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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Instituto de Psicologia

Bárbara Silva da Rocha

Entre almas negras e corpos denegridos: cartografia da (in)suspeição em


ações de abordagem policial

Rio de Janeiro
2019
Bárbara Silva da Rocha

Entre almas negras e corpos denegridos: cartografia da (in)suspeição em ações de


abordagem policial

Dissertação apresentada como requisito parcial


à obtenção do título de Mestre, ao Programa de
Pós-Graduação em Psicologia Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientadora: Profª. Dra. Anna Paula Uziel

Rio de Janeiro
2019
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

R672 Rocha, Bárbara Silva da.


Entre almas negras e corpos denegridos: cartografia da (in)suspeição em
ações de abordagem policial / Bárbara Silva da Rocha – 2019.
128 f.

Orientadora: Anna Paula Uziel.


Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto
de Psicologia.

1. Psicologia Social – Teses. 2. Policiais militares – Rio de Janeiro (Estado)


– Teses. 3. Racismo – Teses. 4. Subjetividade – Tese. I. Uziel, Anna Paula. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título.

CDU 316.66

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação, desde que citada a fonte.

_______________________________ ________________
Assinatura Data
Bárbara Silva da Rocha

Entre almas negras e corpos denegridos: cartografia da (in)suspeição em ações de


abordagem policial

Dissertação apresentada como requisito parcial


à obtenção do título de Mestre, ao Programa de
Pós-Graduação em Psicologia Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovada em 20 de fevereiro de 2019.

Banca Examinadora:

________________________________________
Profª. Dra. Anna Paula Uziel (Orientadora)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

________________________________________
Prof. Dr. Jorge da Silva
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

________________________________________
Prof. Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

________________________________________
Prof. Dr. Thiago Benedito Livramento Melicio
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

________________________________________
Profª. Dra. Silvia Ramos de Souza
Universidade Cândido Mendes - UCAM

Rio de Janeiro
2019
DEDICATÓRIA

Dedicado a todos/as àqueles/as que perderam suas vidas por


consequência desta guerra insana. Dedico, especialmente, aos que, em
suas ausências, fizeram-se presentes neste trabalho.
AGRADECIMENTOS

Foram dias difíceis, muito difíceis. Não recordo ter vivido outros tão intensos quanto os
últimos. Tive que aprender, e foi na marra, que o corpo fala e que, às vezes, ele pede um pouco
mais de (c)alma. De início, decidi não dar ouvidos, estava ocupada demais para isso. E enquanto
eu buscava um jeito de continuar insistindo daqui, meu corpo relutava de lá. Num desses dias
agitados, ele resolveu deliberar uma pausa; necessária, talvez. Afinal, a vida requer intervalos,
não há como fugir deles. Um corpo que demandava um pouco mais de calma porque esbarrava,
dia após dia, em uma série de urgências. De tantos ensinamentos do percurso, aprendi que viver
a resistência significa também responder a certas urgências que, por serem muitas, impelem a
permanente aceleração. Quando, enfim, o percebi, estava ele ali, o meu próprio corpo, exausto,
saturado, pedindo momentos de pausa, de repouso, de respiro.
Foram dias felizes, como eu fui feliz! Desde o primeiro instante, no posto de gasolina,
conferindo solitariamente a lista que anunciava o meu ingresso no mestrado do PPGPS/UERJ.
Havia acabado de entregar a versão final da minha monografia na secretaria de graduação do
IP e, a UERJ, em poucas horas, já voltava a ser a minha casa por mais dois anos. Sem dúvida,
foram dias felizes. Dias que a vida não economizou conquistas, sorrisos e ótimas companhias.
A expressão mais sensível de um caminhar perseverante, mesmo quando os passos me pareciam
trocados. Um trajeto acompanhado por pessoas especiais, as mesmas que, entre um tropeço e
outro, me ampararam e me incentivaram a recuperar as forças e seguir. As mesmas que, agora,
também cruzam a linha de chegada comigo. A vocês, minha eterna gratidão!
A minha mãe, Adelina, das mais doces e zelosas companhias. Ao meu pai, Joeran, que
me ensinou um jeito novo de amar e acompanhar. Muito obrigada por serem abrigo certo e por
embarcarem nos meus sonhos. Amo vocês e tudo que a nossa família se tornou. Não há palavras
para agradecer!
Aos meus afilhados, Gabriel e Gabriela, os melhores presentes da vida. É de uma sorte
tremenda poder caminhar junto a vocês. Continuem crescendo ainda mais lindos e voem cada
vez mais alto! Obrigada por tanta compreensão diante das ausências, pelos abraços apertados,
o carinho ofertado e o orgulho infinito.
À Catarina e ao Júnior, irmãos da vida, de amor, de escolha e de mães compartilhadas.
Com vocês ao meu lado não vivi um único dia sem irmãos. Que sorte a nossa! Agradeço à vida
por ter sido tão generosa com a gente e a vocês por terem topado dividir comigo o privilégio de
ter duas mães.
Ao Marcos, pelo apoio de todas as horas e por ter confiado a mim os melhores presentes
da vida. Ao meu avô, Sidnei, por todos os ensinamentos e por me permitir compreender, desde
sempre, que família é muito mais do que sangue.
As minhas amigas, Jéssica e Thayane, companheiras de toda a vida, pelas confidências,
ausência de cobranças e boas risadas. Obrigada por estarem ao meu lado a cada nova conquista.
Com vocês aprendi o sentido da amizade.
Ao Saulo, meu amor e amigo, por todos os sonhos divididos, por trazer confiança nos
momentos de incerteza, pelos dias incríveis que vivemos e que, em pouco tempo, falarão de
uma década. Obrigada sempre por cada passo dado, com pé juntinho e as mãos atadas. É só o
começo de um caminho repleto de boas surpresas.
Agradeço à Universidade do Estado do Rio de Janeiro, por se fazer morada e aconchego.
De maneira especial, ao Instituto de Psicologia e ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Social, por ofertarem espaço de conhecimento, de troca e amadurecimento pessoal e acadêmico.
Minha gratidão à Capes, pelo fundamental apoio financeiro. Seremos resistência!
A minha orientadora, Anna Paula Uziel, pela dedicação, paciência, escuta acolhedora e
por me apresentar outro modo possível de fazer ciência neste país. Você é inspiração! Obrigada,
especialmente, por confiar no meu trabalho e por permanecer caminhando ao meu lado também
nos dias difíceis.
Ao Grupo de Estudos e Pesquisas Subjetividades e Instituições em Dobras (GEPSID)
pelo conhecimento compartilhado, angústias divididas e comidinhas saborosas que sustentam
nossas manhãs. Agradeço à Luisa, Gizele, Mônica, Juliana, Daniele, Camilla e Patrícia. Não
poderia deixar de agradecer, em especial, à querida Jimena, por tamanha generosidade. O meu
enorme carinho às “mestrandas desesperadas”, Vanessa, Nany e Lívia, sem dúvida, as melhores
companheiras de viagem que encontrei. À Deborah, pelo nosso lindo reencontro. Foi um prazer
viver este sonho e seguir caminhando com vocês.
À banca examinadora composta pelos professores Jorge da Silva, Pedro Paulo Bicalho,
Thiago Melicio e professora Silvia Ramos, por tanta paciência, disponibilidade de leitura e por
toparem fazer parte de um momento tão importante da minha vida.
Finalmente, agradeço à Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, pela abertura dos
portões da fortaleza e por ter me permitido desbravar novos mundos. Agradeço, sobretudo, aos
vinte e quatro policiais militares e jovens rapazes que aceitaram compartilhar suas histórias e
tecer parte desta escrita ao meu lado. Muito obrigada!
Todo camburão tem um pouco de navio negreiro.
Marcelo Yuka, 1994
RESUMO

ROCHA, Bárbara Silva da. Entre almas negras e corpos denegridos: cartografia da
(in)suspeição em ações de abordagem policial. 2019. 128f. Dissertação (Mestrado em
Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2019.

As abordagens policiais são situações cotidianas entre parte da população e a Polícia


Militar do Estado do Rio de Janeiro. No encontro diário com as inúmeras pessoas que cortam
as ruas e avenidas da cidade, ao policial militar é demandado o reconhecimento, quase que
imediato, de qualquer indício que sua experiência entender como destoante da manutenção da
ordem na dinâmica dos espaços públicos. O presente trabalho anseia acompanhar as forças e
fluxos que compõem o processo de construção da suspeita em ações de abordagem pela polícia
na capital fluminense. Para tanto, foram realizadas vinte e quatro entrevistas com homens da
Polícia Militar e jovens rapazes que vivenciaram a experiência de abordagem, respectivamente,
na condição de agente operador da lei e de suspeito. As análises aqui propostas são orientadas
pela metodologia cartográfica e amparadas pelos conceitos teóricos da pesquisa-intervenção
desenvolvida, dentre outros, por Gilles Deleuze, Félix Guattari e Suely Rolnik. Deste modo,
não se pretende incorrer em denuncismos ou perseguir culpados, mas apontar e provocar
tensionamentos nas estruturas enrijecidas visando fazer emergir novas matérias de expressão.
A pesquisa almeja, ainda, colocar em análise a política de guerra às drogas que parece justificar
e nortear as ações de segurança e, portanto, o modo de funcionamento das práticas de
policiamento ostensivo e preservação da ordem pública afiançadas no recrudescimento punitivo
sob o viés racista que estrutura o país. Neste sentido, os jovens negros, sobretudo das áreas
favelizadas, indicam ser os alvos preferenciais das malhas de captura que, seletivamente,
restringem direitos à medida que os expõe a situações de maior vulnerabilidade. Finalmente, a
partir da constatação da ausência de conteúdo definidor preciso em lei que garanta a prática, a
noção de tirocínio, habilidade própria aos agentes de polícia, permite movimentar e fazer pensar
que subjetividades têm sido produzidas e atualizadas quando do processo de construção da
suspeita em ações de abordagem.

Palavras-chave: Abordagem policial. Construção da suspeita. Produção de subjetividades.


Cartografia. Racismo.
ABSTRACT

ROCHA, Bárbara Silva da. Between black souls and blackened bodies: cartography of
(un)suspected in actions of police approach. 2019. 128f. Dissertação (Mestrado em Psicologia
Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2019.

Police approaches are everyday situations between part of the population and the
Military Police of the State of Rio de Janeiro. In the daily meeting with the countless people
who cut the streets and avenues of the city, the military police officer demands the recognition,
almost immediately, of any evidence that his experience understands as a disruptive of the
maintenance of order in the dynamics of public spaces. The present work long for following
the forces and flows that make up the process of construction of suspicion in actions of approach
by the police in the capital of Rio de Janeiro. Therefore, twenty-four interviews were conduct
with Military Police’s men and young men who experienced the approach, respectively, as a
law enforcement agent and suspect. The analyses proposed here are guide by the cartographic
methodology and supported by the theoretical concepts of research-intervention developed,
among others, by Gilles Deleuze, Félix Guattari and Suely Rolnik. In this way, it is not intended
to incur denunciations or prosecute culprits, but to point and cause tensions in the stiffened
structures in order to bring forth new matters of expression. The research, also, aims at
analyzing the drug war policy that seems to justify and guide security actions and, therefore,
the way in which the practices of ostensive policing and preservation of public order secured in
the punitive upsurging under the racist bias that structure the country. In this sense, young
blacks, especially in the slum areas, indicate that they are the preferred targets of the capture
net that selectively restricts rights as they are exposed to situations of greater vulnerability.
Finally, based on fact that there is no precise content definer in law that guarantees practice, the
notion of tirocinium, own ability of police officers, allow to move and to think that subjectivities
have been produced and updated when the construction of suspicion in actions of approach.

Keywords: Police approach. Construction of suspicion. Production of subjectivities.


Cartography. Racism.
LISTA DE ABREVIATURAS

A-Prev – Operações de Ação Preventiva


A-Rep – Operações de Ação de Repressiva
BPM – Batalhão de Polícia Militar
CAEs – Coordenadoria de Assuntos Especiais
CAp-UERJ – Colégio de Aplicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
CTN – Código Tributário Nacional
CIPM – Companhia Independente de Polícia Militar
CPP – Código de Processo Penal
DGO – Diretriz Geral de Operações
FAPERJ – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro
FBSP – Fórum Brasileiro de Segurança Pública
GLO – Garantia da Lei e da Ordem
HUPE – Hospital Universitário Pedro Ernesto
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDHM – Índice de Desenvolvimento Humano Municipal
IESP – Instituto de Estudos Sociais e Políticos
Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
JECrim – Juizado Especial Criminal
MJ – Ministério da Justiça
MJSP – Ministério da Justiça e Segurança Pública
Novo DEGASE – Departamento Geral de Ações Socioeducativas
PM – Polícia Militar
PMERJ – Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro
POC – Policiamento Ostensivo Complementar
POE – Policiamento Ostensivo Extraordinário
POO – Policiamento Ostensivo Ordinário
PPGPS – Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social
QG – Quartel-General
Senasp – Secretaria Nacional de Segurança Pública
STF – Supremo Tribunal Federal
TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 11
1 A PESQUISA CARTOGRÁFICA COMO POSICIONAMENTO
POLÍTICO: QUANDO RESISTIR É PRECISO ........................................... 19
1.1 Mapeando paisagens, compartilhando histórias: a tessitura de um trabalho
de pesquisa ......................................................................................................... 28
1.1.1 Nas malhas da captura, eis os suspeitáveis.......................................................... 31
1.1.2 Conhecendo fortes, desmanchando fortalezas: um encontro com a PMERJ ...... 41
1.1.2.1 Zona Norte 1: o “batalhão diferenciado” ............................................................ 44
1.1.2.2 Zona Norte 2: o “batalhão de questão” ............................................................... 49
1.2 Das convocações amiúde: uma aproximação (in)esperada ........................... 52
2 SANGUE AZUL: SOBRE OS CONSTRUTOS DE UMA POLÍCIA
MILITARIZADA .............................................................................................. 55
2.1 Paz sem voz: da narrativa de guerra às forças de ocupação na cidade ........ 59
2.2 Notas sobre um Rio dividido: da nova Lei de drogas às limitações do circular
pela cidade .......................................................................................................... 70
3 ABORDAGEM POLICIAL E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO
(IN)SUSPEITO .................................................................................................. 83
3.1 Flagrante delito: uma faceta importante......................................................... 95
3.2 Cor padrão: “o elemento do crime é negro, ele é crioulo”. ......................... 101
3.3 Tirocínio: da certeza do flagrante à ordem do indizível .............................. 113
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................... 117
REFERÊNCIAS .............................................................................................. 122
11

INTRODUÇÃO

Rio de Janeiro, abril de 2017. Mais precisamente o décimo nono dia do mês. Já era noite
no bairro de Botafogo, Zona Sul1 da cidade, e no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ), um grupo de pessoas havia se reunido
para discutir alguns desdobramentos possíveis sobre as questões de gênero e sexualidade no
sistema socioeducativo – em teoria, organização responsável pela execução de medidas
punitivas de caráter pedagógico aplicadas a jovens aos quais foram imputadas práticas de ato
infracional –, dentre elas, quatro representavam nossa equipe de pesquisa e compunham a
mesa2. Ainda recordo o estranhamento e a nítida dificuldade de fazer referência a mim mesma
como mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ
(PPGPS/UERJ) onde, há pouco, vinha pesquisando a prática de abordagem policial e o corpo
negro como marca basilar de suspeição. O momento era completamente novo, eu vivia uma
espécie de êxtase prolongado e, gradativamente, tentava absorver a recente conquista. Após o
encontro, boa parte do grupo encaminhou-se para um bar na rua paralela. Era início de semana,
combinamos não demorar. A partir daí, a experiência que se seguiu foi um tanto quanto
desalinhadora, se assim posso dizer. Ela bagunçou uma infinidade de roteiros, desarrumou
aparentes estruturas.
Pela primeira vez, conhecia, então, a experiência de ser assaltada. Talvez eu encontre
certa dificuldade de transformar em escrita um pouco daquele vivido. Presumo que apenas
palavras não sejam suficientes para traduzir as miudezas de uma experiência carregada de
sensível, alimentada por segundos que insistiam em desobedecer à sequência rítmica do relógio
e avançavam em uma cadência que desconhecia notas mais aceleradas. Um tempo atravessado
por reações corporais bastante precisas: de visão vacilante e audição aguçada. Se por um lado,
pouco era possível assimilar daqueles movimentos que já haviam adentrado o estabelecimento
e se faziam experiência também para funcionários e demais clientes, por outro, era ecoante o

1
Área nobre da capital, região de grande potencial turístico; seu território está circunscrito por alguns dos
cartões-postais mais visitados no país, dentre os quais: o Corcovado, as praias de Ipanema, Arpoador e
Copacabana, além do bondinho do Pão de Açúcar.
2
No Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ), a cientista social, Carla Mattos, organizou, em 2017,
o ciclo de palestras “Política, violência e sociabilidade urbana”, cujo objetivo, em linhas gerais, foi promover
debates sobre experiências cotidianas de violação aos Direitos Humanos. Convidadas a assumir a mesa
intitulada “Gênero e Sistema Socioeducativo”, Anna Paula Uziel, Patrícia Castro, Jimena de Garay Hernández
e Luisa Bertrami D’Angelo, representando nossa equipe de pesquisa, travaram um interessante diálogo entre a
temática proposta e o estudo que vínhamos desenvolvendo em três unidades de internação do Departamento
Geral de Ações Socioeducativas (Novo DEGASE) com a pesquisa “Sexualidade e adolescência na
contemporaneidade”, financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio
de Janeiro (FAPERJ).
12

brado intimidador do “esculacho”3 que ousava ser dito. Ouvidos atentos a testemunhar outra
versão de uma mesma história que os meus olhos já pareciam treinados a se recusarem ver.
Na saída do bar, já na calçada, reparei a presença de um rapaz enquanto se aproximava
tirando do short uma carteira fixada na parte da frente de seu corpo. Notei que havia feito algum
movimento tímido com a boca, embora não tenha dado muita atenção naquele momento. O
jovem, por volta de seus vinte anos, tinha aparência familiar: como muitos dos meus amigos,
era branco, altura mediana e vestia peças de roupas comuns, dessas de pano leve que eles
costumam usar nos dias de pelada 4 . Nada de diferente havia naquela situação até o exato
instante em que uma segunda figura rompia a cena, confrontando-nos com sua violência, e já
podia ser percebida recolhendo celulares, mochilas, alianças e algum dinheiro logo atrás de
mim. O entendimento do anúncio de assalto pelo primeiro, que externava tamanha
familiaridade, não foi um registro imediato e, tampouco, um acontecimento “previsto”.
Decerto, eu não deveria supor que havia coincidência naquilo.
No intercurso com a cidade e, principalmente, na cidade do Rio de Janeiro, somos
rotineiramente capturados pela desconfiança que, acompanhada do medo de um “outro” 5
marcado pelo estigma do risco iminente, não raro, aciona um extenso repertório de tecnologias
em busca de proteção. Fazemos uso e observamos um sistemático acelerar/recuar dos passos,
atravessar de ruas, fechar de janelas, instalar de grades e câmeras de segurança e mais uma série
de outras estratégias apreendidas como recursos atenuantes do perigo. Naquele dia, porém, a
imagem do jovem garoto – que em vez de carteira empunhava uma arma – não parecia
representar qualquer risco, nem mesmo despertava medo ou desconfiança. E é por isso que eu
prefiro falar em desalinho. Afinal, aquele rapaz contrariava a imagem estereotipada do risco
primordialmente associado aos jovens negros e pobres que transitam pela cidade e nos
atemorizam em suas presenças. Era necessário, portanto, deslocar a minha pergunta, conformar
desvios, redesenhar percursos: mais do que mapear fundamentalmente os vetores que fazem
com que o “outro” seja considerado suspeito, seria substancial também compreender quais não
são as marcas da suspeição.

3
Ao longo de todo o texto lanço mão dos encontros que teceram esta cartografia. Um relevo feito de vozes
reminiscentes, tal qual nos fala Rolnik (2014). Vozes que se misturam as minhas e me ajudam a compor esta
dissertação. Os trechos grafados entre aspas foram extraídos do campo, seja a partir da fala dos entrevistados
ou de outras vozes (igualmente importantes) que participaram com menos frequência desta composição. Do
mesmo modo, os trechos assinalados entre aspas e referenciados no seu início/final indicam a presença de
ideias e conceitos compartilhados por autores/as inscritos/as no cenário acadêmico.
4
Jogo de futebol recreativo com regras menos definidas.
5
A construção do “outro” atravessa este texto. Sugerimos entendê-lo como aquele tomado como não igual, coisa
exótica; cuja alteridade é forçosamente confinada à qualidade do não-ser; o mesmo que, à medida que tem sua
presença reduzida e desqualificada, é anunciado também, a depender das circunstâncias, como uma potente
ameaça (GÓES, 2015; RIBEIRO, 2017).
13

Esta, porém, é apenas uma parte das histórias que fizeram despertar meu interesse pela
temática da “fundada suspeita” – tal qual consta na letra da lei6 – como matéria de pesquisa, ou,
mais especificamente, pelas forças e fluxos do processo de construção da (in)suspeição em
ações de abordagem policial na cidade do Rio de Janeiro. Seu início, alguns meses antes, tem
como cenário da experiência uma rede de negócios que oferece utensílios variados a preços
populares, as antigas “lojas de R$ 1,99”, muito comuns no bairro onde moro. Estava no final
da graduação e integrava a comissão de formatura que, à época, dedicava-se à organização de
uma rifa para cobrir custos. Com a adesão dos colegas e a proximidade do evento, em uma de
nossas reuniões, decidimos que seria prudente adquirir mais uma sequência de cartelas
numéricas e distribuí-las entre a turma. Preocupadas com possíveis transtornos optamos por
escolher talões exatamente iguais aos que já haviam sido comprados, só não esperávamos que
fosse tão difícil encontrá-los novamente. Sem sucesso, permaneci na loja por quase trinta
minutos. Enquanto tentava pensar medidas alternativas e trocava mensagens com as outras
integrantes da comissão percebi que uma vendedora mantinha discretamente o seu olhar voltado
a mim. Quanto mais o tempo passava e não chegávamos a uma opinião comum, mais vigiada e
mais aflita eu me sentia.
Nunca antes havia vivenciado uma experiência semelhante – ou, pelo menos, não que
já tivesse me atentado a isso –, era imensamente desconfortável ocupar aquele lugar. Como
estratégia, priorizei as mensagens de áudio, eu precisava fazer com que a funcionária
compreendesse os motivos que me levavam a permanecer ali. Todavia, seus olhares
prosseguiam direcionados aos meus movimentos. Quando, por fim, decidimos não realizar a
compra devido a nossa preocupação inicial, o meu constrangimento e desconforto foram ainda
maiores. Afinal, após um longo período, sair da loja sem nenhum produto em mãos, muito
provavelmente, confirmaria suas pressuposições.
Ainda que considerasse totalmente descabido ter que convencê-la de que minha única
intenção era encontrar uma mercadoria específica, por outro lado, estar naquela situação gerava
uma sensação de angústia extrema. Deixei o estabelecimento com um pedaço de papel no bolso
da calça. Na nota fiscal, os códigos de referência de um caderninho de anotações, duas canetas
e um marcador de páginas colorido. Em tese, o meu passaporte para a “liberdade”. No caminho
para a UERJ, porém, sentia-me ainda presa àquele estranho sentimento. Reservadas as
singularidades, compartilhava da violência/impotência a que são submetidas inúmeras pessoas,

6
O termo “fundada suspeita”, competência do poder de polícia, aparece inscrito na redação do artigo (Art.) 244
do Código de Processo Penal (CPP) como requisito de legalidade da busca pessoal. Retomaremos esta
discussão mais adiante (BRASIL. Código de Processo Penal, 2017).
14

perigosas em suas presenças, todos os dias. Não que a situação vivida fosse uma experiência
completamente nova para mim, é evidente que a suspeição está imbricada em nosso cotidiano,
a polícia suspeita e a gente também – neste sentido, há de se inferir, que o medo que opera
politicamente a abordagem policial é o mesmo que faz operar em todos nós outros tantos
expedientes utilizados como justificativas a uma série de questões que, em nome da ordem,
deixamos de estranhar.
Não por acaso, as narrativas que ilustram as páginas iniciais deste trabalho falam de
experiências que, semelhante às ações dos homens de farda, somente se fazem possíveis à
medida que, forjadas por subjetividades bastante específicas, acionam e legitimam uma
sucessão de dispositivos de policiamento fortalecedores daquilo que pode ser apreendido, aqui,
como uma espécie de estado policial rotineiro. Assim, tratar da dissolução do poder de polícia
para as mãos de cada um de nós é, de certo modo, falar também de mentalidades que,
subjetivadas pela sofisticação das tecnologias policiais, estão autorizadas não apenas a
selecionar, mas, ainda, a vigiar, controlar e eliminar grupos de corpos “outros”. Uma presença
corporificada e, portanto, marcadamente inscrita em um regime de visibilidade produzido em
detrimento de suas vidas correlatas; estas sim, em sua maioria, invisíveis à sociedade e também
ao Estado.
Agora eu habitava o lado oposto, o das presenças que ameaçam, e isso por si só fazia
toda a diferença. O prolongado desconforto exigia que eu falasse sobre aquilo, que me
debruçasse sobre os critérios de suspeição de um “outro” compreendido como o alvo comum.
O que eu não imaginava, porém, era que, mais adiante, aquele mesmo sentimento me faria
perceber o quanto eu vinha contestando o meu próprio lugar de suspeita. E é a partir daí que
lanço sobre mim duas perguntas que, hoje, vejo como cruciais neste processo de pesquisa: de
que maneira o meu próprio corpo se constituía no espaço público e privado? Afinal, diversas
foram as circunstâncias em que tive minhas características fenotípicas associadas às da minha
família paterna que, em contraposição aos traços próprios da negritude que compõem a
genealogia e, portanto, as heranças de minha mãe, avó, bem como muitas/os daquelas/es que
vieram antes delas, faziam com que eu fosse percebida, ao menos em âmbito privado, como
uma típica “morena”7. Para alguns, não “qualquer uma”, no sentido amplo do termo, mas uma
morena adjetivada: “morena clara”, em suas palavras. E foi assim que também me compreendi

7
Abdias Nascimento (2016) ao discutir a noção de superioridade racial lança mão do termo “morenidade” para
apontar os eufemismos raciais que visam racionalizar as relações de raça no país. Segundo o autor, não se trata
apenas de um jogo ingênuo de palavras, mas de uma proposta racista interessada no desaparecimento
inapelável do descendente africano por meio de um processo de embranquecimento da pele negra e de sua
cultura. Uma sofisticada tecnologia arraigada à formação social brasileira.
15

ao longo de quase uma vida inteira, como alguém que fala(va) do lugar de uma jovem-mulher-
morena-de-classe-média. Porém, como se uma dependesse necessariamente da outra, a segunda
pergunta veio tão logo, quase que a reboque da primeira: em que medida a minha indagação
acabava por reificar os mesmos elementos de suspeição que eu vinha buscando questionar?
As interrogações eram muitas, suscitavam novas tensões e ainda mais perguntas. Não
restavam dúvidas de que, de fato, era preciso falar sobre aquilo, provocar barulho. Era preciso
expor, inclusive, minhas próprias fragilidades e preconceitos. O momento era oportuno,
estavam abertas as inscrições para o mestrado do PPGPS/UERJ. Neste ponto, como linhas que
se entrecruzam, das experiências compartilhadas, inicio a tessitura de um projeto que, tempos
depois, viria a se transformar neste trabalho de pesquisa. Trabalho que somente nos últimos
meses tomou forma e obteve materialidade a partir das exigências que modelam uma
dissertação de mestrado, mas que, de outro modo, vem se desenvolvendo desde o primeiro
momento em que fora pensado no trajeto percorrido em direção à UERJ e que, sob a mesma
perspectiva, metodologicamente, em sua processualidade cartográfica, já vem ganhando
páginas e sendo apresentado quando das primeiras linhas do presente texto. Assim, da
multiplicidade de seus trânsitos e fluxos de criação, bem como do dinamismo singular das redes
que se agenciam e compõem as tramas da pesquisa, “eis, então, o sentido da cartografia:
acompanhamento de percursos, implicação em processos de produção, conexão de redes ou
rizomas” (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009, p. 10).
Barulho. Talvez seja isso que espero das minhas/nossas palavras – articulação entre
muitas vozes, inspirações, capturas – enquanto as escrevo nesta folha de papel deslizante, que
elas sejam capazes de fazer barulho. Sob a forma de estampido seco, impetuoso ou conduzidas
por um silêncio ensurdecedor. Palavras barulhentas, sempre provisórias. Um amontoado de
letras geradoras de incômodos, daqueles que fazem movimentar não apenas quem as escreve,
mas também quem as lê. E por isso desconfio de um pesquisar neutro, destituído de afetação.
Aposto, entretanto, na potência de um fazer coletivo que desarruma padrões fixos, em uma
prática que desterritorializa para reterritorializar, permanentemente. Assim, a não linearidade
dos acontecimentos é proposital; não tenho como objetivo atingir um fim específico, apresentar
conclusões generalizáveis. Compreendo, entretanto, o processo de pesquisar como um contínuo
em produção.
E foi justamente a partir de produções coletivas, no decorrer das entrevistas, acionada
pela dimensão dos afetos, que pude então notar que aquele sentimento que há alguns meses eu
vinha chamando de angústia, para muitas pessoas, traduz-se em sofrimento. Sofrem por terem
16

atribuídas as suas imagens à delinquência8 como único destino possível, sofrem pela violência
de serem compelidas a provar, corriqueiramente, o que (não) são e o que (não) fazem. Se por
um lado, a nota fiscal, de certo modo, fazia-se item indispensável para a validação da minha
liberdade no interior daquele estabelecimento, no circular pela cidade, por vezes, para estas
mesmas pessoas, são seus documentos de identificação, carteiras de escola e de trabalho o que,
talvez, determine se chegarão – com vida – de um lugar a outro.
Neste sentido, utilizando-me do manejo cartográfico como metodologia de pesquisa que
supõe uma atitude de abertura frente ao desconhecido, pela experiência coletiva do
compartilhar, intento o desvio à lógica dicotômica que institui categorias fixas de “bom” e
“mau” tradicionalmente vinculadas às questões em debate sobre segurança pública e, de modo
mais específico, à polícia encarregada pela aplicação da lei no Estado. Com isso, pretendo não
incorrer em denuncismos e/ou perseguir culpados sob a justificativa de uma construção
simplista que relaciona poder à opressão, desconsiderando, pois, sua capacidade de afirmar-se
enquanto invenção e potência de diferenciação (BICALHO, 2005). Decerto, as denúncias são
importantes e têm o seu lugar, mas não se findam em si mesmas. É preciso que nos dobremos
na criação de outros trajetos possíveis.
Assim, compreendendo que a construção do conhecimento é inseparável da produção
de realidade e afirmando que nossas práticas intervêm no campo (PASSOS; KASTRUP;
ESCÓSSIA, 2009), intenciono pôr em análise modos de funcionamento já estabelecidos; aqui,
as ações de abordagem aplicadas pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ). É
o reconhecimento da inseparabilidade entre pesquisar e intervir que permite colocar em questão
as noções de objetividade e neutralidade em nossas produções. Faz-se importante salientar,
pois, que “intervir não é observar de fora um objeto dado, mas construí-lo de dentro, ao mesmo
tempo construindo a si mesmo no momento da intervenção” (ROSSI; PASSOS, 2014).
Ademais, talvez seja um dispositivo potente o levantamento de algumas questões antes de
prosseguirmos: por que acionamos um composto específico de estratégias e não outros? O que
temos produzido? Temos. Assim mesmo, na terceira pessoa do plural – nós temos. Não cabe
mais o afastamento, “não cabe apenas ‘ficar de fora’ falando que a polícia é boa ou ruim. É
preciso ocupar lugares, porque essas questões são de toda a sociedade. Portanto, nossas
também” (BICALHO, 2005, p. 179).

8
Tal qual a proposta por Cesare Lombroso, no decurso do século XIX, e associada à noção de criminalidade:
“temos um conjunto de caracteres que reproduzem muito bem aqueles que demos sobre o delinquente nato”
(LOMBROSO, 2007, p. 195).
17

Destarte, a partir do estreitamento de canais de diálogo entre a Polícia Militar (PM), a


sociedade civil e a comunidade acadêmica, mas não apenas por este caminho, considerando os
destinos da segurança pública pauta de responsabilidade conjunta, este estudo almeja analisar
como subjetividades têm sido forjadas no contrato social em favor da eleição de alguns sujeitos
tomados como suspeitos. Para tanto, atrevi-me a desafiar uma aparente regra de funcionamento,
dirigente de certa imobilidade retórica, que mesmo hoje, parece permear a relação entre
acadêmicos (na condição de civis) e agentes da lei, bem como encaminhar a uma espécie de
desconcerto/desconfiança/desconforto mútuos. Funcionamento este, responsável, ainda, por
radicar complicadores burocráticos que se desdobram na geração de impeditivos ou pronta
recusa à abertura de espaços de diálogo, negociação, compartilhamento e/ou transição entre os
limites do intra e extramuros institucionais9. Transpostas as primeiras barreiras, adentrei nos
Batalhões de Polícia Militar (BPM). Com civis, firmei contatos no fora. A partir dali tinha,
junto a mim, aqueles que me ajudariam a integrar esta cartografia.
Por todas as entradas uma aposta. Arrisco dizer que uma aposta otimista, já nos
primeiros instantes. Não, porém, sem alguns infortúnios que estremeceram e atualizaram o
caminho prematuramente desenhado, mas que, de igual modo, permitiram compor análises na
tessitura desta cartografia. Do projeto de seleção no programa de mestrado à redação deste texto
“final”. Sobretudo, a crença de que nossas práticas, na qualidade de agenciadoras de
subjetividades rizomáticas, provocam não somente afetações recíprocas, mas também
perturbam, desestabilizam e reeditam territórios outrora bem definidos, produzindo, pois, novas
possibilidades de atuação no mundo e transformações permanentes. Afinal, se não apostas, que
outro modo haveria de ser?

Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo,
nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar
acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos
espaços-tempos, mesmo de superfície ou volumes reduzidos [...] É no nível de cada
tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a
um controle (DELEUZE, 1992, p. 218).

9
Enquanto buscava produções acadêmicas sobre as polícias e, em especial, dirigidas às ações de abordagem, no
decurso das leituras, pude notar que parecia haver uma quantidade grande de materiais escritos por acadêmicos
que também assumiam funções militares – ou que ainda permaneciam nesta função quando finalizadas suas
pesquisas – o que, talvez, seja um indicativo que venha a confirmar a existência/permanência de certa
imobilidade retórica entre civis e militares. Em sua dissertação de mestrado, o Major Airton Edno Ribeiro
(2009, p. 28-29), reconhece (à época) “ainda ser restrita a produção científica, no sistema civil de ensino,
acerca de assuntos policiais-militares”. Ao que acrescenta que “poucos pesquisadores civis se envolveram com
assuntos dessa área, ou porque não se interessam por eles, ou porque não encontram ambiente propício para a
pesquisa, resquício, ainda, do período de ditadura militar, que também fez sofrer as instituições policiais-
militares na questão do ensino. Entretanto, aqueles que conseguiram ultrapassar os portões da caserna se
surpreenderam com a boa recepção que tiveram”, assim como eu.
18

Desta forma, as análises do campo foram dispostas no texto ao longo de três principais
capítulos, assim definidos: o primeiro deles, “A pesquisa cartográfica como posicionamento
político: quando resistir é preciso” tratou de apresentar as bases teóricas e metodológicas que
orientaram a composição deste trabalho, tais como conceituações fundamentais advindas das
reflexões de Gilles Deleuze, Félix Guattari, Michel Foucault e Suely Rolnik, que promoveram
além de discussões basilares, um terreno possível de sustentação prática. Na construção do
conhecimento conjunto trago, ainda, o contorno das experiências de entrada no campo e
acompanhamento de percursos pelo dispositivo de entrevistas não diretivas, à medida que opto
pela renúncia de utilizá-lo como instrumento aplicado à dimensão de um saber irrestrito ao meu
lugar de entrevistadora, mas como recurso capaz de intervir e cultivar tantas outras experiências
compartilhadas no transcurso da pesquisa.
O capítulo seguinte, “Sangue azul: sobre os construtos de uma polícia militarizada”
tem como proposto a discussão da segurança pública a partir do resgate histórico localizado nos
discursos e práticas que atuaram substancialmente no processo de formação da Polícia Militar
do Estado do Rio de Janeiro, tal qual faz ver um tempo de retrocessos e resistências em vistas
das atuais políticas de segurança que têm como mote norteador a chamada guerra às drogas.
Tempos estes, enredados pela assinatura de um decreto que autoriza a intervenção federal nas
forças de segurança pública do Rio de Janeiro sob justificativa do combate ao crime e em nome
de um suposto projeto de paz. A seção dedica-se, ainda, à investigação do processo de produção
de subjetividades acerca das enunciações de medo e (in)segurança em uma cidade cindida pela
favela e pelo asfalto no curso de uma estrutura racista e desigual que, há muito, habita o cenário
carioca operando controle e restringindo direitos.
Por fim, o terceiro, intitulado “Abordagem policial e o processo de construção do (in)
suspeito” traz à cena um conjunto de ações de segurança franqueadas pela discricionariedade
enquanto atributo do poder de polícia conferido por força da lei. A partir do resgate e da
articulação entre trabalhos anteriores e os achados desta pesquisa, convido o leitor a
acompanhar o traçado que opera os procedimentos de abordagem policial, sobretudo quando
do protagonismo do corpo negro tomado como objeto de violações por vezes camufladas em
favor da apresentação do Brasil como um país marcadamente igualitário e, portanto, livre dos
efeitos de um processo sócio-histórico de quatrocentos anos de escravização e colonização.
Além de tudo isso, busco apontar e discutir os atravessamentos subjetivos inscritos no “tirocínio
policial” entendido, aqui, como habilidade que permeia a construção da suspeita, interesse
principal desta pesquisa.
19

1 A PESQUISA CARTOGRÁFICA COMO POSICIONAMENTO POLÍTICO:


QUANDO RESISTIR É PRECISO

Se é verdade que a prática do cartógrafo é política, esse seu caráter nada


tem a ver com o poder, no sentido de relações de soberania ou de
dominação [...] O caráter político da prática do cartógrafo é da alçada
da micropolítica e tem a ver com poder em sua dimensão de técnicas de
subjetivação [...] Dizer aqui que a prática de análise é política tem a ver
com o fato de que ela participa da ampliação do alcance do desejo [...]
Ela participa da potencialização do desejo, nesse seu caráter processual
de criador de mundos, tantos quantos necessários, desde que sejam
facilitadores de passagem para as intensidades vividas de forma
aleatória nos encontros que vamos tendo em nossas existências.
Rolnik, 2014

Servindo-me da visibilidade de antigos e recentes acontecimentos relativos à


problemática do ordenamento urbano e supressão de direitos, amplamente divulgados pelos
equipamentos de mídia, bem como de vivências cotidianas pessoais no intercurso com a cidade
como elementos disparadores da análise do modelo de segurança pública, reúno, aqui, nesta
cartografia, algumas pistas tomadas no decorrer do percurso trazendo ao plano de debate a
cidade do Rio de Janeiro enquanto território produto(r) de espaços não validados de (certas)
autonomias e liberdades. Neste sentido, do acompanhamento da multiplicidade de rumos e
realidades subjetivas, compreendo as ações de abordagem policial como campo potente de
investigação, uma vez que, enquanto atividade movida pela “fundada suspeita” permite que
sejam estendidas as possibilidades do acionamento de um ou mais “filtros seletivos” 10 que
concorram à atribuição de certas estereotipias a incursões de performances delituosas.
Amparada pelo método cartográfico de produção de mundos, a partir dos conceitos
teóricos de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997), além daqueles inscritos em produções mais
recentes também por eles inspiradas como as de Rolnik (2014), Passos, Kastrup e Escóssia
(2009), e norteada pelos pressupostos da análise de implicação no processo criativo, tenho como
proposta pôr em análise lacunas nas dinâmicas que medeiam a relação entre a construção da

10
Expressão apreendida não como uma realidade previamente dada, mas uma produção que fabrica para além da
suspeita, o próprio policial (ou quem seja o agente da suspeição). Neste trabalho, a expressão deve ser lida,
portanto, como uma constante coprodução.
20

suspeita e as abordagens policiais, visando compreender e analisar como redes de


agenciamentos provocam interferências sobre o exercício pleno dos direitos constitucionais,
colocando em situação de vulnerabilidade tanto aqueles que se ocupam do espaço público
enquanto sociedade civil, quanto os que recebem a incumbência do gerenciamento da ordem.
Concebendo que a produção do conhecimento é um processo coletivamente construído
e que, pelo viés da pesquisa-intervenção, inexistem quaisquer indícios de distanciamento ou
neutralidade científica, entende-se que conhecer é intervir na realidade, é transformá-la para
então conhecê-la (KASTRUP; PASSOS; ESCÓSSIA, 2009). Deste modo, faz-se oportuno
afirmar que todo ato de conhecer é igualmente agenciador de processos coletivos e gerador de
consequências políticas. Logo, é na dimensão ética, estética e política do fazer cartográfico
(ROLNIK, 1993, p. 6-7) que pesquisador e pesquisado orientam-se em direção ao traçado de
um plano comum e heterogêneo, desobstruindo os fluxos de interferência do devir e das novas
passagens que somente serão possíveis se concebidas no entre.

Ético porque não se trata do rigor de um conjunto de regras tomadas como um valor
em si (um método), nem de um sistema de verdades tomadas como valor em si (um
campo de saber): ambos são de ordem moral. O que estou definindo como ético é o
rigor com que escutamos as diferenças que se fazem em nós e afirmamos o devir a
partir dessas diferenças. As verdades que se criam com este tipo de rigor, assim como
as regras que se adotou para criá-las, só tem valor enquanto conduzidas e exigidas
pelas marcas. Estético porque este não é o rigor do domínio de um campo já dado
(campo de saber), mas sim o da criação de um campo, criação que encarna as marcas
no corpo do pensamento, como numa obra de arte. Político porque este rigor é o de
uma luta contra as forças em nós que obstruem as nascentes do devir [grifos da autora].

Favoreço-me também do conceito de produção de subjetividades dos/as mesmos/as


autores/as para pensar os territórios e forças, expressões de uma economia sócio-histórica
coletiva, que se combinam no processo de formação da “fundada suspeita” e das práticas de
abordagem. Guattari e Rolnik (1986, p. 27-28) asseveram que a problemática micropolítica
“não se situa no nível da representação, mas no nível da produção de subjetividade. Ela se refere
aos modos de expressão, que passam não só pela linguagem, mas também por níveis semióticos
heterogêneos”. Pensar em processos de subjetivação significa considerar, sobretudo, uma noção
que rejeita a ideia de sujeito enquanto entidade identitária e o toma como produto do registro
social. Trata-se, pois, ainda em suas palavras, de “sistemas de conexão direta entre as grandes
máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que
definem a maneira de perceber o mundo”.
Nesta perspectiva, amparo-me também no conceito de periculosidade apresentado por
Michel Foucault (2005) como dispositivo firmado desde o final do século XIX no contexto da
sociedade disciplinar e que se mantém presente até os dias de hoje através de discursos
21

produtores de medo e insegurança sob a máxima do inimigo público virtualmente perigoso e


naturalmente criminalizado. São concebidas, assim, respostas penais inclinadas não ao nível
das infrações cometidas à revelia da lei, mas ao controle das virtualidades que elas, portanto,
representam.
Não obstante os discursos que operam a lógica da existência de uma essência voltada
ao crime sob a fisionomia não-humana das ditas “classes perigosas” (COIMBRA, 2001), a
construção da suspeita, permanente em nós, por sua vez, figura-se como tecnologia premente
da sociedade de controle. Bicalho (2005, p. 81) pondera que as ações de abordagem são
conformadas como estratégias de controle, não de disciplina. Admite que embora estas disputas
também atravessem os atuais discursos da segurança pública, a questão que se encerra “é da
ordem do controle das virtualidades, da ‘escolha’ dos suspeitos”. Neste sentido mesmo, de
acordo com Deleuze (1992, p. 221):

Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma


modulação como uma moldagem auto deformante que mudasse continuamente, a
cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro [...]
A formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o
exame [...] Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à
caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina
nada, a empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes
de uma mesma modulação, como que de um deformador universal [grifos do autor].

Nos limites de uma zona de intensidades entre os “com” e os “sem” autonomia e


liberdade, a mídia corporativista atua como um dos mais significativos agentes produtores de
discursos e práticas, forjando formas específicas de existências – e, neste ponto, faz-se
indispensável considerar os espectadores aqui pressupostos. São vendidas, cotidianamente,
pelas grandes mídias, manchetes e notícias tomadas como centros de verdade que abordam a
questão da violência, quase sempre associada ao contexto das favelas cariocas, simplificando e
espetacularizando determinados acontecimentos. “Esse equipamento não nos indica somente o
que pensar, o que sentir, como agir, mas principalmente nos orienta sobre o que pensar, sobre
o que sentir” (COIMBRA, 2001, p. 29). É neste cenário, investido de terror, que os veículos de
comunicação atualizam processos de criminalização e fabricam redes de sentido que delineiam
certos modos de existência. Para Palermo (2018, p. 215):

Na divulgação de notícias há escolhas, tematizações, abordagens etc., que são


produções realizadas pelas mídias, mas que contemplam, em seu núcleo, uma
necessidade de comunicação e interação com o público que acessa o conteúdo
produzido [...] Portanto, os veículos de mídia mantêm com seus leitores uma relação
dialética na qual tanto influenciam seu público como são influenciados por ele. Em
razão disso, é crucial destacar que os jornalistas (e os veículos de mídia) produzem
seu trabalho a partir de um horizonte de expectativas do que é considerado [...] como
a grande maioria de seu público leitor.
22

É incontestável que algumas importantes transformações puderam ser percebidas ao


longo da história – apesar das frequentes ameaças a direitos já garantidos –, sobretudo como
resultado da incansável luta dos movimentos negro e de favela. Conquistas que, de fato, devem
ser lembradas servindo de inspiração a outras mobilizações mais, de modo a que convoquem à
responsabilização de todos. Porém, ainda que tenham sido aprimorados os canais de diálogo
pelo deslocamento da geografia da razão e da participação entre diversos segmentos sociais
outrora invalidados, não obstante temos muito a avançar. A ausência de reconhecimento e,
portanto, de revisão, das raízes da seletividade (ALMEIDA, 2018) parece continuar sendo um
dos maiores desafios na busca por uma implementação efetiva do Estado Democrático de
Direito no país, e isso não é mero acaso.
Apreende-se, aqui, que mesmo quando das circunstâncias em que se apresenta velada,
a recorrente associação da cor da pele aos critérios indicativos de suspeição e qualidade das
abordagens não só revelam pistas fundamentais ao esquadrinhamento desta questão como,
sobretudo – e por isso –, apontam a não superação do racismo enquanto processo sistêmico de
discriminação (ALMEIDA, 2018) no Brasil, acionado pelo exercício de uma atitude não
necessariamente perigosa, mas pela ameaçadora presença que vigora entre “almas
negras” 11 (CHALHOUB, 1988) e corpos denegridos. Almas que têm como única escolha
possível a resistência, corpos enegrecidos e que, justamente por evidenciarem sua negritude,
têm de enfrentar as mais bárbaras violações. Chalhoub (1988, p. 104-105) nos diz que:

Os republicanos tiveram medo da cidade negra, da cidade diferente. Um medo


profundo, enraizado na percepção da racionalidade e da recorrência dos movimentos
antinômicos dos negros escravos e livres. Não há, na verdade, nenhuma notícia de
uma insurreição de negros de grandes proporções na cidade do séc. XIX [...] E havia
ainda o medo cotidiano e corrosivo daqueles negros que podiam ministrar veneno em
remédios ou dar facadas, sendo perfeitamente conscientes e capazes de explicar o que
estavam fazendo [...] Perseguir capoeiras, demolir cortiços, reprimir a vadiagem – o
que geralmente equivalia a amputar opções indesejáveis de sobrevivência –, era
desferir golpes deliberados contra a cidade negra.

Quando lanço mão da noção de “denegrido” para compor, inclusive, o título deste
trabalho, não o faço, porém, de maneira ingênua. Costumeiramente utilizada de modo negativo,
tem-se a esta concepção atribuídos sentidos pejorativos que circulam entre difamações e as mais
diversas ofensas, o que a introduz no rol das expressividades de cunho racista. No entanto,
recorrendo a sua origem etimológica, a palavra “denegrir” alude à ação de “tornar-se negro”
(RODRIGUES, Dicionário Língua Portuguesa, 2012, p. 109). É por esta razão mesma que
escolho empregá-la ao nível de sua potência, como política de afirmação. Buscando engendrar

11
Cabe salientar que me utilizo da noção de “almas” como inspiração literária e não como recurso acadêmico.
23

provocações, suscitar análises, produzir novos discursos, aciono a noção de corpo denegrido,
escurecido e, por assim dizer, a noção de um corpo investido de negritude. Desta maneira, falo
também de experiências de ataque ao corpo quando impelido pela discriminação de cor. Do que
Souza (1983, p. 5-6) faz analisar:

De fato, parece-nos evidente que o ataque racista à cor é o “close-up” de uma contenda
que tem no corpo seu verdadeiro campo de batalha [...] Traço da violência racista, não
duvidamos, é o de estabelecer, por meio do preconceito de cor, uma relação
persecutória entre o sujeito negro e seu corpo.

Assim, ainda que não de maneira exclusiva, mas tomando o fator racial enquanto
importante agenciador de subjetividades que atuam na construção das suspeições apreende-se
que a cor implica não somente efeitos de filtragem e seleção nas ações de abordagem pela
polícia – e, sob outras inscrições, pela sociedade civil –, mas configura-se também como um
dos principais imperativos de violência na cidade. É neste cenário, contudo, do lugar de vítima
ou de agente violador, que a população negra aparece desproporcionalmente em maior
quantidade. Isto posto, para o ex-coronel da PMERJ, Jorge da Silva (1997, p. 96-97):

Com a exacerbação da violência urbana nos últimos anos, não só os temas da


segurança pública e da polícia passaram a merecer maior atenção, [...] mas
igualmente questões conexas, como ordem pública, sistema penal, direitos
humanos etc., constituindo-se mesmo em “problemática obrigatória”, [...] atraindo
atenção de estudiosos de praticamente todas as áreas. Se em outros países, todavia,
violência urbana e racismo são questões frequentemente analisadas uma na
perspectiva da outra, falando-se mesmo em violência étnica, violência racial,
genocídio etc., no Brasil, certamente em razão da representação corrente de sermos
um país sem preconceito racial, não é comum que tais questões sejam abordadas dessa
forma, transparecendo daí que para os estudiosos brasileiros, não haveria relação
importante entre violência e racismo entre nós, ainda quando se admite ser o racismo
marca forte de nossa cultura [grifos do autor].

Destarte, no contexto brasileiro, a cor da pele é o paradigma que faz supor a classe social
(AKOTIRENE, 2018) exigindo, portanto, a necessidade de que sejam nutridos esforços capazes
de fazer refletir quais marcadores são acionados quando do deslocamento destas categorias.
Compreendendo que a manutenção da supremacia de um grupo só se faz possível pelo
enfraquecimento de outro, uma das formas de lidar com a diversidade é explorá-la de modo
negativo até que seja justificada a imputação da violência e da desigualdade. Dos dramas sociais
acionados pelo cerceamento de direitos e o consequente acesso desigual aos recursos da cidade,
entrelaçadas às questões de raça e classe articulam-se narrativas de gênero como construções
sociais produzidas através das relações (RIBEIRO, 2017). No que se refere ao cerne desta
análise e seus potenciais desdobramentos, raça, classe e gênero, são estruturas relacionais de
grande fundamentação. Se, por um lado, parece fato comprovado que o ranço da escravidão
ainda vigora no corpo negro balizando critérios subalternizados de suspeição e enrijecimento
24

12
punitivo, por outro, as construções de masculinidades na sociedade ainda denotam
concepções naturalizadas, que posicionam e são posicionadas de maneiras distintas, a depender
dos marcadores raciais e sociais.
Tendo em vista que as categorias de gênero, raça e classe acrescidas das esferas de
território13 e geração14 fundam-se como elementos constituintes de uma mesma engrenagem,
como temáticas solidárias e em permanente atualização, não há sentido tratá-las de forma
independente à medida que uma encontra-se inscrita na outra. Por conseguinte, parece não
haver outra maneira de examinar a seletividade sem trazer ao campo de debate uma análise
mais acurada destes mesmos sistemas que, tomados pelo plano sociopolítico, estruturam uma
sociedade, forjam subjetividades e (re)definem modos de organização, de maneira que as
oportunidades e experiências de vida diferem em proporção semelhante ao nível social ocupado
na dinâmica de poder. Deste modo, a interseccionalidade15, conceito firmado pela feminista
negra Kimberlé Crenshaw, em 1989, assume a função de “sensibilidade analítica” responsável
por mapear identidades e pensá-las nas suas relações com o poder, ou seja, “é antes de tudo,
uma lente analítica sobre a interação estrutural em seus efeitos políticos e legais”
(AKOTIRENE, 2018, p. 58).
No que tange a esta questão, Jimena de Garay Hernández (2018, p. 93) sugere que
pensemos o conceito de interseccionalidade a partir de uma releitura que se utiliza da noção de
dobra proposta por Deleuze. Pondera que tomar a interseccionalidade pela inscrição da ideia de
dobra “nos possibilita pensar para além de pontos em uma intersecção identitária, propondo
experiências, fluxos e movimentos que se dobram em diferentes superfícies, em texturas
espaciais, temporais, corporais, de intensidade”, de modo que tal perspectiva poderia implicar
um diálogo mais afinado com vertentes metodológicas interessadas no caráter performativo das
práticas sociais que compõem nossos campos de investigação, ou seja, na dimensão processual

12
O tempo reduzido (dois anos) e o cumprimento das demais exigências curriculares concernentes à modalidade
de mestrado, fizeram com que algumas decisões fossem tomadas. Dentre elas, considerando a questão de
gênero uma ampla temática de discussão, optou-se, aqui, por delimitar o estudo apenas às análises das
masculinidades juvenis, visto que parecem ser os homens o alvo preferencial de suspeição. Segundo dados
recentes do Atlas da Violência 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo
Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), são eles também os que compõem quase a totalidade das
vítimas letais, inclusive no contato com as ações de polícia (Atlas da Violência, 2018).
13
Para Martins (et al., 2017), as políticas públicas atentam-se de modo diferenciado aos territórios urbanos
desconsiderando de seus planejamentos determinadas regiões da cidade, sobremaneira as áreas favelizadas.
14
Em uma rede de produção de discursos e práticas, os jovens pretos e pobres, há muito, são criminalizados em
instituições voltadas ao controle social. Se no final do século XIX, eram internados sob a justificativa de que se
encontravam em “situação de risco”, hoje, são acusados de ameaçarem a ordem (BATISTA, 2003).
15
Segundo Carla Akotirene (2018, p. 13), o conceito de interseccionalidade “surge da crítica feminista negra às
leis antidiscriminação subscrita às vítimas do racismo patriarcal. Como conceito da teoria crítica de raça, foi
cunhado pela afro-estadunidense Kimberlé Crenshaw”.
25

do percurso e das forças criadoras de novas paisagens. Neste contexto, de acordo com Deleuze
(1992, p. 194):

Com efeito, há dobras em toda parte [...] As linhas retas se assemelham, mas as dobras
variam, e cada dobra vai diferindo. Não há duas coisas pregueadas do mesmo modo,
nem dois rochedos, e não existe uma dobra regular para uma mesma coisa. Nesse
sentido, há dobras por todo lado, mas a dobra não é um universal. É um
“diferenciador”, um “diferencial”. Existem dois tipos de conceito, os universais e as
singularidades. O conceito de dobra é sempre um singular, e ele só pode ganhar
terreno variando, bifurcando, se metamorfoseando.

Finalmente, admitindo que em uma sociedade democrática a segurança pública deve ser
tomada como dispositivo necessário de proteção aos cidadãos, seus patrimônios e direitos, faz-
se urgente que seja superada a ideia ilusória que coloca em níveis de oposição as premissas de
segurança e direitos humanos (MINGARDI, 2015). Vale destacar que este não se constitui
como um discurso que pretende tomar a Polícia Militar para bode expiatório de um sistema
muito mais complexo. Compreendemos, pois, que eles são, tão logo, a outra face descartável
de uma ordem cruel, fundamentada em interesses maiores. Em conformidade ao apontado pelo
delegado de polícia civil D’Elia Filho (2015), a violência policial não é um equívoco de
procedimento de alguns policiais despreparados, mas uma política de Estado no Brasil, apoiada
e incentivada por parte da sociedade. Segundo ele, ainda, punir policiais que são identificados
no abuso do uso da força, inclusive a letal, não é garantia de resolução do problema, mas, ao
contrário, uma estratégia de Estado que visa não se confrontar com a sua própria política.
Como as palavras faladas constituem movimentos de luta, outras tantas são as faces
possíveis da militância. Aqui, comprometida com uma posição de resistência frente a discursos
e práticas segregacionistas, através da produção escrita, conecto-me à potência do compartilhar,
enredada pela singularidade das composições em uma experiência cartográfica que se permite
orientar pelas dimensões da pesquisa-intervenção (KASTRUP; PASSOS; ESCÓSSIA, 2009).
Desta maneira, quando da aposta em uma escrita política, engajada, conjunta e não descolada
daquilo que produz, admitimos que nossas narrativas textuais, além de comunicadoras do que
temos construído coletivamente são, de igual modo, terreno de lutas e produção de certos
mundos – estes, e não outros. Do que afirma Foucault (2009, p. 268):

Não se trata do ato de escrever, mas da abertura de um espaço onde o sujeito que
escreve não para de desaparecer. Tal escrita se coloca como intensiva, sem a intenção
de tudo esgotar e sem marcar a abundância e a repetição características da busca por
individualidades identitárias. Ao se produzir uma escrita como expressão de
singularidades, decompõe-se o indivíduo e produz-se uma conexão com a
impessoalidade. Desmanchamento do sujeito identitário, do eu, que expressa as
microlutas de muitos eus, de uma vida vivida para aquém e além das vidas individuais.
26

Assim, visando instigar processos de produção de subjetividades, questionar relações de


poder e habitar fronteiras (ROMAGNOLI, 2014) esta pesquisa é um fazer que se propõe a
compartilhar experiências de/com homens jovens, negros ou brancos, moradores de favela ou
residentes do asfalto, que tenham vivenciado a suspeição e as eventuais limitações do circular
pela cidade, buscando identificar possíveis variações destas experiências, sobretudo, por razões
de cor e classe social. E, ainda, de/com homens integrados à Corporação da PMERJ, que a
serviço do Estado e de suas posições na hierarquia institucional, tenham participado ativamente
de, pelo menos, uma ação de abordagem policial.
Quando falo em resistência pelo ato de pesquisar trago à cena um aspecto significativo
deste percurso: o processo de desmonte enfrentado pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro16. A casa que me acolheu desde a graduação, como em tempo algum, nos últimos anos,
enfrentou o enorme desafio de continuar resistindo frente aos reeditáveis projetos de desmonte
e até privatização pelo governo do Estado que, de igual modo, demonstra interesse na
degradação das instâncias de saúde e segurança visando atingir fins semelhantes. Bolsas e
salários atrasados, aulas suspensas, esvaziamento da universidade, redução considerável do
número de inscritos no vestibular, cortes de financiamentos, atrasos no calendário acadêmico,
são apenas alguns exemplos que falam sobre este triste cenário. Nós, alunos, perdemos, os
professores, técnicos e terceirizados perdem, e mais uma extensão de outras pessoas, que
dependem direta ou indiretamente dos seus serviços, também.
Se neste texto faço uso da primeira pessoa como elemento indispensável da escrita é
porque valorizo a importância de marcar o meu lugar de fala. Um lugar encarnado, situado nas
experiências vividas, sobretudo, as vividas nesta universidade. Ademais, quando falo em “nós”
também falo de mim, ratifico a importância das trocas, das redes de polifonias, das
especificidades do deixar-se afetar, além da produção do conhecimento como um processo
conjunto, local, datado e provisório.

Quando afetados [...] percebemos que nossas questões são feitas de vidas. Assim,
exercitamos uma ética e expandimos nosso conhecer nas relações de uma vida de
todos em nós, de uma vida de si com todos. Imanência de relações no corpo que cria
passagens com o que força a experimentar nosso pensamento: afetos e perceptos que
já não são de um ou de outro, mas da vida. Não precisamos mais temer o processo de
estarmos afetados pelo acontecimento no ato de pesquisar, pois o que antes era dado

16
Ao longo dos últimos dois anos (2016-2018), a UERJ veio sofrendo com a falta de repasses do governo que
culminou em atrasos no pagamento de bolsas e salários da comunidade acadêmica, atrelada à ausência de
investimento em recursos básicos para a manutenção dos campus universitários, do Colégio de Aplicação da
UERJ (CAp-UERJ) e do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), gerando um clima constante de
apreensão e incertezas quanto ao futuro. Balanços mais recentes, considerando o pagamento dos atrasados e o
retorno das atividades pelo calendário acadêmico, parecem indicar uma possível redução do agravo financeiro
e um gradual retorno à “normalidade”.
27

como “ponto fraco” do pesquisador, agora marca uma condição indispensável do


processo de pesquisar: a capacidade de afetar e afetar-se para que se criem os modos
de expressar os sentidos de uma pesquisa (LAZZAROTTO; CARVALHO, 2012, p.
25).

Desta forma, não há como articular minha trajetória como pesquisadora sem levar em
consideração os afetos e as afetações que me atravessam quando volto o meu olhar às
experiências partilhadas por entre rampas, corredores, cantinas, bibliotecas e salas de aula desse
aglomerado de concreto tanto aparentemente frio e cinza quanto incrivelmente capaz de acolher
uma vastidão de cores e calorosas memórias. Não há, portanto, como falar em resistência e não
lembrar a UERJ e sua incrível e inspiradora capacidade de, ainda que em meio ao caos,
continuar (r)existindo. A #UERJresiste 17 e, mais recentemente, como nunca antes talvez,
precisa que sigamos resistindo com ela.
Compartilhando experiências, entrelaçando vivências e testemunhando histórias, sigo o
percurso. É apenas o começo. Vacilo, perco o compasso, retomo o movimento, ando em meio
a (des)caminhos. Não estou só, tenho pistas que me cercam e que me guiam. Sempre encontro
alguma entre uma rota e outra e nelas me amparo. Entendo que fazer pesquisa cartográfica para
além de desafio é também política de resistência aos modos hegemônicos do pensar. Ou, ainda:
“pesquisar é criar. Exige desequilibrar, fazer delirar, gaguejar, sair dos trilhos [...] O
pesquisador cava uma linguagem estrangeira na própria língua e por esse buraco inventa uma
saída para os sentidos dominantes em meio às linhas duras da língua oficial” (LAZZAROTO;
CARVALHO, 2012, p. 119).
Assim, anseio que este pesquisar (e seus efeitos mais) não tenha perdido de vista a
importância de se contar outras histórias, de vislumbrar outras trajetórias possíveis. Que não
tenha esquecido a indispensável necessidade de sustentar o não saber, de recordar o valor do
gaguejar e a potência da imprevisibilidade. Que se afigure como possibilidade de produção de
novas práticas, seguindo mais pela via dos afetos do que pela estrita racionalidade. Que nela
contenham mais ideias do que palavras, mais sentidos do que definição de conceitos. Defendo
que, como pesquisadores/as, temos o compromisso de não fazer da academia um lugar
asséptico, isolado. Nossas pesquisas, ao contrário, devem inscrever a ciência no mundo, ser
contágio. No mais, das narrativas que conto, só me resta continuar desejando que elas sejam
capazes de fazer desestabilizar limites rígidos, que provoquem cada vez mais barulho.

17
A hashtag #UERJresiste faz parte de uma campanha em defesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
através da luta de discentes, docentes, terceirizados e servidores contra as ofensivas do governo, que ganhou
visibilidade e apoio da população após viralizar nas redes sociais.
28

1.1 Mapeando paisagens, compartilhando histórias: a tessitura de um trabalho de


pesquisa

Nossa proposta inicial está na afirmação da pesquisa-intervenção


enquanto um modo de investigação que ganha corpo entre a macro e a
micropolítica, considerando como desafio a analítica das implicações
coletivas com a produção do sentido, processo que transversaliza
metodologia e problema de pesquisa, produção de conhecimento e
produção de modos de existência. Uma pesquisa está imersa em um
campo de forças, construindo e ao mesmo tempo sendo efeito dos
saberes/poderes atravessados nos modos de subjetivação.
Rocha; Uziel, 2008

Enquanto pensava minha entrada no campo, refletia sobre o quão curioso é falar do
direito à liberdade a partir de um lugar especialmente marcado pelo seu não reconhecimento.
Tradicionalmente pautado por ideias positivistas, o contexto acadêmico, ainda hoje, tem
preservado a lógica dicotômica entre teoria e prática. De maneira geral, recusa-se a integração,
tal como a valorização de conhecimentos que provenham da experiência ativa, do exercício de
produção de mundos por meio de uma prática interessada no fazer cotidiano como oportunidade
de resgate daquilo que gera afetações e confere legitimidade à análise das próprias implicações
como um dispositivo potente. Conforme assinalam Rocha e Uziel (2008, p. 535-536), “a análise
das implicações nos coloca o desafio de lutar pela desconstrução de lugares identitários
apriorísticos, o de quem pode descobrir a verdade/o de quem aplica um saber já construído”.
Um exemplo disso, é que, no Brasil, os ditames éticos de pesquisa estão vinculados às
normativas dos comitês distribuídos pelas universidades, cuja incumbência é a da avaliação e
reconhecimento da proposta de pesquisa quando do envio formal para a realização da mesma.
A questão, todavia, é que devido ao fato de estarem fundamentadas em um composto de
preceitos gerais, as discussões sobre o compromisso ético na pesquisa parecem limitadas a
critérios restritos e burocráticos apenas, se encerrando em um solo de normas fixas e
previamente estabelecidas, que, por sua vez, acabam não contemplando perspectivas afeitas ao
caráter processual e inventivo de seus estudos acerca das subjetividades (TEDESCO, 2015).

Evidencia-se assim a relação indissociável entre o pensamento e o plano concreto de


nossa experiência num processo de afetação recíproca, de transversalidade entre os
dois planos. Pretendemos mostrar como os planos, teórico e empírico, da pesquisa
estabelecem entre si uma conversação, um processo de contágio ininterrupto entre
29

ideias e gestos técnicos que exigem desvios, mudanças no projeto a serem realizadas
ao longo de todo desenvolvimento da investigação. Visamos construir argumentação
contra o estabelecimento de orientações éticas estanques, pré-fixadas, que engessam
a experiência gerada no campo da pesquisa (TEDESCO, 2015, p. 33).

Ainda segundo a autora, “vale lembrar que, se não nos serve o modelo fixo de ética,
também não podemos recair na postura dicotomizante que pensa uma ética circunscrita ao
simples movimento” (TEDESCO, 2015, p. 34). Dito de outro modo tem-se, portanto, que o viés
cartográfico como metodologia da pesquisa-intervenção – compreendendo a prática não como
desdobramento subordinado à teoria, mas a relação entre ambas como processo movido por
uma rede de forças em jogo, cujo caráter de ineditismo se faz potente – sugere uma aposta ética
capaz de realizar composições entre paisagens distintas ao imprimir certo afastamento do
modelo universal arraigado na exigência de normativas e protocolos generalizáveis. Assim, do
lugar de afirmação ética-estética-política, interessada nos efeitos dos processos de subjetivação
e comprometida com as singularidades das experiências humanas, a metodologia cartográfica,
em definitivo, não se inaugura como um movimento de fácil sustentação sob a hegemonia do
ambiente acadêmico-científico-positivista.

Ora, se a subjetividade é entendida como processualidade, que se efetiva na


composição entre processo de subjetivação e desubjetivação, é esperado que as
orientações éticas dirigidas a ela possam acompanhar suas transformações. Assim
sendo, a direção ética também precisa comportar historicidade, pressupor movimento
de variação (TEDESCO, 2015, p. 34).

Quando se trata, em especial, da prática em Psicologia, seja ela clínica, institucional ou


voltada à pesquisa, é comum observarmos a insistência por uma postura calcada em
especialismos, no exercício de uma técnica endereçada à produção de normalizações e não
inclinada à construção de espaços de abertura ao desconhecido. Padrões generalizáveis que
parecem não levar em consideração os atravessamentos da diferença, do irregular e o papel do
imprevisível em nossas pesquisas. Assim, um “modelo de ciência que se funda em relações
hierárquicas e dualizadas onde um sabe e o outro não” (ROCHA; UZIEL, 2008, p. 535).
Contudo, na contramão da hegemonia conservadora academicista, seguindo a perspectiva
cartográfica, nada está pronto. Não há, portanto, prescrições a serem seguidas ou verdades a
desvelar, mas tensões passíveis de negociação, realidades que se constituem fazendo.

Na verdade, se estamos de acordo com o fato de que os recortes binarizantes e


excludentes operados pelos paradigmas das ciências, construídos nos últimos séculos,
já não bastam para que possamos investigar/criar o mundo, impõe-se a construção de
uma outra postura, um outro modo de operar sobre/com as práticas. Observa-se que
aqui já estamos optando por nos referir a práticas e não a objetos-alvo de certas teorias.
Estamos começando a transitar por entre práticas cujas fronteiras apresentam
porosidade maior, aberturas suscetíveis à ação de saberes variados que ao serem
colocados fora de seus campos específicos são forçados a atravessar planos até então
30

desconhecidos. A operação, aqui, não é mais a de recortar por dicotomização,


separação de objetos e saberes a eles correspondentes, mas a de transversalização
(PASSOS; BENEVIDES DE BARROS, 2003, p.83).

Recorrer à transversalidade não é o mesmo que admitir a lógica da horizontalidade ou,


ainda, acionar a perspectiva da verticalidade, mas uma tentativa de superá-las introduzindo
outras formas de relação. Neste contexto, enquanto no registro horizontal pretende-se a
organização corporativa dos iguais, no vertical, propõe-se a hierarquização dos diferentes.
Conceber a transversalidade, por sua vez, requer a apreensão de um regime multivetorial que
atua colocando “lado a lado os diferentes, criando uma dinâmica de diferenciação que permite
que as vivências e representações pessoais ganhem caráter processual, transformando-se sem
se anularem nem se fecharem em perspectivas totalizantes” (SADE et al., 2013, p. 2815).
Que o fato de nos arriscarmos por caminhos desconhecidos não se confunda, porém,
com falta de rigor científico ou puro relativismo no movimento de pesquisar. Ao contrário,
“entendemos que na perspectiva da cartografia, manter uma margem de flexibilidade e
provisoriedade em relação aos objetivos e às metas de uma pesquisa não compromete o rigor
metodológico porque este não é a mesma coisa que rigidez metodológica” (SOUZA;
FRANCISCO, 2016, p. 813-814). O rigor, contudo, deve ser apreendido da capacidade que o
pesquisador tem de acompanhar o ineditismo do processo do “objeto” que se propôs a
investigar. Isto de maneira alguma significa ausência total de referenciais, de objetivos, nem de
estratégias metodológicas. O fazer cartográfico não acontece sem orientações. Estas serão, no
entanto, especialmente nutridas por “pistas ou linhas que conduzirão o pesquisador durante todo
o desenvolvimento de sua investigação”.
Admitindo que “a subjetividade é essencialmente fabricada e modulada no registro
social” (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 31), intenciono que esta pesquisa atue como elemento
disparador de reflexões, por meio do estreitamento de vínculos com os principais atores do
contexto em análise, sobre quais/como processos têm sido responsáveis por forjar modos de ser
e estar no mundo. Devo dizer que a minha implicação do lugar de pesquisadora, neste sentido,
aparece como um dos mais potentes dispositivos do trabalho de campo, pois é a partir da
afirmação da subjetividade que fluxos irrompem, agenciamentos tomam expressão, sentidos
são dados e alguma coisa acontece. Finalmente, almejo que as análises aqui promovidas se
estabeleçam como recurso potente à incitação de exercícios conjuntos que não se esgotem nos
limites da academia e das zonas visitadas, mas que ultrapassem contornos fixos de circulação e
sejam capazes de desestabilizar registros sociais enrijecidos, convocando a esta e a outras
frentes de discussão, igualmente necessárias.
31

1.1.1 Nas malhas da captura, eis os suspeitáveis

Eu me formei suspeito profissional


Bacharel pós-graduado em tomar geral.
Racionais MC’s, 1997

Um dos principais componentes do policiamento ostensivo é a possibilidade de uma


ação que se faça preventiva e permita a antecipação dos agentes de segurança pública à prática
da atividade ilícita, de maneira que seja viável identificar e neutralizar o sujeito em vias do
cometimento delituoso. As abordagens policiais, forma coloquial de nomear a figura jurídica
da busca pessoal, são situações cotidianas entre parte da população e a Polícia Militar na cidade
do Rio de Janeiro. No encontro diário com as inúmeras pessoas que cortam as ruas e as avenidas
da cidade – e, portanto, também o seu campo de visão –, ao agente policial militar, é demandado
o reconhecimento, quase que imediato, de qualquer indício que sua experiência entender
destoante da manutenção da ordem na dinâmica dos espaços públicos (RIBEIRO, 2009).
É o poder de polícia o dispositivo jurídico-constitucional responsável por autorizar a
limitação dos direitos individuais, quando pela autoridade policial, reconhecidamente nocivos
à manutenção do interesse conjunto. Os órgãos policiais inscritos no sistema de segurança
pública fazem uso deste poder para desempenhar suas missões constitucionais. Dado que cabe
ao Estado garantir direitos, dispõe-se do poder de polícia como instrumento de autoridade
financiada pelo interesse coletivo e nas disposições legais, de modo a prevenir e reprimir ilícitos
e assegurar a ordem (BONI, 2006). Nesta perspectiva, o poder de polícia, é apreendido como
ato discricionário, legal e legítimo inerente à atividade policial cotidiana, que se desdobra na
análise do equilíbrio entre os princípios de liberdade e autoridade, estes, por sua vez, orientados
pelo interesse público, ou seja, a partir dos interesses dos cidadãos.
A definição atribuída no texto legal da Seção II, do Capítulo V do Código Tributário
Nacional18 (CTN) faz saber que:

Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que,


limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou
abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene,
à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de
atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à
tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais e
coletivos.

18
Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (BRASIL. Código Tributário, 2012).
32

Parágrafo único: Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando


desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância
do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem
abuso ou desvio de poder.

Admitindo, portanto, que a razão do poder de polícia – agência não exclusiva aos
policiais encarregados, mas passível de ser operada de diversas maneiras e por vários atores –
é o interesse social, tem-se que a discricionariedade é um dos atributos específicos de seu
exercício. Diante disso, a legislação outorga à autoridade policial elementos discricionários (e
não arbitrários) para a análise da oportunidade de aplicação da medida nas intervenções junto à
sociedade. Assim, de maneira legítima, os policiais estão autorizados a abordar pessoas que,
em seus entendimentos, despertem suspeita de que possam vir a transgredir ou já tenham
transgredido alguma norma legal (PINC, 2006). São, ainda, atributos do poder de polícia a
autoexecutoriedade e a coercibilidade que indicam, respectivamente: a faculdade da
administração de decidir e executar o ato de polícia por meios próprios e diretos e, portanto,
sob a dispensa da intervenção do judiciário e o caráter de imposição coercitiva da ação de
polícia, inclusive com o emprego legítimo da força física em caso de resistência do abordado
(RIBEIRO, 2009).
Neste sentido, a “fundada suspeita” é a condição primeira para que o policial militar
realize uma determinada ação de abordagem. Ainda em razão da “fundada suspeita”, o texto
legal inscrito no Art. 244 do Código de Processo Penal (2017, p. 488) atesta sobre a execução
da revista pessoal:

A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver


fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou
papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso
de busca domiciliar [grifo nosso].

Importante, ainda, para a contextualização da “fundada suspeita” de acordo com a lei


penal, é o que pode ser verificado no Art. 239 do mesmo código: “considera-se indício a
circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autoriza, por indução,
concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”. E, mais: em seu Art. 240 § 1º, tais
objetos delituosos são identificados como coisas achadas ou obtidas por meios criminosos;
instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos; objetos
necessários à prova de infração; cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado de cometer o
ilícito ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser
útil à elucidação do fato; e qualquer elemento de convicção (BRASIL. Código de Processo
Penal, 2017).
33

Consoante às diretivas da Secretaria Nacional de Segurança Pública (2013, p. 17), a


aplicação da revista, ou seja, do “ato de inspecionar corpo e vestes de uma pessoa com o intuito
de encontrar algo que configure ilícito penal 19”, deve ser considerada prática inconteste de
coibição a crimes cuja função central é, portanto, garantir a ordem pública e a segurança da
sociedade por agentes operadores do Estado. Nesta perspectiva, seguindo as modalidades de
policiamento ostensivo definidas e reguladas pela Seção III da Diretriz Geral de Operações
(DGO)20, publicada em Boletim Reservado, no ano de 1983, é passível de ação policial todo e
qualquer cidadão presente em território brasileiro. Em vista disso, tomando os critérios
formalizados no referido documento, as ações de policiamento devem ser divididas em três
grandes categorias, assim representadas: ordinária, complementar e extraordinária (RAMOS;
MUSUMECI, 2005).
De maneira geral, sob a inscrição da DGO, entende-se por Policiamento Ostensivo
Ordinário (POO) as práticas de responsabilidade das unidades operacionais da PM com
circulação territorial, isto é, os batalhões (BPMs) e as companhias independentes (CIPMs),
incluindo as modalidades de serviços a pé e a cavalo, patrulhamento motorizado ou fixo em
cabinas, destacamentos e postos comunitários, policiamento de guarda ou, ainda, patrulha de
trânsito urbano. Por sua vez, o Policiamento Ostensivo Complementar (POC) são as atividades
que englobam operações planejadas com finalidade preventiva ou repressiva, visando trazer
certo dinamismo ao POO. Cabe salientar que, quanto ao caráter preventivo, destacam-se tanto
as ações de prevenção (A-Prev) pela intensificação da presença policial em locais, dias ou
horários críticos – eventos de massa, proximidade de datas expressivas etc., com o objetivo de
desestimular a prática de delitos e infundir uma sensação de segurança na população – quanto
às operações intensificadas de orientação do trânsito urbano, sendo estas, ações especiais –
festas populares, manifestações de rua e demais circunstâncias em que a circulação de veículos
exceda o policiamento de trânsito regular (RAMOS; MUSUMECI, 2005; OBERLING, 2011).
Já o aspecto repressivo contempla, principalmente, as operações de ação repressiva (A-
Rep), que se subdividem também em outras quatro categorias 21 : vasculhamento (A-Rep1),

19
Destaca-se a restrição contida no Art. 249 do CPP: "a busca em mulher será feita por outra mulher, se não
importar retardamento ou prejuízo da diligência” (BRASIL, Código de Processo Penal, 2017). Devido ao
recorte de gênero adotado na pesquisa, esta nota insere-se a título de ressalva não sendo, pois, intuito do
trabalho avançar nesta discussão, decerto, importante.
20
Em razão do que consta em seu Art. 1º, a Diretriz Geral de Operações “tem por finalidade proporcionar aos
diversos escalões da PMERJ os princípios para o planejamento de emprego do efetivo policial-militar nos
diferentes tipos de policiamento, em conformidade com a destinação da corporação, fixada na legislação
específica e mencionada nas bases doutrinárias para emprego da PMERJ” (Diretriz Geral de Operações apud
OBERLING, 2011, p. 106).
21
São categorias de ação repressiva (A- Rep): A-Rep1 (vasculhamento): ação genérica de revista de pessoas e
lugares suspeitos executada em áreas de grade densidade demográfica onde se suponha que haja incidência de
34

busca e captura (A-Rep 2), revista (A-Rep 3) e cerco (A-Rep 4), sobre as quais, devido às pistas
produzidas no campo, me debruçarei com maior afinco neste trabalho. E, por último, a
modalidade de Policiamento Ostensivo Extraordinário (POE), que diz respeito à preservação
da ordem e da segurança em eventos especiais – partidas esportivas, desfiles cívicos, festas
carnavalescas e outros eventos mais que envolvam grande aglomeração de pessoas (RAMOS;
MUSUMECI, 2005; OBERLING, 2011).
Conforme já referenciada, a Secretaria Nacional de Segurança Pública, órgão federal
atualmente vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) lançou, no ano de
2013, a segunda edição da cartilha “Atuação Policial na Proteção dos Direitos Humanos de
Pessoas em Situação de Vulnerabilidade”, elaborada por profissionais colaboradores
pertencentes ao então Ministério da Justiça (MJ). De acordo com o próprio (à época) MJ, a
cartilha, destinada a profissionais da área de segurança pública, é uma alternativa pedagógica
que visa à qualificação da atividade policial quando do contato direto com a população, por
meio do fornecimento de subsídios teóricos interessados no efetivo alinhamento entre as
perspectivas garantidoras de direitos humanos e a aplicação da lei. Sobre as fundamentações da
prática de abordagem, o documento não deixa sequer margem para dúvidas: “a decisão de
realizar uma abordagem e o procedimento adotado não devem ser motivados por desconfianças
baseadas no pertencimento da pessoa a um determinado grupo social” (Senasp, 2013, p. 15).
Ocorre, no entanto, que o conceito de “fundada suspeita” carece de conteúdo definidor
preciso fomentando, assim, um complexo (e importante) debate no país. Da inexistência de
parâmetros concretos, seja na legislação ou na formação policial, é o saber prático, quando das
atividades de policiamento, que lhe atribuirá significados aplicáveis (SCHLITTLER, 2016).
Neste sentido, a ausência de definição legal parece ensejar que tais ações, a depender das
circunstâncias, sejam orientadas por autorizações prévias relacionadas a uma gama de fatores
determinantes da cultura vigilante, punitiva e (re)produtora da lógica de combate ao inimigo
perpetrada por aqueles que detêm o poder – e também por aqueles que não se dão conta do
poder que têm.
Das devidas previsões legais, Souza e Reis (2014) apontam que discussões sobre as
possibilidades e os limites do uso da concepção de “fundada suspeita” como critério justificável

atividade criminal; A-Rep 2 (busca e captura): designa-se à repressão de crimes ou contravenções específicas,
mediante à prisão de indivíduos com conduta desviante e a apreensão de materiais utilizados para a prática de
delitos; A-Rep 3 (revista): ação inopinada em locais estratégicos, de revista a veículos particulares, coletivos
e/ou carga, com a dupla finalidade de confiscar armamentos, entorpecentes ou outros materiais associados a
crimes ou contravenções e de reprimir o roubo e o furto de veículos; A-Rep 4 (cerco): combinação de
operações simultâneas de revista, com a função de coibir a fuga de criminosos em situação de delitos que
envolvam múltiplos autores armados e motorizados (RAMOS; MUSUMECI, 2005).
35

às ações de abordagem e busca pessoal pela polícia já foi, inclusive, objeto posto em apreciação
pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por mais de uma vez:

A “fundada suspeita”, prevista no art. 244 do CPP, não pode fundar-se em parâmetros
unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da
revista, em face do constrangimento que causa. Ausência, no caso, de elementos dessa
natureza, que não se pode ter por configurados na alegação de que trajava, o paciente,
um “blusão” suscetível de esconder uma arma, sob risco de referendo a condutas
arbitrárias ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de
poder. Habeas corpus deferido para determinar-se o arquivamento do Termo (HC
81305, Relator (a): Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em
13/11/2001).

Em resumo, a abordagem policial, de acordo com o STF, causa constrangimento. Para


ser justa deve ocorrer como meio de prova quando houver “fundada suspeita” de que a pessoa
possui sob custódia coisa obtida por meios ilícitos. Valendo-se desta problemática, Ribeiro
(2009) propõe algumas perguntas a serem colocadas em análise: “como trabalhar com a
reconhecida questão do constrangimento que a abordagem causa”? Sua indagação reflete a
complexidade que se inscreve quando tomamos em exclusivo o que denota a letra da lei. Neste
caso, embora venha ferir a dignidade da pessoa humana na circunstância da abordagem – e não
estamos falando aqui em termos de abuso de poder –, como então avaliar a ilegalidade do
constrangimento se sua aplicação prática estiver ancorada no reconhecimento do interesse
público? Do que completa o autor:

Como se vê, na perspectiva jurídica a abordagem pode ser legal desde que relacionada
ao cometimento de crime. Mas, e nos casos em que não há crime? Não é missão
constitucional da Polícia Militar a prevenção da ocorrência de delitos? Como atuar
preventivamente se não for possível suspeitar da atitude de uma pessoa? (RIBEIRO,
2009, p. 38)22.

Para Bicalho (2005), a lei não garante a prática porque estes são instrumentos
comprometidos com questões inscritas no campo da produção de subjetividades e não somente
de ordem jurídico-legal – sobremaneira, quando colocamos em análise quem são hoje os
suspeitos em um contexto que a própria polícia, cada vez mais, tem também se firmado como
suspeita para a população. Assim, neste processo de construção, seja em ações de abordagem
ou não, mais do que um fator de estrita intencionalidade, o que parece estar em jogo e atuar
como força enunciadora na fabricação de “sujeitos (in)suspeitáveis” é a dimensão coletiva que
constitui e opera a todos nós.

22
Quanto às atribuições das polícias militares, o Art. 144 da Constituição Federal (1988) assevera em seu § 5º:
“às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros
militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil” (BRASIL,
Constituição Federal, 2012). As atribuições da Polícia Militar e outros aspectos relacionados à temática
voltarão a ser tratados mais adiante.
36

Destarte, sob a aposta de que a relação se dá no encontro e imbuída do desejo de tomar


meus interlocutores como parceiros no processo de construção do conhecimento lanço mão do
dispositivo da entrevista como ferramenta voltada à produção e coletivização das questões do
campo. Opto, pois, por sua dispensa ao nível da instrumentalização diretiva, à medida que não
almejo utilizá-lo como recurso que se pretende aplicado à dimensão do saber irrestrito do
entrevistador. Desta maneira, mais do que perseguir respostas fechadas a questões pré-definidas
anseio, a partir de perguntas disparadoras e uma atitude sensível também ao que emerge nas
singularidades dos diálogos – um saber que não está dado de antemão –, intervir e cultivar a
experiência compartilhada, de modo que seja possível provocar a criação de novos sentidos.
Neste contexto, a entrevista como ferramenta de investigação não se constitui, aqui, como “a
representação de um dado; ela acompanha a experiência na fala e não a fala sobre uma
experiência” (SADE et al., 2013, p. 2817). Ainda segundo os mesmos autores:

Se a entrevista é não diretiva (pois seu desenrolar não é controlado pelo entrevistador)
e faz surgir entrevistado e entrevistador de um novo modo, é porque a experiência a
que ela dá lugar não se confunde com os fenômenos subjetivos de cada um dos
participantes, vividos de modo estritamente individual ou privado. A experiência da
entrevista permite com que os participantes surjam [...] de modo singular. Este
surgimento coetâneo de si e de mundo acontece a todo momento, mas na entrevista
ele pode ser contemplado como tal. Quem observa pode, então, reconhecer-se como
corresponsável por aquilo que é observado, assumindo uma posição implicada frente
ao que lhe aparece. No mesmo movimento, quem é observado pode sair da posição
passiva de quem apenas fornece dados, também se corresponsabilizando com o
conhecimento produzido (SADE et al., 2013, p. 2817).

Importante salientar que não almejo fazer um comparativo das vivências, mas pensar
que/como arranjos, multiplicidades, afastamentos e aproximações são atualizados no exame do
traçado das experiências em ações de abordagem. Recorro, portanto, às entrevistas como
recurso à produção de um plano comum em que coexistam diferenças e seja composto por
colorações e entoações diversas em um mesmo território a ser partilhado. Apreendemos, com
isto, que “o plano comum não é apenas um pressuposto da entrevista, mas também seu efeito.
Acessar o plano é também traçá-lo. Não se trata de explicar sentidos prontos, já dados, mas de
traçar as condições coletivas para diferir de si” (SADE et al., 2013, p. 2822).
Apesar da proposta cartográfica incluir a entrevista como dispositivo de investigação,
nós, pesquisadores/as afinados/as com esta metodologia de pesquisa, não acreditamos que o
pensamento de cada um, em sua totalidade, possa ser capturado no processo de coleta de dados.
Parece mais interessante, entretanto, o emprego do termo “colheita de dados” – dos porquês
que cedem lugar ao como (PASSOS; KASTRUP; 2013). Uma vez que partilhamos da ideia de
que entrevistar é intervir, compreendemos que neste processo mais do que a representação de
37

um mundo conhecido, interessa-nos o seu caráter produtor de sentidos, ou seja, de uma tradução
tanto mais próxima quanto possível das experiências fabricadas e acompanhadas no campo, não
visando exatamente à produção de histórias, mas o traçado de uma cartografia (DELEUZE;
PARNET, 2004).

Traduzir é realizar a passagem de uma língua a outra, sem que haja uma língua por
trás, que pudesse funcionar como um ponto de vista externo, garantido ou afastado.
Estamos sempre numa língua ou noutra, não há uma língua por trás que constitua um
solo seguro que garanta a passagem de uma a outra. Se não há correspondência de
princípio, como conceber a passagem? Não podemos contar com invariantes que nos
abririam para uma universalidade supostamente dada. Temos, ao contrário, que
encontrar ou produzir equivalentes. Nos termos da pesquisa cartográfica, a
equivalência produzida não é sinônimo de correspondência, mas se dá como sintonia
no plano das forças [...] De todo modo, temos de estar convictos de que não há nem
jamais haverá continuidade entre as línguas, subsistindo sempre um hiato irredutível
(KASTRUP; PASSOS, 2013, p. 274-275).

Nas páginas que se seguem, considerando a complexidade que se inscreve no campo da


segurança pública, faz-se necessário articular em seu desenho metodológico procedimentos
quantitativos e qualitativos de maneira que seja possível ampliar a produção das múltiplas
entradas sobre as questões em análise. “Não se trata de medir para entender, explicar ou
reconhecer um mundo dado. Trata-se de acessar o plano das forças para avaliar os efeitos das
relações, e como fazem vibrar o mundo” (CESAR; SILVA; BICALHO, 2013, p. 369-370).
Assim, além do uso de indicadores numéricos como recurso facilitador de acesso àquilo que foi
examinado no campo, tentarei recolocar em escrita o que se deu também na ordem do vivido,
isto é, o que pude experienciar quando do encontro com 24 homens que participaram de
abordagens, dos quais: 10 jovens civis e 14 policiais militares. Homens que confiaram a mim
suas histórias e fazem parte, portanto, da autoria deste trabalho de pesquisa.
Preservado o anonimato dos envolvidos, todos autorizaram que suas histórias fossem
aqui compartilhadas. Da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE),
apenas um pequeno grupo de policiais solicitou que não fosse utilizado o recurso de gravação
de áudio durante a nossa conversa. Neste caso, em alguns momentos as principais anotações
foram feitas no desenrolar da entrevista ou imediatamente após o seu fim. Como estratégia de
reafirmação política contrária a um sistema de segurança ditado pela guerra os nomes dos
entrevistados foram substituídos pelos daqueles que, a serviço do Estado ou na condição de
civis, em 2018, perderam suas vidas em decorrência de um projeto insano que há décadas assola
a cidade do Rio de Janeiro.
Portanto, à medida que os entrevistados forem aparecendo pela primeira vez ao longo
do texto, serão também apresentados em notas de rodapé outros vinte e quatro homens civis e
38

policiais militares a partir das chamadas veiculadas por meios de comunicação impressos e
plataformas digitais que noticiaram suas mortes, de maneira que, em suas ausências, façam-se
presentes em nome de tantos outros incitando-nos a recordar os custos da guerra. Cabe salientar
que as demais informações – idade, cor/raça, local de moradia circunscrito por suas respectivas
zonas geográficas (quando civis), além da posição hierárquica institucional representada pelo
posto ou graduação correspondente (quando agentes policiais) – serão condizentes ao referido
pelos próprios entrevistados.
Destarte, alguns números importantes de serem registrados: segundo matéria publicada
pelo Jornal Extra23, no penúltimo dia do ano, tendo como base dados internos divulgados pela
PMERJ, ainda que da diminuição dos índices em relação aos últimos anos, em 2018, foram
assassinados, no Rio de Janeiro, 92 policiais militares. Do registro total, mais da metade das
mortes ocorreu enquanto os agentes gozavam de seus dias de folga. Nesta mesma direção,
segundo dados ofertados pelo Observatório da Intervenção24, foram contabilizadas no decurso
da intervenção federal na segurança 1287 civis mortos em ações da polícia, um aumento de
mais de 30% em relação ao mesmo período no ano anterior.
Vale sublinhar que ao longo do ano de 2017, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública
registrou diversas evidências sobre o drama da violência no Brasil e chamou atenção para o fato
de que ela é racialmente concentrada, ou seja, faz de suas vítimas principais negros e negras.
Intentando conferir destaque ao dia da consciência negra, a organização compilou e publicou
informações que oferecem uma amostra desta desigual realidade. Dos números divulgados, foi
possível evidenciar que a cada 100 vítimas de homicídio, 71 delas eram negras. Dos mortos em
intervenções policiais entre 2015 e 2016, correspondem a homens negros 76% do número total,
enquanto que dos policiais que perderam a vida em razão dos crimes de homicídio no mesmo
período, 56 % deles eram homens negros.
Nesta esteira, sobre os jovens civis, o processo de eleição dos entrevistados aconteceu
de maneira gradual, quase sempre por intermédio de um participante que eu já conhecia e que,
por sua vez, indicou algum amigo ou familiar abordado pela polícia ao menos uma vez. Com

23
Matéria publicada pelo Jornal Extra, em 30/12/2018.
24
Esta e outras informações estão presentes no relatório “A intervenção acabou. Quanto custou”? Material
produzido e disponibilizado pelo Observatório da Intervenção ao término da política de segurança que vinha
sendo empregada no Rio de Janeiro e que chegou ao fim após dez meses devido à posse do novo Presidente da
República, Jair Bolsonaro, no primeiro dia do novo ano. Em fevereiro de 2018, foi assinado pelo presidente em
exercício, Michel Temer, um decreto que autorizava a intervenção das Forças Armadas do Exército no Rio de
Janeiro, determinando sua execução até o fim de seu mandato na Presidência da República sob justificativas,
em pronunciamento televisionado, de que “o crime organizado quase tomou conta do estado do Rio de Janeiro.
É uma metástase que se espalha pelo país e ameaça a tranquilidade do nosso povo” (TEMER, 2018). Este
assunto será revisitado e discutido na próxima seção.
39

isso, à medida que um voluntário indicava uma nova pessoa a ser entrevistada foi sendo possível
formar também, paulatinamente, uma rede de contatos em expansão calcada em um tipo de
amostragem não probabilística denominada “bola de neve” (VINUTO, 2014), como entendido
pela autora. Ao que Juliana Vinuto ainda completa:

Bola de neve é uma amostra não probabilística que utiliza cadeias de referência. Ou
seja, a partir desse tipo específico de amostragem não é possível determinar a
probabilidade de seleção de cada participante na pesquisa, mas torna-se útil para
estudar determinados grupos difíceis de serem acessados. A execução da amostragem
em bola de neve se constrói da seguinte maneira: para o pontapé inicial, lança-se mão
de documentos e/ou informantes-chaves, nomeados como sementes, a fim de
localizar algumas pessoas com o perfil necessário para a pesquisa, dentro da
população geral. Isso acontece porque uma amostra probabilística inicial é impossível
ou impraticável, e assim as sementes ajudam o pesquisador a iniciar seus contatos e a
tatear o grupo a ser pesquisado. Em seguida, solicita-se que as pessoas indicadas pelas
sementes indiquem novos contatos com as características desejadas, a partir de sua
própria rede pessoal, e assim sucessivamente e, dessa forma, o quadro de amostragem
pode crescer a cada entrevista, caso seja do interesse do pesquisador [grifos da autora]
(VINUTO, 2014, p. 203).

Em razão das indicações fazerem parte da rede de contatos dos próprios entrevistados,
é possível (e até provável) que, por este motivo mesmo, as regiões de moradia, Zona Norte e
Zona Oeste,25 bem como a faixa etária dos jovens rapazes entrevistados, entre 22 e 30 anos,
tenham acabado restritas em margem de variação o que, no entanto, não se configurou como
um problema a ser contornado ou solucionado levando-se em consideração, pois, os objetivos
e a escolha metodológica que orienta esta dissertação, mas, ao contrário, permitiu que pudessem
ser percebidas as sutilezas do campo que se apresentava. Quanto aos aspectos de cor/raça, foram
admitidas como categorias as autodeclaradas26.
Neste ponto, cabe salientar duas observações importantes referentes ao momento do
convite para participação na pesquisa. O primeiro deles é que, apesar do enunciado não remeter
à qualidade das abordagens, ou seja, embora os requisitos tenham se mantido vinculados aos
aspectos de gênero, desde que homens, e à evidência de terem sido abordados pela polícia ao
menos uma vez, as decisões de recusa ou aceite foram, fatalmente, mediadas pela ocorrência
de encontros conflituosos (ou não) com os agentes do Estado durante as abordagens, o que
também pôde ser verificado posteriormente, já no momento próprio às entrevistas. Tomo como
exemplo alguns destes contatos iniciais que me permitem apontar, ainda, uma segunda questão:

25
A Zona Norte e a Zona Oeste representam, respectivamente, as duas áreas mais populosas da cidade do Rio de
Janeiro. De modo geral, também concentram os bairros com menores Índices de Desenvolvimento Humano
Municipal (IDHM), segundo análise sistematizada pelo Observatório Sebrae/RJ (SEBRAE/RJ, 2015).
26
A despeito de muitas críticas, as classificações de cor/raça oficiais adotadas atualmente no Brasil dirigem-se às
definições do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que dispõe de cinco categorias: branca,
preta, parda, amarela e indígena (OSORIO, 2003). Para efeitos desta pesquisa, optamos por considerar o
critério de autodeclaração dos entrevistados.
40

uma vez que a (má) qualidade das ações de abordagem era por eles entendida como o requisito
principal, os jovens que se autodeclararam negros e moradores das áreas favelizadas foram os
principais indicados pelos demais participantes.

Já fui abordado de carro. Na rua? Sou playboy, pô. Mas tem um amigão meu que mora
em comunidade e já sofreu diversos abusos em várias abordagens, se quiser posso te
passar o contato dele (Thiago, 29 anos, branco, Zona Norte).

Cresci na favela, né? Quase todos que eu conheço de lá já foram, inclusive eu. Tenho
vários do Vidigal em mente já. Domingo eu vou tá com um dos moleques e se tu
quiser já troco uma ideia com ele pra você. Conheço uns que são moradores da Cidade
de Deus também, material pra tu é o que não vai faltar (Matheus, 29 anos, branco,
Zona Norte).

Thiago Mendonça27 e Matheus Melo28 foram dois dos jovens entrevistados. Consoante
ao que denota Vinuto (2014), eles são o que podemos chamar de “sementes”. Thiago, um dos
primeiros jovens a participar da pesquisa, afirmou não ter histórias relevantes com a polícia,
afinal, fora “poucas vezes abordado e todas elas aconteceram bem de boa”. Todavia, após o
relato de algumas destas, quando a entrevista parecia tomar os rumos finais, Thiago disse ter
recordado uma experiência “um pouco forte”. O amigo, a quem acompanhava em uma carona,
teve o veículo abordado e a habilitação apreendida. Ao final de sua fala, porém, não deixou de
assinalar: “eu sei que a gente tava todo errado porque tinha uma porrada de gente no carro e
tava cheio de bebida, mas era aquilo, todos éramos brancos e com cara de playboy. Eles deram
um esporro pesado e voltamos pra casa”.
Matheus, por sua vez, asseverou “ter muita história pra contar”. Viveu toda a infância e
grande parte da adolescência no Vidigal, favela localizada na Zona Sul da cidade. “Eu não sou
negro, mas sofri por ser da favela, por ser moleque morador da favela”, revelou. Antes da
indicação de outros amigos para a pesquisa, o jovem ainda fez dizer: “já aconteceu da gente
[ele e os amigos] tá descendo arrumado da favela pra ir na matinê e os policiais pararem pra
perguntar onde a gente tinha ido comprar a droga, não achavam que a gente era morador”,
ressalta. A entrevista ficou marcada para a semana seguinte. Antes da despedida, no entanto, o
jovem ainda assinalou: “foram diversas abordagens que eu vi e vivi lá no Vidigal. Às vezes, a
gente que tem a pele um pouco mais clara é liberado, mas quem é negro acaba ficando lá com
eles pra prestar mais depoimento”.

27
Thiago Souza Mendonça. “Eu não quero morrer, fala com Deus’, disse adolescente morto por bala perdida na
Zona Oeste” (Matéria publicada pelo jornal O GLOBO, em 05/11/2018).
28
Matheus Melo Castro. “Jovem de 23 anos é baleado e morre no Jacarezinho” (Matéria publicada pelo jornal O
DIA, em 13/03/2018).
41

Dos policiais militares entrevistados, treze ainda na ativa e, atualmente, lotados em dois
batalhões da Zona Norte da cidade. De igual forma, visando preservar os entrevistados, as
unidades serão aqui referenciadas como Zona Norte 1 e Zona Norte 2. Cabe colocar em
destaque que um dos entrevistados, na condição de policial reformado, ou seja, após mais de
trinta anos de serviço policial cumpridos, não se encontra atualmente em nenhum batalhão de
polícia. Sua entrevista foi realizada individualmente em um estabelecimento social localizado
na outra ponta da cidade, em um bairro da Zona Sul. Quanto aos seus postos e graduações,
foram voluntários nesta pesquisa homens que compõem o quadro hierárquico de oficiais e
praças – em números de 2 e 12, respectivamente. Na PM, em consonância com as bases
institucionais definidas, os dirigentes (oficiais) são designados por postos, que compreendem,
da mais alta hierarquia a menor: coronel, tenente-coronel, major, capitão, primeiro tenente,
segundo tenente, aspirante e cadete. Já os dirigidos (praças), dividem-se por graduações, quais
sejam: subtenente, primeiro sargento, segundo sargento, terceiro sargento, cabo e soldado
(QUEIRÓZ, 2015).
Assim, utilizando-me das entrevistas como recurso disparador às análises lanço-me ao
campo do lugar de pesquisadora implicada permitindo deixar afetar e experimentar aberturas a
novas paisagens possíveis. A caminhada, aqui, se faz por um terreno complexo, denso, que não
possui roteiros certos ou saídas limitadas cabendo, portanto, ao leitor, escolher o trajeto que lhe
parecer mais interessante.

1.1.2 Conhecendo fortes, desmanchando fortalezas: um encontro com a PMERJ

Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser


É enfrentar a morte, mostrar-se um forte no que acontecer.
Hino da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro

Fazia sol no Rio de Janeiro. No Centro da cidade, o marcador digital registrava 39ºC em
seu visor, o que me parecia uma completa insanidade, afinal, tinha total convicção de que a
inversão da ordem numérica apontaria um valor mais exato. Ainda ponderei sobre o adiamento
da minha visita, mas já havia sido alertada das dificuldades burocráticas que, por vezes, geram
impeditivos de acesso à instituição. Não seria fácil. Precisaria contar com o “fator sorte" para
ter em mãos um documento que autorizasse a minha entrada na PMERJ, mas isto também não
era o bastante. Antes, porém, o pedido deveria ser formalmente dirigido a alguém. Mas, quem?
Não tive dúvidas: “alguém” que eu só conheceria se fosse até lá.
42

“Continua seguindo reto por essa rua, que daqui a pouco você vai dar na esquina de um
muro alto; ele é branco e azul. É ali”, orientou-me um policial militar que “tirava serviço”, ele
e mais um, ao lado de uma viatura nas proximidades do metrô da Carioca29 em meio ao vai-e-
vem dos passos apressados que buscavam seus destinos naquele início de tarde no coração da
metrópole fluminense. Da sua pronta identificação: a farda, o armamento, a combinação das
cores, o veículo com indicativo do batalhão de polícia de origem, além do brasão representativo
da Corporação, se não um policial militar a me auxiliar sobre a chegada no Quartel-General
(QG) da PMERJ, quem mais?
No que diz respeito à rápida identificação do policial militar no exercício de suas
funções, Muniz (1999, p. 39) sublinha:

Com as polícias, em particular as ostensivas, ocorre algo parecido. Estamos, de


alguma forma, em contato com elas: através da idealização heroica e quase sempre
romântica dos seriados de TV, dos trillers de ação e dos folhetins policiais; nos
noticiários sobre crimes e violência policial; e, no cotidiano, quando paramos em um
sinal de trânsito, quando participamos de uma manifestação pública, quando
avistamos uma blitz ou simplesmente quando observamos uma radiopatrulha
deslocando-se monótona e lentamente por uma avenida da cidade. Os policiais
militares fazem parte da paisagem urbana carioca como tantas outras personagens
menos identificáveis que eles. Trajados com seus uniformes e em suas viaturas
caracterizadas, os PMs se destacam, são imediatamente reconhecidos entre os muitos
atores que circulam pelo Rio de Janeiro. Nos encontros indesejáveis, nas emergências
ou nas colisões casuais com os “agentes da lei”, o reconhecimento de nossa parte é
imediato: “chegou a polícia”.

No arco que dava para o interior da estrutura de concreto outros dois policiais, no que
aparentava ser uma espécie de posição de guarda – olhar atento, corpo rígido e armamento preso
transversalmente ao tronco ereto –, vigiavam e controlavam o fluxo de entrada/saída de carros
e pedestres que atravessavam os limites daquela enorme construção. À imagem e semelhança
de uma fortaleza: um quarteirão quase que inteiro de “muro alto, branco e azul”, que devido ao
seu valor histórico-cultural, em 2017, depois de alguns anos de tramitação em projeto de lei,
teve determinado o seu tombamento oficial30.
Com um aceno de cabeça cumprimentei os homens de guarda e avancei pelo espaço
reservado aos pedestres. Na recepção, fui atendida por outro – este, com presença nitidamente
mais descontraída – que, logo das minhas primeiras palavras, contou-me que eu e sua filha
tínhamos muito em comum fisicamente. Parecia realmente surpreso. Por que não um indício de
“sorte” já conspirando a meu favor?! Afinal, mais tarde, no contato com os demais PMs eu

29
A estação Carioca é uma das plataformas da empresa Metrô Rio, que administra e opera as linhas do metrô na
cidade, prestando serviços de transporte e recursos à mobilidade urbana.
30
A promulgação da Lei nº 6. 170/17 impede que projetos antigos do Governo do Estado e outros novos voltem
a ameaçar a estrutura física e material do Quartel-General da PMERJ, que já esteve sob risco de demolição e,
em outros momentos, de venda (Matéria publicada pelo jornal O DIA, em 23/05/2017).
43

continuaria “parecendo filha” de alguns outros e isso, de certa forma, nos aproximava: “vocês
duas [eu e sua filha] são meninas, são jovens. Tenho certeza que o seu pai se preocupa igual a
mim”. Se a figura da “jovem estudante” fazia falar dessas filhas, a “pesquisadora de direitos
humanos”, em contrapartida, gerava tensão, lembrava conflitos e abria espaço para a condição
de suspeita: “eu tenho muitos embates ideológicos com a minha irmã. Ela é ligada nessas coisas
de PT. Ela critica a PM, fala que a gente oprime, que ataca negro e pobre, mas não é assim de
verdade. Você não vai falar mal da gente também não, né”?
No balcão de entrada, expliquei o motivo da minha ida ao Quartel-General admitindo o
meu total desconhecimento sobre quem procurar. Fui interrompida: “CAEs, Coordenadoria de
Assuntos Especiais”, ele me disse. Antes mesmo que eu pudesse manifestar qualquer tipo de
alívio por vislumbrar um caminho mais próximo, o homem se antecipou informando que a
pessoa responsável havia deixado o QG poucos minutos antes para uma reunião externa que,
muito provavelmente, se estenderia ao longo do dia, ou seja, qualquer que fosse a pessoa
responsável por receber acadêmicos interessados em fazer pesquisa na Polícia Militar, já não
mais retornaria naquele dia. Ainda assim liberou minha entrada pela roleta aconselhando-me a
conversar diretamente com alguém do setor para “agilizar a minha volta”.
Da barreira eletrônica que bloqueava o acesso externo, direto ao pátio central da polícia.
Na minha frente, a Capela da Irmandade Imperial de Nossa Senhora das Dores. Viaturas
estacionadas e homens fardados também ajudavam a compor a paisagem. Embora visivelmente
destoante, minha presença não parecia ser notada. Enquanto avançava em direção a um bloco
de escadas que daria na parte superior da construção, o cumprimento de mãos entre dois
policiais veio acompanhado de um sonoro: “fala, sangue azul”! Naquele momento, pude, enfim,
perceber que o campo se apresentava a mim – embora, decerto, já estivesse ali desde muito
antes. Ainda que da completa incerteza quanto à autorização da minha entrada nos batalhões de
polícia fui instigada a considerar que o processo de desmanchar fortalezas ia muito além da
exclusiva validação burocrática.
Neste ponto, creio ser possível recorrer às palavras de Rolnik (1997, p. 2), quando a
autora se propõe a examinar o dentro e o fora de cada figura da subjetividade que se esboça em
seus modos de existência buscando acompanhar o traçado da experiência que chamei, aqui, de
“desmanchar fortalezas”:

Diferentemente do que víamos no início antes de ativarmos o vibrátil de nosso olho,


o que observamos agora é que dentro e fora não são meros espaços, separados por
uma pele compacta que delineia um perfil de uma vez por todas. Percebemos que eles
são indissociáveis e, paradoxalmente, inconciliáveis: o dentro detém o fora e o fora
desmancha o dentro [...] Definitivamente, fora e dentro na atual etapa de nossa viagem
não tem mais nada a ver com meros espaços.
44

Não demorou muito até a confirmação de que a pessoa responsável pelo atendimento
dos pedidos de pesquisa, de fato, não retornaria mais naquele dia, véspera de feriado
prolongado. Combinamos que eu entraria em contato na semana seguinte. Tinha agora em mãos
o número e o endereço eletrônico da CAEs. Da nova tentativa, a conversa por telefone com a
gestora de projetos, que me solicitou a realização de um pedido formal por e-mail, seguido do
cumprimento dos trâmites burocráticos que seriam encaminhados em resposta. Formulários
preenchidos, declarações enviadas. Só me restava aguardar.
Em poucas semanas, uma mensagem na caixa de entrada certificava o seguimento do
processo e recomendava a entrega física de mais alguns documentos ao setor. Tão logo reuni a
papelada e já estava de volta ao Quartel-General. Naquele dia, porém, outra pessoa cumpria as
atividades na recepção, o que não prejudicou o meu acesso. Capela, viaturas, homens fardados,
tudo como da última vez. O caminho até a CAEs já era conhecido, a gestora de projetos,
pessoalmente, ainda não. Em envelope pardo, entreguei os documentos pendentes e, enfim,
concluí mais uma etapa burocrática, a última do longo processo formal. A folha de autorização
que validava a minha entrada nos batalhões da PMERJ veio quase um mês depois. Era chegada
a hora de conhecer os “fortes”.

1.1.2.1 Zona Norte 1: o “batalhão diferenciado”

É por causa da realidade das ocorrências. Aqui não tem confronto, é


considerado um batalhão fora da curva. A Zona Norte é uma área
complicada, né? A violência é bem alta e aqui a violência é baixa, igual
Zona Sul. Mas eu estou falando através de índice criminal, não através
de geografia. Tem roubo, mas atuação de tráfico igual tem nas outras
regiões não, é totalmente diferenciado. Você mora aqui? Então deve
entender bem o que eu tô falando.
Sargento Jeovany, 46 anos, branco, Zona Norte 1

A escolha do batalhão visitado não foi aleatória. Ele fica no mesmo bairro onde moro,
na Zona Norte da cidade. Além da familiaridade com o local, a facilidade do deslocamento – o
percurso de carro demorava, em média, dez minutos –, que me permitiria também dispor de um
tempo maior dentro do estabelecimento, foram as minhas principais motivações. Enquanto
dirigia-me à entrada da unidade uma frase no muro chamou minha atenção: “sem limites não
há cidadania, sem polícia não há limites”. Como nunca a percebera ali antes? Uma espécie de
45

boas-vindas ao novo mundo. Era um pouco essa a minha percepção sempre que recriava a
imagem daquele todo “branco e azul” quando da primeira visão que se tem da área interna do
Quartel-General da PMERJ. Da frase no alto do muro, uma inscrição que parecia mais dividir
o “dentro” e o “fora”, como se mundos apartados. Pude notar que eles compartilhavam da
mesma sensação e, talvez, fossem um pouco mais além: se é verdade que existem duas
realidades e que estas se distanciam mutuamente é porque uma delas é habitada por policiais e,
em alguma medida, deve-se levar em consideração que o “policial é um ser humano à parte”,
como mais adiante definiria um dos PMs entrevistados.
Em frente à porta pude avistar dois homens sentados no interior de uma pequena sala.
Ao perceberem a minha chegada, sinalizaram para que me encaminhasse até eles. Feitas as
devidas apresentações, expliquei o que me levava até ali. Fui orientada a aguardar enquanto um
deles procuraria alguém para me receber. Não demorou muito até o questionamento daquele
que permaneceu comigo romper o silêncio: “desculpa te perguntar, mas você mora aqui, né”?
Após perceber o meu estranhamento, sorrindo, continuou: “sua mãe trabalha na [nome da
empresa], não trabalha”? Era bem verdade que minha mãe, devido ao tempo de serviço em um
local de grande circulação acabava sendo conhecida e, por conseguinte, algumas destas pessoas
me conheciam também. O policial prosseguiu antes mesmo que eu pudesse responder sua
pergunta inicial: “nossa, você já está no mestrado? Lembro de você pequena passando na minha
cabine com o uniforme do [nome da escola] e sua mãe voltando do trabalho. Depois não vi mais
vocês e entendi que tinham se mudado”. O homem que falava comigo, para a minha surpresa,
não era cliente da empresa onde minha mãe trabalha, mas um dos policiais da cabine que fica
na rua onde minha avó morava. Era evidente o meu espanto, ele sorria a cada nova reação
minha. Compreensíveis, talvez, suas lembranças tão específicas. Não fosse o fato de que minha
família se mudou há oito anos.
Quando retornei, o policial já havia deixado a sala. Não consegui encontrá-lo mais
naquele dia e tampouco durante o período que estive no batalhão graças à ajuda do sargento
Jeovany Brito31, que me recebeu e apresentou ao tenente-coronel responsável na ausência do
comandante. Naquele dia mesmo tudo ficou definido: nas primeiras semanas eu conversaria
com policiais da radiopatrulha32, no retorno de seus plantões. Apesar da dificuldade que eu

31
Jeovany de Carvalho Brito. “Policial militar é morto em troca de tiros em Arraial do Cabo, no RJ” (Matéria
publicada pela plataforma de notícias G1 Rio, em 24/01/2018).
32
Segundo Ramos e Musumeci (2005, p. 59), a radiopatrulha pode ser definida enquanto uma “forma básica de
policiamento ostensivo, em torno da qual todas as demais gravitam. É executada dentro de setores de
patrulhamento e controlada pelos centros de operações dos comandos de policiamento ou, eventualmente,
pelos das unidades operacionais. A guarnição é composta, em geral, por dois policiais”.
46

poderia encontrar por eles estarem deixando o serviço, resolvemos apostar e pensar alguns
ajustes, caso fosse necessário. Segundo o tenente-coronel, faria mais sentido conversar com
“policiais da ponta”, os que, hoje, atuavam diretamente na rua.
Decidimos que eu ficaria em um espaço aberto, bem próximo à entrada da sala do
Oficial-Dia de plantão – “aqueles que controlam a entrada e a saída dos policiais de rua”, disse
o dirigente –, que seria responsável por mediar os encontros com os demais PMs. Ali também
era ponto de circulação, o que aumentava a chance deles se familiarizarem com a minha
presença. Além disso, o local tinha banheiro feminino, salientou. Os batalhões são ambientes
predominantemente masculinos e isso faz com que o espaço não seja tão exigido. Decerto, foi
curioso perceber nos dias que se seguiram a minha entrada, a notória preocupação em manter o
banheiro sempre aberto e limpo para que eu pudesse utilizá-lo.

O tenente-coronel, já sem farda, caminhava em direção à saída quando apareceu no


espaço reservado às entrevistas e parou para me cumprimentar. Em seguida, foi até a
sala do Oficial-Dia e fez alguns apontamentos: “aí camarada, boa noite. Dá uma bola
aí pra pesquisadora porque é um trabalho importante, entendeu? E de repente isso no
futuro pode reverberar em algum trabalho positivo pra gente. Ela é parceira nossa, é
nossa cliente também e o comandante tá dando ênfase aí e apoiando ela. Então eu
conto com vocês aí conforme o comandante tem contado e vocês têm retribuído pra
gente aí, tá certo”? Ao deixar o ambiente, retornou para checar se o banheiro estava
aberto. Disse, ainda, antes de se despedir: “mandei limpar o banheiro hoje porque
imaginei que você viesse” (Diário de Campo, em 18/07/2018).

Uma sentença, em específico, parecia invariavelmente anunciar a minha chegada ao


BPM nos dias combinados à medida que vinha também acompanhada do movimento repetido
de conferir as condições da sala onde eu aguardaria os agentes policiais voluntários: “se você
precisar, o banheiro já está aberto, tá bem”?
As entrevistas começaram na semana seguinte. O tenente-coronel solicitou um tempo
para que pudesse orientar todos os policiais que se revezavam na função de Oficial-Dia durante
a semana. Apesar do horário de retorno dos plantões ter se confirmado como um aspecto que
dificultou o meu encontro com os voluntários, o campo se reorganizou e decidimos por não
fazer nenhuma alteração. Afinal, a rotina fez com que eles parecessem acostumados a minha
presença, o que possibilitou que os encontros recusados em um dado dia, fossem combinados
para o próximo plantão e alguns assim aconteceram. Do mesmo modo, os PMs que já me
conheciam, ao falarem comigo mais informalmente, despertavam a curiosidade de outros que
por ali circulavam e, por vezes, ensaiavam perguntas e/ou breves ponderações – o que não era,
necessariamente, garantia de uma nova entrevista: “você que é a pesquisadora? Eu também fiz
trabalho assim no meu curso, fiz faculdade de Direito. Falei que a prisão não ressocializa
ninguém, isso tudo é uma grande mentira”. Demonstrado o interesse pelo estudo de autoria do
47

PM que me interpelara e após convidá-lo para uma conversa em outra ocasião – visto que em
poucos minutos o mesmo “tiraria serviço” externo ao batalhão –, obtive como resposta em tom
cordial: “o problema é que eu só chego aqui em cima do laço, mas vamos ver se consigo algum
dia desses”, deixando o espaço logo em seguida.
Permaneci um mês indo ao BPM Zona Norte 1 de duas a três vezes por semana, sempre
no final da tarde. Nos dias em que precisava aguardar por mais tempo devido à quantidade de
recusas, os policiais que trabalhavam internamente se prontificavam a serem eles mesmos os
meus entrevistados. O sargento Jeovany foi um deles. Aos 46 anos, disse ter entrado na polícia
“por vocação”. Ainda no início da conversa, relatou ter “muitos embates com algumas pessoas
da família, todas elas esquerdistas doentes”. Mais uma pista, dentre outras, que aparentemente
indicavam o afastamento entre a academia e a Polícia Militar. E, assim, eu era constantemente
associada a algum partido político e a “essa coisa de sociologia que não gosta de polícia”. Como
sinalizado em oportunidade anterior, a figura da “pesquisadora de direitos humanos” parecia
entrar em cena e desbancar as demais, gerando desconfiança e mesmo certa dose de revolta nos
PMs entrevistados: “tem muita gente que se diz especialista em segurança pública, mas é
especialista que fica só atrás de livro. Especialista em segurança pública sou eu [levanta a blusa
e mostra cicatrizes pelo corpo], que já tive que subir muito morro pra trocar tiro com bandido”,
disse o sargento Jeovany.
Em outros momentos, a suspeita, ao contrário, cedia lugar à total convicção. O relato de
campo apresenta uma dessas entrevistas desconcertantes:

O sargento pergunta ao companheiro o que ele acha que estou fazendo ali e o que vou
fazer com aquilo que estão me contando. A resposta veio sem hesitação: “vai foder
com todo mundo, você tem dúvida”? Questiono o que faz com que eles mesmo assim
continuem ali comigo se acreditam que vou deturpar o que estão dizendo. Enquanto
um deles se limita a responder: “cada um que assuma o que falou”, o outro pergunta
mais uma vez se não irei divulgar mesmo os seus nomes. Ao que acrescenta: “sei lá,
no fundo confiei em você” (Diário de campo, em 23/07/2018).

No dia deste relato, a situação foi especialmente mais complicada. Ali, no interior do
batalhão, na companhia de três policiais, além da suspeição, pude experienciar, talvez, um
pouco do que contém na narrativa dos jovens quando afirmam terem vivenciado uma ação de
“abordagem conflituosa” com a Polícia Militar. Um diálogo tenso, fundado por uma sequência
de perguntas que parecem mais afirmar do que propriamente indagar o interlocutor. No limite
entre a sala e a porta de entrada, além de mim, compunham a cena os sargentos Jason da Costa33,

33
Jason da Costa Pinheiro. “PM morre em operação no Morro dos Macacos” (Matéria publicada pelo jornal O
DIA, em 28/06/2018).
48

Edson Magalhães34 e Guilherme Lopes35, todos na faixa dos quarenta anos e mais de quinze de
serviços prestados a PMERJ:

Sargento Jason diz que a população dos centros, diferente daquelas do interior, não
valoriza a polícia. Assevera que “tem um monte de patricinha que sobe o morro pra
usar droga e pra namorar com traficante”. Ele segue: “você já foi num baile funk
desses, né”? Quando respondo negativamente o sargento tenta mais uma vez: “nunca
foi mesmo? Tem certeza”? Não era a primeira vez que ele me questionava como se
soubesse de antemão a resposta. Em diversos momentos, suas perguntas indicavam o
que ele já acreditava saber. À medida que as respostas não condiziam com o esperado
insinuava que eu estava mentindo. Em outros momentos, também parecia interessado
em saber a minha opinião sobre algum assunto, afinal, eu “votava no Freixo, com
certeza”. Um desses muitos momentos foi o seu questionamento sobre a atitude da
policial militar que atirou em um homem na calçada de uma escola virando notícia
nos telejornais da semana: “na sua opinião, foi errado o que ela fez? Ela não atirou
pra matar, só deu um tiro e pegou a arma dele. A gente não atira pra matar, mas eles
atiram. Eles não estão ligando pra sua vida, pra vida da sua mãe, a do seu pai, do seu
filho, da sua família. Eles só querem as suas coisas”. Sargento Guilherme compartilha
de sua fala e acrescenta: “depois vem aquele bando de filho da puta dos Direitos
Humanos proteger um cara desses”. Sargento Edson, até então mais contido nas
verbalizações, questiona se eu sou realmente pesquisadora ou se “fazia parte da
mídia”. Logo é interrompido por sargento Guilherme que me dirige outra pergunta;
dessa vez quer saber o que faz com que eu queira “pesquisar na polícia”. Enquanto
ensaiava novas perguntas, foi atravessado pelo sargento Jason que, sorrindo, alertou-
me: “se prepara porque agora ele vai te fazer um monte de perguntas e olha que ele
nem começou a bater na mesa ainda” (Diário de campo, em 23/07/2018).

Dos encontros com o sargento Jeovany e desses que viriam mais adiante, não restavam
dúvidas de que a condição de acadêmica de um programa de pós-graduação vinculado às
ciências humanas, sobretudo, um programa vinculado às ciências humanas inscrito em uma
Universidade pública atrelava, necessariamente, a minha imagem à de alguém que estava ali
para “falar mal da polícia, distorcer o contexto e achar um erro grave onde não tem”, tal qual o
enunciado pelo sargento Jason que, finalmente, conclui sobre o destino daquelas entrevistas:
“você vai pegar um caso que eu te contei de um confronto numa favela em que eu tive que
socorrer um amigo ferido e que o meu tiro pegou de raspão em uma casa. Você vai perguntar
no texto se eu precisava ter atirado naquela situação”.
Desde então, um mesmo questionamento passou a me ocupar no transcorrer de todo o
percurso: o que fazia com que aqueles policiais deixassem seus serviços ou adiassem o retorno
as suas casas, depois de mais de doze horas de trabalho intenso e recebessem com tanta
hospitalidade – de fato, não há como negar – alguém que estava ali diante deles e, neste caso,
uma “acadêmica defensora dos Direitos Humanos”, visando, irremediavelmente, “deturpar” as
suas narrativas? De um novo lugar, mas sob o mesmo prisma que me fizera despertar o interesse

34
Edson Magalhães Ribeiro Júnior. “Policial é morto na Zona Oeste” (Matéria publicada pelo jornal O DIA, em
11/01/2018).
35
Guilherme Lopes da Cruz. “Se eu morrer, morri fazendo o que eu amo’, disse subcomandante da UPP a
amigo” (Matéria publicada pelo jornal O DIA, em 22/02/2018).
49

pela temática em estudo experienciava, outra vez, a condição de suspeita. Agora, entretanto,
dado o saber policial especializado (e militarizado) e as circunstâncias em jogo, a inscrição de
uma certeza flagrante que parecia se antecipar à própria suspeição.

1.1.2.2 Zona Norte 2: o “batalhão de questão”

Batalhão de questão são os batalhões operacionais, os de maior


violência. Teve um dia que eu troquei muito tiro com um carro cheio
de vagabundo na porta de outra unidade. Foi muito tiro!
Sargento Jason, 42 anos, sarará, Zona Norte 1

O caminho teve que ser completado a pé. Ainda que das investidas, foram duas voltas
em vão. Todas as vagas preenchidas. Não havia também nenhum indício de que valeria à pena
permanecer ali e aguardar a saída de algum veículo. A rua, embora ocupada por muitos carros,
não era movimentada. Optei por seguir andando até a porta de entrada do BPM. Quando, enfim,
deparei-me com a estrutura, a dificuldade inicial pareceu óbvia: a unidade era gigantesca, talvez
o triplo da primeira. Aqueles carros todos, provavelmente, pertenciam aos policiais militares
que eu buscava encontrar mesmo antes de conhecer. Um novo batalhão; sentia-me ainda mais
apreensiva que da primeira vez. Cogitei ser a ausência de familiaridade com o local – não
recordava ter visitado aquele bairro em outro momento. As expectativas também não eram
poucas, afinal, eu estava prestes a conhecer “um batalhão de verdade”.
À contrapartida do “diferenciado”, adentrar um “batalhão de questão” e conversar com
policiais de sua tropa se afigurou como requisito básico para quem pesquisa a Polícia Militar
do Estado do Rio de Janeiro. Ao menos era assim nas análises do sargento Jason, que logo
solicitou aos companheiros que atestassem o mesmo. Sua fala sobre o batalhão tinha algo de
visceral que o deixava ainda mais eufórico à medida que rememorava suas experiências
longínquas. Após um extenso período de afastamento por questões ortopédicas 36 , desejava

36
No decorrer das entrevistas, não se fizeram incomuns relatos como o do sargento Jason que, atualmente,
desempenha funções administrativas em decorrência de uma lesão no joelho: “hoje eu não posso mais tá na
rua, não posso mais ir pra confronto. Eu posso colocar a minha vida e a do meu colega em risco. Se eu precisar
correr e o joelho sair do lugar? Eu não consigo. Tem muito acidente e os principais afastamentos são
ortopédicos e psiquiátricos. É muita gente afastada por motivo médico por causa da própria polícia”. Do total
de policiais entrevistados, metade afirmou já ter sido ou estar afastado dos trabalhos de rua pelos mesmos
motivos. A narrativa dos policiais pode ser articulada aos achados de outros estudos, como na pesquisa
desenvolvida por Minayo; Assis e Oliveira (2011, p. 2203-2204): “os agravos osteomusculares têm posição
relevante na saúde desses agentes [...] a maioria dos pedidos de licença médica se deve a problemas de
ortopedia porque a natureza da profissão exige que os policiais corram, saltem, dêem tiro, por isso sofrem
frequentes traumas físicos [...] A relação entre adoecimento físico, sobrecarga de trabalho e sofrimento
50

retornar à unidade. Indago sobre os riscos da rotina de confrontos que ele mencionara há pouco
e recebo em resposta imediata: “mas é isso mesmo que eu quero! É pra lá que eu quero ir”. A
excitação manifesta em cada palavra impostada e o gestual que acompanhava o mesmo fluxo
contagiavam a todos que ali estávamos. Sargento Guilherme, àquela hora, também já falava em
tom muito mais alto e caminhava de um lado para o outro dividindo a atenção entre a nossa
conversa e intermináveis ligações pelo celular. O policial Edson, por sua vez, outrora mais
observador, igualmente, já se posicionava de maneira enfática. A euforia do sargento Jason
permitiu que eu também experimentasse um pouco daquela “adrenalina”, na linguagem
policial-militar. Do esforço de empenhar em palavras a dimensão dos afetos, algumas linhas do
meu diário de campo:

Não teria outra forma de iniciar este relato se não por palavras que tentem situar, de
alguma maneira, as sensações que me atravessam agora. Foram pouco mais de três
horas dentro do BPM, três entrevistas. Certo momento, quatro vozes – a minha e dos
outros três – juntas, no que dava a impressão de um jogo frenético. Perguntas se
dirigiam a mim e mais afirmavam do que indagavam. Escrevo este diário sentindo a
adrenalina ainda percorrendo o meu corpo, alguma coisa que ainda não sei colocar em
palavras aconteceu ali; junto à adrenalina, uma dor de cabeça dilacerante. Todas as
palavras parecem misturadas, as vozes ainda “gritam” aqui dentro. Sinto-me bastante
confusa, mas a decisão de escrever este relato agora, ainda com a mesma roupa no
corpo, tomada por todas essas sensações, é uma tentativa de organizar o que vi, ouvi
e vivi no dia de hoje (Diário de campo, em 23/07/2018).

Suas falas ainda ressoavam tempos depois: “batalhão de questão” era sinônimo de um
“batalhão de verdade” e o que dava o tom às ações de polícia era a exposição ao confronto
armado com homens do tráfico. Seria possível inferir, portanto, que “batalhões de verdade”
denotam a existência de outros menos verdadeiros às funções de polícia? No que tange ao
“diferenciado” foram taxativos: “o que mais tem é ocorrência de som alto e violência contra a
mulher”. Embora não estivesse em meus planos iniciais percorrer dois BPMs de uma mesma
área geográfica, o momento era de recalcular as rotas e acompanhar percursos fazendo uso das
pistas que o campo me oferecia.
Apresento-me na porta de entrada, falo do meu interesse em desenvolver a pesquisa e
entrego a autorização do Quartel-General nas mãos do policial que me recebe. Horário de
almoço da cabo responsável pela função, terei que aguardar o seu retorno. Sento-me em um bar
próximo, algumas pessoas almoçam e, aos poucos, homens de farda também chegam e pedem
suas refeições. Pouco mais de uma hora e eu estava de volta, foi possível encontrar a cabo ainda
na portaria. Conferidas as declarações e a autorização, ela pondera: “com certeza esse batalhão

psíquico é claramente identificada. Observamos maior intensidade de sofrimento psíquico (sintomas


psicossomáticos, depressivos e de ansiedade) entre os policiais militares”.
51

vai ser muito bom pra sua pesquisa, muitas das operações aqui são em favelas”. Falo sobre o
recorte de gênero, o que demandaria que apenas homens fossem entrevistados. Sou questionada
sobre a quantidade de policiais necessários. Combinamos o total de cinco entrevistas – eu
desejava percorrer, ainda, um novo batalhão da cidade; o que acabou não se concretizando
devido ao tempo reduzido que teria para analisar o material de campo –, que seriam iniciadas
na semana seguinte em razão de uma dinâmica atípica, fruto das eleições que se aproximavam.
A pedido da cabo, anoto seu número de telefone para confirmar minha ida no dia agendado.
Neste ínterim, ela mesma passaria a situação ao comandante da unidade.
Tentei contato por duas vezes, não obtive resposta. Optei por não insistir nas ligações e
ir ao batalhão no dia combinado. Dispensando nova apresentação na portaria, fui orientada a
procurar uma sala específica que podia ser vista de onde estávamos. Depois da verificação dos
documentos, a nova policial que me recebia fez de seu telefone uma ligação para a cabo e foi
informada de que o comandante do batalhão já estava ciente e havia permitido minha entrada.
Em sua companhia, percorri alguns corredores na direção de uma sala menor e, em seguida, fui
convidada a aguardar um novo chamado. A policial, que se encaminhava à entrada do espaço,
foi sutilmente interrompida: “acho que ele está ocupado, melhor reportar ao 01”, aconselhou
um companheiro de farda que passava pelo local. Em pouco tempo, outro policial já vinha ao
meu encontro – agora é ele quem segura a autorização do Quartel-General. Sua mão se estende
em sinal de cumprimento: “boa tarde, capitão Gregory37. Tudo bem? A cabo já passou toda a
sua situação, vamos até a minha sala”?
Seriam cinco entrevistas a partir dali e, naquele momento, eu já daria início à primeira:
capitão Gregory – a iniciativa partiu do próprio policial. Antes, porém, uma ligação foi por ele
encaminhada a outro setor:

Preciso de dois polícia da radiopatrulha pra falar sobre abordagem. Não tem nada
demais, só pra falar sobre as ações de abordagem. Inclusive eu tô fazendo parte daqui
da pesquisa, entendeu? Aí pega dois polícia aí da RP que entraram de serviço agora e
pede pra dar um pulinho aqui pra falar comigo. Valeu?! Tchau, tchau (Capitão
Gregory, 37 anos, branco, Zona Norte 2).

De suas advertências, duas observações: “entrevistar um tenente ou um capitão é


importante, entendeu? Porque você vai ter uma visão do comando também. Uma visão de quem
tá na coordenação e também executa a abordagem”. Enquanto recebia das minhas mãos uma
caneta para a assinatura do TCLE, dirigiu-me a pergunta: “mas e se for a minha vontade ser
identificado, posso? Eu quero que me identifique”, finalizando com o barulho seco do seu

37
Rodrigo Limeira Gregory. “PM é morto em tentativa de assalto em Vicente de Carvalho” (Matéria publicada
pela plataforma de notícias G1 Rio, em 14/09/2018).
52

carimbo no papel. Achei curioso o pedido, o que me levou a recordar que no último batalhão,
o único oficial a conversar comigo, o tenente-coronel que me recebeu, igualmente, não se opôs
ao reconhecimento da unidade – o que incorreria também o seu reconhecimento – quando soube
da minha opção pela preservação de quaisquer elementos que identificassem o batalhão e/ou
algum policial entrevistado. Sublinho, contudo, que apesar do desejo do capitão de ser
identificado, não o poderia fazê-lo haja vista que a sua identificação resultaria também a do
batalhão e, por isso mesmo, dificultaria a manutenção do anonimato dos outros policiais da
tropa que confiaram a mim suas histórias.
Os encontros seguintes também aconteceram naquela sala, todos no mesmo dia. Não
circulei pelo batalhão além dos espaços já descritos. Cogitei o pedido, considerei aproveitar o
ensejo quando do encontro de despedida com o capitão Gregory, que me aguardava do lado de
fora da sala: “agora a sua volta aqui vai ser como psicóloga da polícia”. No entanto, por algum
motivo, talvez pela exaustão proveniente da quantidade de entrevistas sequenciadas, não o fiz.
No “batalhão de questão”, ao contrário da última experiência, nenhum dos policiais voluntários
se recusou à gravação da entrevista ou à assinatura do Termo de Consentimento. Vale ressaltar
que, diferente da dinâmica que havia se configurado no primeiro BPM, o Zona Norte 1, neste,
o pedido aos praças foi feito diretamente por um integrante do oficialato que, inclusive, também
se dispôs a participar da pesquisa. Na PM a hierarquia se faz indiscutivelmente presente; ainda
mesmo em situações de aproximação com a comunidade acadêmica. Compreender as relações
hierárquicas próprias à instituição, para nós que fazemos pesquisa nestes espaços, demonstra
ser, portanto, condição fundamental de análise.
Das entrevistas com os PMs, um pedido em comum – aqui, não mais em tom de narrativa
flagrante – instigava a reflexão do meu lugar de pesquisadora: “você não vai falar mal da gente
não, né”? Que nossas práticas instituem verdades, isto é sabido. Todavia, uma pergunta ainda
permanece reverberando: que verdades temos produzido?

1.2 Das convocações amiúde: uma aproximação (in)esperada

“Estou em uma palestra muito boa sobre segurança com um policial. Ele já falou sobre
ethos guerreiro e vitimização na Polícia Militar. Seria maneiro ter uma entrevista dele na sua
dissertação, por que você não tenta mandar um e-mail pra ele”? Quando envolvidos com as
nossas pesquisas, algo de interessante acontece: a temática parece emergir dos mais diversos
lugares. E eu não falo apenas daqueles momentos em que planejamos, organizamos e/ou
dedicamos um tempo específico para realizar as entrevistas, ir às instituições, escrever parte do
53

texto ou, quem sabe, procurar referências sobre um determinado assunto, mas de todas as outras
vezes em que o campo se apresenta vivo, situações em que ele continua engendrando afetações
no pesquisador e também naqueles que participam, com maior ou menor intensidade, dos fluxos
e rumos de nossas produções.
Minha experiência como mestranda não foi diferente. Ao longo dos últimos dois anos,
várias foram as circunstâncias em que me percebi convocada pelo campo: amigos, familiares e
os próprios entrevistados encaminhavam-me notícias, debates, livros, filmes, documentários,
músicas, espetáculos teatrais, artigos, além de outras centenas de imagens, vídeos, postagens e
campanhas que, depois de compartilhadas, mobilizaram as redes sociais38. Ou, ainda, de suas
implicações quando, de igual modo, procuravam-me para dividir, analisar e questionar outros
episódios de suspeição que, mais recentemente, haviam sido presenciados ou vivenciados em
ações de abordagem pela polícia ou no contato com demais civis ao circularem pela cidade.
Não havia escapatória. Eu vinha sendo, permanentemente, convocada pelo meu campo
de pesquisa. Durante evento na empresa onde trabalha, um amigo enviou-me uma mensagem
de texto contando sobre a participação de um PM reformado em uma das palestras destinadas
à atualização de funcionários que fora agendada para aquele mesmo dia. Enquanto ainda assistia
à fala do policial, certificou-se de que eu deveria procurá-lo para uma entrevista. Apesar de não
o conhecer pessoalmente, já havia tido acesso a algumas de suas notícias veiculadas pela mídia
e outros materiais que contavam com a sua contribuição após um longo período na PMERJ. O
modo como tratava os assuntos da área de segurança pública despertou a atenção do meu amigo;
em outros momentos, sua retórica também já havia incitado a minha curiosidade.
Dos anos dedicados à Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, de fato, muito teria a
somar neste trabalho. No entanto, por conta de sua participação ativa nas questões de segurança,
dada a sua visibilidade, supunha que convidá-lo para uma conversa sobre a minha pesquisa
acadêmica não seria tarefa simples. Seu reconhecimento, inclusive, é o que me leva a evitar
demasiadas descrições a seu respeito, de maneira que, caso contrário, implicaria em rápida
identificação. Ainda que tivesse ponderado, por ora, resolvi não investir no que me havia sido

38
Lançada pela Revista Raça – editorial voltado ao público negro –, a hashtag #MeuPrimeiroAbusoPolicial
movimentou, no ano de 2017, campanha nas redes sociais trazendo a público o relato de milhares de pessoas
em suas primeiras experiências de abordagem, expondo um cenário de violência (não apenas física) e violação
de direitos, quando do uso da força policial contra jovens negros/as. A campanha teve como motivação
principal a prisão do jovem Rafael Braga, condenado, à época, a onze anos e três meses por tráfico de drogas e
associação ao tráfico, após relatos de que ele estaria circulando próximo a locais de ponto de venda e
carregando consigo uma sacola com certa quantidade de entorpecentes pouco depois de ter progredido ao
regime aberto. Rafael negou as acusações alegando que sua prisão fora forjada. O jovem ficou conhecido por
ser o único manifestante a permanecer preso após as manifestações de junho de 2013, sob acusação de porte de
material explosivo.
54

recomendado. Talvez devesse procurá-lo em favor de um novo projeto ou algo a ser construído
coletivamente com o grupo de pesquisa da UERJ, o que poderia render maiores chances de
formalizarmos algum contato. Ou até que fosse novamente convocada pelo campo.
Seriam dois dias seguidos de um curso de extensão sobre gênero e segurança oferecido
gratuitamente por uma Universidade pública. Reorganizei compromissos, efetuei a inscrição e,
pouco tempo depois, recebi por e-mail a confirmação da minha reserva de vaga. O número de
alunos seria restrito, dado o limite físico do local escolhido. O curso compunha uma parte das
atividades de uma semana acadêmica; além da extensão, mesas temáticas e abertas ao público
geral também integravam a referida programação. Como a ideia era participar apenas do curso
de extensão – que demandaria disponibilidade nos turnos da manhã e da tarde –, não me atentei
previamente às demais atividades que aconteceriam ao final de cada uma das aulas.
Decidi por ficar no primeiro dia. Uma das professoras responsáveis pela organização do
curso lançaria o seu livro. O horário já estava avançado quando a última mesa acabou, passava
das 22h. Na noite seguinte, antes de esperar pelas mesas, busquei a programação na tentativa
de identificar os convidados e os assuntos trazidos para debate. Das convocações amiúde, a
presença do policial que meu amigo há tempos havia sugerido. Conhecia, enfim, o ex-coronel
da Polícia Militar, Mauro Firmino39. Conforme já mencionado, em razão de sua expressividade
na Corporação, serão suprimidas descrições pontuais. Opto por explicitar apenas sua graduação
e o que diz respeito à autodeclaração de cor/raça – coronel Firmino denota ser negro –, à medida
que considero serem estes vetores fundamentais às análises aqui colocadas. Entendo, ainda, que
tais elementos não se afiguram como enunciações que possam incorrer prejuízos à recusa de
sua plena identificação.
A conversa aconteceu semanas mais tarde em uma instituição localizada na Zona Sul da
cidade, duas horas após o combinado devido a uma reunião emergencial. Aguardei em sua sala
até que retornasse. Avançamos mais do que o esperado e coronel Firmino sugeriu um novo
encontro. As linhas que se seguem têm bastante de Firmino. Elas falam do coronel e de outros
vinte e três homens. Além de colocarem em análise as ações de abordagem pela Polícia Militar,
a construção da suspeita, implicação da pesquisadora no processo de pesquisa, elas também
traçam afetos, falam de percursos, desvios, tensões, silêncios, estranhamentos, capturas, forças,
provocações, incertezas, resistências, medos, fluxos, sentidos, partilhas, desmanchamentos e
convocações. Ademais, se me permitem, ainda, acrescentar um último elemento: são linhas que
se pretendem, sobretudo, ao traçado de novos começos.

39
Mauro Jorge Guimarães Firmino. “Policial militar morre baleado em tiroteio no Morro do Juramento”
(Matéria publicada pelo Jornal EXTRA, em 23/10/2018).
55

2 SANGUE AZUL: SOBRE OS CONSTRUTOS DE UMA POLÍCIA


MILITARIZADA

É inegável que o Estado Democrático de Direito, instituído sob a vigência da


Constituição Federativa do Brasil de 1988, – conjunto de normas que oficializa o processo de
redemocratização no país – enredou uma nova moldura institucional, alavancada por um intenso
período de resistência popular contra o ordenamento autoritário infligido pelo governo durante
mais de duas décadas. Todavia, apesar da extrema importância da democracia nascente como
fator decisório às diversas conquistas históricas que se anunciaram a partir de então, podem ser
encontrados, até hoje, resquícios das marcas deixadas pelos anos da ditadura civil-militar (1964-
1985) e por sua fase anterior, o que pelo olhar do antropólogo, cientista político e ex-secretário
nacional de segurança pública, Luiz Eduardo Soares (2013, p. 6) significaria dizer que “o novo
tempo prometido, longamente ansiado, abria as cortinas para o melancólico espetáculo das
repetições. A dramaturgia das mudanças estreava sob o signo da continuidade”.
Entendendo os arranjos estruturais como condições preponderantes à fundação de
normativas a serem seguidas em uma dada entidade, tomemos para análise as conformações da
Polícia Militar enquanto parte integrante de um complexo sistema responsável pela gerência da
segurança pública e defesa social. Demonstra-se importante sublinhar que não anseio um
mergulho profundo na história das polícias, afinal, além de não se constituir como objetivo
desta escrita, tampouco haveria competência historiográfica para fazê-lo. Intenciono, porém,
apontar dispositivos que indiquem pistas e façam ver e falar as políticas de segurança pública
no/do estado (MELICIO, 2014).
O esquadrinhamento da história das polícias é uma prática recente. Até os anos 1960,
havia apenas um único material oficial de investigação, organizado, em sua maioria, pelos
próprios agentes da segurança pública. O interesse (ou a falta dele) de se estudar a história das
polícias refletia, dentre outras questões, o afastamento entre a academia e a polícia, tal como o
consequente acesso limitado aos documentos informativos, há muito, já valorizados pela
instituição. Neste sentido, quando do acompanhamento de seu percurso histórico, podemos
apreender que o policiamento no Rio de Janeiro data do início do século XIX, antes mesmo da
independência do Brasil. Foi neste período, em meio à sociedade conservadora de base
escravagista e, portanto, de intensa presença negra pelas ruas, condicionado pelos conflitos
políticos entre o poder central e as lideranças locais, que despontaram as primeiras versões das
duas principais instituições policiais conhecidas hoje no estado: a Polícia Civil e a Polícia
Militar (SOUSA; MORAIS, 2011).
56

A chegada, no Brasil, dos membros da Comitiva Real portuguesa fugindo dos projetos
expansionistas de Napoleão Bonaparte, trouxe, em 1808, da cidade de Lisboa, a Intendência
Geral de Polícia, formada no ano de 1762. Inspirada no modelo europeu, sua função era zelar
pelo abastecimento da Capital, a cidade do Rio de Janeiro, e assegurar a manutenção das
sociedades hierárquicas garantindo a permanência do controle sob domínio das elites pelas
forças de ordem. Como resultado dos recentes acontecimentos, no mesmo período fora criada
a Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado do Brasil, instituição que deu origem ao
modelo de Polícia Civil da atualidade e, posteriormente, em 1809, à Guarda Real de Polícia,
relativa à Polícia Militar. A última, na qualidade de força policial em tempo integral, detinha
ampla autoridade para prover a manutenção da ordem e perseguir sujeitos criminosos.
Subordinada ao Intendente-Geral de Polícia, não possuía finanças próprias. Com métodos que
refletiam a violência e as arbitrariedades da vida nas ruas e da sociedade, devido à ausência de
manejo para gerenciar a crise, foi extinta alguns anos mais tarde (SOUSA; MORAIS, 2011).
Segundo Queiróz (2015, p. 34):

A criação dessa força militarizada teve como finalidade fortalecer o policiamento das
ruas, combater os vários tipos de crimes e proteção à elite dominante do Rio de
Janeiro. Qualquer tentativa de revolta, especialmente de sujeitos escravizados,
cidadãos negros e mulatos, deveria ser entendida como questão de segurança máxima
no Brasil.

Neste tocante, em 1831, fundou-se o Corpo de Guardas Municipais Permanentes, força


policial subordinada ao ministro da Justiça (QUEIRÓZ, 2015), que passou a atuar em paralelo
com a Guarda Nacional do Rio de Janeiro – corpo não-remunerado e obrigatório, que na prática,
esteve a cargo dos pequenos comerciantes, artesãos e demais membros da burguesia local.
Dentre outras razões, os inúmeros conflitos envolvendo “nacionais” e “permanentes”,
sobremaneira, causados pela diferença de status social e pela superposição de atribuições
acarretaram, no ano de 1835, a dispensa da Guarda Nacional da obrigação de policiamento
ficando sob sua responsabilidade apenas funções cerimoniais e complementares ao serviço de
polícia em caráter emergencial (MUSUMECI; MUNIZ, 2000).
No referido momento histórico, as ações de abordagem já haviam surgido como prática
legal, no ano de 1825, com o “toque de Aragão” – como ficou conhecido um conjunto de normas
policiais específicas. Sob a assinatura do intendente de polícia Francisco Alberto Teixeira de
Aragão, “o decreto autorizava as patrulhas policiais a interrogar todos os que fossem
considerados suspeitos. A recusa [...] seria considerada resistência à autoridade, podendo a
patrulha utilizar a violência que as circunstâncias exigissem” (BICALHO, 2005, p. 29). É neste
contexto que o instrumento operacional, tempos mais tarde, recebe atualização demandada às
57

forças de ação da Polícia Militar que, conforme conhecemos hoje, vem a ser instituída apenas
em 1920, já no período republicano (MUSUMECI; MUNIZ, 2000).

É dentro dos parâmetros históricos assinalados que, a partir de 1831, a Polícia Militar
do Rio de Janeiro surgiu como uma força armada instituída para ser o esteio da
manutenção da ordem e modelo para as que fossem criadas no resto do país. Passou
por reformas menores e mudanças de nome [...], mas manteve notável continuidade
na sua composição e missão desde 1831. Constituiu-se desde o início, em sua
organização interna e em seu regime disciplinar, como uma corporação militarizada.
Foi criada como um instrumento de coerção da autoridade do Estado e em forma de
resposta local, com recursos locais, às necessidades de uma sociedade escravocrata
que se mantinha unida pela ameaça e pela dominação física e moral [...] A contradição
entre a ordem pela lei e a arbitrariedade na prática está na raiz da formação histórica
da corporação (MINAYO; SOUZA; CONSTANTINO, 2008, p.52).

A nova ordem política que eclodiu com a Proclamação da República, em 1889,


reorganizou o sistema repressivo. No aspecto social, a abolição da escravidão promoveu
afetações consideráveis ao trabalho policial. O controle que se afirmava vigilante às classes
urbanas e perigosas teve de se reinventar voltando, agora, seus aparatos à classe rural que
ocupava os grandes centros da cidade. Segundo assevera Holloway (1997 apud SOUSA;
MORAIS, 2011, p. 6), diante do recente cenário, influenciados também pelo direito positivo,
outros equipamentos e mecanismos de controle social precisaram ser desenvolvidos.

O Código Penal foi reformado em 1890. Uma vez que a ênfase deveria recair sobre o
criminoso e não sobre o ato criminal, o novo código passou a dar maior importância
às práticas comuns das ditas classes perigosas como vadiagem, prostituição,
alcoolismo e embriaguez. A ideia era permitir um melhor controle dos grupos
perigosos, na medida em que seus hábitos passaram a ser considerados crime
(COSTA, 2004, p. 91).

Com o golpe de 1964, a sociedade viveu a implantação de um regime marcadamente


autoritário, que limitou a participação política ampliando o poder das Forças Armadas pela
lógica de combate ao elemento subversivo, o inimigo interno, presente na Doutrina de
Segurança Nacional. Em consonância com as ações repressivas das Forças Armadas, que
detinham o monopólio da coerção, a violência policial foi usada como dispositivo contra a
dissidência política da época reorganizando, assim, o aparato policial existente. Sua
competência foi ampliada e as polícias militares, únicas forças policiais dedicadas ao
patrulhamento ostensivo, passaram a ficar sob a centralização, coordenação e subordinação do
Exército40, o que já vinha sendo ensaiado há alguns anos (SOUSA; MORAIS, 2011).

40
D’Elia Filho (2015) salienta que, ao contrário de outros Estados Democráticos de Direito, as polícias militares
aparecem em nosso ordenamento constitucional como forças auxiliares do Exército, fazendo com que o Brasil
se diferencie de outros países democráticos.
58

Mais tarde, com a fusão entre os Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, em 1975,
as polícias militares das duas unidades são agregadas, dando origem à atual Polícia Militar do
Estado do Rio de Janeiro. Em 1983, os comandos das polícias militar e civil, que haviam sido
unificados em 1962, separam-se outra vez (MUSUMECI; MUNIZ, 2000).

O regime ditatorial implantado em 1964 aprofundou ainda mais a cisão entre a


população e a polícia. Também abriu um enorme fosso entre a Polícia Militar e a
Polícia Civil, pois o decreto-lei n. 667, de 2 de julho de 1969, deu ao Exército o
controle e a coordenação das polícias militares. Em oposição à corporação militar,
cujo papel seria guardar ostensivamente a ordem interna e ser reserva do Exército
Nacional, a corporação civil viu reafirmada sua autoridade investigativa como
primeira instância da função judiciária (MINAYO; SOUZA; CONSTANTINO, 2008,
p. 55).

Após mais de duas décadas, no ano de 1985, chega então ao fim o período de ditadura
civil-militar. Com o advento de uma nova ordem interessada na construção de uma sociedade
livre e justa, o paradigma de combate das políticas de segurança pública e suas polícias deu
lugar às ações de natureza preventiva que contaram com a inserção da gestão participativa,
alicerçada pela imprescindibilidade da inclusão popular no que tange à problemática da
(in)segurança. A Constituição de 1988 trata pela primeira vez da segurança pública em um
capítulo à parte. Consoante ao momento nascente de valorização da cidadania e dignidade da
pessoa humana, fundamentos da República Federativa do Brasil, foram incorporados direitos
materiais e formais ao ordenamento pátrio firmando o marco do garantismo no país (BONI,
2006). Todavia, mesmo que das importantes mudanças de enquadramento, o texto legal, ainda
hoje, mantém a ambiguidade consagrada no regime militar. À medida que estabelece às PMs
subordinação aos governadores das unidades federativas conferindo autonomia para elaborar
políticas de segurança, também permanece afirmando o lugar de forças auxiliares e reserva do
Exército à Polícia Militar e ao Corpo de Bombeiros (MUSUMECI; MUNIZ, 2000).
Apesar dos reconhecidos avanços em favor da constituição de uma sociedade pensada
a partir da lógica de garantia dos direitos, por sua composição histórica, uma longa estrada de
lutas ainda precisa ser percorrida para que a cidadania ultrapasse o espectro da conceituação
formal e seja, de fato, incorporada enquanto expressão do direito de todos e não apenas como
privilégio (também direitos) de alguns setores restritos. Jacqueline Muniz, em participação que
abre o longa-metragem documental “Relatos do Front: fragmentos de uma tragédia brasileira”
(2018), destaca:
No Brasil, a polícia chegou primeiro depois chegou o Estado, depois a Lei e por último
a cidadania. É dizer que no Brasil durante muito tempo, Brasil colônia, Brasil império,
a polícia atuou como uma espécie de governo. Governo e polícia significavam quase
a mesma coisa; na contramão do que seria o processo liberal e de democratização. No
mundo inteiro, democrático, o que se fez foi reduzir e tornar especializado o poder de
59

polícia. No Brasil, o que se fez foi ampliar o poder de polícia e confundi-lo com toda
a estrutura do Estado [...] Essa foi a lógica de um liberalismo autoritário brasileiro que
entendia que nós, cidadãos comuns, éramos incapazes de nos civilizarmos e que,
portanto, precisávamos de lei e ordem. Cada vez leis mais duras e cada vez mais
ordem vinda de fora, de cima para baixo. É daí que surge o lema: nós contra eles e
que começa o processo de militarização da segurança pública no Brasil. Uma polícia
só poderia ser uma boa polícia se ela se afastasse da sociedade porque a sociedade
poderia corroê-la, a sociedade poderia contaminá-la com as suas más práticas e com
seus maus hábitos.

Desta maneira, apontar os trajetos político-institucionais das polícias significa estar


atenta ao amplo debate dos rumos democráticos adotados na cidade do Rio de Janeiro e no país.
A aproximação entre os segmentos das elites e o controle do aparelho estatal no processo de
formação das polícias possibilita indicar, talvez, que a correspondência da cidadania enquanto
expressão máxima do Estado de Direito carrega consigo princípios e valores ora recusados à
determinada fração da sociedade. De acordo com o estabelecido por Pinheiro; Izumino e
Fernandes (1991, p. 108), “há uma larga continuidade nas práticas de arbítrio policial na
ditadura militar e no regime de transição, mesmo porque as agências repressivas pouco se
transformaram durante este período”. Neste tocante, ainda que a atmosfera do território tenha
sido oxigenada pelo ideal democrático, a arquitetura organizacional hierárquica e
disciplinadora, instrumentalizada no decurso da história e, em especial no regime militar, parece
ter permanecido a mesma.

2.1 Paz sem voz: da narrativa de guerra às forças de ocupação na cidade

Em cada recanto do Estado deste amado Rio de Janeiro


Faremos ouvir nosso brado, o grito eterno de um bravo guerreiro!
Hino da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro

No início da tarde de 16 de fevereiro de 2018, a notícia da assinatura pelo então


presidente, Michel Temer, do decreto que autorizava a intervenção federal na segurança do
estado do Rio de Janeiro, com validade até 31 de dezembro, último dia do ano e de seu mandato
na Presidência da República. Em pronunciamento inicialmente veiculado pela mídia televisiva,
justifica a decisão de governo:

Os senhores sabem que o crime organizado quase tomou conta do estado do Rio de
Janeiro. É uma metástase que se espalha pelo país e ameaça a tranquilidade do nosso
povo. Por isso, acabamos de decretar, neste momento, a intervenção federal na área
da segurança pública do Rio de Janeiro. Os senhores sabem que eu tomo esta medida
extrema porque as circunstâncias assim exigem. O governo dará respostas duras,
firmes, e adotará todas as providências necessárias para enfrentar e derrotar o crime
60

organizado e as quadrilhas [...] As polícias e as Forças Armadas estarão nas ruas, nas
avenidas, nas comunidades e, unidas, combaterão, enfrentarão e vencerão,
naturalmente, aqueles que sequestram do povo as nossas cidades [...] A desordem,
sabemos todos, é a pior das guerras. Começamos uma batalha em que nosso único
caminho só pode ser o sucesso e contamos, naturalmente, com todos os homens e
mulheres de bem ao nosso lado apoiando e sendo vigilantes nessa luta [grifos nossos]
(TEMER, 2018).

A aprovação do Congresso Nacional viria poucos dias mais tarde. De forma objetiva
isto significava que, a partir de sua publicação, a segurança pública do Rio de Janeiro deixava
de ser responsabilidade da esfera estadual e passava a ficar sob o comando de um interventor
militar. Para além do emprego das Forças Armadas, o documento legitimava também a gestão
militarizada do controle urbano em substituição à função do poder estadual. Nomeado para o
cargo, o General do Exército Walter Souza Braga Netto, recebia a incumbência de controlar a
Polícia Civil, a Polícia Militar, os bombeiros e a administração penitenciária fluminense. Ainda
que dos ensaios anteriores de ocupação pelas Forças Armadas em operações de Garantia da Lei
e da Ordem (GLO) durante recentes eventos de grande público no Rio de Janeiro, esta era, na
prática, a primeira vez, desde a promulgação da Constituição de 1988, que um estado brasileiro
ficava sob o comando e intervenção do governo federal.
A produção disseminada de que o estado do Rio de Janeiro enfrenta, na atualidade, uma
incontestável narrativa de guerra provoca na população sentimentos de medo e insegurança,
que fortalecem o apelo social por maiores investimentos em segurança pública aliada a uma
política de disciplinamento e sofisticação dos motores punitivos que ordena, controla e
extermina as classes ditas perigosas, tendo como base a presunção de que o uso máximo da
força repressiva atuaria como expediente solucionador da problemática da violência urbana
(COIMBRA, 2001). Bueno e Lima (2018, p. 10), com base na pesquisa “Rio sob Intervenção”,
do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Instituto Datafolha, que teve
como um de seus principais objetivos a ampliação da visão sobre medo, risco e vitimização da
população carioca questionam as justificativas do governo valendo-se dos resultados do estudo:

O que torna a crise vivida pelo Rio de Janeiro tão diferente da de tantas outras cidades
a ponto de justificar a intervenção do Governo Federal na Segurança Pública? A julgar
pelos indicadores de criminalidade e vitimização, algumas dezenas de cidades
brasileiras provavelmente estariam à frente do Rio de Janeiro em uma lista de
prioridades [...] Uma sociedade em que 92% da população tem medo de ser ferida ou
morta por uma bala perdida ou de ficar no meio do fogo cruzado entre criminosos e a
polícia é uma sociedade que, por viver sob a égide do medo e de uma violência difusa
que pode fazer qualquer pessoa vítima e em qualquer lugar, clama por soluções [...]
Ainda assim, a violência está longe de ser democrática. Negros e moradores das
comunidades permanecem como as maiores vítimas dessa violência que aterroriza
todos e todas.
61

É neste cenário, investido de terror, que a política de proibição às drogas realimenta a


engrenagem do sistema ostensivo colocando, em lados opostos, no front de combate, policiais
militares e varejistas do comércio ilícito de drogas 41 . O tráfico de entorpecentes enquanto
importante atividade gerida por grupos armados na cidade vem arregimentando cada vez mais
antecipadamente um elevado número de crianças e jovens, majoritariamente oriundos dos
setores menos favorecidos, em meio a uma realidade sócio-político-econômica complexa e
desigual, apregoada pelas exigências do mercado consumidor nos níveis da distribuição de
renda e acessibilidade aos direitos e garantias fundamentais. Ante um cenário de opções
escassas, o tráfico de drogas, ainda que fundamentado por vias perversas, ganha destaque como
força geradora de capital imediato e revela-se como sedutora alternativa frente às demandas da
sociedade e da cena neoliberal42 (BATISTA, 2003), o que também foi explicitado pelo jovem
Matheus em sua fala sobre uma comunidade da Zona Sul: “uma favela não ter tráfico é prejuízo
porque tem muita gente pra comprar. Você vê as pessoas do mais alto escalão subindo o morro
e deixando dinheiro lá”.
Na contrapartida, os policiais militares. Ibis Pereira (2018, p. 25), coronel de polícia,
assinala que há décadas submetemos nossos policiais, sobretudo, os militares, ao contexto da
guerra à medida que as atuais políticas seguem insistindo no enfrentamento ao crime pela
perspectiva do combate armado, ou seja, homens e mulheres submetidos ao “embrutecimento
moral exigido pela agressividade continuada, palco onde o medo reina absoluto, esmagador”.
O coronel ainda assevera que:

Esse medo específico da violência constituiu uma subjetividade, porque da violência


não apenas se morre, mas também se vive, como ensina o filósofo francês Frédéric
Gros. Mas o que isso significa? É dizer que o medo, como produto da violência, esse
afeto triste que se alastra e ameaça tomar conta de tudo altera nossos marcos
referenciais, nossas noções de certo e errado, nossos sentimentos de solidariedade e
compaixão. Esse medo corrói, degenera. Esse medo público, ao se espraiar pelo
conjunto da sociedade [...] embota a sensibilidade, fere a nossa humanidade e no limite
conduz à insensatez.

A difusão do medo atrelado à desqualificação do “outro” atua como mecanismo indutor


e justificador de políticas autoritárias como nos fala Batista (2003). Assim, mais do que do lugar
de sentimento ou da estrita emoção, o medo parece operar politicamente delimitando o inimigo

41
Embora a temática da segurança pública abarque discussões muito mais amplas, opto por fazer um recorte na
questão das drogas e da produção de narrativas de guerra, pois, compartilhando das ideias do delegado de
Polícia Civil Orlando Zaccone D’Elia Filho (2011, p. 115), bem como acompanhando as pistas ofertadas pelo
campo, as drogas (ou a guerra às drogas) se constituem como “o carro chefe da criminalização da pobreza
através dos discursos de lei e ordem disseminados pelo pânico” e, portanto, atua como um dispositivo que faz
ver e falar sobre a construção da suspeita e seus desdobramentos, tema fundamental de nossa análise.
42
Vale lembrar que este se revela apenas como um dos fatores que levam ao ingresso no tráfico de drogas, não
sendo possível, portanto, estabelecer uma relação casuística única e determinante.
62

como àquele passível de ser eliminado em nome da ordem e da defesa social produzindo, ainda,
tantos efeitos mais. Nas palavras de Bicalho (2016), o medo que opera em nós é também o que
fundamenta tais políticas e orienta as ações de polícia. Este medo mesmo que legitima decisões
de governo e que, portanto, faz o policial abordar, é o que compõe cenários cotidianos no
circular pela cidade como o relatado por Davidson Farias43, jovem negro, 26 anos, morador da
Zona Norte, que denota a complexidade da questão quando se percebe atravessado pela suspeita
de formas distintas. Davidson é, ainda, filho de agente policial-militar, o que o leva a produzir
narrativas imbricadas às experiências do pai.

Teve um dia que eu tava perto de casa, só que tava à noite, tempo frio e eu tava de
casaco. Desci no ponto de ônibus e fui andando até minha casa. Aí mais na frente
tinha uma senhora e eu identifiquei que ela era mãe de uma criancinha que estudava
na creche da minha mãe. Onde eu moro tem a parte que são as ruas e tem a parte da
linha do trem, que não tem nada. A senhora tava andando na minha frente na parte
que são as ruas. Aí teve uma hora que ela começou a olhar muito pra trás e aí eu vi
que ela tava com medo. Só que eu não ia falar: “oi, sou eu”. Eu fui andando normal
no sentido da minha casa e aí ela foi e atravessou para o outro lado, pro lado da linha
do trem. E, pô, vai fazer o quê do outro lado? Então a gente percebe essas paradas.
Quantas vezes no ônibus num tem um cara negro com os traços que você acha de
assaltante e fica com medo? Só que nisso eu luto, é uma luta minha interna pra não
ser assim. Eu acho que a cultura que a polícia vem é a mesma da nossa e aí tem o
outro fator que eles estão no front, eles estão lidando com traficante, estão lidando
com roubo e com outras coisas mais (Davidson, 26 anos, negro, Zona Norte).

Neste tocante, o Estado lança mão de sua autorização para gerir a vida e a morte, em
sua maioria, de jovens pretos, pobres e moradores das áreas favelizadas. Sob as lentes da guerra,
o Brasil é o país recordista nos índices de letalidade violenta civil e militar: a polícia que mais
mata é também a que mais morre (D’ELIA FILHO, 2015), conforme constatado através de uma
série recente de dados quantitativos aqui apresentados44. Nas palavras do jovem Matheus Melo,
esta é uma realidade nitidamente expressa no cotidiano das favelas cariocas. Ao que se põe a
declarar: “eu procuro pensar muito o lado do policial nessa história toda porque ele também é
pobre igual a gente. A questão da polícia é pobre batendo em pobre. Eles também são oprimidos,
só que ao mesmo tempo eles são a máquina que o Estado usa pra oprimir”.
Como justificativa ao emprego de uma política que se propõe instrumento de controle e
repressão, por fundamentações discursivas como as de Michel Temer – à época Presidente da
República em exercício – ao anunciar o decreto da intervenção direto do Palácio do Planalto, a
segurança pública, tem se constituído como um dos principais desafios para a consolidação do

43
Davidson Farias de Sousa. “Homem morre após ser baleado na Rocinha” (Matéria publicada pelo jornal O
DIA, em 29/03/2018).
44
Circula pelas redes sociais uma campanha da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro com a hashtag
#NãoSomosNúmeros, que busca chamar a atenção da sociedade e das autoridades para o número elevado de
policiais militares mortos no estado.
63

Estado Democrático de Direito na atualidade. Jacqueline Muniz (2018), antropóloga, cientista


política e uma das vozes mais expoentes no debate nacional sobre a temática da segurança, em
entrevista ao Él País Brasil, fala sobre a criação de um cenário propício à intervenção militar:

Governos ilegítimos e impopulares não têm como produzir coesão ao seu projeto de
Governo e sociedade. A única forma é produzir coercitividade. Então ele precisa
fabricar ameaças para ofertar proteção. E isso não é segurança porque essa proteção é
seletiva, desigual e excludente. Fabricam-se guerras artificiais para buscar pelo medo,
que é um péssimo conselheiro e faz com que abdiquemos de nossos direitos em nome
de um salvador da pátria (ÉL PAÍS, em 23/02/2018).

Os discursos oficiais asseguram a garantia de ordem à presença e intervenção militares.


Marcas de um modelo de controle que valoriza a supressão do conflito por meio do uso e abuso
da força estabelecendo sistemas penais potencialmente genocidas, uma palavra chocante para a
hipocrisia conservadora, como afirma Florestan Fernandes (2016). A truculência prevista nas
políticas de guerra adotadas no Brasil de modo geral e, de forma mais intensa, no Rio de Janeiro,
tem nos regimes proibicionistas, isto é, na combinação entre aspectos morais, seletivos e
repressivos a justificativa necessária para fomentar a letalidade estatal e também a legalidade
autoritária (RODRIGUES, 2012).
Cultura punitiva que perpassa a nossa formação, produzindo e reproduzindo a lógica do
extermínio por intermédio de práticas belicistas e, ainda, despolitizando conflitos sociais – a
evidência de um cenário trágico onde os “indignos de vida” encontram-se sujeitos a toda sorte
menos em razão de um erro de procedimento de policiais despreparados, e mais em função de
uma política de Estado que recebe apoio de parcela significativa da sociedade: “punir policiais
que são identificados no abuso do uso da força não irá resolver o problema [...] Punir os policiais
é a forma que o Estado tem de não se comprometer com a sua própria política” (D’ELIA
FILHO, 2015, p. 5).
O poder da disciplina e da coerção sobre corpos subjugados, sobretudo, denegridos,
permite ver apenas uma das partes de um sistema muito mais complexo. No entanto, de mesmo
modo, faz-se necessário falar das outras marcas deixadas pela aplicação seletiva da violência.
Produzido pelo Conselho Federal de Psicologia com o apoio do regional do Rio de Janeiro, no
documentário “Intervenção na cidade: militarização do medo” (2018) 45 , Bicalho atesta que
“uma intervenção militar produz efeitos que são sempre muito concretos e a concretude desses
efeitos, ela se faz tanto por meios objetivos como por meios subjetivos”. Relatos como os de

45
Conteúdo disponível em: <<https://youtu.be/BeaRTMRWjPE>>. Acesso em: 24 de março de 2018.
64

Luiz Paulo46, jovem negro, morador de favela e estudante universitário, que viveu duramente
os ataques das forças de Estado, não somente ajudam a elucidar como parecem fornecer pistas
importantes ao que temos discutido até aqui.

Quando você é abordado várias vezes uma hora você acaba entendendo esse processo.
O que tem que fazer e a forma que tem que agir. Mesmo sabendo de berço o que eu
deveria fazer, no começo do processo de intervenção militar eu ficava meio nervoso,
mas aí depois que fui abordado várias vezes, fui criando uma casca. Não aconteceu só
comigo, mas com uma porrada de morador. Tem um amigo meu que o processo dele,
por ter família envolvida com o tráfico, é ainda pior. Pra mim já é ruim porque eu sou
um homem negro na favela, mas um homem negro na favela que não tem nenhum
histórico de nada, nenhum parente envolvido. Ele já tinha, o processo dele ser visto
como um suspeito constante é muito maior. Então ele criou essa casca antes de mim
[...] Eu era revistado indo da minha casa pra padaria umas cinco vezes, por cinco
patamos diferentes. Inclusive, um dia, o primeiro grupo me viu sendo revistado uns
cem metros antes, aí o outro grupo já veio revistando. Isso tudo é pra implantar o
terror, um terror físico e psicológico. Principalmente da galera que ficou um ano com
Exército e tanque de guerra na sua porta. Psicologicamente, não tem como você voltar
ao convívio natural de antes porque a gente vai ficando louco com esse processo.
Sábado tem um aniversário surpresa numa outra favela e eu falei que não ia e minha
companheira reclamou. Eu falei pra ela que ela veio de fora, não é da favela, não
passou por esse processo. Depois de ter passado um ano com a intervenção militar no
meu território, entrando e saindo, tanque de guerra e tiroteio direto, galera próxima a
mim morrendo e abordagem escrota, eu não consigo pisar numa outra favela agora
porque essa é uma parada que me ferrou psicologicamente (Luiz Paulo, 25 anos,
negro, Zona Norte).

Na fala de Luiz Paulo notamos que apesar de “saber de berço” como operar reações, ou
seja, ainda que tenha sido ensinado, em certa medida, a se antecipar aos riscos diários do contato
com a polícia, denota que foi a periodicidade das ações que tornou possível a criação de uma
“casca” diante dos conhecidos procedimentos executados pelas forças de segurança em vias da
promoção e manutenção da ordem pública. Neste sentido, o que o jovem parece sugerir é que,
na relação com a polícia, sobremaneira, na relação entre os agentes de segurança e jovens
pretos-pobres-favelados são construídas tecnologias que passam pela aprendizagem “dos mais
experientes”, mas também exprimem outras que se constroem pela repetição, dadas as
constantes violências que precisam enfrentar. Não à toa, Luiz Paulo – nome fictício acionado
para apresentá-lo –, durante boa parte da entrevista, reforçou o desejo (efeito do medo) de ter
seu nome verdadeiro suprimido: “eu já sou exposto a muitas questões, não dá pra ter meu nome
divulgado”. Na mesma direção, ele ainda acrescenta:

É só eles cismarem com você. Aconteceu comigo quando eu tava no bar com uma
amiga minha argentina, aí a patrulha do Exército parou com fuzil pesado e ela ficou
com medo porque não tá acostumada com isso. Ela tava toda tremendo e eu falando:
calma, calma. Aí eles mandaram levantar, revistaram, mexeram na nossa mochila,
mas só mexeram na dela porque eu tava, né? Tava eu, mais um amigo preto e ela. E é

46
Luiz Paulo Bonaneti Neto. “Adolescente morre após ser baleado na Zona Oeste do Rio” (Matéria publicada
pela plataforma de notícias G1, em 15/01/2018).
65

um terror mesmo, eles mexem em tudo. E ela quieta, não falava nada. Nunca viu um
processo desses. Nesse dia eu vi que me acostumei e internalizei esse processo de
violência diária que pra ela foi susto (Luiz Paulo, 25 anos, negro, Zona Norte).

Nas entrelinhas (ou nem tanto), o exercício de uma política de militarização das vidas
cotidianas, discursos e práticas que apelam à lei e à ordem e que se fazem por meio da
disseminação do medo e da contenção de alguns corpos. Uma demonstração da escolha do
governo de tratar as investidas na segurança pública pela perspectiva unilateral do confronto,
resquícios de um tempo de ditadura ainda não superado. Com isso, justificam-se os abusos, as
ações ilegais e o extermínio do inimigo (MUSUMECI; MUNIZ, 2000). Medidas de exceção
naturalizadas e postas em funcionamento produzindo discursos e materialidade, a encomenda
de um pânico coletivo acentuado, progressivamente, por notícias e declarações das próprias
autoridades que anunciam os investimentos na força militarizada como possibilidade única de
contenção do mal e estabelecimento da paz diante da gravidade dos fatos. Das rupturas e
continuidades inscritas em nossa conformação, de uma trama histórica forjada pela violência,
o processo parece tender a continuar praticamente o mesmo.

Eu vejo um tanque e me dá mais terror do que ver um Caveirão porque o Caveirão é


um terror constante, operação sempre rola, mas você sabe que é uma parada
focalizada: hoje vai ter e agora vai ter outra daqui a um mês. Só que tanque de guerra
eu fiquei vendo aquilo apontado pra minha casa, quando saía dava de cara com tanque
de guerra apontado pra mim. Os caras revistam, tiram tudo, você tem que andar com
a identidade o tempo todo [...] Se tem um nome que eu posso usar é processo de terror
mesmo, um terrorismo de Estado. A intervenção militar é um terrorismo de Estado
contra a população marginalizada, preta, pobre e moradora de favela (Luiz Paulo, 25
anos, negro, Zona Norte).

Um passado policialesco e autoritário que não se configura como referência esquecida,


como um modelo ultrapassado, mas, ao contrário, parece permanecer à espreita no momento
presente. Dado que, neste composto, a forma sobrepõe-se ao conteúdo, uma vez que é pela
polícia, um dos braços fundamentais do Estado, que o texto constitucional é (ou se propõe a
ser) aplicado, nada mais razoável de se constatar do que um tempo de violações que acomete,
inclusive, os seus próprios operadores, ainda sendo mantido por uma instituição que não se
atualizou ante o novo cenário. Tempos de um processo de violência demarcado pela instauração
de um terror que, mesmo hoje, segue empregado em corpos e espaços específicos, produzindo
relações de poder que se desdobram em modos de ser e perceber o mundo, sob o enredo de uma
política que usa a economia da droga como elemento legitimador do sistema penal (SOARES,
2015; BATISTA, 2003).
Para além de reprimir a circulação de substâncias consideradas ilícitas, este mesmo
sistema exercita seu poder de vigilância que recai sobre a responsabilidade das agências
66

policiais nas áreas favelizadas, seja limitando a liberdade de ir e vir através de prisões para
averiguação ou restringindo reuniões e o próprio lazer destas pessoas, traduzindo-se, portanto,
no poder de intimidação e controle aplicados sobre as populações pobres. Segundo D’Elia Filho
(2011), a seletividade da vigilância em razão da divisão do espaço urbano faz com que sejam
menores as oportunidades de privacidade dos seguimentos periféricos. Nesta perspectiva, Luiz
Paulo parece dialogar com o autor:

Isso é normal, né? Sua cultura é cultura de favela. Você faz uma festa fechando a rua,
você sempre fez isso durante cem anos. Todo mundo fez, sua avó já fazia isso. Aí
chega um militar e diz que você precisa de um alvará pra fechar a rua e se você não
tem alvará eles passam com um tanque por cima da sua festa. Então isso foi gerando
ainda mais tensões e confrontos. É o que eles têm hoje: um mandado coletivo. Eles
entram em qualquer lugar e fazem o que querem. Por exemplo, outro desses contatos
que me marcou é que lá na favela você tem alguns espaços pra se exercitar e eu lembro
que tava correndo de manhã, num espaço bonito, com várias árvores, o que dentro da
favela é difícil de ver. Eu ainda penso nisso porque a violência já começa no espaço:
os caras colocaram tanque, guarita, passavam com tanque por cima de tudo, acabaram
com a mata. O único espaço de lazer que a gente tinha, não precisava disso. Primeiro
processo de agressão foi esse. O segundo foi que eu tava correndo ali em volta de um
monte de tanque, com bermuda de correr, então não levei identidade porque fui correr
no lugar onde corro há anos. Ali é espaço mesmo de correr, não ia levar identidade
pra lá já que em uma hora estaria em casa. Porque é isso também, eles pedem RG, só
serve isso e carteira de trabalho, se for outro não pode. Sair com carteira de identidade
é fundamental porque qualquer coisa é motivo, só que nesse dia eu tava correndo. Aí
ele me para já agressivamente: “você tá fazendo o que”? Falei que tava correndo e ele
reclamou que eu tava correndo por ali, que é lugar de correr. Não satisfeito ele pediu
a identidade e quando eu disse que tinha deixado em casa, ele falou: “você é o que,
vagabundo”? Aí ele parou a minha corrida ali, o que é bizarro, a pessoa tá se
exercitando e você para ela e foi comigo até em casa pra eu pegar a carteira de
identidade e mostrar pra ele, conferiu numa parada lá e pediu desculpa. E depois disso
eu fiquei pensando: “caraca”... (Luiz Paulo, 25 anos, negro, Zona Norte).

O relato de Luiz Paulo é impregnado de história. Ele nos faz retroceder à passagem do
século XIX, à derrubada dos cortiços47, à vadiagem tida como contravenção penal e, por isso,
a um Brasil que, desde então – e de sua fase anterior –, já fazia uso dos aparelhos penais como
forma de reprimir e segregar as chamadas “classes perigosas” (COIMBRA, 2001). Ancoradas
em um período de industrialização expoente onde a ordem era associada ao progresso da
metrópole, as elites dominantes operavam um discurso dualista que versava sobre o mundo do
trabalho e o mundo às avessas. Nesta direção, enquanto o mundo do trabalho era tomado como
o mundo da moral, da ordem e da fábrica, o mundo às avessas, em contrapartida, era aquele
considerado amoral, vadio, caótico (VALLADARES, 1991; COSTA, 2016).

47
De acordo com Costa (2016, p. 23), dado “o aumento populacional de grande proporção na segunda metade do
século XIX, na capital [Rio de Janeiro] que se tornara cada vez mais desenvolvida e com a estrutura econômica
modificada, a crise habitacional atingiu principalmente a população pobre que sofria com o aumento exagerado
dos aluguéis”. Foi neste cenário, portanto, que surgiram os cortiços: primeiro modelo de habitação coletiva
após as senzalas – tradicionais alojamentos de escravos.
67

Ser preso por acusação de vadiagem não era circunstância incomum para os inúmeros
trabalhadores pobres, envolvidos com ocupações laborais provisórias ou instáveis. A abolição
da escravidão afetou profundamente o trabalho das polícias demandando, portanto, que novos
instrumentos de controle social fossem desenvolvidos. Sob influência do direito positivo, a
redação do Código Penal foi reformulada em 1890, passando a dar maior visibilidade a um
número específico de contravenções legais, a exemplo, o crime de vadiagem. Segundo Michel
Misse (1999, p. 205), “o vagabundo com significado de vadio, é tão ou mais antigo que o
malandro do início do século e o marginal que só aparece muito depois”. O autor ainda sublinha
que, quando acionado, o termo “vagabundo” faz ver e falar alguns rótulos mais:

Esse novo tipo social, curiosamente, é designado por um atributo muito antigo, mas
ressignificado: é um rótulo usado indiferentemente nas comunidades pobres, pelos
próprios bandidos e pela polícia, como equivalente a bandido [...] De certa maneira, o
rótulo de vagabundo, aplicado indiferentemente a traficantes ou assaltantes, ou até
mesmo pelo próprio rotulado em relação aos parceiros, perde parte do significado
pejorativo original de vadio para incorporar segmentos de sentido antes pertencentes
aos rótulos de malandro, valente, marginal e bandido (MISSE, 1999, p. 269-270).

Mais de cem anos transcorridos até aqui. Muito embora o texto legal da Constituição de
1988 esteja calcado na garantia de direitos humanos e fundamentais a todos os cidadãos, a
realidade que se inscreve não sugere ser exatamente a mesma. Consoante ao Art. 5º da Carta
Magna fica definido, ao menos em tese, que: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país, a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Todavia, a compreensão de “segurança” e “liberdade” enquanto eixos não excludentes e, por
isso, conjuntamente passíveis de serem ofertados à população, denota simples questão de
formalidade (D’ELIA FILHO, 2015).
Deste modo, à medida que o Estado de Direito parece estar cada vez mais suprimido em
decorrência do expoente protagonismo do Estado de Mercado – ou seja, em meio a uma
perspectiva liberal de governo que atua em favor da ampliação e endossamento de opções e
oportunidades individuais de consumo –, bem como de seu correspondente Estado de Polícia,
pela execução de medidas proporcionais a perigos entendidos como riscos ao ordenamento
social, a matriz da segurança, seja ela pública ou privada, cujo objetivo é a manutenção do
modelo tradicional, além de operar a violação de uma série de direitos civis básicos, tende a
avançar como força avassaladora no tocante à escalada da indústria securitária e por que não
dizer segregacionista (BATISTA, 2003).
68

Hoje – da mesma forma que outras estratégias bastante comuns durante a ditadura,
algumas já assinaladas – também vem sendo utilizada a mesma expressão: “guerra
civil”. Ela justificaria, pois, o uso abusivo e violento de “medidas de exceção” que
devem ser necessariamente adotadas já que não estaríamos vivendo em um período
“normal” de nossa história. Da mesma forma que ontem os “terroristas” punham em
risco a segurança do regime, hoje os miseráveis tornam-se uma ameaça para a
“democracia”, em especial, por sua aliança com o narcotráfico [...] A crença de que
vivemos em uma guerra civil apodera-se, em especial, das classes médias e altas que
se trancam em condomínios fechados, em prédios de apartamentos, com a ilusória
esperança de abandonar a insegurança das casas, ou então utilizam guaritas e guardas
armados, fechando ruas e usando portões eletrônicos. Com isso, crescem as fábricas
de equipamentos de segurança, desenvolvem-se uma promissora indústria de
segurança [...] Nesta produção de que vivemos em uma “guerra civil” vem sendo
reiterada uma determinada concepção de segurança pública: a sua militarização por
meio do apelo à lei e à ordem (COIMBRA, 2001, p. 185 - 188).

Diante disso, o dispositivo da segurança parece ter substituído qualquer outra noção
política, como aposta Graham (2015). Se o estado de exceção moderno surge, originalmente,
como medida provisória em meio à Revolução Francesa (1789), pela suspensão do Estado de
Direito e como recurso em momentos de crise, esta é uma prática jurídica legitimada mesmo
nos dias atuais. Diz-se de sua efetividade sobre a prevenção de perigos e ameaça à ordem
pública, em favor de uma sociedade pacífica. Portanto, de acordo com o que afirmam Bicalho,
Rossotti e Reishoffer (2016, p. 86) “a Ordem, demandada como necessária, como um fim em
si mesma, é vista enquanto solução única para o perigo e desestruturação que a ideia de caos
porta”. Neste sentido mesmo, Batista (2003) insiste dizer que passamos muito rapidamente da
naturalização da truculência contra os pobres ao seu aplauso.
Quando os circuitos globalizados da desregulamentação e privatização tornam-se pontos
nevrálgicos da economia de mercado, o outro – e, neste ângulo, um “outro” essencialmente
produzido por heranças culturais que fogem aos construtos da produção hegemônica de
cidadania –, é encarado como uma ameaça em potencial. A garantia de livre acesso e circulação
pela cidade do Rio de Janeiro já não pode mais ser apreendida como equidade de direito, uma
vez que a liberdade de consumo além de produzir territórios demarcados de exclusão,
movimenta uma complexa rede de segurança que perpassa pela lógica militarizada de gestão
dos espaços e pela tecnologia policialesca das condutas humanas: “direito à cidade eu nunca
tive, isso nunca existiu”, atesta o jovem Luiz Paulo.

Ele não existe. Ele nunca existiu, na verdade. Quem tá à margem nunca teve direito à
cidade. Historicamente, o Estado só entra na favela com o braço da segurança pública.
Você tem ali processos de construção de asfalto pelos próprios moradores, instalação
hidráulica e tudo mais. É muita resistência, uma galera que tem muita engenharia
enquanto povo preto. O direito à cidade sempre foi segregado pra gente. Eu estudo na
Zona Sul, mas é na marra. Ninguém me aceita nesse espaço, é racismo velado direto.
Umas abordagens bobas ou se você chega perto e pergunta a hora a pessoa já esconde
a bolsa. Aqui dentro também, você passa preconceito dentro de outros cursos. São
essas coisas que a gente passa diariamente, coisas que a gente sempre vai passar. É
69

uma fissura que vem entranhada na nossa formação social e isso reflete em todos os
espaços (Luiz Paulo, 25 anos, negro, Zona Norte).

Seguindo nesta direção, ainda, a fala de Matheus Melo também versa sobre dificuldades
próprias às áreas favelizadas, fruto da ausência do Estado ou, utilizando-me do recurso de suas
palavras, “por causa da estrita presença policial nestes espaços da cidade”. Uma narrativa forte,
que retrata, contudo, os dramas cotidianos enfrentados por inúmeras pessoas e revela a potência
de um lugar que parece (ter que) se reinventar a cada novo dia.

Na favela a gente passa por cima de corpo, a escola fecha, fecha comércio, a vida de
muitas pessoas que moram ali fica parada. Eu fui abordado e tive uma arma apontada
pra mim pela primeira vez com dez anos de idade, uma criança do asfalto nunca vai
saber o que é isso. Ao mesmo tempo na favela você tem tudo. É o lugar onde você
cresceu, onde estão seus amigos e tem uma sensação de pertencimento. Ali é o seu
lugar. É claro que existe essa separação, só não vê quem não quer. Estourou um cano
no asfalto da Zona Sul no mesmo dia já conserta, parece até Japão. Agora se acontece
o mesmo na favela vai ficar meses a rua assim desse jeito ou é o morador que vai lá,
compra o cano e ele mesmo conserta. O Estado não chega na favela ou quando entra
é só pela polícia ou agentes de saúde, mas esses agentes são pessoas da própria favela
mesmo (Matheus, 29 anos, branco, Zona Norte).

Destarte, Vera Malaguti Batista (2003), assevera que as matrizes do extermínio e da


desqualificação jurídica são validadas na implantação da ordem das políticas de apartação. É
neste ponto que Nilo Batista (1996, p. 4) traz à cena a concepção de “cidadania negativa”, o
exercício de uma cidadania que se restringe apenas ao conhecimento e ao empreendimento dos
limites formais à intervenção coercitiva do Estado. Assim, são os setores vulneráveis, ontem
tomados como escravos e, hoje, enquanto massa marginal urbana, que só conhecem a cidadania
pelo seu avesso, tal como acrescenta o autor: “queria com esta expressão designar o conjunto
de limitações constitucionais e legais à intervenção estatal direta sobre a pessoa humana, que
encontra no processo penal um amplo espectro de situações exemplares”.
Por tudo isso, faz-se possível observar que ao longo de nossa formação sócio-histórica
práticas segregacionistas têm sido atualizadas sob a égide de uma governamentalidade que
identifica neste “outro” um ser potencialmente ameaçador, o grande inimigo do sistema, sobre
o qual devem recair as forças seletivas dos aparelhos de vigilância, controle e repressão. Desta
forma, estruturalmente deslegitimados em suas presenças, evidenciam o que de mais perverso
ainda vigora em nossa sociedade: o justificado extermínio de uma parcela da população por
circunstâncias de cor/raça e classe social. Como estrangeiros, dispensados da pauta que versa
sobre os desejos e encantos de habitar e transitar pela Cidade Maravilhosa, geração pós geração,
aprendem a lutar do alto dos morros – ou até que se tornem economicamente úteis no asfalto
(FOUCAULT, 2013) –, desde muito precocemente, contra os famigerados regimes de valor que
lhes são impostos.
70

2.2 Notas sobre um Rio dividido: da nova Lei de drogas às limitações do circular pela
cidade

Conexão Rio: a cidade dos megaeventos48. Cartão-postal da cidade, a orla carioca, um


dos principais símbolos paisagísticos do Rio de Janeiro, admirada não apenas pela beleza de
suas curvas e contornos, mas também por sua capacidade convidativa de produção de diálogos
entre potências diversas, revela-se como local privilegiado de encontro e circulação por
territórios democráticos de livre expressão. No entanto, à medida que a segurança pública tem
se desenvolvido cada vez mais como uma preocupação imediata, sobremaneira desde a eleição
do Brasil como país sede dos megaeventos, o clamor ao recrudescimento policial vem
questionando as antigas representações destes espaços tidos como um direito inegável de todos
que deles se ocupam.
Em setembro de 2015, durante um período de intenso calor no Rio de Janeiro, manchetes
e notícias sobre inúmeros arrastões nas praias da Zona Sul carioca, orquestrados por
adolescentes de camadas periféricas, foram maciçamente divulgados pelas grandes mídias
espalhando sentimentos de medo e insegurança por toda a cidade. Em uma de suas chamadas
da sessão de segurança pública, a Carta Capital fez a seguinte declaração: “na praia, Rio se
confronta com velhas divisões”49. A matéria afirmava, ainda, que este agora se tornava um
espaço símbolo da crescente polarização entre ricos e pobres, evidenciando o cenário de terror
instaurado que assombrava a população e, em especial, àqueles sobre os quais geralmente
recaem os excessos cometidos pela polícia durante as abordagens e revistas pessoais: jovens
negros oriundos de classes populares.
O caderno da IstoÉ já havia anunciado: “O Rio com ódio. Sob a ação de grupos que
promovem arrastões, a truculência de jovens travestidos de justiceiros e a dificuldade do
governo para controlar a situação, a cidade vive sob o domínio do medo”. O clima hostil
também ganhou visibilidade nas redes sociais, conforme apontado na mesma reportagem:
“Você vai à praia no fim de semana? Não esqueça o protetor: um taco de beisebol” foi uma
campanha organizada por jovens de classe média que gerou resposta violenta e instantânea de
outros: “Quem vier com taco vai entrar na bala”50.

48
Competindo com outras três cidades, no ano de 2009, o Rio de Janeiro tornou-se a Cidade Olímpica dos Jogos
de 2016. Antes mesmo disso, o Brasil já havia vencido a concorrência que o consagrou como palco da Copa do
Mundo de 2014. Assim, em um curto período, nos deparamos com a responsabilidade de acolher os maiores
eventos esportivos do mundo.
49
Matéria publicada pela plataforma de notícias Carta Capital, em 29/09/2015.
50
Matéria publicada pela plataforma de notícias IstoÉ, em 25/09/2015.
71

Em razão destes acontecimentos, as autoridades anteciparam o que ficou conhecido


como “Operação Verão”51, um projeto voltado ao reforço do policiamento ostensivo tendo em
vista a promoção da segurança e a manutenção da ordem no decurso das Olimpíadas. Foram
recrutadas centenas de agentes de segurança para patrulhar a orla das praias, especialmente aos
finais de semana, montadas barreiras de blitzes policiais e postos de monitoramento, além da
intensificação das abordagens e revistas pessoais, sob a máxima da suspeição, tanto a pedestres
quanto no interior dos ônibus que vinham das áreas mais afastadas.
Meses antes à sequência de arrastões que acometeram a cidade, foram divulgadas pela
Prefeitura do Rio diversas alterações a serem feitas nos trajetos das linhas de ônibus
responsáveis pela ligação entre a periferia e subúrbio cariocas e bairros valorizados da capital
fluminense. Grande parte desses itinerários, que seriam extintos ou encurtados, dirigiam-se às
praias da Zona Sul, como aponta a manchete do jornal O Dia daquele ano: “Prefeitura vai
eliminar 700 ônibus da Zona Sul, serão 78 linhas a menos”52. Apesar de justificadas como um
plano de mobilidade para desafogar o trânsito urbano durante os Jogos Olímpicos, tais medidas
foram apreendidas com desconfiança por alguns, que acreditavam serem estas estratégias de
segregação visando dificultar o acesso aos principais locais de eventos da Rio 2016 por uma
parcela indesejada da sociedade. Deste modo, parece que falar de um plano estratégico de
mobilidade urbana, na cidade do Rio de Janeiro, implica falar também sobre o desenvolvimento
de ações de segurança pública e, portanto, de dispositivos de ordenamento e controle social.

O plano é polêmico, mas o secretário municipal de transportes, Rafael Picciani,


garante que a racionalização da frota vai reduzir os engarrafamentos e o tempo das
viagens, já que haverá menos ônibus nas ruas. A medida também foi motivada pela
baixa ocupação nos coletivos da região (50%, em média, no rush). A meta é elevar a
ocupação dos veículos nos horários de pico para 75%. “Hoje mais da metade das
linhas se sobrepõe” (O DIA, em 13/03/2015).

Rio: a nova Paris. A relação indissociável entre pobreza e criminalidade, já anunciava


no Rio de Janeiro, desde o início do século XX, a adoção do modelo higienista pelo prefeito
Pereira Passos. Este foi um período afamado pelo aumento da circulação de imigrantes europeus
segregados e negros libertos que ocuparam as vias públicas e conquistaram espaços fora das

51
De acordo com declarações em uma entrevista concedida pelo coronel Cândido, Comandante do Primeiro
Comando de Policiamento de Área da Polícia Militar, responsável pelas regiões da Zona Sul da cidade do Rio
de Janeiro, área central e parte da Zona Norte, ao Programa Caixa de Pandora, no episódio “Rio, Cidade
Partida?”, foi informado que a “Operação Verão” consistiu em uma ação conjunta de combate aos arrastões,
voltada à garantia de acesso da população às praias cariocas, que ocorreu no período de cinco meses, entre
meados de 2015 e início de 2016 e contou com a participação da Polícia Militar, o apoio da Guarda Municipal,
de agentes da Seop e do Corpo de Bombeiros, além da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social
(Programa Caixa de Pandora, 2016).
52
Matéria publicada pelo jornal O DIA, em 13/03/2015.
72

grandes propriedades. Em meio a inúmeros decretos que, aos poucos, transformaram a cidade
– agora lugar de passagem e não mais de encontro –, a população negra e economicamente
vulnerável foi afastada para as zonas periféricas e encostas dos morros objetivando adequar a
então capital do Brasil ao modelo europeu de cidade moderna e asséptica. Suas manifestações
culturais reveladas nas práticas religiosas, na musicalidade compassada pelos instrumentos de
percussão, na dança e nos trejeitos que desobedeciam aos bons costumes, atemorizavam a elite
branca eclesiástica e inquietavam as autoridades de policiamento que, em resposta, trataram de
empregar maior sofisticação aos atos repressivos (TERRA; CARVALHO, 2015).

A Reforma Passos representa o primeiro grande exemplo de intervenção direta,


maciça e abrangente do Estado sobre o espaço urbano carioca, intervenção essa que
teve dois eixos básicos de sustentação: o controle da circulação e o controle
urbanístico. É a partir das decisões tomadas nessas duas áreas que todo o processo de
transformação da cidade se irradia, e que seu verdadeiro significado pode ser
precisamente identificado [...] A melhoria das condições de circulação não foi
conseguida, entretanto, sem altos custos sociais. De um lado, um plano material, ela
resultou no arrasamento de diversos quarteirões centrais, que não só abrigavam as
mais diversas atividades geradoras de emprego, como também eram locais de
residência de numerosa população operária. De outro, determinou o desaparecimento
gradual de toda uma gama de serviços ligados ao transbordo de mercadorias que, se
oneravam os custos da circulação, davam também ocupação remunerada a numerosa
força de trabalho (ABREU, 2003, p. 222).

Em meio às inegáveis similaridades, aproximadamente, um século, no entanto, separa


estes acontecimentos. Fortemente marcados por uma política coercitiva e por uma sociedade
inexoravelmente desigual, em ambos os momentos sócio-históricos, um grupo expressamente
definido ultrapassa as invisíveis linhas fronteiriças que delimitam espaços produzidos para um
segmento específico da população, do qual o primeiro grupo, terminantemente, não faz parte.
Como no modelo de cidade adotado pelo prefeito Pereira Passos, a recente gestão na figura de
Eduardo Paes, igualmente, vinha desenvolvendo medidas de afastamento físico e subjetivo,
limitando a circulação da população negra e economicamente vulnerável às áreas de menor
prestígio. O “lixo social” era mais uma vez apartado dos espaços valorizados, e nós aprendemos
a conviver com isso, banalizamos e validamos a violência estatal. Os grandes investimentos
não são para todos; não para os filhos da miséria (SOARES, 2003). Eis, aqui, o retrato de um
Rio de Janeiro – de ontem e de hoje – entrecortado pela favela e pelo asfalto.

Compreender a acumulação social da violência no Rio de Janeiro exige considerar,


segundo Michel Misse (2002), o emprego recorrente e ampliado de dois mercados informais
ilegais: um que transaciona mercadorias econômicas ilícitas, sem recurso possível à regulação
73

estatal e outro que, explorando o primeiro, produz e comercializa o que o autor chama de
“mercadorias políticas”. No rol das ilicitudes, a substância entorpecente é apenas uma das
mercadorias criminalizadas. Misse sugere como característica própria dos mercados ilícitos, o
acionamento de meios alternativos de regulação sob os signos da violência e da demanda por
outras mercadorias ilícitas, especificamente “políticas”.
Neste tocante, a expansão de um mercado está intrinsecamente ligada à expansão de
outro. Fazendo uso das palavras do autor, podem ser tomados enquanto “mercadorias políticas”:
“bens e serviços codificados de segurança, proteção e garantia de confiança nas transações que
conflitam com a soberania das regulamentações estatais, como as diferentes formas de extorsão
e compra e venda de ‘proteção’” (MISSE, 2002, p. 3). Para o sociólogo, as inscrições presentes
na comercialização das drogas não apenas reforçam estereótipos e estigmatizam segmentos
sociais já conhecidos, mas permitem, ainda, trazer à tona relações de poder a partir da
constituição de novas redes de sociabilidade que operam a demarcação de territórios.

O caráter territorial-político-militar do comércio de drogas no Rio de Janeiro, e que


praticamente se confunde com os limites de centenas de comunidades urbanas pobres
da cidade, transforma esse mercado ilícito e seus efeitos de violência em ponto de
convergência, seja do sentimento público de insegurança, seja em foco privilegiado
das políticas de segurança pública (MISSE, 2002, p. 8).

A política de proibição às drogas instituída pelo discurso da segurança pública e


direcionada ao mercado varejista – não qualquer droga e, tampouco, qualquer vertente varejista,
mas àquelas próprias às favelas e periferias –, delimita a constituição de inúmeros criminosos
à medida que, sob o viés da referida política, há de se constatar que a ação de proibir não implica
à necessária eliminação do mercado, mas sua transmutação ao escopo da ilegalidade. São os
seus desdobramentos o que, sobremaneira, têm movimentado o sistema ostensivo da atividade
policial no Rio de Janeiro que, na luta contra o crime organizado, sustenta uma série de
condições justificáveis à predileção pelo modelo bélico, em grande medida, responsável por
imprimir violência nas áreas marginalizadas contra aqueles tomados como menos vantajosos
ao tecido social. Assim, a falaciosa política de “guerra às drogas”53, reconhecidamente violenta
e letal, não deve ser definida como um projeto de governo que pretende combater propriamente

53
As análises dos mecanismos de poder envolvidos nos discursos de combate às drogas, tal qual o proferido pelo
então Presidente da República, Michel Temer, enredam léxicos e indicam formas de um processo seletivo e
repressivo. Seus textos consagram o trabalho político (senão policial) de sujeição do cidadão ajudando a
encobrir as ambivalências inerentes às sociedades modernas e sustentando relações de força estabelecidas entre
determinados grupos sociais. Por isso, elejo, aqui, o uso da expressão “guerra às drogas” para referir-me a estas
políticas em detrimento do termo “problema das drogas”, que situa a temática no âmbito da saúde pública e
enquanto ameaça não à ordem social, mas à saúde da população – o que conduziria à discussão por outros
vieses (BUCHER; OLIVEIRA, 1994).
74

o circuito mercadológico de produção, comercialização e consumo de substâncias ilícitas, a


realidade que se impõe, entretanto, é outra bem específica: a da aplicação seletiva da força com
vistas à eliminação de pessoas (BATISTA, 2003).
A “guerra às drogas”, fenômeno mais fortemente reconhecido nas últimas décadas,
sobretudo quando a cocaína passa a assumir papel cada vez mais importante e amplia o poder
de fogo dos traficantes de drogas (MELICIO; GERALDINI; BICALHO, 2012), para além dos
recortes políticos, sociais e culturais responsáveis pelo engendramento de disputas, tem também
no âmbito moral a fundação de um dos pontos nevrálgicos de sua compreensão. Neste último
ano, com a efervescência do processo de disputa eleitoral em todo o Brasil, a questão das drogas
associada aos interesses emergenciais das pastas de segurança pública e à preocupação da
sociedade, não apenas se estabeleceu como marcador central às políticas de governo, como
ganhou destaque nos debates mediados e veiculados pelas mídias corporativas e alternativas,
afamado nas redes sociais e mesmo em encontros mais intimistas, mobilizando uma série de
retóricas, consensos e dissensos inflamados pela diversidade de afirmações políticas.
A polaridade das redes discursivas, qual fosse o posicionamento admitido e o que este
desejasse reiterar, produziu e ainda segue produzindo radicalizações narrativas sob a utilização,
em grande medida, de antigos argumentos, alguns remodelados, levando em consideração o
cenário político vigente. Das agendas de Estado na atualidade, os motes de enfrentamento
repressivo-normalizador e repressivo-segregador são acionados como pautas de conciliação e
controle a partir de perspectivas médicas e jurídico-penais, ou seja, o que se encontra em jogo
é a gestão de um modelo pautado pela diferenciação formal entre consumo e comércio e,
portanto, entre usuários e traficantes. Assim, ainda que ambas as narrativas entrem no circuito
policial, “aos jovens consumidores das classes média e alta se aplica o paradigma médico,
enquanto que aos jovens moradores de favelas e bairros pobres se aplica o paradigma criminal”,
conforme explicita Batista (2003, p. 23). O relato de Matheus Melo coaduna com as proposições
da autora quando salienta o manejo das ações de abordagem por policiais no morro do Vidigal,
favela da Zona Sul na qual passou sua infância e grande parte da adolescência:

Como eu te disse, às vezes já aconteceu de tá saindo da favela com os moleques pra


ir pra matinê de playboy ali na Zona Sul e os policiais simplesmente pararem a gente
pra perguntar: “e aí playboy, estão fazendo o que aqui na favela”? Tinha a coisa do
biotipo também, né? Todo mundo branco, um desses meus amigos tinha olho verde e
tal. Aí a gente falou que morava lá e eles: “moram aqui é o caralho! Com essas roupas
aí? Com essa cara de playboy? Onde é a boca que vocês foram comprar droga”? Aí
era assim que algumas vezes a coisa acontecia. Naquelas horas, a gente era visto por
eles mais como drogado do que bandido (Matheus, 29 anos, branco, Zona Norte).
75

Considerando o caráter normativo-prescritivo do campo em análise, o Estado brasileiro,


não obstante sua apresentação formalmente igualitária, encomendará a desigualdade na própria
redação das leis (SILVA, 2016). Exemplo disso são as brechas ou fissuras presentes na redação
legal, que abrem margem a interpretações casuísticas, relativas ao contexto observado e às
circunstâncias políticas, tal qual às pessoas envolvidas. No que concerne ao novo marco legal
das políticas de drogas no país, a Lei nº 11.343/06, cuja alteração enredou o fortalecimento da
distinção sob fins de tratamento penal entre usuários e traficantes e, por conseguinte, teve
subtraída a previsão de pena privativa de liberdade para aqueles admitidos como usuários, toma
em suas disposições preliminares54:

Art. 1º: Esta Lei institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas –
Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção
social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à
produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crimes.

Apesar do fim da pena de prisão, continuaram mantidos os demais procedimentos


criminais previstos para o tratamento legal destes casos. Nesta acepção, cabe sobrelevar que os
acusados do uso de ilícitos ainda se encontram sujeitos às seguintes medidas: advertência
verbal, prestação de serviço à comunidade, medida educativa de comparecimento à programa
ou curso educativo e, em último caso, multa. Deste modo, mantém-se também vigente a
obrigatoriedade de que usuários de drogas flagrados em situação ilícita sejam encaminhados à
delegacia onde devem assinar um Termo Circunstanciado comprometendo-se a comparecer em
audiência no Juizado Especial Criminal (JECrim), onde são julgados os crimes de menor
potencial ofensivo (GRILLO; POLICARPO; VERÍSSIMO, 2011). Ou, ainda, de outro modo,
como o enunciado por Karam (2008, p. 116):

Ao contrário do que muitos querem fazer crer, a Lei n. 11.343/06 não traz assim
nenhuma mudança significativa nesse campo do consumo. Os “defensores” da nova
lei querem fazer crer que a previsão de penas não privativas de liberdade seria uma
descriminalização da posse para o uso pessoal, sustentando que somente seriam
crimes condutas punidas com reclusão ou detenção (expressões utilizadas no Código
Penal como espécies de prisão). Ignoram que a ameaça da pena é que caracteriza a
criminalização. E penas, como a própria Constituição Federal explicita, não são
apenas as privativas de liberdade, mas também as restritivas da liberdade, a perda de
bens, a multa, a prestação social alternativa, as suspensões ou interdições de direitos,
entre outras.

Com a implantação da lei e, por isso mesmo, das novas diretrizes que visavam romper
com antigos problemas e nortear as práticas – desde o primeiro contato entre o agente do Estado,
na figura do policial militar, e aquele de que se supõe suspeito –, visto que esta é uma discussão

54
Após revogação, a Lei nº 6.368/1976 foi substituída pela atual Lei de drogas que, segundo Jorge da Silva
(2016), ampliou a margem de discriminações pela estranha tentativa de distinção entre usuário e traficante.
76

complexa e atravessada por múltiplos elementos (políticos, sociais, econômicos, morais), ao


contrário do predito, não foi possível estabelecer critérios objetivos à distinção proposta,
ampliando a discricionariedade nos procedimentos de abordagem e busca pessoal e fazendo
com que a pessoa suspeita fique à mercê do jugo policial. Muitas vezes a lei é dúbia, o que abre
margem a interpretações e reproduções de estereotipias. Nestes casos, os agentes policiais
podem atuar segundo regras próprias, por vezes infringindo prescrições legais e, por
consequência disso, modos de administração de conflitos pela Polícia Militar – tomada como
operadora do sistema de justiça criminal e responsável, em sua maioria, pelos registros de
flagrante delito (GRILLO, 2013). Cumpre salientar que:

É com base nos relatos dos policiais que efetuaram o flagrante que os autos serão
produzidos e a classificação penal será definida. São eles que conduzem as narrativas
presentes no flagrante: como aconteceu, onde ocorreu, quem foi, por que, se há
testemunhas. Nos flagrantes de casos envolvendo drogas, a narrativa policial é central,
e muitas vezes a única existente (JESUS, 2016).

Portanto, dadas as normativas do texto legal quanto à distinção entre usuário e traficante,
constituem delitos, respectivamente:

Art. 28 - Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo,


para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação
legal ou regulamentar [grifo nosso].

Art. 33 - Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender,


expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar,
prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que
gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar [grifo nosso].

Ao que se segue no § 2º referente ao Art. 28, da competência de tipificação criminal do


usuário, como mencionado e, assim, de sua diferenciação comparativa à condição de traficante,
fica determinado sobre a substância entorpecente apreendida e destinada ao consumo pessoal,
seis critérios, a saber:

Art. 28. § 2º - Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz


atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições
em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à
conduta e aos antecedentes do agente.

Jorge da Silva (2016, p. 161) considera que o novo texto legal enredou vieses ainda mais
seletivos a partir da distinção entre usuário e traficante. O autor questiona o fato de que dos seis
requisitos presentes na lei somente dois são passíveis de objetivação: “condições da ação” e
“conduta e antecedentes”. Segundo ele, isso implica dizer que, até hoje, depois de mais de uma
década de atualização da normativa legal, ainda não se sabe (em tese) que “natureza da droga”
77

permite distinguir traficante de usuário e, tampouco “quantidade”, “local” ou “condições sociais


e pessoais”. Levanta, ainda, uma questão interessante de ser analisada: embora a nova lei tenha
banido a pena de prisão para usuários, isso não parece ter acarretado a efetiva redução do
número de prisões relacionadas às drogas. Em suas palavras, nenhuma dúvida: “jovens usuários
pobres e negros foram ‘promovidos’ a traficantes”.
À medida que a lei deixa brechas para o acionamento da subjetividade policial sobre
quem sejam usuários e traficantes, ela parece fomentar também a corrupção na polícia, como
aponta Grillo (2013). Ocorre que, quando da revista de suspeitos surpreendidos com produto
entorpecente, em muitos casos, estes são convocados a pagar o que a autora chama de “tributo
informal”, valor negociado em troca da liberação do flagrante. Muito embora a corrupção tenha
se constituído como questão recorrente nas entrevistas com os jovens, por outro lado, nos
encontros com os PMs ela permaneceu silenciada na maior parte do tempo; salvo um caso em
específico mobilizador de breve relato: “a sociedade não gosta de cumprir regra, né? Até que
vem um e fala: ‘ah, o policial é corrupto’, mas ele mesmo anda com o carro atrasado. O ser
humano tem a hipocrisia no DNA”, sugere o subtenente Stephan Contreiras55, homem de meia
idade, lotado no batalhão Zona Norte 2, com mais de dezessete anos de serviços prestados à
instituição policial-militar.
Ainda sobre o flagrante de drogas, foram partilhadas narrativas que atestavam não ser
incomum a prática de extorsão por PMs em determinadas localidades conhecidas como espaços
de circulação de jovens de classe média/média-alta. Espaços que, de maneira geral, também se
firmaram como pontos de encontro e coletivização de substâncias ilícitas, sendo o cigarro de
maconha o principal produto de consumo. Uma vez feito o flagrante, são acionados dispositivos
que permitem negociar o encaminhamento do jovem à delegacia para a comunicação do fato
delituoso. Eduardo Pichinine56, jovem branco, estudante universitário e morador da Zona Norte,
refere já ter frequentado estes locais por algumas vezes e experienciado a abordagem policial
em uma delas.

A primeira abordagem que eu tenho lembrança foi quando eu fui com uns amigos pra
Praia do Arpoador, era um luau que tava acontecendo lá. Aí houve um momento que
o pessoal decidiu subir a pedra pra fumar maconha lá em cima. Ficamos lá fumando
sem saber que era a maior sujeira porque ali tem patrulha, os caras sabem que fica
todo mundo fumando naquele lugar. É um lugar que, a princípio, é muito bom pra
fumar porque é afastado da movimentação, da circulação de pessoas. Você fica na
beira da praia, tem um visual bacana, um ambiente gostoso pra se estar. Só que a

55
Stephan Contreiras. “Policial é morto em tentativa de assalto na Zona Oeste do Rio” (Matéria publicada pela
plataforma de notícias G1, em 03/05/2018).
56
Eduardo Pichinine Branco. “Biólogo é morto por bala perdida no Rio na noite em que comemorava o
aniversário” (Matéria publicada pelo Jornal Extra, em 08/01/2018).
78

polícia sabe disso também, então eles vão lá de tempos em tempos para dar um bote
e ver se pega alguém fazendo isso. Aí o cara foi lá, tava escuro já, de noite, ele veio
já com a arma em punho apontando pra gente e pedindo pra gente levantar a mão e
foi levando a gente pra luz porque tava meio escuro. Depois ele foi descendo com a
gente pelas pedras, ele tava sozinho, o que era estranho porque geralmente sempre
tem mais um. Aí descemos a pedra e fomos com ele para aqueles banquinhos que
ficam próximos a uma cabine que tem bem ali. E ele perguntou se a gente tinha mais
alguma coisa porque se tivesse era pra entregar pra ele poder aliviar a gente. Ainda
falou assim: “porque se tiver mais alguma coisa e vocês não entregarem vai me
complicar e vai complicar vocês porque eu vou ter que levar vocês pra delegacia”. A
gente disse que não tinha mais nada, que tudo que tínhamos era aquilo ali pra consumo
mesmo e que a gente não traficava e nem fazia nada do tipo. E aí ele perguntou se
tinha alguma coisa pra deixar com ele: “posso liberar vocês, mas vocês têm que deixar
alguma coisa pra mim aí”. Só que a gente foi com o dinheiro da passagem do ônibus
pra chegar no luau e era só isso que a gente tinha, ninguém tava com dinheiro mesmo.
Depois que explicamos, ficamos sentados lá uns quinze, vinte minutos. Ele falou que
ia chamar o carro pra levar a gente pra delegacia, colocou a maior pressão psicológica
pra ver se de repente conseguia alguma coisa com base na pressão. E depois desse
tempo todo decidiu liberar a gente: “olha, vai lá, não vai vir carro agora não. Segue a
vida de vocês e voltem logo pra casa”. E aí fomos pra casa mesmo (Eduardo, 30 anos,
branco, Zona Norte).

Neste ponto, a noção de “mercadoria política” desenvolvida por Misse (2002) volta a
fazer eco e produzir sentidos a partir da compreensão de que tais negociações estão fundadas
na apropriação particular de um bem público de monopólio estatal, ou seja, no poder delegado
pelo Estado ao seu agente policial, para que se faça cumprir a lei. Assim, a condução ou não do
usuário à delegacia transforma-se em “mercadoria política” e, portanto, uma mercadoria cuja
reprodução depende, de maneira fundamental, de elementos combinatórios entre custos e
recursos políticos para a fabricação de um valor de troca político ou econômico (GRILLO;
POLICARPO; VERÍSSIMO, 2011). Matheus recorda um episódio por ele categorizado como
“uma das lembranças mais marcantes de tudo que já aconteceu na favela, mesmo sem nenhum
tiro dado”. Ao que o jovem compartilha:

Eu vivi muita coisa com a polícia na favela. Acho que a mais marcante foi quando eu
tava subindo o morro e os bandidos vindo de um lado e a polícia no outro sentido. Eu
falei: “vou morrer”! Entrei no bar e fiquei olhando o que ia acontecer. Aí o maluco
todo tranquilo tirou um malote, eu nunca vi tanto dinheiro na minha vida. O polícia
pegou na cara de pau mesmo, durante o dia, e depois cada um seguiu o seu caminho.
Então você vê isso e pergunta: quem é o bandido e quem é a polícia nessa situação?
Eu acho essa situação muito forte porque, em teoria, eu sempre ouvia que aquele era
o cara que estaria ali pra me proteger e ele tá negociando com bandido. Isso na cabeça
de uma criança é bem louco, né? Aí você escuta: “olha os cana, olha os vermes”. E é
isso, é a realidade [...] Eu não sei como tá a relação hoje em dia, mas pra maioria a
polícia não era vista como proteção. Pra gente que é da favela a polícia é percebida
dessa forma distante, a gente sempre desconfia. A polícia na favela é sempre suspeita
(Matheus, 29 anos, branco, Zona Norte).

Tendo em vista as considerações apresentadas um aspecto que, talvez, seja central em


nossa discussão sobre a bifurcação do tratamento penal e o aumento da margem de barganha é
que a “mercadoria política” em jogo pode não estar relacionada somente a confirmação ou não
79

do registro de flagrante, mas também ao tipo criminal a ser classificado, se consumo ou tráfico
– o que inscreve determinações penais completamente discrepantes à letra da lei. Neste tocante,
na contrapartida do abrandamento penal para os casos de uso de drogas ilícitas, o endurecimento
da punição para o crime de tráfico foi também financiado pela nova legislação, que estabeleceu
pena mínima de cinco anos de reclusão em detrimento dos três que compunham a normativa
predecessora (BOITEUX, 2006). A presença de fissuras legais permite, segundo alguns jovens,
a conformação de uma “dinâmica performática da abordagem” em dadas ocasiões e a depender
da paisagem em jogo. “Tudo é construído, né? De alguma forma foi construído esse estereótipo
de policial bom e mau, acho que tem muito a ver com a cultura. E de fato é isso que rola, muitas
vezes eles interpretam um papel”, afirma Wanderson Salustiano57. Ao que conclui:

Se eles chegarem até o final e levarem você pra delegacia, eles colocam como usuário.
A não ser que realmente você esteja com muita coisa e seja preto, né? O terror é
sempre esse: “isso aqui é tráfico, tá fodido”! Aí vão e te tiram um dinheiro. Falar que
é tráfico é uma estratégia pra conseguir dinheiro e não para enquadrar como traficante
mesmo. Acho que quem eles enquadram como traficante real é preto que eles pegam
na favela [...] Geralmente quando eles pedem propina são só dois policiais que aí rola
de ser mais fácil uma parada de extorsão que eles fazem mesmo (Wanderson, 28 anos,
indígena, Zona Norte).

Quando os flagrantes chegam até a delegacia, de acordo com o que afirma Grillo (2013),
são os delegados e os demais policiais civis de plantão os responsáveis por operar a tipificação
penal da ocorrência. Todavia, a autora sublinha que esta é encaminhada com base na descrição
oferecida pelo agente que executou a condução, quase sempre o policial militar que procedeu
o flagrante delito. Esta é a narrativa que orienta a formulação da dinâmica do fato, ou seja, o
enquadramento do sujeito como sendo usuário ou como traficante o que, necessariamente, gera
consequências diversas. Aqui, os jovens negros e/ou moradores de áreas de favela com os quais
conversei verbalizam temer mais acentuadamente o abuso do poder expresso em uma ação de
flagrante forjada pela polícia.

A força de cima pra baixo sempre sabe atuar, o Estado nunca erra. Ele sabe quem é
preto, branco, o preto mais retinto, onde que ele vai poder colocar uma condenação
de quinze anos de prisão por uma parada forjada e ficar por isso mesmo. O Estado
tem poder total sobre o ser humano negro. Quando o Estado pesa a mão ele sabe onde
vai pesar (Luiz Paulo, 25 anos, negro, Zona Norte).

É meio louco de falar, mas quando a gente é do morro tem uma coisa que a gente
aprende que é não dar informação para ninguém. Pode ser qualquer pessoa, você tem
que falar que não sabe, que não conhece. Com a polícia é ainda mais assim. Outra
coisa que a gente aprende na favela é nunca deixar um policial colocar a mão no seu
bolso. Você é que tira, que coloca o bolso pra fora e entrega o que tem lá dentro pra

57
Wanderson Salustiano dos Santos. “Adolescente morre após ser atingido por bala perdida na Vila da Penha”
(Matéria publicada pelo Jornal Extra, em 03/11/2018).
80

ele. É um bagulho que se aprende, acho que fica na veia. Um vai falando para o outro.
Tá vendo como é a visão? O cara tá ali pra te proteger, mas ele não pode colocar a
mão no seu bolso porque senão ele pode te incriminar por uma coisa que você não
tem. Tá vendo? Essa é a visão que a gente tem e acaba que até hoje levo isso comigo
[...] Acho que isso entra por osmose, pode colocar aí que entra por osmose [risos]. O
problema é que o comportamento da polícia é muito agressivo na favela, eles querem
te intimidar de qualquer forma. Além do roteiro, que são sempre as mesmas perguntas,
eles te induzem a dizer que você tem droga. Na revista, que também é o padrão, vai
todo mundo pra parede e eles começam a te apalpar. E aí vem de novo o medo que
eles possam colocar alguma coisa na gente [...] Quando o cara é negro ela é ainda pior.
Se você é negro a abordagem com certeza vai ser muito pior, mesmo dentro da favela
(Matheus, 29 anos, branco, Zona Norte).

Posto isto, ao passo que é a narrativa do agente condutor o instrumento produtor dos
indícios necessários ao enquadramento de uma infração flagrante de drogas em um dado tipo
penal, podemos inferir que tanto os procedimentos de vigilância quanto os de incriminação dos
sujeitos suspeitáveis têm como alvo preferencial àqueles antecipadamente inscritos na malha
policial-penal. Para Grillo (2013), as políticas de segurança e as ações coercitivas do Estado
amparadas na indefinição legal (ou estariam elas bem alinhadas?) da nova normativa de drogas,
fundam-se em uma alteridade radical fomentada por projeções de periculosidade há muito já
arraigadas na sociedade contribuindo, assim, para a desagregação deste “outro” do espaço
intersubjetivo – um “outro” antes forjado na fisionomia do inimigo e, hoje, atualizado na figura
do traficante varejista de drogas (MELICIO; GERALDINI; BICALHO, 2012).
Assim, face à intervenção coercitiva do Estado pela via da construção de discursos
hegemônicos de ordenamento e controle, a concepção racista e desqualificadora endereçada às
massas empobrecidas resistem, até os dias de hoje, sob o imperativo da violência. Diante do
registro social de insegurança, a sociedade reivindica o endurecimento policial através da
repressão e anulação dos direitos daqueles que se apresentam nocivos ao espaço público.
Segundo Mena (2015), as polícias, sobretudo a militar – a quem dirigimos mais enfaticamente
nosso potencial questionador, em razão de serem elas as responsáveis pelo policiamento
ostensivo e, portanto, as que comparecem na linha de frente do confronto armado – não se
encontram a sós neste contexto. A PM é, tão logo, o embrutecimento da própria sociedade.
Assim como sugere coronel Firmino:

Um exemplo disso é que a vadiagem era uma infração penal, contravencional. O que
era a vadiagem? Era quem não comprovava meio legal de subsistência. Então se você
não comprova que você trabalha, então você é vadio. Vadio não era quem não
trabalhava, mas quem não comprovava adequadamente sua subsistência. Significa o
seguinte: se meu pai é rico e eu não trabalho, tudo bem. E se meu pai é pobre e eu não
trabalho? O que o policial achava? Que eu tava roubando. No período da vadiagem
era muito comum na beira das favelas o policial falar assim: “seu documento”! Se
você entregasse carteira de trabalho ou carteira de estudante não era vadio. Isso não
tava escrito na lei, mas isso era composto. Se você não estava com carteira de
estudante e nem carteira de trabalho, como você ia provar que era trabalhador? O que
81

o policial fazia? “Mostra a mão”! Se tem calo é trabalhador. Significa que se a pessoa
era pobre, deveria tá trabalhando em alguma coisa que marcasse as mãos. Isso tudo
fazia parte de um componente. Aí você fala: “é discriminador”? Sim. Mas quem foi
que passou isso para a polícia? Isso não nasce só na polícia, isso é composto na
sociedade. Os elementos de suspeição são trazidos pela sociedade, são ofertados pela
sociedade para a polícia. E a polícia trabalha com eles diariamente e reforça isso. Por
que tem revista em ônibus quando vai pra praia? Você acha que isso é uma decisão
da polícia? Claro que não. Nessa revista do ônibus quem sai do ônibus? Quem não é
morador dali. E quem não é morador dali é de que cor? (Coronel Firmino, negro).

Segundo Martins (et al., 2017, p. 233-234), a maneira como uma cidade se estrutura e
se transforma está intimamente imbricada ao modo como são estabelecidas as interações sociais
entre aqueles que se ocupam de seu espaço. Misturas culturais e sociais que permitem formas
de subjetivação diversas. Neste contexto, os referidos autores acrescentam que:

O tecido urbano é história que se produz continuamente, revelando contradições


produzidas pelo desenvolvimento desigual das relações sociais [...] Quando o poder
púbico se coloca no papel de limitar a circulação da população pobre nos espaços
abastados da cidade, a partir da extinção de linhas de ônibus, alta nos preços da
passagem, ou mesmo pelas violações perpetradas pelos agentes de segurança pública,
isso produz também subjetividade em todo o tecido social.

O estigma enunciado pelos agentes de segurança que impedem a circulação de jovens


negros e pobres entre seus locais de moradia e as praias da Zona Sul afeta de modo substancial
estes sujeitos dada a desvalorização que sentem pelo Estado. A apreensão da favela, portanto,
como local de desordeiros e criminosos demonstra que não é pela perspectiva do direito que
estes se relacionam com a segurança e com os espaços públicos, mas pela via da culpabilização
quando do sentimento de medo e desamparo experimentado pelos demais habitantes da cidade.
Sobre isto, Luiz Paulo faz asseverar:

É aquilo, vai da construção de todo um estereótipo, de como você construiu a imagem


do negro da favela. Ele é o homem que é do mal, o subversivo que tá sempre propício
a fazer a coisa errada. A intervenção militar no Rio de Janeiro é um projeto de
terrorismo de Estado contra a galera da favela. Eu não vou discutir a segurança
pública, eu vou discutir a insegurança pública. Porque se você tem a segurança pública
em alguns bairros dependendo do CEP que enxergam, nas inúmeras favelas o processo
é ao contrário, você vai ver a insegurança pública mesmo. Você sabe que qualquer
tiroteio, qualquer confronto, isso pode tá ceifando sua vida. Então eu vou trabalhar
com o conceito inverso, o conceito de insegurança pública, de se viver no estado do
Rio de Janeiro a partir do olhar do povo marginalizado, do povo preto, do povo que
já tem todo o estereótipo (Luiz Paulo, 25 anos, negro, Zona Norte).

Em resumo, tem-se que o espaço público enquanto território político vem sendo cada
vez mais suprimido pela emergência de recursos de vigilância, controle e segregação sugerindo,
pois, que a produção e a gestão mercadológicas também se configuram como dispositivos de
administração da ordem –, inscrevendo uma correspondência naturalizada (e militarizada) de
suspeição e cerceamento de direitos civis em uma parcela específica da sociedade, fruto de uma
82

política criminal seletiva e autoritária. Por esta razão, pautar a lógica que rege as cidades, sua
organização e gestão é buscar colocar em evidência o compromisso (ou não) pelo exercício de
instrumentos democráticos, além da tentativa de esquadrinhar que forças e fluxos compõem os
procedimentos de segurança quando da escolha por uma arena combativa.
Aproximando o aspecto político destas questões admite-se, pois, que sob a égide dos
princípios securitários de gestão dos territórios, bem como da vida e da morte, no uso arbitrário
da força e das tecnologias de repressão, cada vez mais, o espaço urbano tem sido tomado como
campo de guerra. Pela primazia da gramática bélica de confronto, o governo da cidade tem se
confundido com o Estado de Polícia, evidenciando uma ruptura direta com os pressupostos
constitucionais e produzindo subjetividades silenciadas, assujeitadas ao poder do braço armado
que opera pela lógica penal – não por coincidência, a única face do Estado que entra de maneira
contundente nos territórios negros e favelizados. Assim, os fatores de suspeição que relacionam
o “outro”, sabidamente conhecido, ao risco de desestabilização da ordem, estão mais associados
aos estigmas incorporados pela nossa sociedade do que a uma conduta ilícita propriamente dita.
Diante disso, é passível de inferência que as operações de monitoramento e controle justificadas
pelo imperativo da execução de medidas legais contra ações desviantes dizem respeito a um
interesse substancialmente maior: a efetiva eliminação de presenças indesejáveis.
83

3 ABORDAGEM POLICIAL E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO


(IN)SUSPEITO

A segurança pública do país, fundamentada na Constituição Federativa do Brasil de


1988, prevê em seu Art. 144 os órgãos públicos responsáveis pelo exercício das atividades de
segurança identificando, ainda, suas incumbências. Consoante aos termos prescritos, no que
tange às polícias militares, o ordenamento jurídico assevera:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos,


é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do
patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária
federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e
corpos de bombeiros militares.

§5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública;


aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a
execução de atividades de defesa civil.

Assim, pode ser compreendida como atividade policial, toda ação desencadeada pelos
órgãos da Segurança Pública do Estado por meio de seus representantes como forma de atingir
o bom convívio entre os seus cidadãos. Neste sentido, a adoção do termo “ostensivo” faz
referência à ação pública da dissuasão, característica do policial fardado e armado, reforçada
pelo aparato militar que evoca o poder de uma Corporação unificada pela hierarquia e pela
disciplina (RIBEIRO, 2009). De acordo com Boni (2006, p. 637), o termo “polícia ostensiva”
foi utilizado em detrimento de “policiamento ostensivo”, e a antiga noção de “manutenção” foi
substituída por “preservação” da ordem pública. As referidas alterações possibilitaram,
portanto, maior abrangência ao campo de atuação da polícia, à medida que puderam agregar
um número superior de dispositivos legais. Sobre as mudanças na redação e os impactos
gerados pela normativa, o autor sugere que:

A noção de polícia ostensiva abriga assim a ordem de polícia que nasce da lei; o
consentimento de polícia, que vinculado ou discricionário anui quando cabível; a
fiscalização pela qual se verifica o cumprimento da ordem de polícia ou quando atua
no policiamento; e a sanção de polícia que se destina à repressão da infração. A polícia
de manutenção da ordem pública, a partir de 1988 passa a deter o poder de polícia
para a preservação da ordem pública, o que engloba tanto a manutenção como a
restauração.

Destarte, para que as polícias sejam capazes de alcançar as atribuições constitucionais


que lhes são cabíveis faz-se indispensável que conservem determinados poderes de maneira que
estejam aptas a agir em nome do Estado. Isto posto, devem compreender a razão da segurança
como prestação de serviço público fundamental, com vias à administração dos conflitos sociais,
84

dada a aplicação do controle e da ordem (RIBEIRO, 2009). Para Souza e Reis (2014, p. 142),
consoante ao marco legal do Art. 78 do Código Tributário Nacional e, por conseguinte,
assentando-se nas conformidades do Estado Democrático de Direito, o poder de polícia deve
ser assimilado como “a faculdade discricionária de que dispõem os agentes públicos para
condicionar e restringir o uso e o gozo de bens ou direitos individuais em benefício da
coletividade” visando, portanto, o empreendimento na prevenção e repressão de ilícitos e na
garantia da manutenção da ordem pública.
Sendo a razão do poder de polícia o interesse social, a discricionariedade deve ser
admitida como um dos atributos específicos de seu exercício quando da análise pela aplicação
da medida nas intervenções junto à sociedade. Este poder, parte inerente ao trabalho policial
(MUNIZ, 2008), sugere a existência de certa margem de liberdade à tomada de decisão a partir
da compreensão de que os legisladores não são capazes de prever por completo uma gama de
situações concretas em torno da aplicação da lei. Assim, é de responsabilidade dos agentes de
segurança, a avaliação dos casos em que se faz necessária a sua intervenção desde que
respeitado um conjunto específico de limites legais (JESUS, 2016).
Nesta perspectiva, são também atributos do poder de polícia: a autoexecutoriedade e a
coercibilidade. Dado que a discricionariedade diz respeito à livre escolha da administração pela
oportunidade e congruência no exercício do poder de polícia, à autoexecutoriedade cabe o
caráter facultativo do julgamento e decisão sobre a aplicação do ato por meios próprios e diretos
sendo, então, dispensada a intervenção do judiciário uma vez atendidas as exigências legais.
Finalmente, impende à coercibilidade a imposição coativa da ação do poder de polícia,
legitimando, inclusive, a aplicação da força física quando necessário – em caso de resistência
ao expediente policial –, ou seja, a competência legítima do Estado de impor obediência à
norma legal. Vale frisar que, devido mesmo ao seu potencial coercitivo, o cidadão em situação
de abordagem não poderá se furtar ao procedimento no momento em que for surpreendido pelo
agente de polícia (BONI, 2006; RIBEIRO, 2009).
Aqui, ainda que da legalidade do caráter discricionário, durante as entrevistas com os
policiais militares, muitos foram os relatos que apontaram certo descontentamento quanto à
“ausência de respaldo jurídico” – o que sob outra análise, pode significar maior fiscalização do
uso e abuso da força – frente à tomada de decisão no exercício de suas atividades o que, segundo
eles, têm inibido ações e contribuído consideravelmente para o afastamento entre a população
e a polícia na capital fluminense, visto que além de não terem seu trabalho reconhecido, também
se percebem desautorizados diante daqueles que já “não obedecem mais como antes”, tal qual
85

afirma o sargento Fábio Miranda58 ao comparar as condições práticas de serviço atuais àquelas
que lhes foram oferecidas à época de seu ingresso na Corporação:

Quando eu entrei a polícia era mais valorizada, a polícia tinha mais autonomia para
poder trabalhar. Há vinte e dois anos a polícia era respeitada. A gente entrava num
local e todo mundo ficava em silêncio, esperava o polícia vir para ver o que queria.
Todo mundo era abordado e ninguém falava nada. A gente ia embora e tchau, boa
noite. Hoje em dia não, já começa um a gritar: “injustiça”! E aí começa um e parece
que inflama. Aí quando você vê, uma pessoa já pegou isso aqui [celular], que hoje em
dia é o mal desse século. Aí já começa a filmar até o polícia tomar uma atitude errada.
Depois edita e vai só aquela atitude errada, não pega o vídeo desde o começo da
situação. Aí isso vai desmotivando o policial a trabalhar na rua. A dificuldade pra
trabalhar é muito grande, a gente não tem respaldo jurídico nenhum. É o policial que
tá na rua e vai fazer uma abordagem, aí se junta quatro ou cinco pra querer bater no
polícia. O polícia não pode abordar, mas a Constituição diz que pode. Se a sociedade
abraçasse a Polícia Militar ela teria uma outra polícia (Sargento Fábio, 44 anos, pardo,
Zona Norte 2).

Para o sargento Jean Felipe59, a dinâmica do que ele chama de “desamparo” atravessa a
relação entre o policial militar e, no mínimo, outros quatro atores, a saber: “o poder jurídico, a
população, a mídia e até mesmo alguns superiores da PMERJ”. Ainda acrescenta que “os PMs
que estão na ponta são os mais massacrados, e isso é uma coisa que acontece todo dia. A gente
dorme e acorda respirando esse lugar aqui, a gente respira batalhão”. Na sequência, seu relato
ganha tom curioso quando sobre o trabalho dos agentes militares; narrativa que fala, inclusive,
daquilo que repercute também nas demais esferas da vida:

É uma relação de amor e ódio. A gente é muito malvisto pela população. A população
só quer ver o mal que a polícia faz, as operações malsucedidas. O evento social para
as crianças da comunidade que tá acontecendo aqui ninguém vê. As crianças ficam na
piscina, andam na viatura... A população só procura o furo, é difícil ver na mídia uma
boa ação dos policiais. A PM não tem boa aceitabilidade da sociedade. É lógico que
falta, devido ao efetivo, um pouco de preparo da tropa. A verdade é que a PMERJ é
uma instituição que tenta fazer o melhor enxugando gelo. Se a gente não tiver leis no
judiciário que nos amparem, não vai adiantar nada. Os companheiros, você viu, todos
cansados, desmotivados. O PM precisa ser mais valorizado, a escala é desumana. A
gente tá sendo massacrado. Tem colegas que moram em outro município e ficam a
semana toda sem ir pra casa. A gente dorme e acorda respirando batalhão. No meu
primeiro dia eu saio morto daqui, não consigo aproveitar o meu primeiro dia de folga.
Qual a vida social que eu tenho? Que atenção eu vou dar para a minha família? Se
bobear te escalam quando não é dia do seu serviço. A tropa tá desgastada, sucateada,
o serviço é estressante e a galera tá sendo escrava da Corporação. O Estado tá
quebrado (Sargento Jean, 38 anos, branco, Zona Norte 1).

Ainda de acordo com as narrativas do sargento, a população carioca “criou um mito de


que a polícia é truculenta e isso não é verdade. O polícia é enérgico pra que suas ordens sejam
acatadas. Falam que a gente coloca a arma na cara, mas é a segurança do policial que aborda”.

58
Fábio Miranda da Silva. “PM é morto a tiros em suposta tentativa de assalto no Méier, Zona Norte do Rio”
(Matéria publicada pela plataforma de notícias G1, em 13/02/2018).
59
Jean Felipe de Abreu Carvalho. “Policial Militar é morto em tentativa de assalto em Paciência, Zona Oeste do
Rio” (Matéria publicada pela plataforma de notícias G1, em 16/03/2018).
86

Quanto ao emprego da arma de fogo nas ações de abordagem, o subtenente Stephan também
tem o que acrescentar à discussão: “nunca vi policial trabalhar com flor, policial trabalha com
arma e de preferência em punho, né? Em pronto emprego”. Decerto, foi fato corriqueiro nas
entrevistas com os jovens abordados, declarações que indicavam o uso abusivo da arma de fogo
durante as ações da PM, sobretudo quando jovens negros, conforme denota Rian de Alencar60,
22 anos, morador da Zona Norte da cidade: “eu até entendo que o policial tá fazendo o trabalho
dele, não critico a abordagem. Só fico revoltado quando já chegam apontando a arma na minha
direção. Vai que aquilo escapa e dispara de surpresa em cima de mim! É um risco que corro”.
Quando contrastadas as enunciações, a “segurança” do policial que impele o “risco” ao sujeito
abordado parece sugerir um aspecto interessante desta dinâmica – pista que aponta uma dupla
vulnerabilidade. Ao modo de se operar a gestão do conflito, da defesa que se faz pelo ataque,
coronel Firmino inaugura o que denomina de “Síndrome de Thor”.
Isto posto, o procedimento de abordagem ao suspeito, relação direta entre o policial e o
cidadão, deve ser entendido como atividade operada por autoridades legalmente investidas nas
funções públicas e com competência para a execução de suas ações. Neste sentido, é assimilado
como ato administrativo quando presentes os requisitos que lhe devem revestir. Assim, compete
dizer que as abordagens policiais se caracterizam como forma de intervenção que atinge não
apenas as liberdades públicas, mas também seus bens e direitos, demandando que o policial
lance mão do poder de polícia enquanto encarregado da aplicação da lei, agindo de modo
variável de acordo com a ponderação diante do caso concreto (RIBEIRO, 2009). Dito de outro
modo, Queiróz (2015, p. 103) afirma que:

As abordagens policiais são práticas respaldadas no poder de polícia, e utilizadas


preventiva e repressivamente pelos seus agentes para o cumprimento da missão
constitucional de polícia ostensiva e preservação da ordem pública. Essas abordagens
operacionais frequentemente envolvem invasão da intimidade e privacidade das
pessoas, podendo produzir ações constrangedoras nos cidadãos abordados. É
necessário que nessas intervenções seja incorporado o respeito à dignidade humana
às pessoas que estarão sob o jugo do poder policial.

O autor destaca que devido suas singularidades, as polícias militares conformam, dentre
as instituições estatais, as que operam mais intimamente em situações de restrição de direitos e
liberdades dos cidadãos, referência também sublinhada pelo capitão Gregory: “acontece que a
população, de uma forma geral, não gosta de ser abordada porque ela acaba tendo seus direitos
individuais tolidos. Alguns cidadãos ficam constrangidos porque não são bandidos”. Entretanto,
diz ser fundamental considerar que “as abordagens são absolutamente necessárias para que as

60
Rian de Alencar Silva. “Adolescente é morto a tiros no Caju” (Matéria publicada pelo jornal O DIA, em
28/02/2018).
87

armas saiam de circulação, para que criminosos sejam presos em fuga e com mandado de prisão
em aberto. Não tem outro caminho”. A avaliação do descontentamento de algumas pessoas feita
pelo agente-capitão parece dialogar com a análise de cabo Luciano Batista61 sobre o que ele
chama de “antipatia” da população em relação à polícia fluminense: “é porque se você for parar
pra notar a gente que é polícia só chega mesmo quando tem algum tipo de problema. É bem
diferente do bombeiro que chega sempre em um lugar pra salvar”. Ao que conclui:

A população com certeza tem antipatia da polícia porque, como eu disse, a polícia só
chega num lugar quando tem algum problema, né? Você tá fazendo uma festa em casa
num momento de lazer você não vai chamar a polícia. Tu chega num momento de
estresse e ainda é uma pessoa estranha, como vai ser bem recebido? É ainda pior
quando a parte que te chama não fica satisfeita com o desfecho. Aí é antipatia dos dois
lados. É o exemplo que te dei: o som alto. Eu vou lá e a pessoa abaixa um pouquinho
e a outra pessoa acha que você é colega dele porque você entrou e saiu e o som
continuou alto. Aí isso tudo ajuda na antipatia que a população tem da polícia (Cabo
Luciano, 37 anos, negro, Zona Norte 1).

A observação do cabo se mostra um tanto quanto curiosa, pois, em princípio, a Polícia


Militar, bem como o Corpo de Bombeiros, é também acionada – ou mesmo se faz antecipar –
em evidentes situações de salvamento. Cabo Luciano inclui, ainda, outro elemento interessante
de ser destacado: quando a polícia é demandada, há duas partes e, pelo menos uma delas
costuma ficar insatisfeita. Isto ocorre seja quando ela intervém efetivamente em uma situação
cujo seu desenrolar denota em prisão de um ou mais envolvidos ou quando chamada para
mediar um conflito, em suas palavras, “menos gravoso”. Para o agente, quando, ao contrário, o
bombeiro é o representante do Estado acionado, “ele serve para todo mundo”. Imediato a sua
declaração, um questionamento pareceu ecoar: “e aí fica a pergunta: pra quem a gente trabalha?
Essa é uma pergunta que nós fazemos todos os dias”.
A noção de “fundada suspeita” é o principal requisito para que o policial militar possa
efetuar uma ação de abordagem. Componente do policiamento ostensivo, isto é, da vigilância
rotineira das ruas, consiste na atividade de examinar a presença de ilícitos em pessoas, objetos
e/ou veículos, desde que sob “fundada suspeita” de que alguém tenha praticado ou esteja em
vias de praticar fato delituoso visando à identificação e, por conseguinte, a neutralização do
suspeito (SCHLITTLER, 2016). Porém, como já ressaltado, o Código de Processo Penal não
dispõe de objetividade na sua definição, o que acarreta um entrave à aplicação da lei e
movimenta discussões em torno da questão. Assim, tomando o impasse para análise, a partir de
que/quais referências os agentes de segurança pública devem suspeitar de uma pessoa

61
Luciano Batista Coelho. “Policial é morto a tiro durante assalto na loja de departamento no Centro de Cabo
Frio, no Rio de Janeiro” (Matéria publicada pela plataforma de notícias G1, em 21/03/2018).
88

justificando a necessidade de darem início a um procedimento de busca pessoal? Aqui, coronel


Firmino aciona uma lente importante logo no início do nosso encontro, que faz falar não apenas
da ausência de descrição legal responsável por engendrar um terreno complexo de atuação ao
policial militar – que ele ensaia intitular como “covardia” –, mas também faz apresentar um nó
que se inscreve entre a ordem do indizível e da produção de concretude:

Em “fundada suspeita” não existe definição legal. Ela é, portanto, uma competência
discricionária dada ao agente encarregado de fazer cumprir a lei, agente que pode ser
interpretado até como agente garantidor de, pela discricionariedade, perceber
elementos que possam trazer perigos para a sociedade. Esses elementos vão dar a ele
a percepção de “fundada suspeita”, mas ela não diz o que é. Então ela é um elemento
penal, uma questão jurídico-penal perigosa, digamos assim. Não vou chamar de
covarde, mas... Porque ela atribui ao agente encarregado de fazer cumprir a lei a
responsabilidade de determinar aquilo que ninguém quer determinar [...] A “fundada
suspeita” que autoriza o policial a fazer a abordagem é a “fundada suspeita” de algo
que possa ser perigoso. Então você tem que encontrar na pessoa elementos de
suspeição para dizer o seguinte: “ele tá numa posição que pode trazer perigo”. Perigo
de que? Quando você fala em “fundada suspeita”, é suspeita de fazer o que? O que
compõe essa “fundada suspeita”? Bom, você é um aluno numa escola de polícia e essa
é a pergunta que você faz para o instrutor: “o que é fundada suspeita”? Ele te diz:
“olha, é o feeling, a sua percepção, o bom senso”. Tá vendo que eu não tô dando
nenhuma resposta concreta? Depende do local, depende da situação. Daí vem a
questão de chamar o cara de elemento. Na verdade, você tem elementos de suspeição.
Então dependendo disso você vai ter o feeling de que aquela pessoa pode cometer
uma infração. Mas, e afinal, o que é que vai te dar a ideia de fazer a abordagem?
(Coronel Firmino, negro).

Ademais, no exercício dos agentes policiais, a escolha dos suspeitos demanda que sejam
avaliados não apenas os critérios que subsidiarão a abordagem, mas o modo como a ação será
executada considerando, pois, a intensidade do emprego da força com vistas a atingir o fim
proposto: “você não vai entrar num ônibus com fuzil. Vai usar uma arma menor, uma pistola.
A gente não tem como usar uma arma de alto poder dentro de um local confinado com risco de
atingir todo mundo”, pondera cabo Luciano sobre as diferentes modalidades de abordagem e o
respectivo uso da força. Cabo Robert de Almeida62 também discorre sobre isso: “se eu tiver
dentro de um coletivo eu mudo até meu equipamento. Não vou abordar dentro de um coletivo
de fuzil, uso a minha pistola. Não é receita de bolo, mas a gente precisa seguir algumas coisas”.
No que diz respeito à aplicação da força, Pinc (2006, p. 14) comenta:

A medida da força a ser utilizada está diretamente relacionada à reação ofensiva, em


outras palavras, o comportamento do policial no que diz respeito ao uso da força está
condicionado ao grau de resistência oferecido pelo suspeito, destacando que o uso da
força, em grau inferior ao necessário poderá vitimizar o policial. Geralmente, este é
um aspecto da interação polícia-suspeito que tende a ser pouco explorado, pois o
maior interesse dos pesquisadores se concentra nas vítimas cujas lesões o policial deu
causa.

62
Robert Nogueira de Almeida. “Sargento da Polícia Militar é morto a tiros na Zona Norte” (Matéria publicada
pelo jornal O DIA, em 16/05/2018).
89

A autora acrescenta que “o treinamento tem papel significativo como um fator capaz de
reduzir o emprego abusivo da força nos encontros do agente de segurança com o público e de
melhorar a qualidade do trabalho policial de uma maneira geral” (PINC, 2006, p. 11). Neste
tocante, capitão Gregory aponta algumas orientações técnicas sublinhando que, sempre que
possível, estas devem ser seguidas com vistas a preservar a integridade física dos agentes de
segurança, dos abordados, bem como de terceiros que se encontram nas proximidades onde
ocorre a ação: “existe abordagem veicular, abordagem de pessoas e abordagem a edificações.
Cada abordagem dessas tem uma determinada técnica, mas de forma geral, as três regras
fundamentais são a vantagem técnica, a superioridade numérica e o fator surpresa”.

A superioridade numérica é estar em maior número que o oponente. Então é


desaconselhável ter um carro com quatro indivíduos e dois policiais pra abordar. Eu
disse que é desaconselhável, não é que não possa acontecer. Então a superioridade
numérica é o primeiro fator. O fator surpresa é que a abordagem deve ser feita de
forma surpresa ao seu oponente para que ele seja surpreendido e a terceira é a
vantagem técnica que é o policial tá abordando e diminuindo a sua possibilidade de
ser atingido por um tiro e pra própria segurança de quem tá sendo abordado também
como eu falei (Capitão Gregory, 37 anos, branco, Zona Norte 2).

No entanto, sobre os limites da aplicação técnica na atividade prática da rua, no que se


refere ao fator surpresa do qual capitão Gregory nos fala, foram colocadas em condição de
destaque algumas especificidades da modalidade de revista a veículos denominada A-Rep3 e,
mais popularmente, conhecida como blitz policial. Capitão Gregory chama atenção ao fato de
que seu nome popular “vem da guerra relâmpago, da Segunda Guerra Mundial”. Neste tocante,
Rodrigues (2015, p. 61) afirma que blitzkrieg, no contexto da guerra, revelou:

Um novo método de guerra pelo qual uma força de ataque, liderada por uma densa
concentração de blindados e infantaria motorizada com um adequado apoio aéreo,
força um avanço na linha inimiga de defesa através de uma série de ataques poderosos
e velozes, e uma vez no território do opositor serve-se do fator surpresa e da
mobilidade rápida para avançar na região e, em seguida, cercar e atacar pela
retaguarda os flancos do inimigo. A sua lógica é o emprego de armas combinadas em
guerra de manobras, de forma a desequilibrar o inimigo, tornando mais difícil para
eles, responder de forma eficaz, pois a frente de batalha muda continuamente.

Consoante ao mencionado, o procedimento de blitz policial pode ser definido como uma
ação repressiva inopinada, empregada em locais estratégicos e dedicada à revista de veículos
particulares, coletivos e/ou de carga, cujo intuito é apreender armas, drogas e outros materiais
associados a crimes e contravenções. Os critérios de seleção dos veículos a serem revistados
são preferencialmente estabelecidos em conformidade com a especificidade de cada operação
(RAMOS; MUSUMECI, 2005). Na avaliação do capitão, esta é a modalidade de abordagem
90

mais efetiva à medida que, segundo suas análises, “o crime flui pelo trânsito; as motos e carros
facilitam a fuga”.
Ramos e Musumeci (2005) já haviam assinalado certa hesitação ou ambiguidade na
definição do objetivo principal das ações tecnicamente identificadas A-Rep3. De acordo com
as autoras parece ter havido um “desvio de função” de seus objetivos ao ser transformada em
política rotineira, destinada a marcar presença policial nas ruas da cidade, deixando total ou
parcialmente de lado os seus propósitos oficiais, ou seja: apreensão de armas, drogas e veículos
roubados e furtados. Almejando, pois, a visibilidade da polícia nas ruas e um suposto aumento
da sensação de segurança, esta estratégia tornaria negligenciáveis não só os efeitos objetivos,
mas também seria geradora de consequências negativas, dentre as quais, de forma específica, a
ampliação do risco aos próprios policiais em serviço.
Buscando o efeito de visibilidade do policiamento, a escolha não somente incorreria na
redução da eficácia de suas operações pela eliminação do fator surpresa, como comprometeria
a segurança dos agentes em cena, expondo-os a longos períodos de permanência nas ruas, em
locais fixos e conhecidos. A função de visibilidade, por um lado, e de revista para apreensões
de outro indicaria, pois, uma dúbia zona fronteiriça. O que foi possível perceber na narrativa do
subtenente Stephan ao falar de suas experiências:

A gente tá abordando. Pode até ser que a gente não pegue o que a gente quer, mas ela
inibe muito o assalto porque quando o vagabundo vê que o setor tá trabalhando
naquela redondeza, ele não vai roubar ali. Se ele tá vendo o policial ali abordando, ele
não vai dar mole ali, não vai ficar boiando e passando de moto porque ele sabe que
vai poder ser abordado (Subtenente Stephan, 42 anos, branco, Zona Norte 2).

Das ações a veículos, é importante destacar que elas representam a maioria dos relatos
dos jovens brancos entrevistados nesta pesquisa. Fez-se possível notar que, diferentemente
daquelas voltadas a pedestres ou a transportes coletivos – que indicam ter como alvo principal
jovens negros – aqui, a qualidade da abordagem foi o fator diferencial. Para Jeremias Moraes63,
jovem negro que compartilhou algumas situações de abordagem em blitz policial, são notórias
as diferenças no tratamento entre os envolvidos quando em uma mesma ocasião, isto é, dado o
emprego de abordagem conjunta a jovens brancos e negros. O entrevistado voltou a me procurar
tempos mais tarde, uma vez que havia experienciado um novo e recente episódio de suspeição
pela polícia: “se a entrevista fosse agora eu teria mais uma história pra contar. Na verdade, a
pior. Basicamente, um polícia perguntou onde estava a arma e as drogas. Imagina isso em uma
blitz, antes mesmo de perguntar o meu nome”?!

63
Jeremias Moraes da Silva. “Adolescente é morto no Complexo da Maré” (Matéria publicada pelo jornal O
DIA, em 06/02/2018).
91

Eu estava indo pra Copacabana de carro e tinha uma blitz, fiz o procedimento padrão:
baixei o farol, liguei a luz de dentro do carro, enfim... Só que um policial tava muito
acelerado, já chegou com o fuzil em cima de mim. Eu estava com o vidro aberto. Aí
já perguntou: “tu vai pra onde”? Eu não posso dizer que ele tava com uma forma
truculenta porque já é meio o jeito do policial mesmo. Eu falei que ia para o hospital
e coloquei a mão pra puxar o freio de mão, aí ele: “bota a mão no volante”! Aí eu
coloquei as duas mãos no volante e ele perguntou: “cadê a arma”? E assim, nessa
calma, eu perguntei se ele não achava melhor eu parar e encostar o carro pra gente
conversar. Aí encostei o carro e continuei com as duas mãos no volante até ele
aparecer. Ele veio com o fuzil e perguntou de novo: “onde que tá a arma? Eu só quero
a arma”. Eu disse que não tinha arma nenhuma. Aí ele: “você é militar”? Falei que
não era. E ele foi e perguntou que morro eu morava: “qual morro? Qual a comunidade
que você mora”? E eu dizendo que não morava em morro nenhum. Ele pediu pra ver
o carro e perguntou sobre as minhas coisas. Eu disse: “olha, isso aqui é a minha roupa
e essa a minha mochila. Amanhã eu vou trabalhar”. E aí ele pediu pra ver a mochila.
Até então nada dos meus documentos e documento do carro, não pediu nada. Aí ele
olhou pra mochila e antes de abrir, ele chegou mais perto de mim e falou baixo: “cara,
só me dá a droga. Eu só quero a droga”. Eu fiquei muito puto! Eu já tava puto, mas aí
foi a gota d’água: “cara, não tem droga, não tem arma, eu não moro no morro e eu não
sou bandido”! Falei que aquilo era racismo e ele falou: “ah, vocês adoram isso, essa
vitimização”. Aí nesse momento, outro policial parou um rapaz, mas assim, típico
morador da Zona Sul: maluco magrinho, loiro, olho claro, tava de Uber e tal. O
policial já parou ele rindo, fazendo piada. E eu falei: “tá vendo, tenho certeza que o
seu amigo não tá perguntando de qual comunidade é aquele cara ali”. Foi a hora que
a gente começou a discutir mais. Eu sei que ele terminou a conversa, se é que dá pra
chamar isso de conversa, com a frase que mais me impactou: “a gente até trata vocês
muito bem”. Eu ainda disse: “e depois você fala que isso não é racismo”. Eu sei que
depois de muita coisa, ele pediu pra ver a documentação do veículo, minha habilitação
e aí me liberou (Jeremias, 30 anos, negro, Zona Norte).

Ademais, outra particularidade assinalada pelos policiais foi o impacto negativo do uso
das tecnologias devido ao fato de suprimir em pouco tempo o que as blitzes tem de principal:
“o fator surpresa”. Ainda que reconheçam a importância e a serventia destes recursos até mesmo
para o próprio trabalho policial, à medida que tais avanços atuam como facilitador da rede de
comunicação entre os agentes, eles também têm o seu revés. Conforme salienta cabo Luciano
em entrevista: “para ser mais efetiva a polícia precisa ficar patrulhando, andando com o carro
para poder retomar o fator surpresa”. De sua fala, podemos inferir que, talvez, a polícia venha
buscando formas de repensar a efetividade prática de suas estratégias diante do novo cenário
que se impõe. Nesta direção, ainda, sargento Fábio é taxativo: “a tecnologia atrapalha mais do
que ajuda. Depois que você fica a primeira meia hora parado, todo mundo já sabe que você tá
ali. Hoje em dia com essa coisa toda de WhatsApp64 é só assim: o polícia tá na rua”.
De acordo com os PMs, a tecnologia gera um impacto negativo tanto no que tange à
quantidade de apreensões quanto no que diz respeito ao aumento da exposição ao risco, o que
não só reafirma o que já havia sido revelado por Ramos e Musumeci (2005), bem como indica
potencializar antigos impasses. Quanto a isso, enunciam que se sentem mais expostos quando
da realização das ações próximo às zonas favelizadas, o que os leva a uma readequação das

64
Aplicativo de texto, voz e vídeo que pode ser instalado em aparelho de telefone móvel.
92

formas de abordagem. Nas palavras do cabo Filipe Mesquita65 , embora “trabalhe certo” e,
portanto, não precise adotar formas distintas ao abordar um suspeito assume que, a depender
do local, no que diz respeito a sua segurança e sua integridade física, mantém uma postura mais
ou menos “relaxada”. Neste sentido, cabo Robert denota também rever alguns cuidados e parece
admitir que certos modelos de carros são mais suspeitos que outros.

Eu procuro sempre deixar espaço pra passar um só carro porque se for o caso de
acontecer alguma coisa, se for o caso de meliantes, se der pra passar dois carros eles
vão te atropelar com tudo. Eu nunca fico na frente dos carros, sempre paro em algum
lugar que dê pra ficar abrigado e sempre dou sinal, se for à noite, com uma lanterna
pro cara parar. Se ele avançar muito aí não tem jeito, tem que se movimentar porque
você não pode esperar uma reação. A verdade é que a gente tem que esperar tudo de
qualquer jeito, a gente não sabe quem tá dentro. Mas de ser ação menos cautelosa na
Zona Sul, depende do lugar da Zona Sul também. É o que eu te falei, aí depende do
lugar. Não é porque é Zona Sul e Zona Norte. Na Zona Norte também tem vários
lugares que eu sei que dá pra abordar um carro, de certa forma, mais relaxado. Não
imprudente, mas mais relaxado. A gente sabe que onde se concentra as coisas é em
favela e a Zona Sul também tem milhões de favelas. Assim, no Rio de Janeiro é melhor
trabalhar na Zona Sul. Eu aprendi uma coisa: aqui têm várias tribos, tem policial de
tudo quanto é forma. Aqui tem gente que tem condição financeira boa, tem gente que
não tem nada, tem gente que tem estudo legal e quem não tem. Geralmente, na Zona
Sul se tem medo, tem medo de abordar e ser alguém superior, mas eu faço o trabalho
certo. Então eu nunca vou tá errado (Cabo Filipe, 29 anos, pardo, Zona Norte 2).

É difícil tá você e mais um só e aí abordar um carro que tá saindo da favela. Um carro


SUV, por exemplo, é um carro grande, caminhonete. Vagabundo gosta. Ele tá saindo
de uma comunidade, eu sei que a comunidade ali é violenta e ele é um carro
característico que os traficantes gostam. Um carro todo fechado e com vidro todo
preto, então eu tenho que ter mais cautela pra abordar esse carro. Pode ter ali dentro
três, quatro, cinco traficantes com fuzil. Então quando eu for abordar ali tem tudo pra
desandar. Se eu não fizer a coisa certinha pode desandar e eu posso me machucar,
machucar meu companheiro e machucar terceiros. Hoje em dia o vagabundo tá
roubando com qualquer carro. Não é porque é carro importado, a gente aborda
qualquer um. Só que essas caminhonetes eles gostam mais por serem mais potentes,
mais espaçosas pra eles poderem andar com o fuzil lá dentro. Então, se eu tiver
beirando uma comunidade, a abordagem é diferente (Cabo Robert, 30 anos, pardo,
Zona Norte 2).

Desta maneira, concebendo que os procedimentos de segurança militarizada demandam


processos decisórios alicerçados no jugo do agente policial em serviço, embora possuam limites
legais, reais e razoáveis, ainda assim, estes “são de difícil delimitação em abstrato, o que induz
ao reconhecimento da pertinência de analisar, em cada caso, qual a medida mais adequada”
(BONI, 2006, p. 651). Schlittler (2016) faz apontar a dificuldade de se estabelecer uma fronteira
demarcada entre o cumprimento do atributo discricionário e o que pode ser compreendido pelo
caráter de arbitrariedade, o que pode gerar efeitos significativos à medida que em vias da relação

65
Filipe Santos Mesquita. “Policial militar morto na Rocinha será enterrado nesta sexta-feira” (Matéria
publicada pelo jornal O GLOBO, em 23/03/2018).
93

cotidiana com a população, suas decisões afetam a vida de um grande número de pessoas. Para
Muniz e Proença (2007, p. 41):

O poder de decidir sobre a ação policial mais adequada a um certo tipo de evento, ou
mesmo de decidir agir ou não agir numa determinada situação diante de um evento ou
de sua antecipação, revela que a tomada de decisão discricionária é a práxis essencial
da polícia, do exercício do mandato policial.

Da discricionariedade policial e, portanto, de sua tomada de decisão serão extraídos o


conhecimento, o fazer policial e um saber prático (MUNIZ, 1999). Isto posto, é possível inferir
que os policiais militares, no uso de suas atribuições, não se valem somente de um acervo de
normativas, mas adotam um conjunto de experiências práticas construídas coletivamente nas
ações de rua. Nas palavras de Tânia Pinc (2011, p. 203), estes profissionais utilizam-se de um
“estoque de conhecimento acumulado”, que calibra seus olhares ao reconhecimento imediato
de situações de perigo. Portanto, quanto maior o tempo de serviço dedicado à instituição militar,
espera-se que mais acertada seja a capacidade de apreensão dos critérios afiançados para definir
o que/quem será suspeito em uma dada ocasião. Sobre isto mesmo, cabo Robert faz demarcar:
“o policial aprende durante a vida profissional inteira. Tanto que quando tem um companheiro
mais experiente ele sempre toma a frente do acontecimento porque a maturidade e a experiência
fazem com que ele esteja apto a fazer isso”.
Diante disso, Maria Gorete Jesus (2016, p. 78) assinala que embora a legislação forneça
um suposto enquadramento necessário à delimitação do que deve ser estabelecido como crime,
depende da narrativa policial o tom financiado à ilicitude do cenário em questão. Ainda segundo
a autora, um discurso amparado em um tipo específico de conhecimento adquirido por meio de
outras matrizes que não somente restritas às legislações criminais e normativas internas da
Corporação e que, portanto, pode ser definido como um saber prático-discursivo “adquirido por
meio de outras fontes, como a formação policial, pela cultura institucional e pela experiência
de trabalho diário e relação entre os policiais”. Para Muniz (1999, p. 167):

É evidente que esse tipo de visão não pretende negar que os procedimentos formais e
universais do tipo “de acordo com o manual” têm a sua utilidade e produzem
resultados consequentes. O que esse saber prático anuncia é que a negligência dos
elementos circunstanciais, em favor da aplicação exclusiva de princípios gerais,
impõe graves limitações à eficácia da ação escolhida. Face à complexidade da
demanda pelos seus serviços e a pressão dos acontecimentos, todo PM aprende
rapidamente que as regras universais de trabalho, quando desencarnadas das
experiências concretas de policiamento, tendem a ser de pouca serventia.

Significa dizer, assim, da produção cotidiana de uma prática especializada e anterior aos
limites do saber científico, mas que, por sua vez, encontra fundamentação em um conjunto de
normativas, relações, experiências compartilhadas e regras produtoras de subjetividades, que
94

reúnem um conjunto de elementos e constituem o que os policiais nomeiam “tirocínio policial”.


Para o agente-capitão Gregory, a habilidade pode ser descrita como “aquilo que faz você sentir
o ambiente, se sentir desconfortável e então fazer a abordagem. Isso só vem com a experiência,
com o trabalho que se faz na rua. Você passa a modificar, passa a olhar o indivíduo diferente”.
Quanto aos saberes, Foucault (2009, p. 204) assevera que:

A esse conjunto de elementos formados de maneira regular por uma prática discursiva
e indispensáveis à constituição de uma ciência, apesar de não se destinarem
necessariamente a lhe dar lugar, pode-se chamar saber. Um saber é aquilo de que
podemos falar em uma prática discursiva que se encontra assim especificada: o
domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir ou não um status
científico [...] Há saberes que são independentes das ciências (que não são nem seu
esboço histórico, nem o avesso vivido); mas não há saber sem uma prática discursiva
definida, e toda prática discursiva pode definir-se pelo saber que ela forma.

Em suma, da inexistência de parâmetros concretos, seja na legislação ou na formação


policial, é o saber prático, quando das atividades de policiamento, que lhe atribuirá significados
aplicáveis (SCHLITTLER, 2016). O aspecto discricionário e íntimo às ações de polícia denota,
assim, uma questão de grandes implicações práticas devido ao fato de que, a depender do seu
exercício, o que era apreendido como atributo do poder de polícia, dada a ausência de definição
legal, pode tender a se transmutar em uma prática orientada por autorizações prévias fundadas
em uma lógica não condizente aos preceitos democráticos. Desta maneira, mais do que analisar
especificamente os procedimentos de abordagem e/ou seus aspectos jurídicos e administrativos,
tenho intentado, a partir das narrativas compartilhadas pelos jovens e agentes policiais militares
entrevistados, investigar que saberes e práticas têm sido construídos enquanto produções de
verdade e quais destas forças e fluxos pedem passagem quando da fabricação da fisionomia
(in)suspeita por aqueles que operam, através da lei, as tramas do ordenamento social – e também
por aqueles que não as operam de modo formal.
Nas páginas que se avizinham faço a opção de seguir o caminho inverso. Deste modo,
partirei daquilo que foi negado, silenciado, embora fatalmente presente não só nos números
registrados, mas nas falas dos policiais. O mesmo que também adentrou por canais de passagem
nos relatos dos jovens voluntários quando da experiência do contato rotineiro com homens da
PMERJ, bem como no circular pela cidade no encontro com demais civis. Assim, tomarei de
partida aquilo que outras tantas pesquisas já puderam demonstrar e que esta vem atualizar: a
seletividade de homens negros, sobretudo jovens de áreas favelizadas, nas ações de abordagem.
Neste sentido, a ideia é seguir através daquilo que, mesmo velado, aparece por todas as entradas
e me leva a percorrer caminhos até o “tirocínio policial”.
95

Um tipo de saber que, ao contrário das questões de cor/raça, teve grande espaço na fala
dos agentes de segurança, mas que em razão de seu difícil mapeamento e de sua consequente
demarcação, precisa fazer uso do flagrante para auxiliar a formulação de uma complexa via de
concretude. Cabe salientar que se os PMs entrevistados não alcançam uma definição tangível,
é por ser esta mesmo uma fabricação que escapa à racionalidade legal não podendo ser garantida
na prática, uma vez que inscrita no campo das produções de subjetividades e não, em exclusivo,
por questões de ordem jurídico-legal. Um fluxo de intensidades difíceis de serem transformados
em relatos, produzir narrativas ou verbalizações, embora aparentemente simplórias quando do
compartilhamento entre os seus pares.

3.1 Flagrante delito: uma faceta importante

A prisão em flagrante é uma das modalidades de prisão em cujo policial militar participa
mais ativamente por razão de sua competência legal originária – procedimentos de policiamento
ostensivo e preventivo nas ruas da cidade. Schlittler (2016) faz afirmar que a prisão em flagrante
é o resultado da vigilância dos agentes de segurança que se utilizam da habilidade do “tirocínio”
para selecionar pessoas que estejam cometendo algum tipo de crime, logo na sequência de seu
ato ou na presença de objetos e instrumentos que façam presumir ser esta pessoa a responsável
pela autoria. Consoante às definições de Lima (2017), o flagrante possui quatro fases distintas:
a captura, primeira delas, antecede a condução coercitiva destinada à autoridade competente,
seguida da lavratura do auto de prisão em flagrante e, finalmente, o encarceramento do sujeito.
Neste sentido, em tese, o protagonismo policial-militar durante as ações de abordagem se faz
presente nas fases de captura e condução coercitiva.
Ainda para Schlittler (2016, p. 38) não seria inadequado inferir que a ausência de
definições institucionais precisas à mobilização policial no que tange à identificação de sujeitos
suspeitos resultasse em uma ampla gama de perfis daqueles que são presos e/ou mortos pela
polícia. No entanto, os números – alguns anteriormente apresentados – têm exposto um cenário
diverso. Nas palavras da autora, o que ocorre, ao contrário, é a “reiteração de um padrão de
atuação policial que focaliza um público específico, o qual é marcado por signos de raça e de
classe social e identificado como suspeito de cometimento de crimes”.
Na esfera da segurança pública, a análise positivista da criminologia desloca a atenção
do ato infrator para o autor e, então, a intervenção limita-se à oferta do crime (MELICIO, 2012).
Da competência discricionária que confere ao policial militar a autoridade da análise e escolha
de como e quando intervir em suas atividades de policiamento ostensivo, Soares (2015, p. 29),
96

faz assinalar que o formato de uma estrutura organizacional interfere significativamente na


instauração do processo decisório de seus membros. Para o autor supracitado, tendo em vista
as normatizações constitucionais:

Dada a divisão do trabalho [...] que atribui a investigação com exclusividade às


polícias civis, resta aos policiais militares, quando se lhes cobra produtividade, fazer
o quê? Prender e apreender drogas e armas. Prender que tipo de transgressor? Atuar
contra quais delitos? Se o dever é produzir, se produzir é sinônimo de prender e se
não é permitido investigar, o que sobra? Prender em flagrante [...] Com frequência
jovens de baixa escolaridade, pobres, moradores de periferias e das favelas [...] O pulo
do gato, que torna tão efetiva a ação policial militar – quando avaliada não pelo
resultado que deveria importar (a redução da violência), mas por índices de
encarceramento, dá-se quando o imperativo de prender apenas em flagrante encontra
um instrumento legal para fazê-lo com celeridade e em grande escala: a política
criminal relativa a drogas e a legislação proibicionista dela derivada.

Dito de outro modo, no campo da legalidade, à PM é negada a autonomia de investigar


ao passo que lhe cabe realizar prisões. Conforme denota o autor, a exigência por resultados é
uma contínua retórica tanto dos governos, quanto dos comandos, tal qual se apresenta inscrita
nas reivindicações da população e no que é explorado pelos veículos de mídia que, de igual
modo, pressionam requerendo demonstrações de produtividade. Nesta perspectiva, em um
sistema bipartido, admitindo a complexidade do conjunto de atividades dispensadas à Polícia
Militar, bem como levando em consideração a política de combate às drogas vigente no país,
parecem ser estes aspectos fundamentais à promoção da seletividade nas estratégias de
policiamento adotadas indicando, pois, que alguns crimes talvez recebam mais atenção que
outros. Soares (2015) faz enunciar que a lei de drogas é o mote que viabiliza e justifica a
seletividade que captura de maneira singular àqueles vinculados à dinâmica do varejo. Analisar,
portanto, quem são os sujeitos presos em flagrante delito nas ações de abordagem configura-se
como um encaminhamento importante ao exame das políticas de segurança adotadas no país e
no Estado e das técnicas de controle social inscritas nas ações de policiamento da PMERJ,
sobremaneira, as de abordagem.
Somados a isso, a discussão sobre os parâmetros de produtividade reconhecidos pela
instituição policial-militar. A vigília sobre a população e a abordagem de suspeitos têm como
única face mensurável o seu elemento final: a quantidade de criminosos presos ao longo de um
dia de policiamento nas ruas (SOARES, 2015). “Realizar uma boa prisão, ou seja, autuar um
criminoso em flagrante delito é o que todo policial gostaria de fazer em suas atividades diárias”
(PINC, 2006, p. 27). Portanto, podemos inferir a predileção da Polícia Militar por registros
quantificáveis, tais como Boletins de Ocorrência, prisões em flagrante e apreensões de jovens
em situação de infração (SCHLITTLER, 2016).
97

Assim, o clamor punitivo e a pressão por resultados numéricos específicos, ao que tudo
indica, atuam como reforçadores da seletividade de suas escolhas. Em sua página eletrônica, a
PMERJ, divulgou, em janeiro de 2018, os índices da “Produtividade da Polícia Militar em
2017”. Distribuídos em quatro quadros distintos, os resultados de suas ações: apreensões de
armas de fogo (a quantidade de fuzis aparece discriminada), artefatos explosivos e granadas,
além da quantidade de drogas, prisões de adultos e “menores”. Entre os dados, o número geral
de ocorrências atendidas e de violência contra a mulher também despontam com certa evidência
(PMERJ, 2017). Para capitão Gregory: “a Polícia Militar sustenta a segurança pública com
sangue, suor e lágrimas”. Ao que cabo Luciano completa: “o pessoal não sabe, mas tem garoto
de quatorze anos aqui na favela do lado com fuzil maior que o meu, mais moderno. Esse aqui
que eu uso tem quarenta anos e eu vou praticamente só com ele enfrentar isso aí”.
Os dados divulgados, porém, para efeitos desta discussão, não possibilitam afirmar o
quantitativo das prisões e apreensões em flagrante e por mandado, bem como o perfil social das
mesmas. De igual forma, não podemos atestar com base no informativo que são estes os tipos
criminais mais atendidos pelos policiais militares no decurso do referido ano. Contudo, os
limites da análise não fazem desta uma investigação menos interessante, à medida que permitem
examinar quais atividades a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro classifica e torna
disponível na categoria “produtividade” anual (SCHLITTLER, 2016). As falas do subtenente
Stephan e do sargento Fábio aparentam confirmar a lógica:

A abordagem é extremamente necessária porque muita arma é tirada da rua devido à


abordagem. O comando mesmo fala: abordar, abordar, abordar. A patrulha, o ruim é
que ela é muito empenhada, né? No final de semana ela pega vinte ocorrências numa
noite. Então você tira a liberdade de tá patrulhando, parar e abordar. A abordagem é
extremamente eficaz pra você tirar mau elemento da rua e arma (Subtenente Stephan,
42 anos, branco, Zona Norte 2).

Se a polícia não tirar mais de quatrocentos, quinhentos fuzis da rua, eu não sei qual a
estatística desse ano, só chega mais. Tem quinhentos, a polícia não tira nada, ano que
vem tem mais quinhentos e isso a gente tá falando só o que apreende, o que tá tirando,
fora o que já estão lá. Igual o Exército agora, eu acho que eles têm o respaldo de
equipamento, estão bem estruturados, mas eles não têm experiência (Sargento Fábio,
44 anos, pardo, Zona Norte 2).

Chama a atenção no primeiro relato não somente a quantidade de ocorrências a que são
demandados em um único plantão, mas também a ênfase conferida às ações de abordagem em
detrimento das demais atividades – nota-se que a grande justificativa é a retirada de armas. Para
Schlittler (2016), afirmações como esta inferem, sobretudo, duas constatações importantes: que
os indicadores de produtividade policial se restringem somente a uma parcela da amplitude de
tarefas desempenhadas nas ruas e que, durante o policiamento, situações que venham a destoar
98

das prescritas em termos de produtividade poderão ser menos valorizadas pela Corporação.
Aquelas que, informalmente, recebem o título de “feijoada”.
Ainda falávamos sobre as ocorrências policiais quando o sargento Fábio colocou em
destaque: “na verdade, quando a gente trabalha em patrulha, a nossa função não é só servir e
proteger, o polícia é tudo. O cara que tá trabalhando na patrulha, ele é juiz, psicólogo, terapeuta,
médico, é ele que resolve tudo”! Segue a narrativa dando exemplos de demandas que “fogem”
às atribuições policiais e se encaixam nestes outros papeis assumidos pelo profissional que está
na rua, ou “na ponta”, como costumam dizer. “Faz parte”, ele completa. Outros policiais
também falaram de suas experiências com este tipo de intervenção, principalmente no Zona
Norte 1, o “batalhão diferenciado”: “aqui é um ponto fora da curva, o que mais tem é ocorrência
de som alto e violência contra a mulher”, assegurou cabo Luciano.

O policial da ponta é o cara que mais trabalha. Plantão de doze horas. É o serviço de
RP [radiopatrulha], o serviço 190, que a população liga solicitando ajuda. A gente tem
um local de atuação, cada equipe tem um local de atuação que a equipe fica. Tem uns
tempos de liberdade que você circula a área toda e tem uns locais que o batalhão faz
a mancha criminal aí você intensifica em alguns lugares. O polícia vai sempre em
dupla. A gente que é envolvido em ocorrência assim... Teve um dia que uma senhora
pediu ajuda porque ela brigou com o marido, o marido tava drogado dentro de casa e
ela queria nossa ajuda pra entrar na casa dela e pegar as coisas dela. Eu falei: “senhora,
a senhora é a dona da casa”? Ela falou: “sou, eu moro junto com ele. Essa casa é minha
também”. Perguntei de novo pra ela: “a senhora autoriza então nós entrarmos na casa
com a senhora”? “Autorizo sim”, ela falou. Quando a gente entrou, o cara começou a
quebrar o teto e agredir a gente. Pra conter o cara, minha filha... E acabou que a gente
teve que se envolver (Sargento Fábio, 44 anos, pardo, Zona Norte 2).

Exemplo banal que acontece muito aqui: som alto. A gente não tem meios para coibir
um som alto. A pessoa coloca um funk e a gente vai e pede pra... Funk eu tô falando
de uma maneira geral porque geralmente a pessoa ouve funk com altura, né? Ela
extrapola o limite do som. Aí a pessoa fala que não vai diminuir. Dependendo do
horário a pessoa nem entra na perturbação do sossego. A pessoa quer saber até que
volume pode ouvir. Eu vou falar o que pra essa pessoa? Coloca no número cinco?! É
vago. Eu falo: “pô, usa o bom senso pra ver se seu vizinho consegue dormir tal hora
da noite”. Aí a pessoa vai e diminui lá só um pouquinho, o que não deixa de continuar
incomodando (Cabo Luciano, 37 anos, negro, Zona Norte 1).

Na cultura da polícia, as “feijoadas” apontam situações que demandam um trabalho


exacerbado e geram poucos resultados, ou seja, ocorrências que, na visão dos agentes policiais,
representam baixo potencial ofensivo. Em geral, são atendimentos que envolvem conflitos
familiares, brigas em bares e restaurantes ou entre vizinhos. Nestes casos, a negociação informal
entre as partes é o primeiro procedimento (SOUZA, 2008). Assim, se por um lado, as ações de
abordagem são reconhecidas como atividades policiais legítimas devido a sua inscrição como
modalidade de combate ao crime/criminoso e manutenção do ordenamento social, por outro, as
“feijoadas” não têm o mesmo status. Ainda de acordo com a autora:
99

Coexistem no âmbito policial carioca categorias nativas que demonstram esses


valores. Se por um lado, há casos que são desconsiderados pelos policiais por não
serem considerados trabalhos legítimos da instituição, como a feijoada, por outro
lado, existem os casos de polícia usados por eles para indicar situações explicitamente
de ação policial [...] como operação policial e prisões [...] De certa forma, os casos
feijoada são atendidos como uma atividade que não faz parte da função polícia, esse
atendimento é percebido como um “favor” dos policiais para a pessoa que pede auxilio
[grifos da autora] (SOUZA, 2008, p. 14-15).

A partir dos relatos dos entrevistados e de outros estudos que se debruçam sobre a
questão apresentada (SOARES, 2015; JESUS, 2016; SCHLITTLER, 2016) podemos inferir
que as ações de abordagem e as prisões em flagrante constituem-se, portanto, dadas as divisões
estruturais, o mote das políticas de segurança pública adotadas e as exigências de mensuração
da produtividade policial – que não se encerram, necessariamente, na redução dos índices de
violência –, em meio à tamanha complexidade de funções admitidas pela PMERJ. Quanto à
efetividade e outras proposições, no que tange à recorrência de sua aplicação, capitão Gregory
faz um comparativo entre as investidas em torno de suspeitos aos arremessos de um jogador de
basquete que, quanto mais se propõe a jogar, aumenta também sua chance de ser mais efetivo.

Efetividade tem a ver com resultados, né? Meios e resultado. A abordagem policial é
efetiva e a abordagem a veículos, sem dúvida, é a mais efetiva porque o crime flui
pelo trânsito, né? Se você verificar o modus operandi do criminoso, muito dificilmente
ele rouba a pé. Existe, não é que não existe. Mas ele vai roubar na maioria das vezes
de moto ou de carro pra poder facilitar a fuga. Então se a gente priorizar a abordagem
a veículos os resultados são muito maiores porque o policial só vai poder prender se
ele abordar. Então a orientação é abordar continuamente. Quem mais aborda mais
prende. É igual o Oscar quando vai lançar a bola lá na cesta. Ele só acerta mais se ele
jogar mais. Ele tem que jogar (Capitão Gregory, 37 anos, branco, Zona Norte 2).

Faz-se importante ressaltar que em relação ao trabalho da PMERJ, de acordo com os


policiais entrevistados, são três as entradas possíveis que dão origem às ocorrências policiais:
uma parcela das atividades é demandada no encontro direto entre a população e o próprio agente
ou por chamadas telefônicas no 190.

Maré Zero é o Centro de Comando Integrado de Controle. Quando uma pessoa disca
190 no telefone a ligação cai lá. Então, dependendo da ocorrência, ela despacha uma
radiopatrulha ou ela informa a uma sala de operações pra tomar uma providência. Por
exemplo, se há uma ocorrência que tem um policial sequestrado em uma comunidade,
não vai chamar uma radiopatrulha pra ir lá verificar. A Maré Zero vai passar a
ocorrência pra sala de operações do batalhão, vai passar pro tenente ou pro oficial de
serviço, que vai avaliar a condição de fazer uma operação ou acionar um escalão
superior pra reforço. Vai depender da ocorrência exatamente (Capitão Gregory, 37
anos, branco, Zona Norte 2).

Outra parte resulta da avaliação de um superior encarregado sobre a necessidade de


patrulhar determinado setor com base na incidência criminal da região e um terceiro eixo que
se estabelece na imprevisibilidade própria do trabalho de rua (SCHLITTLER, 2016). Sobre a
100

última, coronel Firmino destaca que “o PM é aquele que tem que tá sempre preparado pra
ocorrência. Ele não escolhe a ocorrência, a ocorrência é quem escolhe ele. Você não escolhe
pra qual ocorrência vai, você é chamado”. Faz um paralelo, ainda, utilizando-se da própria
divisão institucional:

O lema da polícia no mundo sabe qual é? Servir e proteger. Agora, qual o papel da
polícia? O que o Governo me impõe, é o que a política me impõe. E outra coisa: o
policial não se acha policial se ele não tiver combatendo. Isso é uma construção que
ele faz antes de entrar pra polícia. Por isso que em 2007 todo mundo queria ser do
BOPE, a partir do filme ‘Tropa de Elite’. Mas mesmo antes até, quando você vê
naqueles filmes policiais americanos, como é o policial? Grosso, violento. E por isso
que eu falo do BOPE porque por incrível que pareça é a unidade que menos mata e
ele só sai pra combater. Isso acontece porque ele sabe o motivo dele sair do quartel.
Ele tá preparado para aquela missão. Ele é pontual, terminado aquilo ele volta, retrai.
Ele não vai sair também pra dar um susto no garoto que tá na praça fumando maconha,
pra outra que precisa de ajuda pra atravessar a rua movimentada. Ele é “pá-pou”. Tem
mais tempo pra treinar, atua em ações coordenadas, além de ser mais bem treinado
(Coronel Firmino, negro).

Dito de outro modo, a problemática da concentração em atividades cujo objetivo é a


realização de prisões em flagrante e apreensão de armas e drogas é que elas reforçam a condição
de seletividade sobre um campo restrito de tipos criminais, em sua maioria, os patrimoniais e
àqueles ligados ao comércio de drogas ilícitas, bem como sobre pessoas com um perfil social
específico: homens jovens, negros e moradores de regiões favelizadas. Neste contexto, Mena
(2015, p. 23) aponta que, no Brasil, a prevalência do flagrante em detrimento das investigações
produz uma distorção que é própria também da ineficiência da divisão do trabalho policial.
Afirma que enquanto a Polícia Militar volta suas ações à prevenção e ao patrulhamento, à
Polícia Civil cabem as investigações; atividades encaminhadas, no entanto, com uma troca de
informações mínima entre as organizações envolvidas. Entende a autora que “a simples criação
de bancos de dados conjuntos revelou-se uma epopeia”.
Por tudo isso, Luiz Eduardo Soares (2015, p. 29) não hesita em dizer que as estruturas
organizacionais das polícias e as políticas em jogo conformam-se como alguns dos elementos
fundamentais à definição das escolhas orientadas de suas ações.

Se o flagrante como expediente exclusivo de ação policial no campo da persecução


criminal submete a aplicação da lei a um crivo seletivo muito peculiar, o recurso à lei
de drogas submete o princípio constitucional elementar, a equidade, a refrações de
classe e cor. E assim o acesso à Justiça revela-se uma das mais impiedosas e
dilacerantes desigualdades da sociedade brasileira.

Ainda que seja esta uma discussão que ultrapassa os limites pretendidos nesta pesquisa,
cabe salientar que a grande maioria dos crimes que são executados hoje, no Brasil, por via do
flagrante delito é apenas homologada pela justiça brasileira. A justiça, em casos de flagrante
101

não julga, ela homologa aquilo que foi encontrado pelo PM em sua abordagem. Nesta direção,
é preciso pensar que a ação de abordagem não se trata apenas de um processo de prevenção,
mas significa também um processo de investigação, de julgamento e, ainda, de execução penal.
Se hoje entendemos que o nosso sistema penitenciário é atravessado pela mesma seletividade
que estrutura a sociedade brasileira, podemos inferir, de igual modo, que os processos de
prevenção contribuem de maneira preponderante para o modo como o sistema penitenciário
opera hoje (BICALHO, 2016).
Em suma, a polícia que circula pela cidade é também aquela proibida de investigar.
Assim, como a maior parte das prisões decorre dos flagrantes – por razões já levantadas – os
crimes que compõem o foco de ação da instituição policial-militar, ao que tudo indica, são
aqueles passíveis de prisão em flagrante, ou seja, patrimoniais e vinculados ao comércio de
drogas ilícitas. Desta forma, o que podemos supor é que há uma intrínseca relação entre um
policiamento interessado nas abordagens, cujo objetivo, de maneira geral, é a realização de
prisões em flagrante e a prisão de pessoas ligadas a um número restrito de tipos criminais.
(SOARES, 2015). Portanto, o que o exame desta questão sugere é que há um crivo seletivo não
somente nas ações de polícia, mas, por conseguinte, nos perpetradores.

3.2 Cor padrão: “o elemento do crime é negro, ele é crioulo”

Eu trabalhava na Baixada, outra realidade. Diferente até da Zona Norte.


Lá você tem uma maioria que é mulata, nordestina. Tem um negro
diferenciado em termos de cor e de origem. E aí de repente: quatro
elementos. Três de cor padrão. Eu falei: que porra é essa? “Cor padrão,
chefe. O elemento do crime é negro, ele é crioulo”. Eles estavam então
dizendo que cor padrão era igual a crime.
Coronel Firmino, negro

Rian de Alencar foi um dos jovens entrevistados nesta pesquisa. O encontro aconteceu
em sua casa, Zona Norte da cidade. Durante a entrevista, minha atenção foi despertada para o
que ele vinha chamando de “ritual”, um conjunto sistemático de movimentos acionados quando
da presença dos agentes de segurança em situação de blitz, a também conhecida como A-Rep3.
Da sala de jantar, escutava atentamente as histórias que me ajudariam a compor esta dissertação,
relatos de alguém que, desde a infância, fora ensinado a lidar com a polícia – e também com a
sociedade. Rian faz despertar a desconfiança de ambos, o critério é o mesmo:
102

Quando eu sou parado na blitz eu já tenho o meu ritual: desligo o carro, coloco a chave
no teto, mãos pra fora e aguardo o policial pedir o documento de habilitação e o
documento do veículo ou pra eu descer do carro [...] Isso é desde sempre. Desde
criança o meu pai me ensinou o que fazer se eu fosse parado pela polícia na rua (Rian,
22 anos, negro, Zona Norte).

O ser humano forma na cabeça a imagem do ladrão e a imagem de uma pessoa que
não é ladrão. Vê o moleque branquinho, loirinho, bem arrumado... Não é ladrão.
Agora, às vezes, tem um negro apresentável, mas pô, aí é visto como ladrão. Isso eu
acho que na cabeça das pessoas já tá formado, então isso pra mim é normal [...] Onde
me deu o maior estresse foi quando a menina viu que eu estava apenas comprando,
pagando já, nada com ela eu ia fazer e ela continuou com essa indiferença toda
comigo. Aí pra mim não parte mais do medo, parte do preconceito (Rian, 22 anos,
negro, Zona Norte).

“Desligo o carro, coloco a chave no teto, mãos para fora e aguardo o policial pedir o
documento de habilitação e o documento do veículo ou pra eu descer do carro”, ele repetia ao
esmiuçar as abordagens. Enquanto falava, usava de recursos gestuais para ilustração das cenas.
Como pulsos que aguardavam o fechar das algemas, os seus cruzavam-se um sobre o outro
todas as vezes que se voltava à experiência da abordagem. Se não uma expressão um tanto
quanto impactante, no mínimo, uma atitude curiosa. Pistas, talvez, que façam ver e falar a
construção do corpo negro em nossa sociedade. Um corpo controlado, que passa apagando ou
demarcando sua cor/raça e sendo, por ora, invisibilizado completamente ou visibilizado de
maneira excessiva quando, a depender do contexto, redefine sua posição no cenário social
angariado pela produção do medo. O símbolo do mal a ser extirpado da sociedade, sobretudo,
daquela que compõe a dinâmica da capital fluminense. O jovem Jeremias também aponta ao
enunciado de maneira contundente:

Eu tenho o estereótipo visto como um marginal por ser negro, homem negro. Eu não
sou, mas eu tenho que passar por isso. O racismo machuca muito todas as pessoas
negras, e ele machuca de várias formas. E eu sendo um homem negro, passo pelo
racismo exatamente sempre sendo visto como suspeito. Eu sempre sou visto como
suspeito não só pelos policiais, mas no dia-a-dia. Então isso causa um mal que parece
que não adianta o tempo passar, parece que o racismo não vai acabar. Nós sempre
somos vistos como algo ruim. Sempre somos denominados como pessoas que têm
uma probabilidade de fazer alguma coisa errada, e é isso que machuca. As pessoas
que não são negras não conseguem entender o racismo e o mal que ele faz (Jeremias,
30 anos, negro, Zona Norte).

Rian, por sua vez, conta, ainda, que em uma de suas idas à praia, ele e mais dois amigos
foram parados por uma blitz próxima à orla. O carro que ocupavam tinha valor comercial
superior ao de veículos populares. Do banco do carona pôde constatar a reação imediata do
policial: “e aí, negão, roubaram de quem”? O jovem, escapando a sorte de outros tantos garotos
negros de sua idade, não é morador de favela, nem mesmo dispõe de uma condição econômica
ou social vulnerável. Proprietário de duas pequenas empresas, Rian vive em uma residência
103

confortável, ganhou o primeiro automóvel antes de completar a idade mínima de habilitação


para dirigir, cursa o ensino superior em uma universidade particular, bem como tem se dedicado
a aprender um novo idioma em um dos cursos mais conceituados da região. Nem por isso Rian
deixou de ser suspeito para a polícia, ou sequer esteve isento dos ensinamentos do pai em
relação aos agentes de segurança – assim como Luiz Paulo, ele também “aprendeu de berço” a
lidar com as malhas da captura.
Entretanto, o “destino”, nestes casos, parece implacável, não abre margem para demais
interpretações. Rian e seus amigos carregam no corpo o que há muito vem sendo estabelecida
como marca crucial da condenação: a cor/raça negra. De acordo com Bento (2006, p. 56), a
“rotina de humilhação dos negros da classe média expõe o racismo mal disfarçado no Brasil.
Na democracia racial brasileira, uma ideia otimista de antropólogos românticos, o negro que
sobe socialmente está destinado a descobrir uma face mais sutil da discriminação”. Tal como
assinala Jeremias:

Graças a Deus, e eu digo graças a Deus mesmo, que eu não moro em comunidade. Se
eu passo isso sem morar em comunidade, fico imaginando uma pessoa preta que mora,
o que ela passa. De fato, deve ser horrível. Semana passada quando eu fui seguido
pelo segurança das Lojas Americanas eu tava voltando da minha pós-graduação, por
exemplo. Esse tipo de abordagem não foi uma abordagem violenta, ou fisicamente
violenta, mas ela causa um mal. Naquele momento eu fiquei com raiva. Não tem como
você se sentir bem com uma pessoa achando que você é um assaltante, um ladrão. A
raiva é algo que eu convivo o tempo todo, eu sinto raiva dessa situação. Eu sinto raiva
do racismo o tempo todo. Então, na verdade, não importa se eu faço pós-graduação
ou se eu trabalho numa multinacional. Nesse momento, na rua, eu sou só mais um
preto. Não tem essa, não importa. Quem é você, cara? Você é só mais um homem
preto (Jeremias, 30 anos, negro, Zona Norte).

Assim, o preconceito e a discriminação raciais, ainda que mascarados em favor da


afirmação de antigas regras de convívio são elementos de opressão constitutivos da nossa
formação histórico-cultural. Experiências como as dos jovens Rian, Luiz Paulo e Jeremias são
o que torna possível “descolar” a raça da questão social, uma vez que possibilita colocar em
evidência o fato de que não é a rigor a condição de vida (des)favorável, mas sim a marca negra
estampada em seus corpos, o mecanismo diretamente responsável por não dispensá-los dos
recorrentes episódios de suspeição. De uma forma geral, quando pensamos racismo no Brasil
articulamos, quase que de imediato, a condutas de violência explícita contra pessoas negras.
Contudo, devido ao caráter próprio de sua construção na história, em diversas circunstâncias,
manifestações racistas podem se fazer ver também sob outros contornos, ou seja, de maneira
um tanto quanto velada.
Para Sueli Carneiro (2005, p.62), no Brasil, “o discurso que molda as relações raciais é
o mito da democracia racial. Sua construção e permanência até os dias atuais evidencia, por si,
104

sua função estratégica, sobretudo como apaziguador das tensões étnico-raciais”. Ainda para a
autora, a própria ideia de mestiçagem, pela herança branca, negra e indígena constituinte da
formação do país, ao passo que aparece enquanto elemento estratégico usado como instrumento
para embranquecer a população por meio da hierarquização cromática e das características
fenotípicas – portanto, quanto mais próximo da imagem do negro retinto de traços grossos, mais
afastado da condição humana um sujeito passa a ser concebido – tem também se configurado
como argumento principal para confirmar e legitimar a inexistência de preconceito, intolerância
e desigualdade racial no Brasil.

Se você é um pouco mais retinto, se tá se portando de alguma maneira... Até dentro


da favela mesmo, se você é um negro de pele mais clara, a abordagem vai ser diferente,
se você é um negro retinto, a abordagem é outra. O jeito que você fala, o que eles
encontram na sua mochila. Ele é um negro, mas ainda assim um negro diferente. Que
negro é esse? Um negro que mora na favela ou na Tijuca? Então você tem processos
diferentes que são históricos. O fenótipo sempre marcou o processo do povo preto no
Brasil (Luiz Paulo, 25 anos, negro, Zona Norte).

Tomando a ação policial, não é incomum que o racismo seja apreendido nesta atividade
como parte da rotina institucional de aplicação de técnicas e de práticas inerentes à norma
corporativa ou, em outros casos, sem que sejam apuradas análises mais críticas, concebidas
como situações performaticamente jocosas. É esta ilusória ausência de conflitos em relação às
questões de raça, portanto, o que nutre silenciamentos quando colocados em pauta debates sobre
as consequências do racismo no país, levando-se comumente a imaginar que as discriminações
têm como dispositivo outros critérios que não os de cor/raça. Assim, sob formas um tanto mais
sofisticadas, como parte da mesma engrenagem social, o relato de Rodrigo Alexandre66, jovem
de 30 anos, morador da Zona Norte:

Abordagem violenta eu nunca vivi não, mas um policial já aprontou uma comigo que
você vai até rir quando eu te contar [...] Eu tava indo na loja de Bonsucesso, que
trabalhava com o meu pai, pra pegar o título porque era dia de eleição e ele tinha
ficado na loja. Aquelas ruas lá ainda tavam vazias. Aí parou um carro da polícia e um
PM saiu do carro e me perguntou onde eu tava indo, eu expliquei e ele começou a me
revistar perguntando o que ele poderia fazer se eu tivesse mentindo. Eu disse que não
era mentira minha, falei até o nome da rua na hora, mas ele parecia que tava cheiradão,
todo agitado, sei lá. Aí ele ficou me olhando e disse que eu tinha que pagar então dez
polichinelos [...] Fiz, ué. Era eu sozinho ali com eles. Depois continuou tirando onda
com a minha cara e me mandou pagar mais dez flexões. Aí o policial que tava dentro
do carro na direção, falou pra ele me liberar porque eu não tinha nada a ver com o que
tinha acontecido. Foi só esse outro policial que me mandou embora dali.

Pelo paradigma da “necropolítica” (MBEMBE, 2015, p. 123), uma formação peculiar


entre as ações de Estado e o terror, uma cidade que tem em sua gestão uma política administrada

66
Rodrigo Alexandre da Silva Serrano. “PM confunde guarda-chuva com fuzil e mata garçom no Rio, afirmam
testemunhas” (Matéria publicada pelo jornal ÉL PAÍS, em 19/09/2018).
105

de morte, isto é, que se orienta por meio de um projeto responsável por determinar quem pode
viver e quem deve morrer opera no limite da negociação da vida enquanto expressão máxima
da capacidade de poder e seus atributos. Portanto, “exercitar a soberania é exercer controle
sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação do poder”. Assim, para
o autor, o poder de matar opera com apelo à emergência daquilo que, pelas práticas políticas,
vem a forjar a fisionomia do inimigo exterminável. Nesta direção, quando da escolha por
estratégias de combate e ocupação, a aplicação da força, inclusive a letal, pela polícia tem se
admitido como padrão institucional e a cor/raça é o que vem sendo utilizado como elemento
fundamental desta dinâmica. Almeida (2018, p. 92) ainda completa:

E é aí que se revela o necropoder: neste espaço onde a norma jurídica não alcança,
onde o direito estatal é incapaz de domesticar o direito de matar, que sob o velho
direito internacional é chamado de direito de guerra [...] Dizer que a guerra está
próxima e que o inimigo pode atacar a qualquer momento é a senha para que sejam
tomadas as medidas “preventivas”, para que se cerque o território, para que sejam
tomadas medidas excepcionais, tais como toques de recolher, “mandados de busca
coletivos”, prisões para averiguação, invasão noturna de domicílios, destruição de
imóveis, autos de resistência etc. A questão territorial é de suma importância para a
compreensão da necropolítica. A definição das fronteiras entre os Estados é, ao
mesmo tempo, a determinação das partes do mundo que poderão ser colonizadas.

Segundo Carneiro (2005, p. 77), a racialidade no Brasil determina que o processo saúde-
doença-morte seja apresentado por características distintas a depender dos vetores em questão.
Destarte, é assim que branquitude e negritude detêm condicionantes de diferenciação quanto ao
viver e o morrer. Michel Foucault (2014), quando inscreve o racismo no âmbito do biopoder,
esclarece que, enquanto tecnologia de poder voltada à preservação da vida de uns e de abandono
de outros à exposição da morte, determina também sobre o “deixar morrer e o deixar viver”.
Fazendo uso desta como expressão do que chamou de biopoder, Foucault delimita a função do
racismo como elemento que legitima o direito de matar, em determinado contexto exercido pelo
Estado, seja por ação ou omissão.
Quando passamos a não mais compreender o racismo como uma conjuntura e sim como
um fenômeno estrutural, ele deixa de fazer parte da chave do que gera estranhamento e passa a
integrar a chave estruturante das relações. Neste sentido, as discriminações racistas são detidas
enquanto modo de estrutura social que fundamenta a vida cotidiana, isto é, como problemática
inscrita nas relações sociais de formação dos sujeitos, que evidencia os circuitos que nos levam
a naturalizar, por vezes, tanto algum tipo de violência mais perceptível, neste caso, contra
homens negros quanto outras mais sutis. “Isto é o que faz, talvez, do mito da democracia racial
a grande narrativa que desnuda a existência de um acordo de aceitação do discurso com todas
as suas decorrências” (CARNEIRO, 2005, p. 62). Dito de outra maneira, para Silvio Almeida
106

(2018, p. 15), afirmar que o racismo é estrutural partilha da ideia de que “ele é um elemento
que integra a organização econômica e política da sociedade”. Neste segmento, o racismo passa
a ser compreendido como aquilo que fornece sentido, lógica e tecnologia para as formas de
desigualdade e violência que moldam a vida social.

Pensar a segurança pública e, portanto, também as ações de polícia, ao contrário do que


possa parecer, não significa trazer à cena um tema exclusivamente mobilizado pela temática do
crime. Conforme aponta Bicalho (2016), falar de crime é tratar de algo que, por sua vez, não se
apresenta como um dado concreto. Tendo em vista que a criminalidade que se mostra para nós
é sempre da ordem do objetivo, este se estabelece, pois, como resultado atravessado por um
processo muito caro ao que temos discutido: a seletividade policial-militar. O que o autor busca
demarcar é que aquilo que desponta materializado em estatística, mais do que explicitamente o
crime, o que se coloca é um processo de seletividade em curso que faz falar da nossa formação
sócio-histórica. Portanto, sob esta perspectiva, se o crime não é o que, de fato, atua como mote
mobilizador da segurança, talvez seja a noção de risco, sobretudo quando pensamos as ações
de abordagem, o que faz engendrar tais mobilizações.
O risco, ao contrário do flagrante que confere materialidade às ações de polícia, não faz
parte de uma inscrição dimensionada pelo fato concreto, mas de um complexo composto de
virtualidade, ou seja, aquilo que não é passível de ser formulado devido mesmo à ausência de
materialidade, mas que, cada vez mais, faz operar certo imperativo por ordem. Deste modo, tão
importante quanto pensar quem são aqueles que caem nas malhas da captura dos procedimentos
de abordagem pela Polícia Militar, é pensar também o que faz com que estes o sejam – estes, e
não outros. Ao que Pedro Paulo Bicalho (2016, p. 297-298) acrescenta:

É preciso pensar que virtualidades operadas pelo risco têm produzido uma certa noção
de ordem que faz sentido para operar o Estado brasileiro. Daí, se nós entendemos que
o que está em jogo não é o crime nem a criminalidade, mas é o risco, é preciso pensar
então que o que está de forma central fazendo circular o jogo da segurança é muito
mais o conceito de culpabilidade do que qualquer outro conceito relacionado a delito,
a crime ou a criminoso. E se nós pensarmos o conceito de culpabilidade como o que
opera as noções de segurança [...] arrisco a dizer que os estudos da subjetividade e
toda discussão relacionada à construção dos processos psicossociais em curso no
Estado são muito mais poderosos para pensar a noção de segurança do que qualquer
outro dado objetivo que fale sobre o crime.

Sendo assim, quando entendemos que o risco é operado pela noção de culpabilidade e
que esta desponta como uma pista fundamental para pensarmos as políticas de segurança, não
devemos deixar de considerar que sua importância está intimamente relacionada à condição de
107

narrativas que potencializam enunciados de penalização e judicialização – uma sociedade que


cada vez mais clama por penas mais duras para um “outro” específico. Cabe sublinhar, ainda,
que a discussão sobre segurança pública não deve estar dissociada dos enunciados sobre justiça
criminal e, tampouco, sobre execuções penais. Assim, tratar dos estudos da segurança pública
é também recorrer a quatro eixos fundamentais para pensarmos a noção de culpabilidade e, com
isso, os processos subjetivos que comparecem em toda a discussão que temos travado até aqui,
quais sejam: prevenção, investigação, julgamento e execução (BICALHO, 2016). Todavia, por
ora, em consonância ao interesse central deste trabalho, as análises têm por objetivo focalizar
apenas uma destas vias, a chave da prevenção, vinculada às atribuições dos policiais militares
– ainda que, em dadas circunstâncias e devido ao diálogo limitado entre os equipamentos, a
exclusividade da prevenção não seja, de fato, confirmada.
Em outros termos, podemos dizer que a culpabilidade, uma vez invertida, passa a ser
identificada na condição de delinquência construída no ambiente social, que se inscreve como
centro das investigações (D’ELIA FILHO, 2015). Vera Malaguti Batista (2003) faz dialogar a
“atitude suspeita”, expressão recorrente entre os policiais militares àquilo que Chalhoub (1988)
chamou de “suspeição generalizada” ao indicar a forma utilizada para o controle da população
negra liberta em fins do século XIX afirmando, ainda, que não menos longínquas situam-se as
origens do “olhar moral e periculosista”. Deste modo, atentar-se aos processos de produção de
subjetividades que concretizam a imagem do desviante em um modelo estereotipado, ou seja,
ter como orientação o paradigma da vulnerabilidade à criminalização que admite como perigoso
aquele representado pela tríade fundada no preto-pobre-favelado (D’ELIA FILHO, 2011), sem
desconsiderar os diversos atravessamentos sócio-históricos que os circunscrevem, possibilita
direcionarmos nossa atenção para o vínculo estabelecido entre as formações de realidades e
estratégias de dominação política e de controle social: é o “medo branco das almas negras”, de
que nos fala Chalhoub (1988). Ao que, ainda, Coimbra (2006) põe em discussão:

Desde o final do século XIX, já se encontravam presentes nas elites brasileiras as


subjetividades que constituem o dispositivo da periculosidade. Dispositivo este,
apontado por Foucault (1996), que emerge com a sociedade disciplinar [...] Presente
entre nós até os dias de hoje, esse dispositivo vai afirmar que tão importante quanto o
que um indivíduo fez, é o que ele poderá vir a fazer. É o controle das virtualidades;
importante e eficaz instrumento de desqualificação e menorização que institui certas
essências, certas identidades. Afirma-se, então, que dependendo de uma certa natureza
[...] poder-se-á vir a cometer atos perigosos, poder-se-á entrar para o caminho da
criminalidade.

Assim, mais do que elementos capazes de mensuração, as produções de subjetividades


parecem ter muito a dizer no campo das discussões sobre segurança pública. Na tentativa de
buscar formular aquilo que parece operar pela ordem do informulável lanço mão de uma pista
108

importante encontrada no campo: a noção de “tirocínio policial”. Entendendo que o foco de


análise é a Polícia Militar e que a prevenção é tarefa primordial da instituição, tem-se que o
modo de fazer operá-la é através da aplicação das ações de abordagem. Tendo em vista que a
PM, preventiva e ostensiva, não trabalha com o crime após o fato ocorrido, isto é, não lhe
cabendo a investigação, o agente policial-militar lida com a chave da prevenção e, portanto,
com a virtualidade do crime.
Antes de tratarmos das análises sobre a noção de “tirocínio policial”, é preciso pensar
que os processos de abordagem que fazem operar a “fundada suspeita” são atravessados por
mentalidades que constituem a subjetividade de todo nós, sejamos militares ou civis. Afinal de
contas, quando um policial aborda, modulado por processos subjetivos, ele escolhe algumas
pessoas por entender que estas são mais suspeitas do que outras. Nós que não somos policiais
e que, portanto, não abordamos pessoas através do amparo legal da “fundada suspeita”, fazemos
operar processos semelhantes cotidianamente. Neste sentido, se uma pessoa é suspeita para o
agente policial-militar em razão de uma série de fatores, são estes mesmos que nos fazem sentir
medo de alguém e operar outra série de tecnologias. Destarte, faz-se fundamental destacar que
os mesmos processos subjetivos que incitam o acionamento de tecnologias contra determinados
suspeitos são, inclusive, os que, outrora, não me permitiram suspeitar daquele jovem que me
assaltara. Dito de outro modo, ao mesmo tempo que produzimos sujeitos suspeitos, igualmente,
alimentamos a insuspeição – também no sentido daquilo que é produzido.
Aqui, trago uma importante pista do campo para pensarmos não apenas o processo de
construção da suspeita em sua virtualidade, mas o uso de certa materialidade, considerando a
posição de uma pessoa na dinâmica de poder. Saliento que esta foi uma pista possível de colocar
em análise não somente as vivências de suspeição dos jovens civis entrevistados, mas também
a minha própria experiência enquanto suspeita. De maneira geral, os voluntários autodeclarados
brancos, quando refletiam sobre a condição de suspeito que decorria a abordagem tentavam se
utilizar de alguma concretude, ou seja, buscavam na materialidade do fato, a justificativa para
a suspeição. Assim, à medida que eu ponderava a minha suspeição levantando considerações
do tipo: “eu estava há muito tempo na loja” ou “eu precisei procurar talões em prateleiras mais
baixas” – afinal, somente estes motivos poderiam fazer de mim uma pessoa suspeita – meus
entrevistados, de igual modo, denotaram algo parecido, como é possível constatar no relato de
Eduardo: “eu fiquei parando pra lembrar das vezes que fui abordado e a maioria eu tava mesmo
cometendo algum ilícito”. Ao que recorda uma abordagem que chamou de “curiosa”:
109

Teve uma vez que eu tava viajando com a minha namorada, a gente tava com mochila
de camping e estávamos sentados um do lado do outro no ônibus perto da Leopoldina
e um grupo de policiais entrou no ônibus e aí revistaram algumas pessoas e a gente.
Minha namorada tava dormindo, ele acordou ela, pediu pra ela abrir a bolsa, aquela
mochila gigante, olhou tudo, pediu identidade também, examinou a identidade. Dessa
vez pediram identidade, das outras vezes nunca pediram. E aí a gente não entendeu
muito bem ser alvo de suspeição nesse momento porque um casal no ônibus indo
viajar. Eu sei que olharam mais gente, mas acho que só demorou mais tempo com a
gente porque a gente tinha mochila e tal. E aí minha namorada até perguntou: “pô,
mas qual a finalidade dessa revista? Vocês estão procurando o que exatamente”? Aí
ele falou que tinha um casal suspeito circulando por perto da rodoviária e por isso que
ele suspeitou da gente (Eduardo, 30 anos, branco, Zona Norte).

Na contrapartida, os autodeclarados negros precisam fazer uso da mesma concretude


para refutar a suspeita, visto que este é um lugar dado. Assim, do mesmo modo que eu intentei
refutar a suspeição “trocando mensagens de áudio para a vendedora ouvir” ou “tive a liberdade
a partir da nota fiscal quando da compra de mercadorias aleatórias”, os jovens disseram ser este
um recurso fundamental e rotineiro em suas vidas. Enunciaram, inclusive, que tal recurso se faz
estratégia necessária para invalidar a suspeição não apenas em razão das abordagens feitas pela
polícia, mas no próprio cotidiano de circulação pela cidade. Para Luís Otávio67, jovem negro e
morador da Zona Oeste: “isso é o que permite demonstrar honestidade”.

Em qualquer lugar, quando eu vou nas Lojas Americanas comprar uma bebida, por
exemplo, eu pego a nota fiscal e deixo na minha mão para poder passar e, pelo menos,
demonstrar que eu tô com a nota fiscal na mão. É como se fosse um símbolo de
honestidade, como posso dizer? Uma certa comprovação mesmo. É mais do que uma
nota, é uma comprovação que eu não sou o que tavam pensando ou insinuando. O
meu maior medo é aquele negócio da loja apitar. Fico pensando: “será que vai apitar?
Ah, mas se apitar eu tenho a nota aqui”. Fico com medo por causa do constrangimento.
É uma sensação assim: “caraca, mais uma vez vou ter que provar que eu não vou fazer
nada”. Ou então fico pensando se compro ou não alguma coisa pra poder sair da loja.
Outras vezes fico com raiva e penso que se quiserem fazer alguma coisa que façam
[...] Já pensei também na época que o carro não tava no meu nome, tava no nome da
minha mãe e eu ficava pensando que poderia ser mais tranquilo porque o nome dela
tem na minha identidade. Aí não poderiam achar que eu roubei o veículo de alguém
(Luís Otávio, 26 anos, negro, Zona Oeste).

Na mesma medida, contradizer o flagrante, ou seja, refutar o que parece ser tomado pela
obviedade da suspeição, passa também pela materialidade do próprio corpo. Nesta perspectiva,
quanto menos denegrido ele o for, nas palavras dos jovens, “menos chance tem de ser suspeito”.
Isto sugere a inscrição, portanto, do partilhar de uma ideia do tipo “suspeito ideal” que, em caso
de enquadramento, na tentativa de escapar das malhas da captura, faz preciso desenvolver e
acionar uma série de estratégias, conforme explicita o jovem Davidson ao tratar do contato com
a população: “o que me deixa mais chateado é ser suspeito na rua porque aí tenho certeza que

67
Luís Otavio Siqueira Carvalho. “Jovem morre e PM fica ferido em dia de confronto na Rocinha” (Matéria
publicada pelo jornal O DIA, em 27/05/2018).
110

é porque sou negro e olha que eu nem sou um negro marcado, preto mesmo, com nariz grande,
cabelo duro, nem sou tão marcado e isso acontece comigo”. Ou, ainda, o que narra Luís Otávio
quando de sua “preocupação ao andar pela cidade”:

A roupa tem um certo estereótipo, mas a cor é o que fala. Claro que tem extremos,
mas geralmente é a cor. Claro que evitar cabelo, cortar cabelo pra não parecer também,
andar sempre com documento, celular, explicar qualquer coisa que falarem, evitar
umas roupas, saber o que falar, mostrar que é trabalhador... porque é sinal de
honestidade, né? Evitar blitz mesmo com o documento estando certo, basicamente
essas coisas. Acho que tem que ser isso da roupa e do cabelo mais. Isso da suspeição
é cotidiano na minha vida, mexe comigo. Eu sei que sempre vai mexer, não vai parar
(Luís Otávio, 26 anos, negro, Zona Oeste).

Não parece haver dúvidas que não apenas para a polícia, mas também para os que são e
os que não se consideram suspeitos, aquilo que é operado indica ser parte de uma mesma ordem.
Além disso, à medida que me utilizo tanto da justificativa quanto da refutação em análise, assim
como os jovens entrevistados, coloco-me a questionar se, de algum modo, os exames destas
pistas fazem dialogar com a indagação que dirijo a mim nas páginas iniciais deste trabalho: de
que maneira o meu corpo se constitui no espaço público e privado? Lanço mão de dois episódios
que denotam as sutilezas e também a complexidade das questões de cor/raça no Brasil – o que,
por isso mesmo, demanda uma constante agenda de debate.
Dos episódios evocados, o primeiro, partiu do contato com um dos policiais voluntários
que afirmou ser “sarará” quando perguntado sobre sua autodeclaração de cor/raça, ao passo que
a outra, por sua vez, de um jovem que disse se reconhecer negro. Sargento Jason, ao olhar para
os seus braços e passar a mão nos cabelos cortados à máquina, afirma: “eu sou sarará. Meu olho
é verde, mas o meu cabelo é duro. Ah! Mas você também não é branca não, sabia”? Por outro
lado, Jeremias, jovem que relatava a experiência de sua última abordagem e o conflito entre ele
e o policial, que não aceitava ser acusado de racista por “também ser negro”, referindo-se ao
agente militar, atestou: “ele não era preto nada, ele era da sua cor”.
Trata-se, pois, de um sistema minuciosamente organizado, influenciado também pelas
ideias de Lombroso que magnificam e reeditam a marginalização que o destino de ser um jovem
preto e pobre no Brasil já marcava. Assim, se os policiais constroem lombrosianamente a ideia
de suspeito, nós, civis, do mesmo modo, o fazemos. Lombroso não apenas opera na construção
da suspeição, mas, antes de tudo, na forma de compreender o mundo e produzir nossos medos.
Medo este, tomado menos pela perspectiva de um sentimento ou emoção intimista e mais como
algo da ordem do fabricado e que faz operar efeitos políticos importantes. Não sem razão, Pedro
Paulo Bicalho (2016, p. 19) diz ser crucial deslocar nossa atenção à necessidade de “pensar para
111

que serve esse medo que é construído e que faz executar essa política de segurança pública, que
é a política vigente em nós”.

Esse medo do outro geralmente promoveu, em nossa história, significativas


perseguições e extermínios, que se concretizavam a partir de um discurso memorável
com base no senso comum a respeito da ordem. Embora, hoje, as bruxas não sejam
mais queimadas em fogueiras, continuamos criminalizando o outro, por considerá-lo
desordeiro de uma normalidade que permanentemente é ameaçada por ele. As
punições, as brigas políticas e culturais tiveram suas transformações e evoluções, mas
o discurso estereotipado a respeito do outro, ou seja, aquele que não se reconhece
como “o mesmo que nós”, continua sendo usual [...] Essa onda de medo do outro é
construída por discursos classificatórios e valorativos, que partem da ideia da
existência de seres monstruosos (BRASILIENSE, 2007, p.15).

Em resumo, se os processos subjetivos operam a suspeição e, por conseguinte, também


fazem operar as ações de abordagem, estes se inscrevem nos modos de ser e existir daquele
considerado suspeito. No decorrer do trabalho de campo, foi possível notar as diferenças entre
os admitidos enquanto “suspeito-padrão” e os demais. Além das narrativas que escapavam à
exclusiva suspeição pela polícia, os relatos dos jovens negros indicaram, na mesma proporção,
a suspeita do cotidiano no circular pela cidade a partir da relação com outros civis. Mais do que
isso, a inconcretude da suspeição parece demandar dos abordados que lancem mão de certo tipo
de materialidade. Assim, à medida que os jovens que se autodeclaram brancos fazem uso, em
geral, da forma materializada para justificar as abordagens, os negros, ao contrário, utilizam-se
deste recurso vislumbrando refutar a certeza da culpa, isto é, o lugar que faz impelir a evidência
do crime por sua “obviedade” e que, por esta razão, se antecipa à própria suspeição.
De acordo com Mingardi (2015), um dos insumos da violência é fatalmente a ausência
real de democracia. Nas entrevistas com os policiais militares, apesar da negativa de qualquer
prática discriminatória pela instituição, denotaram em seus relatos, ainda que de modo velado,
a prática de seletividade nos procedimentos de abordagem, sobremaneira, a seletividade racial.
Assim, fez-se verificar que muitos dos elementos que fundamentam a suspeita remetem a um
grupo social em específico. Sendo a missão do policiamento ostensivo flagrar os ditos suspeitos
criminais, cabe à Polícia Militar a responsabilidade da seleção e da retirada das ruas daqueles
que sejam por seus agentes identificados como criminosos.
O que ocorre é que, no Brasil, existe um processo histórico que veio a conformar a face
deste ser perigoso e como deve ser efetuada a sua punição. Na ausência de definidores legais
precisos, o agente policial militar, não apartado deste processo, também fundamenta a suspeita
no uso de marcadores que, em ampla maioria e enquanto estratégia de controle, reivindicam
aspectos da cultura negra. Neste ponto, a discricionariedade que lhes cabe nas ações de seleção
dos suspeitos é, muitas vezes, norteada por tais atributos fazendo com que um mesmo resultado
112

seja costumeiramente empregado: a prisão em flagrante ou a eliminação do jovem negro, pobre


e morador de favela e periferias. A delimitação destes marcadores é informada pelo o que me
foi apresentado como “tirocínio policial”.
Todavia, para os PMs entrevistados, a seletividade racial não se aplica. Segundo eles, a
suspeição da polícia não passa pela “cor da pele” e sim por marcas que, no conjunto dos saberes
constituintes das práticas policiais, devem ser levadas em consideração. Neste sentido, em seus
relatos, as desvantagens econômicas são admitidas, de modo geral, marcadores mais aceitáveis
quando comparados à retórica da discriminação por cor/raça. De acordo com o sargento Diogo
Canito68 e com o soldado José Renê69:

O policial da ponta tem um olhar bem clínico. Ele olha e já sabe se é vagabundo ou
não. Tem muito aquilo do local também, né? Você não vai pegar na Zona Sul, lá em
Botafogo, e achar que todo mundo que tá andando de moto é suspeito, mas quando
você vai pra Madureira, você tem que prestar muito mais atenção (Sargento Diogo,
35 anos, pardo, Zona Norte 1).

As pessoas acham muito que a polícia é preconceituosa, principalmente o pessoal


acadêmico, mas não é. Eu sou negro. O PM não prende só negro. Acontece que outros
motivos levaram a população negra a cometer muito mais crimes, mas não significa
que ela seja ruim, marginal, que seja instinto. Tem outros motivos, mas eu não tô aqui
pra pesquisar essa parte. O branco também tá no mesmo foco da polícia. Só que nas
comunidades têm mais pessoas negras do que brancas, existem mais criminosos. Mas
trejeitos são trejeitos. Branco, preto é tudo a mesma coisa. É o trejeito criminoso, o
comportamento criminoso e isso a gente sabe identificar. Independe da raça, da altura,
se é gordo ou esbelto (Soldado José, 30 anos, negro, Zona Norte 1).

Quando cabo Luciano, ao contrário, faz acionar um grupo de elementos e/ou condições
que proclamam entraves à pronta identificação de sujeitos em suspeição do cometimento de um
ou mais tipos criminais ou mesmo de estarem em vias do ato delituoso, enuncia, nesta medida,
uma série de estereótipos que racializam a suspeita (também) policial – e se/quando o fazem é
porque elegem como atributos da suspeição indícios empíricos que falam dos signos da classe
popular e da cultura negra.

Saída do aeroporto, quantas drogas a polícia pega ali? Carro com mala cheia de droga
vinda de outros estados. Pessoas que fogem o perfil do criminoso. Nessa abordagem,
você sabe que o marginal é diferenciado, então fica mais difícil de você encontrar
porque não é aquele perfil de criminoso que tá ali diretamente vendendo droga na
favela. Ele se veste melhor, ele fala melhor. Você sabe que ele tá mais disfarçado,
amplia-se o leque. Eu não tenho culpa se no presídio a maioria é negra. Isso é fato.
Não sei o porquê, mas é fato. Só que aí as pessoas acham um absurdo porque às vezes
é um engenheiro que é parado (Cabo Luciano, 37 anos, negro, Zona Norte 1).

68
Diogo Lins Canito. “Morre o 63º policial militar no Estado do Rio, neste ano” (Matéria publicada pela
plataforma de notícias IstoÉ, em 28/07/2018).
69
José Renê Araújo Barros. “Policial militar é morto em troca de tiros em Macaé, no RJ” (Matéria publicada
pela plataforma de notícias G1, em 09/01/2018).
113

Amparados naquilo que denota as relações raciais no Brasil, podemos apreender que a
racialização se expressa por meio de uma série de marcas e não apenas por critérios de cor. Para
Schlittler (2016, p. 187), grupos populacionais são racializados quando do uso de determinados
marcadores mesmo que a questão racial não seja explicitamente evocada pela coloração da pele
ou, ainda que velados, seguem sendo específicos os marcadores que levam a enquadrar pessoas
na categoria do “outro”. Neste sentido, “o processo de racialização passou a designar qualquer
atitude, situação ou processo que induzisse à caracterização de uma parte da população segundo
uma valorização racial”. Consoante ao que é afirmado por Guimarães (2000), nosso sistema de
classificação por cor não se sustenta em uma simples questão de tonalidade ou, de outra forma,
isento da noção de raça e teoria do embranquecimento. Para ele, a cor é apenas um – o principal,
decerto – dentre um conjunto de traços físicos e de traços culturais responsáveis pela formação
de um tipo de gradiente evolutivo: preto, pardo, branco.
Em resumo, no decurso das entrevistas com os PMs de ambos os batalhões, bem como
no encontro com o coronel Firmino, foi possível o reconhecimento da preferência por ações de
abordagem a pessoas inscritas em uma corporalidade que agrupa um conjunto de traços bastante
específicos no que tange a enunciações de cor/raça, tal como classe, gênero, territorialidade e,
ainda, geração e signos culturais expressivos de determinados estilos de vida. Fez-se também
observar o manejo da polícia em sua íntima relação com territórios populares que, por sua vez,
demonstram componentes raciais interligados, narrativa por eles recusada. Semelhante ao que
figura no fora dos BPMs, pensar o racismo e seus efeitos ainda hoje se apresenta como um tabu.
Por fim, empreendendo nossa constituição histórica pela via da racialização, isto não significa
dizer em exclusivo de aspectos econômicos – dada a inexistência de distinções objetivas entre
os signos de classe e de raça –, mas daqueles imbricados por uma retórica de racialização de
classe, isto é, uma classe que, na mesma medida, faz informar cor/raça.

3.3 Tirocínio: da certeza do flagrante à ordem do indizível

“Uma questão de atitude, de comportamento. Isso é uma coisa inexplicável, vão passar
mil policiais aqui e todos vão falar isso pra você. No geral, é isso mesmo. O policial sabe o que
deve ser feito na hora, alguma coisa diz que ele precisa ter um cuidado maior”, o relato de cabo
Robert corresponde às repetidas narrativas dos policiais que encontrei durante a pesquisa, e que
intentaram desmembrar para cuidadosamente descrever a habilidade policial-militar nomeada
“tirocínio policial”. Uma pergunta ao final, entretanto, se mantinha sempre a mesma, eu insistia:
mas o que nesta/desta atitude?
114

Um conjunto de elementos disparadores que não sabiam definir com precisão, mas que
atestavam sua importância enquanto recurso chave do cotidiano de trabalho policial-militar. Era
preciso, portanto, pensar nas pistas que o campo ofertava como se pistas de um caça tesouros.
Um tipo de habilidade que, à medida que era por eles anunciada parecia também imbricada a
um número específico de sinais e códigos ou, ainda, por um grupo de “atitudes” que não podiam
ser reveladas de forma reduzida uma vez que faziam e que fazem dialogar com o contexto que
aparecem circunscritas. Contexto este, que os agentes de polícia não colocam em análise; mas
que, ao contrário, naturalizam.
Assim, o “elemento suspeito” é aquele que apesar de fabricado no trânsito cotidiano não
se consegue, contudo, formular. O meu grande desafio era, junto deles, encontrar no percurso
pistas que orientassem à formulação disto que se apresentava pela tônica do informulável. Sem
dúvidas, um desafio que atravessou toda a escrita e escapou suas páginas finais. Na dificuldade
própria da formulação, talvez, pistas diversas que apontem à construção de um especialismo
que não precisa ser traduzido justamente por ser algo da esfera compartilhada entre aqueles que
já o dominam. Portanto, um saber particular esculpido nas ruas, que não encontra roteiros no
formato científico, tampouco caminhos de quantificação ou tradução em nossos materiais de
acesso, tal qual sugere Muniz (1999). Ou, ainda, um saber atrelado ao episódico, constrangido
por contingências que indicam, deste modo, resistir a qualquer tipo de padronização. Ele está
na imprevisibilidade de cada novo evento, na memória prodigiosa de cada policial militar, se
constituindo como parte indissociável das trajetórias de vida e experiências individuais de um
personagem que deve, tão logo, do lugar vigilante, apreender a missão de tirar das ruas estes
“outros”, os “maus elementos” que habitam o cenário urbano.
Para isso, fundamentam suas análises em marcadores do que chamam “atitude suspeita”.
Este é, inclusive, o argumento no qual se amparam para desmistificar a ideia de discriminação
da polícia em ações de abordagem, como explicitado na fala do soldado José Renê: “quando as
pessoas falam do nosso trabalho, acham que só abordamos negro e não é assim que acontece.
O PM aborda todos os que apresentam uma atitude suspeita. Não existe pessoa suspeita, o que
existe é atitude suspeita”. Neste ponto, cabe ao “tirocínio policial” a metodologia de seleção
utilizada na fundação da suspeita em suas práticas cotidianas, ou seja, a habilidade de mapear
lugares, horários, sinais e expressões ou quaisquer outras condições que facilitem a antecipação
da conduta de busca ao ilícito e, por consequência, a tomada de decisão que perfaz o sucesso
de uma operação de policiamento ostensivo militarizado e, assim, da experiência que fala e é
oriunda das ruas, aquela executada pelo policial da ponta (SCHLITTLER, 2016).
115

De fato, esse parece ser um tipo de conhecimento que, nascido da trivialidade da vida
ordinária e da irredutibilidade do acaso e da incerteza, se presta a toda sorte de
encantamentos e fabulações. Sua obviedade desafia, seu pragmatismo seduz, sua
crueza assusta, seu sentimentalismo surpreende e sua nostalgia comove. O contato
com uma espécie de “conhecer” saído da urgência dos fatos, que se confunde mesmo
com o fazer e o agir, nos faz pensar que os policiais que patrulham as ruas nas nossas
cidades sabem de coisas que não sabemos ou que não queremos perceber. Seu
conhecimento é constituído aqui na esquina, dia após dia convivendo, de uma forma
explícita e sem mediação, com a dimensão volátil, cômica, dissimulada, humilhante,
violenta, confusa, vulnerável, trágica e frequentemente patética daquilo que
chamamos de humano (MUNIZ, 1999, 156-157).

Deste modo, o “tirocínio policial”, difícil de ser racionalizado à medida que não se faz
explicitamente verbalizado e, em geral, como fruto de uma regra de experiência, demostrou-se
objeto recorrente de reflexão no encontro com os policiais voluntários que, notadamente, se
esforçavam para colocar em palavras, ou seja, para conferir alguma objetividade à mobilização
dos critérios tomados na escolha de um suspeito – ou de sua antecipação na apuração do
conteúdo ilícito e reconhecimento, ao primeiro olhar, do sujeito criminoso. Esforço guiado, por
vezes, na minúcia descritiva e pela negação de qualquer prática discriminatória.

A gente aprende a lidar com isso no nosso dia-a-dia, a gente vive isso. Eu converso
com vagabundo, lido com vagabundo diariamente. Então eu sei os trejeitos, os vícios,
os cacoetes. Todo mundo aqui sabe, todo policial consegue identificar. Coisa que você
vai olhar e não vai saber. O vagabundo tem os trejeitos, tem os vícios. É o andar, a
forma que olha. Tem muita coisinha que a gente pesca. É simples: você convive todo
dia com o mesmo produto você vai conhecer aquele produto mais a fundo do que
quem só pega uma vez ou outra. O dia-a-dia faz você ver e ser sensível a
comportamentos que são comuns para você e que para outros passa despercebido
(Cabo Luciano, 37 anos, negro, Zona Norte 1).

Outro aspecto importante de ser destacado é o fato de que este por não ser, em tese, um
saber registrado em normas institucionais, só pode ser transmitido na prática cotidiana das ruas.
Trata-se, portanto, de uma qualidade subjetiva que opera a decisão de apreender (ou não) uma
ação de abordagem. Schlittler (2016, p. 121) salienta que “a corporação designa de forma velada
ao agente policial o papel de desenvolver técnicas próprias [...] pelas quais a corporação não se
responsabiliza, embora se aproprie dos resultados”. Assim, este é um campo que a instituição
autoriza que o policial faça um amplo uso do poder discricionário, em se tratando do tirocínio,
não havendo recursos jurídicos e/ou institucionais que auxiliem esta tomada de decisão, tal qual
sugere cabo Robert: “a gente trabalha no escuro, né? Nosso trabalho é mesmo no achismo que
vai. Tipo assim, eu suspeitei e vou lá. Às vezes dá certo”.
Jacqueline Muniz (1999), no que tange à Polícia Militar, analisa que os agentes policiais
valorizam a experiência das ruas como uma forma de “saber ato”, ou seja, como forma de saber
contraposto ao conhecimento adquirido nas Academias de Polícia. Para muitos agentes policiais
que trabalham nas ruas o saber escolarizado não serve para o dia-a-dia, pois a teoria transmitida,
116

ensinada e aprendida na academia é desvinculada da prática e, em muitos sentidos, não reflete


a situação do policial da ponta no trato com a população, com eventuais suspeitos, com o risco
e a imprevisibilidade próprios da ação policial, como faz assinalar sargento Diogo ao dizer: “eu
aprendi no papel uma coisa, mas na prática é outra. A gente se depara com situações que a gente
estudou de um jeito ou não estudou e precisamos tomar uma decisão em fração de segundos”.
No limite, os policiais possuem em maior ou menor grau o “tirocínio” em razão do
contexto de oportunidades pessoais das experiências de policiamento ostensivo. Nas palavras
do sargento Jean: “no começo tu tá meio cru, né? A maldade vai vindo com o tempo”. Neste
sentido, cabe analisar em que medida a subjetividade policial assume aspecto de centralidade
uma vez que a discricionariedade do agente parece ganhar contornos de arbitrariedade, dado
que inexistem mecanismos legais e institucionais que atuem como eixo norteador desta decisão.
Uma questão, em específico, indica assumir relevância ao que temos pensado até este momento:
considerando o tirocínio enquanto um instrumento de acusação social que constrói o criminoso,
cumpriria dizer que a subjetividade do policial é autônoma ou que ela responde a um processo
de normalização sócio-histórica e informativa ao policial sobre quem são estes criminalmente
assujeitados e que, por isso, devem ser tomados como criminosos?
De forma resumida, a abordagem abrange o processo de identificação de suspeitos e é
permeada por uma racionalidade prática, que o policial adquire com a experiência nas ruas, mas
também pertence à racionalidade formal, cercada de institucionalidade, enquanto uma prática
escolarizada e, teoricamente, dotada de procedimentos que incitam, inclusive, a mensuração do
trabalho realizado pelos policiais militares. O ponto nodal do tirocínio é que ele toca a questão
da discricionariedade policial (MUNIZ, 1999; SCHLITTLER, 2016). Ou seja, da ausência de
elementos constitucionais e/ou normativos que fundamentem a suspeita, caberá ao PM decidir
o regime a ser seguido nesta atividade: aquele sistematizado e passado nos centros de formação
ou os códigos e saberes do tirocínio enquanto instrumento de seleção. Isto nos permite inferir
que a instituição “delega” ao policial o poder de decidir como operar a atividade de seleção de
suspeitos criminais. Este seria, em princípio, um espaço de “autonomia” do policial no exercício
do policiamento ostensivo, o que evidencia, portanto, conexões (ainda que veladas) entre uma
política de segurança pública vigente e certas características que compõem o chamado tirocínio
dos agentes policiais, bem como outras e novas análises fundamentais das quais não podemos
nos furtar.
117

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fim do percurso. Não, porém, o fim da linha, ainda há muito a conhecer. Chegamos às
últimas páginas de um trabalho de pesquisa delineado na aposta do múltiplo como experiência
do pensar; não havia como ser diferente. Uma dissertação ancorada na perspectiva cartográfica,
que buscou tomar o campo de pesquisa como repertório de multiplicidades e fora nutrida pela
potência da manifestação de outras vozes. Aqui, não há, portanto, uma única voz que fale por
todas ou que fale de todas, mas várias que se expressam do lugar de produtoras de realidades.
Nos movimentos do desejo do pesquisador-cartógrafo não há espaço para o fim, mas um “entre”
permanente a espera de ser devorado.

A cartografia, enquanto um dos princípios deste campo de multiplicidades e de


variação contínua que caracteriza o rizoma, é tomada como um mapa em constante
processo de produção, instaurando um processo de experimentação contínua capaz de
criar novas coordenadas de leitura da realidade, criando uma ruptura permanente dos
equilíbrios estabelecidos.Com este procedimento cartográfico colocam-se em questão
as hierarquias e fronteiras que dividem os campos de conhecimento e propõe-se uma
recriação permanente do campo investigado [...] Fazer o mapa (cartografar) é
diferente de fazer o decalque. O mapa está voltado a uma experimentação, tendo como
características a abertura e a conectividade, sendo suscetível de receber modificações
constantemente – diferentemente do decalque, que volta sempre ao “mesmo”.
Portanto, devemos pensar o mapa não apenas pelo seu desenho final (o produto), mas
pelo movimento realizado para a constituição de seu traçado (processo), aproximando
a função do cartógrafo da função do pesquisador [...] Consideramos que uma das
maiores contribuições da cartografia é a problematização da posição do pesquisador
e do ato de pesquisar, onde a pesquisa é tomada como um campo de experimentação,
atravessado pelo regime da sensibilidade. Não existe um campo constituído a priori e
um pesquisador neutro em relação a ele, operando uma “coleta de dados” – como se
os dados estivessem prontos, esperando o momento “certo” para serem coletados. A
coleta de dados só pode ser operada no encontro entre o pesquisador, suas ferramentas
conceituais e o campo, encontro esse que pode modificar tanto o pesquisador quanto
apontar os caminhos possíveis para a constituição de um campo (ZAMBENEDETTI;
DA SILVA, 2011, p. 457).

Por tudo isso, utilizo-me da proposta cartográfica como inspiradora de uma metodologia
de pesquisa que escapa à inscrição em um modelo hegemônico de fazer ciência e que, portanto,
permite o deslocamento de uma visão delimitada e precisa da definição de sujeito e objeto de
estudo. Desta forma, a partir da cartografia e do modo como busquei me aliar a ela, o que esteve
em jogo, aqui, foi mais responder ao desejo da construção de processos e caminhos alternativos
do que à ânsia por encontrar culpados – ou “bodes expiatórios”. Para tanto, no decorrer do texto,
procuro localizar o meu próprio corpo “entre almas negras e corpos denegridos” de maneira a
pensar que tipos de efeitos e transformações são gerados, inclusive em mim, quando em análise
a produção de subjetividades calcada, sobretudo, em agenciamentos de cor/raça.
118

Em suma, da difícil tarefa de lidar com as lógicas e as racionalidades empregadas na


fundamentação da suspeita, sob a recusa de incorrer em denuncismos ou perseguir culpados, a
pesquisa almejou provocar tensionamentos responsáveis por fazer pensar o seu processo e não
a estrita relação entre sujeito e objeto. Por conta disso, não faria sentido algum findar este estudo
– concebendo a pesquisa como um processo em construção – apontando vítimas e/ou algozes,
o que, de um modo geral e, por vezes, são os caminhos privilegiadamente traçados quando da
composição de análises sobre segurança pública. Destarte, faz-se urgente a necessidade de que
encontremos as brechas, linhas de fuga e rachaduras inscritas nestes discursos, que são tão duros
e de fácil captura.
Neste tocante, para além das experiências de campo narradas, o texto busca contemplar
também discussões que atravessam a temática em questão a partir da lógica de “guerra às
drogas” que, legitimada pela sociedade, parece nortear as decisões e ações de polícia ostensiva,
em especial, no Rio de Janeiro. Assim, o contexto de desumanização que acomete os que vivem
nas periferias cariocas não pode ser apreendido sem que consideremos os atravessamentos da
criminalização da pobreza o seu principal combustível, à medida que a seletividade punitiva
indica ter classe e cor. O agenciamento coletivo de produção de subjetividades sobre a favela
enquanto local de origem do grande responsável pelas mazelas sociais – o criminoso – é o
imperativo que legitima o disciplinamento, controle e extermínio dos povos marginalizados.
Cabe salientar, a importância de admitirmos os enunciados qualitativos e quantitativos
para a metodologia cartográfica. Embora às vezes possa parecer que a articulação entre os dados
“quali” e “quanti” não interessam ao modo de fazer ciência proposto pela Psicologia, este é um
grande equívoco. Os dados quantitativos revelam processos. Quando constatamos que temos a
polícia que mais mata e mais morre no mundo, o que nos convoca não é exatamente o número
que se conhece, mas o que este número denota e faz pensar sobre as forças que nos conduzem
subjetivamente. Assim, interessou-nos, aqui, a articulação entre o qualitativo e o quantitativo e,
portanto, o “quanti” para pensar a força e não a forma.
Neste sentido, cartografar a/na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro é, do mesmo
modo, refletir a política a que ela responde, tal como intentar compreender uma tecnologia que
assume a função de gerir a vida e a morte. Isto, no entanto, não é algo simplório ou passível de
ser apreendido a partir de um conjunto de ideias fixas e normalizadas. Ao longo do percurso,
suponho que tenhamos encontrado pistas coletivas e indicativas de algumas realidades – e não
outras. Esta dissertação considerou extrapolar questões reducionistas e seguir o percurso com
homens da agência policial-militar e jovens civis de modo que, igualmente, se fizessem parte
integrante e ativa do processo de criação.
119

Desta forma, a proposta do estudo era trazer à cena e buscar discutir a segurança pública
pela perspectiva das ações de abordagem policial visando a análise da construção da “fundada
suspeita”. Tomo como catalisador a ideia de medo como operador político; um medo que atua
como operador de políticas, articulado às experiências que pudemos acompanhar e que coloca
em situação de vulnerabilidade não apenas os jovens abordados, mas também os encarregados
de encaminhar tais procedimentos em favor da segurança e da manutenção do ordenamento
social. É fundamental destacar que a problematização das políticas de medo implica pensar
sobre que humanos estamos falando quando da defesa pela garantia direitos (BICALHO, 2016).
Façamos, portanto, uma pequena, mas importante torção: pensemos direitos humanos não pela
via dos direitos, mas pela via de quem são esses humanos quando nos referimos a eles.
Almejamos, pois, aqui, analisar em que sentido a produção desse “outro” (destituído de
humanidade) faz existir determinada política de segurança pública e outras produções mais que
discorremos ao longo deste texto. Assim, ter o nosso olhar voltado à ação de abordagem, seja
ela realizada por um homem da Polícia Militar ou não, significa pensar categorias que são muito
caras à Psicologia, dentre as quais: a construção da subjetividade e o modo como ela nos faz
operar as nossas relações. Posto isto, a suspeição, no momento contemporâneo em que vivemos,
não é um tema menor ou passível de ser desprezado pelas produções da comunidade acadêmica.
Nossas construções subjetivas passam por estes temas e, por isso, devem importar.
Quando afirmo que a Psicologia tem muito a questionar sobre as ações de abordagem,
o faço por considerar que o que está em jogo é certo conceito de virtualidade que fundamenta
uma série de epistemologias ainda vinculadas à noção de periculosidade, sendo a abordagem
efeito de uma construção subjetiva em todos nós, sejamos policiais militares ou não. É por este
motivo mesmo, que opto por iniciar a minha problemática de pesquisa a partir de um episódio
que tem como agente da abordagem uma profissional do comércio. Com isto, objetivo salientar
que o poder de polícia, tal qual o trazido no decurso do texto, não se estabelece como fator
exclusivo à polícia, mas como um dispositivo que pode ser desempenhado de várias formas e
também por outros agentes. Desta maneira, vale ponderar que nós também abordamos à medida
que somos (todos) subjetivados nos processos de construção da alteridade para entender este
“outro” como suspeito, dado que o medo figura enquanto grande operador político das nossas
relações. Por todas estas questões e entradas, nós, profissionais psicólogos, temos muito o que
pensar sobre as ações de abordagem policial e o processo de construção da suspeita.
Pode-se concluir, portanto, sob a perspectiva de que são elas, de um modo geral, sempre
conclusões provisórias, que empenhar esforços à problematização das questões de abordagem,
implica pensar também a complexidade da tarefa de prevenir o crime. Ao longo do trabalho de
120

pesquisa pudemos constatar que refletir sobre a noção de prevenção é, igualmente, engendrar
uma pauta de discussão difícil – sobremaneira, quando o que está em jogo é a prevenção sobre
o crime. Vale salientar que esta é uma atribuição que compete, em especial, às polícias militares.
Faz-se fundamental, ainda, sublinhar que o positivismo do século XIX não ficou restrito a estes
tempos, ele continua habitando nossos modos de pensar o outro, bem como a nós mesmos, além
de quem é o suspeito e que ameaça ele confere. Quando falo de “nós”, reitero a necessidade de
nos implicarmos no processo de construção da suspeita. Afinal, o medo se opera na construção
subjetiva de todos nós, no entanto, alguns possuem poder de polícia e isto faz com que a
abordagem se transforme em um procedimento de Estado.
Neste sentido, não há como negligenciar o debate que situa o racismo como construção
estrutural desta subjetividade, ou seja, enquanto estruturante do nosso modo de pensar o “outro”
– esta que, ainda hoje, não se configura como uma discussão fácil e nem evidente. Talvez alguns
leitores ainda se façam a pergunta: por que este trabalho de pesquisa, que trata das questões de
abordagem, traz o racismo à cena? Porque falamos de uma subjetividade também construída a
partir daí, isto é, do atravessamento da raça como agenciadora da produção de um certo tipo de
sujeito policial e de suspeição. Negar a desigualdade, negar a violência, negar os quatrocentos
anos de escravização e de colonização é negar nossa construção histórica de subjetividade, uma
vez que compreendemos a história como elemento formulador de políticas. O racismo no Brasil
não é aqui admitido como parte da nossa história, mas, antes de tudo, percebido como uma
tecnologia de poder que não se encerra quando Isabel assina uma Lei.
Finalmente, limito-me agora a concluir acreditando que este trabalho de pesquisa deixa,
sobretudo, dois grandes desafios a serem mais amplamente esquadrinhados – a partir deste que
entendo como o caminho nascente de minha trajetória enquanto pesquisadora. Eles falam das
afetações que me tomaram ao pesquisar a/na PMERJ. O primeiro diz respeito a uma interessante
pista ofertada pelo campo e que trata, pois, da articulação entre a noção do poder de polícia e a
discussão sobre prevenção, problemática já inaugurada no presente texto. Desconfio que seja
este o encontro responsável por tecer o nó de minhas análises. Vejamos: existe um profissional,
aqui, o policial militar, que possui um poder baseado em autoexecutoriedade, coercibilidade e
discricionariedade, ou seja, o poder de polícia. Cabe a este mesmo profissional a tarefa de
prevenir o crime. Quais são os efeitos disso? O poder de polícia conjunto às atribuições de
prevenção e articulados a epistemologias inscritas no punitivismo criminológico, à medida que
se encontram, instigam uma complexa discussão. Permanecem, ainda, alguns questionamentos:
afinal, o que este encontro produz? Que/quais epistemologias servem para responder a estas
convocações e produzir modelos de abordagem?
121

No mais, quanto a segunda (e última) questão, carrego na bagagem a importância de que


nossas produções não estejam limitadas à recorrente afirmação de que são os homens jovens,
em sua maioria, negros e economicamente vulneráveis, os principais alvos da malha de captura.
Cumpre sublinhar que esta é uma agenda sempre muito necessária, porém, não se faz mais
suficiente em si mesma. Almejo com isso, prosseguir com o desafio de debruçar-me sobre novas
produções que vislumbrem, a partir das rachaduras e pistas do campo, avançar por aquilo que
escapa ao já sabido. Portanto, o que nos cabe para que sejam produzidas outras possibilidades
de atuação policial? Em que podemos investir para tornarmos a fortaleza mais porosa, de modo
que seus muros altos se constituam cada vez menos como apartador de mundos? Ou, ainda, o
quanto conseguimos falar de outros tipos de experiência na/com a Polícia Militar e não somente
da atualização de um diálogo há tempos enrijecido? É preciso “desmanchar fortalezas”, romper
com aquilo que, por vezes, se perfaz como distanciamento da sociedade. Isto foi um pouco do
que busquei trazer nesta dissertação de mestrado e que me convoca a outras novas produções.
Um “entre” em permanente atualização. Sigamos o percurso...
122

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