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Centro Biomédico
Rio de Janeiro
2019
Confidential C
Renata de Souza Carvalhaes
Rio de Janeiro
2019
Confidential C
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CB/C
CDU 392.6(815.3)
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação, desde que citada a fonte.
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Assinatura Data
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Renata de Souza Carvalhaes
Banca Examinadora:
Rio de Janeiro
2019
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DEDICATÓRIA
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AGRADECIMENTOS
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e força. Por me afetarem e me fazerem continuar acreditando na potência de
encontros.
Ao projeto Florescer, e a toda equipe com quem atuei, que direcionou meu
olhar para a psicologia de outro modo, de forma mais possível e bonita. Dora Lorch,
merece meu reconhecimento pela generosidade, por compartilhar conhecimento e
pela condução sensível do grupo.
Agradeço à Adriana Lorêdo, à Alana Calado e à Vanessa Farias pela
compreensão dos momentos de ausência no trabalho, por dividirem as reflexões e
as angústias geradas na escuta de violências, e por todo apoio nesta trajetória.
Agradeço às amigas e aos amigos pelo companheirismo, apoio, carinho,
cuidado, inspiração e por compreenderem meus momentos de reclusão, em
especial: Nadine Paixão, Adriana Hoffgen, Marina Pampuri, Célia Galdino, Fernanda
Ranieri, Marisa Volcian, Pedro Souza, Valdenir Silva, Alciana Paulino, Ricardo
Borges, Priscilla Gomes, Cleber Macedo, Marina Ramos, Carolina Guedes, Rodrigo
Santana e Lígia Xavier.
À Simone Lisboa e Matheus Prevot, meus agradecimentos pelos momentos
divididos, e principalmente por terem feito de seu lar meu lar, recebendo-me com
tanto carinho durante a jornada do mestrado.
À Marta Coser, por compartilhar o mesmo lar e mesmo pouco desfrutando de
minha presença não deixou de ter paciência e me incentivar.
À minha família pelo amor, por serem meu alicerce e os meus maiores
incentivadores, por me ensinarem que a educação é transformadora, por toda
compreensão diante da minha ausência. Às minhas sobrinhas, Mariana, Sabrina e
Isabella; aos meus irmãos, Robinson e Ronaldo; às minhas cunhadas, Cristiane e
Fernanda e aos meus pais, Elza e João, que são meu exemplo de vida e
persistência.
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Será
(Legião Urbana)
Será só imaginação?
Será que nada vai acontecer?
Será que é tudo isso em vão?
Será que vamos conseguir vencer?
Oh, oh, oh, oh, oh, oh
Será só imaginação?
Será que nada vai acontecer?
Será que é tudo isso em vão?
Será que vamos conseguir vencer?
Oh, oh, oh, oh, oh, oh
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RESUMO
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ABSTRACT
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LISTA DE ABREVIAÇÕES
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................... 11
1 ADOLESCÊNCIA E JUVENTUDE: PROBLEMATIZANDO AS
CATEGORIAS DE CLASSIFICAÇÃO ETÁRIA E SUA FUNÇÃO
SOCIAL .......................................................................................... 22
1.1 Adolescência e juventude ........................................................... 22
1.2 A construção de direitos ............................................................. 26
1.3 Sujeitos de direitos ou sujeitos tutelados: tensões no
reconhecimento dos direitos dos adolescentes ....................... 32
2 ESTABELECENDO RELAÇÕES: PESQUISADORA, ESCOLA E
OS DESAFIOS NO CAMPO .......................................................... 38
2.1 Mapeando o espaço escolar ........................................................ 38
2.2 Estratégias metodológicas .......................................................... 39
2.2.1 Trabalho de campo e as “saias justas” ........................................... 42
2.2.2 Entrevistas e seus múltiplos processos de afetamento .................. 46
3 SEXUALIDADE E AFETO NA ESCOLA ....................................... 57
3.1 Sociabilidade, afetos e espaço escolar ...................................... 57
3.2 Os roteiros do “ficar” e namorar ................................................ 61
3.3 As interações afetivas .................................................................. 67
3.4 A reputação das meninas em jogo ............................................. 71
3.5 “Namoro é um problema”: sexualidade e escola ...................... 73
3.5.1 A sexualidade nos espaços formais de aprendizagem .................. 80
4 VIOLÊNCIA AFETIVO-SEXUAL NA ADOLESCÊNCIA ................ 86
4.1 Expressões da violência nos relacionamentos afetivo-
sexuais dentro do espaço escolar .............................................. 96
4.2 Os enredos da violência nas interações afetivo-sexuais 101
4.2.1 A dor silenciada .............................................................................. 110
4.2.2 As fronteiras entre o dito e o não dito: agenciando conflitos .......... 114
4.3 Os significados da violência no “ficar” e no namoro ............... 118
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................... 124
REFERÊNCIAS .............................................................................. 129
ANEXO – Roteiro de Observação Participante............................ 137
ANEXO B – Roteiro de entrevistas................................................. 138
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INTRODUÇÃO
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1Florescer da Fábrica era um projeto sem fins lucrativos, contava com a participação voluntária de
um grupo de psicólogos e estagiários de psicologia e funcionava apenas aos sábados em salas
cedidas pelo Educandário Dom Duarte na cidade de São Paulo. O objetivo do projeto era atender
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crianças e adolescentes encaminhados pelas unidades escolares devido à vivência de violência
intrafamiliar. Era realizado atendimento individual às crianças e aos adolescentes e atendimento em
grupo com os familiares. O projeto iniciou em 2002 e parou de funcionar no ano de 2011.
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rapazes não sejam encaminhados aos serviços? Eles não sofrem violência nos
relacionamentos? O que faz com que as violências sofridas pelos meninos sejam
invisibilizadas?
Chama a atenção que muitas narrativas dos adolescentes sobre suas
relações afetivo-sexuais, que eu classificaria como violência, na maioria das vezes
não têm a mesma leitura por parte deles, fato que intriga, pois, o que faz com que
essas situações ganhem diferentes significados?
Diante da baixa visibilidade da temática, é imprescindível compreender a
importância de alargar os conceitos de violência. Uma vez que estes nem sempre
são apreendidos pelos adolescentes nos relacionamentos. Isso posto, questiono: o
que os adolescentes interpretam e entendem como violência nas suas relações
afetivo-sexuais?
Esta pesquisa objetiva, portanto, analisar os modos como a violência se
constrói nas trajetórias afetivo-sexuais ao decorrer da adolescência e como são
interpretadas por alunas e por alunos de uma escola estadual da região Costa Verde
do estado do Rio de Janeiro.
A pesquisa é de cunho etnográfico, cujo material empírico resulta dos diálogos
desenvolvidos em observação participante no pátio da escola e por meio de
entrevistas que resgatam a trajetória de vida. Busquei compreender, a partir do olhar
dos adolescentes, as diversas formas de entendimento sobre violência nas relações
afetivo-sexuais; analisar quais aspectos das normas de gênero e sexualidade podem
aparecer como influência para o estabelecimento de conexões entre os pares (desde
o interesse, a aproximação, a paquera até a relação afetivo-sexual) e a constituição
de relacionamentos e ações violentas; investigar as agências realizadas pelos
adolescentes frente à violência em suas relações afetivo-sexuais.
Levanto como hipótese que a maneira como os adolescentes interpretam e
agenciam a violência nos relacionamentos afetivo-sexuais pode contribuir para que a
problemática continue “invisibilizada”, assim como creio não ser possível falar em
violências simétricas, pois a roteirização sexual, a organização social e as
moralidades em torno do gênero acontecem de formas desiguais,
consequentemente, as manifestações da violência também.
Para abordar a violência nas relações afetivo-sexuais é importante
compreender como os adolescentes concebem a sexualidade, os valores, as
moralidades que atravessam suas experiências, e como se constituem as
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3 Os pânicos morais emergem de medo social, de temor coletivo diante de uma ideia de um suposto
perigo e ameaça aos valores e interesses da sociedade. Segundo Miskolci (2007) e Miskolci e
Campana (2017), baseado no conceito de Cohen (ano), o pânico moral surgiu para caracterizar a
maneira como a mídia, a opinião pública e os agentes de controle social reagem perante alguns
rompimentos de padrões normativos. Sendo assim, a noção de “ideologia de gênero” opera na lógica
do pânico moral, que tem por função alarmar para poder controlar o que os grupos conservadores e
religiosos acreditam ser uma ameaça.
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4 Segundo Algebaile (2017), o Escola sem Partido foi criado em 2004 a partir de um “movimento” e
iniciativa de estudantes e pais preocupados com o grau de “contaminação político-ideológica das
escolas brasileiras”. Têm por intuito dar “visibilidade a esses acontecimentos dentro da escola”. A
atuação é feita principalmente por um site que funciona como um meio de veicular ideias,
instrumentalizar denúncias e dissipar maneiras de vigilância, controle e criminalização que os
organizadores entendem como “práticas de doutrinação”, estas identificadas em aulas, livros
didáticos, outras atividades e materiais escolares. O Projeto de Lei compõe o programa de ação do
Escola sem Partido “como um instrumento estratégico de mobilização e propaganda, quanto como
um instrumento jurídico- político de controle da escola que, no entanto, não precisa de sua plena
vigência jurídica, propriamente dita, para produzir os efeitos desejados” (p.70).
5O Plano Nacional de Educação (PNE) foi criado para determinar diretrizes, metas e estratégias para
a política educacional no período de 2014 a 2024.
6A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter normativo que define o
conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem
desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham
assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que
preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE). (BRASIL, 2017).
7 O termo em inglês, “Fake News”, é utilizado para fazer menção a notícias falsas que são publicadas
na internet, nas redes sociais, no WhatsApp como se fossem reais e seu conteúdo é comumente
ligado a questões políticas.
8Nome atribuído por opositores ao kit de materiais educativos do “Projeto Escola sem Homofobia”.
Esse projeto visava implementar o Programa Brasil sem Homofobia pelo Ministério da Educação e
desenvolver ações que promovessem a garantia de direitos humanos e a respeitabilidade das
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orientações sexuais e identidade de gênero no ambiente escolar (LEITE, 2014). O projeto originou de
uma emenda parlamentar proposta, em 2007, pela Deputada Fátima Bezerra (PT-RN), a partir de
articulações da AGBLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais no Congresso Nacional. Na época o Ministro de Educação era Fernando Haddad. Na
fase final de aprovação no MEC, o projeto foi suspenso e a distribuição foi vetada pela presidente
Dilma Rousseff em maio de 2011. O deputado Jair Bolsonaro foi um dos primeiros a manifestar
contrariedade ao material do “Projeto Escola sem Homofobia” e, em 2018, ao concorrer como
candidato a presidente da república da divulgação de Fake News sobre o “Kit gay” com o intuito de
atingir o, também candidato, Fernando Haddad, que ficou conhecido como o idealizador do Kit.
9“Mamadeira de piroca” refere-se à suposta distribuição em creches e pré-escolas de mamadeiras
em que o bico era em formato de pênis.
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A estatística geral dessa pesquisa destoa de outras na área que apresentam números menores.
Acredito que a grande diferença epidemiológica se dê em função das diferentes metodologias
utilizadas nas pesquisas. Foi aplicado pelo Centro Latino-Americano de Estudos da Violência e
Saúde Jorge Careli da Fundação Oswaldo Cruz o questionário Conflict in Adolescent Dating
Relationships Inventory (CADRI). A CADRI é uma escala com 70 itens, os quais 25 aferem violência
sofrida, 25 violência praticada e 20 que distraem o jovem da ênfase no tema da violência, esses não
constam na análise. (MINAYO, ASSIS e NJAINE [org.], 2011).
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feminino, mas também como o mecanismo mediante o qual esses termos são
desconstruídos e desnaturalizados” (PISCITELLI, p. 266, 2002)
Segundo Butler (2016), o gênero é relacional e performado, não é possível
universalizarmos os sujeitos e separá-los entre homens e mulheres como se cada
categoria carregasse em si um único modo de ser e de agir. Os sujeitos são plurais e
cada um é atravessado, constituído e socializado de diferentes formas e por distintas
culturas. Essa construção é feita a partir de um processo de produção
discursiva/cultural.
Gênero nem sempre se constitui de maneira coerente ou consistente nos
diferentes contextos históricos, pois o gênero estabelece interseções com raça,
classe, sexualidade e identidades discursivamente constituídas. O resultado é que
se tornou impossível separar a noção de “gênero” das interseções políticas e
culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida.
Para pensar as interações afetivo-sexuais, parto da noção de roteiros sexuais
(Gagnon, 2006), onde se entende que o desejo, o processo de paquera e os
comportamentos sexuais são aprendidos por via de interações sociais, culturais e
por processos subjetivos.
Para problematizar a violência, tomarei como respaldo o conceito de
“violência relacional” proposto por Gregori (1993). Parte-se da ideia de que as
relações violentas se constituem como uma linguagem na dinâmica da relação,
sendo assim, ambos os parceiros participam da cena de violência. Rompendo com o
lugar engessado de vítima atribuído à mulher. Reconhecer que mulheres também
praticam violência não representa desconsiderar as assimetrias e desigualdades de
gênero, pois, como é bem sabido, histórica e estatisticamente são as mulheres as
maiores vítimas de agressões físicas graves e do homicídio praticado por parceiros e
ex-parceiros.
As análises das ações das moças e rapazes diante dos conflitos e violências
serão realizadas pela ótica do conceito de agência apresentado por Ortner (2006),
em que considera que todos os sujeitos possuem agência, mesmo estando em
situações de desigualdades e subordinação. A agência se desenrola de forma
interativa e negociada nas relações.
A análise das interações na escola apoia-se no conceito de sociabilidade de
Simmel (2006), que aborda sobre a forma da vida societária, ou seja, o modo de
estar com o outro, para o outro, contra um outro, são interações transparentes,
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lúdicas e autônomas, que “ganham vida própria”, são livres de laços e conteúdos e
existem por si mesmas. As interações no ambiente escolar são importantes por se
tratar de um espaço significativo para as descobertas e vivências da sexualidade.
Esta dissertação está estruturada em quatro capítulos, considerações finais e
uma seção de anexos, a qual contém: Anexo A – Roteiro de observação
participante; Anexo B - Roteiro de entrevista e Tabela 2 – Perfil sócio educacional
das/os entrevistadas/os. Saliento que as músicas referenciadas nas epígrafes foram
mencionadas pelos adolescentes ao decorrer da pesquisa11.
O capítulo um discute a noção de adolescência como uma construção sócio-
histórica, cultural e diversa. É abordada a construção do adolescente como sujeito
de direito a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Em
seguida, são elencados os marcos legais que possibilitaram o reconhecimento dos
direitos sexuais e reprodutivos de adolescentes. Por fim, apresento os
tensionamentos gerados entre autonomia e tutela adolescente.
O capítulo dois trata da metodologia da pesquisa e aborda informações sobre
o locus da pesquisa, o aporte teórico que respalda as estratégias metodológicas
escolhidas. Traz ainda uma descrição sobre a observação participante e as
entrevistas, discutindo os desafios encontrados ao longo do processo de pesquisa e
contém um breve perfil dos entrevistados e uma tabela de identificação de todos
interlocutores presentes nesta pesquisa.
O capítulo três inicia-se com uma descrição do campo de pesquisa e com o
enfoque na sociabilidade no pátio escolar. Em seguida, é abordada a aprendizagem
dos roteiros sexuais e sua influência na sexualidade dos adolescentes, como
acontecem as interações afetivo-sexuais, o processo de aproximação e conquista e
tomada de iniciativa diante do interesse de uma moça ou de um rapaz. Logo em
seguida, trago reflexões sobre as desigualdades de gênero e os diferentes pesos de
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11 Desde o início do trabalho de campo percebi que a música era algo muito presente no contexto
escolar, fosse pelos fones de ouvido ou pelas rodas de música, em que estudantes tocavam violão e
cantavam. Em uma tarde, um rapaz narra a cena que havia acabado de acontecer: ele, os amigos e
um professor fizeram uma roda, tocaram violão e cantaram a música “Será” do Legião Urbana. Ele
relata esse momento com muita empolgação e abraçado a um amigo novamente canta a música, a
qual é a epígrafe desta dissertação. Após esse episódio, decidi por fazer um diário de campo de
música. Nele contém as músicas que os estudantes diziam ouvir quando estavam tristes em função
de uma garota ou de um garoto. Ao me falarem sobre as músicas, repetiam a letra, às vezes
cantavam ou me emprestavam o fone de ouvido para que eu escutasse.
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mundo, mas através da cultura nos são designados padrões referentes a cada etapa
de vida.
A ideia de adolescência é atrelada à etapa de transição da infância para a
vida adulta, fase de mudanças corporais, da puberdade, da rebeldia, da contestação,
da vivência de prazeres. Ao passo que a juventude, segundo Pais (1990), quando
referida a uma fase de vida, é socialmente contextualizada e formulada a partir de
condições econômicas, sociais ou políticas.
Heilborn (2012, p. 58) exemplifica as visões sobre adolescência e juventude
da seguinte forma:
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12 O Código de Menores foi promulgado em 1927, e tinha como foco a intervenção com crianças e
adolescentes que carregavam estigmas negativos, como: “infratores”, “abandonados”, etc. Desde a
década de 1940, mas principalmente na década de 1970, são feitos críticas e esforços de mudanças.
Em 1979 foi promulgado um novo Código de Menores que renovou as concepções que norteavam o
código de 1927 por meio da doutrinação da situação irregular. No entanto, as críticas continuaram a
aumentar, inclusive através de pesquisas sobre infância e “infância de rua” e sobre os modelos de
internação desses sujeitos. A primeira mudança do código ocorreu legalmente através da
Constituição Federal que, por meio do art. 227, institui o que viria a ser a nova legislação sobre a
infância. Mas é por meio do ECA que a mudança é de fato consolidada (VIANNA, 2002).
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interior. Nestas últimas, costuma acontecer de forma mais tímida e por vezes são
poucos ou até mesmo inexistentes os projetos específicos para adolescentes e
jovens, a situação se agrava ainda mais quando falamos de áreas rurais e ilhas.
Vale ressaltar que os primeiros programas específicos para jovens e
adolescentes foram na área da saúde, com foco na prevenção (IST/AIDS),
drogadição, acidentes de trânsito e “gravidez precoce” (SPÓSITO e CARRANO,
2003). O que denota uma preocupação singular por comportamentos tidos como
desviantes e de risco.
Os direitos sexuais e reprodutivos ganharam corpo inicialmente a partir das
lutas pela garantia de direitos das mulheres, que posteriormente se estenderam para
adolescentes. Tiveram como marco legal na esfera internacional: a Conferência
Internacional sobre População e Desenvolvimento no Cairo em 1994 e a IV
Conferência Mundial sobre a Mulher em Pequim em 1995. As conferências
progrediram nas discussões de igualdade de gênero como fator importante para a
saúde.
No Brasil, os marcos foram: o Programa de Assistência Integral à Saúde da
Mulher (PAISM) em 1984; Constituição Federal de 1988; a Lei nº 9.263/1996, que
regulamenta o planejamento familiar; a Política Nacional de Atenção Integral à
Saúde da Mulher de 2004; Política Nacional dos Direitos Sexuais e dos Direitos
Reprodutivos de 2005.
É importante lembrar que um programa de saúde específico para a
adolescência foi o último a ser implementado, o que reflete uma demora em
reconhecer particularidades dessa fase da vida. No final do século XX e início século
XXI, houve um crescimento de políticas nacionais voltadas para saúde integral da
mulher, do homem e da pessoa idosa. Uma Política Nacional de Atenção Integral à
Saúde de Adolescentes e Jovens ocorreu por um processo de lutas e reivindicações
no âmbito da saúde pública e coletiva e através dos debates sobre direitos humanos
na esfera internacional e nacional (LOPES e MOREIRA, 2011).
Antes da implantação das Diretrizes Nacionais para Atenção Integral à Saúde
de Adolescentes e Jovens na Promoção, Proteção e Recuperação de Saúde, que se
deu apenas em 2010, diversos documentos nortearam o atendimento à saúde do
adolescente e as questões que envolvem a sexualidade.
Em 1989, o Ministério da Saúde lançou o Programa Saúde do Adolescente
(PROSAD) voltado para pessoas entre 10 e 19 anos, porém o programa estava
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interligado com a área materno-infantil, o que demonstra que ainda não havia um
olhar direcionado para especificidades do referido grupo.
A área voltada à saúde do adolescente e jovem, em 1999, apresenta, com
base no ECA, um documento “Saúde e desenvolvimento da juventude brasileira:
construindo uma agenda nacional”, e traz temas como: saúde sexual e reprodutiva,
tabagismo, homicídio, suicídio, drogas, participação dos jovens. Tal documento foi
desenvolvido em parceria com a UNICEF – Fundação das Nações Unidas para a
Infância e a OPAS – Organização Pan Americana de Saúde.
O Ministério da Saúde, por via da Secretaria de Atenção à Saúde
Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, publica Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos: uma prioridade do governo, em 2005. O manual, que traz
propostas e diretrizes com meta de vigorar entre 2005 e 2007, apresentou alguns
pontos específicos aos adolescentes e jovens: Ampliação do Programa Saúde e
Prevenção nas Escolas, que inicialmente foi implementado em 6 municípios com
parceria do Ministério da saúde e Ministério da Educação; Atenção à saúde sexual e
à saúde reprodutiva de adolescentes e jovens e Implantação e implementação de
serviços para atenção às mulheres e adolescentes vítimas de violência sexual e
doméstica e para atenção humanizada às mulheres em situação de abortamento.
Novas normas e manuais técnicos foram lançados em 2005, especificamente,
para o período da adolescência e juventude – “saúde Integral de Adolescentes e
Jovens: orientações para a organização de serviços de saúde” – e tinha por objetivo
nortear a implantação e implementações de ações e serviços voltados ao público
alvo que visava um atendimento integral, resolutivo e participativo. Entre os diversos
temas propostos para ser trabalhado estava: direitos sexuais e direitos reprodutivos;
sexualidade e saúde reprodutiva, relações de gênero.
Através da parceria do Ministério da Saúde, Ministério da Educação e apoio
da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), foram
lançadas as Diretrizes para implantação do “Projeto Saúde e Prevenção nas
Escolas”. Com tópicos específicos para vulnerabilidades, violências associadas à
juventude e às relações de gênero, vivência da sexualidade, gravidez, impacto da
AIDS entre adolescentes e jovens.
Em 2007, foi emitida a série, Normas e Manuais Técnicos, “O Documento
Marco legal: Saúde, um direito de adolescentes” (BRASIL, 2007). Um instrumento
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regional e local, bem como na esfera individual. Temas como saúde, sexualidade e
gênero, vida familiar e social”, (BRASIL, 2013, p. 115).
Nos anos subsequentes, houve o lançamento, em 2014, do Plano Nacional de
Educação (PNE) que vigora entre os anos de 2014-2024 e aponta os termos gênero
e diversidade sexual atrelados apenas à meta que corresponde a formação
continuada de professores. E, em 2017, o documento que reformula o currículo
escolar, a Base Nacional Comum Curricular, não faz menção à sexualidade e ao
gênero.
Mesmo tendo críticas sobre como a abordagem da sexualidade é realizada no
campo da saúde e educação, ser reconhecida a partir de documentos significa um
grande avanço. Apesar disso, a sexualidade adolescente está em um campo de
tensionamentos e contradições. Socialmente o recorte etário também é determinante
para os comportamentos e práticas sexuais aceitos. Qual seria a idade aceitável? O
que é “autorizado” aos adolescentes? Qual a idade ideal para dialogar sobre
sexualidade? Quais os espaços ideais para isso?
A sexualidade e reprodução sempre foram foco das morais e, no último
século, são pautas de debate de direitos humanos e direitos individuais. No entanto,
ao tratar-se de adolescentes, essas temáticas apresentam maiores desafios e
apontam para fragilidades (BUGLIONE, 2005). Uma implicação importante da visão
biologizante da sexualidade adolescente é a desconsideração de pluralidades e
prazeres somada ao olhar sobre a adolescência como irresponsável, ou seja, às
morais e às normas, que são redobradas nesse período.
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Este dado não apenas conota uma forma de estruturar e definir o sujeito de
direitos (logo de “capacidades” e “responsabilidades”), como também dá
forma a um determinado modelo de organização familiar, cuja ideia
hegemonizada não absorve outras formas de arranjos familiares. Ou seja, a
necessidade de um responsável para o acesso ao serviço de saúde sugere
organizações familiares nas quais as informações sobre saúde, sexualidade
e reprodução são compartilhadas, o que talvez possibilitasse uma
participação saudável dos adultos na vida dos tutelados (2005, p. 56).
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Este capítulo tem por intuito situar o campo de pesquisa, trazendo o aporte
teórico que orientou e embasou o desenvolvimento metodológico. Em seguida,
discorro sobre a entrada no campo, as estratégias utilizadas para aproximação dos
interlocutores desta pesquisa e os desafios encontrados junto à Direção da escola,
aos alunos e a regras institucionais. Após isso, serão apresentadas a execução das
entrevistas, as intercorrências ocorridas durante o processo, e apresento um perfil
das moças e dos rapazes entrevistados. Ao final, foi adicionada uma tabela dos
interlocutores que serão citados ao longo do trabalho a fim de situar e familiarizar o
leitor com o contexto de cada adolescente.
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voltei a circular pelo pátio e o tempo de conversa com os alunos foi aumentando.
Essa estratégia não surtiu resultado no período da tarde, mas foi positiva no turno da
manhã, pois participei de conversas conjuntas com as funcionárias, alunas e alunos.
Fiz alguns favores externos à escola, uma vez que os estudantes são proibidos de
sair da unidade, mesmo nos momentos de aula vaga, fato que rendeu aproximações
com algumas alunas.
Muitos adolescentes não se aproximaram por acreditarem que fosse uma
funcionária. Todavia, é importante destacar que moças e rapazes com quem tive
contato, por diversas vezes, ao apresentar-me ao grupo de amigas e amigos, os
alertavam sobre a confiança que poderiam ter comigo. Tal fala demonstra um aviso
que o papel que representava naquele espaço era diferente dos demais adultos e
anunciava uma licença para que conversassem sem medo de repressão. Isso foi
fundamental para estar mais próxima a eles.
Ao anunciar o assunto da pesquisa, tive a preocupação de que elucidar a
temática “violência” pudesse assustá-los ou afastá-los e precisava que se sentissem
à vontade para contar suas histórias. Então, sinalizava que a pesquisa era sobre
namoro, “ficar”, o que fazia com que alguns olhassem cismados e outros
automaticamente começassem a contar alguma situação.
Após um mês, consegui fazer vínculo com um grupo de alunos do período da
tarde e aquele se estabeleceu a partir de um episódio em que fui confundida com
uma professora e então começaram a fazer piadas da circunstância.
A partir desse episódio, fui inserida ao grupo. Cabe considerar que esse
vínculo talvez só tenha sido possível por ter se estabelecido através de brincadeira e
de descontração, uma vez que, à primeira vista, eu representava algum tipo de
autoridade e controle na escola. Embora seja o único grupo com o qual circulei no
período da tarde, essas alunas e esse aluno foram interlocutores importantes da
pesquisa, falavam sobre episódios de brigas entre meninos ou meninas em
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13“Contatinho” é uma expressão utilizada para se referir a relações ocasionais de ordem afetivo-
sexual.
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Um rapaz, em especial, foi o que exigiu maior cuidado, pois, através de uma
brincadeira maliciosa, pareceu fazer um convite para sair. Semanas após esse
episódio, fui alertada pela bibliotecária que ele estava interessado em mim. Como
essa situação ocorreu no início das entrevistas, consequentemente, diminuiu o
tempo em que ficava no pátio, gerando um distanciamento automático dos alunos e
das alunas.
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muito baixa sobre o que podia falar, se podia dizer palavrão. Algumas histórias já
tinham sido contadas em outro momento com muito mais riqueza de detalhes, o que
reforça o poder inibidor do gravador. Ao desligá-lo, alguns voltaram a ter uma fala
mais tranquila e descontraída. De modo geral, os rapazes demonstraram maior
tensão durante a entrevista.
A situação da entrevista suscitou diversas reações a partir das narrativas: o
anúncio do choro depois da leitura do termo de consentimento livre; falas e
expressões que transbordavam dor; lágrimas; silêncios e riso nervoso. Algumas
histórias foram difíceis de ser concluídas e procurei deixar os entrevistados à
vontade para prosseguir ou não com seu relato. De modo particular, um adolescente
trouxe um relato de forma descontraída, mas com dúvidas se o que viveu era uma
violência, ele expressava-se de modo como se esperasse uma resposta. Semanas
após a entrevista, duas moças relataram que ficaram “mexidas” ao falar sobre suas
histórias por tratarem de lembranças que ainda lhes causam dor.
Por fim, é preciso levantar mais alguns pontos desafiadores nesse processo
de pesquisa, o campo de tensão e inquietação pessoal que foram gerados através
dos diálogos no pátio e na escuta das histórias durante as entrevistas. Nesses
momentos, pensava ser o lado profissional querendo agir, pois é difícil se
desvencilhar do fazer diário. Mas hoje acredito que os sentimentos gerados ao longo
da pesquisa, fossem no contato com os adolescentes ou os estranhamentos e
reflexões na área profissional, só foram possíveis pelo fato de eu ter sido afetada
como pessoa.
Como afirma Parreiras (2017, p.17), não há como sair intacto da pesquisa de
campo, “especialmente quando as vivências tocam em pontos sensíveis, como por
exemplo, lidar com narrativas de violência, abuso, dor, exploração”. À luz de Fravet-
Saada (2005), ser afetada pelo campo abre uma comunicação com os
interlocutores, que é involuntária, sem intencionalidade, verbal ou não, e permitir
esses afetamentos é possibilitar os estranhamentos no campo e os questionamentos
de nosso conhecimento.
A seguir, um breve histórico dos adolescentes entrevistados e uma tabela de
identificação de todos os interlocutores mencionados nesta dissertação.
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namoro. Menciona sentir atração por rapazes e já teve uma experiência de “ficar”
com um deles, porém suas práticas erótico-afetivas são com moças. Os conflitos
relatados aconteceram com meninas com quem “ficou” e foram em decorrência de
ciúmes, ele teve fotos íntimas exibidas pessoalmente para um grupo de amigas de
uma “ex-ficante”. O rapaz relata perder a paciência com facilidade, brigar e xingar as
moças. Ele identifica essas ações como violência. Guilherme relata resolver suas
questões sozinho, não tem o hábito de procurar os amigos para pedir conselhos e,
quando o faz, se sente mais à vontade com as moças e por vezes recorre à mãe. Na
escola, está sempre rodeado de pessoas, circula em diferentes grupos, tem fama de
“ficar” com muitas garotas da escola e está constantemente pelo pátio. Já reprovou
alguns anos na escola, pois, tinha o hábito de faltar às aulas para namorar.
• Lígia autodeclara-se branca, tem 18 anos e cursa o 1º ano do ensino médio
profissionalizante (curso Tempestade). É espírita não praticante, reside com a
família paterna (pai, madrasta, irmã e genitora da madrasta) em um bairro popular
da cidade. Anteriormente morava com a mãe, mas, devido a conflitos, resolveu
residir com o pai. A moça aponta dificuldade na relação com o pai, que se agravou
quando ele descobriu que ela era lésbica (autodeclaração), o que também não é
bem aceito pela mãe. Na ocasião da entrevista, Lígia tinha terminado um namoro há
poucos dias. A jovem teve experiências de namoro com meninos e com meninas,
mas afirma que, desde que entendeu sua “orientação sexual”, tem-se relacionado
com mulheres. Relata situação de coerção sexual e constantes discussões em
decorrência de ciúmes. Ela se considera tranquila e disse resolver os problemas
através do diálogo, mas também relatou reações com agressão física. Embora relate
resolver seus problemas sozinha, chegou a citar a irmã, que tem como a principal
conselheira, e amigos. Na escola, ela é comunicativa e relaciona-se com diferentes
grupos de alunos.
• Carlos autodeclara-se pardo, tem 19 anos e cursa o 3º ano do ensino
médio. Diz não ter religião, mas a família é evangélica. Reside com a família (pai,
mãe e uma irmã) em um bairro de classe popular. O rapaz não possui bom
relacionamento com a família em decorrência de divergências de opiniões e da alta
cobrança para se adequar aos comportamentos exigidos pela família, como por
exemplo, ser mais reservado. Na ocasião da entrevista, estava namorando pela
primeira vez, relação que durava há dois anos. Menciona já ter tido dúvidas acerca
de sua sexualidade, mas ter compreendido ser heterossexual. Não relatou situações
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Tabela 1 – Identificação das/os adolescentes da pesquisa (com os quais se estabeleceram interações mais frequentes
durante a observação participante, incluindo alguns que concordaram em participar na entrevista).
Nome Raça* Idade Escolaridade/ 1º Contato e diálogos Experiência afetivo- Prática ou vivência
Turno posteriores sexual de violência no
relacionamento
afetivo-sexual
1 Cora Branca 14 8º ano/ tarde Apresentada pelos Prática de “ficar”. Relatos de violência no
amigos. Nunca namorou. relacionamento
Conversas através da Não há experiências com afetivo-sexual de
circulação no pátio. parceiras do mesmo terceiros.
Relatos em diário de sexo.
campo.
2 Débora Negra 14 7º ano/ tarde Apresentada pelos Prática de “ficar”. Relato de prática de
amigos. Namorava na ocasião da violência no próprio
Conversas através da pesquisa. relacionamento e
circulação no pátio. Não há experiências com sobre relação de
Relatos em diário de parceiras do mesmo terceiros.
campo. sexo.
3 Clara Branca 15 8º ano/ tarde Adolescente fez contato a Práticas de “ficar” e Relato de violência no
partir de uma brincadeira. namorar. próprio relacionamento
Conversas através da Práticas sexuais. afetivo-sexual e de
circulação no pátio. Experiências com terceiros.
Relatos em diário de parceiras do mesmo
campo. sexo.
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4 Fernanda Branca 14 8º ano/ tarde Apresentada pelos Práticas de “ficar” e Relata situações de
amigos. namorar. brigas e términos de
Conversas através da Não há experiências com relacionamento.
circulação no pátio. parceiras do mesmo
Relatos em diário de sexo.
campo.
5 Bruno Pardo 15 8º ano/ tarde Adolescente fez contato a Práticas de “ficar”. Não há relatos sobre o
partir de uma brincadeira. Adolescente pouco falava próprio
Conversas através da sobre suas práticas. relacionamento.
circulação no pátio.
Relatos em diário de
campo.
6 Patrick Negro 17 1º ano/ manhã Contato via diálogo em Práticas de “ficar” e Relatos de vivência de
conjunto com funcionárias namorar. violência no próprio
no portão da escola. Práticas sexuais. relacionamento
Conversas através da Experiências com afetivo-sexual.
circulação no pátio. parceiros do mesmo Amigas e amigos
Relatos em diário de sexo. relataram casos de
campo. violência praticada
pelo adolescente.
7 Roberto Negro 17 3º ano/ manhã Abordagem feita pelo Namorava na ocasião da Relata conflitos no
adolescente na quadra pesquisa. próprio
esportiva. relacionamento.
Conversas através da
circulação no pátio.
Relatos em diário de
campo.
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8 Ingrid Branca 19 3º ano/ manhã Apresentada por um Práticas de “ficar” e Relatos de prática e
rapaz. namorar. vivência de violência
Entrevista gravada. Práticas sexuais. no relacionamento
“Ficava” há 1 ano no afetivo-sexual.
momento da entrevista.
Experiências com
parceiras do mesmo
sexo.
9 Carlos Pardo 19 3º ano/ manhã Abordagem feita pelo Práticas de “ficar” e Não há relato de
rapaz ao se aproximar do namorar. prática e vivência de
grupo. Práticas sexuais. violência no
Conversas através da Namorava há 2 anos no relacionamento
circulação no pátio. momento da entrevista. afetivo-sexual.
Relatos em diário de Experiência de um beijo
campo. com parceiro do mesmo
Entrevista gravada. sexo.
10 Aline Branca 18 3º ano/ manhã Apresentada por amigos Práticas de “ficar” e Relato de vivência de
em rodas de conversa. namorar. violência no
Um único contato. Práticas sexuais. relacionamento
Relatos em diário de afetivo-sexual.
campo.
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11 André Branco 15 1º ano curso Abordagem feita pelo Práticas de “ficar”. Não há relatos de
Ventania/ adolescente. conflitos ou violência.
Integral Conversas através da
circulação no pátio.
Relatos em diário de
campo.
12 Ana Negra 20 2º ano curso Moça apresentada por Práticas de “ficar”, Relatos de prática e
Ventania/ um amigo. namorar e noivado. vivência de violência
Integral Conversas através da Práticas sexuais. no relacionamento
circulação no pátio. Relata atração, mas não afetivo-sexual.
Relatos em diário de há experiências com
campo. parceiras do mesmo
Entrevista gravada. sexo.
13 Nina Negra 17 3º ano curso Contato via diálogo em Práticas de “ficar”, Relato de briga em
Ventania/ conjunto com funcionárias namorar. que tenta agredir o
Integral no portão da escola. Namorava há 5 anos na namorado.
Conversas através da ocasião da pesquisa.
circulação no pátio.
Relatos em diário de
campo.
14 William Negro 18 3º ano curso Apresentado por uma Práticas de “ficar”, Relatos de prática e
Ventania/ amiga. namorar. vivência de violência
Integral Conversas através da Práticas sexuais. no relacionamento
circulação no pátio. Experiência de um beijo afetivo-sexual.
Relatos em diário de com parceiro do mesmo
campo. sexo.
Entrevista gravada.
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15 Guilherme Negro 18 3º ano curso Abordagem feita pelo Práticas de “ficar”, Relatos de prática e
Tempestade/ rapaz quando namorar. vivência de violência
Integral assistíamos um ensaio de Práticas sexuais. no relacionamento
dança (trabalho escolar). Atração e uma afetivo-sexual.
Conversas através da experiência com parceiro
circulação no pátio. do mesmo sexo.
Relatos em diário de
campo.
Entrevista gravada.
16 Lígia Branca 18 3º ano curso Apresentada por amigos Práticas de “ficar”, Relatos de prática e
Tempestade/ em rodas de conversa. namorar ambos os sexos. vivência de violência
Integral Conversas através da Práticas sexuais. no relacionamento
circulação no pátio. Identifica-se como afetivo-sexual.
Relatos em diário de homossexual.
campo.
Entrevista gravada.
*Hétero classificação
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14O “ficar” pode ser compreendido como um encontro ocasional, é um relacionamento despertado
por uma atração ou interesse que resulta a troca de carícias, beijos podendo ter ou não relações
sexuais (JUSTO, 2006).
15“Crush” é um termo usado pelos adolescentes para definir a pessoa por quem está interessado,
paquerando.
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comentavam e riam. Do lado de dentro da quadra, alunas e alunos que não estavam
participando da atividade, iam até as grades para conversar ou saiam da quadra
para cumprimentar, muitas vezes com abraços de modo sedutor.
Existia uma diferença comportamental clara entres os turnos, os adolescentes
que estudavam à tarde eram tidos como mais problemáticos, comportamento que
era associado à imaturidade decorrente da pouca idade. As funcionárias
recorrentemente se queixavam deles, como demonstra a fala a seguir: “eles são
tudo mais estranhos, mais bagunceiros e mais brigões”. Esta visão também era
generalizada entre os alunos mais velhos, fato que interferia nas interações sociais
entre alunos do ensino médio e fundamental.
Em uma conversa sobre o convívio com alunos de ensino médio, Cora (14
anos, branca, 8º ano) relatou que alunas e alunos do ensino fundamental eram tidos
como crianças o que os tornavam alvo de deboches e provocações, circunstância
que a deixava irritada: “eles são muito chatos, se acham os adultos, superiores e
que a gente é criança”. Serem interpretadas como crianças, além de soar como uma
inferiorização, era compreendido como um aspecto negativo para a paquera com os
meninos do ensino médio.
Parecia existir uma espécie de hierarquia entre o curso Ventania e os demais
segmentos de ensino. O curso Tempestade era novo na escola e, também por ser
profissionalizante, começou a ser inserido em eventos que antes, tradicionalmente,
contavam apenas com a participação do curso Ventania, como a quadrilha na festa
junina, o desfile de 7 de setembro e a Feira das Nações. O que atribuía às alunas do
curso Ventania um lugar de destaque e constantemente havia reclamações de que
elas eram muito “metidas” e se achavam “poderosas” na escola, queixas realizadas
principalmente por meninas. Além disso, elas eram frequentemente procuradas
pelos meninos, o que ocasionava ciúme nas moças e brigas entre casais em que os
namorados eram vistos conversando com essas alunas.
Quanto às professoras e professores, eventualmente usavam o pátio para
desenvolver atividades de aula, como por exemplo, exercícios lúdicos. No intervalo
de uma aula e outra, esses profissionais cruzavam o pátio para troca de sala ou
retornar à sala dos professores. Nesse trânsito, poucos estabeleciam contatos com
os estudantes e alguns sempre eram abordados por alunas e alunos.
A respeito da minha inserção naquele espaço de sociabilidade, após me
tornar familiar, os diálogos se ampliavam cada vez mais: moças e rapazes gostavam
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16 “Sete” é expressão nativa usada para “pega e não se apega”, e “catorze” para “pega e se apega”.
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e, tipo assim, e que fazem bem aos outros”; “nunca tive um tipo de beleza
específica, se você não tiver personalidade emendando na sua beleza, você não é
nada” e “pra mim não é questão de beleza, mas é o jeito da pessoa agir com você.
Tipo, se a pessoa é engraçada, mostra que se importa com você, te distrai, a pessoa
que faz um lance ser interessante”.
Os relacionamentos são inicialmente estabelecidos por um conjunto de
técnicas sexuais que podem promover ansiedade e insegurança (Gagnon, 2006).
Esses elementos atrelados à inexperiência e à vergonha eram, muitas vezes,
inibidores de paquera, a maior parte dos interlocutores, nas entrevistas, relatou não
se sentir à vontade para conversar e pedir dicas de conquistas para amigos ou
familiares. Essa atitude também converge com as observações de Louro (2000) no
âmbito escolar, em que dúvidas, fantasias, experimentações do prazer são
associadas ao segredo e à vida privada, e através das diversas formas de
disciplinamento, os jovens aprendem essas atitudes de vergonha.
Em campo também identifiquei que, para os rapazes, existia uma maior
cobrança no processo de conquista, que se dava em termos da necessidade em se
“dar bem”, ou seja, eles precisavam ser bem sucedidos no processo de conquista
das garotas, pois, para eles, isso significa uma forma de reforçar sua masculinidade
(NASCIMENTO, 2017).
Diante da inexperiência, a Internet apareceu na pesquisa como uma maneira
de se instruir e procurar respostas de como se aproximar da pessoa desejada, como
foi o caso de Willian de 18 anos. Ele contou que, aos 15 anos, já havia iniciado sua
vida afetivo-sexual, mas, cansado de não saber “nada sobre pegar mulheres”,
resolveu fazer uma busca no Google, “como chegar em uma garota” e localizou
diversos sites e vídeos no Youtube, alguns gratuitos e outros pagos, que dão dicas
sobre o assunto. Segundo Willian, as dicas foram preciosas, pois o ajudaram com a
timidez e a notar sinais corporais que as moças emitiam, como o olhar fixo, a
dilatação da pupila dos olhos, o sorriso.
Para além das atitudes, Gagnon (2006) assinala que as vestimentas fazem
parte de uma sequência roteirizada e são utilizadas para atrair o olhar do outro. O
investimento na aparência física despontava na fala dos adolescentes pesquisados
como um cuidado necessário no processo de sedução, como retratado pelo relato
de Guilherme sobre a festa que daria ao completar 18 anos: “no dia vou fazer a
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sobrancelha, a barba, limpeza de pele, e cortar o cabelo, na festa vai ter muita mina,
tenho que ficar bonitão”.
Sobre a importância da aparência para a produção de desejo, Petrossilo
(2016), em uma pesquisa sobre “pornografia de humilhação involuntária” em uma
escola do Rio de Janeiro, define uma tríade de capitais: o corporal, o estético e o de
estilo. Esses capitais estão diretamente ligados a padrões impostos socialmente,
como possuir um corpo magro, malhado para rapazes e voluptuosos para moças, ter
cuidados com o cabelo, com a pele e com as roupas utilizadas, obtendo um maior
destaque os que desfilam conforme a moda e com peças de marca.
No que se refere às diferenças teóricas entre Gagnon e Petrossilo, há
convergência entre a teoria dos capitais, que tem por base a noção de capital
simbólico de Bourdieu (1989). Compreende-se assim que possibilidades de relação,
produção do desejo e comunicação com outras pessoas são atravessadas pelas
marcas culturais, de classe, etc., que são corporificadas e entram em jogo nos
roteiros sexuais.
A preocupação com a estética era notória entre os adolescentes da escola
pesquisada. Havia a obrigatoriedade do uso de uniformes que, a princípio,
universalizaria um padrão estético. Era determinado que alunas e alunos usassem
calça jeans e a camiseta da escola, os meninos ainda podiam usar bermudas de
cores lisas (preta ou azul). O curso Ventania possuía um uniforme diferenciado com
saia e camisa de botão. Contudo, os adolescentes encontravam formas de subverter
e/ou readaptar as exigências e regras e incorporavam elementos advindos dos seus
espaços de vivências e da cultura fora da escola para tornar sua aparência mais
atraente e potencializar seu capital de produção do desejo.
Desse modo, os rapazes, após entrarem na escola, trocavam a camiseta do
uniforme por camisetas “descoladas” e/ou bermudas estampadas. As moças
mudavam as camisetas por blusinhas, as do curso Ventania abriam os botões das
camisas e deixavam parte das blusinhas e do colo à mostra. Algumas garotas do
ensino fundamental tinham por costume dobrar a camiseta e exibirem a barriga.
Desfilavam pela escola corpos tatuados, com piercings e variados tipos de
adereços. Os meninos com relógios, bonés, correntes, diversos cortes e pinturas de
cabelos, sobrancelhas feitas, alguns deixavam barbas e bigodes crescerem. As
meninas colocavam brincos, colares, pulseiras, anéis, maquiagens, diferentes
penteados, cortes e tinturas de cabelos, das cores mais diversas, verde, azul, roxo e
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17 O “ficar” pode ou não envolver ato sexual. Nesta pesquisa, ao decorrer das conversas com os
interlocutores, nem sempre ficava claro que as experiências relatadas envolviam a relação sexual.
Optei por não perguntar para não parecer invasiva e não arriscar perder o vínculo que estava
construindo junto aos adolescentes.
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“ficar” com outras. O “ficar” pode ainda, ser um precedente do namoro, como
ilustrado por Nina: “Estou com meu namorado faz 5 anos, no início a gente só ficava,
a gente não ficava com outras pessoas [faz uma expressão pensativa], eu não
ficava, ele eu já não sei [e ri]. Aí há uns 3 anos ele me pediu em namoro”.
O “pegar” é algo mais descompromissado que o “ficar”; ele é centrado no
interesse físico, na beleza e na sensualidade (RIBEIRO et al., 2011) e trata-se de
encontros pontuais. No cotidiano da escola, esse termo é muito utilizado e tido como
similar ao ficar, como sendo a mesma coisa, contudo às vezes ele é controverso,
podendo ser interpretado de forma pejorativa, “não gosto de falar pegar, parece que
objetifica a pessoa”.
O “namoro” é concebido como uma relação em que se espera fidelidade e
não necessariamente é precedido pelo ficar, existe um sentimento e expectativa de
maior solidez (fazer planos conjuntos, etc.) e, geralmente, é marcado pela inclusão
do relacionamento no âmbito familiar (GOMES et. al., 2011).
Quanto à reprodução de comportamentos demarcados pelo gênero, surgiram
falas estereotipadas de que meninos só pensam em sexo e meninas são mais
românticas. Em oposição a essas afirmações, o campo revelou meninas
desprendidas da ideia de apego emocional e de namoro, comportamento
inicialmente esperado dos meninos: “eu tô lá ficando com o cara, tá legal, tô
empolgadona. Aí eles falam de namorar, eu desinteresso e não quero mais”. Assim
como rapazes que idealizavam o namoro, mesmo sem nunca ter namorado, ou
diziam ver as relações de modo romântico: “eu sempre achei que tinha que ser
aquele negócio bem Disney. Que eu vou conhecer no momento certo, vou salvar a
vida dela e tenho que pedi-la em casamento repentinamente”.
Alguns meninos relataram sofrer pressão dos amigos ao anunciarem o desejo
por namorar, pois valorizam o “ficar” pela possibilidade de se relacionarem com
várias garotas e não estarem vinculados a uma só, o que parece que os tornariam
mais suscetíveis a elas. Dessa maneira, estariam se afastando da ideia de “amor
romântico” descrita por Giddens (1993) como aquele que tem como expectativa o
estabelecimento de vínculo emocional duradouro, “para sempre”, e se assemelha ao
“amor confluente”, que à medida que vai se consolidando, se distancia da ideia de
uma pessoa especial e valoriza uma relação especial, ou seja, o encontro, mesmo
que isto aconteça uma única vez.
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A hora da tomada de atitude poderia gerar tensão até para aqueles que se
diziam “mais cara de pau”, os rapazes de quem predominantemente ainda se espera
a iniciativa, apontavam que, mesmo com o passar dos anos e o ganho de
experiências, ainda aconteciam entraves como gaguejar, sentir vergonha e medo.
Havia rapazes e moças que diziam preferir se tornar amigos antes de “ficar”, pois
acreditavam que facilitaria no momento de falar do interesse.
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18“Curtir” é uma ferramenta do Facebook em que sinaliza uma espécie de opinião a partir de vários
ícones chamados de emojis, como uma mão em sinal de “joia”, que representa o “curtir”, um coração,
o “amei” e os emojis que simbolizam emoções como tristeza, raiva, risada e surpresa.
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de Débora, uma das meninas que integravam esse grupo. As amigas lhe diziam:
“você taí com esse moleque feio que te traiu e o João, maior gatinho, e você não
quer”. Bruno, inconformado por ela ter reatado o namoro, buscou João na sala de
aula com intuito de fazer com que ele e Débora “ficassem”. O rapaz sentou-se ao
lado de Débora. Em seguida, Bruno falou: “vocês não vão se beijar?”. Cora, Clara e
Fernanda riam, também perguntavam sobre o beijo. Débora, com uma postura rígida
e com o riso sem graça, repetia ter namorado. João envergonhado pedia para
pararem de “explanar”. Os amigos ficaram por algum tempo insistindo, mas nada
aconteceu. Semanas depois, Débora contou ter “ficado” com João.
Ao se tratar dos relacionamentos afetivo-sexuais na escola pesquisada,
geralmente os pares têm interferência maior que a família com as experiências
vividas ao longo da adolescência. Uma parte dos adolescentes sinalizou que os pais
não conversavam com os filhos ou se colocavam de maneira rígida e/ou
proibicionista, o que fazia com que muitos mantivessem relacionamentos
escondidos.
Os adolescentes que apontaram conversar com os pais sobre suas práticas
afetivo-sexuais informavam à família sobre seus relacionamentos e, geralmente,
eram aconselhados sobre prevenção para que fosse evitada uma gravidez, os
argumentos utilizados por pais e mães eram que tal acontecimento acarretaria na
interrupção dos estudos e a falta de preparo das filhas e filhos para assumirem a
responsabilidade de uma maternidade ou paternidade. Algumas mães pediam para
serem informadas da perda da virgindade das filhas para que viabilizassem
consultas médicas a fim de “tomar” providências para que a gravidez fosse evitada,
ou seja, o uso de anticoncepcionais. Preocupações relativas a eventuais situações
de violência ou coação, ou prevenção de IST’s não foram expressas.
As famílias exercem influência nos relacionamentos na medida em que
controlam e, muitas vezes, proíbem a continuidade de namoros. Alguns rapazes de
classe média mencionaram terem sidos obrigados a terminar seus relacionamentos
devido a julgamento de valor e preconceito da família, o que ocasionou o
afastamento dos filhos e o rompimento do diálogo sobre suas vivências afetivas. A
exemplo disso, Patrick (17 anos, negro) contou que namorou uma moça por quem
era completamente apaixonado, quando a família a conheceu e souberam o bairro
em que ela residia, obrigaram-no a terminar. Pois, por ser um bairro considerado
favela e dominado por traficantes, deduziram que a moça era de origem pobre,
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“piranha” e tinha uma índole duvidosa, assim, era incompatível com a realidade
socioeconômica do rapaz.
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19 Ao finalizar a fala, o funcionário me olha, faz gesto de silêncio com o dedo na boca e diz: “não vai
falar pra ninguém que eu disse isso”.
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se beijar ou dar uns “amassos” em algum canto mais escondido, o risco de serem
levados à Direção era iminente, afinal a regra era clara e de conhecimento de todas
e todos: “não pode namorar na escola”.
A escola representa tempos da juventude, pois é um espaço que propicia aos
adolescentes uma convivência cotidiana, relações de sociabilidade próprias dessa
etapa da vida que farão parte de aprendizagens e da constituição do sujeito
(PEREIRA, 2010). Esse processo acontece de forma participativa e ativa, assim, a
escola é constantemente desafiada, uma vez que influencia alunas e alunos e é
influenciada por eles e pela forma como se relacionam entre si e com a instituição.
Desse modo, adolescentes criam demandas e arranjos que anseiam
reconfigurações do espaço e das dinâmicas escolares, o que se depara com as
funções disciplinadoras e as regras rígidas impostas pela instituição.
As regras e a rigidez se apresentam de forma homogênea e normatizadora,
com isso “acaba promovendo o apagamento sistemático da espessura e da textura
das vidas das escolas” (RANNIERY, 2017, p. 216), desconsiderando as pluralidades
e heterogeneidades sejam elas de gênero, classe, raça, culturas regionais ou etnia.
Alguns estudantes não aceitam de forma passiva a imposição de regras, subvertem–
nas, assim estabelecendo um jogo de força com a escola, esta por sua vez tende a
enrijecer a disciplina exigida e a cobrar que seus funcionários exerçam uma maior
vigilância.
A frequência com que observava as interações afetivo-sexuais pelo pátio
trazia a sensação de que elas não representavam uma transgressão na instituição.
Mas a queixa dos alunos quanto a possibilidade de ir para a Direção era frequente.
Esse cenário me intrigava, por que as funcionárias viam os casais e não falavam
nada? Quais os motivos que levavam alunas e alunos à direção? Com o tempo fui
recebendo diversas explicações, uma delas será demonstrada pelo diálogo ocorrido
no portão uma funcionária, algumas alunas e mim que falavam sobre o namoro na
escola:
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— Você é lindo!
— Você também é lindo.
Assim que o grupo continuou seu caminho, André automaticamente vira e
fala.
— Eu não sou gay.
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quanto à orientação sexual, o que fez com que alguns buscassem a experiência e
outros a inibissem, como demonstra a fala seguinte: “nunca fui adiante disso, foi algo
que eu olhei e tipo, não é algo que eu quero pra mim”. Um dos rapazes buscou
auxílio junto a sua psicóloga para entender as suas dúvidas quanto a sua orientação
sexual. A partir dos contatos no campo de pesquisa, alguns adolescentes relatam
atrações por pessoas do mesmo sexo, algumas experiências e curiosidades,
contudo, a religião, a opinião da família e a homofobia aparecem como fortes
inibidoras para a efetivação dessas relações.
Observar casais de meninas pela escola e não ver casais de meninos era
algo que despertava minha atenção. O que intimidava os rapazes? Estariam eles
mais suscetíveis às violências na escola que as meninas? Como o preconceito se
expressava e quais as diferenças das manifestações entre os gêneros? Por não ter
estabelecido proximidade com rapazes que se identificavam como homossexuais,
esta pesquisa apresenta um limite relativo às análises das interações afetivo-sexuais
da homossexualidade masculina e das homofobias vivenciadas no ambiente
investigado.
O mais próximo que cheguei sobre os relacionamentos entre rapazes dentro
da escola foi a experiência compartilhada por Patrick (17 anos, negro, 1º ano ensino
médio), que cria a própria nomenclatura da sua orientação sexual: “não sou homo
nem bi, minha orientação é universal”. Embora ele deixe claro não ter desejo por
homens, se o rapaz for “gente boa” não vê problema em beijar. Aproveitei o assunto
e comentei sobre minha inquietação em ver apenas casais de meninas na escola,
então ele contou que no ano anterior ficava com um menino dentro da instituição e
perambulavam de mãos dadas. Descreveu que, na época, ouviu uma série de
provocações, como: “bichinha”, “viado”, “você dá o cu?”.
Quanto às relações homossexuais femininas, Lígia (18 anos, branca, 1º ano
curso Tempestade) se nomeia como lésbica e foi a única moça autodeclarada
homossexual com quem tive contato e quem auxiliou a elucidar algumas formas das
manifestações lesbofóbicas20 dentro da escola. Ao longo do ano, não presenciei
nenhuma cena de hostilidade direta com ela ou com outras meninas. Mas observei
___________________________________________________
20Distingo o uso dos termos Homofobia e Lesbofobia pela importância de considerar as assimetrias
de gênero e as peculiaridades desse tipo de violência para o universo feminino como o sexismo e a
misoginia interligados à homofobia (LEONEL, 2011 e BRAGA; RIBEIRO; CAETANO, 2017).
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Esse ano eu quase apanhei de uns meninos daqui da escola, eles pegaram
uma madeira pra me bater, tipo, porque eu gosto de menina. Aqui na escola
as pessoas ficam xingando. Nesse dia aí, eu só não apanhei porque dois
amigos entraram na frente e me defenderam. Eu tenho defesa pessoal, mas
tipo, eram cinco meninos, eu ia fazer como?
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Semanas após esse episódio, fui convidada por uma das auxiliares de direção
para fazer uma palestra sobre “disciplina e respeito” para as turmas do curso
Ventania, quando pedi que explicassem o que desejavam, o exemplo dado foi: “tem
meninas que ficam se beijando na frente da professora e ficam bravas quando elas
pedem para parar”. Embora ela também tenha se queixado de atitudes
indisciplinares, a principal questão trazida foi a manifestação pública da
homossexualidade, o que reforça o discurso heteronormativo presente nas escolas
(JUNQUEIRA 2011; LOURO, 2000).
Tal convite representou mais uma “saia justa” em que a escola demonstrava
expectativas de que eu auxiliaria na resolução de “problemas” relacionados à
sexualidade. Acordei de retornar à escola para conversar acerca da solicitação e
assim conseguir pensar em uma contraproposta ao que me pediram. No entanto,
devido à agitada dinâmica escolar e dificuldade em coincidir um horário na minha
agenda com a da auxiliar, não foi possível realizar a reunião e consequentemente
executar o pedido.
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21Utilizo no texto DST’s, pois é o termo utilizado pela professora e conforme informações obtidas com
as profissionais a nomenclatura não foi atualizada de DST (Doença Sexualmente Transmissível) para
IST (Infecção Sexualmente Transmissível) nos livros didáticos recebidos pela escola. Essa mudança
aconteceu via estrutura regimental do Ministério da Saúde por meio do Decreto nº 8901/2016.
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de 1º ano do curso Ventania. Elas exibiram o filme Uma história de amor e fúria22 e
depois abriram para debate. Abordaram temas como resistência, luta, raça/etnia e
relacionamentos afetivos. A atividade foi realizada no auditório da escola e a turma
era composta majoritariamente por meninas, contendo apenas dois meninos.
Na discussão realizada sobre relacionamentos as professoras direcionaram a
conversa para “relacionamento abusivo” e, ao levantar problemáticas, utilizavam
exemplificações de situações de casais heterossexuais e o rapaz como o agressor,
mesmo sendo de conhecimento que havia meninas homossexuais e bissexuais na
turma, o que também traria outra perspectiva para pensar a violência.
Os meninos permaneceram em silêncio durante toda a atividade, já as
meninas foram participativas e trouxeram exemplos de ciúmes e controle praticado
pelos parceiros e por elas, reconheceram que também exercem essas atitudes: “não
deixo meu namorado falar com ninguém”; “eu já fiz isso, eu assumo mesmo, já
controlei, mas pouca gente assume” e “eu controlo mesmo, é direitos iguais, se ele
pode controlar eu também posso, se eu não posso fazer, ele também não pode”.
O modo de abordar os exemplos trouxe duas questões importantes: a
reprodução de uma heterossexualidade presumida e o binarismo agressor/vítima
nas violências em relacionamentos afetivo-sexuais em que o sexo feminino ocupa o
lugar da vítima. Esse discurso se manteve mesmo com as narrativas em que as
meninas praticavam ações equivalentes ao que estavam sendo exemplificadas
como “abusivas”.
A participação nas atividades promovidas na escola possibilitou perceber que
mesmo havendo um esforço em problematizar questões da sexualidade e da
violência, ainda eram reproduzidos estereótipos de gênero a partir de discursos
hegemônicos e heteronormativos, e havia um silenciamento dos profissionais em
momentos possivelmente cruciais para uma intervenção. O que levaria a esse
silêncio dos profissionais? Compreendem a importância de sua colocação e
intervenção? Estão eles preparados para debater de modo crítico as questões que
envolvem sexualidade, gênero e violências?
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22 Animação brasileira de 2013.“A trama situa-se em quatro datas na história do Brasil: 1500, quando
o país foi descoberto pelos exploradores portugueses, 1800, em eventos durante a escravidão; 1970,
durante o ponto alto da ditadura e no futuro em 2096, quando haverá uma guerra sobre a água. O
filme narra o amor entre Janaína e guerreiro nativo que, quando morrer, terá a forma de um pássaro.
Durante seis séculos, a história do casal sobrevive através desses quatro estágios na história do
Brasil”. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Uma_História_de_Amor_e_Fúria).
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23Pesquisa GRAVAD – Gravidez na Adolescência: Estudo Multicêntrico sobre Jovens, Sexualidade e
Reprodução no Brasil.
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tempo, o fato de sentir a traição como algo grave e humilhante, pode vir a
desencadear ações violentas e impulsivas. A traição é considerada como algo
comum e a violência seria justificada por essa ação tanto para moças quanto para
rapazes.
A exposição de fotos – considerada uma forma de violência psicológica em
estudos específicos sobre o tema – vem sendo compreendida e nomeada como
Cyberviolence ou abusos digitais, e é definida como: ameaças, insultos por via das
mídias sociais e digitais, a propagação de fotos, vídeos íntimos sem a autorização,
cujo objetivo é humilhar e difamar (FLACH, DESLANDES, 2017). Segundo as
autoras, muitos desses acontecimentos têm ganhado proporção com o crescente
uso das tecnologias digitais que corroboram para a hiperexposição da imagem
inicialmente de forma voluntária, mas que pode ser reproduzida por terceiros
inúmeras vezes.
O abuso digital também inclui o controle de postagens e comunicações por via
de computadores e/ou do celular. Com muita frequência, os adolescentes monitoram
mensagens de WhatsApp, conversas nas redes sociais como Facebook e Instagram.
Flach e Deslandes (2017) sinalizam que os abusos digitais nos relacionamentos
afetivo-sexuais entre adolescentes também são comumente interpretados como
“prova de amor” e cuidado, ou ainda uma brincadeira.
De acordo com as autoras, tanto moças quanto rapazes sofrem e praticam o
abuso digital, mas os atos tendem a ser diferentes, sendo as práticas femininas
demarcadas pelo controle/monitoramento de mensagens e celulares, e as
masculinas a exposição de fotos e mensagens íntimas de suas parceiras, o que
comumente acontece após o término de um relacionamento. As exposições de fotos
íntimas também são chamadas de “pornografia de vingança”.
Destaco a importância de problematizar a categoria relacionamento abusivo,
pois, esse tema surgiu ao longo da pesquisa como peça importante para análise
deste trabalho. A construção dessa categoria vem sendo estudada por Souza
(2017), mas ainda não há conclusões fechadas sobre o seu uso no Brasil. A autora
buscou nos ambientes virtual e acadêmico o uso do termo no período de 2000 a
2017, localizou o emprego em sites e blogs como sinônimo de violência física e/ou
emocional e em dissertações de Psicologia com temáticas de violência contra a
mulher, usando as palavras “abusivo” e “violência” como sinônimos.
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24Para acessar a campanha, <https://www.mdh.gov.br/noticias-spm/noticias/spm-lanca-campanha-
de-alerta-aos-sinais-de-relacionamento-abusivo>
25A Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres foi criada em 2003, no governo do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2015, a Secretaria foi extinta, e foi criado um ministério com a unificação
de três secretarias - Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a Secretaria de
Direitos Humanos e a Secretaria de Políticas para as Mulheres - fundando então, o Ministério das
Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (MMIRDH). Em maio de 2016, no governo do
presidente interino Michel Temer, foi extinto o MMIRDH e suas funções foram repassadas ao
Ministério da Justiça, que foi nomeado de Ministério da Justiça e Cidadania. Em 2019, com a posse
do atual do presidente, Jair Bolsonaro, a Secretaria de Mulheres está vinculada ao Ministério da
Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH).
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Te humilha e faz piada a seu respeito quando vocês estão entre amigos;
está frequentemente discordando das suas opiniões e desconsidera suas
ideias, sugestões e necessidades; tem a habilidade de fazer com que você
se sinta mal a respeito de si mesma; quando você reclama, diz que você é
“muito sensível”; quer controlar a maneira como você se comporta; você
sente que precisa pedir permissão para sair sozinha; controla seus gastos
financeiros; tenta, e muitas vezes consegue, diminuir seus sonhos, suas
conquistas e esperanças; faz com que você se sinta sempre errada.
(https://www.mdh.gov.br/noticias-spm/noticias/spm-lanca-campanha-de-
alerta-aos-sinais-de-relacionamento-abusivo).
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26 https://elosdasaude.wordpress.com/gentileza-no-namoro/
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Eu falava pra ela não ligar porque, apesar de eu tá numa sala cheia de
mulher, eu sei o meu limite, eu sei que eu respeito a pessoa e eu
literalmente respeito a pessoa e, tipo assim, ela ficava com muito ciúme da
minha amiga e, assim, tinha vezes que ela estava com ciúme de mim. Tinha
vez que ela tava com ciúme da outra, tinha vez que ela xingava umas,
queria bater e sei lá o quê.
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entre meninas por causa do namorado do que entre meninos. Para elas, os ciúmes
e a infidelidade justificariam os seus atos.
Muitas vezes, o alerta para que a menina prestasse atenção em seu
comportamento e parasse de paquerar e/ou se envolver com alguém que já era
comprometido era a partir de linguagens do tráfico, com a expressão “ficar careca”.
Esse termo remete à violência de traficantes com meninas e mulheres que têm seus
cabelos raspados como uma forma de punição.
Para além de empregar a linguagem do tráfico, o relacionamento com
traficantes era algo presente no diálogo entre as adolescentes. Para algumas delas,
estar com eles era algo impensável, fosse pelo medo de “ficar careca” ou pelo valor
moral em não querer ocupar o lugar de “mulher de bandido”. Quando a participação
do namorado no tráfico vinha à tona, ocasionava términos de relacionamentos. Mas,
para outras, o medo ou julgamentos morais não eram um impeditivo para a relação,
como demonstrado por um grupo de meninas do ensino fundamental que
conversava sobre os meninos do “morro” que mexiam com elas no trajeto de casa
para escola:
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27Chuchuzeiro é uma árvore que faz referência ao local em que há um buraco onde jogam os corpos
das pessoas mortas pelo tráfico.
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e/ou honrar sua masculinidade entre os outros rapazes, os jovens traficantes agem
com violência, ficando as moças suscetíveis às mais diversas formas de agressão.
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um cabo de vassoura: “eu tava com tanta raiva, tanta raiva que ele tava me
provocando”.
As amizades era um fator forte para desencadear ciúmes. Ingrid e Ana
relataram situações que as levaram a se afastar dos pares, fosse pelo convívio
pessoal ou a partir das redes sociais na Internet e conversas no WhatsApp,
provocando um isolamento social. O cerceamento e controle podiam acontecer de
várias maneiras, elucido a questão através do relacionamento de Ingrid (19 anos,
branca, 3º ano Ensino Médio).
Ingrid e Gustavo se relacionavam há quase 1 ano e, embora ambos fossem
ciumentos, ela dizia que ele era pior por ser muito possessivo e desconfiado.
Gustavo implicava com o tempo de demora nas respostas das mensagens, quando
a menina não atendia suas ligações, verificava o celular e mensagens de Ingrid no
WhatsApp e redes sociais, não gostava que ela saísse para festas e que andasse
com os amigos e com as amigas. As cismas do rapaz fizeram com que Ingrid
apagasse vários contatos do celular, evitasse conversar no WhatsApp e sair de casa
para passeios e festas. Essas situações a deixavam estressada, com raiva, faziam-
na chorar e discutir com Gustavo, que tendia a ficar mais irritado e “extrapolar”.
Questiono o que significava “extrapolar” para entender o que ela mobilizava
com tal palavra:
Ingrid: aí ele acaba extrapolando, entendeu? Tem hora que ele acaba
ficando um pouco agressivo.
Pesquisadora: como que é isso?
Ingrid: ai ele meio que vem, tipo assim, ele não vem bater, entendeu? Mas
ele começa a socar parede, começa a vim assim, começa a xingar.
Pesquisadora: e você?
Ingrid: ai, eu também de vez em quando, quando ele começa a ficar assim,
eu não gosto muito de xingar, mas na hora acabo ficando muito nervosa,
assim, eu acabo xingando ele também.
Ingrid sentia medo de Gustavo, pois ele ficava muito agressivo e nervoso e
sempre receava que ele fosse “partir para cima dela”, o que chegou a acontecer.
Ingrid, ao ser empurrada por Gustavo, o empurrou de volta e o casal acabou
trocando tapas.
O abuso digital despontou de forma marcante nesta pesquisa, principalmente
através do controle de celulares de parceiras e de parceiros, também houve
episódios de divulgação de fotos íntimas ou “nudes”, como é popularmente
conhecido no Brasil.
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promulgada a lei 12.73728 que dispõe sobre os crimes de internet, mas não trata
especificamente sobre a exposição de fotos. Em setembro de 2018, foi aprovada
pelo Congresso a lei 13.718 que, por via do artigo 218-C, criminaliza a exposição e
divulgação de fotos, vídeos ou outros registros audiovisuais que contenham cenas
de estupro, de estupro de vulnerável, que faça apologia ou incentive a prática, cenas
de sexo, nudez ou pornografia (BRASIL, 2018).
Em virtude de a sociabilidade digital ser alta entre adolescentes, de haver
uma exposição de imagens de forma voluntária e sem muita proteção e criticidade,
esses sujeitos ficam muito suscetíveis aos abusos digitais (FLACH e DESLANDES,
2017). Acredito que, depois de expostos, há uma tendência de adolescentes e/ou a
família tentarem resolver sozinhos o problema29.
A traição e a mentira foram mencionadas como inadmissíveis no
relacionamento afetivo-sexual. A suspeita ou certeza desses fatos e o como cada
pessoa lida com eles é decisório para os desdobramentos da notícia e para os
efeitos de ordem psicológica.
Os rapazes não mencionaram descobertas de traição ou consequências por
terem traído, diferentemente das meninas, as quais tiveram diferentes reações como
a indignação, a depressão seguida de autoagressão e a agressão física. A seguir,
relato duas cenas reveladas pelas interlocutoras em entrevista e durante o campo
etnográfico.
Ana (20 anos, negra, 3º ano do curso Ventania) contou sua experiência com
tristeza, ora baixava o tom de voz ora ria de nervoso. Demonstrou inconformidade
por tudo que passou, atribuindo a sua história à sua “inocência”. Aos 16 anos
começara seu primeiro namoro, com Tarcísio. Após um ano, o rapaz terminou o
relacionamento; ela não compreendia o motivo, pois avaliava que estava tudo bem
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28Esta lei ficou conhecida como “Lei Carolina Dieckmann”, pois, seu projeto foi proposto em
referência à situação vivida pela atriz, que teve seu computador invadido e fotos íntimas publicadas.
29 Embora não tenha sido explicitado no campo de pesquisa sobre o acionamento da Delegacia de
Polícia, por experiência de trabalho com adolescentes em situações semelhantes, levanto alguns
elementos referentes à proteção dos adolescentes. Muitas famílias não sabem que estes atos são
passíveis de denúncia, as que procuram a Delegacia por vezes não conseguem efetuar a denúncia
por não possuírem provas concretas da exposição e/ou da autoria do crime. Muitos receiam não
haver desdobramentos da denúncia por não compreender como são realizadas as investigações no
campo da internet. Outro ponto importante é o julgamento moral e a culpabilização das adolescentes
por terem exposto seus corpos, o que pode acarretar punições da família através de agressões
físicas e/ou serem descreditadas por órgãos de proteção de direitos, que acabam, muitas vezes,
nesses casos, não exercendo sua função na proteção desses sujeitos.
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entre os dois. Alguns dias depois, uma de suas irmãs lhe contou que Tarcísio,
sempre que ia visita-la, “ficava” com Patrícia, sua irmã de 14 anos.
Ana soube que a mãe, a avó e todas as irmãs sabiam e nunca lhe contaram.
Algumas amigas estranhavam a relação entre a irmã e o namorado e tentaram
sinalizar algumas vezes, assim como duas de suas irmãs, com quem morava.
Sempre cantavam “garotas inocentes não merecem chorar”30 quando ela estava
com o namorado, mas ela não captava o recado e ele sem graça sempre pedia para
elas pararem.
Patrícia tentou contar que “ficava” com Tarcísio, dizendo que havia lhe dado
um beijo. Na ocasião, Ana segurava uma faca e sem pensar atirou em direção à
irmã, o que a fez recuar e não mais falar sobre o assunto. Quando toda a história foi
revelada, Ana diz não ter reagido com a irmã ou com o rapaz. Relata ter entrado em
processo depressivo, passou a se automutilar e tentou suicídio.
Nesse caso, as reações da adolescente voltaram contra si própria, ela parece
atribuir a si a culpa, associou a inocência e a falta de relações íntimas aos motivos
para que o namorado procurasse outra parceira: “o que você não dá em casa, a
pessoa vai procurar na rua”. Posteriormente, Ana namorou e noivou com outro
rapaz, que também a traiu e, mesmo sendo uma experiência que ela diz ter sido
“muito ruim”, perdoou o noivo.
A moça queixou-se do modo como o noivo a tratava no dia a dia, “do tipo, de
às vezes me ofender com palavras, de às vezes me botar pra baixo ao invés de me
colocar pra cima”, ele a cobrava para se arrumar, para se maquiar e a comparava
com outras meninas. Ela associava ter aceitado a traição e as “ofensas” ao medo de
ficar sozinha devido à experiência que teve anteriormente. Aponta ainda que ambos
os namorados a fizeram afastar-se de todos os amigos.
O segundo caso é de Débora (14 anos, negra, 7º ano do ensino fundamental),
a menina afirmava que ela e o namorado, João, eram muito ciumentos, o que
potencializava muitas brigas entre o casal. Quando ele lhe contou que a traiu, ela foi
tomada pela raiva e começou a agredi-lo fisicamente. Ele, na tentativa de contê-la, a
segurou pelos braços, mas ela continuou tentando acertá-lo dando chutes. A menina
mostra-me os braços roxos e menciona que não sabe como o namorado não “foi
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30 Trecho da música “Garotas Não Merecem Chorar” de Luan Santana.
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para cima” dela, em seguida acrescenta: “se viesse, eu chamava a polícia”. Para
entender o contexto, pergunto:
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era, e me deu o tapa. Quando me deu o tapa eu virei a mão de volta. Aí nisso que
ele veio pra cima de mim, eu fui pra cima dele também” (Ana, 20 anos); “às vezes
fico muito brava com meu noivo e vou para cima dele, mas ele é bem maior que eu,
aí só coloca a mão na minha testa pra me segurar e eu fico lá tentando acertar ele.
É uma cena patética, depois fico rindo sozinha” (Nina, 17 anos).
A insistência e as cobranças para ter relações sexuais foram mencionadas
por algumas meninas, que trouxeram os episódios como experiências ruins e
reclamavam por não serem respeitadas diante de suas vontades e desejos. A
seguir, retrato duas situações, de Ingrid e de Lígia, que foram coagidas a ter
relações sexuais com seus parceiros e os diferentes desdobramentos na relação de
cada uma.
Ingrid (19 anos, branca) relata que muitas vezes não queria ter relações
sexuais com o parceiro e tentava resistir, mas diante à insistência e à mudança de
humor do rapaz, por vezes, ela cedia a seus desejos para não chateá-lo, “por ele tá
forçando lá e tal, aí começa a ficar bolado, não sei o que, e eu não gosto de ver ele
assim. Aí acabo eu cedendo por causa disso”. Lidar com o descontentamento do
parceiro pode trazer inseguranças e medos de término na relação, pois há uma
crença de que o homem “não consegue controlar a vontade”, logo se ela não
satisfizesse seus desejos, ele poderia buscar outras mulheres.
O caso ocorrido com Lígia (18 anos, branca) foi aos seus 14 anos, ainda
virgem, considerava-se muito nova para ter relações sexuais e a insistência do
namorado fez com que ela reagisse com agressão física, como demonstra a
narrativa da cena:
Teve um dia, só um dia só. Porque eu nunca deixei ninguém, tipo, tocar em
mim, sem a minha permissão. Teve um dia que ele tentou forçar a barra.
Ele levou um tapa tão dado meu, que eu falei “cê sai da minha casa agora
ou senão eu vou chamar a polícia”. Ele falou “mas eu não vou foder?”. “Olha
só. Saí!”. Porque ele realmente queria forçar a barra. Ele queria realmente,
ele começou a me agarrar, eu falei, eu dei um empurrão nele bravo. Dei na
cara dele. Pra ele entender que eu não queria.
Lígia precisou chamar um amigo para lhe ajudar a tirar o namorado de sua
casa, pois esse se negava a ir embora. Ela terminou o namoro após esse episódio,
mas pouco tempo depois reatou e decidiu ter a relação sexual.
As tentativas de convencimento para uma relação sexual e a recusa podem
não ser compreendidas como coerção sexual ou violência conforme o contexto em
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primeiro beijo e relação sexual, ambos ocorridos no mesmo dia. Seus pais nunca
souberam desse acontecimento. O constrangimento e incômodo em verbalizar essa
história foi nítido pela postura corporal endurecida, a mudança no tom de voz e o
semblante fechado, o que automaticamente fez com que eu não insistisse com
perguntas acerca da história.
A função de cuidado e proteção são social e culturalmente conferidas à
mulher, como por exemplo, quando a família precisa contratar uma babá para seus
filhos, a ela é depositada confiabilidade. Lowenkron (2016), no artigo “As várias
faces do cuidado na cruzada antipedofilia”, contribui com reflexões sobre os riscos
da naturalização da mulher como cuidadora, pois, além de reforçar um modelo
heteronormativo de distribuições de tarefas, de cuidado infantil, gera o apagamento
da violência sexual cometida por mulheres.
O outro rapaz, no decorrer da entrevista, questiona se eu iria perguntar sobre
sua virgindade, diante disso, pergunto se ele quer me contar algo a esse respeito.
Então ele relata sua primeira experiência sexual, também antes dos 12 anos, com
uma moça de mais de 20 anos, ele tinha dúvidas se a relação sexual havia sido de
fato uma violência: “eu não sei nem se é considerado um estupro, né?”. Na época,
ele estava brincando com amigos na praça e a moça teria levado alguns meninos
para sua casa e convenceu o interlocutor a entrar em seu quarto e ter relação
sexual. Ele, por sua vez, disse não ter percebido o que estava acontecendo, “não,
eu não sabia o que era sexo. Não sabia como o meu coiso, não sabia nem que
funcionava [risos]”.
Essa história foi contada com tranquilidade e de forma jocosa. O adolescente,
ao mesmo tempo em que narra a cena como sua primeira relação sexual e momento
em que redescobre seu corpo, sinaliza ter se sentido manipulado e induzido a ter
relações, o que configuraria para ele uma forma de abuso.
Diante da dúvida do rapaz, se viveu um abuso sexual e pela maneira
descontraída em que contou a história, sublinho alguns pontos importantes
levantados por Knauth, Víctora e Leal (2005). Entre os rapazes, há uma pressão
para a iniciação da vida sexual, e o exercício da sexualidade é um dos principais
elementos da construção e afirmação da masculinidade. Iniciadas as experiências é
um costume dividir com os outros meninos, pois eles contribuem para a “validação”
da masculinidade. Ter experiências com mulheres mais velhas pode ser visto como
positivo pelo grupo e garante um status entre os demais.
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A mulher sempre é mais madura que o rapaz, mas o cara de 18 nunca vai
estar com a menina de 14 só pra dar uns beijinhos, ele sempre vai querer
coisa a mais. O menino de 14 sempre é mais imaturo, tá, a menina de 18
ela também vai querer fazer, só que a mulher quer mais um relacionamento
sério, quer afeto. Homem tá nem aí, só quer aquilo.
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menina que manteve contato com uma aliciadora, aquela solicitou atendimento
psicológico, que foi viabilizado pelo pai.
Levanto a hipótese que o receio do julgamento estabelece uma fronteira nas
relações dos adolescentes com suas redes de relacionamentos. Tal fronteira
demarca as situações que são passíveis de serem faladas com os pares e/ou família
e as que devem ser mantidas em sigilo. Por exemplo, há enredos que são
socialmente aceitos, como o ciúme, esses são compartilhados. Episódios passados
e superados ou casos que podem gerar comoção - como a história de Aline – são
cenas também sujeitas de serem verbalizadas. Entretanto, situações que podem ser
consideradas como “graves”, como agressões físicas severas, exposições de fotos
íntimas, estão sujeitas a julgamentos, o que faria com que fossem mantidas em
segredo.
A escola representa um local de controle, de moralidades e julgamentos da
sexualidade dos adolescentes, sendo assim, é um local onde as histórias de
violência são mantidas em silêncio. A escola pesquisada é desacreditada como
possibilidade de auxílio na resolutividade de conflitos e violências vividos pelos
adolescentes – como exemplo, retomo das violências vividas por Lígia, na unidade,
em decorrência de sua orientação sexual. A maneira de lidar e de controlar as
interações afetivo-sexuais na unidade exerce influência para a percepção desta
como parceira ou não, mediante a busca de auxílio das violências vividas.
Embora não tenha sido citado por nenhum dos interlocutores da pesquisa, a
partir do diálogo com profissionais, observo que algumas funcionárias eram
consideradas referência para adolescentes. Algumas moças e alguns rapazes
procuravam em especial as funcionárias do portão e da biblioteca para conversar e
pedir conselhos sobre os relacionamentos afetivo-sexuais, por vezes em função das
brigas com o parceiro ou com a parceira. Tal fato demonstra que, nesse momento,
elas não são vistas como “escola”, mas como pessoas pertencentes a uma rede
familiar e confiável.
Um rapaz levanta um ponto importante referente às questões de gênero, ele
faz uma divisão ao buscar conselhos, diz procurar o pai em situações mais práticas,
pedir dinheiro para sair com uma menina ou para pedir dicas de como agir em
determinadas situações. Segundo o jovem, seu genitor apresentava, em suas falas,
reforços de visões machistas, como ilustra o relato do dia em que estava triste
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devido a um término de namoro: “‘liga não, acontece, mulher é que nem biscoito,
perde uma, vem 18’, tipo, foi pra me animar, né?”.
Esse rapaz procurava as figuras femininas quando queria orientações de
ordem afetiva e emocional por se sentir mais confortável, compreendido e seguro
em tratar esses assuntos com mulheres: “ah, porque eu acho que elas vão entender
mais e os amigos, assim, os que eu tenho, são muito sacanas. Aí cê vai ficar
mostrando choro, ah, aí é sacanagem”. Em casa, ele recorria à sua mãe quando
queria conselhos de ordem emocional referente a suas namoradas. Havia o
imaginário de que as mulheres, por serem mais emotivas, românticas, sensíveis
seriam mais acolhedoras e melhores conselheiras nas demandas sentimentais.
O depoimento de um dos rapazes é relevante para pensar o quanto solicitar
ajuda pode representar fragilidade, o que faz com que, principalmente, os meninos
tendam a resolver os problemas sozinhos e não pedirem ajuda, como ilustra o relato
a seguir:
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Para além da vergonha e falta de confiança nas pessoas, não solicitar ajuda
pode estar interligado à dificuldade de se ver em uma relação com violência. Ao
questionar os adolescentes se haviam vivido alguma violência e/ ou relacionamento
abusivo em suas relações de namoro ou de “ficar”, poucos mencionaram algum
episódio.
Os interlocutores que consideraram não ter vivido alguma forma de violência
em seus relacionamentos expuseram narrativas de suas trajetórias afetivo-sexuais
que, conforme as categorizações teóricas, podiam ser entendidas como violentas.
Embora não citadas como violência, as experiências eram relatadas como um
aspecto negativo na relação, como acontecimentos “ruins”, “chatos”,
“desagradáveis” e “desnecessários”.
Nem Ingrid e nem um dos rapazes mencionaram ter vivido algum tipo de
violência nos relacionamentos afetivo-sexuais ou relacionamento abusivo, diferente
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de Ana e Lígia, que identificam algumas das cenas narradas como violentas,
conforme será descrito a seguir.
O contexto do conflito vivido por Lígia quando o namorado a coagiu para ter
relação sexual, foi nomeado por ela como violência, mas a moça relaciona o fato à
“tentativa de uma agressão” e não aborda a coerção sexual: “ó, só nesse caso do
meu ex-namorado. Que ele tentou me agredir. Mas porque ele perdeu a cabeça, ele
nunca foi tão agressivo comigo durante o relacionamento. Só foi esse dia. Que, sei
lá”. Embora ela tenha significado como violência, a atitude do namorado é justificada
e amenizada por não ser algo habitual.
A respeito da coerção sexual, nem Lígia tampouco Ingrid mencionaram essas
vivências como violência ou abuso, analiso sob o olhar de Cordeiro et. al. (2009) que
a negociação sexual reflete jogos de poder nas relações de gênero e sexualidade e
comporta “consensos” e “dissensos” em torno das interações, o que faz com que a
coerção seja assim entendida ou não.
Ana se referiu à violência psicológica praticada por seu noivo, “só
mentalmente mesmo, mas, fisicamente, de violência, não. Só verbal, aquela coisa
mais psicológica”. A moça reforça não ter vivido agressões físicas, no entanto, ao
contar sua trajetória, ela declara agressões sofridas e revidadas em relações de
namoro e de “ficar”, as quais não foram significadas como violência, talvez pelo
caráter “esporádico” e em brigas que, aparentemente, não envolveram grandes
desgastes emocionais. Nesse tocante, Oliveira et. al. (2016) assinalam que, para as
moças, existe uma certa desvalorização das violências físicas nos relacionamentos,
muitas vezes, a violência psicológica é considerada mais grave do que a física, por
suas consequências para a autoestima e para a confiança no parceiro.
Trago algumas reflexões no que se refere à percepção das violências físicas
tendo por base as análises de Oliveira et. al. (2016). Os rapazes tendem a
representar como violência o ato em que a intenção foi negativa, ao passo que as
meninas tendem a descrever como violência quando o impacto foi negativo. As
agressões praticadas por meninas são tidas como de menor potencial e são
consideradas pelos rapazes como uma forma de humilhação, assim há uma maior
preocupação com a repercussão moral do que com os danos físicos em si.
A problematização trazida difere das análises feitas pelos autores mexicanos
Castro e Casique (2010), estes avaliaram em sua pesquisa que os rapazes
sobredimensionam as agressões recebidas. A partir dos achados da pesquisa aqui
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apresentada, me afino com a argumentação de Oliveira et. al. (2016), uma vez que
os rapazes narraram episódios que poderiam ser entendidos como violência, mas
não foram interpretados por eles como tal.
Eles justificaram as ações das moças retratando-as como algo “de momento”,
impulsivo, em decorrência do ciúme, como revide de alguma ação negativa deles.
Dessa forma, a interpretação dos rapazes tendeu a naturalizar as violências vividas
e não sobredimensionar.
Nas situações em que as autoras foram mulheres adultas, as experiências
foram verbalizadas como violência ou como ato “abusivo”. O rapaz que vivenciou a
história com sua cuidadora nomeou tal experiência como violência. O caso da
mulher que se aproximou da adolescente pela internet foi entendido e nomeado pela
moça como relacionamento abusivo, “ela abusou dos meus sentimentos e ela ia
abusar fisicamente. Ela só não teve a oportunidade”. Já o garoto que foi induzido a
ter relação sexual também considerou ter sido uma relação abusiva, pois,
constantemente colocava em dúvida o seu real consentimento na relação sexual:
“talvez a primeira vez que eu perdi a virgindade. Talvez tenha sido abusivo [...]. Eu
diria não 100% abusivo, mas de alguma forma ela manipulou um pouco minha
cabeça pra fazer”.
Ao indagar se os adolescentes já haviam praticado violência ou foram
abusivos nas relações de namoro e/ou “ficar”, as moças responderam nunca terem
praticado e apenas Guilherme e William responderam positivamente, expondo
respectivamente as seguintes situações: “só verbal assim, que eu te disse, mas, fora
isso, não. Nunca levantei mão nem nada, nem pensei nisso” e “teve uma vez que eu
me excedi porque uma ex-namorada minha não tava deixando eu beijar ela e assim,
eu falei, me beija, e ela falou que não [...] aí acabou que eu fui e beijei ela, eu achei
isso uma coisa abusiva”.
Nessa pesquisa o abuso digital foi destacado a partir do controle dos
celulares e redes sociais, mas essa situação não foi compreendida como violência
por nenhum interlocutor. O monitoramento dos aparelhos era tido como um
comportamento natural, incômodo e “prova de amor”. Flach e Deslandes (2017)
sinalizam que os adolescentes têm dificuldade de significar os abusos digitais como
violência, tendendo a qualificá-los como comportamento “irritante”.
Quando questionado sobre o que é violência no relacionamento de “ficar” e/ou
namoro e “relacionamento abusivo”, a maioria dos interlocutores definiu como
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insistência para o ato sexual por a “vontade” ser considerada algo intrínseco do sexo
masculino: “um homem, ele sabe que é mais forte do que a mulher. Ele vai
aproveitar essa força. Pra qualquer coisa” e “ah, porque o homem eu acho que ele
não consegue controlar a vontade. [...] Então acaba passando dos limites, quer agir
daquela forma aí, se tá sentindo vontade já vai e parte pra cima”.
Embora a maioria dos entrevistados tenha afinidade com a ideia de ser o
homem o principal perpetrador de violência, uma moça cita o crescimento do abuso
praticado por mulheres chegando a equiparar ao dos homens. Ela, de certa forma,
responsabiliza a mulher pelos conflitos, como demonstra o trecho da entrevista:
Por mais que tenha índice de violência contra a mulher grande. Hoje eu vejo
que a mulher vem ocupando muito essa questão do abuso com o homem
em si. Porque assim, o homem muitas das vezes é abusivo com a mulher,
porque a mulher muitas das vezes, de uma certa forma, dá uma trela pra ele
ser abusivo ou ela é abusiva demais com ele, aí é uma forma de se
defender ser abusivo com ela também. Então eu acho que hoje em dia a
mulher tá assim num mesmo grau que um homem.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Entretanto, também foi constatado que, ainda que hoje as moças exerçam
mais livremente a sexualidade, quando comparado às moças de gerações
anteriores, os aprendizados dos roteiros sexuais ainda reproduzem condutas
tradicionais de gênero associadas ao masculino e feminino no jogo sexual.
Esses roteiros demarcam as assimetrias de poder que vulnerabilizavam as
moças perante os rapazes nas relações. Os diferentes papéis e expectativas de
gênero atribuídos a cada um deles constituíram diferentes noções de moral nas
relações afetivo-sexuais, o que contribui para conflitos na interação do casal, ficando
a moça em desvantagem e havendo uma maior cobrança de seus comportamentos.
O fato de a reputação das meninas continuar em foco constitui um limite para as
moças frente às práticas erótico-afetivas e as deixam suscetíveis a violências.
Ao que se refere à violência, os resultados desta pesquisa apontam ser
inadmissível a traição e a mentira em um relacionamento. Os principais motivadores
dos conflitos são o ciúme, a desconfiança e a traição. Assim como na literatura
sobre o tema, tanto moças quanto rapazes vivenciam e/ou praticam diversas formas
de violências físicas, sexuais e psicológicas, seja nas relações de “ficar” ou de
namoro. Essas violências fazem parte do cotidiano dos relacionamentos e muitas
manifestações parecem constituir uma forma de linguagem entre os adolescentes.
Foram constatadas ainda, violências exercidas por mulheres adultas, práticas que
podem passar despercebidas a depender do jogo de poder envolvido na interação e
da não concepção da mulher enquanto agressora.
Embora a pesquisa elenque as violências a partir das tipificações comuns
como violência física ou psicológica, é importante problematizá-las para além de
categorias, pois uma cena de violência no relacionamento afetivo-sexual é
atravessada por um emaranhado de fios onde estão presentes diferentes opressões
e nós, mas também, prazeres, afetos e variados laços.
A respeito das experiências violentas nos relacionamentos, percebe-se que
as situações identificadas como vivência de ações violentas ou abusivas foram
episódios com algum impacto negativo mais forte para os adolescentes. Todavia,
parte das narrativas de moças e rapazes que contam episódios que podem ser
categorizados como violentos não foram interpretadas como violência e tampouco
como “relacionamento abusivo”. Os rapazes apresentaram maior dificuldade em
perceber a violência vivida, enquanto sujeitos alvo de agressões, e as moças, pelo
contrário, parcamente reconheceram a violência praticada por elas mesmas.
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família (Junqueira, 2017). Tal estratégia traz em seu bojo a necessidade de tutela a
sujeitos “vulneráveis” e provoca um apagamento da autonomia e protagonismo
adolescente.
O discurso da “ideologia de gênero” vem gerando um pânico moral,
alavancado pelo atual presidente da república, e tem como base uma coalizão
político-religiosa e apoio de uma parcela da população, que endossam o projeto de
lei “Programa Escola Sem Partido”. Na contramão dos embates promovidos pelos
apoiadores desse projeto, entendo a escola como um agente fundamental para o
debate de sexualidade e de gênero. Contudo, a pesquisa mostra que a escola ainda
tem muitos desafios a superar.
Diante do panorama político brasileiro e das dificuldades existentes nas
políticas públicas frente às intervenções referentes à sexualidade adolescente e às
tensões entre autonomia e tutela, são questões que se apresentam como um nó
desta pesquisa.
Por um lado, compreendo a importância de visibilizar as violências nos
relacionamentos afetivo-sexuais de adolescentes para que possa haver abertura de
diálogo sobre essas questões e possibilitar que a pauta seja levada para a
discussão das agendas públicas. Por outro lado, a visibilidade traz à tona essas
violências como um problema, o que pode ser interpretado como um ponto a mais
para justificar a tutela e o controle da sexualidade adolescente por parte do Estado e
da família.
Acredito na potência da informação e do diálogo com adolescentes sobre
questões pertinentes às suas vidas, o que pode contribuir para o fortalecimento das
agências frente às violências e o reconhecimento dos adolescentes como sujeitos de
direitos. O que então nos leva a voltar a problematizar as políticas hoje existentes e
as práticas de instituições que intervém junto a adolescentes sobre sexualidade e os
direitos sexuais é entender que é preciso avançar. Pois, de modo geral, são
reproduzidos a lógica heteronormativa, as normas hegemônicas de gênero e um
discurso de dicotomias de seguro/inseguro, certo/errado, que não alcançam a
multiplicidade da realidade dos adolescentes. Sendo assim, é importante que haja
espaços de escuta, de diálogo que entendam as diferentes demandas de moças e
rapazes e proporcione reflexões.
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REFERÊNCIAS
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Ambiente
Interações/ Relações
• Expressões corporais;
• Contatos visuais e corporais;
• As normas vigentes implícitas e explicitas;
• As linguagens utilizadas para comunicação, sejam elas verbais ou não
verbais;
• Tonalidade de voz ao se expressarem;
• A relação dos adolescentes entre si;
• As interações com funcionários e professores;
• As interações de adolescentes, funcionários e professores com a
pesquisadora;
• A interação com pessoas externas a partir da circulação destas na parte de
fora do portão (ainda espaço escolar, mas sem acesso direto ao pátio e salas
de aula).
• As possíveis mudanças de condutas ao observarem uma figura de autoridade
circular o pátio.
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Renda Familiar:
( ) 0 – 1 SM ( ) 1 – 3 SM ( ) 3 – 5 SM ( ) 5 – 8 SM
( ) Acima de 8 SM: ____________________
*SM – Salário mínimo
Cor (autodeclarada):
Cor de acordo com a definição do IBGE
( ) Branca ( ) Parda ( ) Preta ( ) Amarela ( )Indígena
Trajetória Familiar
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Trajetória de amizade
Trajetória escolar
Percurso de vida
Trajetórias afetivo-sexuais
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Vivências de Violência
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Carlos 19 anos Pardo 3º ensino médio 3-5 SM Não possui Pai, mãe, 1 irmã (mais nova).
(Família evangélica)
Ingrid 19 anos Branca 3º ensino médio Não soube Evangélica Mãe, padrasto e 1 irmã (mais
informar. (não praticante) nova).
*Familiares com que a/o adolescente residia na época da entrevista.
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