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Rio de Janeiro
2017
Fernanda Simplício Cardoso
Rio de Janeiro
2017
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
es CDU 316.6
___________________________________ _______________
Assinatura Data
Fernanda Simplício Cardoso
Banca Examinadora:
_____________________________________________
Profa. Dra. Leila Maria Torraca de Brito (Orientadora)
Instituto de Psicologia da UERJ
_____________________________________________
Profa. Dra. Maria Lívia do Nascimento
Universidade Federal Fluminense - UFF
_____________________________________________
Profa. Dra. Estela Scheinvar
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
_____________________________________________
Profa. Dra. Laura Cristina Eiras Coelho Soares
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
_____________________________________________
Prof. Dr. Adriano Beiras
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
Rio de Janeiro
2017
DEDICATÓRIA
À Professora Leila Maria Torraca de Brito, por tudo que ela representa para a
Psicologia Jurídica no Brasil.
AGRADECIMENTOS
A Deus, por tudo que Ele me ensina sobre a fé, o amor e a perseverança.
À orientadora de minha tese, Professora Doutora Leila Maria Torraca de Brito,
pelos seus ensinamentos e, sobretudo, por sua demonstração de simplicidade para
expor a exuberância de seus conhecimentos.
Ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, representado pelos seus professores e funcionários, pela
oportunidade que me foi propiciada de estudar nessa instituição.
À Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, pelo
incentivo, concedendo-me licença parcial do trabalho pelo período de um ano,
através do Programa Permanente de Capacitação Docente, para realização do
Doutorado.
Ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, instituição onde exerço a Psicologia
Jurídica e local que serviu de campo para minha pesquisa de doutoramento.
Às psicólogas do TJMG das Varas Criminais referentes à Lei Maria da Penha
e Varas de Família que, direta ou indiretamente, colaboraram com a realização
desta tese.
Aos admiráveis professores que gentilmente aceitaram o convite para compor
a banca examinadora deste trabalho, mesmo as contingências não tendo sido tão
favoráveis.
Aos colegas integrantes do Grupo de Pesquisa liderado pela Profª Leila, pela
troca de saberes e pelo afeto partilhado no decorrer do Doutorado.
Aos meus amigos da PUC Minas e da Rodovia 050, professores Érica e
Cadu, pelas intermináveis prosas sobre as nossas (des)construções no doutorado:
“câmbio desliga.”
Aos meus ex-alunos da PUC Minas unidade Arcos, pelo incentivo, carinho e
reconhecimento. À Luisa, estagiária do TJMG, supervisionada por mim, por me dizer
todos os dias: “calma, no final vai dar tudo certo”.
Aos homens participantes desta pesquisa, pela colaboração espontânea com
as entrevistas.
À Professora Marlene Machado Zica Vianna, pelos encontros que excederam
o espaço da tese, transformando a técnica em amizade e admiração.
Ao meu irmão Frederico e à minha cunhada Luciana, pelo calor da acolhida
nas noites em Niterói no meu primeiro ano de doutorado.
À minha amada família, especialmente minha mãe Ana, meus irmãos
Frederico, Thalles e Thayana, os Alexandres (marido e filho), vovó Elza e Axl.
Toda a lei que oprime um discurso está insuficientemente fundamentada.
Roland Barthes.
RESUMO
The present study had as its principal objective the analysis of possible
interference from the protective measures stipulated in Law 11.340/2006−also known
as the Maria da Penha Law−in the rights related to father-child relationships. The
approach selected to direct the course of this research was that of Legal Psychology
in the social field. Interest in the subject emerged from professional activity in a
judicial institution and from psychological counseling in cases referred by judges in
Family Court in which obstacles to the father-child relationship were observed. The
scientific literature employed consisted of publications related to the Maria da Penha
Law, of criminal-judicial policies, of children and adolescents' family rights, of
paternity, and of the process of judicialization. Not merely the historicization of the
emergence of the Maria da Penha Law and of its consequences in the civil and
criminal spheres were sought, but also the analysis of the father-child relationship in
contemporary times and of the effects of judicialization on family relationships. Open
individual interviews were conducted in the field with seven men denounced
according to Law 11.340/2006, who were selected from reading of criminal
processes existing in the four Special Courts of Family and Domestic Violence in
Belo Horizonte, during the year of 2016. The interviewees were bound by protective
measures stipulated by the Maria da Penha Law, had under aged children with the
supposed victims, and had not yet been tried. The interviews were subjected to the
method of content analysis and from them were extracted the analyzers which
allowed for their interpretation. The results indicated that conjugality and paternity
can be confused in contexts of marital rupture, especially when the rupture is related
to gender violence. In such situations, the protective measures become obstacles to
the relationship between father and child, given that the man accused of violence is
either forbidden to approach the supposed victim−who generally is the guardian and
caretaker of the child−or his contact with the child is restricted or suspended
according to section IV, article 22 of the aforementioned law. It has been observed,
following these results, that the expansion of regulations and the hardening of
punitive mechanisms do not guarantee the effectiveness of the Maria da Penha Law,
but rather contributes to fostering these men's negative feelings towards justice and
its punitive devices. Furthermore, it has been considered that the excessive use of
protective measures entails the expansion of the Penal State, thus transforming
criminal justice into the ruler of life in society.
Cette étude a eu pour objectif d'analyser les interférences possibles des mesures
de protection prévues par la Loi 11.340 / 2006 – connu comme la loi Maria da Penha –
sur le droit des enfants de vivre avec son père. L‟approche suivi, pour guider les
chemins de cette recherche, a consisté à faire un étude avec la psychologue juridique
dans le contexte social. L'intérêt pour le sujet est devenu de la pratique professionnelle
dans une institution judiciaire au service de la psychologie des cas visés par les juges
des tribunaux de la famille, dans laquelle trouvaient des obstacles dans les relations
paternelles-filiale. L'approche méthodologique a été accompli par l'étude théorique et la
recherche sur le terrain. La littérature scientifique utilisée est composée de publications
sur la Loi Maria da Penha, la politique judiciaire pénale, le droit à la vie familiale des
enfants et des adolescents, la paternité et le processus de judiciarisation. On a cherché
non seulement historiciser l'émergence de la Loi Maria da Penha et ses conséquences
dans le domaine civil et pénal, mais également d'analyser la relation paternelle-filiale de
nos jours et les effets de la judiciarisation dans les relations familiales. Sur le terrain, ont
été faites des entretiens ouverts individuels avec sept hommes dénoncés en fonction de
la loi 11.340 / 2006, sélectionné à partir de la lecture de poursuites pénales en vigueur
dans les quatre tribunaux spécialisés en violence domestique et familiale, à Belo
Horizonte, au cours de l'année 2016. Les enquêtés étaient sous des mesures de
protection découlant de la loi Maria da Penha, et ont eu des enfants mineurs avec la
victime présumée et n'on pas encore été jugé. Les entretiens ont été soumises au
méthode d'analyse de contenu, et ceux-ci ont été prises à partir des analyseurs qui ont
permis de les interpréter. Les résultats ont montré que la conjugalité et la parentalité
peuvent être confondus dans les contextes de la rupture du mariage, surtout quand
traversé par la violence de genre. Dans ce cas, la mesure de protection devient un
obstacle à la relation parent-enfant, si l‟on considère que le père dénoncé est empêché
de s'approcher de la mécontente – habituellement tuteur et gardien des enfants –, et si
l‟on considère que les pères parfois sont empêchés, soit partiellement, soit entièrement
de rendre visite à ses enfantes sur la base de l'incise IV, l'article 22 de cette loi. On peut
conclure, d'après ces résultats, que l'expansion des lois et renforcement des
mécanismes punitifs ne garantissent pas l'efficacité de la loi Maria da Penha, mais
contribuent à disséminer un sentiment négatif de ces hommes par rapport à la justice et
de les dispositifs utilisés pour punir. En outre, il a été constaté que l'utilisation excessive
des mesures de protection contribue à l'expansion de l'État pénal, ce qui rend le
système de justice pénale au statu de régent de la vie en société.
INTRODUÇÃO ............................................................................................... 11
1 LEI MARIA DA PENHA: CONTEXTO, PRESSUPOSTOS E APLICAÇÃO ... 20
1.1 A Construção de uma Política de Enfrentamento da Violência Contra
as Mulheres no Brasil ................................................................................... 20
1.2 Implicações da Lei Maria da Penha e os Desafios para sua Efetivação .. 32
2 DO PEDAGÓGICO AO TERAPÊUTICO: VESTES PENAIS PARA A
DIFUSÃO DA LEI MARIA DA PENHA........................................................... 54
2.1 Intervenções Educativas ou Soluções Penais? ......................................... 66
2.2 O Abecedário da Prevenção: de Cartilhas às Respostas Instantâneas ... 80
3 A CONVIVÊNCIA PATERNA EM CONTEXTOS DA LEI MARIA DA
PENHA ........................................................................................................... 92
3.1 A Convivência Familiar no Âmbito Jurídico-Legal e das Políticas
Sociais ........................................................................................................... 94
3.2 As Vicissitudes da Paternidade na Família Pós-Moderna......................... 98
3.3 Pontos e Contrapontos da Judicialização na Esfera Familiar ................ 117
4 TRAJETÓRIA METODOLÓGICA ................................................................ 124
4.1 Dos Pressupostos Metodológicos ............................................................ 125
4.2 Dos Métodos de Investigação ........................................................................ 127
4.3 Dos Critérios para a Escolha do Campo Investigado .............................. 130
4.3.1 Seleção dos Participantes da Pesquisa ........................................................ 132
4.3.2 Caracterização dos Participantes ................................................................. 135
4.4 Estratégia de Análise e Interpretação das Informações .......................... 137
5 RESULTADOS ............................................................................................. 140
5.1 Das Histórias Contadas nos Autos ........................................................... 140
5.2 Análise e Interpretação das Entrevistas ................................................... 144
5.2.1 Entre o Conjugal e o Parental ....................................................................... 145
5.2.2 Relação Paterno-Filial................................................................................... 154
5.2.3 Repercussão Social ...................................................................................... 159
5.2.4 Dispositivos Penalizadores ............................................................................. 164
5.2.5 Implicações da Judicialização ........................................................................ 167
5.3 Breve Discussão dos Resultados ............................................................. 170
CONCLUSÃO ............................................................................................... 174
REFERÊNCIAS ............................................................................................ 185
ANEXO ......................................................................................................... 203
11
INTRODUÇÃO
1
Segundo dados consultados na página eletrônica do Conselho Nacional de Justiça (BRASIL. CNJ,
2017), entre o ano de 2006 até 2015, foram criadas 91 unidades de varas especializadas em
atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar contra a mulher, não havendo
informações a respeito da existência de Juizados Especializados, conforme roga a Lei 11.340/2006.
13
[...] entre 1980 e 2013, num ritmo crescente ao longo do tempo, tanto em
número quanto em taxas, morreu um total de 106.093 mulheres, vítimas de
homicídio. Efetivamente, o número de vítimas passou de 1.353 mulheres
em 1980, para 4.762 em 2013, um aumento de 252%. A taxa, que em 1980
era de 2,3 vítimas por 100 mil, passa para 4,8 em 2013, um aumento de
111,1%. (WAISELFISZ, 2015, p.11).
2
Oliveira (2004) explanou que o movimento feminista não é homogêneo, existindo controvérsias em
seu interior motivadas pelos desdobramentos teóricos. Porém, escapa ao objetivo desta pesquisa
explorar os diferentes pressupostos que definem cada grupo feminista.
21
período. À época, o foco das lutas era o direito ao trabalho e o voto das mulheres.
Moraes e Sorj (2009) destacam que a retomada do movimento, na década de 1970,
após o regime militar em 1964, é marcada por outras experiências importantes,
como a passagem das mulheres pela militância em organizações de esquerda, sua
inserção em grupos feministas no país e no exterior e a luta pelo fim da ditadura.
Os movimentos sociais que surgiram na segunda metade do século XX
também desempenharam um papel importante na afirmação dos grupos feministas
no âmbito brasileiro e internacional. Rodrigues e Sierra (2011) apontam que os
denominados novos movimentos sociais, constituídos nas décadas de 1960 e 1970,
além de lutarem pela garantia dos direitos trabalhistas e pelo bem-estar social,
incluíram, em sua agenda de reivindicações, o interesse por questões relacionadas
à esfera da vida privada. Nesse sentido, a militância em favor de grupos socialmente
menos favorecidos – como mulheres, crianças, idosos, negros, homossexuais,
deficientes – entre outras minorias assumiu centralidade no debate sobre igualdade
e direitos. De acordo com as autoras, foi nesse contexto de reivindicações,
sustentado pelos movimentos sociais, que os Direitos Humanos foram aclamados
como bandeira das lutas democráticas no país, inclusive no que se refere ao
reconhecimento dos direitos das mulheres. No entendimento de Rifiotis (2012, p.3),
“os Direitos Humanos hoje dão fundamento, coerência e legitimidade aos próprios
movimentos sociais” e representam a tônica das lutas sociais, sobretudo por
reconhecimento jurídico.
Não há dúvidas de que o esforço de redemocratização da sociedade,
encabeçado pelos movimentos sociais após o regime militar, contribuiu
sobremaneira para a união das feministas a outros grupos mobilizados ao combate
às desigualdades sociais, resultando no fortalecimento dos movimentos feministas e
viabilizando sua participação nos segmentos políticos. Prado e Costa (2011)
denominam como estratégia de aliança o estabelecimento de vínculos entre os
sujeitos políticos, cujo foco da ação é a “[...] tentativa de fortalecer bandeiras
específicas presentes na relação entre eles.” (PRADO; COSTA, 2011, p. 694). O
resultado dessa aliança no contexto brasileiro, segundo expõe Moraes e Sorj (2009),
foi a construção de um feminismo muito mais sensível às questões das
desigualdades sociais.
Nessa perspectiva, Alonso (2009) afirma que os movimentos sociais
construíram um projeto cultural, uma vez que substituíram os movimentos de classe
22
3
Entende-se por gênero um conceito ancorado numa abordagem relacional, em que prevalece a
ideia de que ser homem e ser mulher é uma construção social (OLIVEIRA, 2004).
24
4
Tradução livre.
25
5
Segundo Alves (2012), relativismo significa a defesa dos direitos particulares, enquanto
universalismo diz respeito aos direitos imprescindíveis à sobrevivência de todos os seres humanos,
conforme disposto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948.
28
6
Segundo informações extraídas do artigo, o centro PRÓ-MULHER deixou de funcionar no ano de
1993.
30
Diante desse cenário, mais uma vez o Estado foi pressionado a repensar os
mecanismos jurídicos e legais de combate à violência de gênero com ênfase na
proteção dos direitos da mulher e na punição do agressor. Com isso, toma corpo o
movimento em favor da criação de uma legislação especial, para prevenir e coibir a
violência de gênero contra a mulher.
Paralelamente ao fervor da discussão sobre feminismo e violência de gênero
no Brasil, as contingências foram favoráveis à proposta de se criar uma legislação
específica sobre o tema quando ocorreu o caso de violência conjugal, envolvendo a
vítima Maria da Penha Fernandes, nos idos anos 1980 (ROMEIRO, 2009). Maria da
Penha, cidadã brasileira, após sofrer atos recorrentes de violência praticados pelo
marido, foi vítima de tentativa de homicídio e ficou paraplégica. Segundo Romeiro
(2009), à época o agressor foi denunciado e condenado pela justiça brasileira, mas
31
7
O Consórcio Feminista foi composto pelas seguintes ONG‟s: CEPIA, CFEMEA, CLADEM, THEMIS,
ADVOCACI, AGENDE (ROMEIRO, 2009, p. 61).
8
A Lei 11.340 está disponível no anexo da tese.
32
tipo de violência, sendo ela física, sexual, psicológica, moral, patrimonial, entre
outras tipificações que possam surgir.
9
O Projeto de Lei 7551/14 propõe alteração na Lei Maria da Penha (11.340/06), visando substituir as
referências a “gênero” pela palavra “sexo”. A justificativa é evitar que a referida Lei seja aplicada no
caso de violência contra homossexual e até mesmo contra homens.
33
colhida no site da instituição, nos primeiros dez meses de 2015, o Brasil, através da
Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência – Ligue 180, registrou
uma denúncia a cada sete minutos. De acordo com o teor das denúncias, 85,85%
dos atos de violência foram praticados por cônjuges, ex-cônjuges, namorados e ex-
namorados, no ambiente familiar e doméstico. Em 27% dos casos, a vítima foi
agredida por algum amigo, familiar, vizinho ou conhecido. Levando em consideração
indicadores internacionais, o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking de países com
maiores índices de homicídios femininos, o que revela a taxa de 4,8 por 100 mil
habitantes (CNJ, 2016).
O Mapa da Violência – Homicídio de Mulheres no Brasil, elaborado, em 2012,
por Júlio Jacobo Waiselfisz e citado em um dos documentos produzidos pelo CNJ
sobre a atuação do Poder Judiciário na aplicação da Lei Maria da Penha, apresenta
alguns números relacionados à violência. De acordo com o Mapa, o número de
homicídios praticados contra as mulheres, em 2010, foi de 4.465, sendo a taxa de
ocorrência no ambiente doméstico de 71,8% (WAISELFISZ, 2012). O Mapa da
Violência, editado em 2015, indicou o crescimento de 252% da taxa de homicídio
contra a mulher no Brasil, considerando o intervalo de tempo entre 1980 a 2013. Os
números atuais revelam crescimento da violência na maioria dos estados brasileiros,
atingindo índices de aumento de 3,1% a 131,3%. Apenas em cinco estados, 10
verificou-se a queda das taxas de violência contra a mulher tendo em vista a
vigência da Lei Maria da Penha. Constatou-se, também, que o aumento da violência
prevaleceu no interior de cada estado, e não exatamente nas capitais, onde se
averiguou a redução das taxas de violência. (WAISELFISZ, 2015).
O jornal O Globo, em matéria publicada em 26 de setembro de 2013, divulgou
resultados de uma pesquisa, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA), a respeito da violência contra as mulheres, concluindo que a morte de mulheres
por agressões de maridos, companheiros e parceiros sofreu pequena redução numérica
desde a criação da Lei Maria da Penha. Esses dados divergem das informações
apresentadas pela Secretaria de Política para Mulheres do governo federal, que,
naquela ocasião contestou o IPEA, afirmando que a Lei Maria da Penha tem cumprido
a sua finalidade de proteger as mulheres (APESAR..., 2013, p. 8).
10
As Unidades Federativas são Rondônia, Espírito Santo, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro.
(WAISELFISZ, 2015).
39
11
Ler matéria publicada no site do Conselho Nacional de Justiça, no dia 26 de agosto de 2016.
Endereço eletrônico: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83252-justica-concedeu-mais-medidas-
protetivas-a-mulheres-em-2015>.
40
12
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Transparência – TJ em números?
42
13
A CEPIA é uma organização não governamental, sem fins lucrativos, criada em 1990, com a
finalidade de desenvolver estudos, pesquisas e projetos que contribuam para a promoção e a
efetivação dos direitos humanos e o fortalecimento da cidadania. A UNICEF e a Comissão Europeia
são algumas das instituições que apoiam a CEPIA. (CIDADANIA, estudos, pesquisa, informação e
ação, 2015).
43
como vítimas” (CNJ, 2016). A justiça mineira aderiu à quarta edição da campanha,
realizada no ano de 2016.
Observa-se que a inexistência ou defasagem do número de Juizados ou
Varas Especializadas, para atender às demandas decorrentes da violência
doméstica e familiar contra a mulher no território nacional, é um dos motivos que
comprometem a devida aplicação da Lei Maria da Penha. Por se tratar de uma lei de
“natureza híbrida” (CNJ, 2010, p. 19), torna-se ainda mais comprometedora não
somente a falta de uma estrutura institucional que abarque toda complexidade
envolvida no tema, bem como os discursos que atravessam a própria concepção de
violência, gênero, direitos humanos e se traduzem nos meios empregados para lidar
com o problema. Interroga-se, por exemplo, quais são os critérios adotados para a
aplicação das medidas cíveis, uma vez que estas implicam efeitos que podem
interferir na convivência dos filhos com o pai, suposto autor de agressão contra a
mulher. Ressalta-se que a medida protetiva, prevista no inciso IV, do artigo 22 da Lei
11.340/2006, determina a “restrição ou suspensão de visitas aos dependentes
menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar”
(BRASIL, 2006b).
Se há defasagem de Varas Especializadas e, consequentemente, de
profissionais para compor as equipes multidisciplinares ou mesmo a inexistência
dessas equipes, pergunta-se: Como são feitas as avaliações para apurar o interesse
e a possibilidade de os filhos menores terem preservado o convívio com o pai e em
que fase do processo isso é feito? Os filhos recebem algum tipo de atendimento
quando o pedido da medida protetiva de suspensão de visitas feito pela vítima é
acatado pelo juiz?
“Quais as garantias para filhos de casais em conflito doméstico?” Com esta
pergunta, o CNJ iniciou uma matéria publicada no dia 29 de agosto de 2016,
referente aos contextos de aplicação da Lei Maria da Penha, no caso da presença
de filhos. A reportagem cita o inciso IV, artigo 22, da Lei 11.340, para afirmar que é
possível a restrição ou até mesmo a suspensão de visitas aos dependentes
menores, quando há medida protetiva de não aproximação do cônjuge. Ela
acrescenta ainda que “o juiz pode fazer essa avaliação no momento do deferimento
da medida, ou posteriormente, a fim de ajustar o direito à visita aos filhos, com as
circunstâncias necessárias para o cumprimento das medidas protetivas” (CNJ,
2016). Além disso, essa reportagem menciona alguns critérios e condições utilizados
45
tornou, mais tarde, símbolo político da luta contra a violência doméstica no Brasil.
Assim, qualquer questionamento a respeito da lei, é visto como insensível ao
sofrimento de Maria da Penha. A autora comenta:
machista, são os mesmos que servem de argumento para o Direito Penal punir os
homens. No entanto, grupos feministas são favoráveis ao emprego desse
argumento.
Souza (2012) esclarece que, a respeito da Lei Maria da Penha, há uma
importante defesa da Lei por parte dos movimentos de mulheres que participaram de
sua construção e cultivaram a crença de que o aumento da punição contribui com a
redução da violência. Mesmo grupos feministas adeptos de uma criminologia crítica
apostaram no Direito Penal para enfrentar a violência contra a mulher. O resultado é
a prevalência de uma lógica penalista no tratamento das demandas de defesa dos
direitos da mulher vítima de violência. Observa-se, também, segundo a autora, a
falta de diálogo entre as instâncias judiciais que realizam o atendimento das
demandas cíveis e criminais que chegam aos Juizados ou às Varas Especializados
de Violência Doméstica de Familiar contra a Mulher. Souza (2012) pondera que as
demandas cíveis são as mais evidentes em processos de natureza criminal
motivados pela violência contra a mulher:
14
Material disponível no anexo da tese.
50
15
Os nomes citados neste estudo são fictícios e escolhidos pela pesquisadora.
51
16
A “Cartilha da Família – não à alienação parental”, produzida pelo Tribunal de Justiça da Bahia,
ano de 2013, é narrada por um papagaio falante. (OLIVEIRA; BRITO, 2016).
56
17
Arantes (2013) fundamenta seu texto na teoria foucaultiana, a partir da leitura do livro de
Fonseca (2002), a quem faz referência ao longo de sua explanação.
57
agressão contra a mãe, a relação do agressor com seus filhos não estiver
afetada (BATISTA, 2008, p. 12).
Esse alerta não significa negar a importância das medidas protetivas, mas
pressupõe o reconhecimento de que a sua aplicação sem critérios claros e definidos,
principalmente quando existem demandas cíveis, pode prejudicar outros envolvidos
na dinâmica familiar. Convém avaliar os prejuízos que podem advir de uma situação
em que a mulher é atendida na delegacia, geralmente em circunstância de
sofrimento emocional, desespero, raiva e, na sequência, solicita a medida protetiva
de suspensão ou restrição de visitas do companheiro aos filhos, sendo tal pedido
acatado pelo juiz, sem averiguação da relação paterno filial. Mesmo que o inciso IV
do artigo 22 da Lei 11.340/06 preveja a intervenção de equipe multidisciplinar para
subsidiar a decisão do juiz quando existem filhos envolvidos, sabe-se que são
poucas as comarcas do país que possuem profissionais de outras áreas para
intervir. (CNJ, 2010). E, quando essas os possuem, muitas vezes a equipe conta
com reduzido número de profissionais, fato que dificulta o atendimento da grande
demanda que chega aos serviços da justiça, diariamente. Supõe-se que essa
realidade possa resultar, por vezes, na aplicação de medidas protetivas com base,
exclusivamente, em queixas das vítimas, sem apuração dos reais motivos que
justificam o pedido de suspensão das visitas paternas e seus possíveis
desdobramentos na esfera familiar.
Através da Resolução nº 128, de 17 de março de 2011 (CNJ, 2011), o
Presidente do Conselho Nacional de Justiça “determina a criação de
Coordenadorias Estaduais das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e
Familiar no âmbito dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal”.
Assim, cabe aos tribunais de cada Estado colaborar efetivamente na construção e
implementação da política pública relativa à violência contra a mulher no âmbito
doméstico e familiar. O parágrafo 2º do artigo 3º da referida Resolução estabelece
que “A Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e
Familiar deverá contar com estrutura de apoio administrativo e de equipe
multiprofissional, preferencialmente do quadro de servidores do Judiciário”.
Enquanto isso, a Lei 11.340/06 (BRASIL, 2006b, grifo meu), em seu artigo 29, dispõe
que “os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que vierem a
58
ser criados poderão contar18 com uma equipe de atendimento multidisciplinar, a ser
integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de
saúde”. A lei mencionada abre uma brecha para a justiça atuar com a escassez ou
precariedade de recursos humanos e materiais necessários à efetivação da política
de proteção às mulheres vítimas da violência na vida privada.
Em conversa com servidores do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que
atuam nas Varas Especializadas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher,
os profissionais da área de psicologia se queixaram da precariedade dos serviços
para realizar os atendimentos, cuja matéria, além da violência contra a mulher,
envolve questões de natureza cível, como guarda e regulamentação de visitas. As
queixas relativas à falta de espaço físico adequado, ao número reduzido de equipes,
ao aumento vertiginoso do número de processos e ao tempo insuficiente para intervir
foram apontadas como comprometedoras da qualidade do serviço prestado.
O pedido recorrente de atendimento de crianças do sexo feminino nas Varas
Criminais Especializadas na aplicação da Lei Maria da Penha é outro impasse que
vem sendo enfrentado pelas equipes multiprofissionais. Observa-se que a questão
de gênero prevalece sobre as especificidades das crianças, até então encaminhadas
para as Varas da Infância e Juventude, como ainda ocorre com meninos
supostamente vítimas de violência doméstica. Nesses processos em que a menina,
supostamente vítima de algum tipo de violência praticada no âmbito intrafamiliar, é
encaminhada à Vara Criminal referente à Lei Maria da Penha, verificam-se algumas
situações em que o motivo subjacente à queixa/denúncia se refere às questões
atinentes ao divórcio dos pais. Quando isso acontece, a demanda chega
acompanhada de reclamações sobre alienação parental, pedidos de regulamentação
de visitas e denúncias diversas, como as de abuso sexual, que comumente geram o
afastamento imediato do genitor devido à imposição das medidas protetivas. Por
conseguinte, suspeita-se que o acúmulo de processos tramitando nas “Varas Maria
da Penha” tenha, como consequência, a duração da medida protetiva por tempo
demasiadamente prolongado, sem previsão de julgamento para absolver ou
condenar o acusado. O jornal O Tempo publicou uma matéria datada de 13 de
outubro de 2016, noticiando que, no Estado de Minas Gerais, a cada hora um
processo referente à Lei Maria da Penha prescreve, sendo que, de 2011 a julho do
18
Grifo meu.
59
19
Palestra proferida no dia 22 de novembro de 2014, durante o IV Congresso Psicologia Ciência e
Profissão realizado entre os dias 19 a 23 de novembro de 2014, na cidade de São Paulo/SP.
20
O Depoimento sem Dano “consiste basicamente em realizar a inquirição da criança e do
adolescente, vítimas ou testemunhas de abuso sexual, em sala distinta daquela em que ficam as
partes processuais, a qual é ambientada para recebê-las de modo a lhes proporcionar maior
„tranquilidade‟ antes, durante e após o depoimento” (NASCIMENTO, 2012, p. 12).
60
esfera judicial. São situações novas que impõem desafios e, às vezes, geram
tensionamentos na relação entre Psicologia e Direito.
Ao lado dos problemas enfrentados pelos profissionais no cotidiano de
trabalho, verifica-se a existência de ações, projetos e programas criados pelo Poder
Judiciário, ou apoiados por ele, que visam garantir efetividade à Lei Maria da Penha.
Conforme mencionado anteriormente, a ideia difundida pela Lei 11.340/06 é que
Tribunais de Justiça, Ministério Público, Defensorias e setores das áreas de
assistência social, educação, saúde e segurança se unam para criar uma política
intersetorial de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher (BRASIL,
2006b).
No âmbito do Poder Judiciário brasileiro, a representação do sistema judiciário
se faz pelo Conselho Nacional de Justiça e pelos Tribunais de Justiça em cada
unidade federativa. Essas instituições estabelecem suas frentes de trabalho criando
estratégias para efetivar sua ação no combate à violência contra a mulher.
Entretanto, o CNJ é o órgão responsável por instituir a política judiciária que irá
nortear as atividades dos tribunais. “Para a coordenação de ações de grande escala
e, sobretudo, levando-se em conta a heterogeneidade do Judiciário brasileiro,
somente o CNJ reúne condições para a definição de políticas judiciárias nacionais
[...]” (SILVA; FLORÊNCIO, 2011, p. 127). O referido órgão apoia não apenas as
instituições públicas pertencentes ao sistema de justiça, as Organizações Não
Governamentais (ONG‟s), que se propõem a militar em defesa da causa feminina,
como também os movimentos que não se intitulam feministas, mas, sob o manto dos
Direitos Humanos, participam da construção da política de enfrentamento à violência
de gênero no país.
De modo geral, as ações de combate à violência contra a mulher no âmbito
doméstico e familiar, coordenadas pelo CNJ ou apoiadas por esse órgão, parecem
destinadas à proteção dos direitos da vítima e à penalização do agressor,
pressupondo que a violência é um fenômeno dicotomizado que delimita claramente
o lugar de cada um dos atores envolvidos. Nesse sentido, prevalece o que Garland
(2008, p. 317) chamou de “santificação das vítimas” e, como consequência, sua
incompatibilidade total com o agressor, fazendo com que qualquer atitude de
compaixão ou invocação de direitos desse último, seja vista como insulto aos que
supostamente necessitam de proteção.
61
21
O evento que reuniu presidentes dos tribunais de todo o país aconteceu em novembro de 2014, na
cidade de Florianópolis/SC.
22
De acordo com Howard Zehr (2008), a Justiça Restaurativa envolve a vítima, o ofensor e a
comunidade na busca de solução dos conflitos por meio da reparação, reconciliação e segurança.
62
23
De acordo com o CNJ (CNJ, 2014a), “a audiência de custódia está prevista em pactos e tratados
internacionais assinados pelo Brasil, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a
Convenção Interamericana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San Jose”.
63
24
De acordo com o artigo 152, Parágrafo Único da Lei 11.340/06: “Nos casos de violência doméstica
contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de
recuperação e reeducação.” (BRASIL, 2006).
25
O artigo não se encontra disponível no site, inviabilizando a identificação do autor. A consulta feita
com essa finalidade foi realizada no dia 08 de setembro de 2015.
69
artigo, é a de que existe afeto na relação dos sujeitos pesquisados com os filhos e
que a participação nos grupos favorece não apenas o diálogo do homem com a
mulher e os filhos, bem como a tomada de consciência dos papéis desempenhados.
Porém, o artigo não aborda a situação de pais que, por motivo de medida protetiva,
tiveram o convívio com os filhos interrompido.
É sabido que outros programas de intervenção com homens autores de
agressão contra a mulher são desenvolvidos no país, como, por exemplo, o Instituto
de Pesquisas Sistêmicas e Desenvolvimento de Redes Sociais – Instituto NOOS, na
cidade do Rio de Janeiro/RJ. As metodologias empregadas nesses programas
diferem umas das outras, não sendo possível tratar de forma homogênea seus
resultados. A título de ilustração, citou-se o Instituto ALBAM, pelo fato de estar
sediado no município de Belo Horizonte e atender às demandas judiciais dessa
cidade.
Ao analisar os grupos de reflexão para homens autores de violência no
contexto brasileiro, Marques (2009) observou que o foco é o agressor. Para essa
autora, os programas de intervenção destinados aos homens autores de agressão
são recentes e pouco explorados no Brasil, além de se restringirem, basicamente, à
análise do perfil do agressor e ao estudo das masculinidades.
Na página eletrônica do CNJ (2014b), é possível obter informação sobre os
“cursos de responsabilização”, referindo-se à experiência dos programas de
reabilitação e reeducação realizados com os homens autores de violência contra a
mulher no âmbito doméstico, nos estados do Ceará, São Paulo e o Distrito Federal.
No Ceará, os autores da violência cumprem a pena26 e, posteriormente, participam
das oficinas por um ano, condição determinada por meio de uma medida cautelar da
Justiça, para que eles possam refletir sobre os seus atos. Na reportagem, a juíza da
Vara de Execução de Fortaleza afirmou que, após a terceira sessão, os participantes
do grupo já estão aptos a “pedir perdão” (CNJ, 2014b).
Após o cumprimento da pena, a participação obrigatória nesses grupos e a
demonstração pública do pedido de perdão suscitam dúvidas relativas à condição
atribuída ao homem que, de réu, ao cumprir a pena, passa a pecador, devendo,
publicamente, confessar seus atos para, só assim, libertar-se deles. Essa prática
26
A reportagem não especificou o tipo de pena aplicada aos homens autores de agressão. (CNJ,
2014b).
70
27
O Instituto Patrícia Galvão é uma organização social sem fins lucrativos que atua nos campos do
direito à comunicação e dos direitos das mulheres brasileiras.
28
O jornal Estado de Minas publica matéria, na edição de 10 de abril de 2013, intitulada “Segurança
com tornozeleira”, noticiando que o monitoramento eletrônico está sendo utilizado em Minas para
garantir o cumprimento das medidas protetivas decorrentes de aplicação da Lei Maria da Penha.
(LOPES; AYER, 2013, p.18).
72
29
O Projeto de Lei 6145/2016 de autoria do Deputado Luiz Lauro Filho foi apensado ao PL 6433/2013
(VASCONCELLOS, 2013).
74
com a função do juiz de julgar dada situação e avaliar a pertinência ou não das medidas,
inclusive podendo decretar a prisão do suposto agressor. A única ressalva é que a
polícia comunique a concessão das medidas ao juiz no prazo de 24 horas.
Por ora, até que o Congresso aprove ou refute os Projetos de Lei mencionados, a
participação da polícia já acontece, mas de forma sutil. No que tange ao controle da
violência doméstica contra a mulher, existem projetos criados pela polícia, no Brasil,
visando combater esse tipo de violência ou evitar que novos casos apareçam. Para
efetivar essas políticas, a criação da polícia comunitária foi considerada primordial, tendo
em vista o saber constituído em torno de seus propósitos de ação. Garland (2008)
aponta que o objetivo percorrido pela polícia comunitária é atuar junto às vítimas e à
população, conscientizando-as sobre a finalidade das medidas judiciais e ensinando
os meios adequados para o gerenciamento dos riscos. Ele pressupõe que a
proximidade da polícia comunitária junto ao público favorece a sua aceitação por
parte da comunidade e contribui para o ajuste das expectativas sociais às
possibilidades da ação policial. Mazzurana compartilha desse mesmo pensamento e
assinala:
30
Organização das Nações Unidas, 2013.
76
Além disso, criar meios para facilitar o acesso à justiça não pode ser
confundido com a disseminação da cultura de judicialização das relações
interpessoais, desincumbindo a sociedade de qualquer responsabilidade para com o
outro e consigo próprio.
O inciso V, artigo 8º da Lei Maria da Penha determina, como medida de
prevenção da violência contra a mulher, “a promoção e a realização de campanhas
educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas
ao público escolar e à sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos
de proteção aos direitos humanos das mulheres” (BRASIL, 2006b). Com a pretensão
de tornar a Lei uma ferramenta educativa, o Conselho Nacional de Justiça apoia as
iniciativas voltadas para crianças e adolescentes, que visem disseminar a Lei Maria
da Penha no contexto escolar. As ações têm a finalidade de conscientizar o público
escolar sobre a ocorrência do crime de violência doméstica, tornando crianças e
adolescentes exímios identificadores das diversas formas de violência e,
consequentemente, delatores de seus pais, parentes ou pessoas com quem mantêm
vínculos de afinidade. Com base nesse pressuposto da Lei, em Minas Gerais, a
Secretaria de Estado de Trabalho e Desenvolvimento Social (SEDESE) iniciou, em
2012, o Projeto Maria da Penha vai à escola. Para viabilizar as ações, criou o gibi 31
“As Marias em: Maria da Penha vai às escolas”, material que é distribuído nos
estabelecimentos de ensino selecionados para participar do projeto. A revista segue
acompanhada de um manual com sugestão de atividades pedagógicas para se
trabalhar com as crianças em sala de aula (MINAS GERAIS, 2013a). Outros estados
como Rio de Janeiro, Pernambuco e o Distrito Federal também aderiram à proposta
de divulgar a Lei Maria da Penha nas escolas.
Uma campanha, realizada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais,
denominada “Justiça vai à Escola”, visa dar visibilidade à Lei Maria da Penha
através de ações educativas. De acordo com informações obtidas na página
eletrônica da instituição (www.tjmg.jus.br), o projeto é desenvolvido pela
31
Revista infanto-juvenil em quadrinhos. Holanda, 2009, p. 1993.
78
32
Ver pesquisa de pós- doutorado realizada pela Doutora Leila Maria Torraca de Brito (2014),
abordando a temática do bullying sob o viés crítico, relacionando-o com as práticas de controle
presentes na economia de mercado predominante no mundo globalizado.
79
2014). De acordo com Brito, “nesses programas, várias atividades e conselhos são
propostos, com caminhos a serem perseguidos” (BRITO 2014, p. 139), sendo a
construção do que se denominou como uma cultura de paz e a suposta garantia de
felicidade os fins desejáveis.
Em Manaus/AM, foi divulgada a notícia de que os filhos de mulheres
agredidas, protegidas pela Lei Maria da Penha, têm preferência de vagas nas
escolas de ensino fundamental, creches públicas e conveniadas com o município
(BEZERRA, 2014). Esse direito foi assegurado pela Lei Municipal nº 395, aprovada
em 30 de setembro de 2014 (COMITÊ..., 2013). Partindo do entendimento de que o
direito à educação é um direito de todos e que o Estatuto da Criança e do
Adolescente – Lei 8.069/90 (BRASIL, 1990) protege o direito à educação escolar até
o Ensino Fundamental, qual seria o sentido de se dar preferência para filhos de
mulheres amparadas pela Lei Maria da Penha? O que dizer dos direitos da criança e
do adolescente, filhos de mães que não sofreram a violência, mas que necessitam
de vagas na escola? O mesmo ocorreu em outros municípios, como o de Caratinga,
em Minas Gerais, onde foi publicada, no Diário Eletrônico, a Lei nº 3.496/2014,
garantindo prioridade de vagas em creches para filhos de vítimas de violência
doméstica (SANCIONADA..., 2014).
Conforme apontado, os programas desenvolvidos com base nas
determinações da Lei Maria da Penha compõem a política de enfrentamento à
violência doméstica e familiar e dão ênfase aos direitos da mulher. Sem
desconsiderar a importância dessa política, há que se pensar em formas de ampliar
o debate, levando em conta outras questões envolvidas no contexto da violência
contra a mulher no âmbito doméstico e familiar. Os aspectos atinentes aos efeitos
cíveis da referida Lei não foram suficientemente explorados na literatura, não tendo
sido contemplados nos projetos e programas desenvolvidos com a finalidade de
efetivá-la. Até o momento, não se tem conhecimento da existência de uma
discussão aprofundada a respeito do atendimento de crianças do sexo feminino nos
JVDFM, nem mesmo uma definição clara de critérios para a intervenção das equipes
multidisciplinares em juizados de competência híbrida. Apesar de se reconhecer a
existência de uma política pública para tratar dessa temática, sabe-se que as
intervenções, voltadas exclusivamente para os denominados interesses das
mulheres, predominam nessa seara.
80
Em relação aos homens, a impressão que se tem é que as ações dirigidas aos
mesmos abrangem somente a questão criminal, limitando-se à aplicação de medidas e
penas, com pouco espaço para a escuta e a avaliação dos resultados das intervenções
de cunho exclusivamente penalizantes. A ausência de oportunidade para o diálogo com
os homens autores de agressão contra as mulheres pode colocá-los às margens das
políticas públicas e, às vezes, até reforçar comportamentos violentos. Medrado,
Bernardes e Mello (2010, p. 127) indagam: “Por que na Lei o homem só aparece como
agressor?” Os autores tecem comentários sobre o espaço físico das delegacias de
mulheres, citando exemplo observado na capital do país, onde o lugar reservado aos
homens para espera era o lado de fora, pois na parte de dentro, na sala com sofá e
televisão, o espaço era destinado somente às mulheres. Assim, acontece em vários
outros lugares que atendem a homens acusados, e não condenados, de praticarem a
violência contra a mulher.
São autoras de tais cartilhas não somente instituições que pertencem ao sistema
de justiça, mas também outras instituições públicas, privadas e organizações não
governamentais. Observou-se, a partir da data de publicação e do conteúdo das
cartilhas, que todas foram produzidas após o surgimento da Lei Maria da Penha.
Destarte, constata-se que elas estão inseridas na política pública de enfrentamento à
violência contra a mulher e resultam do esforço da União, dos Estados e Municípios
brasileiros, representados pelos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
Segue o quadro expositivo das cartilhas identificadas, contendo informações
sobre título, autoria e ano de publicação.
QUADRO 1
Título da Cartilha Autor (instituição) Ano de
Publicação
Conhecendo a Lei Maria da Penha Secretaria de Estado de Segurança Pública 2008
Lei Maria da Penha: do papel para Centro Feminista de Estudos e Assessoria 2009
a vida
Eletrobrás – Exija seus direitos. Eletrobrás 2010
Está na Lei. Lei Maria da Penha
Lei Maria da Penha & Direitos da Ministério Público Federal 2011
Mulher
O Enfrentamento à Violência Contribuições dos Ministérios Públicos Estaduais e da 2011
Doméstica e Familiar Contra a União
Mulher: Uma Construção Coletiva
OIT – Lei nº 11.340 Maria da Organização Internacional do Trabalho 2012
Penha
A Lei Maria da Penha Sindicato dos Empregados em Empresas de Asseio, 2013
Conservação, Trabalho Temporário, Prestação de
Serviço e Serviços Terceirizáveis no Distrito Federal
A Lei Maria da Penha e a Atitude Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Escola 2013
para a Paz Paulista da Magistratura
Cartilha Lei Maria da Penha na Prefeitura Municipal de Luziânia – Secretaria Municipal 2013
Escola de Educação
Diga não à violência contra a Sindicato de Engenheiros de Minas Gerais 2013
mulher
Violência Doméstica e Familiar Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro 2013
Contra a Mulher. Nós vamos
acabar com ela!
Lei Maria da Penha – Diga não ao Ministério Público do Estado de Rondônia 2014
medo e à impunidade
Papo de Homem: unidos na Ministério Público do Estado da Bahia 2014
prevenção da violência doméstica
e na promoção da convivência
pacífica
Lei MP – perguntas e respostas – Procuradoria Especial da Mulher 2015
Em favor da vida, pelo fim da Bancada Feminina do Senado
impunidade Comissão Permanente Mista de Combate à Violência
contra a Mulher
Mulher seus direitos estão na lei. Secretaria Municipal Extraordinária da Mulher – 2015
Lei Maria da Penha. Lei Curitiba/PR
11.340/2006
Viver sem violência é direito de Secretaria de Políticas para Mulheres – Presidência da 2015
toda mulher República
82
filhas, supondo que são mais fortes e capazes do que as mulheres desde tenra
idade. Tal concepção fere o que está disposto no próprio Estatuto da Criança e do
Adolescente (1990), que garante proteção irrestrita à população de crianças e
adolescentes, independentemente do sexo.
Outro aspecto peculiar, evidenciado nas cartilhas e que reflete a visão
antecipada que se tem do homem acusado de praticar a violência, é relativo ao
termo usado para se referir a ele. Em 20 cartilhas o homem é nomeado
exclusivamente como “agressor”, o que contribui para reproduzir uma visão
dicotômica da violência, explicada a partir do binômio vítima/agressor, sem
problematizar as vicissitudes presentes na relação conjugal. Brito, Beiras e Oliveira
refletem sobre o uso do termo agressor, avaliando-o como um marcador identitário
para o homem, conforme já o fizeram outros autores. Assim sendo, pontuam que
“esse rótulo pode dificultar o objetivo de transformar, de alterar atitudes, de
promover a mudança daquele que praticou violência” (BRITO; BEIRAS; OLIVEIRA,
2012, p. 28). Sugerem o uso do termo “autor de violência” em vez de agressor. Mello
(2010) também se pronuncia a respeito do assunto e chama a atenção para o texto
da lei 11.340/06, em que o homem também é chamado diversas vezes de agressor.
A autora considera estigmatizante essa forma de se referir ao homem, além de
reforçar os papéis de homens e mulheres representados pela sociedade, sendo o
sexo masculino colocado no polo ativo e o sexo feminino no polo passivo. Essa
visão de homem agressor influencia também a escolha pelo melhor tratamento,
sendo a via desejada aquela que prioriza a punição, motivada pela crença de que o
aumento da rigidez garantirá maior proteção à mulher.
De acordo com Soares (2009), a violência conjugal na concepção sugerida
pela Organização Mundial da Saúde, em 2002, abarca o caráter dinâmico das
relações humanas, compreendendo o comportamento violento como reflexo de uma
junção de fatores sociais, culturais, próprios do sujeito, relativos às formas de poder
e contrapoder presentes na relação conjugal, ao modo particular de cada casal
interagir, entre outros motivos. A concepção de violência contra a mulher, por sua
vez, reside no campo do feminismo e privilegia o recorte de gênero, conforme é
identificado nas cartilhas comentadas. Para Soares (2009, p. 145), essa visão “limita
os atores envolvidos, estabelece quem são as vítimas e os algozes, diagnostica
suas causas [...] e, com isso, antecipa soluções, como as que têm sido preconizadas
pelos movimentos de mulheres: criminalização e punição dos culpados.” Constata-
85
33
Trata-se de um modelo construído por uma psicóloga americana, Leonare Walker (1979), e
introduzido em estudos brasileiros sobre a violência conjugal.
86
investidas violentas do pai? Como lidar com seus sentimentos depois de feita a
denúncia que acarretou o afastamento do genitor?
A Cartilha “Conhecendo um pouco mais da Lei Maria da Penha”, produzida
pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (RIO DE JANEIRO, s/d), em formato de
gibi, conta a história de uma família composta pelos pais e o filho, ainda criança, que
presencia a violência conjugal praticada pelo pai. As ilustrações retratam as imagens
de um homem violento, de uma mãe com medo e de uma criança com semblante
triste e concentrada em resolver o problema dos pais. Léo, a personagem infantil,
aprende com uma amiga como denunciar o pai e age, assim, para proteger sua
mãe. Há, na cartilha, uma cena que mostra o homem deixando o lar, e a imagem de
fundo retrata a mãe e o filho como se estivessem contemplando sua saída, dando à
impressão de um fato corriqueiro para a família.
34
O Prêmio Innovare é concedido pelo Instituto Innovare a operadores do direito que contribuíram de
forma significativa com a qualidade da prestação jurisdicional e a modernização da justiça brasileira.
(INSTITUTO INNOVARE, 2015).
90
35
Ver "Violeta, a cor que protege mulheres em perigo" (ESCÓSSIA, 2014).
36
De acordo com Aleixo (2012), o Projeto Justiça Instantânea foi criado em Porto Alegre, pelo
Conselho da Magistratura do Rio Grande do Sul, visando garantir agilidade no atendimento inicial do
91
37
Não foi identificado o ano de publicação do folder, mas o mesmo foi encontrado em diversos
endereços eletrônicos e com datas diferentes, variando de 2011 a 2015. A pesquisa do material foi
feita usando como descritor o slogan da campanha. A imagem pode ser consultada na página
eletrônica: http://www.suport-es.org.br/images/mulher.JPG. Acesso em: 26 ago 2016.
93
38
Ver artigo 227 da Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988) e artigos 4º e 19
do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990). Ambos dispõem sobre o direito de
crianças e adolescentes à convivência familiar.
94
O mesmo diploma legal, em seu artigo 226, estabelece que a família é a base
da sociedade, devendo, portanto, ser objeto de proteção do Estado (BRASIL, 1988).
O Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069 de 13 de julho de 1990, em
consonância com a Carta Magna, em seu artigo 4º – reafirma a responsabilidade da
família, da sociedade e do Estado em garantir os direitos infantojuvenis, sendo um
deles a convivência familiar (BRASIL, 1990). O artigo 19 estabelece que “é direito da
criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e,
excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e
comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral” (BRASIL,
1990).
As referidas legislações brasileiras têm assento em normativas internacionais
proclamadas pelas Nações Unidas, como a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (ONU, 1948) e a Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989),
entre outros documentos ratificados pelos Estados Parte,39 que reforçam sua
relevância.
O artigo 9, item 3 da Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo
governo brasileiro em 24 de setembro de 1990, define que “Os Estados Partes
respeitarão o direito da criança que esteja separada de um ou de ambos os pais de
manter regularmente relações pessoais e contato direto com ambos, a menos que
39
Somam-se às normativas internacionais a Declaração de Genebra de 1924 e a Declaração dos
Direitos da Criança de 1959.
95
isso seja contrário ao interesse maior da criança”. Entende-se, com base nesse
artigo, que o direito da criança à convivência familiar é superior a qualquer condição
alheia ao seu interesse e que a impeça de estar com ambos os pais, ou com um
deles, em sua rotina diária.
Em caso de divórcio ou dissolução do vínculo conjugal dos pais, o Código
Civil Brasileiro (BRASIL, 2002) apregoa: “A separação judicial, o divórcio e a
dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto
ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos” (Art.
1.632, Lei 10.406/02). O mesmo Código é claro ao afirmar, em seu artigo 1.634, que
qualquer que seja a situação conjugal dos pais, compete a ambos o pleno exercício
do poder familiar.
A perda desse poder pode ocorrer mediante ato judicial, quando comprovadas
faltas graves cometidas pelos pais ou por qualquer um deles. O artigo 1.638 elenca
os motivos que podem levar à perda do poder familiar: “castigar imoderadamente o
filho; deixar o filho em abandono; praticar atos contrários à moral e aos bons
costumes; incitar, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente”. 40
(BRASIL, 2002). Excluindo-se os motivos que dão causa a essa perda, entende-se,
novamente, que a convivência familiar é um direito que deve ser assegurado à
criança e ao adolescente.
A Lei 12.010 de 3 de agosto de 2009 dispõe sobre a adoção e estabelece
uma série de ações voltadas à preservação dos vínculos familiares da criança e às
condições para sua inserção em família substituta, quando comprovada a
impossibilidade de mantê-la junto à família natural ou extensa. A referida lei busca
cercar, de todos os lados, intervenções apressadas do Estado e da sociedade no
sentido de destituir os vínculos familiares da criança e do adolescente, sem antes
oferecer o apoio necessário às famílias, para que possam manter o convívio com
seus descendentes. De acordo com seu artigo 1º, “Esta Lei dispõe sobre o
aperfeiçoamento da sistemática prevista para garantia do direito à convivência
familiar a todas as crianças e adolescentes, na forma prevista pela Lei no 8.069, de
13 de julho de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente”. (BRASIL, 2009).
40
O Artigo 1637 do Código Civil determina: “Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando
aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum
parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do
menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha” (BRASIL, 2002).
96
41
Expressão cunhada pela autora da tese comparando a judicialização a uma espécie de serviço call
center, em que é disponibilizado um canal aberto de telefonia para a comunicação do cliente e o
endereçamento de suas demandas, visando atender melhor a ele.
98
“Família, Família/ Vive junto todo dia/ Nunca perde essa mania”, os versos da
canção “Família”, composta por Antunes e Belotto, na década de 1980, no Brasil,
parece que já não traduzem mais a realidade dos arranjos familiares na atualidade.
Observa-se que a solidez dos lugares ocupados por cada uma das pessoas, nos
moldes da família nuclear, não responde à realidade social do momento, em que as
relações são caracterizadas por sua dinamicidade e pluralidade. Conforme assinala
Costa (2012): “A família nem é mais um modo de transmissão do patrimônio
material; nem de perpetuação de nomes de linhagens; nem da tradição moral ou
religiosa; nem tampouco a instituição que garante a estabilidade do lugar em que
são educadas as crianças.” (p.3).
Então, o que é a família? Como defini-la, considerando que uma de suas
marcas na pós-modernidade é justamente a falta de definição? Bilac (2003, p.31)
antecipa que “a variabilidade histórica da instituição família desafia qualquer
conceito geral de família.”
Fachin (2002), ao se pronunciar a respeito da família atual, expõe:
99
que chamou de crise da família, levando à crença em um sujeito que seria causa de
si mesmo. Coadunam-se com as suas proposições aquelas de Figueira (1987),
quando ele afirma que a ideologia igualitarista predominante interfere na
demarcação da diferença de lugares entre pai e filhos. Conforme assinalado pelo
autor, a noção de indivíduo definidora do ideal de igualdade e liberdade aproxima as
categorias homem/mulher, adulto/criança, pais/filhos, enfraquecendo as fronteiras
que diferenciam tais identidades, tornando-as comuns, dependentes das escolhas
pessoais do indivíduo. A democratização da família, por sua vez, tem influência na
indiferenciação das identidades assumidas pelos membros que a compõem.
Romanelli (2003, p. 87) assevera que o esforço de democratizar a família também
contribuiu “[...] para que o individualismo dos filhos prevaleça sobre as aspirações de
cunho coletivo”, gerando consequências para as novas formações familiares na pós-
modernidade.
Figueira (1987) prossegue afirmando que essas mudanças pressupõem
processos complexos e não lineares. Utilizando como exemplo o que acontece no
contexto brasileiro, o autor assevera que os aspectos socioculturais das mudanças
na família foram mais fáceis de serem introjetados, por ocorrerem no nível da
superficialidade. Em contrapartida, as mudanças requeridas no domínio da
subjetividade, relativas às emoções e fantasias, aos sentimentos e desejos, se
revelam mais resistentes às modificações, pois exigem do sujeito um
reposicionamento. Para ele, esse sujeito “é o agente socializado que sofre a ação de
regras transindividuais, mas que é dotado de uma subjetividade que, nos dramas da
mudança social em famílias de classe média, ocupa o centro do palco”. (FIGUEIRA,
1987, p. 14). Por isso, afirma existir um descompasso entre a velocidade do
processo de modernização e a lentidão da subjetividade para se adequar, fazendo
com que elementos do passado se mantenham presentes na nova família, mesmo
que a proximidade entre o moderno e o arcaico não seja tão evidente.
Na família pós-moderna, ao se impor o “novo” como regra, muda-se o seu
conteúdo, mas o mecanismo de determinar, de fora para dentro, o que o sujeito
deve fazer não se altera. No passado, as famílias tinham pouca ou nenhuma
liberdade para sustentar um modo de vida singular e satisfatório para os desejos de
cada integrante e era cobrado um preço alto daqueles que assumissem um modo de
vida diferente do aceito e legitimado pela sociedade. Na família moderna, também
não é dada a opção de escolha ao sujeito, embora ele se comporte como se tivesse
103
liberdade suficiente para decidir, sem interferência dos ditames sociais, seja o seu
modo de vestir, seja o tipo de relacionamento que ele quer ter. Dessa forma, ainda
que se pretenda estabelecer barreiras para separar a família tradicional da nova,
constata-se que o moderno e o arcaico convivem juntos na família brasileira, sendo
incoerente qualificar como “nova família” os arranjos na atualidade.
Costa (2012) desenvolve raciocínio semelhante, ao revelar que considera
difícil classificar os arranjos familiares na atualidade. Primeiramente, pela própria
força semântica contida na palavra família, que continua abarcando todos os
arranjos possíveis de agrupamento familiar. Em seguida, porque, mesmo repudiando
o modelo de família burguesa, é a esta que se reporta quando o assunto é família. O
autor comenta:
Não tenho certeza, mas penso que, diante dessa aridez humana, a família
voltou a representar – depois dos ataques críticos vindo da contracultura e
das ideias marxistas dos anos 1960 – uma promessa de solidariedade,
afetividade, lealdade, entre os sujeitos, sem contar o prêmio em prazer
sexual e sentimental implícitos na relação do casal. (COSTA, 2012, p. 3).
O que será posto à luz serão tanto os mecanismos que operam em nossa
sociedade assim marcada – desabono da função paterna, infiltração por um
simbólico virtual, abalo da responsabilidade e desinscrição da referência –
quanto as consequências, para cada um, do fascínio pelo método científico
– elisão da enunciação, desaparição do sentido do limite, perda da
faculdade de julgar. (LEBRUN, 2004, p. 20).
42
O capítulo 3 desta tese apresenta um tópico específico sobre cartilhas.
43
Lei 12.318 de 26 de agosto de 2010.
44
Ver NASCIMENTO; LACAZ; ALVARENGA FILHO, 2010.
106
contribuiu para que a ideia do saber natural dos pais ficasse desqualificado
em relação ao dos especialistas e, desta forma, também retirava dos pais a
autoridade inerente sobre seus filhos, pois esta se justificava quando
podiam se responsabilizar inteiramente pela educação deles. (ZANETTI;
GOMES, 2009, p. 196).
Dito isso, a autora elenca duas hipóteses que podem explicar a fragilização
do discurso dos pais. A primeira sugere que os pais estejam paralisados pelo
sentimento de culpa decorrente da quebra de compromisso com o modelo
tradicional de família nuclear e a consequente inauguração de novos arranjos
familiares. Assim, eles agem como se tivessem uma dívida impagável com os filhos
e consideram que a demarcação de limites, por meio do exercício da autoridade
108
45
A pesquisa foi desenvolvida junto ao Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, no período de 2002 a 2005. O livro Famílias e Separações: perspectivas da psicologia
jurídica, publicado em 2008, reúne artigos produzidos a partir dos desdobramentos da pesquisa.
110
não perderam poder sobre os filhos, embora tivessem que contar com a ajuda direta
dos homens, seus companheiros, para conciliarem a rotina doméstica com o
trabalho fora de casa. Assim sendo, para as mulheres, ao papel de mãe somaram-
se outras funções necessárias ao seu reconhecimento social.46 Para os homens,
destinaram-lhes tarefas bem semelhantes às exercidas pelas mulheres no trato com
seus filhos.
Estudiosos como Hurstel (1999), Lebrun (2004) e Ramires (2014)
problematizam a repercussão da indiferenciação de papéis, paterno e materno na
constituição psíquica das crianças, e questionam o lugar da função paterna na
organização familiar, na atualidade. Considerando que não cabe mais atribuir ao
homem o papel de chefe da família, provedor, arrimo e outros tantos dizeres
empregados para designá-lo na esfera privada, qual o impacto dessas mudanças na
concepção da paternidade e no novo lugar assumido pelo pai na esfera familiar?
Fachin (2008, p. 9), ao prefaciou o livro de Leila Maria Torraca de Brito sobre
contestação de paternidade, usou a expressão “paternidade líquida” para, de
maneira sutil, apontar a importância de não se transformar a paternidade em uma
mercadoria de consumo, como se o passado nada valesse diante da possibilidade
de se fabricar novos pais, ou até mesmo, se abster deles.
Ao teorizar sobre a problemática da paternidade na contemporaneidade,
Ramires (2014) assevera que as dimensões da paternidade não se esgotam com as
práticas de cuidado e atenção, sendo necessário compreender a diferença entre
função e desempenho de papéis sociais. Para a autora, mesmo que nas sociedades
ocidentais os papéis desempenhados pelos homens e mulheres na prática diária
com os filhos demonstrem similaridade, é necessário indagar sobre a função
simbólica da autoridade paterna na atualidade e em que aspecto ela se diferencia do
desempenho de papéis.
Hurstel (1999) assinala que as mudanças na paternidade tiveram início no fim
da Segunda Guerra Mundial e se estendem até os dias de hoje. Ela expõe que,
durante muito tempo, o termo “papel” foi usado para designar a imagem do pai e seu
papel familiar. Segundo Hurstel (1999a), o uso expandido do termo papel para falar
acerca do pai se prestou a caracterizar todos os aspectos da paternidade: “aspectos
46
Os movimentos sociais e feministas tiveram notória influência na reorganização dos papeis
atribuídos a homens e mulheres no âmbito familiar. Ver: CAMPOS, 2013.
111
psicológicos, sociológicos, modos de ser dos pais” (p.107), mas sem definir, com
exatidão, o sentido que lhe era dado. Para a autora, a indiferenciação dos termos
para falar sobre o pai é consequência da falta de teorização no campo da
paternidade, assinalando dois motivos que explicam essa constatação. Um deles é a
ausência de distanciamento para tratar de um assunto que exige a redução do
sentimento passional, afastando-se, então, das experiências pessoais de quem se
propõe a examiná-lo. O outro motivo é a apropriação indevida pelo campo social e
pedagógico das teorizações da psicanálise sobre o pai. Desse modo, a ausência de
domínio teórico leva ao uso indevido ou inapropriado de palavras para significar o
que vem a ser o pai. A autora reconhece o quão complexa é a noção de pai e
propõe uma abordagem pluridisciplinar para compreender seu significado.
Na tentativa de explicar a constituição da paternidade na contemporaneidade,
Hurstel (1999a) pontua que a função do pai deve ser compreendida em dois campos
distintos: o campo social e o campo do psiquismo. O campo social é relativo à norma
e não se confunde com a dimensão psicológica. Nesse caso, espera-se que o pai
cumpra com os ideais sociais de comportamento, preferencialmente que ele esteja
presente em “carne e osso” para ser considerado um pai presente ou um bom pai.
Esse campo está associado ao exercício de papéis, que são definidos pela
moralidade de uma época. O campo do psiquismo reside no registro da linguagem e
das significações. Ele se refere a uma presença simbólica que permitirá ao próprio
sujeito dizer se teve ou não um pai.
Ao discorrer sobre a paternidade, Hurstel (1999a) distingue três termos que a
designam – função, papel e pessoa – e explica cada um deles. A função se amarra
ao simbólico e se refere às representações; o papel, ao imaginário e opera na
produção de imagens e de ideais sociais. Por fim, a pessoa está no registro do real e
é aquela nomeada como pai, segundo as leis sociais vigentes. Embora as três
dimensões mencionadas definam o campo da paternidade, segundo Hurstel
(1999a), é a função seu determinante. A autora complementa seu raciocínio
postulando que, no campo social, a função paterna se inscreve, predominantemente,
no registro das montagens jurídicas e, no campo da subjetividade, através das
montagens familiares.
De acordo com Lebrun (2004), do ponto de vista da realidade psíquica, a
função paterna precisa de, pelo menos, dois elementos para se efetivar. Necessita
112
tanto do pai simbólico, quanto do pai real, sendo o primeiro relacionado ao exercício
da função, e o segundo, ao desempenho de papéis:
Para além da palavra da mulher, Lebrun (2004) acredita ser importante que o
social ratifique a função paterna e que o Estado valide o lugar do pai e, na falta
deste, se posicione como o terceiro interventor para salvar a criança da propensão
incestuosa da mãe. Esse entendimento faz recordar os ensinamentos de Dolto
(2003), expressos em sua obra “Quando os pais se separam”, ao afirmar que não é
função do juiz e dos especialistas garantir que a criança seja feliz, mas sim
possibilitar que ela possa dar continuidade à sua dinâmica estrutural. Ora, é cabível
que o Estado opere com os elementos simbólicos em jogo, representando o terceiro
interventor, visando instaurar a função paterna e não reduzi-la ao exercício de
papéis desempenhados por homens e mulheres em sua prática de cuidados com os
filhos.
Hurstel (1999) vale-se de Lacan para explicar que a presença do pai, no nível
da realidade, não garante a emergência de sua função simbólica, uma vez que a
base dessa última é subjetiva e está relacionada com a fala e a linguagem. Assim
sendo, ela explica que são outros os mecanismos que operam para possibilitar o
lugar simbólico do pai que, sem dúvida, depende de autorização da mãe para que se
efetive. “[...] é a autoridade da palavra do pai que é operante. Primeira via: no que é
reconhecida pela mãe; segunda via: no que é assumida pelo pai.” (HURSTEL, 1999,
p. 173). É necessário que o pai faça uso dessa função, outorgada pela mãe, de falar
aos filhos, transmitindo-lhes seus enunciados. Entende-se, pois, que a função
paterna se faz pelas duas vias: do pai e da mãe. O Direito, por sua vez, pode ser o
garantidor dessa transmissão genealógica, atuando como mediador da palavra
enunciada pelos pais.
Todavia, como o Direito intervém nos novos arranjos familiares frente às
novas demandas do homem pós-moderno guiadas pela lógica do consumo? A
113
Diante desse “novo” Direito, de que maneira autores como Lebrun (2004),
Roudinesco (2003) e Hurstel (1999), entre outros citados, explicam o declínio da
função paterna na contemporaneidade? Quais as balizas norteiam a compreensão
da paternidade no século XXI?
Hurstel (1999) analisa as implicações de mudanças na legislação francesa e
sua significação na esfera do psiquismo, no que tange à demarcação do lugar do
pai. Ela comenta que as alterações introduzidas pela lei de 17 de julho de 1970, no
Código Civil francês, reposicionaram cada membro da família e substituíram o
115
conceito de autoridade paterna por autoridade parental, tendo por efeito incluir as
mães nesse enunciado legal. Assim, a representação do pai se aproximou daquilo
que as mães já exerciam e foi se redefinindo à semelhança do modelo materno.
Com efeito, ampliou-se a autoridade das mães sobre os filhos e o maior controle
sobre a paternidade foi atribuído a elas, cuja palavra conquistou status de verdade
para nomear quem é o pai. Para a autora, essa inovação no campo da legalidade,
seguida de outras, aponta para a necessidade de criação de um novo espaço
paterno, para que o encontro da criança com a função simbólica do pai aconteça,
sem ameaça de um poderio exercido, desmedidamente, pelas mães.
No contexto de ruptura da relação conjugal dos pais e da disputa de guarda
dos filhos, Hurstel (1999) alerta para o risco de esfacelamento da dimensão real e
simbólica do pai, uma vez que a autoridade parental, estendida às mães em
substituição à autoridade paterna, pode transmitir a ideia de que os filhos pertencem
somente a elas.
Partindo da mesma perspectiva, Lebrun (2004) afirma que, na
contemporaneidade, vive-se o problema de declínio da identidade do pai e a invasão
do poder das mães, o que desperta para o seguinte questionamento: “Vivemos num
mundo sem pais? Ou num mundo sem Pai?” (LEBRUN, 2004, p. 17). Para o autor, a
introdução do conceito de autoridade parental no lugar de autoridade paterna
privilegiou as mães e influenciou o declínio da função paterna. Como consequência,
o autor menciona a confusão entre o registro real e o simbólico, levando a criança a
crer que pai e genitor são similares e que não há incerteza relativa à paternidade,
atribuindo sua garantia à dimensão biológica. Assim, a paternidade ficou reduzida ao
critério biológico, e sua dimensão simbólica foi esvaziada. A esse respeito, o autor
adverte que é preciso que o pai esteja ali, não estando ali demais e fazendo
contrapeso à mãe, sendo o outro da relação e se diferenciando dessa. “O pai tem,
portanto, o encargo de fornecer à criança o que lhe permite pôr obstáculo à
devoração pela mãe...” (LEBRUN, 2004, p. 33). Essa incerteza, que diferencia os
pais das mães e contribui para a estruturação da realidade psíquica da criança,
constitui-se numa alteridade necessária.
Julian (2000), por seu turno, acentua que a disjunção entre o privado e o
público repercute na maneira como a sociedade moderna concebe a paternidade e
ela explica, em parte, como ocorre o declínio da imagem social do pai. Para o autor,
por um lado, é na esfera do privado que o conjugal se constitui e, por isso, mantém-
116
A lei do bem e a lei do dever por certo transmitem muito à geração seguinte.
Mas esta transmissão não basta nunca se mascarar a historicidade inteira –
de A a Z – dos acontecimentos que tiveram por consequência o nascimento
de um novo ser humano. Estes acontecimentos dão lugar à sexualidade e
ao encontro de dois desejos; eles não podem, portanto, reduzir-se nem ao
discurso jurídico sobre a parentalidade legal, nem ao discurso médico sobre
a parentalidade dita “biológica”. (JULIAN, 2000, p. 57).
47
Souza e Fontella (2016), na tradução realizada da obra de Gérard Neyrand, sociólogo e psicólogo
francês, estudioso da parentalidade, apresentam a seguinte definição do termo dada pelo autor: “A
parentalidade é o nome dado a uma política de gestão de populações é, em seguida, o termo
empregado para designar a construção social e psíquica da relação entre pais e filhos, insistindo
sobre seu caráter dinâmico e em constante mudança, de uma situação familiar à outra, de uma
sociedade à outra e de uma época à outra ...” (SOUZA; FONTELLA, 2016, p. 117).
117
48
Os termos judicialização e judiciarização são utilizados pelos autores pesquisados como
equivalentes, significando o processo de ampliação do acesso ao sistema judiciário e à
desvalorização de outras formas de resolução dos conflitos (RIFIOTIS, 2004). A autora desta tese
119
adotará, preferencialmente, o termo judicialização quando tiver que se reportar ao emprego dessa
palavra.
120
49
Ver Brito (2014); Rifiotis (2014).
121
4 TRAJETÓRIA METODOLÓGICA
50
Palestra proferida pela Desembargadora responsável pela COMSIV – Coordenadoria da Mulher
em Situação de Violência Doméstica e Familiar – TJMG, no dia 30 de junho de 2016, no IV
Congresso IBDFAM/MG – O direito das famílias e das sucessões e o novo Processo Civil, 2016.
131
51
Portal Transparência. TJ em Números.
133
participantes demandou ser entrevistado no seu local de trabalho, e seu pedido foi
prontamente atendido. Assim, a pesquisadora se deslocou até o local no horário
agendado, tendo sido recebida em uma sala reservada, em condições adequadas
ao sigilo.
As entrevistas individuais com os sete participantes foram marcadas para dias
e horários diferentes, em conformidade com a disponibilidade de cada um. No início
de cada entrevista realizou-se o acolhimento visando estabelecer uma relação
empática e proporcionar ao entrevistado um ambiente seguro. Em seguida, foram
dadas explicações a respeito do objetivo principal da pesquisa, da sua não
vinculação com o processo judicial a que o sujeito estava respondendo na justiça, do
sigilo das informações e da forma como os dados obtidos seriam divulgados. Lido o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e, depois de assinado em duas vias,
uma delas foi entregue ao entrevistado.
As respostas dos participantes foram registradas no momento da entrevista,
mediante o uso de papel e caneta, considerando ser essa a forma de registro em
que a pesquisadora se sente mais à vontade para utilizar. Além disso, por se tratar
de homens acusados de praticar a violência doméstica contra a mulher e
respondendo a processo criminal, o uso de gravador poderia causar medo,
ansiedade e resistência. Outras anotações foram complementadas, no diário de
campo, depois do término do encontro. Realizada a entrevista com cada
participante, que teve a duração aproximada de duas horas, ela foi encerrada
segundo o critério de saturação do assunto.
singular vivida por cada um dos entrevistados, sem perder de vista o objetivo da
pesquisa.
No decorrer das entrevistas, alguns participantes se revelaram mais emotivos,
com manifestação de choro, dizendo-se perplexos e desnorteados com os efeitos da
Lei Maria da Penha no relacionamento com os filhos. Outros expuseram sentimento
de raiva e revolta, não só em relação à mulher, mas principalmente em relação à
justiça, por se sentirem lesados mediante a imposição das medidas protetivas sem a
apuração dos fatos. De modo geral, os sete entrevistados demonstraram atitude
empática e colaborativa com a pesquisadora, dispondo-se a participar de novas
entrevistas, caso fosse necessário a complementação das informações.
De acordo com Alencar (2004), a análise dos dados deve ser realizada após
cada etapa do trabalho de campo. O autor explica que esse procedimento consiste
na checagem de todo material coletado para permitir a orientação e a realização da
etapa seguinte da pesquisa. Essa análise parcial das informações (trabalho de
campo-análise-trabalho de campo-análise e assim por diante) indica o caráter
interativo da pesquisa qualitativa e pode auxiliar na identificação de novas situações
a serem observadas e das fontes secundárias a serem consultadas novamente,
caso seja necessário.
Bardin (2011) propõe, como ferramenta para auxiliar nessa fase da pesquisa,
a análise de conteúdo, sugerindo que esse método seja organizado em três etapas,
iniciando-se pela pré-análise, seguida da exploração do material e, por fim, pelo
tratamento dos resultados por meio da inferência e da interpretação. Neste estudo, a
análise e a interpretação das informações colhidas nas entrevistas foram feitas
segundo o método proposto por Bardin (2011).
A primeira etapa de pré-análise consistiu na checagem de todo o material
colhido nas entrevistas, com o objetivo de organização em formato de relatos e
posterior digitação, para facilitar o manuseio do material. Nessa etapa, decidiu-se
incluir a entrevista-piloto junto ao material a ser analisado, tendo em vista que não
houve alterações em seu formato e manejo.
138
5 RESULTADOS
52
Nomes fictícios.
142
relação aos filhos. Quando das entrevistas, todos possuíam processos ativos na
Vara de Família. A queixa dos entrevistados, pais de filhos na faixa etária da
adolescência, além de se referir ao afastamento, abarcava a perda de autoridade.
Na visão deles, os filhos, ora se identificavam com o discurso da mãe, ora
aproveitavam de seu distanciamento para usufruírem de uma rotina com
afrouxamento das regras e, por consequência, com maior liberdade. Alguns dos
entrevistados relataram que perderam o contato com os filhos desde que foram
aplicadas as medidas protetivas de afastamento e proibição de aproximação em
relação à ofendida; outros, mesmo com as dificuldades impostas pelas medidas
protetivas, conseguiam manter contato com os filhos nos dias estipulados para as
visitas.
Cabe lembrar que a pesquisa denominada “Separação, divórcio e guarda de
filhos”, coordenada por Brito (2008), no Rio de Janeiro, entre os anos de 1999 a
2002, apontou uma série de dificuldades dos participantes para administrarem os
papéis parentais após o rompimento da conjugalidade. Nos anos posteriores, a
mesma autora deu continuidade ao estudo – cujo tema investigado foi “Rompimento
conjugal e Parentalidade” (2008) – desvelando alguns aspectos da experiência
daqueles que vivenciam o rompimento conjugal, numa relação em que existem
filhos. O grupo de pessoas entrevistadas demonstrou que a extinção da
conjugalidade não fez cessar os conflitos e que estes repercutiram na convivência
com os filhos. Constatou-se, com base nos resultados que
“Eu fiquei com a guarda do meu filho quando ocorreu a separação porque a
minha ex-mulher achou melhor assim.” (Francisco)
entre pai e filho foi consequência de desacordos entre Jorge e sua ex-namorada em
relação aos bens e à pensão alimentícia, fato que gerou desdobramentos, como a
acusação de crime de ameaça feita por ela. Não havia elementos desfavoráveis
relativos ao tratamento que ele dispensava à criança.
Miranda Júnior (2010) discorreu sobre a questão financeira nas relações
conjugais discutidas nos tribunais. O autor afirma que, em termos gerais, o dinheiro
tem valor de troca e está emaranhado nas demandas de amor. Miranda Junior
(2010, p. 254) acentua que “o dinheiro organiza as relações e, nesse sentido,
interfere fortemente na montagem de muitas cenas jurídicas.”
Madaleno (2003), em seu artigo denominado “O débito e o créditoconjugal”,
abordou as mudanças sociais que elevaram a mulher ao patamar de igualdade com
os homens e o reflexo dessas transformações nas relações conjugais. Segundo o
autor, não cabe mais à mulher arcar com o débito de uma relação que não deu
certo, enquanto o homem contabiliza os créditos conjugais. Contudo, há de se
acrescentar que a condição de igualdade conquistada pela mulher pressupõe que o
homem também não carrega a obrigação de ser o provedor único da prole, nas
situações em que ela também se apresenta apta para auferir renda e contribuir para
o sustento de si mesma e dos filhos.
Mateus afirmou que pediu o divórcio e, desde então, começaram as
desavenças em relação à partilha dos bens. Nesse contexto, surgiu a denúncia de
violência doméstica praticada contra a ex-mulher, e, por isso, foram aplicadas as
medidas protetivas, determinando seu afastamento de casa e proibindo sua
aproximação da ofendida e dos familiares, e o impedimento de frequentação de
determinados locais. Em seguida, Mateus disse que começou a enfrentar problemas
para ver o filho.
“Minha ex utiliza das medidas protetivas para eu não ver meu filho.”
(Mateus)
vontade da ex-mulher de obter vantagem financeira com a separação fez com que
ela buscasse uma saída na justiça criminal. Para o entrevistado, as acusações na
Vara Criminal devem ser devidamente apuradas antes de gerar efeitos de conteúdo
desastroso que atingem outros membros da família. A expectativa do entrevistado
em demonstrar que não havia sentimentos de afeto em relação à ex-esposa fez com
que, em algum momento da entrevista, enaltecesse a importância das medidas para
sua vida.
“A medida protetiva foi boa em certo ponto porque tirou dúvidas de que
ainda gosto dela.” (Mateus).
Depreende-se, pelos relatos de Mateus, que a certeza do fim do amor não foi
desvelada com o divórcio, mas necessitou da instância criminal para se confirmar.
Da mulher, nada se ouviu, sabe-se apenas que, até a data da entrevista, os
processos cíveis e criminal estavam ativos. Embora o divórcio tenha descruzado os
caminhos da conjugalidade colocando o ex-casal em linhas paralelas, o filho
permaneceu entre um e outro. Ao que tudo indica, as medidas protetivas lançaram o
adolescente para o interior do conflito dos pais entrecortado pela queixa de violência
conjugal.
Gustavo foi acusado pela ex-namorada, com quem tem uma filha, de praticar
violência física e psicológica contra ela. Após a acusação, ele disse que a
convivência paterna ficou prejudicada, alegando que a ex-namorada se valeu das
medidas protetivas decorrentes da Lei Maria da Penha para conseguir seu
afastamento. Foi solicitada pela demandante a extensão das medidas para a
criança, porém sem êxito. Para ele, bastaram as medidas aplicadas em favor da
mulher para que sua relação com a filha ficasse prejudicada, uma vez que o
processo teve início quando a criança contava com dois anos de idade e dependia
integralmente da mãe para viabilizar seu contato com o pai.
De acordo com o entrevistado, os conflitos com a ex começaram quando ela
ainda estava grávida e não aceitou o término do relacionamento. Ele relatou que,
depois do nascimento da criança, passou a ser insultado e agredido fisicamente pela
mãe de sua filha por ocasião das visitas paternas. Destacou que a situação foi
agravada após se casar. Gustavo compreendia as medidas protetivas como um
“castigo forjado” pela ex-namorada pelo fato de ele ter colocado um fim no
relacionamento. Em sua avaliação, as decisões do juiz criminal repercutiram
152
“Quando faço queixas sobre alguma situação das minhas filhas, a resposta
é de que estou interessado na ex-mulher.” “Existe justiça quando o pai é
153
“Quando K. quer, ela conversa comigo sobre nossos filhos, quando não
quer, justifica com a Lei Maria da Penha.”(Tadeu).
“As medidas protetivas prejudicaram o contato com meu filho porque perdi a
guarda e não posso ir na residência dele”. “Dependo de favor das pessoas
para pegar meu filho e diminuiu meu tempo com ele”. “Meu filho está
desolado, chora e pede para voltar para minha casa.” “Tinha quatro anos
que ele estava morando comigo.” “M. fez um termo dizendo que eu não
poderia visitar meu filho”. “Isso que M. está fazendo é alienação parental”.
(Francisco).
comentou-se que a recusa do juiz em aplicá-la pouco mudou a realidade, pois houve
afastamento dos filhos da forma pretendida pelas mães.
Paulo foi proibido de ter contato com a filha devido à acusação de estupro de
vulnerável, seguida de aplicação da medida protetiva de suspensão das visitas
paternas. Na entrevista, lamentou que, há mais de um ano, não vinha tendo contato
com a criança. Inconformado com a situação, principalmente porque o processo não
havia sido julgado, ele estava vivendo uma espécie de condenação decorrente da
suspeita alegada pela ex-mulher. Relatou que, quando foi atendido pela equipe
interprofissional da Vara Criminal, participou de um atendimento junto à filha, de
cinco anos de idade, ocasião em que a mesma reagiu com alegria, revelando que o
vínculo filial estava preservado, apesar do período prolongado sem que tivessem
mantido contato. Posteriormente, foi informado pelos profissionais que o atenderam
que a mãe da criança não tinha aprovado seu reencontro com a filha.
“Encontrei minha filha uma vez na justiça e ela festejou quando me viu. A
mãe dela procurou a justiça no dia seguinte e reclamou que foi
desrespeitada porque a psicóloga realizou o encontro sem a autorização
dela.” (Paulo)
“Parei o carro na porta da casa de S. para entregar meu filho, e ela filmou
minha aproximação e colocou a filmagem nos autos.”(Mateus)
156
53
“Na Grécia Antiga, poema dramático constituído de três tragédias sobre o mesmo tema, para
apresentação nos concursos públicos” (AURÉLIO, 2009, p. 1993).
157
diferenciada para se comunicar com o genitor não guardião e incluí-lo nas atividades
rotineiras da instituição.
A título meramente informativo, uma vez que não abrange os casos
circunscritos pela Lei Maria na Penha, menciona-se a Lei 13.058/2014 (BRASIL,
2014), de abrangência federal, que dispõe sobre a Guarda Compartilhada, cujo teor
respalda os pais a terem acesso, em qualquer estabelecimento, público ou privado,
a informações referentes aos filhos, sob pena de multa aplicada a quem negá-las.
Além das situações resguardadas pela Lei de Guarda Compartilhada, cabe
mencionar a existência da Lei Estadual 3.849 de 20 de abril de 2006 (BRASÍLIA,
2006), publicada pelo Distrito Federal, que dispõe sobre a matéria em questão,
determinando que as instituições de Ensino Fundamental e Médio, da rede pública e
privada, garantam equidade no envio de informações escolares aos pais ou
responsáveis, conviventes ou não. A referida Lei, em seu artigo 2º, dá pleno acesso
aos pais ou responsáveis não guardiães ao espaço físico das instituições de ensino,
desde que eles respeitem as normas comuns.
Jorge relatou que ficou 150 dias sem ter contato com o filho, após serem
aplicadas as medidas protetivas decorrentes da Lei 11.340/06, em favor de sua ex-
namorada, mãe da criança em questão. Quando foi autorizado pela justiça a retomar
a convivência com o filho, teve que contratar uma pessoa para buscá-lo em casa e
devolvê-lo à mãe. Comentou que sua relação paterno-filial ficou completamente
comprometida, pontuando que os conflitos conjugais prejudicaram essa relação,
além de afetarem o comportamento da criança na escola.
Conforme exposto por Cardoso (2008) com base em seus estudos, observa-
se que, por um lado, os pais nem sempre comunicam à escola que estão em
processo de separação e, por outro, os filhos começam a apresentar mudanças de
comportamento evidenciando que as coisas não estão bem. Nesse caso, os
profissionais, entrevistados na pesquisa da referida autora, assinalaram a
importância de uma boa comunicação dos pais com a escola, reconhecendo as
dificuldades enfrentadas pela família frente ao rompimento conjugal.
159
Mateus relatou que sua mãe, com idade avançada, foi surpreendida com a
chegada de um oficial judiciário em sua casa para entregar a intimação, tachando-o
de agressor, em vez de se referir ao mesmo pelo nome.
capacidade de enxergar o que pode estar por trás da denúncia. Novamente Garland
(2008) contribui com a discussão, ao asseverar que os interesses pela vítima são
expandidos em contraponto a um descaso absoluto com aquele dado como
criminoso.
“Fui marginalizado pelas minhas filhas, vizinhança.” “Teve uma escola que
tentou me impedir de ver minha filha em função da medida protetiva
aplicada em relação a minha ex-mulher.”(Tadeu).
“Na audiência para decidir a guarda do meu filho, fui tratado pelo juiz como
marginal”. “Ele me disse: „Você tem medida protetiva, hein?!‟” “Depois fui
maltratado na delegacia quando fui buscar o BO” (Francisco).
54
Grifo do autor.
163
Não está em pauta, nesse estudo, analisar o que pensam os juízes que
aplicam as leis, mas há que se concordar que a mídia desempenha um papel de
destaque na produção do Estado punitivo. Para Nascimento (2008, p. 28), “[...] a
mídia é hoje o elemento que mais alavanca o poder punitivo, através da
disseminação maciça do discurso único segundo o qual todos os conflitos sociais
devem ser resolvidos pelo sistema penal”. Dessa forma, ele expõe que os interesses
das vítimas se vinculam ao interesse público, tornando-se inconciliáveis com
possíveis direitos e garantias do acusado.
Zaffaroni (2013) discorreu sobre a influência da mídia na produção da vítima e
do criminoso e atribuiu à criminologia midiática a “criação da realidade através de
informação, subinformação e desinformação em convergência com preconceitos e
crenças, baseadas em uma etiologia criminal simplista, assentada na causalidade
mágica”.55 (ZAFFARONI, 2013, p. 194). Essa realidade promovida pela criminologia
midiática, segundo o autor, separa homens do bem da massa de criminosos,
valendo-se, para tanto, de estereótipos. Consequentemente, surge a necessidade
55
Grifo do autor.
164
“Não tive mais acesso ao meu apartamento porque Z. trocou as chaves. Ela
se mudou de lá, alegando que o vizinho colocava minha filha para falar
comigo no telefone e deixou a casa fechada. Estou morando de favor na
56
Ao final do trabalho de campo, a pesquisadora teve conhecimento de que o processo de Rodrigo
havia sido arquivado sem condenação.
167
Rodrigo explanou que esteve na Delegacia de Mulheres por mais de uma vez
e que, em nenhuma delas, foi ouvido pelos profissionais. Mostrou-se insatisfeito
perante a maneira como foi tratado e inconformado com a aplicação da Lei Maria da
Penha, mencionando que não lhe foi dada a oportunidade de expor sua versão dos
fatos. Lamentou que as filhas não tivessem sido atendidas por equipe
interprofissional no judiciário, mesmo com tantas complicações evidenciadas na
relação paterno-filial depois de aplicadas as medidas protetivas.
Gustavo lembrou que, em visita à filha, teve um desentendimento com a ex-
namorada. Foi conduzido à Delegacia de Polícia na viatura, sendo tratado como réu,
mesmo estando com ferimentos evidentes no corpo. No local, não pôde prestar seu
depoimento, e apenas a mulher foi ouvida.
O entrevistado disse que já havia feito três boletins de ocorrência contra a ex-
namorada, por agressão ocorrida nas ocasiões em que ia buscar a filha na casa
dela. Segundo informou, os boletins ficaram parados na delegacia aguardando
denúncia e estavam quase prescrevendo. Gustavo manifestou sua indignação com
as instituições de justiça, revelando-se completamente descrente com o trabalho dos
operadores de direito no manejo da Lei Maria da Penha, reclamando da falta de
equidade no tratamento recebido.
alegou ter perdido a esperança na justiça, queixando-se por não ter sido ouvido pelo
delegado, pelo juiz, entre outros operadores do direito.
“Se o juiz tem uma suspeita, ele arrebenta para depois ver.” “Criaram um
caminho das pedras para resolver a situação.” (Mateus).
CONCLUSÃO
57
Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha e Lei 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente.
176
nas políticas criminais, fazendo pressupor que o aumento da punição para quem
pratica crimes irá resguardar os interesses das vítimas. Andrade (2012) concebe a
política criminal como uma metodologia de cura, que visa, por meio do diagnóstico,
controlar, regular e punir a população flagrada pelo sistema penal. Nascimento
(2008) comenta que o interesse pelas vítimas cresce no contexto das políticas
criminais, sendo comum às iniciativas para homenageá-las com o nome das leis. A
ausência de políticas sociais, segundo Wacquant (2005), explica o investimento do
Estado em segurança criminal, fato que, para Neri (2010), aumenta o controle social.
Decorre daí o envolvimento da comunidade na produção da denúncia e no
gerenciamento do risco (MAZZURANA, 2010).
As medidas protetivas de urgência, previstas na Lei Maria da Penha,
conforme visto, possuem o condão de proteger a mulher, afastando o agressor de
seu convívio. A suspensão ou restrição das visitas paternas também se configura
como medida protetiva aplicada, seja com o intuito de conter a suposta violência
praticada contra os filhos, seja para evitar que eles fiquem expostos à violência
conjugal dos pais. Na hipótese da ausência de estudo prévio da relação do pai com
os filhos, realizado por equipe inter/multidisciplinar ou de provas que evidenciem
risco na relação dos filhos com o pai, restaram dúvidas sobre os critérios adotados
pelo juiz no momento de aplicar a medida. Sabe-se, apenas, que as medidas
protetivas de urgência existem e são amplamente empregadas não somente em
nome da proteção de mulheres adultas, como também de crianças e adolescentes
do sexo feminino.
Conforme exposto nesta tese, as crianças do sexo feminino, supostamente
vítimas de violência na esfera doméstica e familiar, são comumente atendidas nas
Varas Especializadas de Violência Doméstica e Familiar, enquanto os meninos
permanecem sendo atendidos nas Varas da Infância e da Juventude, em
conformidade com o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990). Supõe-
se que a prerrogativa do artigo 5º, da Lei 11.340/2006: “Para os efeitos desta Lei,
configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão
baseada no gênero58 que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico e dano moral ou patrimonial”, seja estendida para todas as situações que
envolvem a mulher, mesmo não sendo possível identificar o conflito de gênero que
180
58
Grifo meu.
181
59
Expressão cunhada pela autora dando uma interpretação figurativa para o excesso de litigância no
Judiciário.
182
de suposta violência conjugal, espera-se que a justiça saiba operar com seus
dispositivos, diferenciando a parentalidade da conjugalidade, não reduzindo a
paternidade ao desejo da mulher de que o pai exista ou não na vida de um filho.
As narrativas analisadas demonstraram que a emergência de soluções
instantâneas e simplistas para problemas complexos (BRITO, 2012) e
historicamente enraizados nas montagens sociais (COSTA, 2006; FIGUEIRA, 1987;
RAMIRES, 2014) não garantem à eficácia das políticas públicas implementadas sob
fundamento na Lei Maria da Penha. A adoção de uma política judiciária criminal,
pautada na criminalização do suposto culpado e na proteção da suposta vítima, não
contribui para o aprofundamento do debate a respeito da violência no campo
conjugal, uma vez que esvazia a dimensão subjetiva dos envolvidos, reduzindo a
discussão ao limite superficial da vítima e do culpado.
Observou-se que a política de enfrentamento à violência contra a mulher no
Brasil foca-se no discurso das vítimas, ao passo que oprime a fala dos acusados. Os
motivos que unem o casal e localizam-se subjacentes à queixa, dificultando a
manutenção ou o rompimento do vínculo de conjugalidade são minimamente
explorados e, por conseguinte, quase não se intervém sobre eles. A própria vontade
das mulheres é descartada quando ela desiste da denúncia por não desejar o
tratamento penal para seu caso. Nessas circunstâncias, a denúncia é levada adiante
pela justiça, passando a ser um problema do Estado, anulando-se os elementos
subjetivos que levam a denunciante a desistir da ação. A existência de pesquisas,
ainda que escassas, revela que a denúncia de violência por parte da mulher tem o
intuito de fazer cessá-la. Entretanto, isso não quer dizer que seja ao custo da
penalização do homem com quem ela possui uma relação de afeto. (MEDRADO,
2008; MEDRADO; LEMOS; BRASILINO, 2011; MELLO, 2010).
Ao final deste estudo, concluiu-se pela importância da inclusão dos homens
nas políticas de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher,
investindo-se na criação de mais espaços de acolhimento e conversação para que
eles possam falar a respeito de sua condição frente às questões de gênero, à
construção das masculinidades, à violência nas relações familiares, à conjugalidade
e à paternidade. Embora os grupos com homens já existam, as pesquisas
consultadas a respeito desse assunto apontaram os desafios dessa modalidade de
intervenção no contexto da violência de gênero, revelando a importância de se
produzir metodologias que explorem o viés relacional e não reproduzam uma visão
184
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do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o
feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1o da Lei
no 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes
hediondos. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 10 mar. 2015.
Seção 1. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/
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ZEHR, H. Justiça Restaurativa: teoria e prática. Trad. Tônia VanAcke. São Paulo:
Palas Athena Editora, 2008.
203
ANEXO
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006.
(Vide ADI nº 4427)
Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do
§ 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o
Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.
TÍTULO I
DISPOSIÇÕES PRELIMINARES
Art. 1o Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar
contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros
tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a
criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece
medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e
familiar.
Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda,
cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem
violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e
social.
204
Art. 3o Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à
vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à
justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e
à convivência familiar e comunitária.
§ 1o O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das
mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 2o Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o
efetivo exercício dos direitos enunciados no caput.
Art. 4o Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina
e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica
e familiar.
TÍTULO II
DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER
CAPÍTULO I
DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher
qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico,
sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: (Vide Lei complementar nº 150, de 2015)
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente
de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são
ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade
expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com
a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação
sexual.
Art. 6o A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de
violação dos direitos humanos.
205
CAPÍTULO II
DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR
CONTRA A MULHER
Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde
corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional
e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou
que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante
ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante,
perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito
de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à
autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a
manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça,
coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua
sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao
matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno
ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção,
subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos
pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a
satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou
injúria.
TÍTULO III
DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR
CAPÍTULO I
DAS MEDIDAS INTEGRADAS DE PREVENÇÃO
Art. 8o A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-
se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes:
I - a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria
Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e
habitação;
206
III - o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e
da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a
violência doméstica e familiar, de acordo com o estabelecido no inciso III do art. 1o, no
inciso IV do art. 3o e no inciso IV do art. 221 da Constituição Federal;
IV - a implementação de atendimento policial especializado para as mulheres, em particular
nas Delegacias de Atendimento à Mulher;
V - a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência
doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral, e
a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres;
VI - a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros instrumentos de
promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre estes e entidades não-
governamentais, tendo por objetivo a implementação de programas de erradicação da
violência doméstica e familiar contra a mulher;
VII - a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo
de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos e às áreas enunciados no inciso I
quanto às questões de gênero e de raça ou etnia;
VIII - a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito
respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia;
IX - o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos
relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da
violência doméstica e familiar contra a mulher.
CAPÍTULO II
DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR
Art. 9o A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada
de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da
Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública,
entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o
caso.
207
CAPÍTULO III
DO ATENDIMENTO PELA AUTORIDADE POLICIAL
Art. 10. Na hipótese da iminência ou da prática de violência doméstica e familiar contra a
mulher, a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência adotará, de imediato, as
providências legais cabíveis.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput deste artigo ao descumprimento de medida
protetiva de urgência deferida.
Art. 11. No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a
autoridade policial deverá, entre outras providências:
I - garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério
Público e ao Poder Judiciário;
II - encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal;
III - fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro,
quando houver risco de vida;
IV - se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do
local da ocorrência ou do domicílio familiar;
V - informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis.
Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro
da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos,
sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:
208
TÍTULO IV
DOS PROCEDIMENTOS
CAPÍTULO I
DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 13. Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes
da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos
Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao
adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta Lei.
Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça
Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito
Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das
causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Parágrafo único. Os atos processuais poderão realizar-se em horário noturno, conforme
dispuserem as normas de organização judiciária.
209
Art. 15. É competente, por opção da ofendida, para os processos cíveis regidos por esta
Lei, o Juizado:
I - do seu domicílio ou de sua residência;
II - do lugar do fato em que se baseou a demanda;
III - do domicílio do agressor.
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata
esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência
especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o
Ministério Público.
Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher,
de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de
pena que implique o pagamento isolado de multa.
CAPÍTULO II
DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA
Seção I
Disposições Gerais
Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48
(quarenta e oito) horas:
I - conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência;
II - determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for
o caso;
III - comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis.
Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a
requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida.
§ 1o As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato,
independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público,
devendo este ser prontamente comunicado.
§ 2o As medidas protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou cumulativamente, e
poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que os
direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados.
210
Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão
preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público
ou mediante representação da autoridade policial.
Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do processo,
verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem
razões que a justifiquem.
Art. 21. A ofendida deverá ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor,
especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão, sem prejuízo da intimação
do advogado constituído ou do defensor público.
Parágrafo único. A ofendida não poderá entregar intimação ou notificação ao agressor.
Seção II
Seção III
Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de
propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes
medidas, entre outras:
I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;
II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação
de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;
III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;
IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos
materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos nos
incisos II e III deste artigo.
212
CAPÍTULO III
DA ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Art. 25. O Ministério Público intervirá, quando não for parte, nas causas cíveis e criminais
decorrentes da violência doméstica e familiar contra a mulher.
Art. 26. Caberá ao Ministério Público, sem prejuízo de outras atribuições, nos casos de
violência doméstica e familiar contra a mulher, quando necessário:
I - requisitar força policial e serviços públicos de saúde, de educação, de assistência social e
de segurança, entre outros;
II - fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em
situação de violência doméstica e familiar, e adotar, de imediato, as medidas administrativas
ou judiciais cabíveis no tocante a quaisquer irregularidades constatadas;
III - cadastrar os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
CAPÍTULO IV
DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA
Art. 27. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência
doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art.
19 desta Lei.
Art. 28. É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso
aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei,
em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado.
TÍTULO V
DA EQUIPE DE ATENDIMENTO MULTIDISCIPLINAR
Art. 29. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que vierem a ser
criados poderão contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por
profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde.
Art. 30. Compete à equipe de atendimento multidisciplinar, entre outras atribuições que lhe
forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério
Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e
desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas,
213
Art. 31. Quando a complexidade do caso exigir avaliação mais aprofundada, o juiz poderá
determinar a manifestação de profissional especializado, mediante a indicação da equipe de
atendimento multidisciplinar.
Art. 32. O Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária, poderá prever
recursos para a criação e manutenção da equipe de atendimento multidisciplinar, nos
termos da Lei de Diretrizes Orçamentárias.
TÍTULO VI
DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS
Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e
julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher,
observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual
pertinente.
Parágrafo único. Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o
processo e o julgamento das causas referidas no caput.
TÍTULO VII
DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 34. A instituição dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
poderá ser acompanhada pela implantação das curadorias necessárias e do serviço de
assistência judiciária.
Art. 35. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover,
no limite das respectivas competências:
I - centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e respectivos
dependentes em situação de violência doméstica e familiar;
II - casas-abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em situação de
violência doméstica e familiar;
III - delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia
médico-legal especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e
familiar;
IV - programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e familiar;
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Art. 37. A defesa dos interesses e direitos transindividuais previstos nesta Lei poderá ser
exercida, concorrentemente, pelo Ministério Público e por associação de atuação na área,
regularmente constituída há pelo menos um ano, nos termos da legislação civil.
Parágrafo único. O requisito da pré-constituição poderá ser dispensado pelo juiz quando
entender que não há outra entidade com representatividade adequada para o ajuizamento
da demanda coletiva.
Art. 38. As estatísticas sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher serão
incluídas nas bases de dados dos órgãos oficiais do Sistema de Justiça e Segurança a fim
de subsidiar o sistema nacional de dados e informações relativo às mulheres.
Parágrafo único. As Secretarias de Segurança Pública dos Estados e do Distrito Federal
poderão remeter suas informações criminais para a base de dados do Ministério da Justiça.
Art. 40. As obrigações previstas nesta Lei não excluem outras decorrentes dos princípios
por ela adotados.
Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher,
independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de
1995.
Art. 42. O art. 313 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo
Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte inciso IV:
Art. 44. O art. 129 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal),
passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 129. ..................................................
..................................................................
§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou
companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o
agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.
..................................................................
§ 11. Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for
cometido contra pessoa portadora de deficiência.” (NR)
Art. 45. O art. 152 da Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), passa
a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 152. ...................................................
Parágrafo único. Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá
determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e
reeducação.” (NR)
Art. 46. Esta Lei entra em vigor 45 (quarenta e cinco) dias após sua publicação.
Brasília, 7 de agosto de 2006; 185o da Independência e 118o da República.
Mulher
POR #AGORAÉQUESÃOELAS
Por Fernanda Torres*
http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2016/02/22/mulher/
No presente, a mulher ainda apanha, ganha menos do que o homem e fechou um contrato
social impossível de ser cumprido, já que cabe a ela não só cuidar da prole, do lar, se
manter jovem e desejada, como também trabalhar para contribuir para o sustento da casa.
Sobra tempo nenhum para dormir e, muito menos, sonhar com alguma realização que vá
além dos deveres do dia.
Nas camadas mais desassistidas, o fim do casamento indissolúvel produziu milhares de
lares sem pai, onde a avó e a mãe servem de esteio para a estrutura familiar. Na falta de
creches, de escolas, do estado para ampará-las, a tarefa de criar rapazes que não repitam a
violência e o abandono dos pais e meninas que deem um basta na escravidão das mães, é
uma missão que beira o inatingível.
A maternidade interfere na vida da mulher de uma forma mais arraigada do que a
paternidade na do homem. Temos um relógio biológico certeiro, que coincide com nosso
período produtivo, interferindo nas decisões profissionais e pessoais. A fragilidade no
emprego, a dependência dos cônjuges, a falta de liberdade de ir e vir passa pela
incapacidade do feminino de se desapegar das crias. Um homem, seja ele pobre, rico, preto
ou branco, baixo, alto, feio ou bonito, dorme quando está cansado, sai quando deseja e dá
prioridade à própria agenda, sem nenhuma pressão que não a da vontade.
Algumas correntes defendem que essa diferença é cultural, mas eu acho que é biológica,
carnal, imemorial.
Sou pela licença paternidade. É um passo e tanto para que o casal, unido, divida a
responsabilidade dos primeiros meses exaustivos de um bebê. Sou favorável a que toda
fábrica tenha uma creche e tenho gratidão pelas babás que me criaram e que criaram meus
filhos, cumprindo a função da mãe social, que nos tempos da vovó menina era feito pelas
tias, primas, avós e irmãs da casa.
Invejo o companheirismo dos homens, o prazer que eles sentem de estarem juntos e se
divertirem com qualquer bobagem. Homem gosta muito de estar com homem. Não me
incomoda o machismo, confesso, talvez seja uma nostalgia de infância que carrego. A
geração que me criou era formada por machões gloriosos, de Millôr a Miéle, irresistíveis até
nos seus preconceitos.
Um editor alemão recusou publicar meu livro, Fim, dizendo que era machista. Explicaram
que a obra havia sido escrita por uma mulher e ele disse que não importava, que era
machista do mesmo jeito e não iria pegar bem na Alemanha. Está certo o editor, eu sou
latina, não consigo entrar numa sauna com todo mundo pelado e me manter isenta.
Os estupros da passagem de ano na mesma Alemanha advogam em favor do editor avesso
ao machismo. A violência contra a mulher é menor em lugares onde a igualdade entre os
sexos é melhor resolvida. Nos países muçulmanos que visitei, Marrocos, Egito, Malásia,
sempre me incomodou o olhar guloso, reprimido e repressor dos homens.
O Brasil está entre um e outro.
Minha babá era um avião de mulher, uma mulata mineira chamada Irene que causava furor
onde quer que passasse. Eu ia para a escola ouvindo os homens uivando, ganindo,
gemendo, nas obras, nas ruas, enquanto ela seguia orgulhosa. Sempre associei esse
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fenômeno à magia da Irene. O assédio não a diminuía, pelo contrário, era um poder
admirável que ela possuía e que nunca cheguei a experimentar.
Estou certa de que essa é a minha primeira encarnação como mulher.
Apesar do talento para ser mãe, sou menos feminina do que gostaria de ser. Já beirando a
idade em que nos tornamos invisíveis ao peão da obra da esquina, rejeito as campanhas
anti fiu fiu e considero o flerte um estado de graça a ser preservado. É claro que um chefe
que mantém uma subalterna sob pressão constante merece retaliação, mas uma vida de
indiferença, onde todo mundo é neutro, não falo igual, digo neutro, sem xoxota, sem peito,
sem pau, bigode, ah… é uma desgraça.
Tenho admiração pelas mulheres livres, que não conhecem o medo e são plenas na sua
feminilidade. Certa feita, um mulherão me explicou que terminou um casamento sem brigas
e sem sofrimento porque o marido ficou homem demais. Na casa dela, pontuou a morena,
só havia lugar para um homem, e esse homem era ela.
Nunca fui mulher o suficiente para chegar a ser homem.
A vitimização do discurso feminista me irrita mais do que o machismo. Fora as questões
práticas e sociais, muitas vezes, a dependência, a aceitação e a sujeição da mulher partem
dela mesma. Reclamar do homem é inútil. Só a mulher tem o poder de se livrar das próprias
amarras, para se tornar mais mulher do que jamais pensou ser.
Um homem fêmea.