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Rio de Janeiro
2011
Luiz Daniel Jatobá França
Rio de Janeiro
2011
Luiz Daniel Jatobá França
Banca Examinadora:
Prof.ª Dra. Maria Regina Soares de Lima (Orientadora)
Centro de Ciências Sociais - UERJ
Rio de Janeiro
2011
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho à minha mãe, a Professora Ana Lucia Pedreira Jatobá
AGRADECIMENTOS
A primeira pessoa a quem devo meus agradecimentos é a Professora Maria
Regina Soares de Lima. Desde os anos de Mestrado, sua produção intelectual já
era uma referência para mim. A vontade de ter sua orientação no Doutorado foi a
razão principal para eu escolher o lugar onde decidi continuar minha formação
iniciada na UnB. Coincidentemente, fui recebido pela minha futura orientadora
num dia 16 de setembro, data marcada para a defesa, quando ela generosamente
aceitou orientar-me, mesmo sem me conhecer previamente, e, durante todos
esses anos, pude contar com o seu apoio, críticas e, acima de tudo, muita
compreensão. Sem a orientação e a amizade da nossa querida Regina nada disso
teria sido possível. Agradeço-lhe, de coração aberto, por tudo.
À Professora Mônica Hirst, agradeço por me aceitar para o estágio sanduíche
na Universidad Torcuato Di Tella e pelas importantes orientações. Seus trabalhos
também são uma referência na área e fiquei muito honrado com a aceitação e
hospitalidade. Senti-me em casa em Buenos Aires e, especialmente, nas
instalações da universidade. Sua excelente biblioteca e um ambiente acolhedor
convidavam-me a passar boa parte do tempo por lá. Estendo meus
agradecimentos aos Professores Roberto Russell e Javier Zelasnik, com quem
tive a oportunidade de dialogar durante as aulas ou fora de sala.
No Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP, ex-IUPERJ), devo meus
agradecimentos primeiramente aos professores da instituição, heróis da difícil
transição ocorrida nos últimos anos, e que compartilharam conosco seus
conhecimentos ou companheirismo, muitas vezes as duas coisas. Gostaria de
mencionar, em particular, aqueles com quem tive mais contato, expressando
assim minha gratidão para com os Professores Renato Lessa, Fabiano Santos,
João Feres Jr. e Marcelo Jasmim. Adiciono à lista o nome do Professor Visitante
Jens Borchet, que, durante o período em que esteve conosco no Rio, ajudou-me
muito mais do que pode imaginar na preparação do projeto para a qualificação.
Por meio das funcionárias Lia, Valéria, Caroline e Simone, agradeço a todos que
tornam o trabalho dos alunos e professores da casa possível e mais agradável.
Tenho muito a agradecer aos meus colegas da Universidade de Brasília
(UnB), onde encontrei um ambiente favorável de harmonia e troca de ideias nos
últimos anos. Nos momentos de mais dificuldade para concluir o texto, foram
inestimáveis os incentivos dos Professores Eiiti Sato, Cristina Yumie, Antônio
Carlos Lessa, Alcides Vaz, Norma Breda e Maria Helena de Castro Santos. Não
poderia deixar de agradecer as facilidades propiciadas e a forte amizade dos
funcionários Vanderlei Valverde, Odalva de Araújo Costa Otávio, Celi Oliveira e
Anderson Xavier. A cada um de vocês, professores e funcionários do Instituto de
Relações Internacionais (iREL), agradeço profundamente o apoio recebido.
Preciso agradecer também a dois colegas, com quem trabalhei no Centro
Universitário de Brasília (UniCEUB) e que me encorajaram a também seguir para
o Doutorado, no momento em que faziam o mesmo, que são os Professores
Tarciso Dal Maso Jardim, amigo antigo e eterna fonte de inspiração, e Renato
Zerbini.
Desde que voltei para Brasília, também contei com o apoio, direto ou indireto,
de muitos alunos e monitores. Gostaria de lhes agradecer nominalmente, pois
muitos rostos e atos concretos vêm à minha mente neste momento. Entretanto,
para evitar que a lista ocupasse muitas folhas, deixo o meu reconhecimento
individualizado aos alunos da pós-graduação que me auxiliaram na atividade
docente (Matías Franchini, Janira Borja, Tchella Maso e Luiz Felipe Doles) e
agradeço aos alunos da graduação coletivamente, por meio dos estranhos nomes
das turmas que mais acompanhei (Relniken, Relscore e Rel69) ? a cada um de
vocês e aos alunos mais recentes, agradecerei pessoalmente quando tiver a
oportunidade.
Neste último ano, tive o privilégio de compartilhar a atividade docente com a
Professora Amena Yassine, no Instituto Rio Branco (IrBr) do Ministério das
Relações Exteriores (MRE). Dividir as aulas foi uma experiência inédita e
enriquecedora. Isto sem contar a amizade desenvolvida entre nós e a
oportunidade de discutir algumas ideias contidas no trabalho enquanto
desenvolvia a versão final da Tese.
Durante todo o tempo, precisei contar com o apoio da minha família. Os mais
próximos sempre foram minha mãe Ana Lucia (a quem dedico este trabalho) e
meus irmãos Luiz Carlos e Danielli. Além de todo o apoio e ideias, minha irmã
teve a paciência de ler cada linha do texto e, com seu brilhantismo intelectual, fez
críticas importantes e correções detalhistas. Tentei de tudo, mas não encontrei
palavras adequadas para agradecer a cada um de vocês três. Só espero poder
retribuir eternamente o amor recebido.
Meus agradecimentos familiares também se dirigem aos primos Antônio
Carlos, Juçara, Vinícius e Vitor, que tantas vezes me receberam em sua casa,
desde antes do processo de seleção para o Doutorado no antigo IUPERJ e
durante todo o curso, no período em que morei fora do Rio, e aos primos André
Luiz, Eliana, Thiago e Pablo, que me receberam em momentos especialmente
difíceis e fizeram com que me sentisse em casa durante todo o tempo.
Durante os anos de aulas, pesquisas e, finalmente, de redação, morei em
três cidades: Rio, Buenos Aires e Brasília. Meus amigos foram fundamentais em
cada uma delas. Tenho saudades de muitos de vocês, especialmente de quem
me afastei, seja pelas mudanças de cidade, seja pelo necessário isolamento para
redigir o texto, período que parecia interminável. Quero listar aqueles mais
próximos, que mais contribuíram, em diferentes momentos. Nos primeiros anos,
vivi no Rio: agradeço e guardo boas recordações dos amigos André Luiz Coelho,
Diogo Lyra, Juan Cláudio Epsteyn, Marcelo Coutinho, Iara Leite e Vítor Acselrad.
Depois, vieram os amigos dos tempos em Buenos Aires: agradeço a Augustín e
Esteban Depetris, Pablo Bolaños, Ana Dulce Colados, Gabriel Ferreira, Edgard,
Ana Moreno Catala, Guadalupe Belmonte e Celia Bartolomé. Finalmente, em
Brasília, o retorno à convivência dos antigos amigos Renato de Lima França,
Marcella Souza Cunha, Pedro André dos Santos, Rafael Conti, Vinícius Alex,
Frederico Dias, Antônio Corrêa e Ivanildo Silva. Agradeço a todos vocês, que me
apoiaram com ideias, amizade ou simplesmente com momentos de alegria e
prazer.
Registro o meu agradecimento especial a Raiane Santana, companheira cujo
apoio foi fundamental para que eu conseguisse terminar a redação deste trabalho.
Com paciência e incentivo amoroso, você me ajudou a ter força para seguir
adiante, num esforço que, muitas vezes, parecia não ter fim, e que, não raras
vezes, foi acompanhado de doloridos problemas de saúde e lágrimas. As
incontáveis horas de amizade e convívio foram se convertendo, pouco a pouco,
numa relação cada vez mais forte. Muito obrigado!
Apesar de aparecer antes do trabalho, esta lista de agradecimentos foi a
última parte a ser redigida e, devo dizer, uma das mais difíceis. Levei literalmente
vários dias tentando expressar, de modo mais ou menos objetivo, o quanto devo a
tantas pessoas. Confesso que pensei poder escrever rapidamente e com
brevidade, mas, agora que concluí o texto, eu me dou conta de que a demora em
redigi-lo e a extensão do texto são reflexos do imenso apoio recebido, vindo de
tantas pessoas, em alguns casos com tanta intensidade, que nunca saberei se
pude corresponder satisfatoriamente e que espero, quem sabe, poder retribuir à
altura.
RESUMO
This work focuses on the phenomena of politicization of foreign policy and the
struggle for democratization of its decision-making process, in what refers to the
regional integration policies of Argentine and Brazil, in MERCOSUR and FTAA. The
main objective is to analyze, in first place, the processes of political liberalization and
regime transition occurred in these countries between the late 1970s and the early
1980s, and, secondly, the relation between the incorporation of regionalism in the
respective international insertion strategies and the politicization of foreign policies
since the end of the Cold War. Considering the controversies around the concept of
democracy, this essay discusses the main analytical strategies found in comparative
politics and the three main contemporary theoretical perspectives (realism, pluralism
and deliberativism). The empirical analysis focuses in two processes: the creation of
the MERCOSUR, from its origins to the end of its transition phase (1991-1994), and
the negotiations to the establishment of the FTAA, since the beginning until its
suspension (1994-2005). It is argued that although the incorporation of regionalism
has generated growing domestic politicization of the foreign policy, this result did not
mean advancement towards democratization of decision-making process in these
two specific realms.
INTRODUÇÃO 13
1 POLÍTICA COMPARADA E TEORIA DEMOCRÁTICA: A HEGEMONIA
DA CONCEPÇÃO PROCEDIMENTAL MÍNIMA, A DICOTOMIA
REPRESENTAÇÃO VERSUS PARTICIPAÇÃO E A ABORDAGEM
ANALÍTICA PROPOSTA 22
1.1 Democracia e política comparada: a inesgotável inovação
conceitual e a hegemonia da concepção procedimental mínima 26
1.1.1 A democracia e seus adjetivos nos estudos comparativos 28
1.1.2 Limitações metodológicas da adjetivação e da hegemonia da concepção
procedimental mínima 47
1.2 A hegemonia da democracia representativa na teoria democrática e
a dicotomia representação versus participação 55
1.2.1 A hegemonia da democracia representativa na 2ª metade do século XX 59
1.2.2 Os Latin American Studies (estudos latinoamericanos): da teoria da
modernização aos estudos sobre transição e consolidação democrática 67
1.2.3 A crise da democracia representativa, os limites da dicotomia
representação versus participação e o pluralismo teórico contemporâneo 81
2 PERSPECTIVAS TEÓRICAS E SEUS CONCEITOS FUNDAMENTAIS:
REPRESENTAÇÃO, PARTICIPAÇÃO E DELIBERAÇÃO 104
2.1 A perspectiva realista de democracia 111
2.2 A perspectiva pluralista de democracia 129
2.3 A perspectiva deliberativa e suas variações 150
3 PROCESSOS DE DEMOCRATIZAÇÃO E TRAJETÓRIAS POLÍTICAS
DE ARGENTINA E BRASIL 166
3.1 O processo de transição democrática e a formação dos primeiros
governos civis: instituições e organizações políticas, em meio à
crise socioeconômica dos anos 1980 174
3.2 Os governos civis de Raúl Alfonsín e José Sarney e a adoção do
neoliberalismo no início dos anos 90 212
4 AS TRAJETÓRIAS DE INTEGRAÇÃO REGIONAL DE ARGENTINA E
BRASIL: POLITIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO DA POLÍTICA
EXTERNA 244
4.1 A institucionalização do MERCOSUL: da aproximação
Brasil-Argentina à criação do Bloco 251
4.2 A nova fase das políticas de integração: entre as negociações para
a criação da ALCA (1995-2005) e o desafio de aprofundamento
institucional do MERCOSUL 283
5 CONCLUSÃO 335
REFERÊNCIAS 340
13
INTRODUÇÃO
(...) Pertence à natureza da crise que uma decisão esteja pendente, mas ainda não
tenha sido tomada. Também reside em sua natureza que a decisão a ser tomada
permaneça em aberto. Portanto, a insegurança geral de uma situação crítica é
atravessada pela certeza de que, sem que se saiba ao certo quando ou como, o fim
do estado crítico se aproxima. A solução possível permanece incerta, mas o próprio
fim, a transformação das circunstâncias vigentes – ameaçadora, temida ou desejada
–, é certo. A crise invoca a pergunta ao futuro histórico.
Reinhart Koselleck
______________________________________________
1
Em uma formulação bastante próxima à enunciada, esta observação metodológica está presente em um texto
da orientadora deste trabalho e foi um alerta presente na mente do autor mesmo antes de se iniciar esta
pesquisa. Como já se disse na apresentação, a responsabilidade pelo uso do conselho só pode ser daquele
que foi aconselhado (ver Lima, 1992: 77).
14
dando origem a novas tendências intelectuais e tornando esse campo teórico mais
plural nas últimas décadas do século XX; explorar algumas contribuições da teoria
democrática participativa, cujo alcance ajudou a moldar a persistente noção de uma
oposição fundamental entre “representação” e “participação”, recorrente na literatura,
particularmente desde os anos 70, na ciência política; e, por fim, realizar uma
discussão sobre os limites dessa dicotomia e a retomada do interesse pela ideia de
representação política nos debates teóricos mais recentes, reconhecendo ao mesmo
tempo a existência de um maior pluralismo teórico neste princípio de século.
A análise da literatura de política comparada aponta duas tendências gerais,
ambas confluindo para o mesmo ponto, a concepção procedimental mínima de
democracia. Essas tendências são a inesgotável adjetivação do termo democracia e
o predomínio do elitismo democrático. A adjetivação da democracia é o
procedimento metodológico predominante nos estudos dos processos de
democratização recente, sendo que na maioria deles o ponto de partida é a
concepção procedimental e minimalista. A outra tendência reduz igualmente o
espectro das teorias contemporâneas da democracia à hegemonia da concepção
procedimental mínima, como se apenas a perspectiva elitista-realista, que remete a
autores como Max Weber e Joseph Schumpeter, entre outros, pudesse servir de
enquadramento analítico e de fundamento normativo para a democracia nas
complexas sociedades modernas.
É importante notar, todavia, que essas duas tendências são inadequadas
para o estudo de políticas públicas específicas, como é o caso da análise
empreendida neste trabalho. Além dos problemas metodológicos examinados
adiante, o privilégio quase exclusivo da concepção mínima (ou seja, da democracia
representativa liberal de ênfase eleitoralista) produz um silêncio inaceitável da rica
produção acadêmica da teoria democrática contemporânea, a qual foi impulsionada,
em grande medida, pelas críticas aos seus limites normativos. A ideia de “crise da
democracia representativa”, cujas principais interpretações são examinadas adiante,
parece não haver alcançado os estudiosos da democratização recente, pelo menos
os da política comparada. O que se verifica, de fato, é uma apartheid entre o
trabalho empírico realizado pelos comparatistas e as reflexões teóricas
contemporâneas, que ficam restritas ao campo da chamada teoria política normativa,
ou teoria democrática normativa, embora não seja possível nem adequado separar
tão simplesmente a dimensão empírica da dimensão normativa da ciência política,
18
política cotidiana, onde os conceitos são mobilizados para significar aquilo a que se
aspira, aquilo que se combate ou aquilo que se teme. Ao mesmo tempo, as
controvérsias em torno da conceituação da democracia refletem preferências
normativas e epistemológicas. Para aqueles que se dedicam a um estudo
comparativo, a conceituação constitui um desafio de peso. Afinal, para que seja
possível comparar dinâmicas democráticas em sistemas políticos diversos (na
maioria dos estudos, são comparados países diversos, mas também são
consideradas tendências regionais as mais diversas, como no caso dos citados
estudos de área), muitos defendem que é preciso chegar a algum consenso em
termos do que se considera como democracia. Isto ocorre porque as diferentes
definições utilizadas pela literatura possuem implicações analíticas – e normativas,
como já foi dito – estejam os estudiosos conscientes ou não dessas implicações.
Quando se penetra no campo dos estudos de política comparada sobre
democracia e democratização, observam-se algumas características interessantes.
Em primeiro lugar, a existência de uma quantidade impressionante de adjetivações
do termo presentes na literatura. O que significa a permanente agregação de
significados adicionais – ou, conforme a perspectiva, a sua subtração – à ideia de
democracia na passagem do século XX para o atual? É possível identificar uma
estrutura por trás dessas adjetivações? Como isto se relaciona com os debates
teóricos mais gerais sobre o processo de democratização? Trabalha-se aqui com o
pressuposto de que se trata de uma questão ao mesmo tempo intelectual e política a
conceituação da democracia – pois neste campo, como nos demais campos da
ciência política, e também das relações internacionais, é inadequado separar um
conhecimento “empírico” do que seriam as prescrições “normativas”, distinção tão
bem estabelecida quanto questionável. Além disso, o procedimento intelectual de
conceituar a democracia está profundamente imbricado com os discursos teóricos
sobre a democracia. Conceitos de democracia e teorias democráticas caminham
lado a lado, isto é, também não há como separar a ideia de democracia das
linguagens teóricas que buscam compreender os processos democráticos.
Em segundo lugar, parece adequado trabalhar com a hipótese de que existe
uma concepção hegemônica de democracia, a qual se reflete nas práticas e
instituições políticas da maior parte dos países considerados democráticos: a
democracia liberal representativa, também chamada procedimental mínima, entre
outras designações análogas. Mas que, ao mesmo tempo, essa concepção se
24
______________________________________________
2
Posteriormente, no capítulo 2, são exploradas as três perspectivas teóricas que servem de base para a
esquematização de uma abordagem analítica dos processos de democratização das políticas públicas. A
primeira é denominada “perspectiva realista ou elitista”, a segunda, “pluralista ou participativa”, e a terceira,
“democracia deliberativa” – longe de exaurir os novos debates, trata-se de uma seleção entre as mais
difundidas perspectivas democráticas contemporâneas, cujas variações internas e relações recíprocas também
são exploradas na última seção deste primeiro capítulo. A abordagem proposta tem a intenção de fomentar o
debate democrático entre as diferentes perspectivas. Em vez de tratá-las como campos conceituais distintos,
que se opõem entre si, trabalha-se a hipótese de que todas elas precisam lidar com os conceitos centrais de
uma teoria democrática – como representação, participação e deliberação, conceitos centrais a todas elas,
mesmo que tenham significados e, portanto, valores distintos em cada uma delas.
27
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3
No texto original, Sartori utilizou a primeira expressão. No entanto, Collier e Levitsky preferem a expressão que
está entre parênteses e justificam: uma vez que o termo abstrato frequentemente é entendido em contraste
com o termo concreto, este rótulo pode gerar confusão. Na opinião deles, a segunda expressão, escada de
generalidade, expressa mais claramente o significado pretendido pelo primeiro autor.
30
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4
No inglês, overarching concept.
31
vezes mais subtipos do que países sendo analisados” (1996: 3)5. Conforme
observou L. Diamond, naquele mesmo ano, depois de tomar contato com o referido
trabalho: “Alguns desses subtipos nominais meramente designam características
institucionais específicas ou tipos de democracia completa, mas muitos denotam
formas diminuídas de democracia” (1996: 7). No entanto, ainda é preciso voltar às
estratégias que vêm sendo utilizadas como alternativas à metáfora da escada de
Sartori.
Em primeiro lugar, a estratégia de criação de “subtipos diminuídos de
democracia”. São inúmeros os exemplos de autores que, ao elaborar uma definição
de democracia para fins analíticos, identificam atributos específicos ausentes em
determinados casos – evidentemente, nessa estratégia existe uma definição de
democracia tomada como ponto de partida (os autores utilizam a ideia de um
“conceito raiz” [root concept]), da qual é subtraída uma característica (ou mais),
resultando daí o que os autores chamam de subtipo diminuído de democracia: eles
não são democracias plenas em virtude da ausência apontada6. Ao designarem algo
que não democracias plenas, estas adjetivações são menos vulneráveis ao
esticamento conceitual, e ao identificarem atributos faltantes específicos, elas
aumentam a capacidade de diferenciação analítica destes modelos.
A segunda estratégia alternativa empregada pelos estudos comparativos
sobre a democratização na América Latina é tornar mais precisa a definição de
democracia, incluindo atributos definidores adicionais. Com este procedimento,
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5
Esta impressionante contabilidade está registrada na versão de 1996 do artigo, não publicada, pois a versão
publicada no periódico World Politics, em 1997, é uma abreviação do conteúdo que circulara anteriormente na
Universidade da Califórnia em Berkeley.
6
Alguns dos exemplos colhidos pelos autores, que configuram tipos diminutos da chamada definição
procedimental mínima, que será explorada adiante: “democracia limitada”, “democracia machista” ou
“democracia oligárquica”, quando é ausente o sufrágio universal; “democracia controlada”, “democracia
unipartidária de facto”, ou “democracia restritiva”, quando falta plena contestação; “democracia eleitoral”,
“democracia dura”, ou “democracia iliberal”, quando faltam as liberdades civis. Eles também listam exemplos
de subtipos diminuídos relativos a outro conceito raiz, a chamada definição procedimental mínima expandida,
que como se verá adiante adiciona à definição anterior a efetiva capacidade de governar por parte do governo
eleito: “democracia tutelar”, “democracia vigiada”, ou “democracia protegida”, nestes três casos a plena
democracia é restringida pelo poder de facto de outros poderes, em especial as forças armadas. A lista
completa das referências bibliográficas de onde é colhida tal diversidade conceitual é apontada no apêndice da
versão de 1996 do referido texto de Collier e Levitsy, assim como nas múltiplas notas de rodapé da versão
publicada de 1997.
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7
Para ilustrar o uso desta estratégia, os autores utilizam três exemplos. O primeiro corresponde justamente à
chamada definição procedimental mínima expandida de democracia, em que o critério adicionado para
aumentar a precisão do conceito é o “poder efetivo de governar”. O segundo exemplo adiciona a existência de
“algum nível de equidade social”, enquanto o terceiro exemplo o faz com a presença de mecanismos de
controle dos atos do Poder Executivo (no inglês, checks on executive power, parte da chamada horizontal
accountability).
33
comparados. Por outro lado, os autores observam uma diferença com relação à
capacidade de combater o esticamento conceitual: no primeiro caso, isto é, quando
se estabelece um padrão de referência mais exigente, este movimento é irrelevante,
pois não se está preocupado em evitar o erro de se identificar um caso particular
como um regime democrático, embora ele possa não se enquadrar como um Estado
democrático; já no segundo caso, quando se estabelece um padrão de referência
menos exigente, este movimento também serve para evitar o esticamento
conceitual, além de contribuir para a diferenciação, o que se aplica a ambos os
movimentos metodológicos.
Embora se tenha iniciado com estas considerações mais abstratas que
cercam a polissemia do conceito de democracia, o objetivo a seguir é apresentar
certas distinções conceituais que se reputa serem úteis e relevantes para a
discussão do processo de democratização das políticas públicas em geral, gênero
do qual a política externa é considerada uma espécie. Trata-se aqui das principais
referências usadas nos estudos comparativos – como a referida definição
procedimental mínima, em que a democracia é vista como um método de seleção
periódica de governantes via competições eleitorais livres, competitivas e isentas de
fraude massiva, e a levemente modificada definição procedimental mínima
expandida, em que se acrescenta como atributo de um regime democrático a
capacidade real do governo eleito de realizar suas opções de políticas públicas, sem
se submeter a outros poderes.
Antes de seguir, no entanto, algumas palavras sobre a denominada “onda
global de democratização”. Depois, são exploradas as principais definições (ou
marcos de referência) encontradas por Collier e Levitsky nos estudos comparativos
sobre os países da região, e as encontradas em um conjunto de índices analisados
por Münck e Verkuilen (2002). É inegável que desde meados dos anos 70 vem
sendo cada vez maior um número de países considerados democráticos ou em
democratização, ainda que, dependendo de como se define o conceito, como
observou Larry Diamond (1996), em seu presente podia-se contar 117 democracias,
ou podia-se contar 76. O reconhecimento deste fato – algo como uma “onda global”
de conversões democráticas – não implica na adoção de outra crença que é muitas
vezes associada a isso, qual seja, a crença de que este é um processo irremediável
e irreversível. A história não autoriza tais teleologias: pequenos avanços em uma
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direção podem ser e são realmente seguidos, muitas vezes, de grandes recuos em
sentido contrário.
A ideia de uma voga democrática é persistente na ciência política e nas
relações internacionais. Tornou-se corrente, a partir dos anos 90, a ideia de que se
testemunhava uma terceira “onda democrática”, definida por S. Huntington (1991)
como cada momento na história do século XX em que um grupo de transições para
regimes democráticos ocorre em um período de tempo específico e em número
significativamente superior às transições em sentido oposto, isto é, de uma
democracia para outro regime. Especialmente no início daquela década, a sua
expressiva fórmula se tornou praticamente um mantra, reforçado pelo final da Guerra
Fria e o desmantelamento da União Soviética e de outros regimes comunistas no
Leste Europeu, ainda que a onda estudada naquele momento se referisse aos
processos iniciados na própria Europa, no sul mediterrâneo, em meados dos anos
70, e na América do Sul, desde o seu final, mas, sobretudo, na década de 1980.
Convém fazer o registro de seu esquema histórico, já que se tornou tão usual
nos últimos anos do século XX. Seu esquema é o seguinte: houve uma primeira
onda, longa, de democratização (entre 1828 e 1926), influenciada pelas revoluções
americana e francesa, mas cujas primeiras instituições democráticas propriamente
ditas foram um fenômeno do século XIX – neste período, mais de trinta países
passaram por uma transição para a democracia8. Esta primeira onda foi sucedida
por um período de reversão, isto é, transições de democracia para algum regime
não-democrático (entre 1922 e 1942), seja o “retorno a formas tradicionais e
autoritárias de governo, ou então a introdução de novas formas de totalitarismo de
massa” (1994[1991]: 26-27)9.
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8
Os países identificados como parte da primeira onda democrática são os seguintes: Alemanha, Argentina,
Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Chile, Colômbia, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Estônia, Finlândia,
França, Grécia, Holanda, Hungria, Irlanda, Islândia, Itália, Japão, Letônia, Lituânia, Noruega, Nova Zelândia,
Polônia, Portugal, Reino Unido, Suécia, Suíça, Tchecoslováquia e Uruguai.
9
Nesta primeira onda de reversão, Huntington identifica: Alemanha, Argentina, Áustria, Bélgica, Colômbia,
Dinamarca, Espanha, Estônia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Itália, Japão, Letônia, Lituânia, Noruega,
Polônia, Portugal, Tchecoslováquia e Uruguai.
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10
Segunda onda democrática, sempre de acordo com o autor: Alemanha Ocidental, Argentina, Áustria, Bélgica,
Birmânia, Bolívia, Botsuana, Brasil, Colômbia, Coréia do Sul, Dinamarca, Equador, Fiji, Filipinas, França,
Gâmbia, Gana, Grécia, Guiana, Holanda, Hungria, Índia, Indonésia, Israel, Itália, Jamaica, Japão, Líbano,
Malásia, Malta, Nigéria, Noruega, Paquistão, Peru, Sri Lanka, Tchecoslováquia, Trinidad e Tobago, Turquia,
Venezuela e Uruguai.
11
Segunda onda de reversão: Argentina, Birmânia, Bolívia, Brasil, Chile, Coréia do Sul, Equador, Fiji, Filipinas,
Gana, Grécia, Guiana, Hungria, Índia, Indonésia, Líbano, Nigéria, Paquistão, Peru, Tchecoslováquia, Turquia,
e Uruguai.
12
Terceira onda democrática, propriamente dita: Argentina, Bolívia, Brasil, Bulgária, Chile, Coréia do Sul, El
Salvador, Equador, Filipinas, Grécia, Guatemala, Haiti, Honduras, Hungria, Índia, Mongólia, Namíbia,
Nicarágua, Nigéria, Panamá, Paquistão, Peru, Romênia, Senegal, Sudão, Suriname, Tchecoslováquia, Turquia
e Uruguai.
13
“Terceira onda de reversão?”, pergunta-se Huntington, que dedica uma seção ao tema. Os países eram então
os seguintes: Bulgária, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, Mongólia, Namíbia, Nicarágua, Panamá,
Romênia, Senegal, Sudão e Suriname.
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14
A ideia de “nova ordem mundial” tornou-se lugar comum a partir do discurso do então presidente norte-
americano George Bush, que proferiu um discurso diante do Congresso daquele país intitulado Towards a New
World Order, curiosamente no dia 11 de setembro de 1990, onze anos antes dos atentados terroristas
ocorridos em território norte-americano que abalaram o país e o mundo. Quanto aos textos de acadêmicos que
sustentaram esta ideia ou outras análogas, pode-se mencionar especialmente o trabalho de Francis Fukuyama
(The End of History and the Last Man, de 1992), entre inúmeros que foram produzidos no contexto posterior a
ele.
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15
É praticamente infindável a criação de neologismos. Na história recente dos dois países estudados, são
muitos os conceitos cunhados para designar tendências políticas, como denotam as expressões “peronismo”,
“varguismo”, ou, nas décadas mais recentes, os fenômenos do “alfonsinismo”, “menemismo” ou
“kirchnerismo”, “lulismo”etc., todas elas destacando o papel ocupado por estas lideranças pessoais nos
respectivos sistemas de governo presidencialistas, tema que será retomado no capítulo 2
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16
Ainda hoje, a democracia recebe adjetivações “populares”, como é o caso da República Popular da China e
da República Democrática Popular da Coréia, para designar regimes que estão bastante distantes das ideias
de estado democrático de direito e de democracia representativa liberal, que caracterizam as concepções
mínimas trabalhadas aqui.
17
O que se tem em mente são as duas estratégias que J. S. Mill (1974) denominou como “método da diferença”
e “método da semelhança”. No “método da diferença”, são selecionados casos que possuem todas as
características relevantes para a explicação similares, exceto duas: uma sendo aquela que se pretende
explicar (em linguagem metodológica, a chamada variável dependente), a outra a que se supõe poder explicar
a anterior (variável independente). O “método da semelhança” (no inglês, method of agreement), inverte a
lógica para alcançar o mesmo objetivo de explicação: são selecionados casos em que a maioria das
características relevantes assume valores diferentes, exceto a variável explicativa (independente) e o resultado
que se pretende explicar (dependente). O primeiro é denominado por Przeworski e Teune (1970) como “most
similar system”, enquanto o segundo é chamado de “most different system”.
40
uma vez que o propósito do livro é “tentar explicar por que, como e com que
consequências um grupo de transições para a democracia, mais ou menos
contemporâneas, ocorreu nos anos 1970 e 1980 e entender o que essas transições
podem sugerir sobre o futuro da democracia no mundo” (Huntington, 1991: 30)18.
Como dito acima, cada definição de democracia identifica um conjunto de
marcos de referência. Na mencionada pesquisa de Collier e Levitsky (1996, 1997),
seus autores estruturaram o Quadro abaixo (aqui traduzido para o português com
leves adaptações), na qual se pode visualizar um esquema dos significados
associados por cada uma das definições de democracia: (1) definição eleitoral; (2)
definição procedimental mínima; (3) definição procedimental mínima expandida; (4)
definição prototípica de democracia industrial; e (5) definição/concepção
maximalista. Trata-se de um spectrum de definições identificadas nos estudos sobre
“democratização recente”. Os autores reconhecem que não foi possível fazer justiça
a todas as nuanças de significado, e por isso pretenderam identificar de forma
sumária os pontos de referência cruciais na orientação dos trabalhos analisados por
eles. Além disso, acrescentam que
No esquema elaborado por eles, cada nova definição acrescenta novos significados
à definição anterior, com exceção da última (concepção maximalista), pois seus
defensores usualmente não incluem os significados contidos nas anteriores19. Como
______________________________________________
18
Em um trecho anterior à ressalva citada, o autor afirma que somente a definição minimalista permite a
precisão analítica e os referenciais empíricos que tornam o conceito útil: “Por algum tempo depois da Segunda
Guerra Mundial, travou-se um debate entre aqueles que, na linha clássica, definiam democracia segundo fonte
ou propósito e o crescente número de teóricos que aderiam ao conceito processual de democracia, à maneira
schumpeteriana. Nos anos 70 o debate tinha terminado e Schumpeter vencera. Cada vez mais os teóricos
estabeleciam distinções entre definições racionalistas, utópicas e idealistas de democracia, por um lado, e
definições empíricas, descritivas, institucionais e processuais, por outro, concluindo que somente a última
definição permitia a precisão analítica e os referenciais empíricos que tornam utilizável o conceito” (1991: 6-7).
19
Nesse sentido, os autores observam o seguinte: “Embora este spectrum de significados não forme uma
‘escala cumulativa’ perfeita, com exceção da última coluna da direita, cada definição subsequente inclui todos
42
______________________________________________
os atributos envolvidos nas definições prévias (veja a linha reforçada na figura). Este ordenamento tem um
papel crítico em dar estrutura para as inovações conceituais analisadas no restante deste artigo” (1996: 10).
43
______________________________________________
20
Os autores situam, por exemplo, a teoria schumpeteriana como “eleitoral”, em vez de “procedimental mínima”,
como se fez anteriormente nesta tese. Não se pretende explorar agora esta divergência, mas registrar a
opinião de que o enquadramento de Schumpeter como “procedimental mínimo” é mais comum do que fizeram
os autores.
46
processo decisório, portanto não convém se estender sobre isto aqui. Apenas se
levanta o problema, para aprofundamento posterior21.
A segunda questão a apontar no Quadro refere-se ao que Collier e Levitsky
chamaram de “democracias problemáticas”. Algumas reflexões críticas podem
indicar como esta categorização é que talvez seja problemática, de fato. Mas é
compreensível, ao mesmo tempo, pela ênfase que os autores põem sobre as
concepções ao mesmo tempo procedimentais e mínimas, como já se destacou. Se
os subtipos gerados a partir de (2) e (3) resultam em versões diminuídas de alguma
destas definições de democracia (no inglês, diminished subtypes, expressão que
aparece quinze vezes na versão publicada e mais de trinta na versão completa, não
publicada), quando o marco de referência utilizado é a definição (4), isto é, uma
“concepção prototípica das democracias industriais”, os autores falam em
“democracias problemáticas”22. Neste caso, o modelo tomado como referência se
baseia em um conjunto de atributos os quais estariam supostamente presentes nos
sistemas políticos dos países de industrialização avançada. Mas o que seriam estas
“democracias problemáticas”? Segundo eles, é um dos tipos de adjetivação ou de
inovação conceitual que se refere ao modelo das “democracias industriais”, ou seja,
existe um modelo prototípico a partir do qual são subtraídos certos atributos,
resultando em adjetivações as mais diversas, todas indicando uma carência do(s)
regime(s) político(s) sob estudo/avaliação. Elas também são subtipos de
democracia, ou democracias parciais, pois em cada uma delas carece de algum
elemento definidor da democracia, de acordo com um protótipo referencial23.
______________________________________________
21
S. Mainwaring, D. Brinks e A. Pérez-Liñán (2001), em artigo em que classificam os regimes políticos
latinoamericanos entre os anos de 1945 e 1999, por exemplo, preferem uma escala tricotômica, alternativa à
dicotomia tradicional democracia-autoritarismo. Entre essas duas categorias, é inserida uma terceira,
designada “semidemocracia”. Existe uma literatura relativamente extensa sobre as inadequações da dicotomia
mencionada (sobre esta discussão e outras afins, ver, p. ex., os textos de L. Diamond, 1996, 1999; G.
O’Donnell, 1994, 2001; ou T. Karl, 1995).
22
A questão das “democracias problemáticas” é discutida pelos autores apenas na versão mais longa da
pesquisa, não publicada. Na versão publicada em 1997, existe apenas uma indicação em nota de rodapé (n.
25), a qual remete o leitor à outra versão do trabalho.
23
Os autores elaboraram um quadro em que agrupam exemplos destas adjetivações de acordo com a carência
referente ao modelo prototípico suposto. Segundo eles, foram encontradas mais de uma centena de
adjetivações referidas a esse protótipo. A lista de exemplos é a seguinte, que se transcreve aqui: quando se
48
______________________________________________
quer apontar a fraqueza da própria consolidação do regime, os exemplos são “democracia frágil”, “democracia
imatura”, “democracia incerta” e “democracia não-consolidada”; quando é enfraquecida a accountability
horizontal: “democracia caudilhista”, “democracia delegativa”, “democracia plebiscitária” e “democracia
populista”; quando falta efetiva participação cidadã: “democracia despolitizada”, “democracia dual”,
“democracia elitista” e “democracia de baixa intensidade”; quando faltam efetividade e responsividade do
governo e do regime: “democracia bloqueada”, “democracia impotente”, “democracia superinstitucionalizada”,
“democracia fraca”; quando falta o compromisso de sustentar políticas de bem-estar social: “democracia
conservadora”, “democracia de input”, “democracia moderada” e “democracia neoliberal”; quando falta a
soberania nacional: “democracia controlada”, “democracia internacionalmente dependente”, “democracia
neocolonial” e “democracia imposta pelos EUA”; quando são enfraquecidas as condições econômicas
favoráveis: “democracia insolvente”, “democracia sem prosperidade”, “democracia de baixa renda” e
“democracia pobre”; quando falta estabilidade política e social: “democracia cercada”, “democracia conflitiva”,
“democracia socialmente explosiva” e “democracia desgovernada”; e, finalmente, quando é apontado algum
elemento genérico: “democracia incompleta”, “democracia problemática”, “democracia enferma” e “democracia
opaca”. Por questões de legibilidade, evitou-se aqui indicar as referências de cada uma dessas adjetivações –
as referências bibliográficas completas estão no apêndice de Collier e Levitsky (1996).
49
Até o momento, o que se quis apresentar foi uma visão estruturada acerca do
procedimento de conceituação da democracia, em particular quando se trata da
literatura de política comparada sobre os países da região. A compreensão da
natureza e da estrutura desse procedimento, tantas vezes repetido na literatura e,
em geral, considerado necessário à comparação, passa pelo entendimento das
adjetivações do termo. Procurou-se demonstrar que existem algumas estratégias
predominantes de inovação conceitual, com a ajuda do texto clássico de Sartori e da
extensa pesquisa de Collier e Levitsky. Além disso, espera-se que tenha ficado claro
como as concepções ao mesmo tempo procedimentais e mínimas predominam nos
estudos comparativos sobre a região. Mesmo quando os autores buscam apontar,
em geral alegando um viés crítico, as deficiências institucionais de um determinado
sistema político – ou de um conjunto deles, como se faz com frequência nos
“estudos de área” – mesmo nestas estratégias de criação de subtipos diminuídos de
democracia, as concepções procedimentais mínimas predominam como marco de
referência fundamental.
Por outro lado, a pesquisa de Collier e Levistky aponta ainda para o que se
poderia chamar de baixa especificidade analítica das abordagens críticas ao
“procedimentalismo mínimo”. Segundo eles, a tarefa metodológica de definir os
atributos específicos que constituem as definições prototípica e maximalista não é
uma preocupação comum aos trabalhos que as utilizam como marco de referência,
diferentemente do que ocorre nos trabalhos que utilizam a definição eleitoral, a
definição procedimental mínima ou a versão procedimental mínima expandida.
Porém, como avalia a pesquisa de G. Munck e J. Verkuilen (2002), outro
trabalho sobre os problemas de conceituação e mensuração da democracia, esta
deficiência metodológica não se limita às concepções maximalistas. As
conceituações mínimas, que subjazem aos índices analisados por eles, também
sofrem de problemas de especificidade analítica, entre outras limitações
metodológicas, na visão dos autores.
Em primeiro lugar, cabe apresentar a natureza do trabalho de Munck e
Verkuilen, pois se trata de um esforço um pouco diferente do trabalho de Collier e
Levitsky. Estes últimos estão preocupados em identificar as estratégias
predominantes de inovação conceitual no campo dos estudos sobre as transições
democráticas recentes na América Latina, assim como as suas respectivas
contribuições para os desafios aparentemente contraditórios de aumentar a
50
que perdem sua utilidade analítica para fins comparativos, entre outros fins. A tarefa
também requer que sejam evitadas as concepções minimalistas, que, ao restringir
excessivamente os atributos necessários a uma democracia (e seus “componentes”)
pode terminar por incluir tantos casos que se faz necessário adicionar outros
atributos à definição minimalista, para que se possa ter utilidade analítica,
justamente parte das estratégias dominantes de inovação conceitual identificadas
por Collier e Levitsky.
A segunda tarefa refere-se à organização vertical dos atributos de acordo com
o nível de abstração. Embora seja parte do desafio de conceituação, ela também
possui impactos significativos sobre os desafios subsequentes de mensurar – como
se afirmou também acerca da tarefa de identificar os atributos e seus componentes –
e de agregar os elementos constituintes de certa definição. O raciocínio dos autores
é relativamente simples: considerando que os diversos atributos, e componentes de
atributos, os quais constituem certa definição de democracia, estão relacionados
entre si, é necessário organizar verticalmente estes elementos de acordo com os
diversos níveis de abstração. Para isso, os autores utilizam a metáfora de “isolar as
‘folhas’ da árvore conceitual”. A maioria dos índices analisados logra organizar os
atributos em termos de níveis de abstração (em uma escala decrescente, p. ex.,
atributos, componentes de atributos, subcomponentes, e assim por diante), apesar
de alguns problemas adicionais24.
Segundo a análise de Munck e Verkuilen (2002), mesmo os índices
prestigiados, que se encontram entre os mais citados e que adotam em geral uma
concepção procedimental mínima – estão incluídos, entre outros, os índices da
Freedom House e o relativamente bem conhecido projeto Polity IV – possuem
problemas de especificidade analítica. Se não logram ser específicos o suficiente
para a mera classificação dos regimes enquanto democráticos / não democráticos,
como poderiam servir de guia para se discutir o problema que se propõe nesta
______________________________________________
24
Entre os principais problemas, os autores apontam os casos de “redundância”, quando diferentes
características se referem a um mesmo aspecto da democracia, e de “conflation”, termo para o qual não se
encontrou uma tradução adequada ao português, mas que se refere aos casos nos quais características que
se referem a diferentes aspectos da democracia são tidas como componentes de algum deles apenas.
52
______________________________________________
25
Veja-se, por exemplo, o uso que se faz do conceito de “poliarquia”, de R. Dahl, excluindo o elemento
participativo explicitado como uma das condições para a existência de um regime poliárquico. Este paradoxo
será retomado adiante, quando se discutir um pouco mais a sua perspectiva teórica.
53
______________________________________________
26
Esta questão refere-se à bem conhecida discussão presente na teoria política e também discutida em outros
âmbitos sociais, que transcendem os debates acadêmicos. De um lado, está a visão de que a legitimidade
conferida pelos eleitores transfere a soberania decisória, uma vez que os cidadãos delegaram-na aos
representantes políticos. Do outro, a visão de que, mesmo durante a vigência dos mandatos políticos, os
cidadãos permanecem titulares das escolhas e suas preferências devem ser levadas em conta nas decisões
políticas dos representantes. Na segunda perspectiva, o direito dos cidadãos não exclui nem mesmo a
possibilidade de revogação dos mandatos pelos próprios eleitores, com instrumentos como o recall ou
“referendo revocatório”, entre outros.
55
valorização dos pactos políticos entre os que detêm o poder e as elites opositoras
moderadas e à utilização de metáforas lúdicas para a descrição dos processos de
transição como processos graduais pré-estruturados em termos de sua sequência.
A literatura sobre teoria democrática muitas vezes postula a existência de
uma linha de fratura fundamental nos debates atuais sobre democratização. Como
dito, esta hipótese se baseia em uma estrutura conceitual dual: “democracia
representativa / democracia participativa”. Assim como ocorre nestes debates
acadêmicos, a oposição entre democracia representativa e democracia participativa
é um elemento crucial da realidade democrática nos debates políticos em sentido
mais amplo, neste início de século27. Este trecho termina com a apresentação de
algumas bases do que formaria esta tradição participativa da democracia,
compartilhada por inúmeros teóricos e estudiosos da democracia em geral. Assim,
depois de discutir as duas interpretações sobre a crise da democracia representativa
– a “teoria do governo sobrecarregado”, sustentada por autores e atores políticos
conservadores, ou mesmo reacionários, e a “teoria da crise de legitimidade”,
carregada pelos autores e movimentos sociais progressistas – reproduz-se, em um
primeiro momento, a persistente autoimagem dual da teoria democrática
contemporânea: de um lado, a hegemonia da concepção procedimental mínima,
base da democracia representativa; do outro, os críticos que postulam as vantagens
da concepção participativa de democracia.
Esta imagem é uma etapa considerada essencial para a argumentação
subsequente, pois, a partir das críticas a esta dicotomia, pretende-se avançar no
sentido de uma leitura mais plural do problema teórico da democratização das
políticas públicas, coerente com o estado da arte da teoria democrática
contemporânea. Enquanto a narrativa aqui reproduz a díade que persiste em parte
da teoria democrática, na sequência são apresentados os limites desta oposição
dicotômica, em favor da visão de uma estrutura teórica chamada de “triangular”, com
o intuito incentivar a reflexão não apenas sobre as diferenças e oposições entre as
______________________________________________
27
Ainda que algumas disciplinas pareçam estar alheias a esta oposição, como a política comparada, ou as
relações internacionais, cujas elaborações teóricas se situam, em geral, dentro do campo hegemônico,
reproduzindo-o por meio das reflexões de internacionalistas e comparatistas.
60
principais teorias circulantes na ciência política atual, mas também as suas diversas
possibilidades de aproximação e combinação. O amadurecimento de uma vertente
teórica inspirada no conceito de “deliberação” tem um primeiro mérito de romper com
a oposição dualista desenhada pelo contraste entre “representação” e “participação”.
O próximo capítulo analisará essas três perspectivas e, ao final, em vez de
considerar que cada um dos conceitos corresponda a uma perspectiva teórica,
sustenta-se que cada um deles é fundamental para qualquer perspectiva de
construção da democracia.
eles são, não como eles deveriam ser. Os defensores da concepção procedimental
mínima incorporam esta diferenciação entre o mundo do “ser” e o mundo do “dever
ser”, em geral. Eles muitas vezes reportam-se ao pensamento de Schumpeter, que
foi o primeiro a definir a democracia como um método político de constituição de
governos. Em seu mais citado trecho, o teórico escreveu no princípio da década de
1940, em plena guerra: “o método democrático é aquele arranjo institucional para se
chegar a decisões políticas no qual os indivíduos adquirem o poder de decidir por
meio de uma luta competitiva pelo voto popular” (1974[1942]: 269). O procedimento
democrático por excelência é a seleção dos governantes pelos governados por meio
de eleições competitivas. O poder de decidir é adquirido pelos governantes eleitos
em uma disputa similar à concorrência que caracteriza os mercados econômicos. A
analogia entre o mercado democrático e o mercado econômico está na base da
denominada “teoria democrática competitiva”, de Schumpeter, que também será
analisada mais detidamente no próximo capítulo.
Na visão de seus defensores, a teoria democrática competitiva, ao definir a
democracia basicamente como um procedimento para a constituição de governos,
teria afastado de uma vez por todas as definições modernas que, desde as
reviravoltas revolucionárias europeias do século XVIII, faziam referência à
democracia enquanto “fonte de autoridade” ou como “propósito servido pelos
governos”. Sendo assim, o ideal formulado naquele século por J-J. Rousseau, de
autogoverno das massas, de ampla soberania e participação populares, elaborado
em meados do século das luzes, teria sido definitivamente superado por essa
concepção procedimental. O que Schumpeter pretendeu em sua obra foi apontar os
limites e as incoerências da concepção que ele denominou como “teoria clássica da
democracia”, e é preciso reconhecer que ele foi eficiente, firmando-se como um dos
principais teóricos políticos do século XX, embora fosse mais conhecido por seus
trabalhos como teórico econômico.
Para o lugar da “teoria clássica”, o autor apresenta a sua visão da democracia
enquanto método, base do que ele chamou de “outra teoria da democracia”. Apesar
de haver construído o “mito clássico”, que simplificou e estilizou o pensamento de
um conjunto de autores “clássicos” que discordavam entre si em diversos pontos, a
argumentação schumpeteriana foi capaz de firmar no âmbito acadêmico uma
concepção de democracia na qual ela é definida como o mecanismo de competição
entre as elites e, ao mesmo tempo, ele defende a redução, ao máximo, da
62
______________________________________________
28
No Capítulo 2, serão examinadas com mais profundidade as ideias de Schumpeter, entre as quais a defesa do
isolamento da política externa da interferência popular ou mesmo da opinião pública.
64
mesma medida em que a vontade geral era manipulada pelo poder da propaganda
política.
Para alguns analistas e políticos, o excesso de participação é que teria sido
responsável por alguns fracassos históricos memoráveis. Nesse sentido, a ascensão
de Adolf Hitler e a implosão da democracia social instaurada pela República de
Weimar após a Primeira Guerra Mundial foram atribuídas à combinação entre o
excesso de participação e a engenhosa e eficiente máquina de propaganda nazista.
Assim como o regime totalitário vigente na União Soviética, que servia de exemplo
para os limites da participação popular, uma vez que a evidente mobilização
induzida pelo regime não implicava níveis correspondentes de participação efetiva
da população na condução política do país, que era restrita às elites do Partido
Comunista. Como se recordou acima, tanto os países alinhados aos Estados Unidos
como aqueles que se mantinham alinhados à União Soviética sustentavam a noção
de democracia, embora com significados evidentemente diversos. De um lado,
encontravam-se as autodenominadas “democracias liberais”, enquanto de outro as
que se denominavam “democracias populares”. Em larga medida, esta divisão
fundamental da política internacional se refletia nas disputas domésticas entre
esquerda e direita, entre socialistas e liberais, enfim, ela se reproduzia de acordo
com as múltiplas configurações de cada um dos contextos políticos nacionais e
regionais. A divisão ecoava também na construção de um sistema multilateral de
defesa dos direitos humanos, que também teve o seu desenvolvimento determinado
pela oposição entre os direitos humanos “civis e políticos” e os “econômicos, sociais
e culturais”. É neste contexto que se insere a formulação discursiva que viria a ser
conhecida como procedimentalismo mínimo, pois se tratava, no hemisfério ocidental,
do problema de certificar a existência de uma democracia, apesar do visível controle
da esfera política por uma minoria e da também clara ausência de uma efetiva
participação dos cidadãos comuns na definição dos assuntos políticos nacionais.
Ao comentar as fundações elitistas da tradição hegemônica da teoria
democrática, Miguel (2002) chama a atenção para uma curiosa reviravolta que
caracteriza o desenvolvimento histórico dessa tradição, já que são justamente as
teorias que afirmavam a impossibilidade de realização da democracia que são
posteriormente utilizadas para a bem sucedida empreitada de reconstruir as bases
teóricas da democracia, a partir dos anos 40:
66
______________________________________________
29
Trata-se dos seguintes livros: The People’s Choice: How the Voter Makes up his Mind in a Presidential
Election (Lazarsfeld et alli) e Voting: A Study of Opinion Formation in a Presidential Campaign (Berelson et
alli.). Para uma análise mais detalhada destes trabalhos, em língua portuguesa, ver Miguel (2002) e Pateman
(1992[1970]). O teórico B. Berelson é descrito como um dos teóricos elitistas no livro de Pateman, que lembra
que o pesquisador tinha o mesmo objetivo de Schumpeter (confrontar a “teoria clássica” com as evidências
empíricas) e a mesma estratégia (mostrar, pela análise da escolha eleitoral, como as “exigências” para o
funcionamento do modelo clássico de democracia não eram encontradas no comportamento do “cidadão
médio”). Apesar destas semelhanças, ela lembra que sua estrutura teórica funcionalista não é encontrada na
construção schumpeteriana.
30
Entre os analistas da escolha racional que provavelmente tiveram mais influência neste período, pode-se citar
os casos de Kenneth Arrow (Social Choice and Individual Values, de 1963), William Riker (The Theory of
Political Coalitions, de 1962) e o livro de James Buchanan e Gordon Tullock (The Calculus of Consent: Logical
Foundations of Constitutional Democracy, também de 1962), além de Mancur Olson, de 1965, citado no corpo
do texto, adiante.
68
“uma atividade profissional sustentada por uma extensa rede institucional composta
por especialistas, currículos universitários, centros de pesquisa, periódicos, editores,
associações, conferências, subvenções e estrutura de financiamento. Mais
importante é verificar que essa literatura não produziu qualquer teoria ou abordagem
sociocientífica ao estudo de Latin America. Em suma, designá-la como Latin
American Studies é um duplo presentismo: um conceito e uma prática institucional
do presente são projetados em uma circunstância passada na qual eles não
existiam.” (2005: 81)
______________________________________________
31
Sobre o surgimento e a consolidação institucional dos chamados Latin American Studies, ver o livro de Feres
Jr. (2005).
32
Sobre a importância do texto de A. Lijphart e a consolidação da Política Comparada a partir dos anos 1970,
ver D. Collier (1993) e P. Schmitter (1993).
70
central dessa literatura é porque apenas alguns países conseguiram manter seus
regimes democráticos por um longo período de tempo. Em outras palavras, tratava-
se de explicar as variações no sucesso da democracia. O que podia explicar o dado
de que alguns países estabeleceram e mantiveram suas democracias enquanto em
outros ela nunca se desenvolvera ou era entremeada por regimes não
democráticos? A princípio, este esforço procurou fornecer explicações baseadas no
desenvolvimento histórico das estruturas sociais, tendo como suposto a dicotomia
fundamental entre o “tradicional” e o “moderno”. Cabe adicionar que a ciência
política norte-americana se encontrava bastante influenciada pelas pretensões
epistemológicas do behavioralismo, também chamado de cientificismo, que buscou
incorporar às ciências sociais uma visão de ciência inspirada em um modelo
supostamente reconhecido pelas ciências naturais.
Seymour Lipset (1959, 1960) e Barrington Moore (1966) são dois dos autores
principais da teoria da modernização e influenciaram toda uma geração de cientistas
políticos interessados na região. O primeiro definiu um conjunto de características
“modernas”, como urbanização, nível educacional e de renda, meios de
comunicação de massa e burocratização, e testou a correlação entre diversos
índices de modernização e a sua classificação de regimes políticos33. Com base em
análise estatística, Lipset sustentou a hipótese de que um maior grau de
modernização era favorável a democracia, embora a literatura influenciada por seu
trabalho tenha sustentado, muitas vezes, a existência de uma relação causal, isto é,
a modernização implica em democratização. A explicação do autor busca escapar
das explicações propriamente políticas, culturais ou institucionais do fenômeno
democrático. Na sua visão, as estruturas sociais dos países em que havia os
maiores graus de modernização tinham como consequência menores graus de
______________________________________________
33
Em seu pioneiro artigo de 1959, Lipset agrupou os quarenta e oito países analisados por ele em duas grandes
“áreas de cultura política” – europeus e anglófonos, de um lado, e latinoamericanos, de outro – para então
comparar internamente estas duas regiões. Não convém reapresentar sua construção, mas é interessante a
sua classificação de acordo com as áreas, em primeiro lugar, e quanto aos “graus de democracia estável”:
entre os países da primeira “área”, há duas categorias: são (a) democracias estáveis ou (b) democracias
estáveis e ditaduras; entre os países da América Latina, eles são (c) democracias instáveis e ditaduras ou (d)
ditaduras estáveis. Note-se que não há qualquer país do primeiro grupo que seja uma ditadura estável ou uma
democracia instável, enquanto no segundo grupo não há qualquer democracia estável.
71
“Em sua análise empírica, Lipset não recorreu a uma série temporal. Foram
comparados os países desenvolvidos e subdesenvolvidos nos anos 50. Logo, a
inferência segundo a qual o desenvolvimento dos países subdesenvolvidos trará
consigo a democracia encontra fundamento em uma teoria linear da história. Mais do
que isso, supõe que a história seja única, que todo e qualquer país, em qualquer
momento da história, passa pelos mesmos estágios. Assim, os países
subdesenvolvidos representariam o passado dos países desenvolvidos e estes o
futuro daqueles. A inferência, portanto, passa pela suposição da existência de um
caminho único, a ser trilhado por todos os países que caminham em direção à
modernidade.” (2005: 15)
“No leque dos fatos aqui examinados, poder-se-ão distinguir três caminhos
principais, desde o mundo pré-industrial ao contemporâneo. O primeiro desses
caminhos leva-nos através daquilo que acho que merece ser chamado as
revoluções burguesas. (...) Acho que [revoluções burguesas] é uma designação
necessária para determinadas alterações violentas que se verificaram nas
sociedades inglesa, francesa e americana no seu caminho para a transformação em
modernas democracias industriais. (...) O segundo caminho também foi capitalista
mas culminou em fascismo durante o século XX. A Alemanha e o Japão são os
exemplos evidentes. (...) Chamar-lhe-ei a forma capitalista e reacionária. Equivale a
uma forma de revolução vinda de cima. (...) O terceiro caminho é, evidentemente, o
comunismo, como foi exemplificado na Rússia e na China.” (Moore, 1975[1966]: 14,
apud Limongi, 2005: 16)
Se, nos anos 60, contexto original de difusão das ideias da teoria da
modernização, as trajetórias passadas eram consideradas tão importantes para a
definição das características vigentes, então parecia haver também pouco espaço
para a ação política transformadora e para as escolhas dos agentes políticos
constituídos historicamente, como em Lipset e nos demais teóricos que partilharam
esta perspectiva. De acordo com a argumentação de Moore, a chave explicativa
fundamental eram os diferentes padrões de alianças de classes que se realizaram
ao largo do processo de modernização, como resume Limongi:
______________________________________________
34
Os dois trabalhos de Schmitter, de autoria individual e em parceria com Guillhot, examinam essas novas áreas
do conhecimento (cf. Schmitter, 1993; Guillhot e Schmitter, 2000). Para uma resenha das principais hipóteses
e tendências dos estudos de democratização na política comparada, cf. V. Bunce, 2000.
75
______________________________________________
35
Entre os estudos comparativos sobre a ruptura anterior, cita-se, a título de ilustração: G. O’Donnell (1973).
Modernization and Bureaucratic Authoritarianism: Studies in South American Politics (Berkeley: Institute of
International Studies, Politics of Modernization Series); J. Linz e A. Stepan (eds.)(1978). The Breakdown of
Democratic Regimes (Baltimore: Johns Hopkins University Press); e D. Collier (ed.)(1979). The New
Authoritarianism in Latin America (Princeton: Princeton University Press).
76
______________________________________________
36
Uma lista dos estudos comparativos sobre “transição” e “consolidação” mais citados certamente incluiria os
seguintes: J. Linz e A. Stepan (1996). A Transição e Consolidação da Democracia: A Experiência do Sul da
Europa e da América do Sul (São Paulo: Ed. Paz e Terra); G. O’Donnell e P. Schmitter (1986). Transitions from
Authoritarian Rule: Tentative Conclusions about Uncertain Democracies (Baltimore: John Hopkins University
Press); e S. Mainwaring, G. O’Donnell e J. Valenzuela (1992). Issues in Democratic Consolidation: The New
South-American Democracies in Comparative Perspective (Notre Dame: University of Notre Dame Press).
77
______________________________________________
37
Vale ressaltar que a ênfase desta literatura recai sobre as mudanças de regime. São raros os estudos sobre a
democratização de políticas públicas específicas, como é o foco desta tese, embora seja preciso também
reconstruir intelectualmente as respectivas trajetórias de transição de Argentina e Brasil, se a intenção é fazer
uma análise institucionalista histórica do período posterior, pois as instituições, organizações e agendas
políticas do período de transição repercutem na dinâmica posterior da arena política.
79
“a nova vertente mudou o foco e decidiu concentrar sua atenção nas elites políticas
e nas suas decisões, opções e estratégias. A democracia passou a ser vista, a partir
de então, como o resultado das habilidades, tomadas de decisões e estratégias
racionais seguidas pelos grupos dirigentes e atores políticos mais relevantes. Dessa
nova ótica, os diversos quadros e situações políticas dependerão,
fundamentalmente, das ‘jogadas’ levadas a cabo por um número limitado de
participantes e de suas interações contingentes” (2007: 22-23).
______________________________________________
38
Cf. a tese publicada de Gabriel Vitullo (2007), Teorias da Democratização e Democracia na Argentina
Contemporânea (Porto Alegre: Editora Sulina), que traz interessantes constatações sobre o papel da
participação na democratização argentina contemporânea.
80
______________________________________________
39
O trabalho de Ruth Collier também será retomado adiante, quando se tratar das dinâmicas de transição de
regime na Argentina e no Brasil do início dos anos 80, no Capítulo 3 (seção 3.1).
82
______________________________________________
40
Esta é outra discussão que compôs o debate sobre as condições estruturais da democracia, ao lado da
explicação estrutural da teoria da modernização, como observam Santos e Avritzer (2002). O debate diz
respeito às implicações redistributivas da democracia: “tal debate partia do pressuposto de que à medida que
certos países venciam a batalha pela democracia, junto com a forma de governo eles passavam a usufruir de
certa propensão distributiva caracterizada pela chegada da social-democracia ao poder” (Santos e Avritzer,
2002: 40, que citam como exemplo o conhecido trabalho de A. Przeworski, 1985). Pode-se adicionar que,
também nos países latinoamericanos, a incorporação das políticas chamadas de “neoliberais”, que
sustentavam a redução da intervenção estatal na economia e na sociedade, colocaram em xeque a hipótese
de uma propensão democrática à redistribuição.
84
______________________________________________
41
Aqui, como em outras realidades, percebe-se com clareza a conexão apontada por Koselleck, em sua tese de
doutorado defendida nos anos 50, entre a noção moderna de crise e o lugar ocupado pela crítica intelectual na
modernidade (R. Koselleck, 1999[1959]). A história conceitual elaborada pelo autor nesta e em outras obras,
assim como a análise histórica feita por ele a respeito do conceito de “crise”, podem ser acessadas no livro
The Practice of Conceptual History (2004).
85
______________________________________________
42
Enquanto as duas expressões anteriores já foram exploradas, a ideia de “hegemonia das democracias de
mercado” ainda não foi comentada. Trata-se de uma expressão muito utilizada durante todo o período que
delimita esta investigação, embora nem tanto na academia brasileira, como ressaltam H. Leis e E. Viola
(2008), que denominam “como democracias de mercado aos países que combinem economias de livre
mercado e regimes políticos democráticos”. Eles preferem esta denominação às alternativas que vislumbram:
“Ainda que conscientes de que esta não é uma terminologia usual na academia brasileira, preferimos esta às
denominações de ‘capitalismo democrático’ ou ‘democracia liberal’, predominantes no país. No primeiro caso,
‘capitalismo democrático’ está marcado por uma perspectiva marxista da sociedade, com uma série de
conotações negativas. No segundo, ‘democracia liberal’ também está contaminada negativamente em relação
a uma democracia desejável, a qual seria entendida como substantiva (ou socialista e/ou popular, no caso da
tradição marxista) ou como radical (no caso das tradições participativas, sejam elas de origem socialista ou
liberal)” (2008: 42).
87
David Held (2001), um autor influente nos meios acadêmicos tanto da ciência
política como das relações internacionais, identifica duas teorias que se propuseram
a explicar a “crise da democracia”. O autor identifica as hipóteses fundamentais e as
implicações políticas de cada uma delas. Trata-se de dois diagnósticos convergentes
sobre a situação da democracia representativa liberal, ainda que cada uma dessas
interpretações explique de modo diferente as razões da crise e apresente caminhos
também diferenciados do ponto de vista político e ideológico. Nesse sentido, de um
lado encontra-se a interpretação da teoria do governo sobrecarregado e, de outro, a
teoria da crise de legitimidade.
A teoria do governo sobrecarregado43 atribui a crise a um “excesso de
democracia”, na medida em que as demandas de grupos sociais organizados, uma
vez incorporadas às políticas públicas de um Estado em constante expansão,
geraram um esgotamento da capacidade de intervenção estatal. O raciocínio teórico
desta primeira vertente é bastante conhecido: com o intuito de atender às demandas
dos grupos sociais que defendem os mais diversos interesses setoriais presentes
nos regimes democráticos e controlar o conflito político, os políticos fazem
promessas impossíveis e também expandem, de forma clientelista, a estrutura
burocrática e a intervenção política do Estado. O resultado disso é a perda de
governabilidade estatal, resultante do estrangulamento fiscal produzido pelo
constante aumento dos gastos públicos sem o correspondente aumento da
capacidade de arrecadação. Este quadro de ingovernabilidade, por sua vez,
alimenta o descrédito social em relação ao regime democrático representativo. A
saída da crise, de acordo com a teoria do governo sobrecarregado, está na reforma
do Estado, isto é, na redução da máquina administrativa e também do nível de
intervenção estatal na economia e na realidade social em sentido mais amplo.
A teoria da crise de legitimidade, que Held associa às perspectivas
neomarxistas de Jürgen Habermas e Claus Offe, avança a hipótese alternativa de
______________________________________________
43
Esta primeira linha interpretativa é associada, por exemplo, ao relatório da Comissão Trilateral, de cuja
elaboração participou o cientista político norte-americano Samuel Huntington: S. Huntington, M. Crozier e J.
Watanuki (1975). The crisis of democracy: report on the governability of democracies to the Trilateral
Comission.
88
que a crise da democracia resulta da própria contradição entre esse regime político e
o sistema capitalista. Encontrando-se em situação de dependência estrutural, o
Estado “deve adotar decisões que sejam compatíveis com os interesses
empresariais (capitalistas) a largo prazo”, e, ao mesmo tempo, precisa fazer com
que as decisões e políticas públicas “pareçam neutras a respeito de todos os
interesses (classes), de forma que possa manter um apoio eleitoral massivo” (Held,
2001: 277). Nesta visão, o Estado é visto também como um complexo de instituições
que recebem pressões políticas de diversos grupos sociais, mas cuja dependência
estrutural dos agentes capitalistas desabilita essas mesmas instituições para atender
aos demais grupos de interesses da sociedade. Esta crise de racionalidade, por sua
vez, leva a um quadro de perda de legitimidade da democracia representativa, que
somente pode ser afastada com o aprimoramento dos mecanismos de
representatividade dos interesses sociais, isto é, com o aprofundamento da
democracia em termos qualitativos.
Ao caracterizar a crise vigente e com a mente nos processos ocorridos pelo
menos desde os anos 60 nas democracias dos países ocidentais, Held confere
destaque à convergência de um conjunto de fatores:
O registro usado para ilustrar a literatura referida é o de David Held, mas são
inúmeras as referências sobre a crise da democracia. Dos anos 90, por exemplo, as
referências literárias incluem desde autores situados no pólo procedimental mínimo,
como Norberto Bobbio (1997), que aponta para um momento de tensões por
mudanças qualitativas nos regimes democráticos, o que pode resultar em dinâmicas
positivas ou negativas, com ele destaca, até defensores da democracia deliberativa,
como Habermas (1994: 13), que atribui a crise da democracia representativa liberal
à sua incapacidade de lidar com os “imperativos sistêmicos inerentes
estruturalmente, [mas] que são incompatíveis e não podem ser integrados
hierarquicamente”. O reconhecimento da crise é um dos poucos consensos da
literatura, o que não é pouca coisa diante da polifonia que caracteriza a teoria
democrática. Até os defensores da democracia representativa passaram a
89
“Na França, ‘participação’ foi uma das últimas palavras de ordem utilizadas por De
Gaulle em campanhas políticas; na Grã-Bretanha, vimos a ideia receber a bênção
oficial no Relatório Skeffington sobre planejamento, e nos Estados Unidos o
programa antipobreza incluía fundos para o ‘máximo possível de participação’ dos
afetados por ela. O uso generalizado do termo nos meios de comunicação de massa
parecia indicar que qualquer conteúdo preciso ou significativo praticamente
desaparecera; ‘participação’ era empregada por diferentes pessoas para se
referirem a uma grande variedade de situações.” (Pateman, 1970: 9)
“qualquer teoria política destaca dos fenômenos considerados aqueles que precisam
ser explicados e os que são relevantes para a explicação. Mais do que isso, no
entanto, (...) tal seleção significa que não apenas algumas dimensões são excluídas
por serem irrelevantes – dimensões que podem ser cruciais para outra teoria –, mas
que as dimensões escolhidas também sustentam uma posição normativa, uma
posição implícita na própria teoria” (Pateman, 1992[1970]: 26).
conteúdos democráticos não chega a ser uma novidade. Mesmo assim, é uma
atitude intelectual diversa da reivindicação de “realismo” por parte de uma
determinada teoria, ou por determinado conjunto de perspectivas teóricas, as quais
servem de referência para o procedimental mínimo, ou da atitude de afirmar que
apenas certas concepções democráticas seriam “idealistas”, merecendo ser
descartadas da ciência política. Todas as teorias buscam referenciar processos
“reais” e são ao mesmo tempo defesas “normativas” de uma determinada forma
democrática e de suas práticas políticas imaginadas ou observadas. Como distinguir
a realidade como ela é, se qualquer narrativa incorpora, implícita ou explicitamente,
uma determinada seleção do material empírico, a qual é sempre orientada por
teorias carregadas pela investigação?
Para seguir adiante, existe outra ideia a ser explorada aqui. Trata-se da
dicotomia entre a “democracia representativa” e a “democracia participativa”, ou,
simplesmente, entre os conceitos de “representação” e “participação”. Apesar de ser
uma ideia comum, há boas razões para considerá-la analiticamente infrutífera e,
portanto, inadequada para as interpretações empreendidas sobre a eventual
democratização da política externa nos dois países sob escrutínio. A oposição
“representação” versus “participação” consolidou-se como uma autoimagem
persistente da teoria democrática, em especial após os processos de contestação
política do final dos anos 60, que repercutiram na multiplicação de abordagens
inspiradas pela concepção participativa. Durante as décadas de 70 e 80, este foi o
eixo mais bem definido da teoria democrática, gerando uma espécie de ideia fixa no
campo intelectual. Até hoje, ainda é comum encontrar a repetição da fórmula –
experimente lançar a expressão em um buscador na internet e verá milhões de
ocorrências, em textos acadêmicos ou não – mesmo que as discussões dentro da
ciência política tenham avançado, sobretudo nos últimos vinte anos. Hoje, existe um
maior pluralismo teórico, que resulta da atenção recebida e do suporte dado a outras
teorias democráticas, não se justificando a restrição à referida oposição. Ademais,
houve transformações interessantes nas elaborações intelectuais e nas experiências
práticas em torno das próprias ideias de “representação” e de “participação”. O
restante do capítulo explora esses movimentos recentes, que podem ser observados
no pensamento político democrático, ou seja, nas visões sobre a democracia e sobre
as formas de organização política de uma sociedade liberal.
93
______________________________________________
44
A teoria democrática tem sido mais um terreno fértil para a estruturação de oposições duais, como
“democracia formal vs. democracia substantiva”, “agregação vs. deliberação”, além daquela que é destacada
nesta seção. Embora não convenha explorar excessivamente a persistência das oposições no pensamento
ocidental, cabe realçar que ela está presente desde suas raízes clássicas, por exemplo, nos fragmentos
atribuídos ao filósofo antigo Heráclito de Éfeso, para quem a realidade corresponde a uma guerra de opostos
(ou, nos termos de um dos fragmentos atribuídos a ele, “aquilo que está separado se reúne consigo mesmo;
há harmonia na tensão contrária”), até os tempos mais modernos, por exemplo, em Hegel, que adaptou o
fragmento do seu antecessor, na sua concepção dialética. Comentando esta persistência, o historiador Carlo
Ginzburg foi muito feliz, ao afirmar o seguinte: “A espécie humana tende a representar a realidade em termos
de opostos. O fluxo das percepções, em outras palavras, é decomposto na base de categorias nitidamente
contrapostas: luz e sombra, calor e frio, alto e baixo. (...) Para eles [os seres humanos], a realidade, enquanto
refletida pela linguagem e, consequentemente, pelo pensamento, não é um continuum, mas um âmbito
regulado por categorias descontínuas, substancialmente antitéticas” (1989: 97-8).
94
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45
Essa noção foi desenvolvida na obra Futures Past, uma reunião de ensaios publicados entre 1965 e 1977,
cuja leitura fornece uma boa visão geral do projeto intelectual da história conceitual alemã (Begriffsgeschichte),
desenvolvida junto com Otto Brunner e Werner Conze – sobretudo este último. A obra foi publicada no Brasil
em 2006 e faz parte de um movimento intelectual de recepção da ideias dessa metodologia e de seus
pressupostos teóricos, na academia brasileira, em especial entre cientistas políticos e historiadores.
96
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46
Em artigo no qual analisam o lugar ocupado pelo conceito de “representação” nas principais vertentes da
teoria democrática contemporânea, os autores apontam para algumas tendências, entre as quais se destaca
uma nova apreciação da representação e da participação, tratadas atualmente como “formas complementares
de cidadania”. As demais tendências identificadas pelo trabalho citado são as seguintes: primeiro, a ciência
política passou a enfatizar o fato de que a representação eleitoral compete com outras formas não-eletivas de
representação, informais ou fruto de inovações institucionais que se multiplicam no mundo contemporâneo;
segundo, um maior questionamento quanto ao caráter de justiça [no inglês, fairness] das configurações
institucionais e das políticas públicas, em particular para as minorias e as mulheres; em terceiro lugar, há um
interesse renovado da teoria democrática pelos seus elementos normativos – isto é, também se questiona a
dicotomia entre democracia como “ideal” e democracia “como ela é”, ou entre uma teorização idealista e uma
teorização realista, no sentido de remeter à “realmente existente”; além da quarta e última tendência, à qual já
se chamava a atenção do leitor antes.
97
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47
Na sua expressão, repetidamente citada pela literatura, “o oposto da representação não é a participação. O
oposto da representação é a exclusão. E o oposto da participação é a abstenção” (D. Plotke, 1997: 19). Apesar
de seu trabalho marcar uma descontinuidade na literatura e haver contribuído para superar a antiga oposição
entre representação e participação, o autor insiste em articular novas oposições. Como o que se pretende aqui
é o diálogo teórico, insiste-se em não promover oposições, mas realçar diferenças entre as formas de definir
esses dois conceitos – mais o de deliberação – e as suas implicações políticas e normativas.
98
“Ao passo que seus limites são postos em questão, a democracia representativa
recebe nova injeção de ânimo por parte de uma literatura que busca reconceituá-la,
revalidando sua natureza, alargando seu escopo e provendo-lhe novas formas de
aplicação. Seja para fazer frente às propostas participativas, seja por reconhecer a
inviabilidade prática delas, seja para responder às demandas do pluralismo e do
multiculturalismo, a democracia representativa vem recebendo novas teorizações
que ampliam seus limites modernos.” (Ibid.)
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48
Além destas duas sensibilidades, ainda há outras correntes, como a dos defensores do “multiculturalismo” e
do “libertarianismo”, cujos caminhos e autores exemplares são explorados pelo autor no capítulo que
denomina como “a questão democrática na aurora do século XXI”. Resumidamente, pode-se afirmar que a
primeira corrente é representada por autores que focalizam as suas reflexões teórico-normativas sobre a
preocupação de conciliar os princípios fundamentais da “liberdade individual” e da “igualdade de
oportunidades” com o “reconhecimento da diversidade das culturas” – assim, autores multiculturalistas, como
Charles Taylor, Will Kymlicka e Michael Walzer, se diferenciam dos “comunitaristas” por não contestarem
diretamente a cosmovisão liberal. Por fim, a perspectiva identificada com o “libertarismo” é lida pelo autor como
uma defesa da “liberdade absoluta”, que por sua vez remete à noção de extensão das regras do mercado para
todos os demais âmbitos da vida social: seus defensores estão “convencidos da exatidão das teses neoliberais
que vêem nas regras do mercado o fundamento da liberdade e da justiça” (cf. O. Nay, 2007[2004]). Estes
últimos, ainda que com diferentes orientações ideológicas, têm um compromisso com o combate à expansão
do estado sobre a esfera individual, caminho que oprime os indivíduos e a própria sociedade formada por eles.
Entre os autores mais progressistas, está o filósofo Noam Chomsky, enquanto Robert Nozick seria um
representante da versão mais à direita no espectro político da teoria democrática.
101
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49
No âmbito da “deliberação”, o autor discute também a contribuição da teoria democrática de John Rawls –
Uma Teoria da Justiça, entre outras obras – e de outros autores, como Ronald Dworkin, Michael Walzer e
Amartya Sem, mas estas perspectivas são deliberadamente deixadas de fora nesta tese. Esses três
importantes autores, e suas respectivas teorias e conceitos, provavelmente aumentariam a complexidade da
abordagem analítica, de forma desnecessária. Neste caso, pareceu mais interessante explorar as
possibilidades de aproximação (e de distanciamento) diante das outras perspectivas selecionadas (realista e
pluralista), mais do que explorar as variações internas.
102
democracia deliberativa
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50
Em um artigo publicado no Brasil em 1995, Habermas apresenta “três modelos normativos de democracia”: a
“concepção republicana”, a “concepção liberal” e a “concepção deliberativa”. Esta classificação será retomada
adiante, na seção 2.3, quando se abordar a concepção de sua preferência, a última. De fato, são inúmeras as
apresentações tripartites da teoria democrática contemporânea, esta tese não traz nenhuma novidade neste
sentido. Por outro lado, considerando a apresentação de O. Nay, comentada no corpo do texto, estas
autoimagens da teoria democrática denotam a predominância do procedimentalismo na teoria democrática
contemporânea. Mesmo que já não seja o mesmo que a simples predominância da concepção procedimental
mínima, como se viu na literatura de política comparada, na seção 1.1, supra, e como ocorre nas relações
internacionais, por exemplo, na “teoria da paz democrática”.
51
Esta controvérsia é antiga e atravessa as diversas disciplinas das ciências sociais. Para uma discussão
interessante sobre a suposta opção entre “paradigmas” ou “escolas”, de um lado, e “autores” ou “figuras”, de
outro, no estudo das relações internacionais, cf. O. Waever (1996) e I. Neumann e O. Waever (1997). Sobre os
104
______________________________________________
problemas associados à utilização da ideia de “paradigmas” nas ciências sociais em geral, assim como neste
campo de estudos, ver S. Smith (1995). Em virtude da forte associação que se faz entre o conceito de
paradigma e a teoria da ciência apresentada por T. Kuhn na sua conhecida obra A Estrutura das Revoluções
Científicas (2000[1970]), prefere-se evitar a sua utilização nesta tese. Mesmo reconhecendo que a ideia de
“perspectivas” também não é imune a críticas.
105
O que pretendo aqui fazer é devolver ao riso colérico dos que riem da Filosofia
Política outro tipo de riso, que incide sobre a vetusta postulação de uma distinção
funda e de, no limite, uma incomunicabilidade entre uma reflexão de corte filosófico e
normativo e o trabalho, a meu juízo fundamental, que se realiza na dimensão
empírica da disciplina. Se minha exposição for minimamente bem-sucedida,
pretendo deixar claro que todos perdemos com essa distinção. Ela é obscura,
obscurantista e não faz justiça a essas duas áreas de trabalho, que são
fundamentais para a constituição da nossa disciplina. Uma dá sentido à outra. Uma
não pode existir sem a outra.
Renato Lessa.
ontológico das teorias, isto é, são identificados tanto os diversos elementos que
constituem a realidade como os modos como esses elementos, entidades ou
processos sociais estão conectados entre si. Por outro lado, as teorias também
assumem determinadas preferências normativas sobre como a democracia “deve
ser” organizada, mesmo quando afirmam estar apenas constatando o modo como
ela é, pois sempre são fornecidas bases para a elaboração de juízos sobre a
realidade. O elemento ontológico e o normativo estão sempre presentes nos
diversos discursos teóricos. Embora eles possam ser analiticamente distintos, na
prática nunca são completamente independentes entre si. As teorias não são
capazes de simplesmente descrever ou explicar um determinado estado de coisas,
pois elas sempre nos apresentam certas possibilidades existentes para a ação
humana, para a intervenção na realidade social. Sendo assim, as teorias são
construções intelectuais que sempre apontam, para além de seus elementos
explicitamente descritivos ou explicativos, certos horizontes práticos e éticos.
As escolhas realizadas ao longo da investigação refletem a preocupação
central do pesquisador com os problemas da democratização política em geral, e,
em particular, com as relações entre democracia, política externa e integração
regional, na Argentina e no Brasil das últimas duas a três décadas. Como as
instituições e estruturas políticas existentes distribuíram a capacidade de influir nas
decisões públicas entre os diversos agentes políticos de cada sociedade?
Propõe-se uma aproximação teórica alimentada pela seleção de um conjunto
de perspectivas e autores do pensamento político. Em tese, este quadro teórico
poderia ser utilizado como estrutura facilitadora para a compreensão do impacto das
instituições sobre outras políticas públicas – por que não poderiam servir para
analisar áreas como as políticas de orçamento, de educação ou de saúde pública?
Diferente do que ocorre com os estudos de política externa, existem muitos estudos
sobre a democratização dessas políticas, em ambos os países. Também poderia ser
interessante investigar outras áreas da vasta agenda de política externa destes ou
de outros países. Pode-se pensar na análise futura de outros temas, como as
políticas de segurança e defesa, de proteção ao meio ambiente, entre outras.
107
Deve ficar claro, no entanto, que as perspectivas utilizadas servem como uma
ferramenta metodológica, como um instrumento analítico, mas não há “modelos” a
serem testados, se a expressão é tomada no sentido de um conjunto de proposições
formais testáveis52. Os conceitos e teorias apenas auxiliam na análise e
reconstrução interpretativa dos processos investigados, assim como na elaboração
de uma narrativa histórica que faça sentido, que seja capaz de descrever e explicar
as dinâmicas políticas e suas relações com as instituições domésticas e regionais53.
Sem conceitos e teorias não existe qualquer possibilidade de interpretar
cientificamente a realidade política. São ferramentas fundamentais para as análises
politológicas em geral, considerando a complexidade dos fatos, os quais não se
apresentam organizados em categorias, mas como um continuum de fatos54.
As teorias são tomadas como mapas conceituais que ajudam na identificação
dos agentes e processos mais relevantes e na geração de hipóteses interpretativas.
Elas não têm a capacidade de explicar todas as trajetórias particulares de
comunidades concretas, no entanto, podem sugerir padrões de generalização a
serem confirmados pela história. Pela posição adotada aqui, deve ficar estreme de
dúvidas que se utiliza esta noção flexível de “perspectivas”, pois, como dito, ainda
que geralmente sejam descritas como “teorias”, elas não o são, no sentido mais
formal do termo. A ideia não é a retificação das teorias, não é tomá-las como a
própria realidade empírica ou histórica, mas defender uma atitude de abertura
______________________________________________
52
Não é este o tipo de abordagem proposto neste trabalho, não são identificadas variáveis mensuráveis nem
desenvolvidos testes empíricos das teorias discutidas aqui. “Perspectivas” são definidas simplesmente como
estruturas conceituais ou discursos teóricos que auxiliam na reorganização e interpretação da realidade
propriamente dita.
53
O estudioso inglês Edward H. Carr, um dos pioneiros no estudo moderno da política internacional, estava
consciente do papel dos conceitos históricos e alertou os demais estudiosos a respeito da necessidade de
categorias analíticas para reorganizar a realidade no plano intelectual. Em uma famosa citação, ele diz que
“um fato é como um saco, não fica de pé até que se põe algo nele”. São as teorias que fornecem isto,
comenta Ngaire Woods, ainda que seja necessário lembrar que “diferentes tipos de teoria demandam fatos de
maneiras diferentes” (Woods, 1997: 9).
54
Esta caracterização da realidade como um continuum de fatos sobre os quais são construídos conceitos e
interpretações é inspirada na elaboração de Antônio Jorge R. da Rocha: “o mundo em que vivemos não se
encontra organizado em categorias. Ao contrário, a realidade internacional constitui-se como uma enormidade
de fatos, que se apresentam como um continuum, com todas as suas complexidades e contradições, sobre os
quais é possível formular uma quantidade ainda maior de interpretações” (2002: 39).
108
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55
Quando se trata da obra de Robert Dahl, cabe destacar que o seu pensamento modificou-se ao longo dos
mais de cinquenta anos de produção acadêmica. É comum, na literatura, distinguir entre a concepção inicial e
mais densa de poliarquia (R. Dahl e C. E. Lindblom, 1956, e R. Dahl, 1971), que incluía a existência de canais
de participação na definição das políticas públicas, e a concepção reelaborada no final do século XX, quando
enxugou o elemento participativo e admitiu que determinados grupos possuem acesso privilegiado à esfera de
110
por fim, a teoria da democracia participativa, tal como formulada por Carole
Pateman, que retoma argumentos dos filósofos da democracia direta, como Jean-
Jacques Rousseau e John Stuart Mill. Estas três visões ampliaram o número e a
natureza dos agentes envolvidos nas instituições políticas, em comparação com as
perspectivas realistas do elitismo, seja nas visões mais liberais e procedimentais
mínimas, seja nas visões mais próximas a um socialismo democrático substantivo.
Entre os autores examinados nessa perspectiva, alguns incorporam a
dimensão participativa, como é o caso da formulação original do conceito de
poliarquia (Dahl, 1971) e da formulação de Carole Pateman (1970). De todo modo,
todas as visões tratadas nesta seção apontam para uma ampliação do espectro
restrito da teoria das elites realista, no sentido de incluir uma pluralidade de atores
políticos que pertencem a uma dada comunidade política (partidos, sindicatos,
associações etc.). Nesse sentido, é ampliado, pelo menos a princípio, o rol dos
atores políticos com capacidade de interferir no jogo político-institucional.
A principal referência teórica da democracia deliberativa é Jürgen Habermas.
As contribuições deste filósofo, ao longo de décadas de produção intelectual,
elevaram a perspectiva deliberativa a alternativa teórica de destaque, sobretudo a
partir da elaboração melhor definida do modelo, desde as duas últimas décadas do
século passado. Habermas ocupa o centro desse movimento intelectual, embora
haja outros teóricos deliberativos, alguns dos quais mencionados nesta seção. Em
parte por esta razão e, sobretudo, para evitar uma extensão desproporcional do
texto, a seção é estruturada a partir do pensamento habermasiano. Isso significa
que são enfatizados os conceitos-chave, argumentos e problemáticas de Habermas,
que são acompanhados de referências a alguns outros teóricos deliberativos, além
dos comentários de um par de estudiosos do tema. Coerente com as premissas
filosóficas de sua teoria sociológica e crítica das instituições, em particular com a sua
teoria da ação comunicativa, Habermas defende a construção da democracia a partir
de procedimentos racionais de argumentação. Esta é a saída fornecida por ele para
resgatar a legitimidade das instituições democráticas, uma vez que o processo
deliberativo em torno das decisões públicas garante também a aceitação racional
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tomada de decisão. Pode-se referir a esta segunda fase como “neopluralismo”, como ocorre na literatura, ou
modelo “neopoliárquico”, para diferenciar da primeira fase.
111
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56
Entre os teóricos, também foram pesquisadas as discussões originadas das contribuições de Joshua Cohen
(1989), John Dryzek (2004, 2008), Amy Guttman (1995), Seyla Benhabib (1996) e Nancy Fraser (1993). Esses
autores poderiam ser agrupados em espécies de “vertentes” da perspectiva deliberativa, como ocorreu nas
duas seções anteriores, o que não se fez principalmente por uma questão de concisão e em benefício da
clareza que se espera haver obtido no texto como está. Além disso, cabe destacar o valor de cada texto da
literatura sobre Habermas e sobre outros defensores da democracia deliberativa, os quais ajudaram a
compreender as nuances dessa perspectiva, como, entre outros, os trabalhos de Leonardo Avritzer (1996,
2000, 2004), Boaventura de Souza Santos e Leonardo Avritzer (org.)(2002), Walter Reese-Schäfer (2009),
Fábio Wanderley Reis (1999, 2004), Sonia Alvarez, Evelina Dagnino e Arturo Escobar (org.)(2000), e Vera
Coelho e Marcos Nobre (org.)(2004), entre outras.
112
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57
O livro de Hirschman associa a cada uma destas três fases de afirmação histórica dos direitos de cidadania
uma onda reacionária. Assim, há três movimentos de reação aos progressos históricos representados pelas
sucessivas afirmações dos direitos civis pela Revolução Francesa; a segunda onda reagiu à extensão dos
direitos políticos, ocorrida durante todo o século XIX; e a terceira onda, contemporânea à Conferência de 1949
que deu origem ao livro, refere-se à crítica ao welfare state. A análise dos discursos reacionários realizada pelo
autor parte da construção de uma categorização das “três teses reativo-reacionárias principais”, denominadas
pelo autor como as teses da perversidade, da futilidade e da ameaça: “De acordo com a tese da perversidade,
qualquer ação proposital para melhorar um aspecto da ordem econômica, social ou política, só serve para
exacerbar a situação que se deseja remediar. A tese da futilidade sustenta que as tentativas de transformação
social serão infrutíferas, que simplesmente não conseguirão ‘deixar uma marca’. Finalmente, a tese da ameaça
argumenta que o custo da reforma ou mudança proposta é alto demais, pois coloca em perigo outra preciosa
realização anterior.” (A. Hirschman, 1991: 15-16)
115
leis sociais imutáveis, entre elas o permanente controle oligárquico do poder político,
apesar dos supostos avanços democráticos.
O que eles pretendem elaborar é uma crítica científica aos efeitos negativos
do envolvimento das massas no processo político. Aliás, datam desse mesmo
período as primeiras teorias científicas que, amparadas por descobertas médicas e
psicológicas, enfatizavam o quanto o comportamento humano é motivado por forças
irracionais. Essas descobertas, amparadas em pesquisas positivistas, curiosamente
apontavam para o elemento humano irracional e, assim, forneciam argumentos e
evidências para a contestação das crenças iluministas na racionalidade do
comportamento humano, no progresso e na perfectibilidade do homem.
A partir do suposto epistemológico de que existem leis sociais imutáveis, as
quais podem ser conhecidas objetivamente através da observação, os teóricos das
elites procuram menosprezar as possibilidades de mudanças políticas advindas da
expansão do sufrágio universal. A constatação da prevalência de leis objetivas que
governam o mundo político, como o domínio da maioria pela minoria, tem como
corolário a futilidade da extensão da cidadania política. É inútil expandir o direito ao
voto, sendo irracional a massa, pois ela estará sempre sujeita às manobras das
elites políticas governantes. Nesse sentido, os pensadores italianos Gaetano Mosca
e Vilfredo Pareto afirmaram que as mudanças políticas introduzidas pelas novas
regras democráticas não modificariam as leis constantes que governam a política.
Influenciado pelos dois, Michels condensou a sua versão da história política na “lei
de ferro da oligarquia”.
Mosca postula que as sociedades são divididas entre os governantes, uma
classe política minoritária detentora do poder, e os governados, constituídos pela
vasta maioria da sociedade, destituída do poder político. Em sua opinião, todas as
formas de governo estão sujeitas a esta dicotomia fundamental. Seu libelo contra as
instituições democráticas as vê como meras hipocrisias que dissimulam a real
política da classe governante, onde uma minoria decide no lugar da massa
desorganizada, que apenas legitima a desigualdade fundamental reinante na
sociedade. Com isso, ele desqualificava o pensamento de filósofos que haviam
abordado o problema das formas de governo, de Aristóteles a Maquiavel e
Montesquieu. A formação de uma classe dirigente resulta da capacidade de
organização das minorias que detêm o poder, a classe política:
116
“o representante não é eleito pelos votantes, mas, em geral, se faz eleger por eles.
(...) Seja qual for o caso, uma candidatura é sempre obra de um grupo de pessoas
unidas por um propósito comum, uma minoria organizada que, fatal e
58
inevitavelmente, impõe sua vontade à maioria desorganizada” .
A ideia não era exatamente nova. O próprio Mosca reconhece ter lido e cita
Saint-Simon, Taine e a dupla Marx e Engels. A sua contribuição reside na
formulação da ideia como lei científica, alegadamente amparada em observação
paciente, sistemática e imparcial dos fatos políticos na história. A explicação do autor
para essa lei, isto é, sua teoria propriamente dita, atribui o postulado universal do
domínio da minoria ao fato de ela ser organizada, entendendo por organização o
conjunto de relações de interesses que vinculam os dirigentes ou a apropriação do
aparelho estatal em benefício próprio, como resume Bobbio:
______________________________________________
58
Gaetano Mosca apud Hirschman, 1991: 51.
117
______________________________________________
59
Trata-se do livro Political Parties, publicado originalmente na Alemanha em 1910 e na Inglaterra em 1911. No
Brasil, há uma tradução publicada pela Editora UnB, de 1982.
118
sobre os mandantes, dos delegados sobre os delegantes. Quem diz organização diz
oligarquia” (1982: 238).
Pode-se reconhecer a influência dos elitistas anteriores, mas também
reverbera a abordagem de Max Weber, de quem foi amigo, em particular o
argumento do inevitável processo de racionalização do mundo ocidental e a
consequente expansão do controle burocrático das decisões políticas. Para Michels,
as oligarquias tendem a perpetuarem-se no poder e agem sempre em interesse
próprio, não importando as tentativas de estender a participação ou o controle
popular do governo. Em resumo, a democracia é impraticável, se concebida nos
termos do ideal participativo ou do governo direto das massas. Hirschman comenta o
trecho onde Michels “cita com aprovação a expressão italiana ‘Si cambia il maestro
di cappella / Ma la musica è sempre quella’ (Troca-se o maestro de capela / Mas a
música é sempre aquela)”, dizendo: “trata-se de um exato equivalente de Plus sa
change, plus c’est la même chose, com a rima de lambujem” (Hirschman, 1991: 55).
No entanto, há uma sutil diferença entre o pensamento de Michels e o de Mosca,
para quem o domínio da minoria é explicado pelo fato de ser organizada. Pelo
raciocínio de Michels, é a própria organização que causa a formação de uma
oligarquia, não há uma classe dominante prévia à organização.
Para concluir a apresentação da tríade de teóricos realistas da democracia, N.
Bobbio (1997) observa que, se por um lado suas teorias conferiram suporte científico
ao exercício do poder por uma minoria em detrimento da maioria, por outro lado elas
impulsionaram a elaboração de reinterpretações da teoria do poder da minoria. São
reinterpretações “liberais” e “democráticas” das proposições elitistas, ou seja,
interpretações democráticas da lógica explicativa das elites, as quais depositam fé
na possibilidade de realização da democracia, certamente em maior medida do que
acreditavam esses três precursores analisados. Entre os intérpretes “liberais”,
enquadram-se as argumentações que viam na competição entre uma classe política
no governo e uma classe política na oposição as bases de um regime pluralista,
enquanto isso os intérpretes “democráticos” sustentaram, a partir do pós-guerra, isto
é, após a derrocada do nazismo e do fascismo, que “as melhores elites são aquelas
que se formam através da luta e estão em permanente concorrência entre si, como
afirmam as doutrinas liberais, as quais, sendo eleitas e controladas periodicamente
pelos cidadãos, não se ‘impõem’ mas se ‘propõem’, como afirmam as teorias
democráticas” (Bobbio, 1997: 387).
119
“Há três tipos puros de dominação legítima. A vigência de sua legitimidade pode ser,
primordialmente:
1-) de caráter racional: baseada na crença na legitimidade das ordens estatuídas e
do direito de mando daqueles que, em virtude dessas ordens, estão nomeados para
exercer a dominação (dominação legal), ou
2-) de caráter tradicional: baseada na crença cotidiana da santidade das tradições
vigentes desde sempre e na legitimidade daqueles que, em virtude dessas tradições,
representam a autoridade (dominação tradicional), ou, por fim,
3-) de caráter carismático: baseada na veneração extracotidiana da santidade, do
poder heróico ou do caráter exemplar de uma pessoa e das ordens por esta
reveladas ou criadas (dominação carismática).” (Weber, 1997: vol. 1: 141, com grifo
no original)
“em seu sentido genuíno, é uma espécie de dominação carismática oculta sob a
forma de uma legitimidade derivada da vontade dos dominados e que só persiste em
virtude desta. (...) Onde quer que se procurasse legitimar essa forma de dominação,
foi mediante o reconhecimento plebiscitário pelo povo soberano” (Weber, 1997: vol.
1: 176-7).
Weber sustenta, ademais, que um presidente com poder político real é mais
eficaz do que um primeiro-ministro para fazer frente ao parlamento e propor políticas
de alcance nacional, o que ele explica pela sua legitimidade advinda do processo
eleitoral, abrindo a possibilidade de obter o apoio das grandes massas no confronto
com outros centros de poder, como observa G. Cohn (1993). O estudioso de Weber
que prefaciou a edição brasileira do Parlamento e Governo adiciona que:
“Com base nisso Weber passou a defender em todas as instâncias, incluindo a sua
participação na elaboração da Constituição republicana de Weimar (1919), a figura
do presidente por eleição direta, investido de amplos poderes de iniciativa e decisão
124
______________________________________________
60
O autor se refere à divulgação pública de uma série de pronunciamentos pessoais, “em parte, agressivos”, do
líder alemão: de um telegrama indignado contra ataques britânicos no norte da África, que favoreceu o
enfrentamento entre Alemanha e Inglaterra na Guerra dos Böeres; de discursos, textos e gravuras que
advertiam contra o “perigo amarelo” vindo do extremo oriente, que favoreceu – sempre no argumento de
Weber – os comportamentos de oposição à Alemanha, da parte do Japão, em 1914, e da China, em 1917; dos
discursos de Damasco, que difundiram a simpatia alemã pela cultura islâmica e o seu interesse político na
integridade da Turquia; e o discurso de Tânger, que empenhou a palavra do líder alemão em favor do sultão
marroquino, confrontando diretamente interesses da França na região.
125
______________________________________________
61
Como o pensamento schumpeteriano já foi bastante aprofundado no Capítulo 1 (em especial, na subseção
1.2.1), aqui é dada ênfase apenas aos elementos não apresentados lá. Eventualmente, pode haver a repetição
de alguma ideia, mas que pareceu conveniente inseri-la na apresentação dos novos elementos.
127
esta inversão teórica, referindo-se à argumentação clássica para propor uma visão
alternativa de democracia:
______________________________________________
62
Estes dois elementos da teoria de Schumpeter possuem continuidade na obra de R. Dahl (1971) – daí falar-
se, com frequência, na “tradição Schumpeter/Dahl” – entre outros autores posteriores. Normalmente, quando a
literatura aborda as duas dimensões do primeiro, é indicada a sua continuação nas dimensões da poliarquia
(contestação e participação), conceito cunhado por Dahl para designar as democracias realmente existentes,
recusando assim qualquer concepção ‘idealista’ de democracia. O conceito deste último implica também a
necessidade de existirem as liberdades civis e políticas, como os direitos à expressão, assembleia e
associação, condição para a realização do debate político e a condução das campanhas eleitorais. Neste
trabalho, preferiu-se separá-los, embora se considere que ambos são tomados como referência para a
concepção procedimental mínima, como se insistiu no capítulo anterior.
130
Nesta seção, são exploradas três vertentes que possuem diferenças internas,
como ocorre nas outras duas perspectivas de democracia, mas cujas semelhanças
entre si justificam apresentá-las separadamente das demais, com o rotulo variável
de “pluralismo” ou “participativismo”. Todas elas ampliam o número e a natureza dos
agentes envolvidos nas instituições políticas, em comparação com as perspectivas
131
______________________________________________
63
São muitas as classificações feitas sobre esta literatura complexa, que abrange muitos subcampos e
perspectivas teóricas. Foge ao propósito deste trabalho explorar essas diferenças, mas vale mencionar a
leitura de F. Reis, que aparece a seguir, no corpo do texto, e a conhecida leitura de Lars Udehn (1996), que
diferencia os teóricos da escolha racional, mais propensos a aceitar comportamentos cooperativos, e os
teóricos da escolha pública, que trabalham com a prevalência dos interesses privados sobre qualquer
altruísmo político.
133
típicos da teoria microeconômica, mais do que fizera Schumpeter. Por outro lado,
também é uma visão competitiva da arena política democrática. A democracia é
vista como o resultado do conflito permanente dos indivíduos e grupos políticos que
disputam os cargos governamentais, com as vantagens em termos de prestígio,
poder e riqueza deles extraídos. Assim como em Schumpeter, também, o que existe
é um conflito entre os interesses dos indivíduos e grupos em condição de disputar o
governo, no qual os agentes são guiados por esses interesses particulares. Não há
qualquer visão de solidariedade social, de interesse coletivo, de bem público, pois
essas noções são meros artifícios ideológicos utilizados como recursos políticos na
busca de interesses sempre particulares. Apesar destas afinidades, parece mais
adequado diferenciar as perspectivas de Downs e Schumpeter, colocando o primeiro
ao lado de autores pluralistas, tanto pela extensão da racionalidade aos eleitores,
em vez de restringi-la às elites governantes, como pela pretensão epistemológica de
construir um modelo racionalista e empírico da democracia.
Ultrapassada esta questão mais abstrata, que revela os limites da
categorização de autores dentro de determinadas perspectivas, segue a exposição
da estrutura do modelo, segundo o próprio autor:
Por outro lado, esta é uma visão que restringe a democracia ao processo de
escolha majoritária, o problema do “winner takes it all”, em sua formulação
anglófona, ou, em português, “quem vence leva tudo”. Isto significa que o modelo
teórico de Downs tende a sub-representar ou simplesmente excluir as minorias,
dando todo o poder à maioria e incorrendo no risco da “tirania da maioria”, tal como
advertira toda uma tradição que remonta a John Locke, no século XVIII. Sendo
assim, é introduzida uma assimetria fundamental no modelo de Downs, o que o
próprio autor parece admitir implicitamente quando reconhece que a verdadeira
igualdade é impossível mesmo nas democracias, que “a democracia substancial é
irrealizável”, como ele afirma. Em conclusão, assim como a incerteza é um elemento
característico da democracia, também a desigualdade se constitui em pedra angular
do modelo democrático de sua autoria.
Agora as perspectivas associadas ao teórico norte-americano Robert Dahl.
Mais precisamente, são tratadas outras duas versões do pluralismo, ambas
associadas e ele em virtude do fato de que houve uma modificação substancial do
seu pensamento político. Esta mudança tem a ver diretamente a questão da
democratização das políticas públicas. Por isso, decidiu-se discutir em separado o
modelo poliárquico, esboçado ainda nos anos 1950, mas cuja referência principal é
a obra Poliarquia, de 1971, e a sua reformulação, realizada a partir do final dos anos
1970 e durante as décadas seguintes, nomeado modelo neopoliárquico.
Resumidamente, são tratadas algumas questões mais teóricas dessa contribuição,
tendo em mente este fato de que, ao longo de sua trajetória, é possível identificar
essas duas linhas teóricas. Se elas não chegam a entrar em confronto direto, ao
menos são emblemáticas de duas perspectivas diversas sobre os processos
políticos implicados nas democracias.
Esses dois modelos de poliarquia, para usar o conceito que o autor construiu
para designar as democracias reais, diferenciam-se por terem diferentes
perspectivas sobre o processo de tomada de decisões em políticas públicas. Ou, em
outros termos, o “pluralismo” e o “neopluralismo” divergem em termos das diferentes
expectativas do autor quanto às implicações das instituições democráticas. Como
mencionado em nota anterior, na concepção inicial era incluída a condição de haver
canais de participação nos processos decisórios das políticas públicas e
mecanismos para assegurar a contínua responsividade governamental, enquanto a
concepção reelaborada nas últimas décadas do século XX excluiu os elementos
136
______________________________________________
64
Entre as publicações coletivas, vale consultar as discussões teóricas e os estudos empíricos contidos no livro
organizado por Boaventura de Souza Santos e Leonardo Avritzer (Democratizar a Democracia, 2002), que
enfatizam experiências participativas em países em desenvolvimento, e o livro organizado por Sonia Alvarez,
Evelina Dagnino e Arturo Escobar (Cultura e Política nos Movimentos Sociais Latinoamericanos, 2000), cujo
foco é no papel dos movimentos sociais e de suas políticas culturais na região. Este último traz discussões
sobre a democracia participativa e traz algumas questões teóricas relevantes para a democracia deliberativa.
65
Cf., a respeito dos novos mecanismos de participação e deliberação, os trabalhos contidos na obra organizada
por Coelho e Nobre (2004), uma dessas obras dedicadas ao estudo das experiências de participação e
deliberação no Brasil, intitulada Participação e Deliberação: Teoria Democrática e Experiências Institucionais
no Brasil Contemporâneo. Não se poderia deixar de observar que, embora esses estudos e mecanismos
hajam se estendido a diversas áreas de políticas públicas, as relações entre democracia e política externa ou
entre democracia e integração regional são lacunas manifestas na literatura pesquisada. Mesmo com o
aumento dos estudos de política externa, a sua relação com as instituições democráticas ainda é raramente
explorada.
142
______________________________________________
66
Como o pensamento de Rousseau já é bastante conhecido, evita-se aqui a tarefa de explorar mais a fundo
cada um dos principais conceitos utilizados pelo filósofo. O que mais interessa são os seus argumentos
centrais, e, naturalmente, as interpretações e inovações que impulsionou nesta perspectiva participativa.
143
arranjos institucionais dos quais fazem parte: “O exame (...) da teoria política de
Rousseau nos proveu do argumento de que há uma inter-relação entre as estruturas
de autoridade das instituições e as qualidades psicológicas dos indivíduos, e (...) de
que a principal função da participação tem caráter educativo” (Pateman, 1992[1970]:
42). O maior destaque é dado por Rousseau à função mencionada, embora ele
atribua uma tripla função exercida pela instituição: educação, aceitação das
decisões públicas e integração.
Assim, em primeiro lugar, os indivíduos aprendem ao participarem da tomada
de decisões, pois se habituam a distinguir as duas vontades que cada qual carrega
em si, a vontade individual e a vontade geral. A ideia de “educação” é utilizada no
sentido amplo do termo, pois “o sistema ideal de Rousseau é concebido para
desenvolver uma ação responsável, individual, social e política, como resultado do
processo participativo” (1992[1970]: 38). O aprendizado resulta da necessidade de
cada indivíduo levar em consideração outros interesses, se quiser a cooperação dos
demais, nas suas decisões políticas. O indivíduo é educado a distinguir os interesses
privados dos públicos. A ideia de Rousseau envolve uma noção de progresso:
quanto mais os indivíduos participam, maior discernimento eles adquirem, chegando
ao ponto de “não sentir quase nenhum conflito entre as exigências da esfera pública
e da esfera privada” (Ibid.). Quando os cidadãos são envolvidos diretamente nas
decisões, desenvolve-se uma dependência de cada um em relação a todos os
demais: eles aprendem que cada cidadão é “impotente para realizar qualquer coisa
sem a cooperação de todos os outros, vistos coletivamente como o soberano, e a
participação independente constitui o mecanismo pelo qual esta interação é
reforçada” (Pateman, 1992[1970]: 36).
As outras duas funções da democracia participativa também são importantes.
A aceitação das decisões públicas vincula-se, em primeiro lugar, à própria noção de
“liberdade”, definida por Rousseau como “a obediência à lei que alguém prescreve a
si mesmo”. Para Rousseau, “a participação pode aumentar o valor da liberdade para
o indivíduo, capacitando-o a ser (e permanecer) seu próprio senhor” (Pateman,
1992[1970]: 40). A participação permite que as decisões coletivas sejam aceitas
mais facilmente pelo indivíduo, pois a autoridade normativa é reconhecida como
legítima, considerando a conexão direta e ativa entre o indivíduo e a instância
decisória, isto é, o indivíduo aceita as regras porque participou de sua elaboração.
144
______________________________________________
67
A autora observa que, no início de sua produção, J. S. Mill seguiu fervorosamente o pensamento de seu pai
(James Mill) e de Jeremy Bentham, criticando-as mais tarde. Assim, ele forneceu um exemplo das diferenças
entre as teorias da democracia representativa e da participativa (a autora utiliza as expressões “governo
representativo” e “democracia participativa” e dá preferência aos textos dessa última tendência). Ademais,
cabe observar que Mill adota uma postura elitista ao discutir as complexidades da implantação de um sistema
de participação nas grandes e complexas sociedades modernas. Do mesmo modo que James Mill e Bentham,
J. S. Mill defendia um governo por uma “minoria instruída” (e aqui a ideia de instrução se refere à educação no
sentido limitado ou acadêmico). A grande dificuldade política se encontra na relação entre a “elite governante”
e a “multidão”: como garantir a prestação de contas da elite e conciliar isto com a prevalência do seu domínio
sobre o sistema político. Neste ponto, revela-se uma das inúmeras ambiguidades que existe em sua obra, pois
é uma formulação típica do pensamento elitista que predominou nas sociedades europeias até meados do
século XX.
145
______________________________________________
68
Esta é outra tendência associada às discussões sobre a ampliação da participação nos dias de hoje. Na
Argentina dos anos 90 e 2000, multiplicou-se o número de casos de indústrias ocupadas por trabalhadores, as
chamadas empresas recuperadas ou ocupaciones de fábricas, dezenas delas tendo obtido sentenças judiciais
favoráveis, após a pior crise econômica de sua história.
146
Esta visão de Cole pode ser lida como uma proposta de sintetizar o
socialismo e a democracia participativa, sendo influenciada simultaneamente por
Marx e Rousseau, sobretudo. O resultado é a valorização do autogoverno ou das
gestões participativas, não apenas nas instituições políticas, mas também no mundo
da produção, com a substituição do princípio de hierarquia típico das empresas
capitalistas por alguma forma de autogestão da indústria:
“Para Cole, assim como para Rousseau, não poderia haver igualdade de poder
político sem uma quantidade substancial de igualdade econômica, e sua teoria nos
oferece algumas interessantes indicações sobre a maneira de se alcançar a
igualdade econômica daquela sociedade ideal de camponeses proprietários de
Rousseau na economia moderna. Segundo Cole, ‘a democracia abstrata das urnas’
não envolvia uma igualdade política real; a igualdade de cidadania implícita no
sufrágio universal era apenas formal e obscurecia o fato de que o poder político era
dividido com muita desigualdade.” (Pateman, 1992[1970]: 56)
John Dewey foi o autor escolhido para finalizar esta seção sobre a
democracia participativa, por duas razões principais. Por um lado, ele é um dos
autores modernos mais resgatados pelas perspectivas participativas
contemporâneas, ao lado dos mencionados por Pateman e de tantos outros não
mencionados aqui. Por outro lado, a complexidade do pensamento de Dewey
permite situá-lo entre as posições e argumentos tanto dos teóricos da participação
posteriores como daqueles mais alinhados aos modelos deliberativos atuais. Apesar
de haver publicado principalmente nas quatro primeiras décadas do século passado,
ele pode metaforicamente ser representado aqui como uma charneira ou dobradiça,
conexão de fato existente na literatura contemporânea, entre os artífices intelectuais
da participação e da deliberação.
São destacados aqui os elementos do pensamento do autor considerados
mais relevantes para a vertente da democracia participativa: a crítica à identificação
entre a ideia de democracia e as instituições governamentais formais, o vínculo que
Dewey identifica entre os conceitos de democracia e comunidade política e,
finalmente, a defesa da extensão da participação a todos os âmbitos da
comunidade, os quais não se restringem, mas certamente incluem o processo de
tomada de decisões sobre políticas públicas.
A obra intitulada The Public and Its Problems pode ser descrita como um
esforço teórico e metodológico de compreensão do público e dos problemas
relacionados ao Estado democrático. A democracia é tratada como uma questão
prática, em vez de um problema para investigações teóricas preocupadas somente
148
Para ele, deve-se iniciar a investigação pelos atos que são realizados, em vez
de focalizar causas hipotéticas desses atos, para então considerar as suas
consequências. Nesse sentido, o autor adiciona que se deve introduzir a observação
das consequências exatamente na qualidade de consequências, em conexão com
os atos dos quais elas decorrem, o que ele denomina “inteligência”. Nas suas
palavras, o ponto de partida da reflexão política é o “fato objetivo de que as ações
humanas possuem consequências sobre outros, de que algumas delas são
percebidas, e de que sua percepção leva ao esforço subsequente de controlar a
149
“A ‘ideia de democracia’ seria tão vasta e tão plena que não poderia ser
exemplificada através do Estado. Nenhum Estado, nenhuma forma de Estado seria
suficiente para exemplificar a ideia de democracia em sua integridade porque a
democracia transcenderia o Estado: ela se encontra, simultaneamente, em todos os
modos de associação humana dentro da comunidade. Para que a ideia de
democracia seja realizada, por conseguinte, ela precisa produzir efeitos sobre a
família, a escola, a religião, a indústria, além de outras formas de associação
humana.
150
______________________________________________
69
Os autores elaboram uma extensa lista dos elementos que consideram comuns às diversas abordagens
contemporâneas da democracia participativa, que inclui quase todos os argumentos explorados acima. Como
são vinte e quatro itens, alguns deles talvez não tenham sido tratados antes e parece valer à pena a
transcrição completa: “1) A defesa de um engajamento cívico, por meio do qual os cidadãos participem do
processo de tomada de decisões políticas no plano nacional e façam parte do processo de formulação de
políticas no plano local; 2) A defesa de que tal engajamento se dê por meio de uma participação direta e ativa
dos cidadãos na tomada de decisões políticas e na administração do espaço social no qual se inserem; 3) A
suposição de que tal participação direta e ativa dos cidadãos não seja passível de mediações, ou seja, que se
dê sem o intermédio de representantes eleitos com a finalidade de agir em seu nome; 4) A expectativa de que
a participação direta e ativa dos cidadãos no processo de tomada de decisões conduza à construção de
consensos que possam eventualmente ser substitutos à prevalência da regra da maioria; 5) A suposição de
que os cidadãos devem agir diretamente em seu próprio nome, fazendo valer seus interesses por meio da
ação coletiva; 6) A compreensão de que tal ação coletiva depende da coordenação da ação individual de cada
cidadão; 7) A compreensão de que a ação individual de cada cidadão envolve a sua atividade cotidiana, isto é,
pressupõe a prática de alguma atividade a ser exercida coletivamente; 8) A suposição de que é no exercício
cotidiano de suas atividades que os cidadãos se educarão para a democracia participativa; 9) A suposição de
que a educação é um componente importante da democracia participativa, devendo ser compreendida como
151
______________________________________________
algo que vai além da instrução escolar formal; 10) A suposição de que o engajamento cívico e a participação
direta e ativa são componentes constitutivos de uma educação para a democracia; 11) A suposição de que,
por mais que a educação desempenhe um papel importante na democracia participativa, ele não é o de
condição ou requisito para a sua realização: a participação política deve estar ao alcance de qualquer cidadão
ordinário, sendo o homem comum o principal sujeito político da democracia participativa; 12) A presunção de
que a auto-organização e a autoadministração dos cidadãos são feitas com base na interação social; 13) A
presunção de que tal interação social se dá a partir de graus diferenciados de elementos comunicativos,
discursivos e deliberativos; 14) A suposição de que a interação social depende, em diferentes graus, de uma
interação face a face; 15) A suposição de que tal interação face a face deve ser estabelecida a partir da
associação dos cidadãos, a ser feita a partir de diferentes graus de institucionalização; 16) A suposição de que
tal associativismo deve dar-se por razões locais e particulares, por meio da agregação dos interesses de
grupos de pessoas que se relacionem justamente por causa da similitude de tais interesses; 17) A suposição
de que o associativismo não deve ter causas essencialmente políticas (por mais que a sua prática leve a uma
determinada forma de organização política, a democracia participativa), bastando para tanto a autogestão dos
interesses daqueles que se associam em torno de um tema (associações científicas, culturais, religiosas etc.)
ou de um espaço (escolas, universidades, fábricas, bairros etc.); 18) A suposição de que tal associação deve
dar-se em diferentes níveis da vida coletiva, não se restringindo ao domínio político; 19) A reivindicação de que
o domínio político não deve se restringir às instituições formais do Estado; 20) A reivindicação normativa de
que aquilo que se chama de política deve transcender o Estado, envolvendo diferentes espaços públicos que
facultem a organização da sociedade civil; 21) A suposição de que tais espaços públicos tenham, muitas vezes
e em diferentes graus, aspectos comunitários; 22) A defesa de um nexo estreito entre os conceitos de
democracia e comunidade; 23) A compreensão de que o aspecto comunitário da democracia participativa
responde, em alguma medida, pelo compartilhamento de uma experiência comum; 24) A aposta de que à
ênfase nas ideias de práxis, atividade e ação corresponde a ênfase no caráter empírico das teorias da
democracia participativa.” (Feres Jr. e Pogrebinschi, 2010: 148-150)
152
______________________________________________
70
Quanto aos livros anteriores, vale mencionar Mudança Estrutural da Esfera Pública (1962) e O Discurso
Filosófico da Modernidade (1985, esp. Capítulo XI), entre outros da imensa obra de Habermas. Depois da
publicação de Direito e Democracia, outros livros deram prosseguimento ao seu pensamento filosófico-político-
democrático, como Verdade e Justificação (1999) e A Ética da Discussão e a Questão da Verdade (2003).
153
“(...) Habermas fez a tentativa, mais de 30 anos depois de seu pioneiro [Mudança
Estrutural da Esfera Pública, 1962], de delinear um conceito normativo de esfera
pública como base da teoria da democracia. Uma vez que, em conceitos anteriores
de esfera pública, nunca ficou totalmente claro se com isso não era estilizada
nostalgicamente uma determinada forma que, há muito tempo, entrou para a história
das ideias, de esfera pública do Iluminismo, que provavelmente nunca existiu desse
modo, Habermas completa aqui o passo rumo a uma ideia da democracia
deliberativa, na qual os processos de formação de opinião recebem tratamento
equivalente aos da decisão administrativa. Com isso, ele se atém às instituições já
presentes em 1962. A democracia deliberativa é, ao mesmo tempo, parâmetro
normativo do presente e projeto utópico-real do futuro.” (W. Reese-Schäfer, 2009:
91)
______________________________________________
71
Vale transcrever o trecho no qual Habermas esboça a concepção de Bobbio, citando-o diretamente: “Tendo
tais constatações céticas como pano de fundo, Bobbio tenta determinar, com muita precaução, as regras do
jogo democrático: ‘Eu parto da premissa segundo a qual a única maneira de conduzir uma discussão razoável
156
cientista político italiano utiliza uma sequência de constatações céticas que servem
para esvaziar, degrau por degrau, as supostas promessas do conceito “clássico” de
democracia. Para Habermas, a definição proposta por Bobbio “não toca no cerne de
uma compreensão genuinamente procedimentalista da democracia”. O pensador
alemão dá as seguintes razões para recusar tal definição e cita um pensamento de
John Dewey, de O Público e Seus Problemas:
______________________________________________
sobre a democracia, entendida como uma forma de governo distinta de todas as outras formas autocráticas,
consiste em considerá-la através de uma série de regras... que estabelecem quem está autorizado a tomar
decisões envolvendo a coletividade e que tipo de procedimentos devem ser aplicados’. As democracias
preenchem o necessário ‘mínimo procedimentalista’ na medida em que elas garantem: a) a participação
política do maior número possível de pessoas privadas; b) a regra da maioria para decisões políticas; c) os
direitos comunicativos usuais e com isso a escolha entre diferentes programas e grupos dirigentes; d) a
proteção da esfera privada. A vantagem dessa definição minimalista consiste no seu caráter descritivo. Ela
abrange o conteúdo normativo de sistemas políticos já existentes nas sociedades ocidentais. Por isso, Bobbio
pode chegar à seguinte conclusão: ‘O conteúdo mínimo do Estado democrático não se modificou: ele é
constituído pelas garantias das liberdades de base, pela existência de partidos que concorrem entre si, por
eleições periódicas com sufrágio universal, por decisões tomadas coletivamente ou resultantes de
compromissos ... ou tomadas sobre a base do princípio majoritário, ou como resultado de debates públicos
entre as diferentes facções, ou entre os aliados de uma coalizão governamental’.” (Habermas, 2003[1992], vol.
II: 26-27)
157
“A teoria do discurso coloca em jogo uma outra ideia: para ela processos e
pressupostos comunicativos da formação democrática da opinião e da vontade
funcionam como a comporta mais importante para a racionalização discursiva das
decisões de um governo e de uma administração vinculados ao direito e à lei.
Racionalização significa mais do que simples legitimação, porém menos do que a
constituição do poder. O poder disponível administrativamente modifica sua
composição durante o tempo em que fica ligado a uma formação democrática da
opinião e da vontade, a qual programa, de certa forma, o exercício do poder político.
Independentemente disso, somente o sistema político pode ‘agir’. Ele constitui um
sistema parcial, especializado em decisões que obrigam coletivamente, ao passo
que as estruturas comunicativas da esfera pública formam uma rede ampla de
sensores que reagem à pressão de situações problemáticas da sociedade como um
todo e estimulam opiniões influentes. A opinião pública, transformada em poder
comunicativo segundo processos democráticos, não pode ‘dominar’ por si mesma o
uso do poder administrativo; mas pode, de certa forma, direcioná-lo” (Habermas,
2003[1992]: 23).
Neste sentido, o poder comunicativo não pode dominar, mas deve prover
certos direcionamentos, através da influência no âmbito da sociedade civil.
Habermas defende um conceito de democracia “incompatível com o conceito de
sociedade centrada no Estado” e analisa as aproximações e diferenças entre os três
modelos de democracias – tema ao qual dedicou um artigo em 1994 –, os modelos
liberal, republicano e deliberativo. A discussão destes “três modelos normativos de
democracia” é um caminho interessante para compreender as relações entre as
perspectivas e a inserção da teoria deliberativa nos debates democráticos. O autor
começa comparando os dois modelos de democracia, o liberal e o republicano, para
contrapor o modelo deliberativo que ele sustenta. Na citação a seguir, ele sintetiza a
sua descrição da política e do processo democrático, de acordo com cada um destes
dois modelos:
“o primeiro deles é que não fica claro que tipos de práticas seriam necessárias para
se alcançar o tipo de sociedade empiricamente constatada enquanto favorecedora
da democracia. O segundo problema é que a teoria dahlsiana, ao postular
empiricamente os fundamentos societários da democracia, não consegue converter
a sua teoria da democracia em uma teoria da democratização devido à ausência de
uma concepção sobre as práticas capazes de tornar uma sociedade normativamente
desejável.” (Avritzer, 1996: 118)
______________________________________________
72
Em nota de rodapé, Avritzer identifica um trecho que seria uma exceção à notável ausência dos elementos
culturais na teoria de Dahl: “(...) crenças, atitudes, e predisposições formam uma cultura política ou talvez
diversas culturas políticas no interior das quais os indivíduos são socializados em vários níveis. Um país com
uma cultura política fortemente favorável à poliarquia será capaz de superar crises que podem levar ao
rompimento da poliarquia em um país com uma cultura política menos favorável” (Dahl apud Avritzer, Ibid.). O
que não fica claro, na opinião de Avritzer, é “quais são as condições, no nível da sociedade, capazes de levar
à constituição de uma cultura política favorável à poliarquia”.
161
Outro autor que contribuiu, ainda nos anos 80, para a formação da massa
crítica deliberativa foi Joshua Cohen. A intenção de Cohen é caracterizar o
procedimento deliberativo em termos ideais e intuitivos, para relacioná-lo a uma
visão mais substantiva da democracia deliberativa. Para ele, a noção de democracia
deliberativa está enraizada no ideal intuitivo de uma associação democrática na qual
a justificação dos termos e condições da associação advém do argumento e da
razão pública compartilhada por cidadãos iguais. De acordo com o teórico, “os
cidadãos em tal ordem compartilham um compromisso à resolução dos problemas
de escolha coletiva através da argumentação pública, e consideram as instituições
básicas [dessa ordem] como legítimas, na medida em que elas estabelecem o
enquadramento para a livre deliberação pública.” (J. Cohen, 1989). A legitimidade
dos resultados, isto é, das decisões em matéria de políticas públicas, é reconhecida
por sua perspectiva teórica na medida em que essas decisões recebam o
assentimento refletido dos indivíduos, o que é feito por meio da participação em uma
deliberação autêntica, à qual podem concorrer todos aqueles sujeitos à decisão em
questão.
O raciocínio teórico do autor segue duas etapas, no artigo mencionado:
primeiramente, ele estabelece as cinco características principais de uma “concepção
formal” ou de um “ideal formal de democracia deliberativa”. As cinco características
formais são as seguintes, sendo as condições substantivas aquelas transcritas na
citação seguinte:
162
“Contemporary social scientists typically take a ‘snapshot’ view of political life, but
there is often a strong case to be made for shifting from snapshots to moving
pictures. This means systematically situating particular moments (including the
present) in a temporal sequence of events and processes stretching over extended
periods. Placing politics in time can greatly enrich our understanding of complex
social dynamics.”
Paul Pierson
Este capítulo retoma o contexto histórico das últimas décadas do século XX,
no qual se inserem as trajetórias de política externa analisadas no próximo capítulo,
com a preocupação de descrever condições políticas e socioeconômicas que
antecederam e, em alguma medida, deram origem às iniciativas de integração
exploradas no próximo capítulo. Nessas condições antecedentes são identificadas
algumas semelhanças e diferenças dos casos da Argentina e do Brasil, em relação a
dois conjuntos de questões: primeiro, os processos de liberalização e
democratização política ocorridos nos anos 70 e 80, as características e trajetórias
das instituições e organizações políticas consideradas mais relevantes naquele
contexto e a formação dos primeiros governos civis pós-ditatoriais; segundo, os
principais desafios políticos e econômicos enfrentados pelos governos de Raúl
Alfonsín, na Argentina (1983-1989), e José Sarney, no Brasil (1985-1990),
terminando o capítulo com uma discussão sobre os padrões de tomada de decisão e
o início da implantação das medidas neoliberais nestes dois países. Considera-se
que as condições antecedentes são fundamentais para a análise das trajetórias das
políticas de integração regional subsequentes, pois essas trajetórias não se
desenvolvem no vazio, mas em realidades políticas plenas de experiências
passadas e estruturas historicamente construídas, cujo peso jamais se pode
desprezar.
Os anos 1980 foram escolhidos como o período para iniciar a análise das
condições antecedentes por se considerar que naquela década ocorreram as
168
dinâmicas políticas decisivas para o término das ditaduras de ambos os países. Mas
o principal objetivo é recompor as trajetórias políticas da Argentina e do Brasil
durante o período que precede as novas experiências de integração dos dois países,
a partir dos anos 90. Como dito, pretende-se descrever as condições políticas,
econômicas e sociais em que se encontravam os dois países em meados dos anos
80, quando retornam à democracia, mesmo reconhecendo que algumas dinâmicas
lhes são anteriores. Por isso, eventualmente serão mencionados eventos, processos
ou personagens de décadas anteriores. Mas como não se pode retornar ad infinitum
na história política das sociedades analisadas, é preciso tomar a difícil decisão do
momento inicial da análise. Neste caso, a decisão foi recompor as respectivas
trajetórias políticas dos regimes militares, a partir dos momentos de crise. Assim, são
apresentadas aqui as principais condições subjacentes aos processos de transição à
democracia dos dois países e aos primeiros governos civis após o último período de
regime militar – Argentina, 1976-1983, e Brasil, 1964-1985. Entende-se que essas
transições foram capazes de reconfigurar as arenas políticas de ambos os países,
mesmo quando houve alguns elementos de continuidade com relação às
experiências ditatoriais ou mesmo em relação às experiências anteriores às últimas
ditaduras.
A análise a seguir leva em conta o fato de que se está lidando com
similaridades e diferenças, ao utilizar a estratégia comparativa, que implica na
reconstrução narrativa e analítica dos percursos seguidos pelos dois países nestas
últimas duas décadas. Naturalmente, há muitos elementos em comum na história
destes dois países, o que desde há muito justificou a construção de ideias como a
de “vidas paralelas”, entre outras congêneres. No entanto, como resulta da narrativa
construída aqui, há diferenças profundas dentro destas amplas similaridades, como
aponta a citação seguinte, escolhida para ser o ponto de partida da análise
subsequente:
da presença política constante das Forças Armadas durante todo o período Alfonsín,
não somente pressionando pela obtenção das Leis do Ponto Final e da Obediência
Devida, mas também organizando sucessivos levantes contra o presidente eleito,
até que uma insurreição militar colaborou para a sua renúncia antecipada, em 1989.
Portanto, procura-se apresentar os acontecimentos e processos mais relevantes
para a compreensão tanto do momento crítico do final da década/início dos anos 90
como das trajetórias posteriores (cabe lembrar que o próprio processo de integração
regional no Cone Sul teve origem no programa de integração e cooperação
econômica bilateral, firmado entre os dois presidentes, em 1985).
A primeira seção explora também as semelhanças e diferenças em outras
condições políticas que contextualizaram os períodos dos presidentes Raúl Alfonsín
e José Sarney. Em particular, são examinados os respectivos caminhos da transição
de regime, os sistemas partidários nacionais e as coalizões de sustentação do
governo, tanto parlamentares como de governadores dos Estados federados. Além
disso, a primeira subseção examina as semelhanças nas estratégias de cada um
dos governos para lidar com a profunda crise econômica, que era compartilhada por
praticamente todos os países da região e que serviu como um pretexto para a
aproximação bilateral entre Argentina e Brasil.
Apesar das diferenças, os governos Alfonsín e Sarney enfrentaram desafios e
demandas sociais basicamente semelhantes: por um lado, avançar o processo de
democratização, construindo condições de governabilidade em meio à crise
econômica e aos alarmantes indicadores sociais herdados; por outro, controlar a
inflação crescente, que chegaria a um quadro de hiperinflação na segunda metade
da década, lidando ao mesmo tempo com a dívida externa e o desequilíbrio fiscal,
enquanto as suas economias permaneciam estagnadas. Nos dois casos, tratava-se
de recuperar a confiança interna e externa. As novas democracias tinham ainda o
desafio de lidar com as lideranças militares, tema que seria mais presente no caso
argentino do que no brasileiro, mas em ambos os casos era preciso solucionar a
questão de como lidar com as violações de direitos humanos que caracterizaram as
respectivas ditaduras, embora também com especificidades que apontam para graus
mais acentuados de repressão violenta na Argentina, relativamente ao Brasil.
Os dois países passaram por processos eleitorais importantes na década de
80: destaque para as eleições presidenciais e legislativas na Argentina, em 83,
tendo as parlamentares se repetido em 85, 87 e 89, ano coincidente com as novas
171
que não se limitando a elas; de outro, os enfoques dados pelas leituras estrutural-
funcionalistas inerentes às teorias da modernização.
Pode-se dizer que o institucionalismo histórico valorizou algo de cada uma
daquelas perspectivas e, evidentemente, propôs alternativas teóricas. Em síntese,
valorizou, no primeiro enfoque, a ênfase nos conflitos entre grupos rivais pela
apropriação dos recursos escassos como elemento essencial à vida política: os
agentes, de fato, disputam os recursos disponíveis, o que não raro inclui o próprio
poder de transformar as instituições a seu favor. Ao mesmo tempo, seus argumentos
convergem com a tese estruturalista de que as instituições políticas e econômicas
são fatores estruturantes do comportamento coletivo e, consequentemente, dos
resultados sociais e políticos. Desse modo, não são assumidos os riscos do
determinismo estrutural-funcionalista, mas sustenta-se, igualmente, que é preciso
dar atenção às instituições, as quais também são alvo de conflitos resultantes da
tentativa dos agentes de privilegiar interesses específicos, em detrimento de outros.
Outro ponto a destacar acerca do institucionalismo histórico diz respeito à
visão do Estado como “um complexo de instituições capaz de estruturar a natureza e
os resultados dos conflitos entre grupos” (Hall e Taylor, 2003: 194). Na área de
política comparada, a ênfase dos inumeráveis trabalhos recai sobre a investigação
do impacto das estruturas ou complexos institucionais em diferentes contextos
nacionais. Para essa literatura, as instituições importam para a análise política
especialmente porque distribuem o poder de modo desigual entre os agentes,
conferindo acesso desproporcional de determinados agentes ou organizações ao
processo de tomada de decisões. Essas ideias, de “agência” e de “organizações”
(políticas ou não), são trabalhadas adiante, mas primeiro deve-se precisar a
significação do conceito central de “instituições”. Importa dizer, para concluir, que o
Estado não é visto como uma entidade unitária ou abstrata, mas como uma rede
complexa de instituições, de regras – dentro do qual há incontáveis organizações, é
bem verdade, mas estes dois conceitos não se confundem.
O conceito de “instituições” foi definido por Hall e Taylor como “os
procedimentos, protocolos, normas e convenções oficiais ou oficiosas inerentes à
estrutura organizacional da comunidade política ou da economia política”’. Trata-se
de uma definição satisfatória, com destaque para o fato de que ela é suficientemente
específica. Na mesma linha, a definição paradigmática de Douglas North (1990) diz
serem as instituições “as regras do jogo em uma sociedade, os constrangimentos
174
______________________________________________
73
A obra citada é a seguinte: Marcos Novaro e Vicente Palermo (2003). La Dictadura Militar 1976/1983. Del
Golpe de Estado a la Restauración Democrática. Buenos Aires: Paidós.
177
______________________________________________
74
A Junta era formada por Videla, o almirante Emilio Eduardo Massera e o brigadeiro-general Orlando Ramón
Agosti. Depois de um período de maior cooperação entre as três forças armadas, a liderança política do
regime foi assumida pelos militares do Exército, que disputavam a hegemonia no interior do regime, sobretudo,
com a Marinha. A substituição de Videla por outro militar do Exército (Viola) deixou insatisfeitos os setores
dominantes da Marinha, preteridos quando supostamente seria o seu “turno” – por esta narrativa, o ataque às
Malvinas, amplamente apoiado pelos marinheiros, também serviam para recuperar as feridas internas
deixadas por decisões dos anos anteriores.
178
mas também do Exército, o general Roberto Eduardo Viola, assumiu o governo, para
renunciar menos de nove meses depois, em novembro. Sob a presidência do
general Leopoldo Galtieri, quem ordenou o ataque às ilhas, quatro meses depois de
assumir, o controle do país haveria voltado aos militares considerados da “linha-
dura”, mais favoráveis à repressão interna e às causas nacionalistas, o que, sempre
por esta hipótese, explicaria a ação de impacto envolvendo a disputa sobre o
controle territorial das Malvinas.
O problema principal é que esta interpretação deixa de computar o que levou
à suposta divisão no interior das lideranças militares e, para isso, é preciso ter em
mente o encadeamento dos fatos que precederam a própria ofensiva militar de abril
de 82. Em consequência desta carência, a hipótese também não consegue explicar
satisfatoriamente o timing do ataque militar que, frustrado tragicamente após a
chegada das tropas enviadas pela premiê britânica, abriria o processo de transição
do regime autoritário na Argentina.
É nesse sentido que, ao analisar comparativamente o papel dos movimentos
de trabalhadores nos “caminhos para a democratização” de diversos casos
nacionais, Ruth Collier observa que, “desde os anos 40, quando Perón chegou ao
poder sobre os ombros do suporte da classe trabalhadora, a questão laboral esteve
no centro da política argentina” (1999: 120). O próprio golpe de 1976, articulado
pelos militares com o apoio de importantes setores civis antiperonistas, foi justificado
pelos líderes das três forças armadas como uma resposta necessária ao ativismo
dos sindicatos no período de 1973 a 1976 e à debilidade governamental para manter
a ordem pública naquele contexto, marcado também por conflitos entre grupos
armados, de extrema esquerda ou direita.
Com essa justificativa, os militares realizaram inúmeras intervenções nos
principais sindicatos de trabalhadores – como ocorreu em inúmeros setores da
sociedade argentina, como as universidades e escolas secundárias. O mais grave,
obviamente, foi a extrema violência real que caracterizou a chamada “guerra suja”, a
qual produziu a eliminação da vida de uma enorme quantidade de lideranças
sindicais, incluídas no fratricídio de cerca de 30.000 pessoas, feito este que não
pode ser interpretado sem a consciência da importância da questão laboral na
política nacional. Um dos objetivos centrais do regime era “desproletarizar” a
Argentina.
179
militares já não encerravam mais o poder de vetar o caminho da transição. Isto não
significa, no entanto, que eles não hajam pretendido e tentado, persistentemente,
moldar a arena política pós-ditadura.
Assim, depois da rendição e da devolução do controle das ilhas à Grã-
Bretanha, os militares tinham como principal interesse garantir que o novo regime
não puniria os responsáveis pelas impressionantes violações de direitos humanos.
Tratava-se de um interesse vital, o tema mais sensível de todos: a questão da justiça
com relação às violações massivas de direitos humanos.
Essa questão repercutiria nos governos seguintes: tanto no período Alfonsín,
no primeiro governo Menem e, já no século XXI, nos mandatos sucessivos de Néstor
Kirchner e Cristina Kirchner. A questão militar, a questão da justiça pelas violações
aos direitos humanos, não pôde ser equacionada durante a ditadura, como ocorreu
no Brasil, em que os militares fizeram aprovar uma Lei de Anistia, ainda em 1979,
condição imposta pelos militares para que o processo de abertura política seguisse o
seu curso75.
Outra diferença importante entre os dois casos – além da capacidade de
controlar o processo de liberalização demonstrada pelos militares brasileiros – diz
respeito ao envolvimento das altas hierarquias militares argentinas com o aparato
repressor, as quais se mantiveram no comando da repressão, isto é, os generais,
almirantes e brigadeiros principais coordenaram todo o esquema de violação
sistemática dos direitos humanos. No caso brasileiro, esta é uma questão que
permanece em aberto, sendo que se contradizem as versões sustentadas pelos
militares às demandas por investigação e abertura dos arquivos do período. Pela
versão oficial, houve uma autonomia considerável do aparelho repressivo, que
inclusive é considerado um dos fatores centrais do início do processo de transição,
uma vez que a repercussão pública das violações, em meados dos anos 70,
______________________________________________
75
A questão dos direitos humanos, tanto na Argentina como no Brasil, seria um assunto para outras tantas teses
de doutorado, razão pela qual a temática é apenas tocada neste trabalho, sem o aprofundamento merecido.
Apesar da relevância política e da rica trajetória do tema nos dois países, a questão não é crucial para o
estudo das relações entre democratização, política externa e integração regional. Não se pode aprofundar o
tema aqui, mas as diferenças entre os casos de Argentina e Brasil neste assunto merecem ser exploradas
comparativamente, em outros estudos.
182
“históricos”, o que marca uma diferença notável com relação aos partidos que
dominaram a arena política no Brasil pós-85, a maioria deles partidos “novos”76.
Antes do sistema de partidos brasileiro, cabe desenhar os traços gerais do
desenvolvimento histórico dos principais partidos argentinos. Vale ressaltar que a
UCR e o PJ foram os principais partidos, não apenas dos trinta anos que separam o
imediato pós-guerra à última ditadura (1946-1976), mas também depois da
redemocratização, até os dias de hoje.
Cada um desses dois partidos tem a história do seu nascimento vinculada a
um momento de “democratização”. No caso da UCR, o partido foi criado ainda na
última década do século XIX, a partir de uma série de divisões da classe dominante
na segunda metade daquele século, época da dominação oligárquica sobre a
política republicana moderna, estabelecida pela Constituição de 1853. Até a
Reforma Eleitoral de 1912, que estabeleceu o sufrágio universal e pretendeu dar
mais transparência ao processo antes marcado pelas fraudes e manipulações dos
caudillos locais e nacionais, a UCR foi o principal defensor dos ideais democráticos,
liderando os setores favoráveis à reforma para combater a corrupção, a manipulação
e o controle oligárquico que caracterizava o sistema político argentino.
Embora os políticos da UCR fossem relativamente moderados, as primeiras
eleições presidenciais demonstraram a eficácia política da defesa da ampliação do
voto e do discurso republicano e popular dos radicais: o partido venceu as três
primeiras eleições presidenciais sob as novas regras – governos de Hipólito
Yrigoyen (1916-1922), Marcelo T. Alvear (1922-1928) e novamente, com Yrigoyen,
que governou até o golpe militar de 1930. Este foi um período excepcional na
história argentina, pois somente em 1989 haveria outra transmissão de governo
entre presidentes eleitos nas urnas, quando Alfonsín renuncia para a entrada do
então já eleito Carlos Menem (PJ). Portanto, a UCR é um partido com tradição na
história política argentina e que já havia conquistado a presidência, antes da vitória
______________________________________________
76
No caso brasileiro, as exceções apenas confirmam a regra, como é o caso do Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB), que perdeu parte de seus quadros das décadas de 60 e 70 para os novos
partidos, e do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que já não era realmente o mesmo partido do período
anterior e jamais recuperou o espaço que teve na experiência democrática de 1946-1964, como se verá
adiante.
184
______________________________________________
77
Depois da crise que levou à renúncia do presidente radical De La Rúa, em 20 de dezembro de 2001, outros
líderes do partido também se tornaram presidentes pela via institucional – com Rodríguez Saá, eleito pelo
Congresso após a renúncia do presidente De La Rúa, em meio à crise de dezembro de 2001, e com Eduardo
Duhalde, pelo mesmo processo indireto, após a renúncia do primeiro. Entre a renúncia e a eleição indireta de
Rodríguez Saá, em 23 de dezembro, o então presidente do Senado, Federico Ramón Puerta, também do PJ,
governou interinamente o país; quando Rodríguez Saá renunciou, em 30 de dezembro, governou o país o
então presidente da Câmara dos Deputados, o também justicialista Eduardo Camaño, responsável pela
condução temporária do país até a escolha de Duhalde, que presidiu o país entre 2 de janeiro de 2002 e 25 de
maio de 2003, quando a presidência foi transferida para Néstor Kirchner.
187
que aquele período de três anos possui para as gerações que participaram
politicamente daquele período, as mesmas que passariam pelos sete anos seguintes
de ditadura, cabendo aos sobreviventes do período a tarefa de completar a transição
democrática, depois do autodenominado Proceso de Reorganización Nacional
(1976-1983). No entanto, para compreender as trajetórias de algumas tendências e
personalidades políticas nas décadas posteriores, é preciso narrar no mínimo
algumas características do período da chamada “segunda experiência peronista”, na
década de 70.
As eleições de março de 73, que levaram o peronista Cámpora à Casa
Rosada, haviam sido negociadas com a cúpula militar que conduzia o país desde o
golpe de 1966 (contra o presidente Arturo Illía): Perón poderia retornar ao país, mas
não participaria das eleições. Assim, o momento da posse de Cámpora praticamente
coincidiu com o retorno de Perón do longo exílio no exterior, desde a sua deposição,
em 1955.
Para ser mais preciso, a posse ocorreu em 25 de maio e o ex-presidente
voltou do exílio no dia 20 de junho, um dia conhecido como “massacre de Ezeiza”,
referência ao enfrentamento de peronistas de extrema-esquerda e extrema-direita,
que se enfrentaram no momento em que aguardavam o retorno do suposto líder
comum, com o resultado de mais de 200 mortos.
No dia 13 de julho, renunciaram o presidente e o vice (Solano Lima), e,
convocadas as eleições, venceu em setembro a chapa Perón-Perón, com María
Estela na vice-presidência, candidatura que impôs mais uma derrota ao radical
Ricardo Balbín: 62% a 21%, com uma vantagem maior do que a obtida por
Cámpora, contra o mesmo adversário (49,5% a 21,3%). Depois de assumir a
presidência em 12 de outubro, Perón viria a óbito no dia 1º de julho de 1974.
O curto governo de María Estela, que não chegou a completar dois anos, foi
marcado pelo aumento da polarização e dos enfrentamentos violentos, em diversas
regiões do país. Durante os menos de dois anos em que presidiu, a situação política
agravou-se, com os conflitos armados internalizando a lógica da Guerra Fria e
enfrentando-se nas cidades e no interior do país.
Para completar o quadro, existiam as necessidades de enfrentar a crise
econômica e de evitar que os diferentes setores, com suas estratégias conflituosas,
freassem-se mutuamente – nos dois casos, a estratégia utilizada concentrou poder
188
______________________________________________
78
A “época” a que se refere abrange as três décadas anteriores ao golpe de 1976, isto é, desde a ascensão
política de Perón, ainda no governo militar de 1943, como encarregado da Direção Nacional do Trabalho, logo
tornada Secretaria, plataforma institucional que projetaria publicamente o coronel e a partir da qual ele
dedicou-se a estabelecer vínculos com os dirigentes sindicais – Perón seria eleito presidente no imediato pós-
guerra, com o retorno das eleições presidenciais. Conforme ressalta o trabalho comparativo de Ruth Collier e
David Collier (1991), a criação desse partido foi a estratégia utilizada para lidar com a incorporação das
demandas dos trabalhadores (party mobilization), o que diferencia o caso da Argentina da estratégia utilizada
no Brasil, a partir do primeiro governo Vargas, onde essa incorporação se deu pela outorga estatal de direitos
(state incorporation). Segundo os autores, a estratégia utilizada em cada um dos oito casos estudados
(Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Peru, Venezuela, México e Uruguai) teve profundas repercussões sobre a
trajetória posterior da arena política e de sua polarização, que resultou em golpes de estado na maior parte
deles, nos anos 60 e 70.
189
______________________________________________
79
Ao comentar a situação desprivilegiada das tendências que escapavam à nota centrista ou de centro-
esquerda, as quais predominaram nas eleições de 83, o historiador argentino Romero resumiu assim:
“Radicais e peronistas costuraram amplos apoios e deixaram pouco espaço para outros partidos. À direita,
seguiu sendo difícil unificar forças diversas, muitas das quais se haviam comprometido demais com o
Processo, para resultarem atrativas. O engenheiro [Álvaro] Alsogaray constituiu um novo partido, a Unión del
Centro Democrático (UCeDe), que começou a beneficiar-se com o impulso mundial em direção às concepções
ortodoxamente liberais, mas a sua costura maior se daria anos depois. A esquerda padeceu tanto pela dura
repressão dos anos do Processo como pela desatualização de suas propostas, muitas das quais foram
tomadas pelo radicalismo alfonsinista, ainda que o Partido Intransigente haja logrado reuniu um amplo
espectro de simpatizantes, em boa medida nostálgicos da política de 1973” (J. L. Romero, 2001: 240).
190
______________________________________________
80
Como analisa Aboy Carlés (2004: 40), as primeiras versões sobre a preparação do acordo apareceram pela
voz de uma dirigente de um setor peronista, ainda em outubro de 82. No entanto, foi apenas em março de 83
que os principais diários do país informaram sobre a ocorrência de uma série de reuniões entre os militares do
alto comando e os dirigentes sindicais peronistas. Alfonsín, por sua vez, tornou sua a denúncia, em 26 de
março, ao declinar os nomes de alguns dos envolvidos no pacto.
81
É também Aboy Carlés quem resume as dificuldades internas do peronismo, dividido e forçado a conviver com
a incômoda herança setentista: “Assim, enquanto o radicalismo definiu a sua fórmula presidencial para as
eleições de 30 de outubro na primeira semana de julho de 1983, o peronismo não lograria fazê-lo até dois
meses depois. O período esteve caracterizado pelo violento enfrentamento entre os partidários de Antônio
Cafiero e Herminio Iglesias na província de Buenos Aires, que resultaria favorável ao segundo. O Congresso
Nacional Justicialista ratificou a viúva de Perón [a ex-presidente María Estela Perón] na presidência partidária,
encumbrando na primeira vice-presidência (a condução efetiva) o questionado líder das 62 Organizaciones
192
“lenta, gradual e segura” foi hegemônica e pôde ser mantida durante cerca de oito
anos, e, mesmo assim, com eleições indiretas em 1984 (um ano a mais que o tempo
total da ditadura argentina).
Fausto e Devoto citam um conjunto de acontecimentos que evidenciam a
atuação reiterada de setores mais repressores do regime, que procuraram reverter a
lenta trajetória de abertura a todo custo: entre os episódios, são citados o
fuzilamento de dirigentes da cisão chinesa do Partido Comunista do Brasil (PC do
B), partido que sobrevivia na clandestinidade, em São Paulo (dezembro de 1976); a
cassação de vários deputados, nos diferentes níveis da federação; a misteriosa
morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek, também em 1976, cuja atribuição à
repressão é objeto de controvérsia até hoje. Trata-se, obviamente, de uma lista
meramente exemplificativa, à qual poderiam ser somadas inúmeras outras ações,
como os atentados à Associação Brasileira de Imprensa (agosto de 1976) e à Ordem
dos Advogados do Brasil (agosto de 1980), ou tantos outros de menor repercussão,
mas que demonstravam a resistência de setores ligados às Forças Armadas diante
da abertura parcial do regime ditatorial.
Ao mesmo tempo, o governo Geisel evidenciava as contradições do próprio
regime militar. Na visão dos “moderados”, como Geisel, Golbery e Aquino Ferreira,
até para que o princípio da hierarquia fosse preservado, era necessário “neutralizar a
linha-dura, abrandar a repressão e, ordenadamente, promover a ‘volta dos militares
aos quartéis’” (Fausto, 2003: 490). Incomodava a cúpula presidencial em torno de
Geisel a falta de controle sobre parte das próprias Forças Armadas, que se
aglutinava em centros de poder não necessariamente submissos à ordem
hierárquica. O desafio estratégico dos últimos dois governos militares seria controlar,
ao mesmo tempo, as pretensões de continuidade de parte dos militares, as
pretensões políticas da oposição e as demandas crescentes da sociedade civil, esta
última em acelerado processo de reorganização e de mobilização militante.
Por outro lado, a capacidade do regime de impedir qualquer mudança brusca
rumo à redemocratização do Brasil pode ser explicada, pelo menos em parte, pela
mencionada legitimidade do regime junto à sociedade, inclusive junto aos setores
econômicos e às classes médias, os quais se beneficiavam do chamado “milagre
econômico”, período em que a economia brasileira alcançou recordes históricos de
crescimento e destacou-se mundialmente por sua rápida industrialização. Ademais,
paralelamente à relativa legitimidade do regime, cabe destacar a existência de
195
outros fatores políticos adicionais, como aqueles destacados por Fausto e Devoto na
última epígrafe: “a fraqueza das organizações partidárias e sociais, a realização de
eleições e a existência de instituições como o Congresso”.
De fato, os dois últimos elementos (realização de eleições e funcionamento
do parlamento) afiguraram-se como elementos capazes de absorver conflitos,
contendo as demandas da oposição democrática. Por outro lado, quanto à alegada
fraqueza das organizações partidárias e sociais, é preciso refletir um pouco mais
criticamente sobre a citação acima, sobretudo quanto às organizações sindicais
brasileiras, que nos anos 80 passaram por um processo de reorganização e
inovação, iniciado no final da década anterior.
As eleições e o funcionamento do Congresso diferenciam o caso brasileiro do
argentino, no qual as instituições republicanas sofreram limitações mais amplas,
mesmo que os dois regimes tenham coincidido nas limitações às liberdades
individuais e coletivas. Salvo curtos períodos em que o Congresso Nacional foi
suspenso – posto em “recesso”, como em 1966, por um mês, ou em 1977, por mais
duas semanas– o sistema político funcionou, ainda que sob um bipartidarismo,
imposto pelo regime em 1965, quando o Ato Institucional n.o 2 extinguiu os partidos
políticos então existentes, os quais foram substituídos por apenas dois, como
resumem os historiadores Adriana Lopez e Carlos Guilherme Mota (2008: 817):
ao longo dos anos 70, importantes vitórias nas urnas. Alimentado por essas vitórias
e apoiado por setores importantes da sociedade civil na luta pelo retorno à
democracia, o partido oposicionista oficial ganhou espaço e ousou lançar um
“anticandidato”, o então deputado Ulysses Guimarães, ex-PSD, um político que
havia apoiado inicialmente o golpe, mas que logo havia passado à oposição
emedebista, “candidato” com o seu vice, Barbosa Lima Sobrinho, intelectual e
político de destaque nas décadas anteriores da história brasileira. Tratava-se de uma
expressão de descontentamento com o regime, oportunamente aproveitada por
algumas lideranças da oposição que reivindicavam o retorno à democracia e o
restabelecimento dos direitos e liberdades fundamentais.
Assim, quando da escolha indireta de Geisel, em janeiro de 1974, o MDB
havia oposto 76 votos aos 400 favoráveis à eleição do general. Vale recordar que,
antes disso, o marechal Castello Branco (1964-1967) fora escolhido por um
Congresso mutilado, e que, nas escolhas dos generais Costa e Silva, em 1967, e
Médici, em 1970, o MDB havia optado pela abstenção. No entanto, este escore de
400 a 76 não refletia a verdadeira ascensão da oposição no eleitorado, que se
tornaria irreversível a partir das eleições legislativas de outubro.
Nas eleições legislativas de outubro de 1974, portanto dez meses após a
escolha indireta de Geisel, o MDB impôs à ARENA uma derrota importante, obtendo
16 das 22 vagas disputadas para o Senado Federal e 160 das 364 abertas para a
Câmara dos Deputados. O governo ainda mantinha a maioria parlamentar, mas o
desempenho eleitoral do MDB era ameaçador. A primeira limitação mais imediata,
imposta pela vitória do “Movimento”, foi a perda da capacidade de aprovar reformas
constitucionais, pela perda dos dois terços necessários, pela Constituição vigente. O
partido obteve 48% dos votos para deputado federal contabilizados em todo o país
(Fausto, 2003: 491). Ademais, a derrota do governo era maior nas grandes cidades,
como apontam as estatísticas: o partido foi vitorioso em 79 das 90 cidades com mais
de 100 mil habitantes, sendo que as outras 11 cidades estavam concentradas na
Região Nordeste.
Entre os senadores eleitos pelo MDB naquele ano, alguns se tornariam as
principais figuras quando o movimento em prol da democratização chegou ao ápice,
dez anos depois (Orestes Quércia, eleito em São Paulo; Itamar Franco, em Minas
Gerais; Paulo Brossard, no Rio Grande do Sul). Mesmo alguns parlamentares da
base de governo e membros do Ministério aderiram à demanda por anistia e
197
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82
Especialmente a partir do começo da década de 70, aumentaram as pressões externas sobre o governo
brasileiro, envolvendo a temática dos direitos humanos. Esses constrangimentos eram impostos por
organizações não-governamentais e por governos, sobretudo de países europeus, mas também dos Estados
Unidos. Neste último caso, a partir da segunda metade dos anos 70, o governo de Jimmy Carter incorporou à
política externa dos Estados Unidos a crítica aos regimes responsáveis pela violação massiva de direitos
humanos, sobretudo os direitos civis e políticos, a despeito das inúmeras contradições incrustadas nas ações
estadunidenses no período e desde então. As críticas do governo norteamericano atingiam tanto os países
alinhados à União Soviética quanto as ditaduras latinoamericanas, tradicionais aliados dos Estados Unidos.
Nos anos 80, o governo Reagan aprofundaria essa política, pressionando também pela redemocratização.
Para uma comparação dos conteúdos de direitos humanos nas políticas externas dos países europeus e dos
Estados Unidos, desde o pós-guerra, cf. K. Sikkink, 1993.
198
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83
Além dessas mudanças nas regras das eleições legislativas, outra imposição do pacote editado após o
fechamento do Congresso foi o prolongamento do próprio mandato presidencial.
199
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84
Trata-se de um capítulo extremamente rico da história brasileira, período que tem passado por um notável
processo de revisão historiográfica, nos últimos lustros. Em razão disso tudo, optou-se por evitar o
aprofundamento da questão aqui, traçando apenas as linhas mais relevantes para a comparação com a
transição argentina. Neste caso, a conexão similar existente entre o aumento da mobilização democrática da
sociedade e mesmo dos partidos, embora em diversos graus, e o aprofundamento das divisões internas às
elites militares ditatoriais, causado pela divergência de alternativas para lidar com o movimento pró-
democracia.
200
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85
A Emenda Constitucional n.o 11 revogou o AI-5, que havia incorporado à própria Constituição as restrições
ditatoriais às liberdades públicas. Lembra Boris Fausto (2003) que, logo depois de modificar as regras
eleitorais contidas no Pacote de Abril, “o governo iniciou em 1978 encontros com líderes do MDB, da ABI e
representantes da CNBB para encaminhar a restauração das liberdades públicas”. A partir de 1º de janeiro de
1979, data de vigência inicial da Emenda, “o Executivo já não poderia declarar o Congresso em recesso,
cassar mandatos, demitir ou aposentar funcionários a seu critério, privar cidadãos de seus direitos políticos. O
direito de habeas corpus foi também restaurado em sua plenitude”. Junto a essa liberalização do regime
autoritário, como registra o historiador, criou-se o instituto das “salvaguardas”, pelas quais o Executivo
mantinha o poder de decretar o estado de emergência e medidas de emergência, em virtude da necessidade
de “restabelecer a ordem pública e a paz social em locais determinados, atingidos por calamidades ou graves
perturbações”. Como registra Fausto, para concluir: “essas restrições levaram o MDB a abster-se na votação
da emenda” (Fausto, 2003: 494).
201
“Em primeiro lugar, como diz Kinzo (1990), a vigência de novos partidos com alguma
legitimidade, certa importância e capacidade de organização, ao longo dos treze
anos do bipartidarismo do regime militar (1966-1979), ajudou a desfazer a identidade
dos partidos anteriores. Em 1979, quando foram extintos, a ARENA e o MDB já
contavam com um tempo de vida quase tão longo quanto o dos partidos do período
1945-1964. (...) Em segundo lugar, os partidos existentes antes do golpe de 64
tinham identidades e raízes pouco sólidas na sociedade, e suas ligações com as
elites políticas eram muitas vezes superficiais. Não fosse isso, a ARENA e o MDB
não teriam conquistado respeitabilidade suficiente para fazer esquecer as antigas
identidades. (...) Por fim, a longevidade do regime e a rapidez da mudança
demográfica propiciaram modificações de vulto no sistema partidário brasileiro. O
governo militar durou mais tempo no Brasil do que nos países vizinhos e, por isso,
as ligações das elites e dos eleitores com os partidos preexistentes tiveram mais
tempo para se debilitarem.” (Mainwaring, 2001: 132-3 – sem grifo no original)
Por outro lado, como destaca o próprio Mainwaring, “o governo esperava que
a nova legislação eleitoral estimulasse a fragmentação da oposição, mas que, ao
mesmo tempo, fosse suficientemente restritiva para impedir a formação de partidos
de esquerda fortes”. Assim, quando o regime militar aprovou o retorno ao
multipartidarismo, uma dos objetivos era enfraquecer o Movimento Democrático
Brasileiro, cuja crescente identificação com os eleitores, demonstrada pelas urnas
sucessiva e amplamente, poria em risco a estratégia de abertura controlada
impressa pelo grupo hegemônico nos governos Geisel e Figueiredo. A nova lei
extinguiu os dois partidos existentes e obrigou as novas organizações a conter, em
sua legenda, a expressão “partido” (Fausto, 2003: 506). O objetivo dos militares e de
sua base civil no Congresso foi alcançado com êxito, pois “as expectativas do
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86
Muito embora não houvesse mais a UDN, o PSD ou o PTB, partidos que deram os contornos fundamentais da
ordem política estabelecida após o primeiro e longo período getulista, por outro lado as principais lideranças,
sobretudo dos dois primeiros partidos, faziam parte da “República Civil-Militar” instaurada a partir de 1964
(Lopez e Mota, 2008). Esta é uma ambiguidade explicitamente incrustada no caso da transição democrática
brasileira, que contrasta visivelmente com a relação entre as elites civis e as militares na Argentina. Esta
relativa continuidade do poder civil, mesmo enfraquecido diante do autoritarismo oficial, como era o caso do
Brasil, não ocorreu na Argentina, como se tratou acima. Aliás, nunca é demais realçar, boa parte das
lideranças políticas argentinas foi eliminada pela sangrenta ditadura, na aterradora conta dos mais de trinta mil
desaparecidos e mortos pelo Proceso.
202
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87
O retorno às eleições diretas para governador ocorreu em 1982. Antes disso, o Poder Executivo nomeava os
governadores e os submetia à aprovação pelas Assembleias Estaduais. Nas eleições para governador, em
1982, adotou-se o voto vinculado, obrigando o eleitor a escolher candidatos do mesmo para todos os cargos.
O resultado das eleições favoreceu os dois partidos herdados do AI-2, sobretudo o PMDB. O partido
conquistou nove Estados, incluindo Minas Gerais e São Paulo (Tancredo Neves e Franco Montoro,
respectivamente). O outro partido em situação similar, o PDS (ex-ARENA), conquistou a maioria dos Estados,
em um total de doze. Entre os partidos novatos, criados em 1979, apenas o PDT conquistou um cargo de
governador: Leonel Brizola, eleito no Rio de Janeiro. Naquele momento, não eram ainda escolhidos os
governadores do Distrito Federal, nem dos então existentes quatro Territórios Federais (Roraima, Rondônia,
Amapá e Fernando de Noronha). Nestas cinco unidades, até a Constituição de 1988, os governadores
continuaram sendo indicados pelo Poder Executivo.
204
No Brasil, ainda que a taxa de filiação partidária dos eleitores não fosse nem
próxima dos 25% registrados na Argentina, a etapa final da ditadura foi marcada
pela intensa mobilização popular, que deu inumeráveis demonstrações favoráveis às
eleições diretas para presidente, como os históricos comícios pelas diretas e, depois,
pela candidatura da “Aliança Democrática”. A respeito dessa mobilização, vale
discutir o papel das organizações sindicais e de outras entidades da sociedade civil
organizada na transição brasileira, comparando-as com as suas congêneres no país
vizinho.
A dinâmica argentina, como se viu, foi fortemente condicionada pela derrota
na Guerra das Malvinas; no Brasil, não houve qualquer episódio comparável, mas,
como dito, ao aumento da oposição de parte dos setores políticos civis que
apoiavam o regime, o qual instabilizou o antes tranquilo controle da arena político-
partidária, correspondeu o aumento da mobilização popular. Neste contexto, o papel
do movimento sindical brasileiro difere do caso argentino, pois os trabalhadores não
foram protagonistas, como os sindicatos argentinos nos meses anteriores à Guerra,
apesar dos trabalhadores brasileiros haverem expandido a contestação com greves
gerais e manifestações públicas, mas parte de um movimento democrático mais
amplo. Ademais, o movimento sindical brasileiro entre os anos 1970 e 1980
apresenta características interessantes para a reflexão sobre a trajetória posterior da
relação entre os trabalhadores, os empresários e as próprias instituições estatais.
Em primeiro lugar, uma consequência do desenvolvimento industrial brasileiro
durante os anos 70 foi o surgimento de um movimento operário politicamente ativo,
mesmo que ainda se encontrasse inserido nas ambíguas relações com as
instituições estatais de inspiração corporativista, herdadas do período de
incorporação getulista dos trabalhadores – sem mencionar as incontáveis
intervenções, de maior ou menor duração, que caracterizaram a gestão autoritária
da questão laboral no Brasil.
Vale anotar que tanto o corporativismo estatal como as intervenções
autoritárias são características que aproximam a Argentina e o Brasil. No entanto,
existem diferenças maiúsculas, dentro destas semelhanças mais gerais. Uma
consequência marcante da ditadura argentina foi o enfraquecimento do movimento
sindical, resultado de uma decisão deliberada de “disciplinar os movimentos de
trabalhadores”, de desproletarizar a sociedade, nas expressões oficiais enunciadas
à época do modelo econômico neoliberal, implantado sob a gestão do lendário e
207
controverso ministro da Fazenda, José Alfredo Martínez de Hoz, no final dos anos
70. Estes objetivos foram alcançados à custa da notável desindustrialização da
economia argentina, tema retomado adiante.
Um traço distintivo do movimento sindical brasileiro, vis-à-vis o quadro político
do país vizinho, foi o desenvolvimento de um “novo sindicalismo”, que produziria
uma bifurcação histórica importante, de peso comparável apenas às mudanças no
direito sindical a partir da Constituição de 1988. No que diz respeito à transição
democrática, especificamente, os sindicatos de trabalhadores passaram a intervir na
cena política a partir do ano de 1977, como parte da reação social ao que era
percebido como um recuo de Geisel e Golbery diante da linha mais dura do
autoritarismo.
Como analisa Ruth Collier (1999), desde a repressão mais forte aos
trabalhadores, em 1968, o movimento sindical havia desenvolvido novas formas de
resistência, como a mobilização e as greves limitadas a determinadas fábricas ou
setores produtivos. Ao longo dos anos 70, essa atuação política tinha como centro
principal as indústrias da cadeia produtiva automobilística, sediadas na região do
ABC paulista, e seus objetivos eram principalmente associados a campanhas
salariais e por políticas de geração de emprego. A partir da segunda metade dos
anos 70, como o período de alto e prolongado crescimento econômico do país foi
interrompido, uma das bases de legitimação do regime ruiu e as ações em prol da
democracia adquiriram maior visibilidade. Como afirma a autora, a partir do Pacote
de 1977, “o movimento laboral irrompeu na cena política com militância renovada e
atividade grevista” (R. Collier, 1999: 135).
O papel do movimento das organizações de trabalhadores na democratização
brasileira pode ser resumido em três aspectos principais. Em primeiro lugar, mesmo
que os trabalhadores não tenham efetivamente dado início à contestação ao regime
no final dos anos 70, suas ações coletivas, em especial por meio de greves de
grande repercussão, intensificaram o movimento e estimularam a adesão das
demais organizações da sociedade civil. Em 1978, mais de 250.000 metalúrgicos
mantiveram uma greve de repercussão nacional, durante mais de dois meses. No
ano seguinte, em uma onda de protestos provavelmente sem igual na história
brasileira, os registros apontam que mais de 3.000.000 de trabalhadores estiveram
envolvidos em mais de cem greves. Em 1980, em um quadro de maior organização
e notável coordenação com outros movimentos populares urbanos, continuaram as
208
“Um novo ator em cena, o PT teve um impacto nos projetos tanto do governo como
da oposição. Com respeito ao primeiro, ele frustrava a tentativa do governo de
exorcizar a esquerda. Ao mesmo tempo, ele minava a estratégia da oposição, e
especialmente do partido líder da oposição, o PMDB, o sucessor do partido de
‘oposição oficial’ dentro do sistema bipartidário original do governo.” (R. Collier,
1999: 137)
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88
Cabe aqui o desabafo contido na análise de Darcy Ribeiro, citado em Lopez e Mota (2008: 720-1): “A
representação parlamentar de 1945 a 1962 progride da seguinte forma: o PSD cai de 151 (51,8%) deputados
para 118 (28,8%); a UDN, de 91 (26,9%) para 77 (22,9%); enquanto o PTB cresce de 22 (7,6%) para 116
(28,4%). Aí nos derrubaram, senão seguramente faríamos a maioria em 1965”.
210
mais limitada, a qual não pusesse em risco o processo de abertura e que, acima de
tudo, alcançasse ganhos concretos e imediatos para os trabalhadores. Esta linha,
que representava sindicatos importantes, como os metalúrgicos de São Paulo, era
mais favorável a negociações políticas com o Estado e com os empresários, daria
origem à nova Central Geral dos Trabalhadores (CGT), em março de 1986, já sob o
regime democrático.
Como se verá no capítulo 4, ao longo do tempo essas duas vertentes do
movimento sindical entrariam em oposição, somando-se a elas, como aconteceu
também na Argentina, as novas organizações sindicais criadas principalmente no
início dos anos 90. O próximo capítulo explorará também as diferenças existentes
entre o caso argentino e o brasileiro, em especial a maior permanência institucional
no primeiro, em contraste com a importante renovação do sindicalismo brasileiro.
Por ora, cabe ressaltar que, naquele contexto da transição democrática, os
sindicatos argentinos experimentavam uma forte desmoralização diante da
sociedade (recorde-se o impacto que teve a denúncia do Pacto Militar-Sindical,
durante a campanha presidencial de 1983), enquanto no Brasil o sindicalismo, em
especial os setores associados à renovação sindical, usufruíam de uma imagem
positiva junto à cidadania, mantendo assim o seu relativo peso político. Enquanto no
Brasil os trabalhadores eram associados à democracia que se pretendia restaurar,
na Argentina parece que se tratava de restaurar a democracia “apesar dos
sindicatos”.
Finalmente, cabe destacar o papel desempenhado pelos movimentos de
outros setores organizados da sociedade civil, como as organizações mencionadas
antes (OAB, ABI, CNBB, SBPC). Àquelas organizações mais formais, juntavam-se
inúmeras e combativas personalidades, de diversas origens, assim como
determinados órgãos da mídia e também representantes do setor empresarial, neste
último caso a retirada do apoio dado pelos empresários ao Golpe de 64 e ao regime,
implícita ou escancaradamente, foi estimulada pela redução dos níveis de
crescimento durante os anos do chamado “milagre econômico” Vale lembrar que,
apesar da participação da sociedade civil haver aumentado significativamente a
partir de 1975, sempre houve, nestes setores, algumas iniciativas contrárias ou
mesmo de desafio ao regime, mas nada tão sistemático, generalizado e aberto como
após os protestos pelas mortes denunciadas naquele momento.
211
“Ela foi votada sob grande expectativa popular. Em Brasília, Figueiredo impôs o
estado de emergência, executado pelo general Newton Cruz. O general, entre outras
façanhas, tentou impedir um ‘buzinaço’ no dia da votação (25 de abril de 1984),
saindo em seu cavalo branco e chicoteando o capô dos automóveis dirigidos pelos
desobedientes motoristas.
A Emenda Dante de Oliveira não passou. Faltaram na Câmara dos Deputados
somente 22 votos. Precisava de 320 votos de um total de 479 congressistas e
recebeu 298. Desses votos, 55 eram de deputados do PDS que, apesar das
pressões do governo e do partido, votaram a favor da emenda. De qualquer forma,
tendo em vista a composição do Senado, era muito problemático que a emenda
passasse [naquela Casa], caso fosse aprovada pela Câmara.” (B. Fausto, 2003:
509-510)
Em vez de Tancredo Neves, quem tomou posse em seu lugar foi Sarney, já
filiado ao PMDB. Seis dias depois da posse, para consternação nacional, morria
Tancredo, que teve o seu corpo acompanhado por multidões em São Paulo, Brasília,
e Belo Horizonte, até o sepultamento em sua cidade natal, São João del Rei (MG).
Ao assumir a Presidência, o Ministério de Sarney confirmaria o seu alinhamento aos
políticos provenientes, sobretudo, da UDN, e, em menor medida, do PSD, sete ex-
udenistas e dois ex-pessedistas, o que demonstrava que perdiam terreno os grupos
que haviam sido mais próximos a Tancredo Neves e Ulysses Guimarães, “antigos
próceres do PSD” e lideranças destacadas do processo de transição. As figuras
políticas centrais do Ministério eram políticos com experiência, muitas vezes
lideranças políticas ligadas às oligarquias tradicionais, e a orientação ideológica
hegemônica inclinava-se para a centro-direita89.
Durante todo o período Sarney, a principal base de sustentação do governo
foi a sólida e poderosa aliança entre PMDB e PFL. Cabe lembrar que, a partir do
momento em que o vice-presidente eleito migrou para o primeiro partido, seu
movimento foi acompanhado por um número significativo de políticos do PDS – o
que explica também a notável perda de espaço do herdeiro da ARENA, que caiu de
235 deputados eleitos em 1982 para apenas 32, quatro anos depois, e de 15 dos 25
senadores eleitos em 1982 para apenas dois senadores.
Nos dois países, o governo busca construir uma maioria estável por meio da
divisão de cargos e concessão de emendas orçamentárias, o que torna menos
importante a identificação ideológica ou partidária do que a lógica de se estar com o
governo, que exerce hegemonia política, dada também a centralidade do Poder
Executivo, ou de se estar contra ele, buscando instabilizá-lo para quem sabe
angariar os frutos políticos do fracasso governamental. Desse ponto de vista,
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89
A associação dos nomes dos Ministros às suas origens partidárias pré-65 é feito pelos dois historiadores: “No
ministério, eram udenistas o potiguar Aluízio Alves (Administração), os baianos Antônio Carlos Magalhães
(Comunicações) e Roberto Santos (Saúde), o catarinense Jorge Bornhausen (Educação), o mineiro Aureliano
Chaves (Minas e Energia), o paulista Roberto de Abreu Sodré (Relações Exteriores) e o carioca Raphael de
Almeida Magalhães (Previdência Social). Do PSD, minoritários, eram o goiano Íris Rezende (Agricultura) e o
maranhense Renato Archer (Ciência e Tecnologia). A chefia da Casa Civil ficou com o professor
pernambucano Marco Maciel, ligado ao senador pessedista Nilo Coelho (então já falecido), que se unira à
UDN às vésperas do golpe de 1964” (Lopez e Mota, 2008: 878).
215
Alfonsín e Sarney enfrentaram realidades distintas, na sua relação não apenas com
o Congresso, mas também com os governadores, líderes dos Poderes Executivos
dos Estados (ou Províncias, na Argentina). As relações com os poderes organizados
da sociedade, como o poder corporativo dos militares, sindicatos, empresários,
meios de comunicação, Igreja Católica e, para finalizar, as organizações do
movimento de direitos humanos, seriam bastante mais difíceis para o mandatário
argentino do que para o brasileiro – em cada um destes quadrantes, é bom frisar. A
história comparada do período aponta para um contraste evidente entre, de um lado
da fronteira, o governo hegemônico do presidente Sarney, do outro, a instabilidade
ingovernável para o presidente Alfonsín.
Por outro lado, não obstante as diferenças entre as respectivas realidades
políticas domésticas, Alfonsín e Sarney assumiram o poder político com dois
desafios em comum pela frente: avançar o processo de democratização e controlar a
crise socioeconômica. Quanto ao primeiro, tratava-se de produzir uma dinâmica
favorável à interrupção do pêndulo democracia-ditadura-democracia, que marcou a
história contemporânea desses países, desde os anos 1930, com mais oscilações
no caso argentino; quanto ao segundo desafio, tratava-se de recuperar as
capacidades estatais, mais debilitadas no caso argentino, mas não menos delicadas
no caso do Brasil, recuperando as economias nacionais e os decaídos indicadores
sociais herdados das décadas de instabilidade e de modernização capitalista. Em
ambas as agendas, convergiam as expectativas majoritárias tanto dos setores
organizados da sociedade como da população em geral, as quais, por sua vez,
alinhavam-se às promessas acenadas pelos presidentes durante as campanhas, isto
é, de consolidar a democracia e de controlar a crise econômica e social90.
No tema da política para lidar com a questão militar, isto é, com as lideranças
militares remanescentes, avançando no tema do controle civil e democrático das
Forças Armadas e definindo-se a respeito da questão das violações de direitos
humanos durante o autoritarismo, assoma-se outra semelhança entre os primeiros
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90
Recorde-se que, no Brasil, embora as eleições fossem indiretas, os candidatos da “Aliança Democrática”
(Tancredo Neves e José Sarney) e seus aliados realizaram uma série de comícios nas principais cidades do
país, entre o fim de 1984 e o início do ano seguinte.
216
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91
Sobre a questão da relação entre civis e militares durante a transição e nos primeiros anos do governo
Alfonsín, ver o excelente livro de Horácio Verbitsky, autor que se especializou na questão dos direitos
humanos na Argentina, intitulado Civiles y Militares – Memória Secreta de la Transición, publicado em 2003.
217
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92
O setor industrial argentino teve um desenvolvimento bastante diverso do brasileiro nos anos 70 e 80: de
acordo com dados da CEPAL, entre 1970 e 1980 o crescimento industrial médio anual da Argentina foi de 1,6
%, enquanto o do Brasil foi de 9,0% (apesar da crise do “milagre econômico”, a partir de meados da década);
nos primeiros cinco anos da década de 80, o setor industrial sofreria um encolhimento maior na Argentina (-
3,2% a.a.) do que as indústrias no Brasil (-0,6% a.a.). Às vésperas da criação do MERCOSUL, os números de
218
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fechamento da década confirmariam a tendência dos primeiros anos, apesar da redução do ritmo da
desindustrialização, nos dois países: média de -1,4% na Argentina, para o período de 1980-1990, e de -0,2%
no Brasil. Apesar dessas diferenças, o peso proporcional do setor industrial em ambos os países, em 1990, era
semelhante: 27,8% do PIB (Argentina) e 27,9% do PIB (Brasil).
93
Entre as obras e artigos pesquisados para este trabalho, as melhores análises da implantação do
neoliberalismo foram feitas pelo economista argentino Jorge Schwarzer (1986, 1998, 2004). Em seus
trabalhos, Schwarzer concilia a análise das estruturas de longo prazo à análise das dinâmicas políticas e
institucionais impulsionadas pelas imbricações entre o poder econômico e o poder político-social, base do ele
denomina “o establishment argentino”. Além dos três trabalhos destacadas acima, vale remeter ao livro sempre
citado de Jorge Sábato (1998), La Clase Dominante en la Argentina Moderna: Formación y Características, e
ao de Daniel Aspiazu e Eduardo Basualdo (org.) (1987). El Nuevo Poder Económico em la Argentina de los
Años Ochenta. Jorge Schvarzer realizou inúmeros trabalhos em conjunto com Jorge Sábato, desde o início
dos anos 1980 até o seu falecimento, em 2008. Daniel Aspiazu e Eduardo Basualdo também possuem uma
série de trabalhos voltados para a história econômica e política da Argentina, entre os quais Sistema político y
modelo de acumulación en Argentina (de Eduardo Basualdo). Por fim, é preciso citar os trabalhos de Aldo
Ferrer (1989, 1998, 2003), os quais também contribuíram para a formação deste texto.
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Em sintonia com o Chanceler Dante Caputo, e sob ordens da Presidência, Grinspun promoveu uma política de
enfrentamento com o Fundo Monetário Internacional e os credores externos, exigindo auditoria na dívida, o
que era consistente com a política de desconfiança com relação aos Estados Unidos. Na segunda metade do
governo, após a gestão de Grinspun, tanto a política de enfrentamento com o Fundo como a desconfiança nas
relações com os Estados Unidos sofreriam transformações.
95
As informações estatísticas atualizadas sobre a Argentina estão no livro de Pablo Gerchunoff e Lucas Llach
(2007), obra rica em análises aprofundadas da trajetória argentina durante o século XX, “o ciclo da ilusão e
desencanto” com as políticas econômicas, como indica o título (El Ciclo de la Ilusión y el Desencanto: Um Siglo
de Políticas Econômicas Argentinas). No livro de Mónica Peralta Ramos (2007), também são encontradas
análises bastante interessantes da economia política das políticas econômicas argentinas, mesma abordagem
do livro de Gerchunoff e Llach, porém sobre o período de 1930 a 2006. Merecem destaque as análises de
Mónica Ramos sobre a herança do Proceso de Reorganización Nacional (capítulo IV), que expõe as
continuidades e rupturas das “duas gestões econômicas” de Alfonsín (dos ministros Bernardo Grinspun e Jean
Sourrouille), e sobre os principais desafios políticos da gestão econômica do governo radical (capítulo V), este
último, assim como outros trabalhos sobre o período (e.g., L. Romero, 2001, capítulo VIII, seção 2), está
subdividido em seções que correspondem a duas questões: a questão militar e a questão sindical.
220
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96
O ministro Bernardo Grinspun era uma figura política bem conhecido nos quadros políticos do radicalismo,
que havia participado da gestão radical de Arturo Illía, entre 1963 e 1966. Além de sua atuação no governo e
no partido, Grinspun é considerado um dos principais representantes do pensamento estruturalista ligado à
CEPAL e à figura de Raúl Prebisch. Neste ponto, havia convergência teórica entre Grinspun e o ministro Juan
Sourroille, que lhe sucedeu no cargo em fevereiro de 1985. Depois de ser ministro entre 1983 e 1985,
Grinspun exerceria ainda o cargo de Secretário de Planificação Econômica, entre 1987 e 1989, durante a
gestão de Sourrouille.
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97
A Junta Coordinadora Nacional, ou simplesmente Coordinadora, foi fundada em 1968 por um setor interno ao
radicalismo, e, naquele contexto de conflitos armados e profunda polarização política, articulou-se à
organização estudantil Franja Morada, que chegou a liderar a Federação Universitária Argentina e participou
de inúmeras ações de oposição ao regime militar de 1966-1973, como o Rosariazo e o Cordobazo. Nos anos
80, a Coordinadora aproximou-se do Movimiento Renovación y Cámbio, liderado por Raúl Alfonsín e políticos
próximos a ele desde o início dos anos 70. Como dito no corpo do texto, a Coordinadora exerceu um papel
importante até meados do governo Alfonsín. No entanto, eles se dividiriam e alguns de seus membros seriam
responsáveis pela aproximação, no final dos anos 90, com setores mais tradicionais do radicalismo, ligados ao
balbinismo, o que daria origem à Alianza, chapa eleitoral articulada pela UCR e pela FREPASO. A Alianza
chegou à presidência com a dupla Fernando De La Rúa (UCR, balbinista) e Carlos “Chacho” Álvarez
(FREPASO, ex-membro do PJ, que participou da frente parlamentar independente Grupo de los 8, os quais
afastaram-se do partido após o indulto aos militares concedido por Carlos Menem, em 1989). A FREPASO, por
sua vez, teve como base a “Frente Grande”, criada em 1993 para coligar um conjunto de organizações e
setores partidários: egressos do PJ que se opuseram ao presidente Carlos Menem pelo indulto e pelo modelo
neoliberal, como a Frente del Sur, liderada por Fernando “Pino” Solanas, e o Grupo de los 8; o Partido da
Democracia Cristã; o Partido Comunista; o Partido Intransigente; militantes do ativo movimento de direitos
humanos, com destaque para a liderança de Graciela Fernández Mejilde; entre outros políticos, que se
alinhavam em torno de plataformas como a democratização das políticas públicas e a realização da justiça
social. Por algum tempo, após 1993, a FREPASO alcançaria a posição de segunda força política nacional,
obtendo resultados mais favoráveis do que o radicalismo (isto é, a UCR, com as fraturas pós-Alfonsín).
222
______________________________________________
98
Quem analisa com detalhes as bases teóricas dos tomadores de decisão são os economistas Gershunoff e
Llach, no trabalho citado acima (2007). Quanto aos precedentes argentinos de estabilização, afirmam os
autores: “Em casos como o argentino, purgar a memória inflacionária havia resultado muito mais complexo, e
havia sido necessário congelar tudo o que fosse possível, desde o tipo de câmbio e as tarifas públicas até os
preços privados e os salários. O êxito inicial dos planos de Gómez Morales (1952), de Gelbard (1973) e de
Krieger Vasena (1967) tornava-se evidência favorável ao enfoque da equipe de Sourrouille. Ao mesmo tempo,
a insuficiência de programas que confiassem exclusivamente em instrumentos ortodoxos sem atuar
diretamente sobre as expectativas restava demonstrada pelo fracasso das tentativas estritamente monetaristas
de 1962-63 (Alsogaray), 1977 (Martínez de Hoz) e 1982 (Alemann)”. Dá-se importância ao tema,
aprofundando-o, porque estas questões práticas e teóricas também tiveram um peso central nos sucessivos
planos econômicos implantados no Brasil, no mesmo período. Assim como na Argentina, predominaria o
insulamento burocrático e a tentativa governamental de “coordenar” as condutas dos agentes econômicos,
estabelecendo políticas e transformando instituições “desde cima”, nos moldes teorizados pelo “modelo
burocrático-autoritário” do Estado. Ademais, as figuras de Alsogaray e Alemann voltariam à cena política com a
ascensão de Carlos Menem e do modelo neoliberal renovado no início dos anos 90.
224
______________________________________________
99
Cerca de um ano antes, o governo anunciara em Houston, nos Estados Unidos, um plano para a reativação
dos investimentos estrangeiros, em especial no setor petrolífero. Naquele mesmo ano de 1986, o governo
sinalizou outras propostas liberalizantes, que seriam aprofundadas em 1987, a partir do anúncio ministerial
conjunto: uma profunda reforma fiscal, a privatização de empresas estatais (como, por exemplo, as Aerolíneas
Argentinas e parte da Empresa Nacional de Teléfonos, a ENTEL) e a desregulamentação da economia.
225
______________________________________________
100
A chamada “Lei de Pacificação Nacional” (Lei n. 22.924, de 22 de setembro de 1983), foi instituída durante o
mandato do presidente de fato, general Reynaldo Bignone, e estabeleceu a anistia geral para todos “autores,
“partícipes”, “instigadores”, “cúmplices” ou “encobridores” de delitos com “finalidade terrorista ou subversiva” e
estende o benefício aos que os cometeram com a “finalidade de prevenir, conjurar ou pôr fim às referidas
atividades terroristas ou subversivas” (Art. 1º da “Lei”, que, do ponto de vista constitucional, como reconhecem
juristas e depois reconheceria a própria Corte Suprema e também a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, não é propriamente uma Lei, até porque, no caso argentino, o Congresso encontrava-se fechado).
Após a transição de regime, o Congresso aprovou, Alfonsín sancionou, e o Congresso então promulgou a Lei
n. 23.040, em 27 de dezembro de 1983. A nova legislação derrogou a Lei de Pacificação Nacional, por
considerá-la inconstitucional, declarando-a nula de forma insanável.
101
Por determinação do Poder Executivo, via Decreto, podiam figurar como réus os membros das três primeiras
Juntas Militares: os Generais de Exército Jorge Videla, Eduardo Viola e Leopoldo Galtieri; os Brigadeiros da
Aeronáutica Orlando Ramón Agosti, Omar Domingo Rubens Graffigna e Basilio Lami Dozo; e os Almirantes
Emilio Eduardo Massera, Armando Lambruschini e Jorge Isaac Anaya. O julgamento ocorreu em 9 de
dezembro de 1985 e a Câmara Federal de Apelações acordou a seguinte decisão: Videla e Massera foram
condenados à prisão perpétua, Viola, a dezesseis anos de prisão, Agosti, a quatro anos e meio, e
Lambruschini recebeu uma pena de oito anos de prisão. Todos eles foram considerados inabilitados para o
exercício de qualquer cargo público. Graffigna, Galtieri, Anaya e Lami Dozo foram absolvidos pela Justiça.
227
“Durante as quatro tensas jornadas houve muitas negociações, mas estas não se
concretizaram até que Alfonsín – quem presidia a grande concentração cívica na
Praça de Maio – não se entrevistou com os amotinados no Campo de Maio. Chegou-
se a um estranho acordo. O governo sustentou que faria o que já havia decidido
fazer – o que seria a Lei de Obediência Devida, que exculpava massivamente aos
subordinados – e os amotinados não impuseram nenhuma condição e aceitaram a
responsabilidade de sua ação. Mas para todos pareceu uma claudicação, em parte
porque assim apresentaram tanto os ‘carapintadas’ amotinados como a oposição
política, que não quis assumir nenhuma responsabilidade no acordo. Porém, pesou
muito mais o desencanto, a evidência do fim da ilusão: a cidadania era incapaz de
dobrar os militares. Para a sociedade, era o fim da ilusão da democracia. Para o
governo, o fracasso de sua tentativa de resolver de maneira digna o enfrentamento
do Exército com a sociedade, e o começo de um longo e desgastante calvário.”
(Romero, 2001: 251)
Mas a questão militar ainda não se deu por encerrada. Dois novos eventos
determinariam a desmoralização final do governo Alfonsín, em certa medida
extensiva às próprias instituições democráticas, nos termos imaginados pelo
discurso do “Consenso de 83”. Em janeiro de 1988, Aldo Rico escapou do cárcere
onde cumpria prisão administrativa e voltou a liderar um amotinamento, desta vez
em um quartel em Monte Caseros, na província nordestina de Corrientes: o levante
militar teve menor repercussão e o respaldo da cúpula também foi reduzido,
resultando na perseguição e prisão do Tenente-Coronel. Em dezembro do mesmo
ano, houve um novo levante militar, que terminaria com quatorze mortos e com a
prisão do Coronel Mohamed Alí Seneldín, considerado o líder dos carapintadas. Por
fim, como se verá adiante, Alfonsín, em meio a tanta instabilidade e à onda de
saques que se instalou no país em consequência da aguda crise econômica,
renunciaria ao mandato presidencial, após antecipar em mais de seis meses as
eleições, previstas para 10 de dezembro de 1989, para 14 de maio do mesmo ano,
enquanto os militares envolvidos nos levantes militares, assim como os ex-
comandantes condenados pela Justiça, foram todos anistiados em 1990, no primeiro
ano do governo Carlos Menem.
A situação sindical na Argentina, a partir do fim da ditadura, era bastante mais
precária do que no Brasil. Em seu desfavor, os líderes sindicais tinham perdido
gradualmente a sua legitimidade diante da sociedade, encontravam-se divididos e,
derrotados os peronistas em 1983, agremiação onde haviam predominado os
dirigentes atrelados aos sindicatos, também a sua frente política estava debilitada.
Do ponto de vista institucional, a situação não era menos precária, fosse pela
desconstrução da legislação trabalhista no período anterior, pelas intervenções
ainda vigentes na transição ou pela falta de legitimidade interna dos dirigentes
sindicais. O enfraquecimento político e institucional das organizações sindicais levou
o governo e a sociedade em geral a subestimarem a capacidade de resistência às
mudanças pretendidas.
Primeiramente, o governo utilizou uma estratégia de confrontação e enviou ao
Congresso uma proposta de lei que, como argumentava o Ministro do Trabalho
Antonio Mucci, visava à democratização dos sindicatos. Os críticos à “Lei Mucci”,
entre eles membros da Igreja, do empresariado e até do próprio governo, alegavam
que, em lugar de democratizar, o propósito da legislação proposta era enfraquecer
ainda mais os sindicatos. É uma questão controversa até os dias de hoje entre os
229
coalizão parlamentar nas duas casas do Congresso, tanto pelas dimensões dos dois
principais partidos da base como pelo apoio de praticamente todos os governadores,
que também influenciam nas suas respectivas bancadas estaduais.
Sob o impacto dos efeitos de curto prazo gerados pelo Plano Cruzado, o
PMDB saiu-se como o grande vitorioso: elegeu 200 dos 479 cargos de deputado
federal, conquistou 38 dos 49 senadores eleitos naquela oportunidade e, para coroar
a vitória, elegeu nada menos do que 22 dos 23 governadores de Estado.
Portanto, principais desafios do governo civil estavam no front econômico: o
tratamento da dívida externa e a estabilização econômica. Tratava-se de desafios
similares aos da Argentina, enfrentados inicialmente com planos heterodoxos de
estabilização dos preços e salários e com as mesmas estratégias de negociação da
dívida.
Os planos eram semelhantes e, ao mesmo tempo, dependiam das tentativas
de melhorar as condições para o pagamento da dívida externa junto aos credores e
às autoridades econômicas internacionais102. Os fracassos de Alfonsín e Sarney
foram seguidos de uma adesão à crítica ao Estado protecionista nacional-
desenvolvimentista, como é discutido adiante.
Na questão da dívida externa, cabe destacar a pretensão do governo
brasileiro de uma alteração no tratamento da questão da dívida externa, similar ao
que pretendiam os argentinos.
Assim, quando em fevereiro de 1987 o governo Sarney decretou a moratória
da dívida, ele pretendia convocar os credores para uma renegociação da dívida.
Tratava-se de uma moratória em razão da falência econômico-financeira e não uma
atitude política ou ideológica de contestação aos serviços da dívida, como no caso
da moratória decretada pelo México em agosto de 1982. Tanto é que, no campo
diplomático, o então presidente enviou representantes nacionais aos Estados Unidos
para realizarem contatos diretos com o governo norte-americano de Ronald Reagan.
______________________________________________
102
De acordo com dados do Banco Mundial, os dois países investigados foram atingidos de forma avassaladora
pela crise da dívida: em vinte anos (1975-1994), a dívida externa argentina decuplicou e a brasileira
multiplicou-se por cinco (Rapoport e Madrid, 1998: 286).
232
A intenção brasileira era angariar o apoio dos EUA no sentido de atuar politicamente
junto a bancos privados.
Não é preciso repetir os inacreditáveis registros inflacionários da época, basta
dizer que, em alguns momentos, a inflação mensal chegava a atingir os três dígitos.
Esse problema derrotou todas as tentativas governamentais de contê-lo, desde o
lançamento do efêmero, mas politicamente eficiente, Plano Cruzado, em 1986, até o
derradeiro Plano Verão, em 1989, já às vésperas das eleições presidenciais.
No entanto, apesar de encontrar-se com uma economia menos destruída do
que a Argentina, um fator determinante do fracasso governamental foi a debilidade
do Estado brasileiro, envolto nos problemas associados não apenas à hiperinflação,
mas, sobretudo, à crise fiscal que persistia desde a crise da dívida, uma realidade
compartilhada por todos os países da região, que eram devedores e que foram
severamente atingidos pela escalada dos juros nos Estados Unidos, desde 1979,
pela moratória do México, desde 1982, e pela escassez de financiamento externo, já
que os empréstimos, sobretudo para as economias de industrialização recente,
simplesmente desapareceram dos mercados financeiros.
Em termos de padrão de tomada de decisões, a realidade não se modificou
muito com relação ao período anterior, no sentido de que as decisões permaneciam
centralizadas nas mãos das elites políticas e tecnocráticas. Isto para não falar da
continuação das práticas clientelistas, que persistiam em ambos os países, ou
mesmo dos incontáveis casos de corrupção, que eram tão comuns no Brasil como
na Argentina, países também semelhantes neste aspecto. Muitas das críticas
democráticas feitas por acadêmicos ou pelos órgãos de comunicação de massa,
aliás, apontavam como estes padrões haviam sido acentuados com a concentração
de poder feita durante as ditaduras.
O que se percebia, no caso brasileiro, assim ocorria no país vizinho, era uma
descrença generalizada com relação à capacidade da cidadania de se impor às
pequenas elites políticas e econômicas, as quais eram mediadas por uma cúpula
tecnocrática cujos processos de tomada de decisão careciam de transparência e
accountability. No plano discursivo, a crítica predominante opunha o Brasil dos
coronéis e caciques ao Brasil que se desejava, com o aprofundamento das
instituições democráticas representativas e das formas de participação popular nas
decisões.
233
______________________________________________
103
Continuam os historiadores, na longa citação a seguir, que poderia sobrecarregar o corpo do texto, mas que
expressa com um estilo próprio dos autores a percepção generalizada dos caminhos da modernização
burocrático-autoritária no Brasil, com ênfase nas heranças incorporadas pelo milagre econômico ocorrido sob a
ditadura militar: “Esses ‘novos donos do poder’, aconchegados e acobertados no estamento burocrático-militar,
passaram a atuar à luz do dia, com toda a galhardia de uma nova classe social, como ocorreu em outros
países em que novas burguesias arrivistas ocuparam gradativamente o lugar das aristocracias declassés. No
caso do Brasil, o que mais chocava era o fato de essa nova classe emergente – que incluía seus guardiões, os
austeros militares que assumiram o poder em nome da restauração moralizadora (Castello Branco e Geisel,
expressões de uma classe média educada e discreta) – ter agora se tornado promíscua com o capital. Nova
formação societária, agora incluindo militares-administradores que, em trajes civis de executivos, não
resistiram às ‘gentilezas’ no convívio com as multinacionais, empreiteiras, indústrias de automóvel, de
autopeças, de material bélico, companhias de seguros, de aviação, etc. Nova classe promíscua e deslumbrada
com o capitalismo e com as colunas sociais dos jornais e revistas, o mesmo capitalismo, agora selvagem (a
expressão daqueles anos), que pagou contos do DOI-CODI e financiou a igualmente selvagem Oban – a
temida Operação Bandeirantes (e seu ‘assessor’ de maleva memória, o delegado Sérgio Paranhos Fleury,
condecorado ‘por seus préstimos’ pelo então governador de São Paulo, Roberto de Abreu Sodré, que também
prestigiou a inauguração da sede da Oban). Não raro tais empresas multinacionais utilizaram-se de ‘altos
funcionários’ recrutados nas beiradas da aristocracia declassée paulista para, com algum domínio da língua
alemã, inglesa ou francesa, atuarem como relações públicas nesses jogos do capitalismo associado e
dependente. Semelhante ao que ocorrera na Alemanha nazista ou na França da Ocupação, processava-se
aqui a velha cumplicidade de estamentos pretéritos com as novas frações da mal-formada classe burguesa.”
(Lopez e Mota, 2008: 886-887)
234
Foi diante desta realidade, comum aos dois países e a praticamente todos da
região, que ocorreu o questionamento do antigo modelo de desenvolvimento
prevalecente na América Latina, o paradigma nacional-desenvolvimentista.
Caracterizado por um amplo envolvimento governamental no gerenciamento da
economia, cabia aos governos não apenas regulamentar as atividades econômicas,
mas também participar ativamente do processo de desenvolvimento, provendo o
planejamento da industrialização, financiamento público, infra-estrutura e incentivos
à iniciativa privada. Tratava-se de um conjunto de novas políticas no campo
econômico, ou nova geração de políticas – com destaque para as novas políticas de
estabilização monetária e abertura comercial104. O questionamento deste modelo de
______________________________________________
104
Sobre a gênese e o desenvolvimento do “paradigma nacional-desenvolvimentista” e do modelo de
substituição de importações na América Latina, pode-se consultar o relato histórico desenvolvido por A. Cervo
(2001). Sobre as ideias e instituições do nacional-desenvolvimentismo na Argentina e no Brasil, ver o
excelente estudo de K. Sikkink, Ideas and Institutions: Developmentalism in Argentina and Brazil, livro
publicado em 1991, análise comparada que se refire ao momento histórico do final dos anos 50.
236
______________________________________________
105
Também existe uma vasta literatura sobre a difusão das políticas neoliberais, desde a sua inclusão nas
reformas levadas adiante pelos governos da conservadora Margareth Thatcher, na Grã-Bretanha, e do
republicano Ronald Reagan, nos Estados Unidos, até a sua difusão pelos países em desenvolvimento, como é
o caso das economias latinoamericanas. Sobre o surgimento das ideias neoliberais e uma breve síntese
histórica de sua adoção desde o princípio dos anos 80, cf. a análise realizada por Perry Anderson (1995) e o
livro, mais recente e bem mais completo, de David Harvey (2005). As coletâneas organizadas por W. Smith, C.
Acuña e E. Gamarra (1994) e por R. Gwynne e C. Kay (2002[1999]) põem maior ênfase nas conversões
latinoamericanas e nas suas determinantes encontradas na economia política dos países da região. Para uma
análise do caso brasileiro, no contexto da conversão latinoamericana, ver o interessante livro de Emir Sader
(2003).
237
estas bases foram fortalecidas pelas demandas do público nas democracias dos
países desenvolvidos, sobretudo, por maior proteção social, pela busca do
progresso e do incremento das condições de vida. Este processo, que também se
verificou, embora por suas próprias trajetórias históricas particulares, nos países em
desenvolvimento, mesmo que não se tenha construído nada comparável aos
Estados de bem-estar social que foram institucionalizados nos países europeus,
como já foi mencionado no capítulo anterior. Por trás disso tudo, estava a convicção
de que o mercado havia se excedido, de que havia falhas de mercado, de que havia
muitas necessidades e serviços que o mercado não poderia fornecer, de que os
riscos e os custos humanos e sociais eram muito altos e de que o potencial para
abusos era muito grande. Como destacam D. Yergin e J. Stanislaw (2002[1998]), em
livro onde analisam as “batalhas de ideias” que estiveram associadas às próprias
lutas constitutivas da economia política mundial, nas últimas décadas do século XX:
______________________________________________
106
Cf., a respeito das diretrizes do Consenso, sua aplicação e resultados nos principais países da região, as
análises realizadas “Depois do Consenso”, já nos anos 2000, reunidas na coletânea organizada pelo próprio J.
Williamson e P-P. Kuczynski (2004). É interessante notar que, no diagnóstico dos autores, ao contrário do que
se afirma, o desempenho ruim das economias da região e a persistência dos problemas tradicionalmente
enfrentados pelos países da região não deve ser creditado às reformas estruturais e às políticas do Consenso,
mas sim à sua realização incompleta. De acordo com eles, seria preciso realizar uma “segunda geração de
reformas”, isto é, terminar o trabalho que, em geral por razões políticas, deixou de ser feito.
240
e o dólar. O “currency board”107 (ou caixa de conversão) atingiu sua meta de sair da
hiperinflação, mas ao longo da década de 1990 passou a ser cada vez mais avaliado
como um sistema que gerava uma rigidez excessiva, resultando em uma
sobrevalorização da moeda argentina, o que atingiu a competitividade internacional
de sua economia (Williamson, 2004: 4).
A partir de 1994, sob o efeito da crise mexicana, a situação Argentina passou
a ficar cada vez mais complicada. A situação política havia se agravado nos
primeiros anos após a vigência da Tarifa Externa Comum, impulsionada pelos sinais
de debilidade econômica e de crise social. Ironicamente, a crise mexicana havia
fortalecido a campanha do presidente Menem, que concorria à reeleição autorizada
por emenda constitucional aprovada no ano de 1994. Os efeitos da crise na América
Central foram sentidos em plena campanha, quando o presidente teve sua
campanha associada à ordem e à estabilidade (Romero, 2004). Na expressão do
autor, o momento da reeleição foi o zênite do prestígio presidencial, que dali em
diante entraria em declive. Os anos de 1995 e 1996 foram anos críticos para o
governo, pois começaram a aumentar as oposições políticas e sociais ao
menemismo, inclusive com inúmeros protestos violentos em diversas partes do país.
As três centrais sindicais (CGT, MTA e CTA) voltaram a realizar greves gerais, uma
vez esvaídos os efeitos positivos dos primeiros três anos de convertibilidade.
Fortalecia-se também a oposição política, alimentada pela boa colocação
obtida pela FREPASO, que ficou em segundo lugar nas eleições presidenciais, com
chapa encabeçada pelos ex-peronistas José Octavio Bordón e Carlos “Chacho”
Álvarez (29%, contra os 50% da inquestionável vitória de Menem), assim como pelas
denúncias de corrupção no governo que se multiplicavam paralelamente à
deterioração econômica. FREPASO e UCR incentivaram os cidadãos a realizar
protestos de forte apelo simbólico, como um apagão voluntário de cinco minutos e os
primeiros panelaços (cacerolazos). A partir de 1996, começariam também outras
novas modalidades de protesto, que persistem até os dias atuais, como a montagem
______________________________________________
107
Segundo Eichengreen (2000[1996]: 239), existe uma semelhança notável entre o “currency board” e o
padrão ouro: ambos resultam em uma taxa de câmbio fixa, mas no primeiro caso a moeda doméstica é
atrelada diretamente à moeda estrangeira, enquanto no segundo o é ao preço doméstico fixo do ouro.
242
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108
A partir de 2001, no esteio da mais profunda crise da história argentina, estes grupos adquiriram maiores
graus de organização e de capacidade de mobilização, tornando-se também mais heterogêneos entre si, em
termos de composição social e de orientação política. Em trabalho de 2007, calculava-se que os piqueteros
somavam cerca de 300 mil argentinos, representando 10% dos beneficiários dos subsídios que começaram a
ser estipulados pelos governos posteriores à crise: “[Eles] podem ser divididos em três grupos: dialoguistas,
moderados e duros. Cada um destes setores, por sua vez, reúne outros subgrupos de diferentes origens e
ideologias. Como explica o sociólogo e especialista em assuntos sindicais, Julio Godio, a característica em
comum de todos os grupos é serem formados, em sua maioria, por desempregados com certa tradição
política, situação que os diferencia dos ‘pobres estruturais’, sem nenhuma experiência política, e que
pertencem ao mundo da marginalidade social e econômica.” (Epsteyn e Jatobá, 2007: 43).
243
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109
Após um período de relativa estagnação no processo de liberalização, as reformas foram retomadas por
Fernando Henrique Cardoso, primeiro como Ministro da Fazenda do governo de Itamar Franco, sucessor de
Collor, e depois como presidente, durante dois mandatos (1994-1998 e 1998-2002). Poucos meses antes das
eleições presidenciais que levaram Cardoso ao Palácio do Planalto, o governo lançou mão de um plano de
estabilização econômica, o Plano Real, completando a liberalização comercial e a privatização (inicialmente do
setor siderúrgico e petroquímico) do início da década de 1990. Conforme o comentário de Kuczynski (2003:
22), “isto alinhou a maior economia da região com as políticas dos outros países principais”.
244
“nenhuma das MPs examinadas pelo Congresso foi rejeitada” (Diniz, 1998: 15). Esta
característica do processo de liberalização brasileiro explica em grande medida a
própria trajetória das reformas, avançada pelas lideranças executivas em detrimento
de outras instâncias como a representação parlamentar ou quaisquer instituições
que fossem mais inclusivas do ponto de vista democrático. Assim como na
Argentina, as reformas orientadas para o mercado no Brasil foram marcadas pelas
regras institucionais e por suas formas características de distribuir o poder de
agência e transformação das próprias instituições e políticas existentes, conforme ao
argumento de dependência da trajetória.
245
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110
Para uma análise mais aprofundada das hipóteses alternativas sobre a relação entre integração regional e
globalização, consultar M. Lima e M. Coutinho (2007). De acordo com os autores, “um dos grandes debates
envolvendo os processos de globalização e regionalização está em saber se são fenômenos distintos ou
conseqüentes”. Entre os primeiros, “existem os que acreditam tratar-se de dois processos separados que
podem ser vistos tanto como complementares quanto como antagônicos”, enquanto “as hipóteses
consequentes concordam que esses processos estão conectados e que há uma relação entre eles”,
subdividindo-se os que afirmam que “o regionalismo significa um passo no sentido da globalização” e os que
sustentam que “a globalização impulsiona o regionalismo” (2007: 125-126).
111
Com efeito, o questionamento dessa fronteira tem se tornado uma constante nos estudos de relações
internacionais e política comparada, desde os anos 1970, pelo menos. A título de exemplo, meramente, pode-
se citar os trabalhos de Peter Gourevitch (1978), Robert Putnam (1988), Robert Keohane e Helen Milner
(1996). Para uma discussão desta literatura e de suas principais referências, consultar James Fearon (1998)
ou a parte inicial do livro da própria H. Milner (1997).
247
setores, assim como para colaboração mais íntima e estreita no plano internacional”
(Art. 16). Em outro trecho, a consolidação democrática é associada ao primeiro dos
pontos citados acima (Consenso de Cartagena), onde a posição dos dois governos
quanto à renegociação da dívida é vista como uma condição para o “bem-estar dos
povos” argentino e brasileiro e para o “avanço do processo democrático”. A seguir, é
transcrito o último artigo da Declaração de 1985, onde os mandatários associam
democracia à integração regional e sublinham o compromisso em torno dos valores
democráticos:
“Art. 32. Por último, os Presidentes José Sarney e Raúl Ricardo Alfonsín reafirmaram
enfaticamente que o processo de democratização que vive o continente deverá
conduzir a uma maior aproximação e integração entre os povos da região.
Afirmaram, igualmente, que, para os latino-americanos, a democracia deve
necessariamente significar paz, liberdade e justiça social; comprometeram-se a não
poupar esforços para que convivam neste continente sociedades que privilegiem os
princípios de dignidade humana, cooperação, solidariedade, paz e bem-estar.
Concluíram assinalando que as relações bilaterais brasileiro-argentinas serão
exemplo deste ideário.”
______________________________________________
112
A este respeito, a obra sempre citada é o livro pioneiro do diplomata brasileiro Sérgio Danese, Diplomacia
Presidencial, que a define como “a condução pessoal de assuntos de política externa, fora da mera rotina ou
das atribuições ex officio, pelo presidente, ou, no caso de um regime parlamentarista, pelo chefe de Estado
e/ou chefe de governo” (1999: 51). De acordo com a leitura de Danese, a novidade é explicada pela
“frequência e abrangência com que se recorre à figura dos chefes de Estado e de governo para fazer
diplomacia em áreas, temas e situações em que, até há relativamente pouco tempo, era comum recorrer-se
aos chanceleres ou a plenipotenciários” (1999: 70).
113
Observa Seixas Corrêa, ao comentar o envolvimento pessoal do presidente nas questões regionais, que
“com cada um dos interlocutores regionais, estabeleceu-se um programa de consultas e de cooperação que
permitiu ao Brasil – não obstante as limitações impostas pela crise econômica e pelo estancamento do fluxo de
financiamentos para projetos de infraestrutura – assegurar uma presença diferenciada e uma relevância
objetiva. Para tanto, certamente pesou o fator da chamada ‘diplomacia presidencial’. Ao final do seu mandato,
o presidente Sarney orgulhava-se de ter visitado todos os países da América do Sul (além do México e Costa
Rica), alguns mais de uma vez, tendo recebido em Brasília praticamente todos os seus colegas da região.
Alterando a prática anterior, o presidente passou também a prestigiar pessoalmente a posse de diversos
presidentes latinoamericanos, estabelecendo com seus colegas uma relação de trabalho e de confiança
fundamental para o êxito de seu projeto diplomático regional.” (2000: 373).
261
______________________________________________
114
No trabalho citado, escrito no contexto inicial da aproximação bilateral, analisa o autor que “os argumentos
sustentados por alguns setores empresariais destacaram tanto os problemas derivados dos distintos níveis e
graus de desenvolvimento alcançados por Argentina e Brasil, como as dúvidas e temores existentes frente às
restrições financeiras e fiscais com que opera a economia argentina e, ademais, as diferenças entre ambos os
países em matéria de financiamento, regulações e custo do trabalho. (...) Apesar destas críticas, a marcha das
negociações, que foi acompanhada por uma crescente articulação entre os setores empresariais e o governo,
parece indicar um maior e crescente apoio do grosso do empresariado argentino aos acordos de integração.”
(Russell, 1987: 23-24). Naturalmente, considerando a difícil fase final do governo Alfonsín, em especial após o
fracasso do Plano Primavera, de 1988, este apoio dos empresários não teria continuidade no restante do
período.
263
______________________________________________
115
Cabe destacar que, nos termos do próprio Tratado, a integração bilateral era aberta à participação de outros
países da ALADI, desde que decorrido o prazo inicial de cinco anos: “Art. 10. A solicitação de associação por
parte de Estado-membro da Associação Latino-Americana de Integração - ALADI a este Tratado, ou a um
Acordo específico dele decorrente, poderá ser examinada pelos dois Estados-Parte após cinco anos de
vigência deste Tratado ou do Acordo específico a que o Estado-membro da ALADI solicite sua associação”.
265
sentido, ao longo do ano de 1990 foram firmados a Ata de Buenos Aires (em julho),
que estabeleceu um “Grupo de Trabalho” binacional (o Grupo Mercado Comum,
GMC), instância subordinada à preexistente Comissão de Execução do Tratado de
1988, e o Acordo de Complementação Econômica n. 14 (em dezembro), o qual
incorporou as duas dúzias de protocolos setoriais então vigentes. Por meio do
primeiro compromisso, os presidentes antecipavam o prazo para a criação de um
espaço econômico comum para dezembro de 1994, fazendo-o caber dentro de seus
mandatos presidenciais.
A terceira questão definidora do bloco diz respeito justamente ao processo de
multilateralização, que já estava em curso desde os últimos anos da década de
1980, mas que também teve momentos decisivos no ano de 1990. No caso do
Uruguai, desde meados da década o governo já havia manifestado a sua intenção
de aderir à integração argentino-brasileira.
Entre julho de 1986 e maio de 1987, houve três encontros presidenciais
trilaterais (Raúl Alfonsín – José Sarney – Julio Sanguinetti), mas ainda havia forte
resistência, especialmente por parte do governo brasileiro, que não desejava repetir
as dificuldades da ALADI com relação aos países de menor desenvolvimento
relativo, temor que se estendia ao caso paraguaio116. No ano de 1988, o presidente
uruguaio manifestou interesse de aderir à integração entre Argentina e Brasil, tendo
sido adotadas duas Decisões Tripartites (a n. 1, em abril, e a n. 2, em novembro), as
quais reforçavam o sentido de integração do país ao processo bilateral, mas
preservando tanto os princípios e instrumentos definidos pelos dois países maiores
como as condições particulares deste sócio menor117. Mas isto ainda não significava
______________________________________________
116
Conforme a análise de A. Vaz (2002: 126), “o foco de maior resistência era então o Brasil, que não desejava
reproduzir, em escala menor, a experiência da ALADI, em que a presença de países de menor
desenvolvimento relativo acarretara a adoção de um regime de tratamento privilegiado, no qual o país, por sua
dimensão e diversidade econômica, devia oferecer concessões sem reciprocidade. A avaliação era a de que a
diferença em termos de desenvolvimento relativo tornava contraproducente, para o Brasil, a incorporação do
Uruguai e Paraguai, sendo que, no caso deste, a própria natureza de seu regime político representava um
elemento impeditivo”. A ditadura de Stroessner durou quase 35 anos (de agosto de 1954 a fevereiro de 1989),
tendo sido substituído pelo presidente civil Andrés Rodríguez.
117
É também A. Vaz quem analisa a solução política adotada diante das pretensões uruguaias, compartilhadas
por argentinos, que percebiam a inclusão dos sócios menores como um fator moderador da assimetria diante
do Brasil e como um modo de forçar maior abertura da economia brasileira, em especial pela pretensão
267
______________________________________________
(frustrada) de incluir o Chile, que já trazia das décadas anteriores um maior grau de abertura. Quanto à
questão específica do Uruguai, o autor afirma que, pela solução adotada na Ata da Alvorada (Alfonsín-Sarney-
Sanguinetti) e nas Decisões Tripartites, tudo isso em 1988, de preservar os princípios e instrumentos definidos
bilateralmente, “acomodavam-se os interesses uruguaios, ainda que em condições distintas das desejadas
pelo país, ao mesmo tempo em que se preservava o processo bilateral como vinha sendo conduzido”. Tratava-
se de uma associação parcial, pois, “naquela fase, foram infrutíferos os esforços uruguaios de tornar trilateral o
processo de integração e de nele manter condição privilegiada, em razão de seu menor tamanho” (2002: 126).
268
______________________________________________
118
A explicação da configuração inicial do projeto integracionista pelo autor é resumida no trecho a seguir: “A
passagem do processo negociador bilateral ao exercício multilateral quadripartite produziu-se a partir da
conjunção de fatores externos, em particular a ascensão do regionalismo econômico como traço definidor da
ordem econômica internacional, e, neste âmbito, o protagonismo dos Estados Unidos no continente americano
a partir de 1990, com outros fatores definidos na própria sub-região, como a movimentação do Uruguai
objetivando incorporar-se ao processo que o Brasil e a Argentina vinham conduzindo desde meados dos anos
80, o interesse e a movimentação do governo argentino visando estabelecer acordos preferenciais com seus
principais parceiros na região, a política pendular do Paraguai imediatamente após a queda de Stroessner e,
diante disso, o interesse e a resposta brasileira objetivando articular uma plataforma de inserção externa.”
269
fragmentação, esta cifra havia caído para menos de 2 milhões, embora ainda fosse
duas vezes maior do que as outras duas juntas. Trata-se também da central sindical
com maior representatividade em termos de setores econômicos envolvidos119. Em
termos ideológicos, predominavam na CGT o peronismo e as suas raízes
corporativistas. O segundo maior movimento sindical, o CTA, foi criado em 1992 e
suas bases principais eram os empregados estatais (professores) e os trabalhadores
da indústria metalúrgica. Em 1994, contava com cerca de 700 mil trabalhadores
associados, parte deles provenientes da CGT e outra parte incorporando tanto
novos associados como desempregados, um setor econômico que cada vez mais
assumiria importância no âmbito dos movimentos sociais argentinos, os
desocupados. O terceiro movimento mencionado, o MTA, outra dissidência da CGT,
foi criado em 1993 e tinha suas bases quase exclusivamente nos setores de
transportes e da indústria automotiva. Vejamos a relação, quando houve, dessas
três organizações sindicais com as dinâmicas de integração regional da Argentina.
A CGT, em que pese sua importância política no passado, possuía, na
primeira metade dos anos 90, baixa capacidade de mobilização para influenciar as
políticas de integração do governo Menem. Como não houve debate interno à
organização, ela tampouco possuía uma política de integração propriamente dita,
limitando-se a expressar apoio às posições da Coordenadora das Centrais Sindicais
do Cone Sul. Como observa Klein (2000), a primeira declaração oficial sobre o tema
ocorreu apenas em dezembro de 1991. Eram outros os assuntos prioritários para a
CGT – em particular, as políticas de imigração, a defesa do monopólio de
representação e as caixas de seguro de saúde ou obras sociales, de propriedade
dos sindicatos – e, sendo assim, a questão da integração econômica passava ao
largo do envolvimento político da CGT, que, cabe reforçar, encontrava-se em uma
trajetória descendente em sua capacidade de mobilização política e de influência
sobre as políticas governamentais.
______________________________________________
119
Conforme aponta Klein (2000), a CGT abrangia principalmente os sindicatos das seguintes atividades
econômicas: comerciários, bancários, empregados municipais e trabalhadores dos setores automotivo,
metalúrgico e de transportes.
272
______________________________________________
120
Conforme observa Klein, a ascensão do número de associados à CUT é explicada, em primeiro lugar, pela
migração de inúmeros sindicatos antes filiados à CGT, e, depois, pela associação de sindicatos antes
independentes ou então recém criados. O autor estima, com base em um conjunto de trabalhos e de
entrevistas, que a CUT representava então cerca de 60% dos trabalhadores sindicalizados no Brasil.
275
centrais sindicais. Por fim, também eram outros os temas de maior relevância para
as centrais sindicais naquele momento de conversão ao neoliberalismo, como as
privatizações, a reforma trabalhista, entre outros temas tradicionalmente
privilegiados pelas organizações de representação dos trabalhadores.
Dando sequência à discussão, cabe analisar o envolvimento das
organizações empresariais nas negociações do bloco, primeiro na Argentina, depois
no Brasil. Quanto às organizações argentinas, observa-se que elas tiveram um
padrão de comportamento político não muito diverso dos sindicatos, no que se refere
à integração: “pouquíssimos funcionários [dos sindicatos] mantiveram-se a par do
MERCOSUL e o fluxo interno de informações (para os associados) foi insignificante”
(Klein, 2000: 195), pelo menos até 1995, quando as instituições do bloco já estavam
em pleno funcionamento. Ressalte-se, ademais, que as organizações empresariais
argentinas caracterizam-se pela forte centralização das estruturas de decisão, pelo
escasso fluxo de informações e, finalmente, pela sua concentração regional, ou seja,
as suas atividades políticas raramente ultrapassam os limites de Buenos Aires. Em
termos de serviços aos associados, nem pensar na existência de qualquer tipo de
assessoria ou esforço de mobilização política dos empresários associados,
limitando-se as suas organizações a informar simplesmente sobre as tarifas vigentes
ou sobre trâmites aduaneiros.
Entre os empresários, a organização formal de maior peso político e
econômico é a Unión Industrial Argentina (UIA), existente desde o final do século
XIX e principal representante dos industriais. Apesar de ser bastante descentralizada
e de contar com numerosas Pequeñas y Medianas Empresas (cujo acrônimo
castelhano é PyMEs), na prática a UIA é dominada “por uma oligarquia de grandes
empresas que estão a cargo da maior parte do orçamento financeiro e que lideram
as correntes internas” (Klein, 2000: 79)121. Talvez por isso, a Argentina fosse o único
país do Cone Sul a possuir, no momento da integração regional, duas organizações
relativamente importantes de PyMEs, ambas criadas na primeira metade dos anos
______________________________________________
121
O autor identifica duas correntes internas principais: o Movimiento Industrial Argentino (MIA), tendência mais
liberal e dominante na estrutura da organização, e o Movimiento Industrial Nacional (MIN), este último mais
protecionista, sobretudo até o final dos anos 80.
276
______________________________________________
122
Cf., a este respeito, os trabalhos de Aníbal Viguera (1997) e de Carlos Acuña (1994), além da pesquisa já
citada de Hirst, Bezchinsky e Castellana (1994).
277
______________________________________________
123
Em nota anterior, foi dado destaque às médias de crescimento industrial favoráveis ao Brasil nos anos 70
(9,0% a.a. contra 1,6% da economia argentina) e menos desfavoráveis durante os primeiros cinco anos da
década seguinte (1980-1985): -0,6% a.a. para o Brasil, contra -3,2% da economia vizinha. A média da década
de 1980 foi de -0,2% a.a. contra -1,6% para a Argentina. Para ilustrar esta situação da estrutura produtiva
argentina, Hirst et alli. (1994: 7) observam que, “em meados dos anos 60, a Argentina produzia
aproximadamente 350 mil automóveis, 25 mil máquinas-ferramentas e 60 mil tratores. Em 1990, estes
números haviam se reduzido para 120 mil, 6 mil e 5 mil, respectivamente”.
124
Conforme observam os pesquisadores, a diferenciação analítica refere-se a dois universos de argumentação
e traduziam modelos econômicos alternativos, mas é, acima de tudo, uma distinção analítica, ou seja, que
“visa permitir melhor compreensão da realidade, mas que não corresponde necessariamente à sua fiel
representação” (1994: 13).
278
______________________________________________
125
A Coordenadora foi criada em 1986, por meio do apoio da Organização Interamericana de Trabalhadores
(ORIT), uma organização transnacional que reunia oito centrais sindicais representativas dos países do Cone
Sul - Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. Após o surgimento do MERCOSUL, a Coordenadora
passou a priorizar o tema da integração, ainda que os governos tenham mantido os trabalhadores afastados
das principais instituições e decisões que impulsionaram a construção e consolidação do bloco.
281
em dezembro de 1994. O processo negociador enfrentou pelo menos três fases até
o impasse que, em dezembro de 2005, adiou a adoção do acordo hemisférico que
criaria uma área de livre comércio entre 34 países americanos, projeto
integracionista que ainda não recobrou força, até os dias atuais. Nesse sentido, é
construída uma periodização daqueles cerca de dez anos, para a melhor
organização e análise dos processos enfatizados aqui: (i) entre 1994 e 1998, logo
após o lançamento da proposta, a primeira fase serviu para definir as regras e a
estrutura do próprio processo negociador; (ii) em 1998, foram lançadas oficialmente
as negociações para a constituição do bloco, sendo que o ano de 2001 introduziu
uma série de alterações de rumo e, quando terminou o ano de 2002, o que se tinha
definido era a implantação de uma ALCA “limitada”, decisão conjunta que derivava
das dificuldades de conciliar as posições negociadoras; (iii) finalmente, a última fase
analisada, de 2003 até o final de 2005, corresponde ao desfecho final do processo,
quando ficou explícito que seria muito difícil conciliar os dois projetos principais, um
dos EUA e outro dos países do MERCOSUL, claramente liderados pela posição do
Brasil, o que levou à suspensão das negociações, em virtude do seu esgotamento.
Paralelamente, o texto não deixa de analisar algumas dinâmicas do próprio
MERCOSUL, na medida em que elas também tiveram influência sobre as
negociações da ALCA. Desde 1995, o bloco caracterizou-se pelo funcionamento
efetivo das instituições criadas pelo Protocolo de Ouro Preto e pelo crescimento
significativo do comércio intrarregional, o que foi estimulado pela estabilidade
econômica obtida pelo Brasil após o Plano Real. Por outro lado, também surgiriam
grandes dificuldades políticas no MERCOSUL, com destaque para os desafios de
construir uma posição comum nas negociações da ALCA (e em outras frentes de
negociação comercial) e de aprofundar o arcabouço institucional do bloco. Por um
conjunto de fatores, como as diferenças nas políticas macroeconômicas e as
dificuldades decorrentes das crises financeiras internacionais que atingiram os
países em desenvolvimento, os primeiros quatro anos após o início da vigência das
instituições do bloco caracterizaram-se pela estagnação do processo institucional.
Esses desafios acentuaram-se a partir da crise da moeda brasileira de janeiro de
1999 e da profunda crise argentina de 2001-2002, que juntas puseram em crise o
próprio processo de integração. Naquele período, o bloco esteve sob risco de
fragmentação, percepção corroborada pelas diferenças diante da temática da
integração interamericana, foco principal desta seção.
286
“Estes cinco modelos estão atravessados por igual pela lógica da assimetria: todos
os países da região, individual e coletivamente, encontram-se condicionados pelo
predomínio do poder dos EUA. Se concebermos estes modelos a partir da situação
de dependência que caracteriza a América Latina, o primeiro modelo reconhece a
dependência, o segundo procura negociar a dependência, o terceiro aspira a reduzir
a dependência, o quarto tenta combater a dependência e o quinto deseja usufruir a
126
dependência.” (Russell e Tokatlian, 2009: 233)
De volta aos casos, pode-se iniciar dizendo que os dez anos de governo
Menem, iniciados em julho de 1989, significaram uma inflexão inédita na política
externa argentina, no sentido de um acoplamento (ou alinhamento) aos EUA. O
modelo adotado buscava construir uma “aliança especial” entre os dois países. A
nova orientação tomou como modelo ideal a aliança mantida no passado com a Grã-
Bretanha, que desde o final do século XIX até a década de 1930 ocupara o lugar de
______________________________________________
126
A seguir são transcritos os casos encaixados pelos autores na tipologia que constroem, sempre
mencionando “casos emblemáticos” e “casos aproximados”: 1) acoplamento: “os casos emblemáticos de
acoplamento são os do México (durante o governo de Salinas), Argentina (durante o governo de Menem) e
Colômbia (durante o governo de Uribe). Os casos aproximados a este modelo são os do Peru (tanto durante
os governos de Fujimori como de Toledo), Bolívia (durante o primeiro governo concluído e o segundo
inconcluso de Sánchez de Losada) e os países da América Central (salvo Belice, Costa Rica e Panamá) e a
República Dominicana”; 2) acomodação: “os casos emblemáticos são os de Chile e Costa Rica. Os casos mais
aproximados ao modelo são os de México (durante os governos de Zedillo e Fox), Peru (durante o segundo
governo de Alan García), Uruguai, Panamá e, episodicamente, Equador”; 3) oposição limitada: além do caso
emblemático do Brasil, de acordo com os autores “os casos mais aproximados são Argentina (governos de
Néstor Kirchner e Cristina Kirchner), Venezuela (durante a primeira parte da administração Chávez, entre 1998
e 2002), Bolívia (governo Morales) e Equador (governo Correa)”; 4) desafio: ”os casos emblemáticos são os de
Cuba e Venezuela (o governo de Chávez, depois de 2002); 5) isolamento: “o caso emblemático é o Paraguai,
sob os sucessivos governos do Partido Colorado. “Este modelo poderia ser estendido a outros casos na
região, em especial ao Caribe insular cada vez mais dependente dos Estados Unidos em uma ampla gama de
assuntos políticos, econômicos, sociais, militares e culturais” (Russell e Tokatlian, 2009).
290
______________________________________________
127
Conforme o pronunciamento do então chanceler Di Tella: “Nós queremos pertencer ao Clube do Ocidente.
Eu não quero ter uma relação cordial com os Estados Unidos e não queremos um amor platônico. Nós
queremos um amor carnal com os Estados Unidos. Interessa-nos, porque podemos tirar um benefício” (apud L.
Bandeira, 2003: 482).
291
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128
A respeito especificamente do campo da política externa, De la Rúa não havia prometido nenhuma mudança
radical de orientação, mas, como observam R. Bernal-Meza e S. Quintanar (2001: 154), “ainda que durante a
campanha eleitoral não houvesse abertas ou manifestas declarações que fizessem presumir mudanças
drásticas na política exterior, em relação àquela seguida por Menem, a cidadania votou de forma majoritária,
evidentemente, por ‘mudanças em geral’”.
129
Algumas dessas ideias foram trabalhadas por mim e meu colega Juan Claudio Epsteyn em texto anterior (J.
Epsteyn e D. Jatobá, 2007), assim como outras ideias a seguir, que também foram extraídas do trabalho
dedicado a analisar a trajetória política da Argentina entre os anos de 2000 e 2005, mesmo período dos
demais capítulos da coletânea organizada por M. Lima e M. Coutinho (2007), sobre dez países sulamericanos.
Entre eles, vale citar também o artigo de Bruno Magalhães e Juliana Erthal (2007), sobre a trajetória
doméstica, regional e internacional do Brasil.
292
______________________________________________
130
Cf., a este respeito, o capítulo XXI do livro citado Luiz Antônio Moniz Bandeira (2003), que analisa
comparativamente também o alinhamento de Menem e a política externa do general Juan Carlos Onganía
(1966-1969), que adotaram diferentes justificativas para a adoção de uma mesma orientação política.
294
autonomista diante das preferências dos Estados Unidos, ainda que, ao mesmo
tempo, se buscasse evitar enfrentamentos com a potência vista como hegemônica.
A inovação mais importante referia-se justamente ao campo das políticas de
integração, na medida em que foi no governo Itamar que a diplomacia brasileira
lançou em 1993 a proposta de criação de uma Área de Livre Comércio da América
do Sul (ALCSA), em clara oposição à então recém anunciada Área de Livre
Comércio da América da Norte (NAFTA). Talvez este curto governo de transição
tenha representado também a ascensão ou retomada de um modelo de política
externa mais bem caracterizado como oposição limitada, padrão que se manteria até
os dias atuais, ainda que estabelecido gradualmente ao longo dos governos Itamar,
FHC e, finalmente, de forma mais evidente, nos dois governos do presidente Lula.
As relações com os EUA durante os dois mandatos do presidente FHC não
seguiram uma trajetória necessariamente contínua. Inicialmente, mantiveram-se
alguns traços de adaptação conformada (ou acomodação) aos regimes
internacionais considerados cruciais na política externa norte-americana e às
tendências neoliberais que predominaram em seu primeiro período presidencial, de
1995 a 1998. Essa orientação se traduzia no alinhamento aos preceitos do
Consenso de Washington e na adesão a regimes internacionais como o Tratado de
Não-Proliferação Nuclear (TNP), além de tratados nos campos do meio ambiente e
de direitos humanos. Conforme interpretação dada por um dos diplomatas que mais
colaborou com o governo FHC, quando oficiou em sua assessoria internacional,
tratava-se de substituir a ideia de “autonomia pela distância” pela de “autonomia pela
participação” (Gelson Fonseca Jr., 1998). Vale sublinhar que apesar das boas
relações com Washington durante o primeiro mandato FHC isto jamais significou um
acoplamento aos interesses estratégicos dos EUA, tendo o governo brasileiro se
posicionado criticamente diante de uma série de iniciativas norte-americanas, como
as intervenções baseadas no capítulo VII da Carta da ONU, que tinham como
fundamento prestar assistência humanitária, como nos casos da Ruanda, Somália e
Bálcãs.
Posteriormente, em especial a partir da crise econômica iniciada em 1998,
percebida como decorrência do fracasso na aplicação da agenda neoliberal, a
diplomacia brasileira passou a adotar posturas mais críticas, as quais foram
traduzidas pelo conceito de “globalização assimétrica”. A questão mais sensível das
relações Brasil-EUA no governo Cardoso dizia respeito ao tema da integração
295
“O Brasil, como caso exemplar deste modelo, apresenta uma condição única na
América Latina: a de ser um país com aspiração de liderança regional e projeção
extra-hemisférica. Isto lhe exige distanciar-se de Washington para ser reconhecido
como poder na área, mas também aproximar-se [aos EUA] para facilitar a sua
ascensão internacional. Assim, compete parcialmente com os EUA e, ao mesmo
tempo, necessita de seu respaldo às aspirações de desempenhar um papel mais
ativo na política e economia internacionais. Os casos aproximados tendem a oscilar
entre um perfil mais pragmático (a Argentina de Néstor Kirchner) e mais ideológico
______________________________________________
131
Sobre as novas relações com os EUA, após a ascensão dos governos Kirchner e Lula, em que pese sejam
períodos ainda recentes, já há um conjunto de trabalhos interessantes a consultar. Entre eles, optou-se por
indicar os seguintes. Sobre as relações entre Brasil e EUA nos governos Lula, M. Hirst (2009), M. Hirst e M.
Lima (2006) e C. Pecequilo (2010). Sobre as relações entre Argentina e EUA nos governos dos Kirchners, R.
Russell e J. Tokatlian (2009) e R. Bernal-Meza (2008).
298
abandono do MERCOSUL era considerado “um equívoco”, uma vez que nem para o
México a NAFTA se configurava uma certeza. Além disso, ele antevia que não seria
tarefa fácil conquistar acesso ao mercado norte-americano, sobretudo devido às
resistências de setores domésticos que impediriam aquele governo de conceder
acesso aos produtos exportáveis argentinos, em particular os do setor agrícola. Por
fim, Di Tella também apontava o fato de que o Brasil, àquela altura, já representava
o principal mercado externo da produção nacional (entre os anos de 94 e 95, o Brasil
passou a responder por 34% das exportações argentinas, assumindo lugar similar
ao que ocupara a Grã-Bretanha no auge da “aliança especial” da Argentina, um
século antes). Ao valorizar o bloco, setores que coincidiam com o chanceler
polarizavam politicamente com os setores mais liberais alinhados sob a liderança
explícita do ministro Cavallo, com o próprio presidente Menem oscilando entre
declarações pró-ALCA ou pró-EUA e discursos de valorização do MERCOSUL, que
ele mesmo defendera nos anos anteriores.
No lado brasileiro, o chanceler Celso Amorim qualificou alguns aspectos do
NAFTA como “preocupantes”, como as regras de origem, que para ele poderiam
converter-se em obstáculo importante, fora os possíveis impactos da associação
entre EUA e México sobre as vendas brasileiras no mercado norte-americano. Ao
narrar as reações à proposta feita em Miami, Bandeira registra que nem o presidente
Itamar Franco, nem o novo mandatário que seria empossado em janeiro de 1995,
Fernando Henrique Cardoso, sabiam da proposta que afinal foi lançada pelo
presidente Clinton em Miami. A ocorrência da crise mexicana da dívida, cujo governo
decidiu desvalorizar a moeda em 24 de dezembro de 1994, arrefeceu os ânimos de
parte dos setores mais favoráveis à liberalização do comércio exterior brasileiro.
Bandeira (2003: 499) lembra ainda que, se por um lado o Brasil era “o país cuja
estrutura econômica menos se complementava com a dos EUA, Canadá e México”,
por outro lado “a composição do seu comércio com os sócios do MERCOSUL, bem
como com os demais parceiros da sub-região”, tinha uma estrutura “similar à do
intercâmbio entre as potências industriais e os países em via de desenvolvimento”.
Portanto, as posições defensivas predominavam entre os representantes
governamentais e da burocracia diplomática no Brasil, tendo assim permanecido na
maior parte do tempo durante o qual se negociou a criação da ALCA. Foi somente a
partir do últimos anos da década que o Brasil passou a assumir uma postura mais
301
______________________________________________
132
Antigua e Barbuda; Argentina; Bahamas; Barbados; Belize; Bolívia; Brasil; Canadá; Chile; Colômbia; Costa
Rica; Dominica; El Salvador; Equador; Estados Unidos da América; Grenada; Guatemala; Guiana; Haiti;
Honduras; Jamaica; México; Nicarágua; Panamá; Paraguai; Peru; República Dominicana; São Vicente e
Grenadinas; Santa Lúcia; St. Kitts e Nevis; Suriname; Trinidad e Tobago; Uruguai; e Venezuela. Uma breve
descrição do processo de negociação está disponível no site oficial da ALCA (WWW.ftaa-alca.org), assim
como a íntegra das Declarações Ministeriais que resultaram das diversas reuniões, os trabalhos dos diversos
Grupos de Negociação existentes e as minutas de acordo preparadas por estes Grupos.
302
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133
A “Declaração de Princípios”, adotada pelos Chefes de Estado e de Governo na Cúpula de dezembro de
1994, foi expressa a este respeito. Assim, está na parte intitulada “Pacto para o Desenvolvimento e a
Prosperidade: Democracia, Livre Comércio e Desenvolvimento Sustentável nas Américas”: “Trabalharemos
com base nos acordos subregionais e bilaterais existentes, com vistas a ampliar e aprofundar a integração
econômica hemisférica e tornar esses acordos mais parecidos.” No documento intitulado “Plano de Ação”,
descrição mais detalhada das tarefas dos governos e das negociações que eram lançadas pela Cúpula de
Miami, é reiterado o reconhecimento dos acordos sub-regionais e bilaterais, assim como a plena
compatibilidade com as regras do sistema multilateral de comércio (OMC): “Ao procurarmos a integração
econômica e o livre comércio no Hemisfério, reforçamos o nosso sólido compromisso com as normas e
disciplines multilaterais. Endossamos a implementação plena e rápida da Rodada Uruguai, negociações
multilaterais ativas na Organização Mundial do comércio (OMC), acordos comerciais bilaterais e sub-regionais
e outros acordos comerciais compatíveis com as disposições do GATT/OMC e que não levantem barreiras a
outros países.”
304
______________________________________________
134
Apesar de haver sido criado para coordenar o processo de mobilização empresarial em torno das
negociações da ALCA, a CEB transcendeu o âmbito da integração hemisférica, assumindo o papel de
interlocutor de mais de 170 organizações empresariais em outras negociações comerciais internacionais,
como a Rodada de Doha da OMC e as negociações do MERCOSUL com a União Europeia. O esforço de
articulação empresarial foi coordenado pela CNI, que mantém a sua Secretaria Executiva. O órgão consultivo
superior da CEB é o Conselho de Orientação Estratégica, composto por 25 membros, “representando as
organizações empresariais de cúpula e entidades setoriais com relevante participação no comércio exterior
brasileiro”, conforme expressa o site oficial da CNI. Suas atribuições são listadas como segue: “formular
estratégias para ampliar a influência do setor empresarial sobre as posições brasileiras em matéria de
negociações comerciais internacionais; liderar a representação de interesses do empresariado brasileiro em
negociações comerciais internacionais; estimular a capacitação de representantes empresariais para
negociações comerciais internacionais; assegurar que a CEB represente, de fato, a mais ampla gama dos
interesses empresariais, através da mobilização de empresários e entidades empresariais de todos os setores
interessados nas negociações; apresentar as posições e recomendações empresariais aos ministros de
306
______________________________________________
Estado das áreas envolvidas nas negociações; e representar a CEB nos mais importantes foros
internacionais”.
307
“Além de organizar o evento e deixar claro aos negociadores dos demais países do
Continente o seu apoio à metodologia de negociações brasileira, o empresariado
nacional começou a colher os frutos de sua mobilização. O governo, que criara a
Seção Nacional da ALCA (SENALCA) – órgão que tem por objetivo reunir os
representantes de diferentes áreas de governo que participam dos Grupos de
Trabalho Hemisféricos da ALCA, ou que têm interesse específico nas negociações –
, passou a incorporar representantes do setor privado em suas reuniões. Além disso,
o Executivo brasileiro começou a convidar representantes do setor privado para
acompanhar as reuniões oficiais da ALCA sob o sistema de ‘quarto ao lado’ –
embora sem poder estar presente à mesa de negociações governamentais, o setor
privado passou a acompanhar a delegação oficial brasileira recebendo relatos e
debatendo posições.” (Santana, 2001: 174)
“(...) foi com a criação, em 1996, da Coalizão Empresarial Brasileira (CEB) que
ocorria um ponto de inflexão nos padrões de representação empresarial que visava
a influenciar a dinâmica da internacionalização econômica do país. O setor privado
contava, então, com quatro instâncias de diálogo com o governo. Além da CEB,
havia o Comitê Empresarial Permanente (criado no governo Itamar, em 1992), a
Seção Nacional da ALCA (SENALCA) e os Grupos Interministeriais. A CEB inovava
no modelo de gestão, tinha flexibilidade e evitava sua burocratização, conseguindo
manter-se como um interlocutor válido e manter autonomia diante do governo, não
obstante muitas das suas posições serem semelhantes a este.” (Silva, 2009: 65)
“(...) ao passo em que se ampliava o debate sobre a política externa brasileira, com
uma série de atores disputando sua orientação e formulação, verifica-se uma
centralização na sua gestão, no modelo que ficou conhecido como diplomacia
presidencial e que acabou sendo a marca da gestão Fernando Henrique Cardoso.
Considera-se essa uma questão importante para compreender a formulação da
política externa, nesta aparente contradição: se, por um lado, se ampliavam as
esferas de debate sobre a discussão da política exterior, por outro, tentava-se
centralizar sua execução na figura da Presidência da República.” (Silva, 2009: 65-
66)
______________________________________________
135
Em março de 1998, às vésperas da Sexta Reunião Ministerial da ALCA que ocorreria em Buenos Aires, o
jornal El Clarín publicou uma matéria sobre duas pesquisas de opinião realizadas com representantes
empresariais. A primeira, organizada pela CEPAL e pela Secretaria de Indústria, solicitou que os executivos de
61 empresas atribuíssem notas, de 0 (zero) a 10 (dez), para os blocos econômicos aos quais preferiam
associar-se. O resultado publicado na matéria mostra a diferenças entre o MERCOSUL (média 7,5) e a ALCA
(média 4), sendo que os maiores índices de aceitação da ALCA concentraram-se nos setores mais
competitivos, como o alimentício, de couros e têxteis, enquanto os setores automotivo, de telecomunicações e
de bens de consumo registraram as médias mais baixas de aceitação da integração hemisférica. Noutra
pesquisa, patrocinada pela União Industrial Argentina (UIA), os dados também apontavam claramente a
preferência dos empresários: “69,8% dos empresários argentinos creem que não estão preparados para a
associação do MERCOSUL à ALCA e 90,5% consideraram que, como o MERCOSUL foi exitoso, é aí onde
deveriam concentrar-se as energias dos políticos. Mais da metade (52,9%) creem que a integração continental
deveria dar-se em um futuro mais distante do que o previsto”.
309
justo o mercado mais cobiçado pelos produtores agrícolas argentinos. Este era o
sentido dos pronunciamentos das principais lideranças empresariais do setor, já na
fase das negociações oficiais da ALCA:
A perspectiva do setor agrícola brasileiro tendia a ser até mais liberal do que
os equivalentes argentinos, ainda que a ALCA só interessasse no caso de realmente
atender aos seus interesses, isto é, caso aumentasse o acesso a mercados e a
insumos para a produção local. Carvalho (2003) analisa as diferenças existentes
entre as posturas dos setores produtivos brasileiros (industrial e agrícola) em relação
às negociações multilaterais de comércio, explicando-as pelo impacto diferenciado
que as mudanças processadas na economia brasileira tinham causado sobre eles.
Para a autora, enquanto a indústria se ressentiu da liberalização econômica dos
anos 90, a agricultura obteve ganhos com o processo de abertura:
“As diferenças econômicas entre os dois setores resultaram em uma postura mais
liberalizante da agricultura vis-à-vis a indústria nas negociações multilaterais de
comércio. Dessa maneira, a agricultura passou a demandar a liberalização de
insumos industriais e bens de capital utilizados na sua cadeia produtiva, atingindo,
por conseguinte, as preferências de determinados setores industriais que não
estavam preparados para uma abertura tão rápida.” (Carvalho, 2003: 371)
insuficiente para expressar as preferências do setor, uma vez que havia divergências
com determinados setores industriais, como os de bens de capital, indústria química
e de eletroeletrônicos. Apesar de valorizar a CEB, o setor agrícola tinha dificuldades
de avançar no âmbito onde predominavam os interesses industriais. E, por último,
mas não menos importante:
______________________________________________
136
Os períodos estabelecidos e os países correspondentes à Presidência e Vice-Presidência do processo de
negociação foram os seguintes: de 1º de maio de 1998 a 31 de outubro de 1999, Canadá (Presidência) e
Argentina (Vice-Presidência); de 1º de novembro de 1999 a 30 de abril de 2001, Argentina (Presidência) e
Equador (Vice-Presidência); de 1º de novembro de 2002 até o final das negociações, o processo seria
copresidida por Brasil e EUA.
321
______________________________________________
137
Os nove grupos criados em San José foram os seguintes: 1) Grupo de Acesso a Mercados (GNAM); 2)
Grupo sobre Agricultura (GNAG); 3) Grupo de Compras Governamentais (GNCG); 4) Grupo sobre Serviços
(GNSV); 5) Grupo sobre Propriedade Intelectual (GNPI); 6) Grupo sobre Subsídios e Antidumping e Medidas
Compensatórias (GNSADC); 7) Grupo sobre Solução de Controvérsias (GNSC); 8) Grupo sobre Políticas de
Competitividade (GNPC); e 9) Grupo de Negociações sobre Investimentos (GNIN).
322
______________________________________________
138
As contribuições estão classificadas nos temas seguintes: Agricultura, Sociedade Civil, Política de
Concorrência, Solução de Controvérsias, Comércio Eletrônico, Compras Governamentais, Assuntos
Institucionais, Direitos de Propriedade Intelectual, Investimento, Acesso a Mercados, Serviços, Economias
Menores, e Subsídios/Antidumping/Direitos Compensatórios. Trata-se de uma série de manifestações que, por
sua diversidade temática e de gênero textual mesmo, desafiam qualquer tentativa de classificação ou análise
mais detida. O importante para o argumento apresentado aqui é, por um lado, a falta de coerência ou
sistematicidade das “contribuições da Sociedade Civil”, e, por outro lado, ainda mais relevante, a falta de
controle social sobre a sua alegada incorporação nas discussões oficiais.
323
Pois bem, a Segunda Cúpula das Américas foi realizada no Chile e efetivou o
lançamento formal das negociações. Entretanto, a reunião de cúpula foi esvaziada
pelas dificuldades do governo dos EUA de conseguir o mandato negociador
congressual. Sem apoio no Congresso de seu país, o presidente Bill Clinton não
conseguiu apressar a integração hemisférica, como pretendia (o prazo de 2005 foi
mantido). As negociações oficiais iniciaram sem o mesmo fôlego do momento do
lançamento da proposta, quase quatro anos antes. É curioso observar que, no
mesmo mês em que a Cúpula de Santiago ocorreu, os países do MERCOSUL
assinaram um Acordo Quadro com a Comunidade Andina de Nações (CAN) para a
criação de uma área de livre comércio em 2000. Apesar da crise do bloco, seus
membros sinalizavam a intenção de ampliar a integração em direção à América do
Sul. Neste processo, como se sabe, o Brasil era o país que mais colocava ênfase na
criação de uma possível ALCSA, tendo partido da diplomacia presidencial brasileira
a iniciativa de realizar a Primeira Cúpula dos Presidentes da América do Sul, em
setembro de 2000.
Após a Cúpula de Santiago, foram retomadas as Reuniões Ministeriais e as
de Vice-Ministros de Comércio, que preparariam os entendimentos até a Cúpula
Presidencial seguinte, programada para ocorrer em Quebec no início de 2001. A
Quinta Reunião Ministerial (Toronto, novembro de 1999) e a Sexta Reunião (Buenos
Aires, abril de 2001) foram marcadas pelo aumento das pressões de movimentos
organizados e de cidadãos, locais ou estrangeiros, que passaram a realizar
protestos de grande repercussão durante os encontros oficiais. Os eventos de
Buenos Aires foram particularmente violentos, uma vez que ocorriam num momento
de aumento dos conflitos sociais e políticos naquele país, considerando que a
Reunião ocorreu no ano crítico de 2001. Os principais resultados da Reunião de
Toronto foram a solicitação formal dos ministros para que os GTs iniciassem as
discussões sobre as modalidades e procedimentos de negociação e a aprovação de
uma série de medidas de facilitação de negócios, sobretudo em torno de
procedimentos aduaneiros e de maior transparência das políticas comerciais.
Durante o ano de 2000, acentuaram-se as diferenças entre o Brasil e os EUA,
que não se resumiam à temática da integração regional, pois a agenda contenciosa
incluía outros temas sensíveis, como por exemplo, o Plano Colômbia, anunciado
definitivamente no final de agosto e que contava com o apoio da Argentina e de
outros países sulamericanos. No campo da ALCA, vale mencionar que, após troca
324
Europeia. O que se percebia era que os países mais desenvolvidos, porém menos
competitivos neste setor, não demonstravam estar dispostos a abrir mão dos
incentivos à produção ou das restrições às importações que prejudicavam os
produtores dos países menos desenvolvidos, porém mais competitivos na
agricultura. Neste contexto, o Brasil passou a apresentar-se como um demandante,
em vez de manter-se na defensiva diante das pretensões daqueles países. Para
Albuquerque, modificava-se a mensagem enviada pelo governo brasileiro, por meio
do discurso presidencial em Quebec:
“Com isso, a diplomacia foi confrontada com a opção de participar das negociações
da ALCA em busca de maximizar os ganhos e minimizar concessões, e não apenas
retardar o mais possível as negociações substantivas. Com isso, a velha mensagem
ao empresariado e aos líderes de opinião ‘não estamos preparados para competir
com a economia americana. Com a ALCA, nossa indústria será totalmente
desmantelada. Portanto, vamos cerrar fileiras para evitar qualquer acordo comercial
com os Estados Unidos’, foi substituída por uma nova: ‘não estamos preparados
para competir na economia americana. Com a ALCA vamos ter de competir mais
abertamente. Portanto, vamos preparar-nos para aumentar nossa competitividade’.”
(Albuquerque, 2006: 512)
______________________________________________
139
A realização desse Plebiscito não-oficial tinha como precedente o “Plebiscito Nacional sobre a Dívida
Externa”, ocorrido em setembro de 2000. Neste caso, a iniciativa era coordenada principalmente por
organizações da Igreja Católica e foi implementada em 60 países, com o objetivo de perseguir o cancelamento
da dívida externa dos países menos desenvolvidos do planeta. Na ocasião, foram recolhidos 6 milhões de
votos, sendo que 92% dos participantes votaram pela suspensão da dívida desses países.
331
______________________________________________
140
Após envolver-se na organização do Plebiscito, a posição oficial do PT, emitida em agosto de 2002, portanto
durante a campanha presidencial da qual sairia vitorioso o seu candidato Lula, foi contrária ao mesmo. O
Plebiscito terminou por incluir uma questão sobre a Base de Alcântara, como se verá a seguir, no corpo do
texto. De acordo com uma nota oficial emitida pelo PT, a inclusão desta pergunta justificaria a mudança de
posição, embora o partido tenha reforçado que era contrário à assinatura do acordo da ALCA, nos termos em
que estavam sendo discutidos até então. A saída do PT gerou uma série de pronunciamentos críticos,
sobretudo de outros partidos de esquerda e de representantes da Igreja Católica.
332
plebiscito. Logo após dizer que as milhares de pessoas que protestavam nas ruas
da cidade canadense e no restante do continente mereciam ser ouvidas, o
presidente criticou a iniciativa dos movimentos sociais brasileiros, dizendo que se
tratava de uma prerrogativa do Poder Executivo convocá-lo, a qual deveria ser
submetida ao Congresso Nacional. No entanto, ele adicionou que o governo não iria
tomar qualquer iniciativa neste sentido, justificando a recusa com a declaração de
que “se você for submeter em plebiscito decisões do Executivo, você não faz
nenhum acordo – não só o da ALCA”. Um ano e meio depois, em plena campanha
presidencial para a sua sucessão, quando os organizadores do Plebiscito tentaram
entregar-lhe pessoalmente os resultados do processo, o primeiro mandatário
recusou-se a recebê-los.
Em 1º de novembro de 2002, ocorreu a Sétima Reunião Ministerial da ALCA,
na capital equatoriana de Quito. A partir de então até a data prevista para o término
das negociações, em 1º de janeiro de 2005, Brasil e Estados Unidos passariam a
dividir a presidência das negociações. Entre os principais pontos aprovados pelos
representantes ministeriais, destacavam-se a confirmação do calendário para a troca
das ofertas iniciais de acesso a mercados e a fixação de prazos rígidos para a
conclusão das novas minutas do Acordo. A Declaração Ministerial de Quito também
repetiu os termos contidos desde San José, com relação ao “compromisso com a
transparência” e à “necessidade de uma participação maior e sustentada dos
diversos setores da sociedade civil” (Art. 29). Não havia modificações significativas
quanto à natureza ou à condução política do processo de negociação. O máximo
que se fez foi exortar a organização de seminários regionais e nacionais
relacionados à ALCA e orientar as entidades da ALCA a emitir declarações públicas
ao fim de suas reuniões, neste último caso com objetivo de “assegurar um aumento
substancial da qualidade da informação propiciada” (Art. 33). Uma segunda minuta
do Acordo da ALCA foi publicada no site oficial, mas continuava repleta de colchetes
que indicavam não haver consenso na maior parte dos pontos.
Em agosto de 2002, depois de oito anos em tramitação no Congresso dos
EUA, foi aprovada a via rápida que o presidente anterior não havia conseguido junto
aos parlamentares. O presidente Bush comemorou a aprovação, dizendo que o
projeto aumentava as chances de sucesso nas negociações da ALCA. Mas a
verdade era que a aprovação havia sido muito difícil, sobretudo na Câmara dos
Representantes, onde o projeto de TPA obteve apenas um voto a mais do que o
333
necessário. Além disso, o ponto crucial era que o mandato concedido ao Executivo
rejeitava a revisão dos subsídios agrícolas e da legislação antidumping, e ainda
trazia uma extensa lista de 293 produtos excluídos de qualquer possibilidade de
negociação (mais de 100 deles eram agrícolas). Para os países do MERCOSUL,
sobretudo para a Argentina, o Brasil e o Uruguai, seus principais interesses estavam
fora das possibilidades negociadoras dos EUA. A partir da aprovação da TPA,
reduziram-se tanto os interesses dos governos argentinos de Duhalde e de Kirchner,
como dos governos brasileiros de FHC e Lula. A convergência entre as limitações da
TPA, o rechaço ao neoliberalismo nos países da região e a ascensão de governos
progressistas e políticas neodesenvolvimentistas a partir de 2003, entre outros
fatores, balizaram a trajetória final das negociações da ALCA até o impasse da
Quarta Cúpula das Américas, em novembro de 2005. Tudo isso aproximava a
Argentina e o Brasil, opondo-os às pretensões da política de integração hemisférica
dos EUA.
Em fevereiro de 2003, o governo dos EUA apresentou a sua proposta oficial
sobre a ALCA, em que as concessões tarifárias eram escalonadas de acordo com as
diversas regiões das Américas. Assim, eliminava-se a cláusula da Nação Mais
Favorecida, ao se admitir níveis diferenciados de preferências tarifárias que
prejudicavam o MERCOSUL com as menores concessões dentre todas as
ofertadas. Ao mesmo tempo, o governo Bush aceitava retirar todos os tipos de tarifa
alfandegária aos produtos estrangeiros, mas se negava a negociar o fim das
barreiras não alfandegárias, como subsídios, cotas e restrições, o que atingia alguns
dos principais interesses econômicos tanto de argentinos como de brasileiros. Em
março de 2003, em mensagem ao Congresso dos EUA, o secretário de Comércio,
Robert Zoellick, prometeu que os negociadores norte-americanos usariam "todos os
meios" para obter "vantagem total" na negociação do acordo. Por fim, para acirrar os
ânimos dos setores mais resistentes dentro dos países do MERCOSUL, Zoellick
afirmou que adotaria "todos os meios legais e necessários para conquistar o máximo
de vantagens para os americanos", concluindo que forçariam o que fosse possível.
Os novos presidentes de Argentina e Brasil, Kirchner e Lula, eram críticos
antigos das negociações da ALCA e assumiram seus mandatos com promessas de
valorizar o entorno regional mais próximo, com destaque para o relançamento e
aprofundamento do MERCOSUL. A ascensão destes governos, no entanto, não
significou qualquer transformação nos processos decisórios das posições nacionais
334
5 CONCLUSÃO
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