O documento discute uma acusação de transfobia e racismo contra uma professora da UFBA por uma aluna trans. A autora argumenta que a acusação parece ter o objetivo de difamar a professora como uma forma de forjar falsas denúncias contra "inimigos", como foi feito durante regimes totalitários no século XX. A psicanálise pode ajudar a entender os afetos por trás de tais acusações e a importância do reconhecimento do estranho.
O documento discute uma acusação de transfobia e racismo contra uma professora da UFBA por uma aluna trans. A autora argumenta que a acusação parece ter o objetivo de difamar a professora como uma forma de forjar falsas denúncias contra "inimigos", como foi feito durante regimes totalitários no século XX. A psicanálise pode ajudar a entender os afetos por trás de tais acusações e a importância do reconhecimento do estranho.
O documento discute uma acusação de transfobia e racismo contra uma professora da UFBA por uma aluna trans. A autora argumenta que a acusação parece ter o objetivo de difamar a professora como uma forma de forjar falsas denúncias contra "inimigos", como foi feito durante regimes totalitários no século XX. A psicanálise pode ajudar a entender os afetos por trás de tais acusações e a importância do reconhecimento do estranho.
Artigos Colunistas convidados escrevem para a editoria de Opinião do GLOBO.
A lı́ngua que fere
A acusação de transfobia e racismo na UFBA nos leva à prática de forjar falsas denúncias contra os ‘inimigos’ do Estado Por Betty Fuks 28/09/2023
Freud e seu famoso divã — Foto: Reprodução/Museu de Viena
Cada vez que a Humanidade me parece condenada ao desatino, digo a mim mesma: “A história se repete; a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa” (Karl Marx), não necessariamente de forma menos trágica. O episódio recente da Universidade da Bahia (UFBA) — uma aluna trans, incensada pelo ódio, acusou de transfóbica e racista uma de suas professoras — nos leva à prática de forjar falsas denúncias contra os “inimigos” do Estado, repetidamente exercida durante o sangrento século XX.
A linguagem do ódio é sempre a mesma. Basta ler “J’accuse! (Eu
acuso). A verdade em marcha”, de Émile Zola, para perceber que o projeto de difamar alguém determinou a condenação arbitrária, injusta e ilegal do capitão Alfred Dreyfus, oficial judeu do Exército francês. Frantz Fanon, em “Pele negra, máscaras brancas”, não diz outra coisa ao reconhecer a extraordinária potência da linguagem do colonizador sobre o colonizado. Por sua vez, o filólogo Victor Klemperer, em “LTI — a linguagem do Terceiro Reich”, mostrou que o papel do idioma da calúnia na exclusão de todos os que não possuíam uma suposta genealogia ariana não foi secundário na ascensão do nazismo.
O que tais casos têm a ver com os frequentes fenômenos
assemelhados à reivindicação de demissão da docente feita por essa aluna e acolhida pelos coletivos estudantil e LGBTQIA+, sob a alegação de ter havido um “crime linguístico” na adjetivação de seu sentimento com o uso equivocado de seu gênero? Ao que parece, os objetivos em jogo em nada diferem daqueles da novilíngua descrita por George Orwell, em “1984”, como um idioma fictício criado para se sobrepor à maldição de Babel, à multiplicidade de línguas.
Entendendo que o áudio gravado durante a aula contraria as
acusações feitas, penso que o julgamento e a condenação da professora ultrapassam a justa demanda de reconhecimento da identidade sexual e vindicação do lugar de fala. Parece-me que a ação dessa aluna visa antes a obter a satisfação pulsional que atinge a mais cega fúria de destruição ao conectar-se com o amor de si em excesso, com a supressão do que lhe é estranho. Assim, desconsidera a importância política da luta anticolonialista, uma vez que a substitui por embates ideológicos que ignoram a complexidade das identificações que povoam a alma de cada um de nós, reduzindo os semelhantes a uma condição tida como mais relevante: raça, etnia, gênero etc. A reflexão sobre as causas e as consequências do amor de si, sobretudo daquele em excesso, é uma das contribuições da psicanálise ao entendimento dos afetos em jogo no racismo, na segregação e no extermínio do estrangeiro, campos privilegiados do retorno à barbárie nos dias que correm. Não por acaso, Freud insistiu em chamar atenção para o fato de apenas aqueles que reconhecem o próprio horror ao que não lhes é idêntico renunciarem, por razões éticas e estéticas, ao contentamento trazido pelo mal imposto a outrem.
*Betty Fuks, psicanalista, é professora do Programa de Pós-
Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida