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A lı́ngua que fere


A acusação de transfobia e racismo na UFBA nos
leva à prática de forjar falsas denúncias contra os
‘inimigos’ do Estado
Por
Betty Fuks
28/09/2023

Freud e seu famoso divã — Foto: Reprodução/Museu de Viena


Cada vez que a Humanidade me parece condenada ao desatino,
digo a mim mesma: “A história se repete; a primeira vez como
tragédia, a segunda como farsa” (Karl Marx), não necessariamente
de forma menos trágica. O episódio recente da Universidade da
Bahia (UFBA) — uma aluna trans, incensada pelo ódio, acusou de
transfóbica e racista uma de suas professoras — nos leva à prática
de forjar falsas denúncias contra os “inimigos” do Estado,
repetidamente exercida durante o sangrento século XX.

A linguagem do ódio é sempre a mesma. Basta ler “J’accuse! (Eu


acuso). A verdade em marcha”, de Émile Zola, para perceber que o
projeto de difamar alguém determinou a condenação arbitrária,
injusta e ilegal do capitão Alfred Dreyfus, oficial judeu do Exército
francês. Frantz Fanon, em “Pele negra, máscaras brancas”, não diz
outra coisa ao reconhecer a extraordinária potência da linguagem
do colonizador sobre o colonizado. Por sua vez, o filólogo Victor
Klemperer, em “LTI — a linguagem do Terceiro Reich”, mostrou
que o papel do idioma da calúnia na exclusão de todos os que não
possuíam uma suposta genealogia ariana não foi secundário na
ascensão do nazismo.

O que tais casos têm a ver com os frequentes fenômenos


assemelhados à reivindicação de demissão da docente feita por
essa aluna e acolhida pelos coletivos estudantil e LGBTQIA+, sob a
alegação de ter havido um “crime linguístico” na adjetivação de
seu sentimento com o uso equivocado de seu gênero? Ao que
parece, os objetivos em jogo em nada diferem daqueles da
novilíngua descrita por George Orwell, em “1984”, como um
idioma fictício criado para se sobrepor à maldição de Babel, à
multiplicidade de línguas.

Entendendo que o áudio gravado durante a aula contraria as


acusações feitas, penso que o julgamento e a condenação da
professora ultrapassam a justa demanda de reconhecimento da
identidade sexual e vindicação do lugar de fala. Parece-me que a
ação dessa aluna visa antes a obter a satisfação pulsional que
atinge a mais cega fúria de destruição ao conectar-se com o amor
de si em excesso, com a supressão do que lhe é estranho. Assim,
desconsidera a importância política da luta anticolonialista, uma
vez que a substitui por embates ideológicos que ignoram a
complexidade das identificações que povoam a alma de cada um
de nós, reduzindo os semelhantes a uma condição tida como mais
relevante: raça, etnia, gênero etc.
A reflexão sobre as causas e as consequências do amor de si,
sobretudo daquele em excesso, é uma das contribuições da
psicanálise ao entendimento dos afetos em jogo no racismo, na
segregação e no extermínio do estrangeiro, campos privilegiados
do retorno à barbárie nos dias que correm. Não por acaso, Freud
insistiu em chamar atenção para o fato de apenas aqueles que
reconhecem o próprio horror ao que não lhes é idêntico
renunciarem, por razões éticas e estéticas, ao contentamento
trazido pelo mal imposto a outrem.

*Betty Fuks, psicanalista, é professora do Programa de Pós-


Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade
Veiga de Almeida

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