposa e
diz que ela deve acalentar o bebê um pouco.
Nas tentativas frustradas de brincar com o filho, ele não retorna a bola, quando
a mãe a jogava para ele. De repente, Kevin a lança de volta para a alegria da mãe,
mas não volta a interagir com ela no jogo, em seguida. Assim, o garoto mostra que
pode interagir e alegrar a mãe, mas recusa-se a fazê-lo. Eva fica incomodada e com
muita raiva do filho. Certa vez, o garoto bate com força no brinquedo e fala do ódio que
sente. Na mesma direção, nega-se a falar mamãe, quando ela tenta ensiná-lo. Há uma
hipótese inicial de surdez, mas que é descartada. Um quadro autista também não se
comprova. Kevin foi considerado apenas “um pouco flácido” pelo médico.
O garoto tinha uma interação seletiva, corria para os braços do pai, quando
este chegava em casa e o chamava de papai. Franklin investe em uma casa, a nova
residência da família. Mesmo não desejando a mudança, Eva tenta montar um espaço
para si no novo lar da família, com a temática do seu trabalho: o turismo. Observa
saudosamente suas lembranças da atividade profissional. Kevin critica o quarto
organizado pela mãe e ela diz a ele que todos precisam de um espaço. O ambiente
criado por ela é todo manchado com tintas pelo filho. Em um acesso de fúria, a mãe
quebra a pistola de brinquedo de seu filho, espirrando tinta vermelha pelo chão. Nesta
ocasião, Franklin minimiza a atitude do filho, dizendo que ele só estava querendo ajudar.
Ela se considerava feliz antes da gestação e verbaliza isso ao menino. Diz a
ele que queria estar na França e, posteriormente, após a prisão de Kevin, volta a atuar
na mesma área, sofrendo hostilidade no trabalho. A mesma situação é comum na
região onde Eva mora, após os crimes cometidos pelo filho. Sua casa sofre pichações,
ela recebe ofensas da comunidade em geral, mais especificamente dos familiares,
cujos filhos foram mortos ou gravemente machucados por Kevin. Esta situação agrava
o estado emocional de Eva, que se diz culpada, mesmo quando agredida. Ela limpa
desesperadamente a casa e o carro manchados de tinta vermelha jogada pelos
119

vizinhos; ao mesmo tempo, lembra das agressões sofridas na saída do julgamento do


filho. Uma das poucas atitudes de simpatia que recebe é quando vai conversar com
um colega de Kevin que foi aleijado pelo garoto. O rapaz não a hostiliza e fala da sua
esperança na recuperação física. Por outro lado, Eva frequentemente foge das
pessoas, pois está sempre sofrendo com o ódio a ela dirigido.
Em certa noite, crianças comemorando o Dia das Bruxas batem na porta de
Eva pedindo doces. Antes de chegar em casa, ela já ficara perturbada pela presença
delas fantasiadas na rua. Na residência, a geladeira e armários permanecem vazios
e ela fica extremamente angustiada com a abordagem das crianças. Nesta ocasião,
ela já estava sozinha, deprimida e bem perturbada.
Quando criança, mas já crescido, Kevin ainda usava fraldas. Certa vez, logo
após ter sido trocado pela mãe, força nova defecação e é agredido violentamente por
ela, em mais um acesso de ódio. Eva joga o menino contra a parede e a agressão o
faz precisar ir ao hospital, pois seu braço foi fraturado. Na volta, com o braço
engessado, Kevin conta outra versão do ocorrido ao pai. Disse que havia
acidentalmente caído, não mencionando a atitude agressiva da mãe. No mesmo dia,
desenvolve um ato de autonomia, ao se trocar e ir ao banheiro sozinho. Nesta hora,
Eva diz que o amava e ele responde com “nhe” repetidamente. Eva culpa-se pelo
estado do filho, mas não conta a verdade ao esposo. O ato de violência da mãe deixa
o garoto com uma cicatriz em seu braço. Ela é reexibida em silêncio por ele para
deixar a mãe culpada mais de uma vez.
A mãe visita o filho regularmente no presídio, mas não conversam,
permanecem mudos, na maioria das vezes. Em uma das visitas, ele retira algo
transparente e sólido da boca como se fossem cacos de vidro. Em outra, passa a mão
sobre a cicatriz, perguntando se ela se lembra. Diz que foi a coisa mais sensata que
a mãe já fez e a questiona de que maneira se condiciona um gato a defecar
corretamente. Em seguida, fala que se esfrega o nariz do animal nas fezes e ele
aprende a usar o local adequado.
Certa vez, durante um passeio de carro, a mãe queria passar em uma loja, e
Kevin recusa-se a ir. Em função da insistência dela, o menino passa a mão sobre sua
cicatriz, mostrando-a, sem nada a dizer e fazendo com que a mãe desista da ideia
original. Quando via a mãe alegre e se divertindo, Kevin tinha atitudes para inibir a
genitora; por exemplo, pede que ela desligue o rádio, pois Eva estava escutando uma
canção.
120

Atitudes de provocação são frequentes: ele responde errado quando a mãe


tenta ensinar-lhe a contar e, de repente, fala corretamente a sequência numérica.
Enraivecida, Eva escreve uma conta, pede que ele responda e, em seguida, amassa
a folha de papel. Ela é visivelmente reativa às provocações do filho. Kevin salga
excessivamente a comida, joga alimentos no chão e nos móveis e, em uma ocasião
ao jogar videogame, fala várias vezes a palavra “morra”.
O pai sempre justifica as atitudes do filho, como situações típicas da infância
ou da juventude, enquanto a mãe as vê como ataques e retaliação. A interação do
garoto com Franklin parece mais próxima e afetuosa, em um primeiro momento.
Surpreendentemente, o genitor é assassinado pelo garoto. Com relação à irmã, foi
Kevin quem “revelou” a gestação da mãe. Em um momento da família, diz que a mãe
é “gorda”. A gravidez, que era notada no corpo materno, não havia sido percebida
pelo pai ou comunicada a ele. Quando a mãe vai relatar ao filho a origem do seu
estado, Kevin fala abertamente sobre a “transa”, querendo chocar Eva ao conhecer o
ato sexual adulto.
A empatia não fazia parte da dinâmica familiar. Franklin não acolhia as
dificuldades da esposa com seu filho, que também não tinha empatia alguma com os
demais membros da família. Com relação à irmã, Kevin revela distanciamento e
desprezo, alternados com momentos de ódio, quando ele joga água na cara dela,
chegando ao extremo de matar o seu animal de estimação e provocar um acidente
que a faz perder um olho. Tudo leva a crer que Kevin é o responsável por tais
agressões, mas tais fantasias não poderiam corresponder às projeções maternas de
seus aspectos destrutivos na figura do filho, objeto odiado e, por isso, perigoso? O
garoto diz que não se sente culpado pelo acidente com a irmã, quando os pais tentam
isentá-lo da culpa. Em uma atitude sádica, ele mastiga uma lichia, um objeto que pela
cor e outras características poderia representar um globo ocular. O pai acusara a mãe
anteriormente pelo acidente envolvendo a filha e ela diz que Kevin foi o responsável.
O casal ia separar-se por opção de Franklin, fato que é escondido de Kevin, que se
abala ao saber da notícia. O pai também afirma que ficará com a guarda do garoto.
Em um diálogo, o menino diz à mãe que não se gosta de algo pelo simples fato
de ter-se acostumado, completa a afirmação dizendo que Eva acostumara-se a ele. A
conversa começa com a mãe dizendo que ele nunca quis ter um amigo para brincar.
Ele diz que pode não gostar. Quando a mãe diz ao filho que ele se acostumaria, Kevin
diz que acostumar-se difere de gostar.
121

Quando adolescente, Eva vê o filho na rua olhando para um cartaz com a


imagem dela. Para tentar uma aproximação, ela o convida para jogar e jantar fora. O
garoto come antes, evitando a refeição junto com a mãe, que se alimenta sozinha no
restaurante. Neste momento, quando ela tenta estabelecer uma conversa, Kevin
responde às perguntas cinicamente e claramente provocando e desdenhando da mãe.
Nesta mesma ocasião, ele diz a Eva que ela sabe ser cruel. A mãe retruca dizendo a
ele que não pode ser julgada pelo filho. Kevin diz que ela sabe com quem ele aprendeu
a ser cruel.
Ao mexer nos pertences do filho, Eva encontra um CD com a inscrição “I love
you”. Ao colocá-lo em seu computador, a máquina é detonada com vírus, aparece a
imagem de um palhaço e a frase “you lose”.
O garoto presencia a uma cena da família, pouco antes de efetuar seus crimes.
Vê o pai dançando com a irmã e Eva assiste a esta interação sorrindo.
Na escola, trancando as saídas do ginásio escolar, o garoto mata vários
colegas da escola, que estavam impossibilitados de fugir. Eva é notificada do que
estava acontecendo no colégio. Chega lá e vê seu filho sair do ginásio e entregar-se
à polícia. No rosto do garoto, havia uma expressão de triunfo. Ele se curva como se
estivesse em um espetáculo agradecendo os aplausos recebidos.
Após a tragédia, Eva parece uma morta em vida, toma inúmeros remédios, tem
sonhos de angústia e vive atormentada. Este quadro emocional revela-se no estado
da casa, onde ela vive só. Certa vez, Eva aparece vestindo uma roupa do filho. As
atitudes de limpeza após as pichações, com aflitiva e forte esfregação, chamam a atenção.
Em uma cena, na casa de Eva, ela debilitada e em extremo sofrimento, retira
da boca as cascas de um ovo; ao mesmo tempo, que aparece uma imagem de Kevin
retirando cacos de vidro de sua boca, na presença da mãe. A cena envolvendo o
menino já havia aparecido. Como anteriormente relatado, ele manifestou tal
comportamento durante uma das visitas da mãe ao presídio. O episódio semelhante
envolvendo a mãe acontece depois que Eva comprou ovos que foram quebrados no
mercado, nas várias manifestações de hostilidades que a ela eram dirigidas. Ela não
quis trocar os ovos por outros inteiros, pois estava muito assustada.
No Natal, a mãe de Eva a convida para ficarem juntas, mas ela recusa a
proposta e mente para a mãe, dizendo que estaria acompanhada.
Um pouco antes do último encontro com o filho, que seria transferido de
presídio em função da idade, Eva arruma seu quarto, acomoda suas roupas nas
122

gavetas, além de pintar o quarto dele com o mesmo azul que era o anterior, na casa
onde ele matou os familiares. Vai visitá-lo e pergunta ao filho a razão do que ele fizera.
Kevin lhe responde que antes tinha certeza e hoje tem dúvida. A mãe também diz a
ele que Kevin não lhe parece feliz e o garoto questiona se, em algum momento, ele
havia sido. Eles se abraçam em seguida.

4.2 A análise da Obra

O filme começa com a guerra de tomates, que são lançados entre os


participantes em uma festividade, a Tomatina Valenciana4. O chão torna-se vermelho,
assim como a pele e as roupas das pessoas; na sequência, aparecem as manchas
vermelhas nas paredes da casa de Eva, que se encontra reclusa e mergulhada em
seu sofrimento. A personagem mergulha o seu rosto na água, de maneira análoga a
uma forma de tortura que pode ser praticada, mas é seu filho que aparece no rosto
submerso. Ela parece emocionalmente em carne viva, a que sangra, em oposição ao
vermelho da guerra de tomates lúdica, onde há claramente uma expressão de prazer
na face das pessoas que participam da brincadeira. Na sequência, a pichação
vermelha nas paredes e casa de Eva faz alusão ao massacre, representa o sangue
derramado, que tinge Eva e seu espaço (interno e externo). É uma retaliação da
comunidade à mãe do garoto. O vermelho do ódio, mas que poderia ser o do amor,
do coração geralmente pintado de vermelho em sua representação. A tinta vermelha
jorra do brinquedo (uma arma) estragado pela mãe com muita raiva pela aparente
destrutividade do filho, quando ele danifica seu escritório. Escuro e luzes vermelhas
aparecem nas cenas do tormento de Eva, quando esta fica aterrorizada e reclusa em
casa, depois do crime executado pelo seu filho. A cena faz alusão ao mundo interno
de Eva, destruído, culpado, assustado e repleto de perseguição.
Cenas do passado intercalam-se às do presente, construindo um enredo que
enfatiza o drama de Eva, a relação entre eles, a hostilidade de Kevin e da própria mãe.
As cenas do passado vão dando inteligibilidade aos estados mentais da mãe.
Cenas da gravidez indesejada intercalam-se às da visita de Eva ao presídio,
onde se encontra o filho, como se pudesse haver agora um espaço para a
aproximação entre eles, mas ambos permanecem em silêncio durante as visitas.

4
Festa espanhola anual, marcada por regras e espaço definido. Nela, há a possibilidade de uma
vivência lúdica e socialmente circunscrita de algo de natureza mais pulsional.
123

Kevin a questiona sobre os motivos da ida dela ao seu encontro. O que poderia
mobilizar Eva ao encontro do filho? Seria um movimento reparatório? De que natureza
este seria? Por que Kevin ia ao encontro da mãe, sempre da mesma maneira?
Aparecem várias cenas envolvendo comida e alimentação, destacando a
oralidade, primeira forma de erotismo que marca a interação mãe-bebê. Mas este
marcado pelo desinvestimento, ataques e carência. Ao que tudo indica a gravidez
representou um aprisionamento para a mãe, uma perda indesejada de liberdade.
A luz clara intensa aparece ao final do filme, após a afirmação da mãe sobre o
aparente estado de infelicidade do filho e de ele próprio duvidar das razões de seus
crimes. A cena revela uma esperança de um encontro do protagonista com seu mundo
interno e da possibilidade de falar sobre ele, sobre o crime, revelando uma
aproximação verdadeira entre mãe e filho.
Antes disso, percebe-se que a mãe o vê através da perspectiva da doença, do
distúrbio e da periculosidade que ele representa e pelas suas potencialidades de
ataque e violência. Kevin corresponde a um objeto persecutório. De maneira
complementar, também Eva é a mãe perigosa para seu filho, que precisa ser atacada,
um objeto externo mau, que tem forte relação ao objeto interno presente no Eu do
menino. Conforme exposto no capítulo anterior, Klein afirma que os objetos
carregados de ódio neles projetados transformam-se em perseguidores externos e
internos, depois de introjetados. Todas as ações, mesmo as que pareciam um simples
desejo de aproximação, eram respondidas com manifestações sádicas por Kevin,
talvez por serem consideradas perigosas. E se Eva se aproximasse e depois voltasse
a desaparecer? O garoto já havia experimentado a dor de um objeto primário ausente.
O ódio de ambos pode aparecer em várias cenas do filme, mas o amor fica
como uma possibilidade suscitando no telespectador dúvida sobre sua existência.
Desde a redação dos Três Ensaios, Freud defende a ideia de que a amamentação é
o protótipo de uma relação amorosa e que a interação com o seio deixa importantes
e significativas marcas para futuras relações amorosas. Fica claro no filme que estes
aspectos foram conturbados na interação precoce entre mãe e filho.
Como afirmado anteriormente, através de Freud, é possível pensar o
surgimento do ódio, a partir da presença do objeto alheio ao Eu, que mobiliza este
afeto, em resposta ao narcisismo. No filme, o ódio não seria uma resposta desse Eu
tão ferido narcisicamente, tão pouco integrado, tão vulnerável frente ao objeto primário
de extrema ausência e que desencadeou vivências de grande frustração? Apoiado
124

na ideia de Freud de que o narcisismo dos pais é revivido na sua experiência com o
bebê majestade, constituindo o narcisismo primário da criança, Eva claramente não
conseguiu fazer um investimento inicial na figura do filho. Ela estava contrariada com
a gestação, visivelmente deprimida e assustada com o bebê, que gritava pela sua
presença inacessível. A falta radical de investimento levou o garoto a um considerável
sofrimento narcísico e a hipótese de que seus atos agressivos vingativos davam-no
uma sustentação narcísica pode ser levantada.
Assim como dificuldades na amamentação, Klein5 considera que os estados
emocionais maternos, como ansiedade, relacionam-se às experiências com o seio.
Em uma explícita referência à importância do objeto externo no desenvolvimento
infantil, Klein afirma que as dificuldades maternas na alimentação e cuidados gerais
com a criança impedem a internalização do seio bom, tão necessária à organização e
estruturação do Eu. Considera a autora:
(O fato de uma boa relação com a mãe e com o mundo externo ajudar o bebê
a superar suas ansiedades paranoides arcaicaslança nova luz sobre a
importância dessas experiências iniciais. Desde a sua criação, a psicanálise
sempre deu muita importância às experiências iniciais da criança, mas creio
que só ao sabermos mais sobre a natureza e o conteúdo de suas ansiedades
arcaicas, e a interação constante entre suas experiências reais e sua vida de
fantasia, poderemos compreender totalmente por que o fator externo é tão
importante).6

No texto A criança mal acolhida e sua pulsão de morte, Ferenczi7 relaciona


tendências autodestrutivas ou, como ele se refere, suicidas à falta de receptividade
do objeto materno. Com base na experiência clínica com crianças e na concepção da
pulsão de morte defusionada de Eros, descrita e exemplificada por Freud nos ataques
epiléticos, esse autor propõe uma conexão da tendência destrutiva desta pulsão à
incapacidade materna de uma ligação terna.
Dirá o autor8: “Todos os indícios confirmam que estas crianças não deixaram
de notar os sinais conscientes e inconscientes de aversão ou impaciência da mãe,
com um consequente arrefecimento da vontade de viver”.

5 KLEIN, M. (1957) Inveja e gratidão. In: KLEIN, M. Obras completas de Melanie Klein. Vol. III. Rio
de Janeiro: Imago, 1996, p. 210.
6
KLEIN, M. (1935) Uma contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos. In.:
KLEIN, M. Obras completas de Melaine Klein. Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 326.
7 FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte. Escritos psicanalíticos 1909-1933.

Rio de Janeiro: Livraria Taurus Editora, 1998.


8 FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte. Escritos psicanalíticos 1909-1933.

Rio de Janeiro: Livraria Taurus Editora, 1998, p. 314.


125

Algumas poderiam de fato sucumbir, mas as que sobrevivem sem adoecer em


tal contexto, desenvolveriam pessimismo e falta de confiança como traços de caráter,
segundo o autor. Pelo exposto, Ferenczi tem uma noção de pulsão de morte diferente
da freudiana e da kleiniana. Neste caso, ela fica mais ligada ao trauma, ao abandono
e ao arrefecimento da vida.
A ideia de Ferenczi9 sobre a identificação com o agressor, de natureza
patológica, e que se aproxima à da melancólica, permite pensar em outro destino para
a culpa do objeto. Este autor propõe que as crianças traumatizadas introjetam a culpa
do agressor. Além da introjeção do objeto parcial perseguidor carregado de ódio
(pulsional), há um aspecto a mais, destacado na dimensão intersubjetiva, no caso de
Kevin. A identificação narcísica e melancólica fusiona sujeito (Kevin) e objeto (mãe).
Através do sentimento de rejeição que sofreu, a culpa de Eva constitui o superego do
filho, juntamente com os objetos maus do garoto.
A culpa do filho também se faz notar na mãe, que se dizia responsável, após a
chacina praticada por Kevin. Mesmo nas situações de agressão que sofria, Eva
sempre as aceitava e se dizia culpada, revelando claramente a indiferenciação com
seu filho. Ela permanecia em uma necessidade de punição sem fim, claramente
melancolizada. Como demonstrado no capítulo, onde foi descrita a melancolia
enquanto patologia do ódio, como pensada por Freud, a incapacidade de lidar com a
perda do objeto (filho) e a decepção com ele fazem com que haja uma “incorporação
patológica oral”, que aloja o objeto morto no Eu, que cindido, apresenta parte dele
atacando o objeto, com o qual o Eu está fusionado. Porém, a indiferenciação Kevin-
Eva faz com que as recriminações ao objeto narcísico sejam direcionadas ao Eu.
Embora Freud descreva o supereu como esta parte do Eu que julga e condena a outra
parte dele e que representa a pura cultura da pulsão de morte, no mesmo texto, o
autor menciona a ambivalência, onde também está presente o amor ao objeto perdido.
Klein considera que, normalmente, as frustrações orais deslocam a criança
para a genitalidade. Kevin fala sobre sexualidade genital de uma forma explícita,
quando Eva ludicamente tenta explicar sua gravidez ao menino. Kevin usa a
sexualidade para chocar a mãe, por exemplo, na cena onde de forma exibicionista e
frenética masturba-se, mesmo na presença de Eva, quando ela o surpreende em sua
intimidade. O garoto revela a gravidez da mãe, mostrando como percebe o corpo dela,

9 KAHTUNI, H. C.; SANCHES, G. P. Dicionário do pensamento de Sándor Ferenczi – uma


contribuição à clínica psicanalítica contemporânea. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.
126

mas de uma forma sempre embrutecida, pois ele o faz dizendo que ela está gorda. O
casal não havia conversado sobre um fato de tamanha relevância, talvez eles não
conseguissem falar sobre gestações e filhos. Kevin aparece como o sintoma de uma
família marcada por fugas, desencontros e silêncios.
É fácil o expectador captar o sadismo de Kevin, identificar-se com o sofrimento
de Eva, mas reconhecer o sadismo de Eva e o masoquismo de Kevin pode oferecer
uma análise mais ampla a esta trágica dinâmica. Kevin reconhece e nomeia a
crueldade da mãe, com quem se identifica. Klein defendia a existência de uma
identificação inicial do menino com a mãe, a ser superada ao longo do
desenvolvimento. A mesma autora considera que o conflito pulsional/ambivalência
forçam o ego do bebê a fazer cisões, não patológicas e sim necessárias, que o
protegem. Assim, parte da pulsão de morte pode ser projetada no seio (objeto parcial),
que se torna mau. O seio que frustra é um seio mau, nele é projetado o ódio pelo
desconforto sentido e ele se torna a causa do mal sentido. Eva mostrou-se um objeto
extremamente frustrador, desconectado e afetivamente ausente. Há uma capacidade
constitucional para um bebê suportar frustrações, em certos limites. As cenas do
desenvolvimento inicial de Kevin revelam excessos de privação, muito maiores que a
capacidade de o bebê suportar ansiedades primitivas.
Embora Klein tenha trabalhado muito o conflito pulsional, como afirmado
anteriormente, ela considera a experiência com o seio e cuidados oferecidos pela mãe
de grande importância, pois a internalização de um bom objeto é um fator decisivo na
constituição do ego e da saúde psíquica. O terror de Eva na cena em que as crianças
brincam no Dia das Bruxas e pedem doces, ao mesmo tempo que seus armários e
geladeira estão vazios, podem ser metáforas das ansiedades persecutórias frente às
crianças e à sua carência interna frente à demanda delas. Ansiedades de natureza
persecutória são projetadas na imago das crianças e no filho da protagonista. Para
diminuir a persecutoriedade frente aos objetos temidos, tanto no meio externo quanto
no psiquismo, é fundamental a presença de um objeto bom internalizado no ego. Teria
Eva um núcleo protetor interno desta natureza?
Se Freud considera que o Eu é antes de tudo corporal, Klein relaciona as
primitivas fantasias a fenômenos corporais. Assim, fome pode criar um objeto mau
que ataca o bebê e que ele odeia. Como já mencionado, Kevin sofria e odiava um seio
que na sua fantasia o atacava, a partir dos momentos de frustração/privação.
127

Voltando à cisão original e projeção do mau (ódio e destrutividade) sobre o


objeto, estes objetos parciais (mãe) eram de natureza extrema: muito maus. Esta
modalidade defensiva também protege os bons objetos internos da mesma pulsão
destrutiva, na medida em que bom e mau estão bem separados, pois a projeção da
pulsão de morte protege o bebê. Kevin parece ter na figura do pai o objeto bom, pois
acalma-se quando está em seus braços, corre na sua direção, fica em seu colo. Por
outro lado, Eva é totalmente má e precisa ser atacada. Nenhum dos dois genitores
pode reunir aspectos bons e maus, revelando assim maior integração e contato com
a realidade.
Retomando uma ideia já apresentada, Klein considera que, a partir das
projeções carregadas de ódio, surge o medo da retaliação, da vingança agressiva do
objeto, onde o ódio foi projetado. Esta pode aniquilar o Eu. Este fenômeno faz pensar
no trecho da letra de Cazuza citado no início deste capítulo: “matar ou morrer”. Como
afirma Minerbo10, na dinâmica da não-neurose, temos angústias de aniquilamento e
intrusão, entre outras. Eva parece também vivê-las em relação ao filho, desde a
gestação até a fase da adolescência. Kevin parecia viver a angústia de intrusão,
protegendo-se da mãe; por exemplo, quando ela o convida para jantar e quer saber
da vida dele, assim como quando ela tenta esquadrinhar o quarto do filho e ele destrói
o computador dela (interior de algo que pertence a ela), através de um CD que tem
um vírus, acreditando que ela entraria no seu quarto e vasculharia seus pertences.
Tal cena traz uma ilustração da natureza agressiva expressa na fantasia de invasão
e ataque interior ao objeto, a identificação projetiva. Há, também, uma forte angústia
de separação vivida pelo garoto e permanência de uma relação dual com a mãe.
O funcionamento mental dos personagens segue a dinâmica da posição
esquizoparanoide, descrita no Capítulo 3. Como mecanismo de defesa importante
dela, a identificação projetiva cria um objeto narcísico, da necessidade e menos
separado do sujeito, como relata Minerbo. Os mecanismos de defesa por eles
empregados são muito característicos dessa posição, na qual se pode ver Kevin
fixado, impossibilitado de atravessar.
A mesma autora11 propõe a análise deste funcionamento em dois eixos: objetal
e narcísico. No primeiro, o ódio tem como função evitar o aniquilamento e controlar o
objeto, protegendo o Eu da invasão. Era muito comum Kevin procurar estabelecer

10 MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.


11 MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
128

dispositivos de aparente negação da dependência em relação à mãe, assim como de


controle, muito evidente no episódio das defecações. A identificação projetiva permite
ao garoto controlar a mãe, possuí-la, assim como os seus objetos internos. Ela cria
um objeto narcísico, que abriga partes excindidas do self depositário do ódio a ele
dirigido, criando uma indiferenciação self-objeto. Eva é o objeto narcísico de Kevin,
que corresponde ao dela. Parte da periculosidade que ele representa à mãe são
aspectos negados por Eva, partes de si projetadas no menino. Kevin recebe
identificações projetivas da mãe e se identifica com o objeto mau, respondendo desta
posição subjetiva. Ela permanece livre do mau, que é depositado na figura do filho.
Para Klein:
O objeto passa a ser, em certa medida, um representante do ego; e esses
processos são, em minha opinião, a base para a identificação por projeção,
ou ‘identificação projetiva’. A identificação por projeção e a identificação por
introjeção parecem ser processos complementares.12

Também a autora considera que o desejo do bebê em penetrar no corpo da


mãe e tomar posse de seu conteúdo é, predominantemente, sádico. A voracidade do
garoto relaciona-se às várias fases da libido, não apenas oral, revelando-se no desejo
de possuir, controlar e triunfar sobre a mãe, embora as cenas de alimentação
voraz são frequentes. Tanto o garoto como a mãe parecem relacionar-se com os
objetos frequentemente através de identificações projetivas. Assim, Kevin não se
separa da mãe, ele a domina, mas esvazia-se de si. Klein já advertia sobre os
prejuízos do excesso da identificação projetiva ao ego da criança.
No segundo eixo, Minerbo13 propõe angústias ligadas ao self14, como medo da
dependência, do submetimento e da humilhação, angústias ligadas às fases oral e
anal do desenvolvimento. Depender da mãe humilha Kevin, que de maneira
onipotente se comporta perante o objeto. Tal modalidade de comportamento substitui
a vulnerabilidade, a condição de desamparo e se revela como uma defesa maníaca.
Aparentemente, até antes da agressão física, Kevin mantinha-se dependente
dos pais para a troca de fraldas, não atingindo independência, mantendo-se usuário
delas, mesmo com a idade avançada. Claramente, ele mostra que tem controle
esfincteriano, quando força a defecação. Há uma mudança da “dependência”, que

12 KLEIN, M. Algumas conclusões teóricas sobre a vida emocional do bebê. Os progressos da


psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1969, p. 225.
13 Minerbo considera que o Eu é constituído pelo ego e pelo self. A autora propõe que se analisem as

angústias pelos eixos objetal e narcísico do psiquismo.


14 MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
129

mais se parecia um controle, à independência, após ser seriamente agredido.


Surpreendentemente, revela-se autônomo em relação aos pais. O treino esfincteriano
envolve uma interação mãe e filho, com impulsos de amor e hostilidade. A interação
ativa por parte da criança fala da disputa: quem domina quem. Assim, a ambivalência
expressa-se na fase anal na oposição ativo e passivo.
A negação em entregar as fezes ao objeto de amor e de ódio ou a oferta
dadivosa do material fecal, produção que agora cabe à criança (diferentemente do
leite, que é uma produção materna), configuram a constelação do universo anal. O
garoto compara seu treinamento esfincteriano ao de um animal, ressente-se com tal
manejo materno desastroso e verbaliza à mãe. Sua cicatriz no braço exibida à Eva
mostra a ela esta marca também psíquica de violência, pois a mãe faz uma separação
violenta neste episódio cuja marca fica registrada também no corpo da criança. Como
defendia Freud, as fezes representam intercâmbio significativo com o outro. Para ele,
a fase anal é marcada por um intenso erotismo sádico, que envolve pulsões, cuja
atividade fornece prazer ao reter e eliminar as fezes. Esta fase é marcada pelo ódio,
desejo de domínio e controle. Freud chegou a ela ao estudar a neurose obsessiva.
Através do sadismo anal, o bebê usa os excrementos para invadir, controlar e atacar
o objeto, como considera Klein. O objeto atacado pelo ódio é introjetado e vira
perseguidor interno, constituindo o superego precoce. Klein também considera que a
expulsão de excrementos pode defender a criança de um movimento anterior, onde
houve introjeção sádica. A cena de expulsão sádica das fezes realizada por Kevin
mostra o desejo do menino em controlar sua mãe, que acabara de lhe trocar. Depois
da manifestação de extremo ódio por parte de Eva, seu filho desenvolve autonomia.
A mãe tenta expressar algo de natureza mais amorosa pela conquista do garoto, que
é recusado pelo filho. A entrega das fezes traz a marca da ambivalência, pois elas são
entregues por amor também e Eva recebia as ofertas de Kevin, de maneira muito
paranoide tornando-o mal e perigoso.
Edna O’Shaughnessy15 propõe a existência de um continuum que pode
caminhar desde uma retenção maldosa a uma doação generosa, que cabe à mãe da
gratidão kleiniana. A doação e a retenção são mecanismos psíquicos muito
comprometidos na relação Eva-Kevin. Alimento, cuidado e reconhecimento são

15 O’SHAUGHNESSY, E. Sobre a gratidão. In: ROTH, P.; LEMMA, A. (Orgs.) Revisitando “Inveja e
gratidão”. São Paulo: Blucher, 2020.
130

elementos forçadamente dados ao outro, doação violenta e desprovida de


generosidade, ou simplesmente negados.
Desde Freud, reconhece-se fezes, seio e pênis como objetos que apresentam
intercâmbio entre si, pois participam de uma equação simbólica e por isso são parciais.
Objetos desta natureza podem ser engolidos, evacuados, ou seja, projetados e
introjetados e, como apontado no capítulo anterior, Segal apud Spillius16 afirma que a
simbolização na posição esquizoparanoide opera por equações simbólicas. O objeto
é o símbolo, assim como o Eu que é indiferenciado do objeto. Em função disso, a
posição esquizoparanoide pode ser considerada narcísica, segundo a autora. Mãe e
filho permanecem visivelmente fixados nela.
O correto uso de sanitário é conquistado a partir do ódio e da agressão e a
verdadeira situação é escondida do pai, revelando um pacto mentiroso entre Kevin e
a mãe. Franklin não sabe que Eva foi a responsável pela agressão que quebrou o
braço do menino. Ele assume a culpa pela lesão. No futuro, é Eva quem vai se
considerar culpada pelo ato do filho.
Baseado nesta identificação, pode-se pensar que as autorrecriminações e
incorporação da culpa falam de uma melancolização da mãe. Eva tem um tormento
sem fim, mulher que tem o nome da pecadora original bíblica, personagem cuja culpa
todos os demais descendentes carregam, como herdeiros. É provável que o nome da
protagonista não tenha se dado ao acaso. A prece cristã faz menção aos gritos
proferidos pelos “degredados” filhos dessa mulher, que estão alojados em “um vale
de lágrimas”, que suplicam à Virgem Maria que seja advogada, a defender os
herdeiros da culpa. Temos duas representações femininas ligadas ao seio: o mau,
que condena, pois enlaça no pecado, e ao bom, que salva, do pecado, do crime, da
tortura e da destruição. Na leitura de Stein sobre a mitologia das erínias, na oração
católica e no psiquismo de Kevin, há um filho que carrega melancolicamente a culpa
e o ódio. No sentido moral da religião, na natureza constitutiva e não patológica que
Stein apresenta e no psiquismo adoecido de Kevin, ódio e culpa estão lá, operando de
maneiras diferentes.
Kevin é vítima de um superego sádico e cruel em cujo núcleo há o objeto mau
carregado pelo seu sadismo (oral, anal e uretral). Klein17 articula esta instância a

16 SPILLIUS, E. B. Uma visão da evolução clínica kleiniana. Rio de Janeiro: Imago, 2007.
17 KLEIN, M. (1927) Tendências criminosas em crianças normais. In: KLEIN, M. Obras completas de
Melanie Klein. Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
131

tendências criminosas. Para ela, o medo e a culpa frente a ele levam ao crime. Para
a autora, as crianças normais apresentam tendências criminosas em seu
desenvolvimento normal e, nos atos criminosos, existem fantasias infantis que não
foram elaboradas, pois houve forte repressão e fixações violentas podem acontecer.
Quando integradas e elaboradas, as fantasias violentas podem aparecer na produção
artística e nas brincadeiras infantis. As sublimações posteriores estão relacionadas às
atividades reparatórias. A agressividade pode ser integrada em atividades e
brincadeiras, após a passagem pela posição depressiva, que visa integrar amor e ódio
ou mitigá-lo através do amor, como propõe Klein em 1940, no texto sobre o luto. Kevin
mantém atividades e brincadeiras muito reveladoras de uma violência não integrada.
Ao brincar, descarrega ódio e agressividade em estado bruto. Diferentemente do
esperado nas brincadeiras infantis, o garoto não faz atividades reparatórias do seu
sadismo, que comumente diminuem a culpa e as ansiedades depressivas pelos
ataques cometidos. Ele estraga objetos e não aparecem situações nas quais algum
nível de reparação acontece.
O superego da criança está relacionado ao de seus pais e às próprias fantasias
sádicas. Dada a intensidade do sadismo do garoto, pensar no massacre como defesa
frente a este superego faz certo sentido. Tal ideia de Klein aproxima-se da concepção
de Freud sobre a relação entre superego e necessidade de punição18.
Como visto no Capítulo 3, Klein começa a reconhecer o sadismo infantil antes
de associá-lo à pulsão de morte, como o fará depois. Assim, ela articula também
sentimento e pulsão, como ódio à pulsão de morte. Quando Freud fala em ódio, há
uma manifestação da pulsão de morte, mas fusionada à libido, o ataque que envolve
prazer. Há amor nas agressões realizadas por Kevin à mãe, pois como considera Mezan:
O ódio pelo objeto não me leva a me aproximar dele; ao contrário, leva a me
afastar dele. Se me aproximo do objeto, ainda que seja para destruí-lo,
controlá-lo, agredi-lo, xingá-lo ou feri-lo, já está presente nessas equações
uma certa dose de libido.19

A linguagem não podia ser usada como forma de comunicação de afetos, de


estados emocionais, de ideias, enfim, não havia uma comunicação possível, além do
vazio do silêncio, em vários momentos entre Eva e seu filho. A capacidade de fala do
menino foi comprovada, após hipóteses iniciais de prejuízo orgânico, ao mesmo

18 Mesmo com essa aproximação reconhecida, convém lembrar que Freud não aceita a noção kleiniana
de superego precoce.
19 MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham. Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999, p. 81.
132

tempo vai se percebendo que, em seu ambiente próximo, ninguém podia fazer uso da
palavra para ser escutado, para poder dar expressão à sua subjetividade, para
comunicar-se. Franklin propõe que a esposa vá falar com outra pessoa sobre suas
dificuldades com o filho do casal, banalizava as queixas dela, impedindo-na de
verbalizar seus conflitos, que eram por ele negados. Eva não falou sobre suas
dificuldades com ninguém ao longo do filme, cujo título fala da sua necessidade. A
mãe também não conseguiu escutar o medo do filho, quando ele seria transferido para
outro presídio. De certa forma, Eva nega e minimiza o sentimento do garoto que se
aflige pela entrada no mundo adulto.
A linguagem implica simbolização e representação do objeto, processos que
envolvem a presença e ausência dele. Uma ausência radical impede o acesso à
simbolização. Se é possível representar algo ausente, é porque ele não esteve faltante
plena ou excessivamente. Desde A interpretação dos sonhos, Freud propõe a ideia
da marca psíquica deixada pelo objeto nas experiências de prazer e da relação disso
com o desejo. Como afirmado no capítulo anterior, Klein20 considera que a
simbolização fica prejudicada em função do sadismo intenso, que pode ser resposta
à frustração despertada pela ausência do objeto. Fortes ansiedades inibem a
capacidade representacional das crianças, que exige certo grau de ansiedade, como
Klein observou ao atender o inibido garoto Dick. Em Kevin, a intensa agressividade
sádica provavelmente prejudicou seu desenvolvimento na direção de aquisições
simbólicas. Sem elas, o objeto é a coisa em si, como já afirmado acima e tais estados
confusionais são comuns nas psicoses e outros estados não neuróticos.
Em Além do princípio do prazer, Freud21 considera que estímulos internos
podem ser sentidos como se estivessem localizados fora do organismo. Assim, a fome
pode ser análoga a algo que vem de fora. O excesso de estímulos tem efeito
traumático, em função do excesso de excitação, que invade o psiquismo. Como já
descrito no capítulo 2, a energia precisa ser ligada e, enquanto não é, segue-se o
princípio da compulsão à repetição. Se a energia permanece desligada, pois não
encontra canais para ligação e simbolização, a pulsão de morte – pulsão não ligada –
pode ser descarregada, eliminada na forma de violência. Mezan22 considera que a

20 KLEIN, M. (1930) A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do Ego. In: KLEIN, M.


Obras completas de Melanie Klein. Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
21 FREUD, S. (1920) Além do princípio do prazer. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das

Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
22 MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham. Psicologia USP, São Paulo, Vol.10, n. 1, 1999, p. 76.
133

pulsão de morte: “[...] não pode ser facilmente ligada a representações. Se não for
totalmente desprovida da representação, a pulsão de morte é pelo menos inapta a
acolher representações [...] Representações inconscientes são fantasias [...]”.
No texto de 1920, Freud volta a falar na “vivência de dor”, noção presente no
texto pré-psicanalítico de 1895, o Projeto para uma psicologia científica, configurando-
na como trauma, segundo Caropreso23. Tais vivências decorrem do excesso de
excitação e falhas nos mecanismos protetores, a serem desempenhados pela
presença do objeto. É a recordação e reaproximação com o objeto falho que resulta
na liberação do afeto doloroso, que promove a descarga, evitando assim a
representação do objeto. Segundo a autora24, a vivência da dor passa a explicar
desenvolvimentos normais e patológicos em Além do princípio de prazer. É a
experiência de ligação, a ser realizada pelo Eu, que poderia inibir o afeto e a descarga.
Nas cenas iniciais do filme, quer apoiados no “projeto” ou na ideia de “compulsão à
repetição”, formulada mais de 20 anos depois, vemos intensas experiências de dor,
distantes das ligadas ao prazer, que Freud descreve em 1900 e que seriam
responsáveis pela representação psíquica dos objetos e mobilizadoras do desejo.
Caropreso25 diferencia a transição que Freud faz em 1900, dando prioridade às
vivências de prazer, no capítulo VII de A interpretação dos sonhos, onde há outro
destino para as experiências dolorosas. Embora o “projeto” fique no campo na
neurofisiologia, um texto pré-psicanalítico, negado e rejeitado por Freud, as ideias nele
presentes podem aproximar-se do texto de 1920, que darão uma nova configuração
à teoria freudiana.
Em franca experiência de dor, Kevin grita desesperadamente e, para Eva, o
ensurdecedor barulho de uma britadeira parece ser melhor que a situação com o filho.
A mãe não consegue ser um objeto capaz de acolher as angústias e fazer um
mecanismo mínimo de para excitação. Seu estado emocional desorganizado e
desesperado não lhe permite uma interação saudável com ele. Há uma série de
repetições de desencontros problemáticos na interação entre eles.
Estaria Eva vivendo, ou melhor, revivendo suas angústias de filha? Estaria em
contato com o bebê desesperado e mau acolhido que foi? O filme permite que se

23 CAROPRESO, F. Trauma, pulsão de morte e sexualidade na etapa final da obra freudiana. In:
FULGÊNCIO, L.; KUPERMANN, D.; BIRMAN, J.; CUNHA, E. L. (Orgs.) Amar a si mesmo e amar
ao outro – narcisismo e sexualidade na psicanálise contemporânea. São Paulo: Zagodoni, 2016.
24 Ibidem
25 CAROPRESO, op. cit.
134

construa uma hipótese: que conflitos mãe e filho, ao que tudo indica, são
transgeracionais, pois a avó materna de Kevin convida a filha para almoçar com ela
no Natal e o convite é recusado, quando Eva também mente à sua mãe. Que marcas
trazem à Eva a relação com sua mãe? A psicanálise ensina que certas vivências
trazem fantasias arcaicas das mais remotas experiências.
Em sua experiência com jovens que têm gravidez precoce e indesejada,
Lemma26 considera que a mãe invejosa identifica patologicamente seu filho com a sua
própria mãe privadora, permanecendo o ódio ao bebê, como resposta ao desejo da
atual mãe em relação ao seio do passado. Para a autora, esse bebê atormenta a mãe
e é falsamente percebido como carregado de intenções malignas. Há também a
sensação de que o filho rouba-lhe a liberdade. Lemma27 diz que neste caso há uma
percepção mais próxima da realidade do fato, menos destrutiva e patológica.
Percepções de ambas as naturezas, mais ou menos destrutivas, poderiam ocupar as
fantasias de Eva, sendo as segundas explicitamente verbalizadas por ela. A cena
onde Eva mergulha seu rosto e aparece a imagem do garoto corroboram com a
hipótese da confusão identificatória entre eles. A mãe também aparece vestindo uma
roupa do filho. A cena do espelhamento na água também pode ser interpretada como
fantasia de Eva torturar e afogar o filho.
Quando Eva tentava interagir com o garoto, as interações precárias
mobilizavam intensos sentimento de culpa e frustração na mãe e se transformavam
em puro ataque ao menino, momentos de descontrole, manifestações de puro ódio.
Tanto pela mãe quanto por Kevin, as realidades psíquicas experimentadas, a partir
das relações com objetos que são introjetadas, trazem o predomínio da violência e do ódio.
Eva comunica-se por este afeto com seu filho, ao mesmo tempo que Kevin não pode
experimentar uma comunicação amorosa com a mãe.
Retomando um aspecto central da obra, considero que a aparente relação, às
vezes, distante entre a dupla mostra a dimensão fusional, onde ambos permanecem fixados.
A ideia de um terceiro objeto a romper a relação dual entre mãe e filho parece algo a
ser repelido e atacado pelo garoto, seja na cena em que ele, nos braços da mãe,
manda o pai embora, seja na cena onde ele talvez mais agressivamente destrói o
escritório de Eva. A eliminação total e radical dos terceiros, que Eva pode vir a ter,

26
LEMMA, A. Mantendo a inveja em mente: as vicissitudes da inveja na maternidade adolescente. In:
ROTH, P.; LEMMA, A. (Orgs.). Revisitando “Inveja e gratidão”. São Paulo: Blucher, 2020.
27 Ibidem
135

além da dupla com o filho, aparece quando ele só deixa a mãe viva, matando o pai e
a irmã. Por amá-la, Kevin deixa a mãe viva e somente para si.
Extremamente ligado à mãe, que lhe deu acolhimento em um momento de
adoecimento, ele exclui o pai. Kevin mantém-se em relações sempre duais com seus
genitores (a mãe é excluída ou o pai é). Por outro lado, a noção de Édipo precoce em
Klein nos aproxima da concepção de que há sempre um objeto não bebê
(independentemente de ser uma pessoa ou não) ao qual dirige-se a mãe. Por
exemplo, Eva lamenta perder seu objeto – trabalho – em função do nascimento do
filho. Na tentativa de resgatá-lo, monta um escritório que é todo danificado
sadicamente pelo filho. A ausência materna, que está deslocada a um terceiro, pode
trazer ao garoto uma sensação que lhe parece insuportável e perene, vivência de dor
muito experimentada. Eva tenta criar um espaço próprio, algo que foi perturbado com
a gestação. Diz ao filho sobre a necessidade de lugares próprios e singulares, mas
Kevin quer invadir o espaço materno e o faz jogando tinta nele. Teria este episódio
alguma relação com o massacre que ele faria na adolescência, considerando que ela
representa uma etapa de separação dos pais e reedita conflitos anteriores?
Por outro lado, antes da morte do marido, Eva e Franklin falam sobre a
separação do casal. Ao escutar a conversa, Kevin fica perturbado com isso. Seria um
momento de culpa pelos ataques fantasiados à união do casal, como propõe Klein?
Ele ficaria com o pai por decisão de Franklin e matá-lo daria a Kevin a permanência
ao lado da mãe.
Em função do excesso de projeção e de ataques ao objeto, como sua forma de
interação e dinâmica psíquica, e da ausência da função metaforizante, e do pobre
acesso ao universo simbólico, há predomínio da ilusão imaginária, com fantasias mais
persecutórias. O excesso de projeção ficava como um obstáculo significativo e
impedia a aproximação do Eu, pouco integrado, à realidade.
Essa dinâmica psíquica constituída por muitos objetos parciais, marca das
grandes cisões leva-me a pensar também o personagem com base nas definições de
Minerbo28 sobre os quadros de não-neurose. A autora os relaciona a traumas,
identificações patológicas e falhas do objeto primário. São quadros que se apresentam
mais relacionados a problemas de ordem narcísica. As defesas (negação, projeção,
idealização, cisão) e angústias (de destruição, de separação), que são típicas da

28 MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.


136

psicose, estão presentes no funcionamento da não-neurose, segundo essa autora.


Como nos diz Minerbo, a pulsão de morte, predominante na não-neurose, não permite
a atenuação do ódio.
Os objetos internos e externos apresentavam-se sempre fantasiados por
grande destrutividade e persecutoriedade. Aprendemos com Klein que as relações
com os objetos podem ser pensadas a partir de posições, como apresentado ao longo
do capítulo 3, a esquizoparanoide e a depressiva. Reconhece-se em Kevin uma forte
tendência à cisão dos objetos, que assim deveriam permanecer, afastando-se da
possibilidade da constituição de um objeto total, mais integrado. Como há ações
simultâneas no objeto e no ego, este também fica extremamente cindido e seu
dinamismo psíquico é marcado pelas defesas e angústias da posição
esquizoparanoide, como as citadas acima, além do controle onipotente que serve ao
domínio das angústias de aniquilamento e de separação. Não há sinais depressivos
no garoto que se mantém isolado, evitando aproximações, com uma dinâmica mais
esquizoide, e também realizando ataques, fruto de uma dinâmica mais paranoide.
O uso excessivo de cisões conduz a um mundo interno sem espaço para
questionamentos e responsabilizações, deixa um terreno muito pobre para o trabalho
de elaboração e simbolização. A única vez que Kevin apresenta dúvida e se questiona
é a cena final, onde é possível a ele se encontrar com o objeto também.
O ódio permite reassegurar as fronteiras do Eu, seus limites, sua integridade,
mas no extremo da dimensão destrutiva-agressiva de Kevin talvez não seja possível
perceber tais aquisições. Gerchmann e Antunes29 propõem que é a indiferença, e não
o ódio, que está relacionado à pulsão de morte, que promove desligamentos. Seria,
então, o ódio uma forma de ligação ao objeto e, neste caso, com a participação de
Eros?
Na sua releitura do texto freudiano sobre a melancolia, Ogden cita a potência
do vínculo sádico, ao afirmar:
O sadismo é uma forma de ligação com o objeto em que o ódio [...] torna-se
inextrincavelmente imbricado com o amor erótico, e essa combinação pode
se transformar em vínculo ainda mais poderoso (de modo sufocante,
subjugante, tiranizador) do que vínculos amorosos apenas. 30

29 GERCHMANN, A.; ANTUNES, C. A. O ódio primário e os processos de individualização. Revista


Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.
30 OGDEN, T. “Luto e melancolia” de Freud e as origens da teoria das relações de objeto. Leituras

criativas. São Paulo: Escuta, 2014, p. 50.


137

Na mesma direção, Gabbard31 considera ser melhor o ódio à indiferença, pois


ele mantém vínculo, cria um elo, que pode se tornar inquebrável. Este autor está em
sintonia com a ideia de Ogden, descrita acima. Odiar é uma forma de ligação com o
objeto, uma forma de não perdê-lo. Seria o ódio uma forma de Kevin manter-se ligado
ao objeto? Smith32 propõe a existência e permanência de um vínculo na interação
sádico-masoquista, como é possível perceber no filme.
Kevin acessa o ódio da mãe, mas tem dúvidas sobre seu amor. Por outo lado,
a ausência do ódio transforma o amor em idealização, como afirma Stitzman33. Na
mesma direção, Klein34 considera que o objeto idealizado provém de uma cisão, cria
dependência, chegando ao ponto de se constituir como objeto mau.
Blum apud Gabbard35 propõe a ideia de um continuum, na esfera do ódio, que
vai do controle à destruição do objeto, sendo a preservação deste encontrada na
posição intermediária. Kevin permanece na tentativa de controle intenso do objeto,
com tendências à destruição dele, mas que também é preservado, quando se pensa
no fato de Eva não ter sido morta por ele. Tal dinâmica também mostra a analidade
de Kevin na relação de objeto. Neste caso, temos a agressividade mais relacionada à
noção laplancheana, descrita por Mezan no capítulo 2, onde inicialmente há apenas
um desejo de domínio não sexualizado e apropriação do objeto.
A noção de inveja formulada por Klein talvez possa fornecer um elemento
teórico para que se também pense o material ilustrativo. Como afirmado no capítulo
anterior, a inveja visa destruir a criatividade do seio bom, ou seja, ele é atacado
justamente pela sua bondade para Klein. Ela impede que se possa usufruir daquilo
que o seio tem de bom a oferecer.
No Dicionário do Pensamento Kleiniano, de Hinshelwood, a inveja é assim
apresentada:
De seu trabalho com a análise de esquizofrênicos, Klein e seus colaboradores
descreveram uma forma precisa de inveja. Trata-se de um ataque destrutivo
às fontes de vida, ao objeto bom, não ao mau, e deve ser distinguida da
ambivalência e da frustração. Ela é considerada como de origem inata, parte

31 GABBARD, G. Love and Hate in the analytic setting – The library of object relations. Jason
Aronson, USA, 1996.
32 SMITH, H. Círculos viciosos de inveja e punição. In: ROTH, P.; LEMMA, A. (Orgs.). Revisitando

“Inveja e gratidão”. São Paulo: Blucher, 2020.


33 STITZMAN, L. Framework: ódio, áreas de vibrância: ideias para psicanalistas – Revista de

Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, Vol. 24, n. 3, 2017.


34 KLEIN, M. (1946) Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In: KLEIN, M. Obras Completas de

Melaine Klein. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 2006.


35 GABBARD, op. cit.
138

que é da dotação pulsional, e exige o mecanismo de cisão como defesa


arcaica a operar no começo.36
A dimensão narcísica envolvida na inveja explica o ódio que ela traz. Se há
dependência de algo tão bom, a ponto de ferir o narcisismo, tem-se a origem do ódio.
Dentro desta perspectiva, negar o objeto atenua o ódio da dependência que se tem
dele. Reconhecer um objeto da dependência equivale a uma humilhação.
Para Sodré37, a inveja tem uma natureza triádica. A autora discorda de Klein,
que a reconhece em uma dimensão diádica e considera que tal visão de Klein é
justificada pela articulação entre pulsão de morte e inveja. A noção kleiniana de que o
bebê nasce com uma pré-concepção do seio deixa a inveja mais pulsional, menos
relacional. A visão de Sodré deixa a inveja como um elemento desta natureza, pois o
bebê invejoso seria responsável pela destruição do vínculo entre dois, o bebê e o seio,
expressando a pulsão de morte, através da destrutividade. A cena em que Kevin nos
braços da mãe ouve a história fez-me pensar que aquela ligação teve que ser
destruída pelo garoto, quando ele atira sua flecha na mãe, posteriormente. Se falta
um seio ao bebê, alguém está de posse dele, ele é dado a um terceiro. Para Sodré, a
triangulação dá-se na transição de um seio que é para um seio que tem. Se ele tem,
isso pode ser dado ao bebê ou a um outro objeto. Uma outra leitura pode ser feita, a
relação entre o massacre e esta cena da infância, pois Eva apresenta ao filho um
relato sobre flechadas diabólicas disparadas por Robin Hood. A partir da incapacidade
de simbolização, Kevin faz uma passagem ao ato análoga à cena da história. Seria
outra entrega ambivalente à mãe?
Em uma direção também diferente da noção de Klein, Caper38 considera que o
narcisismo é o fenômeno que explica a inveja, fenômeno que dispensa a noção de
pulsão de morte, para o autor. Ao negar o objeto, a dependência em relação a ele,
desvalorizando-o, evita-se o ódio e a inveja. Depender de um objeto sobre o qual não
se tem controle pode gerar fortes ansiedades; assim, se por um lado, negá-lo e odiá-
lo protegem o narcisismo, também impedem o estabelecimento de boas relações com
ele. São inúmeras oportunidades perdidas, quando Kevin recusa a interação com a
mãe, em manifestas atitudes de desprezo. Quando ela o percebe admirando sua foto,

36 HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992,


p. 181.
37 SODRÉ, I. “Ainda agora, agora, nesse instante...”: sobre a inveja e ódio ao amor. In: ROTH, P.;

LEMMA, A. (Orgs.) Revisitando “Inveja e gratidão”. São Paulo: Blucher, 2020.


38 CAPER, R. Inveja, narcisismo e pulsão destrutiva. In: ROTH, P.; LEMMA, A. (Orgs.) Revisitando

“Inveja e gratidão”. São Paulo: Blucher, 2020.


139

sente-se à vontade para convidar o filho para um momento de interação entre eles.
Ele aceita, mas recusa, jantando antes e zombando das tentativas de diálogo com
Eva. A interação hostil no restaurante pode ser pensada como uma defesa frente à
ameaça que a “generosidade do seio” traz. É pela natureza odiosa e destrutiva da
desqualificação do objeto que Caper39 considera o narcisismo ameaçado como
antivida e antidesenvolvimento, atributos que Freud deu à pulsão de morte.
Considerando o fenômeno em função do narcisismo, Caper defende uma leitura mais
psicológica e menos biológica dele. Para o autor, este enfoque é o adquirido pela
análise, através do viés da pulsão. Dentro desta perspectiva, Eva e Kevin invejam-se
mutuamente. Ela não oferece o seio bom ao filho, que se nega a interagir com ela,
ferindo-a narcisicamente como mãe, não a reconhecendo.
Smith40 destaca a existência de círculos viciosos envolvendo inveja – culpa e
ataque: os ataques decorrentes da inveja ao seio, com o qual não se viveu uma
experiência de gratificação, desenvolvem intensos sentimentos de culpa e a
necessidade de punição, expressa na desvalorização do self, que potencializa a inveja
e a destruição, além do ódio.
Diferenciando os ataques invejosos de interações agressivas, Fonagy
considera que os primeiros:

[...] refletem tanto uma familiaridade ‘unheimlich’ [estranha] quanto uma


antipatia muito profunda com o objeto invejado [...] demonstra um aspecto
desafiador do caráter viciante de certos tipos de violência. Isso explica o
estranho orgulho que os indivíduos violentos experimentam em relação aos
terríveis atos de destruição que praticam.41

A ideia deste autor não seria uma explicação para o aspecto de triunfo e glória
que Kevin manifesta após o massacre? Abaixa-se e agradece como se respondesse
a aplausos. Em seguida, entrega-se passivamente à polícia. Em ato, o garoto vira
Robin Hood, o flecheiro ambíguo, que comete crimes por amor.
Seria algo de uma natureza mais constitucional, ou melhor pulsional, que marca
a natureza destrutiva das relações de Kevin com seus objetos? É possível pensar em
tais aspectos constituídos, a partir de uma intersubjetividade doente, para pensar seu

39 CAPER, R. Inveja, narcisismo e pulsão destrutiva. In: ROTH, P.; LEMMA, A. (Orgs.) Revisitando
“Inveja e gratidão”. São Paulo: Blucher, 2020.
40 SMITH, H. Círculos viciosos de inveja e punição. In: ROTH, P.; LEMMA, A. (Orgs.). Revisitando

“Inveja e gratidão”. São Paulo: Blucher, 2020.


41 FONAGY, P. Invejando “Inveja e gratidão”. In: ROTH, P.; LEMMA, A. (Orgs.). Revisitando “Inveja e

gratidão”. São Paulo: Blucher, 2020, p. 309.


140

dinamismo psíquico? A narrativa mostra que as duas tendências cabem para


pensarmos a temática do filme. Ao mesmo tempo que parece ter Kevin nascido
carregado intensamente de ódio, ele também foi extremamente mal acolhido pela
mãe, como percebemos no filme.
Uma melhor análise não consideraria a psicodinâmica Kevin apenas como
consequência de uma constituição pulsional. Gabbard42 propõe também a incidência
de circunstâncias externas (ambientais) nos quadros psicopatológicos. Tal visão
amplia a interpretação.
Para Simanke43, o excesso de destrutividade e ódio44 depende de fatores
inatos, constituição psíquica e traumas, responsáveis por transtornos sejam narcísicos
ou relacionais. Essas visões contemplam várias dimensões na gênese de
funcionamentos mentais não neuróticos. Pode-se aplicá-las para analisar a
psicodinâmica neurótica também.
Na mesma direção, Zimerman45 questiona a gênese das pulsões agressivas, a
partir de um traço inato, como inerentes ao humano ou se surgiram do excesso de
privação, que ameaça a sobrevivência. O autor também pensa na coexistência das
duas possibilidades. Para Zimerman, a agressão está presente tanto na psicose
quanto na neurose e mais explicitamente na perversão. Nesta, o ódio absoluto é
atuado no objeto. Minerbo46 propõe a constituição de uma identidade através do ódio,
na paranoia, que juntamente com a perversão, correspondem a manifestações da
pulsão de morte, considerando a não-neurose.
Pelo anteriormente exposto, podemos abordar as duas perspectivas para
pensar a psicopatologia de Kevin: nos campos intrapsíquico e intersubjetivo. Desde
os Três ensaios, podemos pensar a perversão enquanto dinâmica psíquica marcada
pela fixação a objetos e pulsões parciais, que dominam a vida sexual adulta. Há
fixação de Kevin nas fases pré-genitais, com predomínio de impulsos sádicos em sua
psicodinâmica.

42 GABBARD, G. Love and Hate in the analytic setting – The library of object relations. Jason
Aronson, USA, 1996.
43 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio

– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.


44 PAO apud GABBARD reconhece uma positividade no ódio, que seria uma tentativa de dominar a

destrutividade. In: GABBARD, G. Love and Hate in the analytic setting – The library of object
relations. Jason Aronson, USA, 1996.
45 ZIMERMAN, D. Os quatro vínculos. Porto Alegre: Artmed, 2004.
46 MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
141

Cabré47 propõe, por meio da noção de repetição, integrar trauma e perversão,


o primeiro intersubjetivo e a segunda intrapsíquica. Este autor também considera o
aspecto fusional em interações sádico-masoquistas, onde separação e lutos são
impossíveis. Ele afirma concordar com a ideia da problemática identificatória na
perversão, pois nela não há desidentificação da imago materna terrível. Cito Cabré:
Meu ponto de vista é que todas e cada uma das modalidades perversas, [...]
indicam uma relação falha com o outro enquanto sujeito de desejo e de prazer
e, a partir dessa perspectiva, os atos perversos não seriam outra coisa que
uma reedição metafórica de uma experiência traumática não representável,
armazenada na memória implícita e, portanto, não recuperável através da
recordação e do levantamento da repressão48. 49

Ampliando o exposto acima, Kahtuni e Sanchez afirmam:


Quanto à culpa do adulto agressor, é importante lembrar que, sob a aparente
ausência de culpa do perverso, se oculta um superego excessivamente cruel
e perseguidor que precisa manter-se encoberto a todo custo. Esse trabalho
de encobrir o superego severo reforça ainda mais a cisão do ego e a do
superego. Entretanto, em alguma medida, o agressor sabe que está fazendo
‘algo errado’, mas em seu superego (igualmente cindido) predomina o caráter
perverso que permite que ele disponha do corpo e do psiquismo alheio a seu
bel-prazer, desconsiderando os sentimentos do outro. 50

Foi descrito anteriormente a identificação com o agressor para pensar a relação


entre Kevin e sua mãe. Cabré afirma também que angústias primitivas (de
aniquilamento, de separação) insuportáveis estão na base do funcionamento
perverso. Também cita falhas graves em processos de desidentificação da imago
materna arcaica e terrível (pré-edipiana), nas dinâmicas que envolvem trauma e
perversão. Ausência de separação/lutos caracteriza a interação entre Eva e Kevin.
Como exemplifica Zimerman51, a agressão manifesta-se de múltiplas maneiras,
seja como sadismo, descarga pulsional, a serviço do Ego, relacionada a ideias
persecutórias, manifestas de maneira direta ou forma indireta, resultado de
mecanismos de defesa inconscientes. Para o autor, o ódio serve como busca de
autonomia ou visa eliminar uma fonte de sofrimento ou frustração, um obstáculo ou

47 CABRÉ, L. J. M. A engrenagem trauma-perversão no impasse de determinados tratamentos.


Calibán 15, n. 2, 2017.
48
Isso a relaciona ao traumático irrepresentável do ‘aquém’ do princípio do prazer, da compulsão à
repetição.
49
CABRÉ, L. J. M. A engrenagem trauma-perversão no impasse de determinados tratamentos.
Calibán 15, n. 2, 2017, p. 134.
50 KAHTUNI, H. C.; SANCHES, G. P. Dicionário do pensamento de Sándor Ferenczi – uma

contribuição à clínica psicanalítica contemporânea. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, pp. 212-213.
51 ZIMERMAN, D. Os quatro vínculos. Porto Alegre: Artmed, 2004.
142

um mau objeto, sendo esta última causa a mais intensa e que corresponde a uma
frustração causada por um objeto do qual se depende.
Como já afirmado, Klein52 propõe uma oscilação nas posições, havendo um
retorno sempre possível e esperado à posição esquizoparanoide, mesmo tendo sido
alcançada a posição depressiva. Nesse caso, não é possível a reconhecer como uma
conquista no desenvolvimento de Kevin, que vive só, ferido narcisicamente e cheio de
ódio. É possível levantar a hipótese de um sutil deslocamento a um funcionamento
menos dissociado do personagem no diálogo final com a mãe, quando o garoto já diz
não ter certeza da sua motivação criminosa, quando ele questiona se já foi feliz um
dia, abrindo espaço para dúvida, culpa e possíveis reparações. Eva poderia ter se
aproximado de um objeto bom a ser introjetado pelo filho, conduzindo-o a um
funcionamento mais deslocado para a posição depressiva, menos ambivalente, mais
integrado, onde cabe a dúvida? Para a elaboração desta posição, o objeto deve
permanecer e sobreviver aos ataques e ao ódio para que ele possa ser integrado.
Por sua vez, Eva até pode ter atingido anteriormente uma posição de maior
integração, como a depressiva, mas a gravidez – que traz certos lutos e muitas
fantasias à mulher – a reconduziu à posição esquizoparanoide. Klein defendia a ideia
de as experiências de luto suscitarem defesas mais psicóticas, como descrito no
capítulo anterior. Perceptivelmente, a protagonista estava tomada de ansiedades e
defesas desta natureza, a partir do trauma sofrido, quando seu filho comete os crimes.
Nas cenas mais finais do filme, Eva refaz o quarto do filho, como descrito na
canção de Chico Buarque apresentada na epígrafe do capítulo e que poeticamente
nos fala de dor, morte e perda. Seria a atitude materna um mecanismo de reparação?
Uma negação? Parece uma mãe que arruma o quarto de uma criança que vai nascer,
mas há uma negação, uma defesa maníaca que nega a realidade da perda, pois Kevin
não usará mais aquelas roupas. Eva cria um quarto para o filho ao mesmo tempo que
permanece sem um espaço para si, dormindo na sala da casa mal-cuidada e precarizada.
Os atos de limpeza da mãe, após as pichações ao automóvel e residência, são
manifestações de defesas obsessivas que tentam aplacar ansiedades primitivas
persecutórias e também diminuir a culpa, presente nas posições
esquizoparanoide e depressiva. Eva limpa compulsivamente as paredes, suas

52 KLEIN, M. (1946) Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In: KLEIN, M. Obras Completas de
Melaine Klein. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
143

mãos, em uma tentativa de anular os estragos causados pelo filho e por ela própria,
quando fusionada a ele. Por outro lado, o interior da casa – espaço interno da mãe –
permanece todo escuro, sujo, empobrecido e desarrumado. Durante algum tempo,
Eva tentou ser um objeto separado, depois de ser um objeto tão distante, que se
configurou como traumático – com seu olhar longe durante a gestação e após o parto.
Após a chacina, Eva melancolizada mostrava um Eu sem vida, eclipsado pela “sombra
do objeto”, que cai sobre ele. Na sua leitura sobre Luto e melancolia, Ogden53
considera a ambivalência como o viver com vivos em sintonia com o morto, algo além da
permanência do amor e ódio.
As defesas maníacas são onipotentes, envolvem negação da vulnerabilidade e
do desamparo, e dão a sensação de triunfo. Kevin faz amplo uso delas, quando nega
a dependência em relação ao objeto, que ele despreza e deprecia. Ogden54 propõe
que a mania corresponde a uma forma inadequada de se fazer um trabalho de luto.
Ela impede a reparação dos ataques realizados, quando estes são negados ou o
objeto da agressão é tornado indiferente, tornando-se indiferente.
Como afirmado no capítulo anterior, mecanismos reparatórios permitem
relação com o objeto total, permitindo a passagem da não-neurose para a neurose,
atravessamento não definitivo dentro do pensamento de vários autores. Assim,
momentos de funcionamento não neurótico podem existir, mesmo tendo uma
dinâmica de funcionamento neurótico sido alcançada ou ser predominante. No
Capítulo 1, foram apresentadas as considerações de Minerbo55, que não considera
uma superioridade da neurose sobre a não neurose. Nesta dinâmica, prevalece o ódio
no psiquismo e a não-integração dele pode destruir o vínculo.
Siemens apud Simanke56 estabelece uma diferença, com base na filosofia
nietzschiana, entre ressentimento, ódio e desprezo. O último é uma reação subjetiva
frente ao que é considerado inferior, o ódio seria um sentimento entre equivalentes, já
o ressentimento implica em uma posição frente ao outro, que é considerado superior.
Kevin deixa Eva com forte sentimento de inferioridade frente ao aparente desprezo,
ao mesmo tempo mostra-se ressentido e odiando. Esta multiplicidade de posições faz

53
OGDEN, T. “Luto e melancolia” de Freud e as origens da teoria das relações de objeto.
Leituras criativas. São Paulo: Escuta, 2014.
54 Ibidem
55 MINERBO, M. Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
56 SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal. Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio

– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.


144

pensar nas várias defesas e vários estados emocionais que tomam o garoto na
relação com seu objeto. Sendo aparentemente indiferente, protege-se do vínculo, liga-
se fortemente ao objeto pelo sadismo e se ressente pela ausência da mãe. Stitzman57,
por outro lado, considera o desprezo como uma forma de evitação do contato.
Sobre gratidão, é ela que permite a constituição de um bom objeto, que
preserva o Eu dos objetos internos perseguidores, tal objeto é fonte de vida e
confiança. Sua conquista depende de uma experiência boa com um objeto real. Em
algum momento o filme nos mostra algo desta natureza?
O abraço final mostra Kevin mais verdadeiramente nos braços de Eva, um
primeiro encontro genuíno talvez, seguido de uma despedida.

57 STITZMAN, L. Framework: ódio, áreas de vibrância: ideias para psicanalistas. Revista de


Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, Vol. 24, n. 3, 2017.
145

CONCLUSÕES
“[...] é impossível deixar de lado o papel do ódio
como elemento independente na vida psíquica –
quer o chamemos agressividade, interesse do ego,
ódio pelo objeto, tendência a fugir da intrusão.
Afinal de contas, não é possível fazer uma teoria da
alma humana sem levar em conta que as pessoas
sentem hostilidade umas pelas outras e em relação
a si mesmas.” (Mezan)

Voltando aos caminhos propostos no início do trabalho, alguns autores, cujas


ideias foram apresentadas, trazem significativas contribuições para a análise do
contexto social amplo que mobiliza boa parte da sociedade, desde o período das
últimas eleições presidenciais até agora no momento da pandemia pelo coronavírus.
Uma destrutiva polarização fez-se (e ainda permanece) presente durante todo o
período de quarentena. Pessoas em acesso de fúria, negando a periculosidade da
doença, assim como rejeitando as recomendações protetoras da vida, como
isolamento social e uso de máscaras.
As posturas anticiência e a politização de posições frente à pandemia
revelavam novo contexto social dividido em dois grupos, com explícitas manifestações
de ódio, em relação ao que não é verdade particular, como se não pudesse existir ou
tivesse que ser eliminado aquilo que não é o objeto da minha crença. O narcisismo
que fixa o sujeito no fanatísmo onipotente, mesmo que a própria vida e a dos outros
esteja em jogo. O ódio narcísico distorce a realidade, transformando objetos em
perseguidores que deverão ser atacados (pessoas, instituições democráticas,
pensamento, ideologia, cultura e ciência).
A formulação lacaniana do registro imaginário, ligado à natureza dual e
especular do Eu ideal narcísico, que repudia a diferença, a externalidade, o princípio
da realidade e o predomínio do ódio enquanto paixão, que exclui o simbólico,
constituem importantes elementos teóricos de uma leitura social mais crítica e
articulada aos conceitos da psicanálise. As subjetividades assim constituídas
impedem qualquer discussão de pressupostos democráticos, éticos e científicos, em
um espaço social coletivo, onde o ódio refuta qualquer outro (seja uma evidência
científica, uma regra não compartilhada pelo líder da massa ou o resultado de uma
eleição) que contrarie posições e tendências narcísicas agressivo-destrutivas. A
dimensão ocupada pelo líder da massa, enquanto ideal, e a forma infantil de vinculação
dos membros a ele foram descritas no Capítulo 1, a partir do estudo da psicologia de
grupos feita por Freud há 100 anos.
146

Há autorização para livres manifestações de ódio a pessoas, instituições


democráticas, países e temos uma posição afetiva-subjetiva institucionalizada. Existe
o gabinete do ódio, um espaço constituído e livre, de onde partem as fake news, contra
o inimigo e rival, a quem são atribuídas teorias conspiratórias de toda natureza. Assim,
parte da população é manipulada pela via desse afeto, que exige sempre a presença
de um inimigo a ser tacado. Seguidores de um líder transformam-nas em verdade, a
partir de muitos compartilhamentos, como considera Rinaldi1, ou a veracidade de uma
afirmação é garantida pelo grito ensurdecedor, que transforma a última palavra em
verdade absoluta. Dias2 propõe que as palavras devem ser recuperadas pelos sujeitos
e utilizadas no espaço político democrático, pois elas se perdem em meio aos brados.
Também inúmeras afirmações feitas são negadas publicamente, em um constante
estado de manipulação coletiva. Não se assume uma posição a ser sustentada a partir
da palavra. Ela é usada para dizer algo, que pode ser prontamente negado no
momento seguinte. Com a mesma e ampla liberdade, sem responsabilidade pelo dito,
ela pode ser usada para ofender.
Várias manifestações de desprezo à vida, em defesa da sustentação de uma
postura onipotente, anticiência, que desconsidera a periculosidade de uma pandemia
e que coloca pessoas em risco, são constatadas no espaço social; por exemplo, o
Presidente da República abertamente pregando e promovendo as aglomerações,
incentivando e sustentando a qualquer custo o uso de medicações sem efeito
cientificamente comprovado, prejudicando o acesso da população à vacinação. Na
expressão do Eu inflado, onipotente e onisciente que não aceita o submetimento à
realidade, ao limite, e à presença do outro, caminha-se na direção do puro imaginário,
com as reações hostis, mobilizando o mesmo afeto de que lança mão o Eu narcísico
infantil, em relação ao objeto externo, que abriga todo desprazer e o mal. Ao mesmo
tempo que, na dimensão do Eu, tudo o que permanece é da ordem do prazeroso e do
bom. É com esta natureza de interação entre psiquismos que se pode diariamente
observar as relações sociais, através de notícias, aparentemente diferentes, mas que
trazem um padrão de relação institucionalizado.

1 RINALDI, D. O discurso do ódio, uma paixão contemporânea. In: ROSA, M. D.; COSTA, A. M. M.;
PRUDENTE, S. (Orgs.). As escritas do ódio – psicanálise e política. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2018.
2 DIAS, M. M. Os ódios: clínica e política do psicanalista. São Paulo: Iluminuras, 2012.
147

Lacan3 diferencia a dimensão imaginária do Eu ideal, a partir da identificação


especular com outro, do ideal do Eu, uma das funções do supereu, herdeiro do
complexo de Édipo, que dá acesso ao simbólico, à Cultura, onde reside o outro da
diferença. Tal posição é importante e deve ser conquistada para a construção de um
sujeito capaz de viver em uma sociedade plural e diversa e que se responsabiliza
pelos seus atos, desejos, reconhecendo-se faltante, aceitando os limites que a vida
lhe impõe. Nas palavras de Caper, a identificação narcísica ilusória com o Eu ideal do
líder da massa e entre os membros dela (no eixo imaginário) tem efeito pernicioso de
anulação subjetiva na medida em que:
O que poderia ser uma ligação a um objeto é substituído por uma fusão com
ele, uma relação perversa que destrói vínculos. Esse tipo de identificação
pode ser visto entre membros de grupo que, sem pensar, aderem ao éthos
do grupo, tendo perdido sua capacidade de pensamento crítico independente.
A natureza destrutiva desse fenômeno pode ser vista na hostilidade do grupo
para com alguém que esteja ligado ao grupo, no sentido de ter uma relação
com ele, enquanto ainda mantém a capacidade de pensamento crítico
independente.4

Como dito no Capítulo 1, há perda egoica na diluição a que fica submetido o


membro do grupo na massa. Fica direcionada no líder, enquanto ideal não
conquistado, a libido disponível ao Eu.
Outra interpretação possível, baseada na noção das posições kleinianas,
ascende-se à moralidade da posição depressiva, que reconhece o outro da diferença,
a partir da superação de uma moralidade da posição esquizoparanoide, que deseja
eliminar sadicamente o outro pelo perigo imaginário que ele representa.
Qual a possibilidade de compartilhamento social em uma Cultura marcada pela
intolerância, onipotência e fúria, onde o outro, que não é uma extensão narcísica,
desperta o desejo de aniquilá-lo?
A contribuição de Freud com a ideia do narcisismo das pequenas diferenças é
extremamente valiosa na análise das interações sociais contemporâneas. Gabbard 5
enfoca a potência destrutiva que ele pode representar em uma sociedade, pois são
inúmeros os atos de ódio e violência praticados a um grupo, portador de um pequeno
traço de diferenciação. A história já deu e dá exemplos diários da violência destrutiva
praticada contra o considerado inferior, que personifica o mal a ser combatido e

3 LACAN, J. Seminário 1 – Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.


4
CAPER, R. Inveja, narcisismo e a pulsão destrutiva. In: ROTH, P.; LEMMA, A. (Orgs.). Revisitando
“Inveja e Gratidão”. São Paulo: Blucher, 2020, p. 79.
5 GABBARD, G. Love and Hate in the analytic setting – The library of object relations. Jason Aronson, USA, 1996.
148

eliminado, através do ódio da intolerância. Com relação ao ódio e às ‘pequenas


diferenças’, afirma André:
Quando a distância entre o eu e o outro tende a ser abolida à força de ser
demasiado tênue (entre um sérvio e um croata, um hutu e um tutsi...), quando
o narcisismo é reduzido às ‘pequenas diferenças’, grande é o perigo de ver o
ódio rasgar violentamente o que a realidade parece confundir. Pureza (da
raça), purgação, limpeza (étnica)... O eu, o puro e o ódio habitam o mesmo
território.6

Isso está na base da paranoia social, com seus delírios de perseguição, da


crença da existência de um inimigo radical absoluto. Desse modo, há uma forma de
interação hostil e perene, que marca a dinâmica paranoica no contexto coletivo. Ainda
que no plano da psicopatologia individual, Minerbo através de Aulaigner traz
importantes considerações sobre o ódio paranoico, como descrito no Capítulo 2.
Freud apostava na Ciência, embora sempre tenha considerado a
pulsionalidade humana como um desafio aos progressos civilizatórios. Esta se revelou
muito valiosa atualmente, para uma parcela da sociedade brasileira, que seguia
orientações com respaldo científico. A Ciência não se curva a um desejo, a uma
opinião, seguindo o princípio da realidade e é a este que o ódio é direcionado. Após a
leitura dos autores pesquisados, pode-se considerar que há uma combinação de
intenso potencial destrutivo: o ódio narcísico e as manifestações livres e autorizadas
de agressão e desconsideração do outro, onde a pulsão de morte se externaliza.
Boianovsky7 propõe que uma tarefa do desenvolvimento psíquico seria superar
o ódio, que a vivência constitutiva e inicial do desamparo humano precocemente
oferece. Em outras experiências, onde se encontra com limites (com a falta), o mesmo
afeto se presentifica. Em Inibições, sintomas e ansiedade, Freud8 associa o
desamparo humano originário à angústia, que corresponde ao medo da separação e
perda do objeto. A angústia de castração é uma modificação dela, em uma fase
posterior do desenvolvimento e que permanece, ao longo da vida, transformada em
outras, como a angústia moral e frente ao superego. A recusa da castração, do
reconhecimento dos limites, da percepção da existência do outro e da incompletude
que nos marca o humano levam à atuação do ódio, sob o predomínio da pulsão de
morte, segundo Boianovsky. Com relação ao ódio, ela afirma que ele é a tradução a

6
ANDRÉ, J. Vocabulário básico da psicanálise. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015, p. 113-114.
7 BOIANOVSKY, D. Mais uma vez, por que a guerra? Revista Brasileira de Psicanálise – SBP-SP,
Vol. 54, n. 1, 2020.
8 FREUD, S. (1926 [1925]) Inibições, sintomas e ansiedade. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira

das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
149

posteriori da experiência de desamparo e da separação, vivência de uma castração


primeira. Este afeto permanece deslocado a quem imaginariamente goza sem
interdito, como o pai da horda.
Boianovsky9 diferencia formas mais e menos patológicas de lidar com ele, da
pura descarga em um inimigo, que será seu depositário, da internalização dele na
autodestrutividade à elaboração do desamparo da condição humana. Esta autora
propõe que os psicanalistas adotem uma escuta ampliada, que vá na direção do
social, dos fenômenos contemporâneos.
No mesmo caminho, Rosa, Alencar e Martins propõem uma possibilidade
alternativa à psicanálise frente ao panorama social da atualidade que, na sua
positividade, pretende:
Detectar, intervir e reconhecer a face mortífera do ódio é prática política e
clínica. Esta dupla direção permite nos reposicionarmos em relação ao
discurso de um dado tempo, dissolver identidades, desarticular gozos,
recuperar memórias, repensar as bases do pacto social vigente e conceber
formas de transformação social. Isso porque tais práticas desmascaram o
conflito social e permitem que o sujeito político retome a cena não mais como
vítima ou algoz, mas como testemunha de um tempo.10

Esses autores e Boianovsky convidam o psicanalista a olhar para fora do


consultório, desempenhando um papel político, do qual a psicanálise não deve se omitir.
A tentativa de rastrear o conceito de ódio no pensamento de Freud permite
revisitar uma série de textos nos quais este conceito estava implícito ou explícito. É
possível reconhecer que o autor inicialmente não faz uma menção precisa e clara sobre
o conceito de ódio, que está sempre presente e articulado à sexualidade, ao narcisismo
e às pulsões, ou seja, descentralizado, como propõe Barros, mas sempre presente em
relação a outros conceitos fundamentais da psicanálise. É possível verificar que Freud
vai relacionando o ódio aos novos conceitos à medida que são formulados.
De uma forma mais esquemática, pode-se situar as abordagens de Freud sobre
este afeto com variadas tendências: em relação ao sadismo e à agressão (1905), em
relação à perversão sexual e às pulsões (1905), relacionada ao narcisismo (1915) e
próxima da pulsão de morte (1923).

9 FREUD, S. (1926 [1925]) Inibições, sintomas e ansiedade. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
10 ROSA, M. D.; ALENCAR, S.; MARTINS, R. Licença para odiar: uma questão para a psicanálise e a

política. In: ROSA, M. D.; COSTA, A. M. M.; PRUDENTE, S. (Orgs.). As escritas do ódio –
psicanálise e política. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2018, p. 29.
150

Em 1915, Freud descreve melhor o ódio e diferentemente da forma como o


fizera dez anos antes, quando comenta sobre a transformação do amor em ódio, a
partir da relação que existe entre libido e crueldade. Assim, o ódio fica deslocado da
pulsão, pois era fruto do sadismo, e passa para um afeto ligado ao Eu, no pensamento
do autor. Posteriormente, na teoria freudiana, o ódio intersubjetivo desloca-se para o
intrapsíquico, entre as instâncias da segunda tópica.
Em uma nota de rodapé acrescentada ao caso do pequeno Hans, em 1923,
Freud aproximará ódio e pulsão de morte, assim como amor e pulsão de vida.
Como afirmado anteriormente, Simanke11 destaca que a psicanálise, ao se
interessar pela histeria inicialmente, enfoca a libido e o amor, enquanto expressão da
pulsão sexual, é considerado primário. Já o ódio, como destino pulsional – após a
transformação do amor nele – e derivado do sadismo, é considerado secundário.
Posição que será invertida quando Freud estuda a neurose obsessiva e também o
narcisismo, relacionando agressividade, eu e ódio.
Para Freud12, afeto é a expressão da pulsão, o elemento quantitativo dela.
Considera que afetos são sentidos e, por esta razão, não inconscientes. Por outro lado,
afirma que eles podem ser ligados a outras representações diferentes das originais (que
permanecem no inconsciente) e, com tal alteração, ligado a ideias substitutas, tornam-
se conscientes, mas se expressam com outras qualidades. Segundo o autor, as pulsões
podem apresentar-se à consciência na forma de estados afetivos. A ideia de um afeto
inconsciente difere da noção de representação, que é sempre inconsciente, a partir da
repressão, que tem como objetivo eliminar o desenvolvimento do afeto. No texto sobre
a melancolia, Freud fala de afeto inconsciente.
Como destacado acima, o ódio ficava ligado ao sadismo enquanto destino
pulsional. Em 1905, nos Três ensaios, Freud o relaciona à pulsão sexual,
considerando que há um componente sádico nela, que domina a organização pré-
genital. Em outras palavras, o sadismo era considerado forma de libido. A
independência e a predominância dele na sexualidade explicariam a perversão. O autor
também defende a ideia de uma tendência agressiva presente na prática da sexualidade
masculina “normal”. Freud reconhece várias pulsões parciais, denominadas

11
SIMANKE, R. T. Além do bem e do mal – Algumas considerações sobre a visão psicanalítica do ódio
– Revista Brasileira de Psicanálise SBP-SP, Vol. 53, n. 1, 2019.
12 FREUD, S. (1915) O inconsciente. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas

de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.


151

diferentemente (pulsão de domínio, de crueldade, sádica, agressiva). Todos os


significantes utilizados por Freud permitem certa articulação com o ódio enquanto afeto.
O fato de o ódio estar relacionado aos conceitos acima apresentados (pulsão
sexual/ sadismo), além do fato de os Três ensaios ser amplamente revisado, com
muitos acréscimos e alterações nas várias edições, dificulta mais um rastreamento do
conceito de ódio no pensamento freudiano.
Com a reformulação da teoria das pulsões, em 1915, Freud separa o ódio do
sadismo, aproximando-o do Eu e do narcisismo. Alguns autores, como Menezes,
Simanke e Mezan destacam que essa transição clarifica o lado onde se situa o ódio:
mais ligado ao narcisismo e presente na relação do Eu com os objetos. A relação ódio-
narcisismo é importante quando se pretende estudar a intersubjetividade. Ela é feita
por Freud em 1915 e, também, em 1917, quando ele estuda a melancolia.
Com a noção de pulsão de morte, o ódio aproxima-se do pulsional novamente
e o sadismo/ agressividade aparecerão na exteriorização dela, fusionada à pulsão de
vida. Assim, Freud reaproxima o ódio-pulsão e ele não é mais limitado à agressão.
Como propõe Menezes13, a noção de pulsão de destruição aproxima o ódio da pulsão
de morte, tornando-o consequência dela. Assim, para o autor, o ódio perde a
marginalidade que apresentava no primeiro dualismo pulsional.
Talvez o ódio possa ser pensado pelas duas vias, a do narcisismo e da pulsão
de morte. Através da agressividade e da destrutividade, ela pode ser externalizada,
como resposta ao ódio narcísico. Neste movimento, ela pode não estar defusionada
de Eros.
Rosenfeld14 aproxima as ideias freudianas – de 1915 e 1920 – quando considera
que o princípio do Nirvana, em sua relação com a pulsão de morte, tem como objetivo
retornar ao narcisismo primário anobjetal (desprovido de relação com o objeto) de plena
quietude equivalente à morte. Na mesma direção, Mezan15 considera que
aparentemente há uma relação entre a tendência da pulsão de morte e ação do ódio,
que deseja afastar-se do objeto; mas, para este autor, tal afastamento ocorre depois
de um encontro com ele. Mezan vai defender a ideia de que o afastamento é
consequência da ação do ódio e considera inadequado aproximá-lo da noção de

13 MENEZES, L. C. O ódio e a destrutividade na metapsicologia freudiana. In: MENEZES, L. C.


Fundamentos de uma clínica freudiana. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001
14 ROSENFELD, H. Impasse e interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1988.
15 MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham. Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999.
152

pulsão de morte, que não o representa, mas sim da autoagressão, reforçando a ideia
de que afeto difere de pulsão. Propondo manter a proximidade do ódio na relação do
Eu com os objetos e explicar sua origem, desvinculada do pulsional, Mezan afirma:
Parece que o ódio se define mais facilmente a partir da relação com o objeto
do que em relação às pulsões. Esta é uma ideia que vale a pena explorar,
porque é uma boa pista.
Durante os primeiros anos deste século, Freud fez diversas tentativas para
explicar de onde vem o ódio, sem no entanto o definir como antagonista da
pulsão sexual [...]
[...] é difícil derivar diretamente o ódio da libido, e o oposto da libido é uma
tendência ao zero e a aniquilação, que não é ódio. A pulsão de morte é
silenciosa; o ódio é ruidoso, alimenta a cólera, a raiva, a indignação, a
vingança etc. Por outro lado, todas estas emoções têm um componente
erótico, embora não se reduzam a vínculos eróticos. 16

Resgatar todo este percurso freudiano, acompanhado do estudo da Cultura,


nos textos sociais, e na descrição das psicopatologias, permite construir um
conhecimento mais amplo e articulado sobre o ódio na obra do autor.
Na esfera da psicopatologia, o ódio pode estar presente em quadros de
neurose e, mais explicitamente, na não neurose, como afirma Minerbo. A proposta de
estudo deste trabalho envolveu localizá-lo em três quadros, sendo um ligado à
neurose de transferência, outro no campo da psicose e o terceiro considerado neurose
narcísica, se quisermos seguir uma nosografia freudiana.
Na neurose obsessiva, há um ódio inconsciente, recalcado e fora do Eu. Na
direção rumo à genitalidade, por impasses na trama edipiana, houve uma regressão17
ao sadismo anal, com transformação da pulsão sexual em ódio ao objeto. Como
consequência da regressão, há defusão pulsional. A pulsão de morte livre atua no
supereu do obsessivo, que sadicamente age sobre o Eu, na forma de sentimento de
culpa e necessidade de punição. Neles, há o retorno do afeto ao Eu, que se utiliza da
formação reativa nessa neurose. Neste mecanismo de defesa, uma ação manifesta é
oposta ao desejo recalcado, sendo uma reação contrária a ele.
A melancolia também carrega a marca do ódio, afeto presente na interação
com o objeto que foi perdido. Na impossibilidade de se fazer o luto do objeto perdido,
este foi incorporado ao Eu, que se divide. Parte dele assume a função de criticar o
objeto introjetado no Eu, agora modificado. Há uma identificação narcísica fusional
com o objeto perdido a tal ponto que não se sabe o que foi perdido. A melancolia

16 MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham. Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1,
1999, p. 79.
17 Se inicialmente ela era explicada pelo mecanismo do recalque, posteriormente, é a regressão da

libido que passa a ser a noção mais esclarecedora para a sua origem.
153

apresenta uma face narcísica importante, onde se percebe o ódio mais articulado ao
narcisismo. Nela, também há uma regressão da libido, mas a outra fase pré-genital: a
fase oral de devoração (canibalesca). Tanto na melancolia quanto na neurose
obsessiva, há uma hostilidade implícita, seja na formação reativa desta ou nas
autorrecriminações da primeira.
No estudo da paranoia, há o ódio narcísico de Schreber que altera a realidade.
O ódio que foi anteriormente amor e, seguindo toda a gramática proposta por Freud
apresentada no Capítulo 2, aparecem as várias formas de delírio. Também há um
movimento regressivo da libido, que reflui dos objetos ao Eu.
É possível reconhecer que, para Freud, o narcisismo aparece em diferentes
contextos: como fase do desenvolvimento, na forma de escolha de objeto, ligado às
patologias e, também, vinculado a importante fenômeno de interação social, o
‘narcisismo das pequenas diferenças’.
Se no início da pesquisa, havia uma tentativa de localizar a gênese do ódio em
uma das vertentes – narcisismo ou pulsão de morte, a ideia de Green sobre o
narcisismo de morte articula ambas. Ao formular sua teoria, considera o par pulsão-
objeto (representação – relação), as modalidades psicopatológicas denominadas
“casos limites”, a experiência clínica com tais pacientes e a crise que sofre a
psicanálise na atualidade. Tentando superar os entraves que Freud encontrou, com
os conceitos presentes na própria obra deste autor, Green articula as pulsões de vida
e morte, nas suas tendências intrínsecas, ao narcisismo, propondo a existência de
duas modalidades dele: narcisismo de vida (narcisismo do Um ou positivo, que foi
aquele do qual Freud se ocupou) e narcisismo de morte (ou negativo). Associa-os às
funções objetalizante e desobjetalizante, respectivamente. Para o autor18, Freud não
propôs algo que corresponderia à libido, a energia da pulsão de vida, para a pulsão
de morte. De maneira semelhante, como afirmado anteriormente, Barison19 resgata
as considerações de Heimann, que compara o status das duas pulsões, em Freud,
aos filhos: primogênito, no caso Eros, e ao filho tardio, a pulsão de morte,
considerando que só coube ao primeiro um nome mais específico.

18 GREEN, A.; URRIBARRI, F. Do pensamento clínico ao paradigma contemporâneo – diálogos.


São Paulo: Blucher, 2019.
19 BARISON, O. L. Cântico Negro: O uso clínico do conceito de pulsão de morte. Revista Brasileira de

Psicanálise SBP – SP, Vol. 54, n. 1, 2020.


154

Green parte da noção da pulsão de morte enquanto tendência autodestrutiva e


do movimento posterior que ela adquire, ao ser externalizada e se transformar em
heterodestruição, presente na agressividade e no sadismo. Propõe que a pulsão de
morte se manifesta pelo desinvestimento, pois ela é antivida e almeja o desligamento,
ou seja, a função desobjetalizante, que destrói as relações de objetos, o próprio Eu e
até a função oposta a ela, a de objetalização. Esta se relaciona a Eros, pois implica
uma relação de objeto e é capaz de transformar em objeto uma estrutura e, desta
forma, um investimento realizado pode ser objetalizado. A função objetalizante explica
a simbolização, pois implica ligação, que pode ser seguida de desligamento e novas
ligações, em um dinamismo constante. No sentido oposto, na desobjetalização, há
apenas desligamentos, pois ela ataca a própria objetalização. Com essas
formulações, Green amplia a ideia do narcisismo freudiano: propõe um narcisismo
negativo enquanto manifestação da pulsão de morte, que pode chegar à destruição
do Eu. Por outro lado, o autor defende que o narcisismo positivo mantém a
organização do EU e permite o vínculo com os objetos. Green20 destaca o desejo de
Freud em sustentar a ideia de um narcisismo primário, estado anobjetal e que, para
ele, equivale ao narcisismo negativo. O autor reconhece dois modelos em Freud: o da
representação, cujo paradigma é o sonho, regulado pelo princípio do prazer e o do
irrepresentável, onde há ataque às representações pela função desobjetalizante e,
assim, predomina o ‘ato’ e a compulsão à repetição, “aquém do princípio do prazer”.
Dessa forma, ele articula as teorias da representação/ ato ao dualismo pulsional. Em
outras palavras, o autor pensa a pulsão de morte nas relações de objetos.
Green propõe que o primeiro movimento é o de investimento e, dessa forma,
não é a pulsão de morte que atua primariamente. Esta atua posteriormente para
destruir os investimentos anteriores. Assim, o narcisismo de vida é o que fica ao lado
da sexualidade, da autoconservação e da pulsão de vida. Já o narcisismo de morte,
ou negativo, é possível através da função desobjetalizante, que levaria ao zero de
tensão, que Freud propõe em Além do princípio do prazer. Acredito que este autor
fornece e articula elementos que superam a dicotomia narcisismo – pulsão de morte.
Com o conceito de função desobjetalizante, as interações sociais e o próprio filme
apresentado e discutido no capítulo anterior ganham uma nova leitura:
intersubjetividades marcadas pelo narcisismo negativo intrapsíquico das

20 GREEN, A.; URRIBARRI, F. Do pensamento clínico ao paradigma contemporâneo – diálogos.


São Paulo: Blucher, 2019.
155

singularidades, que convivem no espaço coletivo, e a mesma dimensão marcando o


funcionamento mental atuado nas ações destrutivas de Kevin no seu grupo familiar,
pois para Green21: “[…] a função desobjetalizante está vinculada à pulsão de morte.
É ela quem desvincula, quem desune […]”.
O autor a considera como um ponto extremo, a partir de um gradiente, que
parte de um polo onde estão as relações de objeto, seguido do narcisismo “mais
freudiano” e caminhando para a desobjetalização neste extremo. É aí que a pulsão de
morte deixa sua marca. Cito Green:
Imaginemos uma escala que parte das realizações mais completas de
investimento, podendo se distribuir segundo o espectro que vai do amor de
objeto à sublimação e, em seguida a uma regressão, chegando a um patamar
onde os investimentos de objetos são substituídos por investimentos
narcísicos provenientes do objeto (como é o caso do narcisismo positivo)
chegando a uma última etapa cujos prolongamentos se perdem no infinito,
desinvestem o próprio ego. Trata-se de uma estrutura narcísica negativa
onde o próprio Ego se empobrece e se desagrega ao ponto de perder sua
consistência, homogeneidade, identidade e organização.22

Para finalizar, cabe destacar que este autor procurou dar outro significado à noção
de pulsão de morte, ao invés de excluí-la da teoria psicanalítica, na medida em que ela o
auxiliava a pensar sobre o funcionamento dos casos limites, que não compreendem um
quadro psicopatológico específico, mas uma variedade deles, com predominância de
outras defesas, como cisão, negação e falhas no mecanismo de simbolização.
Afirma Green, reconhecendo a importância do narcisismo e sua teorização
incompleta em Freud:
O escrito de Freud sobre o narcisismo é um desses que lemos e relemos
constantemente e sempre tiramos proveito. O narcisismo é um conceito que
recobre os diversos campos da perversão, da psicose, da vida amorosa, para
permanecer nos limites da psicanálise. O mais notável consiste na forma com
que este conceito vai sofrendo eclipses e voltas brilhantes na psicanálise pós-
freudiana. Já no próprio Freud, como observamos anteriormente, a
formulação da última teoria das pulsões relega o narcisismo a um segundo
plano, isto é, o investimento libidinal das pulsões de autoconservação, para
recordar a definição de Freud [...] não diz nada acerca do impacto da teoria
das pulsões de morte sobre o narcisismo.23

Na mesma direção, Falcão24 apoiada em Kristeva, considera que o ódio


equivale psiquicamente à pulsão de morte que atua na forma destrutiva, a partir do
desinvestimento. Pela falha do objeto primário, há mobilização do ódio em um Eu

21 GREEN, A.; URRIBARRI, F. Do pensamento clínico ao paradigma contemporâneo – diálogos.


São Paulo: Blucher, 2019, p. 61.
22 GREEN, A. Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago, 2008, p. 271.
23 Ibidem, p. 92
24 FALCÃO, L. Ódio, a nova ação psíquica e a progressiva complexidade narcísica. Revista de

Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, Vol. 3, n. 24, 2017.


156

ainda indiferenciado e desobjetalização. Esta autora relaciona o segundo dualismo


pulsional ao amor e ódio quando afirma: “[...]a dialética pulsão de vida e pulsão de
morte permitirá entender que o amor contém o ódio e o ódio contém o amor.”25 Falcão
propõe que o ódio seja um indicador psíquico da pulsão de morte relacionada às
experiências iniciais de desprazer e desinvestimento do objeto.
Mais especificamente, no pensamento de Melanie Klein, os afetos decorrem de
pulsões. A autora dá uma nova configuração ao conceito de pulsão de morte, ao
aproximá-lo do sadismo e da agressividade. Inicialmente Freud não aproximou pulsão
de morte e agressão. Ele o fez em O mal-estar na civilização, uma década depois de
formular o conceito de pulsão de morte. Assim, para Freud, pulsão de morte difere da
pulsão de destruição, na medida em que esta corresponde à deflexão da primeira, em
associação a Eros. Quando adota o conceito de pulsão de morte, Klein já os aproxima
nos anos 1930. O ódio torna-se constitutivo e pulsional, manifesto nas fantasias que
envolvem relações com objetos, como descrito no Capítulo 3. A autora cria uma
formulação muito própria, ainda que se considere freudiana, durante a sua
permanência no movimento psicanalítico.
Alguns autores, como Zimerman, Hinshelwood, entre outros, reconhecem a
baixíssima frequência do conceito de narcisismo na obra kleiniana. Em sua fidelidade
ao kleinismo e, a partir da experiência clínica, Rosenfeld também irá aproximar a
pulsão de morte ao narcisismo, formulando o conceito de narcisismo negativo
(destrutivo). Apesar de este autor fazer referência ao trabalho de André Green, que
também conhece o pensamento de Rosenfeld, em relação ao narcisismo destrutivo,
ambos fazem menção à diferença de formulação do conceito para cada um deles.
Considera Green:
[...] a teoria das relações objetais, promovida por Fairbairn e Melanie Klein,
fez quase desaparecer o narcisismo do mapa da teoria psicanalítica. Será
necessário esperar até 1971 para que um kleiniano, Herbert Rosenfeld,
reestabeleça sua importância e ofereça uma versão centrada na
destrutividade.26 (grifo nosso)

Em uma nota de rodapé do texto Narcisismo destrutivo e a pulsão de morte,


nota 1 da página 159, Rosenfeld27 reconhece a maneira diversa com que Green
trabalha a mesma questão.

25 FALCÃO, L. Ódio, a nova ação psíquica e a progressiva complexidade narcísica. Revista de


Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, Vol. 3, n. 24, 2017, p. 551.
26 GREEN, A. Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago, 2008, p. 92.
27 ROSENFELD, H. Impasse e interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1988.
157

Coube a Rosenfeld articular melhor as duas dimensões do narcisismo, baseado


no pensamento de Klein. Para ele, uma delas, a do narcisismo positivo, relaciona-se
ao objeto bom, com a identificação com seus atributos, que promovem a
supervalorização do self. Por outro lado, a idealização manifesta-se também no
narcisismo negativo, mas é em função da onipotência destrutiva. Assim, aspectos
destrutivos voltam-se contra o self.
Rocha Barros28 reconhece a experiência clínica deste autor, muito atento às
dimensões da transferência-contratransferência, nos casos por ele atendidos, que
também o levou a ampliar a noção de identificação projetiva como modalidade de
comunicação, além de apresentar grande interesse pelos estados fronteiriços e
confusionais, pela despersonalização, psicose e, principalmente, pelo narcisismo.
Este autor também reconhece ter sido o desenvolvimento dos aspectos libidinais e
destrutivos do narcisismo, a grande contribuição de Rosenfeld à psicanálise. Ele irá
articular o narcisismo às relações de objeto. Rocha Barros considera que, no início
dos anos 50, o psicanalista inglês atribui à inveja a causa da invasão materna pelo
self do bebê, em função da fantasia da existência de bons objetos dentro desta e o
narcisismo seria uma defesa contra a inveja.
Tal relação não foi diretamente formulada por Klein, que pouco teorizou sobre
o narcisismo. Rocha Barros e Hinshelwood29 destacam que a referida autora
apresenta suas considerações sobre o narcisismo em dois momentos apenas. Em
1946, quando ela diferencia estados narcísicos e relações de objeto narcísicas, sendo
estas mais permanentes e que servem como defesa frente à separação em relação
ao objeto, como irá propor Rosenfeld, alguns anos depois. A consciência da
separação, o reconhecimento da dependência e da inveja são responsáveis pela
agressividade, segundo este autor. Klein considerava que há fuga para relações com
objetos internos idealizados, nos estados narcísicos, em que pode haver passageira
fuga da realidade externa. Alguns anos depois, em 1952, a autora vai relacionar o
narcisismo ao amor por um objeto interno equivalente ao self.
Rosenfeld trabalha muito com a dimensão onipotente do narcisismo destrutivo
e da presença dele nas relações de objeto a partir da experiência clínica. Através de

28 ROCHA BARROS, E. M. Prefácio. In: ROSENFELD, H. Impasse e interpretação. Rio de Janeiro:


Imago, 1988.
29 HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
158

identificações de ambas as naturezas, não há separação do objeto onipotente, pois a


quebra da posição narcísica promove sentimentos de ódio e destrutividade em relação
ao objeto da dependência. Se há um objeto reconhecidamente separado e do qual se
depende, a onipotência narcísica reage, destruindo-o. O objeto a ser aniquilado é
aquele que tem a completude imaginária do Eu ideal, ou seja, é idealizado. O
narcisismo destrutivo nega o objeto, cujo reconhecimento é acompanhado pelo
surgimento do ódio, a partir da separação em relação ao objeto.
Como já afirmado, Rosenfeld acreditava que há aspectos libidinais do
narcisismo, relacionados à identificação com objetos ideais, suas qualidades e que
levam a uma supervalorização do self. Assim, nesta modalidade que também é
defensiva, o objeto bom ideal fica contido internamente e sob controle. A idealização
também participa do narcisismo negativo, mas ela é relacionada à onipotência e
destrutividade do self. Os aspectos destrutivos atuam nos vínculos libidinais, minando
a dependência em relação ao objeto, que poderia ser estabelecida e reconhecida. Além
de manter a independência em relação ao objeto externo, este é tratado com indiferença
e aparece como destituído de valor. Rosenfeld reconhece que, embora Freud tenha
relacionado as dificuldades do tratamento à ação da pulsão de morte, não a associou
aos efeitos do narcisismo. Rosenfeld reconhece uma relação entre narcisismo, retração
narcísica e pulsão de morte em Freud. É possível caminhar na direção de Rosenfeld se
forem articuladas as ideias de Luto e melancolia com os textos de Freud dos anos 20.
Rosenfeld considera que a aparente superioridade é resultado da identificação
com a parte do self que apresenta elementos destrutivos idealizados. Assim, a parte
sadia da personalidade fica aprisionada e o próprio self amoroso também é atacado.
Tais aspectos destrutivos e a organização narcisista presente relacionam-se às
perversões. Rosenfeld discorda de Freud em relação ao destino da fusão pulsional na
perversão. Para esse autor, ela não atenua a destrutividade. De acordo com Rosenfeld:
[...] pelo contrário, a força e a violência são bastante aumentadas por meio
da erotização da pulsão agressiva. Acho confuso acompanhar Freud no
exame das perversões como fusões entre as pulsões de vida e de morte,
porque nesses casos a parte destrutiva do self assumiu o controle sobre
todos os aspectos libidinais da personalidade do paciente[...]30

Através de uma criativa e esclarecedora metáfora, Rosenfeld aproxima esta


dinâmica psíquica, que mantém a superioridade e idealização do self destrutivo, a uma
quadrilha criminosa formada por elementos do narcisismo, que são partes destrutivas

30 HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992, p. 166.
159

e estão cindidas. Esta organização narcísica destrutiva é perene e impede acesso à


parte saudável dependente do objeto, ou seja, esconde o self libidinal. Para o autor, a
‘organização criminosa’ é:
[...] dominada por um líder, que controla todos os membros dela para que
ajudem um ao outro a tornar o trabalho destrutivo e criminoso mais eficiente.
Contudo, a organização narcisista não só aumenta a intensidade do
narcisismo destrutivo e a força mortífera relacionada a ele, como também tem
o objetivo defensivo de manter-se no poder e assim conservar o status quo.
A principal finalidade parece ser impedir o enfraquecimento da organização e
controlar os membros da quadrilha, de modo que eles não abandonem a
organização destrutiva e se juntem a partes positivas do self ou traiam os
segredos da quadrilha para a polícia, o superego protetor [...]31

No predomínio de aspectos destrutivos do narcisismo, há destruição tanto do


self amoroso quanto do objeto, das relações com ele, da criatividade e da vida,
segundo Rosenfeld32. É como se houvesse apenas essas partes destrutivas e
invejosas, o self destrutivo. Algo parecido pode ser notado no comportamento e
subjetividade de Kevin.
Partes da organização narcísica podem associar-se também a organizações
psicóticas cindidas, com a possibilidade de livre manifestação do sadismo, crueldade e fuga
da realidade por parte do self grandioso, segundo o autor. Rosenfeld propõe que há
predomínio da pulsão33 de morte em uma fusão pulsional patológica e não defusão
como poderia parecer.
Rosenfeld e Green comentam as limitações de Freud e Klein, que privilegiaram
o narcisismo na dimensão libidinal. Klein não relacionou ódio e narcisismo como Freud
fez, na revisão sobre a teoria das pulsões de 1915. Diferentemente de Klein, que
relaciona a psicose aos efeitos da identificação projetiva, Green34 propõe uma
compreensão dessa patologia a partir do desinvestimento provocado pela
desobjetalização e seus efeitos no Eu. O mesmo autor, com base na teoria da posição
esquizoparanoide de Klein, reconhece os dois movimentos, o investimento e o
desinvestimento, nas dimensões paranoide e esquizoide dessa posição.
Pode-se reconhecer, tanto em Green quanto em Rosenfeld, uma aceitação à
noção de pulsão de morte. O primeiro abertamente tenta criar uma redefinição dela

31 HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992, p.145.
32 ROSENFELD, H. Uma abordagem clínica para a teoria psicanalítica das pulsões de vida e de
morte: uma investigação dos aspetos agressivos do narcisismo. In: Melaine Klein Hoje Volume 1.
Rio de Janeiro: Imago, 1991.
33 O autor utiliza a expressão “impulsos destrutivos”.
34 GREEN, A. Pulsão de morte, narcisismo negativo e função desobjetalizante. In: GREEN et al. A

pulsão de morte. São Paulo: Escuta, 1988.


160

em função da polêmica que este conceito representou na psicanálise e que permitiu


algumas compreensões muito diferentes sobre ele, por exemplo, a de Klein. A pulsão
de morte de Klein não é a mesma de Freud. A redação deste trabalho procurou
diferenciar as duas concepções.
Rosenfeld reconhece a complexidade e a polêmica que envolve o mesmo
conceito, mas propõe algo muito próximo à pulsão de morte na base de uma organização
destrutiva de natureza narcísica, uma força antidesenvolvimento análoga a esta pulsão.
Ambos os autores, ao complexizar a noção de narcisismo, reconhecem mecanismos que
revelam a defusão pulsional ou fusão patológica. Green propõe que angústias, afetos e
defesas sejam considerados a partir do dualismo pulsional em conflito. Para o autor, a
cisão impossibilita a religação, permanecendo apenas o desligamento. Exemplifica sua
ideia com a natureza desobjetalizante da identificação projetiva, a partir da cisão.
As releituras de Rosenfeld e Green fornecem novos elementos para a análise
de Kevin feita no capítulo anterior. A indiferença do personagem em relação ao objeto
externo desvalorizado, do qual ele nega a dependência, laço libidinal e aproximação
parece exemplificar o narcisismo destrutivo proposto por Rosenfeld. Vários momentos
do filme evidenciam posição narcísica onipotente do personagem com sua
organização narcisista patológica, pois predominam as dimensões agressiva-
destrutiva-mortífera que não permitem a existência de ligações libidinais. Quando
Rosenfeld articula os componentes narcísicos destrutivos à organização psicótica,
também há elementos para pensar o intenso sadismo e desconexão da realidade
atuados no momento do massacre. Green permite que olhemos a dinâmica do
personagem pelo predomínio da desobjetalização, dos desinvestimentos e da fixação
ao objeto primário. Na sua teorização, o autor35 propõe que para a objetalização-
representação e simbolização acontecerem precisa-se de um objeto, que deve
ausentar-se depois de tornar-se presente. Green36 considera que Freud vai teorizando
sobre a natureza mais estruturante do objeto a partir de Luto e melancolia. A ausência
radical dele mantém uma patológica fixação ao objeto, que de tão ausente permite
uma permanente ligação com intensa fixação hostil. A relação do filho com Eva traz
traços significativos desta interação. Green37 afirma que a ausência traumática do

35 GREEN, A.; URRIBARRI, F. Do pensamento clínico ao paradigma contemporâneo – diálogos.


São Paulo: Blucher, 2019.
36 Ibidem
37 GREEN, A.; URRIBARRI, F. Do pensamento clínico ao paradigma contemporâneo – diálogos.

São Paulo: Blucher, 2019.


161

objeto promove a defusão pulsional e liberação da pulsão de morte, que pode ser
pensada a partir da intersubjetividade.
Smith38 considera amor e ódio como derivados e não pulsões. O autor também
afirma que Klein tentou encontrar “estados puros” de ódio, inveja, gratidão, na sua
obra, ao mesmo tempo que ela negava tais existências. Smith reconhece esta
tendência quando a autora usa expressões como “genuíno, pleno” e justifica tal
tendência no desejo dela em manter a ideia de conflito, noção também sempre
sustentada por Freud. Smith problematiza a concepção moral de certos conceitos,
como inveja. Para o autor, se Klein, ao mesmo tempo, afirma a existência e
desconsidera os estados puros, Brenner apud Smith defende a não existência deles
e isso melhor permite manter a ideia de ambivalência, que explica a coexistência de
amor e ódio, assim como inveja e gratidão. Smith afirma:
A teoria de Brenner não admite a ideia de nada puro, em qualquer estado –
nem amor nem ódio. Até mesmo a genuinidade deve ser uma formação de
compromisso que se defende contra um afeto doloroso, e todo objeto bom,
todo momento de gratidão, deve ser constituído tanto por desejos agressivos
quanto amorosos, defesas e autopunição; o estado de mente em questão é
simplesmente o resultado desses componentes subjacentes disputando por
expressão.39

No início desta pesquisa havia uma expectativa de encontrar um estatuto puro,


claro e definido do conceito de ódio. Porém, a posição de Brenner sobre a inexistência
de um lugar único para o ódio vai sendo constatada durante o desenvolvimento dela.
É importante e necessário apontar que o ódio é indispensável e intrínseco á
subjetividade humana, como destaca Mezan na epígrafe deste capítulo, e a posição
de vários autores apresentadas no Capítulo 1. Em certa medida, ele se torna elemento
de estruturação do psiquismo, afirmação do Eu e reasseguramento dos seus limites,
que preservam-no da destruição.
Para finalizar, algumas perguntas podem ser formuladas: qual o limite que o
ódio pode ocupar nas relações? Até que ponto ele permanece mais ligado à
estruturação psíquica, à vitalidade? Quando ele está a serviço da pura destruição?
Mezan40 considera importante a ideia de Abraham sobre uma normalidade que
implica uma superação relativa (e, por isso, de maneira nenhuma absoluta) do
narcisismo e da agressividade nas relações com objetos. Cito o autor:

38 SMITH, H. Círculos viciosos de inveja e punição. In: ROTH, P.; LEMMA, A. (Orgs.). Revisitando
“Inveja e Gratidão”. São Paulo: Blucher, 2020.
39 Ibidem, p. 324.
40 MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham. Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999.
162

[...] não quer dizer que o amor objetal esteja isento de ambivalência ou de
narcisismo. A meu ver, esta é uma excelente definição de normalidade em
Psicanálise; nada tem nada a ver com média estatística, mas admite um
critério qualitativo-dinâmico, ligado à qualidade da relação com o objeto,
determinada por uma certa proporção entre o interesse pelo outro e o
interesse por si mesmo, assim como entre agressividade e amor. 41

A psicanálise pressupõe a presença perene do infantil (pulsional/narcísico) mesmo


com a idade cronológica avançada e a inserção na Cultura. É a superação do eu narcísico
onipotente que permite uma relação, onde é possível dar e receber, na qual cabem amor
e ódio e que se relaciona ao eu realidade e ao princípio da realidade, como descrito no
Capítulo 2.
Falar sobre ódio, manifestar-se contra sua dimensão desagregadora social é
tarefa dos psicanalistas e demais pensadores que se preocupam com os laços sociais
contemporâneos. Avaliar as dimensões mais construtivas e destrutivas dele, seja
expresso conscientemente e/ou permanecendo em estado inconsciente nas
singularidades que procuram uma escuta ao seu sofrimento psíquico, cabe a cada
psicanalista em sua clínica.
Voltando a Freud, cito Green:
Freud diz que é totalmente ilusório pretender eliminar o ódio, a destrutividade,
a ambivalência. Noutros termos, ninguém escapa dessa pressão destrutiva.
Ele desemboca nessa conclusão e tenta teorizá-la. Freud não diz: há morte.
Ele diz: há uma mescla de vida e morte desde o princípio. Ele faz disso um
dado não genético e não adquirido por experiência: coloca o problema
sustentando que faz parte da nossa construção de seres humanos viver
divididos entre o amor e o ódio.42

Por fim, encerro parafraseando Freud43, quando se propôs a refletir sobre


guerra e morte: se queres amar, prepara-te para odiar...

41 MEZAN, R. O inconsciente segundo Karl Abraham. Psicologia USP, São Paulo, Vol. 10, n. 1, 1999,
p. 69.
42 GREEN, A.; URRIBARRI, F. Do pensamento clínico ao paradigma contemporâneo – diálogos.

São Paulo: Blucher, 2019, p. 117.


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