Você está na página 1de 5

Letalidade Policial1

Apresentamos a seguir mais um exemplo de prática de análise criminal desenvolvido


pela Coordenadoria de Análise e Planejamento da Secretaria de Segurança Pública de
São Paulo. Neste caso, estaremos avaliando os fatores determinantes da letalidade da
ação policial.

Para esta análise selecionamos 523 casos de incidentes letais ocorridos entre 2001 e
2003, envolvendo Policiais Civis e Policiais Militares em serviço. Além de informações
do banco de dados de letalidade da CAP, utilizamos dados adicionais do Infocrim para
“plotar” incidentes no mapa. Identificamos o seguinte cenário típico: durante
patrulhamento noturno, em bairros violentos da periferia, policiais identificam veículo
suspeito com pessoas em atitudes suspeitas e durante a abordagem ou
acompanhamento, há troca de tiros e o incidente termina com a morte de uma das
pessoas em atitudes suspeitas.

Quase metade dos casos de confrontos letais registrados ocorre apenas no município
de São Paulo. Por sua natureza e finalidade, o Choque é a unidade policial mais
envolvida em confrontos letais, como seria natural esperar. A distribuição dos
confrontos é equitativa por dia da semana, com ligeira queda aos finais de semana. A
maior parte dos confrontos letais ocorre entre as 19:00 e 1:00 hora da madrugada. Os
Policiais Militares estão envolvidos em cerca de 90% dos casos de confronto letal,
proporção esperada, dada a tarefa constitucional da mesma. Com relação ao contexto
do início da ocorrência que terminou em confronto, 60% iniciaram-se durante rotinas
de patrulhamento e 37% por chamados ao 190. A situação mais frequente é aquela
em que a patrulha se depara com um furto ou roubo em andamento, onde ocorre troca
de tiros com os criminosos. Cerca de 67% dos confrontos ocorrem nas vias públicas,
implicando numa situação potencialmente perigosa também para as pessoas que
estão circulando pelo local dos fatos. A idade média das vítimas civis de confrontos é
24,6 anos enquanto a média de idade dos policiais envolvidos em confrontos é de 32
anos. Das vítimas, 98,4% são homens. Em 83,4% dos confrontos apenas uma pessoa
foi morta e em 13,2% duas pessoas.

Em 95% dos casos de confronto, a ocorrência é registrada como resistência seguida


de morte. Os casos de resistência seguida de morte em 2002 (círculos pretos)
tenderam a ocorrer em hot spots de homicídios doloso (manchas vermelhas).
Identificamos pelo menos três possíveis explicações para esta superposição. O policial
que atende ocorrências nas áreas violentas se sente inseguro e tende a não seguir os
procedimentos de abordagem padrão? Tratamento desigual efetivado pelos policiais
devido ao baixo status socioeconômico e pouca visibilidade das vítimas? Ou
simplesmente concentração da violência criminal nestas áreas?

1
Os exemplos “Prevenção de Roubos”, “Favela, Tráfico e Homicídios”, “Desordem Urbana: usando a
metodologia de policiamento orientado a solução de problemas”, “Avaliação da Eficiência de Ações:
criação de buffers” e “Letalidade Policial” foram retirados do relatório Ferramentas e Técnicas de Análise
Criminal, elaborado por Túlio Kahn.
Mapa 1 – Distribuição da Letalidade Policial e Incidência de Homicídios Dolosos
(2002)

Há uma relação linear entra a taxa de mortos por 1000 policiais e o tamanho do
município: nos pequenos a taxa é de 5,6:1000, crescendo para 44,7:1000 nas oito
cidades com mais de 500 mil habitantes.
Report
Gráfico 1 – Incidência de Letalidade Policial Segundo Tamanho do Município (2002)
Variables : taxa de confronto por 1000 policiais

40,0000

categoria de população
ate 5000 hab
30,0000
de 5001 a 25000 hab
Values

de 25001 a 100000 hab


de 100001 a 500000 hab
mais de 500000 hab
20,0000

10,0000

Mean

É muito comum o envolvimento Statistics


dos mesmos policiais em mais de uma ocorrência com
resultado letal. A reciclagem e o acompanhamento psicológico devem focar os
policiais e unidades que concentram o maior número de envolvimento em ocorrências
letais. Sem pretensão de fazer qualquer julgamento moral, sabe-se que cada
Comandante Geral tem seu “estilo” e preocupações próprias e isto tende a afetar o
comportamento da corporação. A questão dos “excessos” policiais é uma das mais
afetadas pela postura e discursos adotados pelo alto comando, que dão ênfase maior
ou menor ao problema. Por meio de uma série de “sinais” explícitos e implícitos, a
tropa de algum modo “capta” esta linha e se comporta em função da orientação
superior.
Figura 1 – Análise da Incidência de Letalidade Destacando Impacto das Mudanças de
Comando
Troca de
troca de comando
comando

Resistência
seguida de
morte, em
serviço:
mudança
de nível
para cima
em julho de
2002 e
para baixo
em
dezembro
de 2004

Caso dentista

Nesta análise, constatamos como a letalidade aumentou em julho de 2002 durante a


gestão do último Comandante Geral (que assumiu em abril de 2002), caiu em
dezembro de 2004 após a posse do atual Comandante Geral e caiu após o episódio
da morte do dentista negro em fevereiro de 2004. A análise sugere que a postura do
comando e casos emblemáticos (Carandirú, Favela Naval etc.) afetam mais os níveis
de letalidade do que os procedimentos burocráticos internos.

Com efeito, o número de policiais encaminhados ao PROAR no período analisado


(2001 a 2005) e o número de procedimentos adotados (inquéritos, sindicâncias etc.)
parece não ter impactado no nível de letalidade. O número de policiais encaminhados
ao Proar manteve-se praticamente constante (portanto não explica nem o aumento em
2002 e nem a queda em 2004). O número de procedimentos internos, por sua vez,
aumentou também em julho de 2002 – acompanhando o crescimento da letalidade – e
se manteve estável desde então. Os dados reforçam a importância da postura do
comando perante a questão, deixando claro aos subordinados que mortes
desnecessárias são um mal – ainda que legais - que afetam a legitimidade da ação
policial e abusos não serão tolerados.

Por outro lado, dados da pesquisa de vitimização IFB de 2003 sugerem que ainda
pode haver um padrão desigual de tratamento da população conforme o bairro,
especialmente no tocante às revistas e averiguações de documentos. A população
que mora nos bairros periféricos é mais abordada pelas polícias para verificação de
documentos e revistas. Incidência criminal e perfil epidemiológico dos criminosos
podem justificar esta maior incidência.
Q139. Entre julho de 2002 e junho de 2003 algum PM, policial civil ou
militar das Forças Armadas fez com que o(a) Sr(a) passasse por
alguma das seguintes situações.... (LEIA AS FRASES)
: “fosse revistado”
Mapa 2 – População Revista por Profissionais de Segurança Pública

Em todos os Estados Unidos, morrem em média por ano cerca de 400 pessoas em
confrontos com a polícia. Este número equivale à cerca de 1/3 das mortes ocorridas
anualmente no Brasil, embora a população brasileira seja bem menor. A se fiar nos
dados remetidos pelas Secretarias de Segurança à Senasp, metade dos casos de
vitimização fatal por agentes policiais no Brasil ocorre em São Paulo. Em termos de
taxa por 1000 policiais, São Paulo só fica atrás do Rio de Janeiro. Como os homicídios
têm diminuído em São Paulo, desde 2001, a proporção de mortos em confrontos sobre
o total de homicídios tem aumentado. Atualmente, os confrontos são responsáveis por
cerca de 9% dos homicídios do Estado e esta proporção equivale aproximadamente à
encontrada nas cidades norte-americanas com mais de 1 milhão de habitantes.

Em função do melhor treinamento e equipamento, é natural esperar que os civis sejam


proporcionalmente mais vitimados nos confrontos com a polícia. Em 85,2% dos casos
analisados, o policial respondeu que utilizava colete no momento do confronto.
Todavia, a relação mortos policiais X mortos civis no Estado está demasiado
desequilibrada, sugerindo excesso policial nas ações. Na cidade de Buenos Aires, a
relação entre civis e policiais mortos em confrontos varia de 6 a 15,7 (em 1998). Nos
Estados Unidos, a relação varia entre 5 e 7 vezes mais civis mortos nos confrontos,
proporção similar à do Rio de Janeiro entre 1997 e 1998. Nos confrontos entre
policiais e criminosos, o padrão é que o número de criminosos feridos seja superior ao
número de criminosos mortos (relação feridos X mortos menor que 1) O padrão atual
de São Paulo é ligeiramente invertido, com o número de mortos superando o de
feridos.

As análises sobre as características dos confrontos estão baseadas em 2.113 casos


de confrontos cadastrados pelo Grupo de Letalidade da CAP. Cerca de 84% dos
confrontos ocorre com o policial em serviço e ¼ durante a folga. Quase metade dos
casos de confrontos letais registrados ocorre no município de São Paulo. Em 502
municípios do Estado, não houve mortes em confrontos com a polícia entre 2001 e
2003. Problema está concentrado em 25 cidades. Em termos de taxa de mortos por
1000 policiais, São Paulo perde para diversos municípios do Interior do Estado, que
tem efetivos muito menores (inflando artificialmente as taxas). A distribuição dos
confrontos por município segue aproximadamente a distribuição dos maiores efetivos
policiais do Estado, em termos absolutos. As áreas onde mais ocorrem estes
confrontos letais são o 1º DP de Guarulhos, o 73º e 41º DPs de São Paulo, Campinas,
Santo André, Diadema e Osasco.

Informação é a matéria-prima do trabalho policial e a sociedade pressiona a polícia por


“resultados”. Quanto menos técnico-científico for o trabalho policial num determinado
departamento, maior o recurso à violência ou aos meios ilegais para a obtenção de
informação. A superação dos abusos na polícia virá não apenas do ensino específico
dos “direitos humanos”, mas da elevação da qualidade do ensino técnico nas
academias de polícia.

Você também pode gostar