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“Deixe-me ser teu

templo de
promiscuidade”:
consumo escópico do excesso nas
performance-vida e performance
post mortem de Hija de Perra

Thiago Henrique Ribeiro dos Santos


São Paulo | 2020
Autorizo a reprodução total ou parcial da minha dissertação “Deixe-me ser teu templo de
promiscuidade”: Consumo escópico do excesso nas performance-vida e performance post
mortem de Hija de Perra, para fins de estudo e pesquisa, desde que seja sempre citada a
fonte.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de


Nível Superior – Brasil (CAPES) – Finance Code 001.
Thiago Henrique Ribeiro dos Santos

“DEIXE-ME SER TEU TEMPLO DE PROMISCUIDADE”:


Consumo escópico do excesso nas performance-vida e performance post mortem de Hija
de Perra

Dissertação apresentada ao PPGCOM ESPM


como requisito parcial para obtenção do título
de Mestre em Comunicação e Práticas de
Consumo.

São Paulo, 2020

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________________
Orientadora e Presidente da Banca:
Profa. Dra. Rosamaria Luiza (Rose) de Melo Rocha (ESPM-SP)

____________________________________________________________
Avaliadora Externa
Profa. Dra. Maria Bernadette Cunha de Lyra (UFES)

____________________________________________________________
Avaliadora Interna
Profa. Dra. Milene Migliano Gonzaga (ESPM-SP)
A todas as manas
que travam batalha
puxando navalha.

A todas as bixas,
baixas e bruxas,
que fazem bixaria
e praticam necomancia.

Às afeminadas,
às mais engraçadas,
às bunitas
e, é claro, às montadas.

Às especialistas em destruição,
que encabeçam a revolução.
AGRADECIMENTOS

À casa das quatro mulheres – Luiza, Regina, Márcia e Patrícia. E a todas que vieram antes
abrindo os caminhos e às que ainda estão por vir, além das que já estão aqui. Forças potentes
de um mundo que não aguentou e ruiu. Quebraram a costela de Adão e me libertaram.

À Rose de Melo Rocha, por incentivar delírios, fomentar paixões e não ter medo de monstros.
Por alertar quando se está muito longe a ponto de não enxergar ou muito perto a embaralhar
a vista. Por ensinar que, quando a luminosidade cega, os centros endurecem e as superfícies
enganam, é inspirador tatear no escuro, esgueirar-se pelas margens e encarar os abismos.

À Josefina de Fátima Tranquilin-Silva, por apontar caminhos promissores e construir pontes


necessárias. Pela habilidade de enxergar laços onde eles ainda não existem e viabilizar os
encontros para que aconteçam.

À Marina Hungria, cujo sofá continua acolhedor àqueles que precisam, e à Gabrielle Angelim,
por aliviar a jornada com sua generosidade. Às duas, por dividirem o lar e a Jade, que
transformou o que achei não ser passível de transformação.

À Isabella Reis Pichiguelli e à Patrícia Hehs, por virem ao auxílio de quem, com os olhos
padecidos e o peito pesado, precisa de olhares descansados e escutas leves.

Às presenças que fazem existir o Juvenália, essa formação terrorista que explode os centros e
propõe outros modos de partilhar o sensível. Sob a proteção das bixas e das bruxas, exorcizam
certezas e invocam devires.

Aos companheiros da turma de mestrado M18, pelos encontros e partilhas em um percurso


que, em sua maior parte do tempo, percorre-se sozinho. As tempestades são menos frias
quando o calor é compartilhado.

Ao squad: Ana Laura Costa, Mariana Rossi, Renata Rossi, Stella Silva e Thiago Goya, por serem
companheiros de palco e de público dessa performance que é a vida.
Quero ser teu templo de promiscuidade
Lamber teu saboroso suco vaginal
Lamber teu orifício celestial
Entregue-me toda tua imundície
Profane tua santa castidade

(Hija de Perra e Perdida, Templo de Promiscuidad)

Vyados que proliferam


Em locais frescos e arejados
De mendigos a doutores
Cercados por seus pudores
Caninos e mecanismos afiados
Fazem suas preces
Diante de mictórios: fé em pele de vício
Ajoelham
Rezam, genuflexório
Acordam pra cuspir plástico
e fogos de artifício

(Linn da Quebrada, Submissa do 7º Dia)


SANTOS, Thiago Henrique Ribeiro dos. “Deixe-me ser teu templo de promiscuidade”: consumo
escópico do excesso nas performance-vida e performance post mortem de Hija de Perra. 2020.
Dissertação (Mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo) – Programa de Pós-
Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, Escola Superior de Propaganda e
Marketing (ESPM), São Paulo.

RESUMO
Esta pesquisa investiga as audiovisualidades da performer bizarra chilena Hija de Perra (1980-
2014). O objetivo geral é analisar, em uma perspectiva comunicacional e do consumo, a
performance pública da artista e compreender os contextos expressivos e de consumo de seus
rastros digitais, com recorte específico para as audiovisualidades disponibilizadas na
plataforma de vídeos YouTube. Entre os objetivos específicos, estão: a) construir um método
que se valha de rastros digitais e de suas dinâmicas de circulação e consumo, para pesquisar
objetos/sujeitos contemporâneos atuantes em zonas intersticiais do urbano e do pós-
massivo; b) descrever as diferentes dimensões das performances arquivadas em vídeo e suas
especificidades; c) identificar as bricolagens estético-políticas da poética audiovisual das
performances em arquivo, problematizando suas configurações e características; d) investigar
o consumo de audiovisualidades no contexto sociocultural pós-massivo e como ele se dá,
especificamente, no tocante ao arquivo de Hija de Perra. Para tanto, o método utilizado é a
cartografia conduzida pelo olhar e pelos encontros traumáticos do pesquisador com as
audiovisualidades de Hija de Perra. Com o auxílio de uma categoria denominada “orgias
teóricas”, vale-se do caráter multidisciplinar da Comunicação para cotejar autores oriundos
de diferentes campos, como comunicação, psicanálise, sociologia e estudos da performance
e do consumo. Observou-se que a performance das audiovisualidades de Hija de Perra podem
ser clivadas em duas dimensões interconectadas: a performance-vida e a performance post
mortem. A primeira refere-se à indissociabilidade entre arte e vida articulada pela
performance da artista quando em seu tempo encarnada neste mundo. Entre as
especificidades desta dimensão performática, identificou-se a liminaridade da narrativa de si,
os afetos abjetos mobilizados e o exorcismo simbólico da colonialidade. A performance post
mortem, por sua vez, é composta pelos rastros digitais que a artista deixou no mundo, suas
materialidades comunicacionais. Dada a capacidade de afetação deles, principalmente no
âmbito das audiovisualidades, eles se configuram enquanto performances em si e, quando em
conjunto e compondo um corpo audiovisual, outra performance, denominada post mortem.
Suas particularidades incluem viralidade mortífera, transgressões da morte, videoclipicização
das reações e produção de presença. Finalmente, a chave de experimentação do excesso é o
que permite conectar as performances ao consumo do excesso em sua dimensão audiovisual
e simbólica. Por ocorrer exclusivamente pela via do olhar, deu-se a denominação de consumo
escópico do excesso. Estilhaços desse excesso e os modos de presença por eles produzidos,
quando articulados em diferentes intensidades, são descritos e analisados para compor a
trans-estética do excesso de Hija de Perra. Por fim, apreendeu-se que as performance-vida e
performance post mortem da artista são mobilizadoras de uma comunicação eróptica, a um
só tempo vincular de vidente e imagem, atravessando-os por correntes de energia diluidoras
do eu, e exteriores às barreiras de contenção da linguagem e das tentativas de interpretação.
Uma experiência de fazer sentir, e não de dar sentidos.

Palavras-chave: Comunicação e Consumo; Performance; Audiovisualidades; Excesso; Hija de


Perra.
SANTOS, Thiago Henrique Ribeiro dos. “Let me be your temple of promiscuity”: scopic
consumption of excess in performance-life and post-mortem performance in Hija de Perra.
2020. Dissertation (Masters in Communications and Consumption Practices) – Postgraduate
Research Program in Communications and Consumption Practices, School of Advanced
Studies in Advertising and Marketing/Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), São
Paulo.

ABSTRACT
This research investigates the audiovisualities of the bizarre Chilean performer Hija de Perra
(1980-2014). The general objective is to analyze, through a communication and consumption
perspective, the public performance of that artist and to understand the consumption-related
and expressive contexts of her digital tracks, with a specific focus on the audiovisualites
available on the YouTube video platform. The specific objectives are: a) to build a method that
uses digital traces and their circulation and consumption dynamics to research contemporary
objects/subjects in the urban and post-mass interstitial areas; b) to describe some different
dimensions of the archived video performances and their specificities; c) to identify the
aesthetic-political bricolages of the archived performances’ audiovisual poetics, as well as
problematizing their configurations and characteristics; d) to investigate the consumption of
audiovisualities in the post-massive socio-cultural context and how it occurs, specifically, with
regard to the Hija de Perra archive. The method utilized for such purpose was cartography,
which was led by this researcher's gaze and the traumatic encounters between him and Hija
de Perra’s audiovisualities. Under a category named “theoretical orgies”, the multidisciplinary
character of Communication is employed to compare authors from different fields, such as
communication, psychoanalysis, sociology and performance and consumption studies. As a
result, we find that Hija de Perra's performance of audiovisualities can be divided into two
interconnected dimensions: performance-life and post-mortem performance. The first one
refers to the inseparability of art and life, as articulated by the artist's performance during her
incarnated time in this world. Among the specificities of this performative dimension, we
identified the the liminality of self-narrative, mobilization of abject affections and the symbolic
exorcism of coloniality. The post-mortem performance, in turn, is composed by the artist’s
digital tracks left in the world, her communicational materialities. Given their capacity to
affect, especially in the audiovisualities field, they constitute performances in themselves and,
once considered altogether as a whole audiovisual body, they can be considered yet another
performance which we name post-mortem. Its particularities include deadly virality, death
transgressions, reactions through videoclip and presence production. Finally, the "excess" is
seen as a category of experimentation, which allows us to connect this artist's performances
to the consumption of excess in its audiovisual and symbolic dimensions. For it occurs
exclusively through the gaze, we name it “scopic consumption of excess”. Shards of excess
and their produced modes of presence, when articulated in different intensities, are described
and analyzed to compose Hija de Perra’s trans-aesthetic of the excess in a camp and grotesque
bricolage. Finally, we argue that this artist's performance-life and post-mortem performance
are mobilizers of an eroptic communication, linking at once the seer to the image, and going
through them by self-dissolving energy flows, and also external to the contentional barriers of
language and all attempts at interpretation. An experience of feeling, not of attributing
meaning.
Keywords: Communication and Consumption; Performance; Audiovisualities; Excess; Hija de
Perra.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Parte da série Santa Hija de Perra, de Zaida González........................................... 18


Figura 2 – Duo de performers berlinenses, EVA & ADELE ....................................................... 70
Figura 3 – Rosa Peñaloza, mãe de Hija de Perra ...................................................................... 73
Figura 4 – Fotogramas da abertura do curta-metragem documental ..................................... 75
Figura 5 – Fotogramas das cenas finais do curta-metragem documental ............................... 81
Figura 6 – Fotogramas do longa-metragem Empaná de Pino .................................................. 91
Figura 7 – Fotogramas de Me Desnudo, em Valparaíso......................................................... 135
Figura 8 – Fotogramas do curta-metragem documental Perdida Hija de Perra .................... 136
Figura 9 – Fotogramas do longa-metragem Velvet Buzzsaw ................................................. 139
Figura 10 – Flashes das estampas animais ............................................................................. 146
Figura 11 – Flashes da vagina protética ................................................................................. 149
Figura 12 – Flashes dos seios protéticos ................................................................................ 150
Figura 13 – Flashes dos dildos ................................................................................................ 152
Figura 14 – Flashes de objetos fálicos .................................................................................... 152
Figura 15 – Flashes dos tecidos dilacerados e sobrepostos ................................................... 154
Figura 16 – Flashes das sobrancelhas e presilhas .................................................................. 158
Figura 17 – Flashes do modo de presença punk .................................................................... 160
Figura 18 – Flashes do modo de presença sensual debochado ............................................. 162
Figura 19 – Flashes do modo de presença encantador.......................................................... 165
Figura 20 – Flash do modo de presença acadêmico .............................................................. 166
Figura 21 – Flashes do modo de presença policial ................................................................. 168
Figura 22 – Fotogramas do videoclipe Papito Rico ................................................................ 171
Figura 23 – Fotogramas dos videoclipes Indecencia Trance e Papito Rico, respectivamente
................................................................................................................................................ 177
Figura 24 – Flashes de secreções e fluídos em HDP ............................................................... 178
Figura 25 – Flashes de fezes, insinuadas e expostas, em Papito Rico.................................... 179
Figura 26 – Fotograma do videoclipe Megamix Inmundo ..................................................... 180
SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ......................................................................................................... 11

1 DESVIOS E TORÇÕES, PRIMEIROS PASSOS DE UMA PESQUISA-VIAGEM .............................. 16

1.1 METÁFORA DA VIAGEM...................................................................................................... 16


1.2 MONSTROS ......................................................................................................................... 16
1.3 HIJA DE PERRA .................................................................................................................... 17
1.4 RASTROS DE UMA PASSAGEM MONSTRUOSA ................................................................... 20
1.5 CORPO FRAGMENTADO, CORPO DILATADO ...................................................................... 28
1.6 MÉTODO CARTOGRÁFICO E CONHECIMENTO ENCARNADO ............................................. 30
1.7 POR UM OLHAR A(FE)TIVADO ............................................................................................ 37
1.8 MAPEAMENTO HERÉTICO DO RIZOMA .............................................................................. 41
1.8.1 RASTROS AUDIOVISUAIS (YOUTUBE) .............................................................................. 47
1.8.2 RASTROS TEXTUAIS (BUSCADOR GOOGLE) ..................................................................... 48
1.8.3 RASTROS ACADÊMICOS (GOOGLE ACADÊMICO) ............................................................ 49
1.9 ENCONTROS TRAUMÁTICOS .............................................................................................. 51
1.10 (DES)CONSTRUÇÃO DO CORPUS ...................................................................................... 57

2 AS PERFORMANCES DE HIJA DE PERRA ................................................................................. 60

2.1 NO PRINCÍPIO, ERA A PERFORMANCE................................................................................ 60


2.2 DESAFIOS LINGUÍSTICOS..................................................................................................... 63
2.3 AS CABEÇAS POLISSÊMICAS DA HIDRA............................................................................... 63
2.4 ESTUDOS DA PERFORMANCE, UM CAMPO PARA ORGIAS TEÓRICAS ................................ 66
2.5 CARACTERÍSTICAS PARA UMA DEFINIÇÃO ......................................................................... 67
2.6 NÃO É O QUE “É”, MAS O “COMO” .................................................................................... 69
2.7 A PERFORMANCE-VIDA HIJA DE PERRA OU “O MUSEU É ONDE EU ESTIVER” .................. 69
2.7.1 A CONDIÇÃO LIMINAR DA NARRATIVA ........................................................................... 72
2.7.2 AFETOS ABJETOS EM NARRATIVAS IMPURAS ................................................................. 80
2.7.3 EXORCISMO SIMBÓLICO DA COLONIALIDADE E A DIMENSÃO DA (DES)POSSESSÃO ..... 87
2.8 O MONSTRO DEFECA SEUS FILHOS: RASTROS COMO PERFORMANCE POST MORTEM .... 96
2.8.1 VIRALIDADE MORTÍFERA, O MEDO DE SER CONTAMINADO PELA MORTE .................. 109
2.8.2 TRANSGRESSÕES: DA MORTE DA PERFORMANCE E DA MORTE DA CARNE................. 111
2.8.3 AFETOS REMIXADOS, REAÇÕES VIDEOCLIPICIZADAS .................................................... 113
2.8.4 PRESENÇA POST MORTEM ............................................................................................ 115

3 DEVORAR E SER DEVORADO, DO CONSUMO À CONSUMAÇÃO ......................................... 122

3.1 ANAMNESE DO EXCESSO .................................................................................................. 124


3.2 DA FOME À GULA: UMA FISIOLOGIA DO EXCESSO .......................................................... 128
3.3 O INÍCIO DE UMA ADICÇÃO OU OBSESSUS IMAGO ......................................................... 129
3.4 A ERÓPTICA DAS IMAGENS ............................................................................................... 133
3.5 DA CONSUMAÇÃO ............................................................................................................ 138
3.6 ESTILHAÇOS DO EXCESSO: ELEMENTOS PARA CONSTRUÇÃO DE UMA POÉTICA
AUDIOVISUAL ......................................................................................................................... 144
3.7 ABRAM ESPAÇO, A MONSTRA VAI PARIR: UMA TRANS-ESTÉTICA DO EXCESSO ............. 169
3.8 POR UMA COMUNICAÇÃO ERÓPTICA DAS AUDIOVISUALIDADES ................................... 182

CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS.............................................................................................. 187

REFERÊNCIAS .......................................................................................................................... 203

APÊNDICE A – MAPEAMENTO HERÉTICO DO RIZOMA: RASTROS AUDIOVISUAIS .................. 218

APÊNDICE B – MAPEAMENTO HERÉTICO DO RIZOMA: RASTROS TEXTUAIS .......................... 224

APÊNDICE C – MAPEAMENTO HERÉTICO DO RIZOMA: RASTROS ACADÊMICOS ................... 226


11

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Eu apenas brincava. Mas, com cerca de cinco ou seis anos, me disseram que eu era
“diferente”. Em relação a quem ou ao quê, eu ainda não sabia. Diziam não de modo claro,
objetivo, o que talvez teria poupado algumas dificuldades no caminho percorrido para
identificar os afetos sentidos. Era aos poucos, em atos reiterados de um cotidiano do jardim
de infância. A partir de comentários externos, a essa altura embaralhados em reminiscências
infantis e sem autoria – se de professoras, da minha família ou, mais provavelmente, dos
meninos da turma –, apontou-se essa característica do meu comportamento – a “diferença”.
Nem mesmo sei, com certeza, se eram comentários verbalizados em minha direção ou
sussurrados entre os pares, talvez nem verbalizados fossem. Mas entre o tanque de areia, a
gangorra e o escorregador, algo não compreendido pela minha (não)maturidade infantil
circulava. Comunicavam-me algo sobre mim que nem mesmo sabia. Eu apenas brincava.
Logo essa comunicação se intensificou. “O que é que tem em mim que tanto incomoda
você?”, pergunta a cantora travesti Linn da Quebrada em uma de suas músicas 1. Talvez se
meu eu de outrora, com sete, oito anos, fosse capaz de articular esse questionamento, nem
mesmo o garoto que me socou no estômago – do qual não lembro do nome nem do rosto,
apenas da sensação do golpe – saberia responder. As agressões, agora físicas, mas ainda
diáfanas e borradas nas lembranças, continuaram até a terceira ou quarta série. Em casa,
minha mãe insistia para eu revidar. Só assim isso nunca mais aconteceria. De fato, o
constrangimento dela reclamar com a direção da escola e as crianças agressoras serem
confrontadas parecia piorar minha sensação de inadequação. Eu não tinha recursos
emocionais nem era capaz de entender tanto desconforto – meu e, obviamente, despertado
nos outros. O sonho dela era que eu fizesse algum tipo de luta como esporte. Ela buscava em
mim uma força que eu não era capaz de simular.
Com o tempo e o amadurecimento da turma, as agressões foram se sofisticando. Elas
deixaram a linha do visível e abandonaram as marcas físicas. Socos na boca do estômago para
calar a diferença imposta e rasteiras nos caminhos tortuosos percorridos pelos corredores
escolares se transformaram em sussurros audíveis quando eu passava por certos grupos.

1
LINN da Quebrada – Submissa do 7º Dia (Áudio-Vídeo Oficial). [S.l.: s. n.], 2010. 1 vídeo (3m55s). Publicado pelo
canal Linn da Quebrada. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Kfjhie6Y5Qc. Acesso em: 20 dez.
2019.
12

Percebo algo de descontrole infantil nas ocasiões em que houve agressão física nos primeiros
anos da escola. Crianças, elas mesmas não sabendo lidar com as próprias mudanças
características do período, tentavam sufocar os desvios de outros corpos-crianças não
correspondentes às expectativas que estavam(os) aprendendo. Essas (minhas) possibilidades-
outras de existir tensionavam o movimento de colagem da heteronormatividade aos corpos.
Os arroubos físicos, como o bebê que morde ao se frustrar, desapareceram por volta da quinta
série. Mas ainda circulavam invisíveis gatilhos que, de tempos em tempos, acionavam meu
desconforto e lembravam-me que eu permanecia tão diferente. Do quê, eu continuava ainda
sem saber.

Salto no tempo

Recentemente, venho me questionando sobre meus interesses. Não apenas de


pesquisa, mas de tudo aquilo que me afeta, no sentido das afetações de Spinoza – o que
desperta potência de vida. Aos poucos, percebo um ponto de recorrência atravessando para
além da minha vivência na academia. E é interessante que essa inquietação culmine
justamente neste exercício de escrever uma dissertação.
Tenho nesta escrita a sistematização das minhas marcas e a tentativa, através da
linguagem, de cartografar acontecimentos passados que me fazem existir no presente tal
como estou. O que tento nestas considerações iniciais com tons anamnésicos é compartilhar,
em um encontro comigo mesmo, o emaranhado de devires sustentadores de minhas escolhas
enquanto pesquisador em formação.
Torna-se cada vez mais nítido que o tal ponto de recorrência que atravessa filmes,
músicas, livros, textos teóricos que me afetam é a abjeção. O que causa repulsa. O que
incomoda tanto que te faz querer dar um soco na boca do estômago de uma criança de sete
anos. Que faz o irmão mais velho de uma amiga cochichar piadas quando alguém de dez anos
se senta à mesa para almoçar. O que te faz fingir que disfarça risos das amizades de um
adolescente. O que te faz imitar em uma voz caricatural um colega de trabalho de 16 anos em
seu primeiro emprego. O que é tão fora que ameaça o seu dentro, o seu centro.
Hija de Perra é o hiperbólico de tudo isso. O extremo estético e performático de socos,
cochichos, risos e piadas. É o sujo tão absurdo que você não consegue desviar o olhar. Ela
personifica o repúdio. Faz do desvio o caminho, da imundície o lar. Potencializa a diferença e
13

escancara o referencial que, por oposição, constitui-se como igual. Discorre de maneira
artística sobre o processo de colagem da diferença que iniciaram em mim, e em tantos outros,
na pré-escola e assim foi se reiterando por toda uma biografia. Mas faz isso enquanto linha de
fuga. Lembra-nos das possibilidades de (r)existências que podem ser sutis ou afrontosas,
desde que existam.
A (auto)(des)construção dessa criatura monstruosa enquanto diferente, e que toma
para si, deliberada e ironicamente, o lugar e os rótulos impostos, responde à pergunta de Linn
da Quebrada com um grito de força. Não a força que minha mãe queria que eu desenvolvesse
em um esporte de luta. Mas a força dos corpos não-normativos das crianças-viadas. Potência
de vida pela qual tento me deixar a(fe)tivar. Pois, afinal, se eu já sei “o que é que tem em mim
que tanto incomoda você”, ainda assim, eu apenas brincava.

O esqueleto

Esta dissertação é uma tentativa de elaborar meu encontro afetivo com Hija de Perra,
por isso, o tom assumidamente pessoal da primeira pessoa do singular. Tentei evitá-lo o
máximo possível para não cansar a leitura de quem me acompanhará nesta viagem. E isso é
importante. Entendo esta escrita quase como um relato de viagem, uma que já fiz, mas será
refeita cada vez que alguém decidir ler estas páginas. Quando isso acontecer, a jornada se
reiniciará, ativada por quem decidir fazê-la. Assim, tal como apontam alguns autores dos
Estudos da Performance sobre a irreprodutibilidade de suas intervenções, cada leitura é única,
porque a materialidade do texto pode até ser a mesma, mas eu, que escrevi, não serei mais,
e quem ler também será diferente.
O objeto de pesquisa são as performances em arquivo da artista chilena Hija de Perra
(1980-2014), a serem investigadas pelo método cartográfico. Já o problema é construído pela
pergunta “Quais as configurações das performances em arquivo de Hija de Perra e como elas
se articulam à disseminação e ao consumo de seu trabalho, em contextos de comunicação
pós-massivos?”.
O objetivo geral é analisar, em uma perspectiva comunicacional e do consumo, a
performance pública da artista e compreender os contextos expressivos e de consumo de seus
rastros digitais, com recorte específico para as audiovisualidades disponibilizadas na
plataforma de vídeos YouTube. Entre os objetivos específicos, estão:
14

a) construir um método que se valha de rastros digitais e de suas dinâmicas de


circulação e consumo, para pesquisar objetos/sujeitos contemporâneos atuantes
em zonas intersticiais do urbano e do pós-massivo;
b) descrever as diferentes dimensões das performances arquivadas em vídeo e suas
especificidades;
c) identificar as bricolagens estético-políticas da poética audiovisual das
performances em arquivo, problematizando suas configurações e características;
d) investigar o consumo de audiovisualidades no contexto sociocultural pós-massivo
e como tal consumo se dá, especificamente, no tocante ao arquivo de Hija de Perra.

Para tanto, a dissertação está estruturada em três capítulos-momentos da pesquisa-


viagem que funcionam como buracos de Alice, pelos quais quem voluntariamente decidir se
lançar encontrará algumas passagens com inspirações filosóficas que podem, porventura,
beirar o surrealismo. Esteja avisada(o), leitora(o).
No primeiro momento-capítulo, haverá uma fundamentação teórico-metodológica
que abarcará a construção desta pesquisa como uma pesquisa-viagem, a partir do uso da
metáfora de uma viagem guiada pela monstra-performer Hija de Perra. Isso ocorrerá através
dos rastros da passagem da artista pelo mundo, o que permitirá elaborar uma breve
genealogia dos rastros – da pré-história, passando pela Modernidade e chegando aos rastros
digitais da contemporaneidade. Valendo-se deles para a investigação, compreende-se que tais
materialidades comunicacionais constituem um corpo em sentido expandido, dilatado, o que
exigirá um método capaz de experimentar e ser afetado por ele. A escolha será pela
cartografia. As implicações políticas de seu uso serão compartilhadas tal como as
especificidades desta cartografia em particular, orientada pelo olhar e pelo trauma, conforme
argumentar-se-á. A primeira fase cartográfica – o mapeamento herético do rizoma – será
compartilhada já no primeiro capítulo-momento, o que servirá de gancho para a discussão
sobre a construção do corpus da pesquisa, composto pelos rastros audiovisuais de Hija de
Perra.
Já no capítulo 2, a temática será a da performance e sua complexa profusão de
compreensões. Dada a maleabilidade do termo, o que gera confusões necessárias de serem
sanadas, haverá alguns apontamentos genealógicos da performance, passando por seus sinais
15

mais longínquos, ainda na pré-história, pelos desafios linguísticos e semânticos deste termo
importado, pela constituição da performance enquanto um campo de estudos em disputa
para, finalmente, expor as características que compõem a performance tal como entendida
nesta pesquisa-viagem. Avançar-se-á, então, para uma análise da performance em Hija de
Perra em duas dimensões: a performance que ela fez de sua própria existência quando
encarnada e suas especificidades de liminaridade, abjeção e exorcismo simbólico, e os rastros
audiovisuais como uma performance em si, cujas características incluem viralidade mortífera,
transgressão, afetos remixados, reações videoclipicizadas e a invocação de uma presença post
mortem.
Por fim, o capítulo 3 introduzirá uma discussão sobre as audiovisualidades de Hija de
Perra pela ótica do excesso e inseridas no contexto iconofágico da contemporaneidade, no
qual a profusão de imagens altera a relação do humano com o mundo e o impele a uma
passagem do consumo de imagens para a consumação pelas imagens. Uma reflexão filosófica
do excesso abrirá o capítulo, abarcando suas características de dispêndio de energia intrínseco
ao ser humano, o que acaba conduzindo-o a um encantamento pelas imagens que, no século
XX, se transformou em obsessão, fazendo o homem refém de uma adicção visual. Vencer a
sedução das imagens é particularmente difícil, porque, em sua dimensão libidinosa, elas
satisfazem a pulsão escópica, ou seja, o desejo de olhar. A sedução das audiovisualidades de
Hija de Perra será, então, escrutinada a fim de identificar qual é a poética audiovisual
construída e de que modo isso acaba por forjar uma trans-estética do excesso. O capítulo
finalizará com reflexões sobre o tipo de comunicação específica acionada pelas
audiovisualidades e como isso deixa brechas para investigações futuras no âmbito das
audiovisualidades de corpos inconformes como os de Hija de Perra.
O último capítulo trará uma costura final entre as reflexões suscitadas na longa
pesquisa-viagem pela geografia de Hija de Perra e quais os efeitos das provocações em quem
fez a viagem.
16

1 DESVIOS E TORÇÕES, PRIMEIROS PASSOS DE UMA PESQUISA-VIAGEM

“Insisto: se às vezes falo a linguagem de um homem de


ciência, isto é sempre uma aparência. O cientista fala de
fora, tal como um anatomista do cérebro. [...] Quanto a
mim, eu falo [...] de dentro, como um teólogo fala da
teologia.”
George Bataille (1987, p. 22)

1.1 Metáfora da viagem

Guacira Lopes Louro (2015) explica que a metáfora da viagem é frequentemente


evocada em produções literárias, cinematográficas e acadêmicas, devido a sua capacidade de
expor poeticamente o entrelaçamento entre as viagens exterior, realizada fisicamente pelo
viajante, e interior, de caráter emocional. Segundo a autora, trata-se de um recurso rico para
se pensar os sujeitos da pós-modernidade e os processos nos quais o que importa não é a
chegada, mas o movimento e as transformações que acontecem pelo trajeto. Por isso, a
viagem como metáfora surge potente para refletir sobre pesquisas que se reconhecem
enquanto “processo que, ao invés de cumulativo e linear, caracteriza-se por constantes
desvios e retornos sobre si mesmo, um processo que provoca desarranjos e desajustes”
(LOURO, 2015, p. 13). Esta dissertação é, nesse sentido, uma pesquisa-viagem2 que será
guiada por uma criatura monstruosa e encantadora, Hija de Perra.

1.2 Monstros

Como sua etimologia expõe, Jorge Leite Júnior (2007, s.p.) explica que monstrum é
aquele que revela “a ira de Deus, as infinitas e misteriosas possibilidades da natureza ou aquilo
que o homem pode vir a ser”. Jeffrey Jerome Cohen (2000, p. 27) afirma: “o monstro existe
apenas para ser lido [...]”. E ler o corpo monstruoso é, então, se debruçar sobre as intricadas
relações sociais, culturais e históricas da sociedade que o gera, pois ele traz gravado em si
medos, desejos, ansiedades e fantasias (COHEN, 2000).

2
Com exceção dos termos em idiomas estrangeiros e dos grifos nos originais dos autores, devidamente
sinalizados, utilizarei itálico toda vez que um termo incorrer em um neologismo ou intentar reforçar uma ideia,
uma passagem, uma palavra.
17

Leite Júnior (2007) conta que, na Antiguidade, essas figuras fora da norma – anormais
– fascinavam os humanos com suas monstruosidades, tanto que eram consideradas
“maravilhas” ou “prodígios”. Entretanto, elas sempre estiveram suscetíveis a diversos
enquadramentos a depender da instituição de poder influenciadora do discurso vigente:
foram associadas ao demônio pela Igreja na baixa Idade Média; consideradas erros da
natureza e dignas de piedade pelo discurso médico do século XIX; e tiveram sua
monstruosidade deslocada do corpo para a mente pelas ciências da psique, no início do século
XX (LEITE JÚNIOR, 2007).
Em pleno século XXI, monstros ainda (nos) habitam. Atualmente, contudo, as
diferenças que denunciam a monstruosidade podem ser culturais, políticas, raciais,
econômicas e/ou sexuais. Entre elas, está a monstruosidade de travestis, transexuais,
transgêneros, drag queens e todos os seres que desafiam saberes sobre o que(m) é
mulher/homem (COHEN, 2000; LEITE JÚNIOR, 2007). A diferença tem sido hiperbolizada até
se tornar uma aberração e o perigo da pluralidade exposto, pois, por sua ontologia liminar, o
monstro provoca o choque entre extremos, desestabiliza binarismos, quaisquer que sejam; é
um terceiro entre dois (COHEN, 2000). Hija de Perra é um desses monstros.

1.3 Hija de Perra

Hija de Perra (HDP, conforme será referenciada) (Fig. 1) não foi homem nem mulher,
mas uma criatura nova, mutante, escorregadia. Criada pelo artista chileno Victor Hugo Perez
Peñalosa (1980-2014)3, essa figura de sobrancelhas bestiais não se identificava com nada fixo.

3
À época de sua morte, em 2014, algumas notícias informaram que, após dois meses e meio internada, a artista
morrera de infecção pulmonar. Já em notícias de 2016, quando da divulgação de uma decisão da
Superintendência de Saúde do Chile a favor da mãe da artista, Rosa Peñaloza, que estava sendo cobrada em
58 milhões de pesos pela clínica privada onde HDP foi internada, acrescentou-se que ela era portadora de HIV
e sua morte fora em decorrência do vírus. Disponível em:
https://www.soychile.cl/Santiago/Espectaculos/2014/08/26/270542/Murio-HIja-de-Perra-conocida-
cantante-y-perfomista-del-underground-nacional.aspx;
https://www.cooperativa.cl/noticias/entretencion/personajes/murio-la-reconocida-performista-hija-de-
perra/2014-08-26/114537.html; http://www.theclinic.cl/2016/05/10/mama-de-la-transformista-hija-de-
perra-el-trato-en-las-oficinas-publicas-y-privadas-es-un-asco/; http://www.revistacloset.cl/2016/02/25/el-
sida-sin-metaforas-hija-de-perra/. Acessos em: 12 dez. 2019.
18

Ora se descrevia performer bizarra4, ora travesti5, ora monstro6. Só no espaço para biografia
de sua página oficial na rede social digital Facebook7 – onde, na seção para identificação de
gênero, declara ser “Plural (misto)” –, constam 17 títulos: performista bizarra; produtora e
diretora de espetáculos imundos; animadora do programa on-line Sonidos Ardientes; estilista;
licenciada em arte; mestre internacional em felação; atriz protagonista de vídeos,
documentários, curtas-metragens e do filme Empaná de Pino; cantora de electro mugre do
grupo Indecencia Transgenica; membra [sic] ativa do coletivo de cabaré Chiquitibum; modelo
trans; animadora de eventos; animadora oficial do festival feminino de bandas de rock Fem
Fest; musa inspiradora de pós-graduandos8, fotógrafos profissionais, artistas visuais e
jornalistas; instrutora de enfermidades venéreas; dominatrix; ícone da imundície under
chilena; e palestrante na Escola de Direito e na Faculdade de Dança da Universidade do Chile.

Figura 1 – Parte da série Santa Hija de Perra, de Zaida González

Fonte: Site Bio Bio Chile9

4
Na biografia de sua conta na rede social digital Twitter (@perra_inmunda), autodescreve-se “performista
bizarra, espetáculos imundos, protagonista de curtas-metragens, videoclipes, documentários e do filme
Empaná de Pino, cantora de ElectroMugre”. Tradução minha. Disponível em:
https://twitter.com/perra_inmunda. Acesso em 12 jun. 2019.
5
Em seu curta-metragem documental, se diz performista bizarra e travesti (PERRA, 2012).
6
Em uma entrevista, Perra (2013) se apresenta como “um monstro que divaga pelo binarismo de gênero”.
7
Disponível em: https://www.facebook.com/Hija-de-Perra-Oficial-262531673764090/. Acesso em 12 jun. 2019.
8
No original: “tesistas”.
9
Disponível em: https://www.biobiochile.cl/noticias/espectaculos-y-tv/celebridades/2017/01/10/zaida-conoce-
a-la-talentosa-y-polemica-hermana-del-musico-jorge-gonzalez.shtml. Acesso em: 12 jun. 2019.
19

Um monstro cercado por outros. Seu funeral, em 2014, descreveu Juan Pablo
Sutherland (2014, s.p., tradução minha) à época, foi um réquiem bizarro, composto por “uma
comunidade de mutantes: ativistas kuir, dissidentes sexuais, lésbicas feministas, bichas punks,
culturais e de esquerda, sadomasoquistas, trans bizarras e políticas, amigos e familiares
[...]”10.
Meu primeiro contato-contágio com HDP aconteceu, em 2015, quando, à procura de
uma drag queen11 latina não-brasileira como sujeito-objeto para uma disciplina na
Especialização de Jornalismo Cultural da PUC-SP, o amigo de um amigo – ambos artistas visuais
gays – sugeriu Hija de Perra (HDP). Desde então, tem-se tentado processar a afetação
provocada por esse encontro traumático. Esta pesquisa-viagem é uma dessas tentativas.

Fui chutada pelos meus pais e recolhida por minha avó. Ela jamais me chamou pelo
meu nome: era sempre Hija de Perra. Terminei me encantando pelo nome. Sim, as
pessoas me humilharam toda a vida. Isso é normal? Claro que sim. Quantas pessoas
são humilhadas a vida toda? (PERRA, 2012, s.p., tradução minha).

Adepta de uma “poética abjeta e monstruosa”12 (SUTHERLAND, 2014, s.p.), Hija foi
marginal dentro da marginalidade, pois, como Sutherland (2014, s.p., tradução minha)
registra, organizações LGBT notórias do Chile ignoraram o funeral daquela que fez parte de
uma geração que nos últimos 12 anos anteriores à sua morte criticou as “formas tradicionais
de entender a sexualidade e sua construção normativa no mundo já institucionalizado da
diversidade sexual na sociedade chilena”13. A performer torceu as normas e se equilibrou nas
bordas, apropriando-se em um processo antropofágico das dissidências (SANTOS, 2018) e,
para fazer uso de sua poética abjeta, expelindo no mundo excrementos conservados na
perenidade dos espaços digitais (redes sociais digitais, sites de notícias, plataformas de vídeos,
diretórios de textos acadêmicos etc.). Esta pesquisa se apropria, justamente, dos rastros de
tais excrementos para continuar a viagem.

10
No original, “Una comunidad de mutantes: activistas kuir, disidentes sexuales, lesbianas feministas, maricas
punks, culturales y de izquierda, sadomasocas, trans bizarras y políticas, amigos y familiares [...]”.
11
À época, interpretei Hija de Perra pela lente da drag queen, uma “metamorfose de gênero” (SANTOS, 2012)
que não deve ser confundida com outras como a da travesti, transexual ou crossdresser, pois tem como
principais características temporalidade, corporalidade e teatralidade (VENCATO, 2002). Conforme será
explorado, essa lente se tornou restrita demais para compreender a potência de Hija de Perra. A grafia sem
itálico, por sua vez, segue a proposta dos autores citados de apropriação linguística do termo.
12
No original: “poética abyecta y monstruosa”.
13
No original: “formas tradicionales de entender la sexualidad y su construcción normativa en el mundo ya
institucionalizado de la diversidad sexual en la sociedad chilena”.
20

1.4 Rastros de uma passagem monstruosa

Em meio ao excesso de fragmentos audio(e/ou)visuais de Hija de Perra nos espaços


digitais, estão provocações escatológicas-venéreas-profanas-intelectuais como a canção de
ritmo frenético Reggaeton Venero (HIJA DE PERRA [...], 2012b), na qual entoa: “Dê-me sua
gonorreia, pegue papiloma, quero ter herpes e o piolho da moda”; o longa-metragem Empaná
de Pino (2008) (EMPANÁ DE PINO [...], 2013), dirigido por Édwin Oyarce, no qual é uma viúva
que, junto a sua escrava sexual chamada Perdida, realiza sacrifícios humanos para ressuscitar
seu marido e comercializa empanadas recheadas com carne humana; uma performance no
Museu Salvador Allende, em Santiago, onde surgiu “grávida” e vestida de branco, quase
angelical se não fossem pelos chifres, e deu à luz uma cabeça de porco ensanguentada em
cima de um altar; e uma apresentação oral na 1ª Bienal de Arte e Sexo, também em Santiago,
na qual ataca a teoria queer a partir de uma perspectiva decolonial latino-americana14.
Mas o legado da artista vai muito além disso. Além das citadas autodefinições em sua
página no Facebook, ela mesma reconhece a profusão e diversidade de sua produção: “Tenho
minha performance bizarra, tenho o projeto musical Indecencia Transgenica, faço
apresentações, encontros de gênero nas universidades, sou instrutora de aulas sobre doenças
venéreas, sou modelo de desfiles de moda com meu corpo transgênico” (PERRA, 2013, s.p.,
tradução minha), entre tantas outras atuações identificadas, conforme serão compartilhadas
a frente. Trata-se, contudo, de um legado descentralizado e predominantemente digital. Seus
trabalhos não estão reunidos em um único espaço, nem físico nem digital. Não há um “acervo
Hija de Perra”. Os registros profissionais e amadores de seus trabalhos estão pulverizados
pelos espaços digitais e exigem uma investigação arqueológica de recolher os fragmentos, os
restos, os resíduos de sua passagem pelo mundo – os rastros. Uma característica própria dos
processos de interpretação daquilo que é monstruoso, que, como sinaliza Cohen (2000, p. 30),
tem que se contentar com fragmentos, “pegadas, ossos, talismãs, dentes, sombras, relances
obscurecidos – significantes de passagens monstruosas que estão no lugar do corpo
monstruoso em si”.

14
Uma versão transcrita e traduzida para o português do texto lido por Hija de Perra na ocasião foi publicada
pela revista Periódicus, da Universidade Federal da Bahia. Disponível em:
https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/12896/9216. Acesso em: 12 jun. 2019.
21

Os fósseis de Hija de Perra estão conservados nos espaços digitais por onde exige-se
circular como “caçadores de rastros” (ROCHA; FERRAZ, 2019), investigando pelos interstícios
e coletando fragmentos produzidos por ela – como seus curtas e longas-metragens,
videoclipes, entrevistas – e sobre ela – vídeos de homenagem, registros audiovisuais
amadores de suas aulas, apresentações em espaços públicos e em casas noturnas, presença
em festas de aniversário.
Coletar, ensina Carlo Ginzburg (1989), é uma habilidade humana que remonta a
milênios atrás. Nossos ancestrais reconstruíram suas presas “pelas pegadas na lama, ramos
quebrados, bolotas de esterco, tufos de pêlos [sic], plumas emaranhadas, odores estagnados”,
aprendeu-se a “farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais” de presas
invisíveis, que não mais estavam onde seus rastros as denunciavam (GINZBURG, 1989, p. 151).
Essa habilidade nos acompanha desde então e foi sendo lapidada ao longo do tempo, sendo
que, ao passo em que nos tornamos especialistas em coletar rastros, tornamo-nos, a partir do
século XIX, igualmente especialistas em deixar rastros.
Os rastros humanos, propositalmente deixados, também interessaram a Walter
Benjamin (2009, p. 261-262), que pensa em uma “teoria dos rastros” nas dimensões pública
e privada, a partir das casas burguesas e da administração das metrópoles no século XIX. Para
o autor alemão, o desenvolvimento da decoração, “interieur” como ele chama, fez parte de
um processo de construção de si da burguesia durante a modernidade. Ele mesmo um coletor
de rastros, recolhe de excertos de textos e fotografias da época informações sobre algo que
não mais existe tal como registrado. De acordo com Benjamin (2009), a burguesia tinha um
fascínio pela decoração dos seus lares, tecendo casulos com tapetes deslumbrantes, cortinas
pesadas, móveis revestidos com tecidos adamascados, estojos infinitos para objetos antes
inexistentes e, principalmente, apreço por materiais como seda, pelúcia e veludo,
extremamente suscetíveis a marcas e toques.
Essa obsessão pelos interiores, preenchidos por mobiliários de “formas estranhas”
inspirados nas “fortificações medievais” (BENJAMIN, 2009, p. 247) e tecidos-memória, é
interpretada por Benjamin (2009, p. 252) como uma defesa à “armadura de vidro e ferro” que
vestia o exterior das metrópoles. Até os espaços de fora eram transformados em espaços de
dentro, como revela um dos excertos coletados sobre um baile promovido pela embaixada
inglesa na França, em 1839: na ocasião, transformou-se o jardim em um salão, cobrindo o
gramado com “tapetes deslumbrantes”, escondendo o céu com toldos, substituindo bancos
22

de ferro por “canapés revestidos de tecido adamascado e seda” e transformando canteiros


em “enormes jardineiras” (BENJAMIN, 2009, p. 255).
Sigamos com o autor:

Viver dentro deles [o interior burguês] era como ter se enredado numa teia de
aranha espessa, urdida por nós mesmos, na qual os acontecimentos do mundo ficam
suspensos, esparsos, como corpos de insetos ressecados. Esta é a toca que não
queremos abandonar (BENJAMIN, 2009, p. 251).

Mas se essa toca, esse casulo construído pelos próprios burgueses, aprisiona, ela
também conserva. Os materiais já citados, como pelúcia, veludo e seda, servem do que chamo
tecido-memória, pois guardam em si os rastros daqueles que os manipularam. “Pelúcia”,
descreve Benjamin (2009, p. 257) em um aforismo, “a matéria na qual se imprimem mais
facilmente os rastros”, para em outro momento concluir que deixamos o registro dos “rastros
da alma” para circular pelos “rastros das coisas” (BENJAMIN, 2009, p. 247). Mas não eram
apenas os tecidos que conservavam rastros. O mobiliário – volátil à “varinha mágica” da moda,
que metamorfoseava “poltronas de braços em cadeiras curul, copos em taças”, conforme
observado em excerto de 1837 resgatado por Benjamin (2009, p. 252) – acabava por construir
um “mundo das coisas”, carregando “rastros estilísticos” a ponto de dotar as moradas de
“fisionomias”.
Habitar casas dessa maneira se tratava, então, para o autor, de um modo de
existência característico do século XIX, uma vez que nenhum outro século teria tido tamanha
fixação pela moradia. Construía-se um lar que trazia a “impressão de seu morador” nos
tecidos, nos objetos, nos estojos para guardar objetos, servindo ele mesmo, o lar, de “estojo
do homem” (BENJAMIN, 2009, p. 255).

O século XIX [...] entendia a moradia como o estojo do homem, e o encaixava tão
profundamente nela com todos os seus acessórios, que se poderia pensar no interior
de um estojo de compasso, onde o instrumento se encontra depositado com todas
as suas peças em profundas cavidades de veludo, geralmente de cor violeta. Não
existiria um só objeto para o qual o século XIX não tenha inventado um estojo. Para
relógios de bolso, chinelos, porta-ovos, termômetros, baralhos – e, na falta de
estojos: capas protetoras, passadeiras, cobertas e guarda-pós (BENJAMIN, 2009, p.
255).

Os estojos, as capas protetoras, as caixinhas – com os quais se recobriam os


pertences domésticos burgueses do século anterior – eram outros tantos
dispositivos para registrar e conservar rastros (BENJAMIN, 2009, p. 261).
23

A teoria dos rastros de Benjamin (2009, p. 262) é concebida a partir da dimensão


privada dos lares burgueses tanto quanto da dimensão pública da modernidade, uma vez que
a administração da metrópole no período se deu em um “crescimento exagerado da
organização”. Os censos da população, a numeração das casas, as folhas de ponto dos
trabalhadores, entre inúmeras outras estratégias de contabilização e mapeamentos mínimos,
serviam – e continuam servindo, diria – de rastros de nossas existências. Em uma passagem,
ele cita o romance A linha da sombra, na edição de 1926, de Joseph Conrad (1857-1924),
quando, na narrativa, o controle dos portos se dá por mestres agindo como “vices-Netuno”:
“Devíamos parecer fantasmas para ele! Meros números que serviam apenas para serem
anotados em livros e registros enormes, sem cérebro ou músculos ou problemas existenciais,
algo sem utilidade e decididamente inferior” (BENJAMIN, 2009, p. 261-262). O excerto
explicita a redução, pela administração pública, das pessoas a números desencarnados,
rastros de um número outrora humano.
Em outra passagem, desta vez atribuída ao escritor Honoré de Balzac (1799-1850),
reforça-se a teoria dos rastros tal como proposta por Benjamin (2009, p. 260):

Multiplicação dos rastros devido ao aparato administrativo moderno. Balzac chama


a atenção para esse fato: “Tentem, pois, permanecer desconhecidas, pobres
mulheres da França, viver o menor romance de amor no meio de uma civilização que
anota nas praças públicas a hora da partida e da chegada dos fiacres; que conta o
número de cartas e as sela duplamente – no momento exato em que são jogadas nas
caixas e quando são distribuídas –, que numera as casas...; que vai, em breve, ter
todo seu território mapeado em suas mínimas divisões... sobre vastas folhas de
cadastro – uma obra de gigante, comandada por um gigante.”.

Sinteticamente, então, pode-se dizer que, enquanto os espaços privados dos lares
burgueses, no século XIX, recebiam os rastros de seus moradores e os conservavam em
tecidos, objetos e estojos, a administração do espaço público transformava as existências e as
passagens dos corpos pelo mundo em números a serem contabilizados e documentados.
Todavia, se, conforme Benjamin (2009, p. 255) acrescenta, pelo menos na dimensão privada,
a “porosidade e transparência” do século XX abriu as moradas-casulo de outrora e
transformou os modos de viver, incentivando o “gosto pela vida em plena luz e ao ar livre”, o
interesse pelos rastros continuou pelo século passado, ainda que em outros âmbitos e de
outros modos.
24

Quem contribui para expandir a teoria dos rastros de Benjamin (2009) a partir desse
ponto é o historiador italiano, já citado, Carlo Ginzburg (1989). Conforme será visto, o autor
tece um diálogo astuto entre o historiador de arte italiano Giovanni Morelli (1816-1891), o
psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) e o escritor escocês Arthur Conan Doyle
(1859-1930), criador do detetive Sherlock Holmes. Contemporâneos, todos estes se
interessavam, a seu modo, por um “método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre
os dados marginais” (GINZBURG, 1989, p. 149).
Morelli propôs um método para autenticação de quadros que, em vez de procurar
características reiteradas de seus supostos autores, popularmente conhecidas e explícitas,
portanto, facilmente imitáveis, deveria “examinar os pormenores mais negligenciáveis, e
menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das
orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés” (GINZBURG, 1989, p. 144). O
interesse de Ginzburg (1989) pelo método morelliano é menos por sua controversa
participação na história da arte – ele foi aclamado, rechaçado e, posteriormente, resgatado –
, e sim por fazer parte do “paradigma indiciário”, espraiado pelas ciências humanas nas
décadas de 1870-80 e “baseado na ideia de que rastros por vezes infinitesimais permitem
apreender uma realidade mais profunda” (BRUNO, 2012, p. 2).
Seguindo com Fernanda Bruno (2012, p. 2), o interesse pelos “detalhes sem glória” era
compartilhado por Freud e Doyle:

Da mesma forma que Morelli busca detalhes relativamente marginais do quadro,


Holmes [personagem de Doyle] busca em cinzas de cigarro, pegadas na lama e outros
indícios pouco perceptíveis as pistas da autoria do crime. Freud, por sua vez, propõe
como um dos eixos de sua hermenêutica a ideia de que o inconsciente se revela
sobretudo nos resíduos, nos elementos marginais.

Nota-se, então, uma continuação, pela via da literatura, da psicanálise e, de modo


geral, das ciências humanas, do interesse pelos resíduos, pelas marcas, pelos rastros como
índices de uma passagem pelo mundo. Mas se Ginzburg (1989) ajuda a ampliar a teoria dos
rastros de Benjamin (2009) até o século XX, como pensá-la em pleno século XXI? Pois, lendo
Bruno (2012), pondera-se que, talvez, o veludo, a pelúcia, os resíduos oníricos e as pegadas
na lama nem se comparam ao material mais suscetível a impressões de todos: os espaços
digitais.
25

Bruno (2012, p. 3) dialoga com Ginzburg (1989) e se fundamenta na proposta do


italiano para pensar a “produção de um saber dos rastros”, agora digitais, como “via
privilegiada de conhecimento nas ciências humanas e sociais” contemporâneas. Para ela, no
contexto digital do século XXI, os rastros se tornam novamente uma fértil possibilidade de
investigação. Nesta pesquisa-viagem, as redes sociais digitais, as plataformas de vídeo, os sites
em geral e os diretórios de arquivos acadêmicos (artigos, teses, dissertações, monografias)
são compreendidos enquanto espaços digitais que compõem uma “paisagem” tal como
descrita por Bruno (2012, p. 3):

[Uma paisagem] das pegadas que deixamos nas redes de comunicação distribuídas,
especialmente na internet, onde toda ação deixa um rastro potencialmente
recuperável, constituindo um vasto, dinâmico e polifônico arquivo de nossas ações,
escolhas, interesses, hábitos, opiniões etc.

Toda ação humana deixa atrás de si diferentes tipos de rastros, difíceis de serem
descritos enquanto categorias universais, pois cada rastro é único e “situa-se num limiar entre
presença e ausência; visível e invisível; duração e transitoriedade; memória e esquecimento;
voluntário e involuntário; identidade e anonimato etc.” (BRUNO, 2012, p. 4). Todavia, mesmo
compartilhando características com outros tipos de rastros, Bruno (2012) caracteriza os
“rastros digitais” como vestígios de ações realizadas em espaços digitais (sites, redes sociais
digitais, plataformas de vídeos etc.), podendo ou não serem produzidos por humanos, uma
vez que há rastros deixados por processos automatizados de “agentes maquínicos e não
humanos”. Nesta pesquisa-viagem, contudo, interessam os rastros digitais produzidos pela
ação humana, os quais são caracterizados por Bruno (2012) em cinco postulados:
“Não se pode não deixar rastro. Comunicar é deixar rastro” (BRUNO, 2012, p. 5):
qualquer ação na internet deixa um vestígio, a menos que se tome medidas deliberadas para
que isso não ocorra. Tais vestígios não se restringem às informações e conteúdo produzidos e
compartilhados, voluntariamente, em posts nas redes sociais digitais. Como diz a autora, toda
ação deixa um rastro possível de ser capturado e/ou recuperado, tais como buscas, cliques
em links, consumo de vídeos, músicas, entre tantas outras ações que envolvem o simples
navegar pela internet. Nesse sentido, ela atualiza a máxima “não podemos não comunicar”
para “não podemos não deixar rastros” (BRUNO, 2012, p. 6).
26

“Arquivo por padrão” (BRUNO, 2012, p. 6): a comunicação, fora dos espaços digitais,
exige um movimento adicional caso se queira registrá-la, inscrevê-la em alguma material. Nos
espaços digitais, por sua vez, a inscrição é simultânea ao ato de se comunicar, logo, a internet
é uma “máquina avessa ao esquecimento, a um só tempo comunicacional e mnemônica”
(BRUNO, 2012, p. 6). Por isso, o arquivamento se torna um padrão, não arquivar é que passa
a exigir um ato deliberado de tomar as medidas necessárias para que isso não ocorra.
“Rastros digitais são persistentes e facilmente recuperáveis” (BRUNO, 2012, p. 6): a
durabilidade de rastros, em geral, é distinta. Uma pegada na areia e a gravação de uma voz
são rastros de registros diferentes e, portanto, durabilidade e possibilidade de captura
distintos. Nos espaços digitais, entretanto, os rastros são, de acordo com Bruno (2012, p. 6),
“relativamente mais persistentes e facilmente recuperáveis”, podendo, inclusive, serem
monitorados e capturados durante a ação de produção do rastro.
“A topologia e a visibilidade dos rastros digitais são multiformes” (BRUNO, 2012, p. 6):
por fim, um rastro digital possui uma topologia complexa, que envolve uma “cascata de
inscrições” (BRUNO, 2012, p. 7). Além das informações explícitas produzidas ao navegar na
internet, como o conteúdo do que é publicado em redes sociais digitais, por exemplo, há ainda
outros estratos nos quais agimos, sem necessariamente saber, produzindo rastros outros. A
autora serve-se como exemplo do uso de um aplicativo de jogo, com o qual o usuário deseja
apenas se divertir, mas, ao mesmo tempo, cria um rastro de hábitos de consumo que pode vir
a alimentar um banco de dados publicitários. Emite-se, nesse sentido, “pacotes de
informação” em diferentes estratos: quanto mais presente na rede, “mais rastros
involuntários são deixados” (BRUNO, 2012, p. 7).
Uma vez caracterizados os rastros digitais, reflitamos sobre seus usos múltiplos e
controversos. De que modo é possível usá-los para outros fins que não o da “polícia dos
rastros”? Esse é o modo como Bruno (2012, p. 15) se refere ao uso da internet enquanto
espaço de vigilância e captura de evidências que identificam a autoria de crimes e de dados
brutos a serem minerados por empresas que fazem fortunas extraindo de rastros pessoais um
conhecimento sobre os hábitos de consumo de quem os deixou. Entende-se, nesses casos, o
rastro como evidência de ato e característica do usuário – um uso, segundo a autora, policial,
securitário, comercial e ignorante das ambiguidades e polissemias envolvidas.
27

Caçar rastros como um modo político de pesquisar-viajar

O intento nesta pesquisa-viagem é caçar os rastros de Hija de Perra para outros


propósitos que não o da “polícia dos rastros”. Assim, posiciono-me enquanto um caçador de
rastros digitais da performer, a fim de me expor aos efeitos causados pelo contato-contágio
com sua presença desencarnada. Entendo os espaços digitais onde seus rastros se inscrevem
e por onde se circula para os garimpar não como uma teia de captura, com fins policiais, mas
uma trama de onde emergem efeitos que interessa observar, descrever, questionar e
compartilhar. Pensando junto com Bruno (2012), produzir conhecimento a partir de rastros,
por essa perspectiva, é político, porque implica continuar compondo a trama de Hija de Perra,
expandindo sua atuação, acrescentando fios à polissemia de seus rastros. Trata-se de uma
proposta de fomentar os modos de existência no mundo a partir da investigação sobre um
modo de existência específico. A trama da vida de Hija de Perra se torna, assim, uma tessitura
inacabada, que continua se fazendo no consumo e circulação de seus rastros. Uma tarefa a
qual interessa contribuir oferecendo a experiência de um pesquisador-viajante que se expõe
aos rastros digitais por ela inscritos nos espaços digitais. Parafraseando Bruno (2012) e
adequando a esta própria pesquisa-viagem, caçar os rastros digitais de Hija de Perra é menos
uma coisa descrita do que o próprio processo de descrição, é simultaneamente cognitivo e
político. Cognitivo porque envolve “ver, descrever, organizar, comparar, rastrear algo que
antes encontrava-se difuso” (BRUNO, 2012, p. 17), e político, pois “amplia o potencial de ação,
decisão, negociação para além do aqui e agora” (BRUNO, 2012, p. 17). Ao enfrentamento à
“polícia dos rastros”, façamos uso de uma “política dos rastros” (BRUNO, 2012), que propaga
e continua aquilo que observa e descreve, age como mediadora de Hija de Perra, alterando
seus rastros e os alastrando, enriquecendo a trama com novos fios.
Enquanto a morada-casulo da burguesia do século XIX servia de teia para aprisionar os
rastros, conservando-os como em formol para atestar a historicidade dos objetos e a
identidade dos que deles se serviam, similar à atuação da “polícia dos rastros” atual, os
espaços digitais possibilitam, sob uma perspectiva política, esgarçar ou rasurar a teoria de
Benjamin (2009), substituindo a teia de veludo que captura por uma trama viva que emerge
da caça aos rastros digitais e não objetiva conter, mas espraiar. Continuemos, então, na
pesquisa-viagem em uma empreitada de cartografar os rastros digitais de Hija de Perra, o que
28

implica torná-los “sensorialmente, cognitivamente e politicamente mais próximos” (BRUNO,


2012, p. 17).
Conforme avanço, o exercício dessa arqueologia digital revela que, estilhaçados e
espraiados pelos espaços digitais, os rastros digitais de HDP formam um corpo expandido,
dilatado, fragmentado. Um dos muitos corpos da performer, se pensarmos que cada rastro
digital traz em si o corpo inscrito, sendo simultaneamente também um corpo em si mesmo e
que, junto a outros rastros-corpos, forma novos corpos, em um processo de contínua
expansão. Nesse ponto da pesquisa-viagem, pergunto-me: de qual corpo estou falando
quando falo do corpo Hija de Perra?

1.5 Corpo fragmentado, corpo dilatado

“Expandido” e “dilatado” são dois termos recorrentemente utilizados por Massimo


Canevacci (2008, p. 18) para se referir à “fisionomia do cimento” das cidades. Interessado
pelos tensionamentos, seduções e estesias entre humanos e metrópoles, o autor expande a
noção de corpo para além da fisicalidade. Partindo da antropologia, onde um corpo nunca é
natural por si mesmo, sendo reiteradamente significado por símbolos e sinais, Canevacci
(2008) ultrapassa as fronteiras da pele para pensar os corpos na e da metrópole. Os próprios
corpos humanos se alargam através de práticas da publicidade, cinema, arte, performance,
design, moda, entre tantas outras vias de circulação nos grandes e pequenos centros urbanos.
As luzes sedutoras das cidades, com a frieza de suas peles de vidro e a força de suas
veias de aço, atravessam nossas percepções e afetos, presentificando-se dentro de nós,
acoplando-se aos nossos corpos, incorporando suas materialidades à nossa, em constantes
pontos de contato da cidade no humano e do humano na cidade. A metrópole de Canevacci
(2008) se faz viva e pulsante, sedutora; possui olhos frios e atentos que nos observam; se
move e (se) faz sentir – um corpo que atrai tanto quanto é atraído. Em suas palavras, “a pele
[do corpo] não é o seu limite: e quando a pele transpõe seus limites, ela se liga aos tecidos
‘orgânicos’ da metrópole. Nesse sentido, o corpo não é apenas corporal. O corpo [se faz]
expandido em edifícios, coisas-objetos-mercadorias, imagens [...]” (CANEVACCI, 2008, p. 18,
grifo do autor).
Uma proposta de corpo dilatada como essa, que reconhece a dimensão carnal humana
tanto quanto a virtualidade fetichista não humana, instiga à maneira do pensamento de Suely
29

Rolnik (1993; 2006) sobre a potencialidade do que chama de corpos físicos e vibráteis. Estes
são duas dimensões indissociáveis da experiência de habitar o mundo. Trata-se, contudo, de
uma distinção (corpo físico/corpo vibrátil) encontrada pela autora para demarcar a
“potencialidade da percepção” do corpo físico, passível de aferimento pelos sentidos de visão,
audição, tato, olfato e paladar, e a “potencialidade sensível” do corpo vibrátil, capaz de captar
as vibrações e intensidades (afetos) originadas nos encontros entre os corpos (ROLNIK, 2006).
Admitir a dimensão vibrátil dos corpos implica conceber o mundo “na forma de
vibração e contágio” e, sobretudo, reconhecer uma “vulnerabilidade ao mundo” (SANDER,
2009, p. 403). Uma vulnerabilidade ao contágio e exposição à afetação semelhante à “atração
recíproca” a qual Canevacci (2008, p. 18) se refere entre corpo e metrópole. Ambos pontos de
vista, tanto de Rolnik (2006) quanto de Canevacci (2008), expõem um caminhar em direção a
concepções de corpos expandidos, dilatados, que se cruzam e se encontram, interagindo
entre si ao provocar experiências afetuais e sensoriais. Esses encontros se dão
independentemente das constituições dos corpos, uma vez que, além do corpo-metrópole do
autor, Rolnik (2006, p. 39) nos lembra que, pela vida, encontramos “corpos humanos, animais,
sonoros... corpo de uma idéia [sic], de uma língua, de uma coletividade...”.
Retomando, então, a pergunta que me trouxe até aqui – de qual corpo estou falando,
quando falo do corpo Hija de Perra? –, compreendo que os rastros digitais de Hija de Perra
nos espaços digitais constituem um corpo – dilatado, expandido, vibrátil, descentralizado,
estilhaçado. Seus registros são rastros de sua passagem pelo mundo e, enquanto corpo
vibrátil, possuem uma potência que contamina perceptivamente, atingindo os sentidos de
visão e audição, mas também afetualmente, despertando intensidades diversas com as quais
temos que lidar para comportar suas provocações.
Uma vez que ambas as dimensões – da percepção e dos afetos – desse corpo
constituído por rastros digitais interessam à pesquisa-viagem proposta, faz-se necessário um
método que reconheça tais dimensões constitutivas da experiência de estar no mundo e a
implicação dos corpos na pesquisa científica tal como desenhada. É assim que chego à
cartografia enquanto método possível de auxiliar no caminho.
30

1.6 Método cartográfico e conhecimento encarnado

Um pesquisar orientado por perguntas e desprovido da convicção de alcançar certezas,


mais preocupado com as interrogações do caminho do que com as possíveis afirmações da
chegada, tal como na metáfora da viagem (LOURO, 2015) já citada, exige um modo de pensar
vertiginoso, que se movimente junto com o próprio objeto investigado e se lance sobre o
imprevisto, o incerto e o obscuro do tempo contemporâneo (FERRARA, 2013). O método
cartográfico surge com uma possibilidade para tal.
Em um primeiro momento, a cartografia pode parecer abstrata e de difícil aplicação
prática. Isso acontece porque ela não possui procedimentos metodológicos a serem
replicados a priori e os textos sobre o tema sugerem apenas “pistas” (PASSOS; KASTRUP;
ESCÓSSIA, 2015) para orientar o cartógrafo. Roberta Carvalho Romagnoli (2009), interessada
na implicação do pesquisador naquilo que pesquisa, entende, inclusive, que não é possível
chamar a cartografia de metodologia, e sim de método, pois a primeira “trata do formalismo
e das prescrições para se alcançar a cientificidade, explicitando os procedimentos que já
estariam consolidados dentro da ciência” (ROMAGNOLI, 2009, p. 169). O método, por sua vez,
na perspectiva da autora, é um novo caminho para um fim, não um modelo pré-estabelecido
de algo, uma fórmula a ser seguida como se o conhecimento por si só já tivesse sido alcançado.
Em outras palavras, mas com o mesmo sentido, Eduardo Passos, Virgínia Kastrup e Liliana da
Escóssia (2015) apresentam a cartografia como operadora de uma “reversão metodológica”,
na qual as balizas são a posteriori, a partir do desenvolvimento do próprio caminhar da
pesquisa-viagem. Logo, não é metá (reflexão, raciocínio, verdade) + hódos (caminho, direção),
e sim “hódos-metá” (PASSOS; BARROS, 2015). Isso não significa caminhar sem direção ou,
ainda, sem “cientificidade”, pois é um caminhar consciente, visando o movimento, mas sem
saber, previamente, para onde. No caminho, o cartógrafo recolhe as pistas de seu objeto –
em meu caso, os rastros – e é este que vai indicando a rota (PASSOS; BARROS, 2015), sendo
uma parte ativa do processo e corresponsável pela construção do método.
No campo da Comunicação, especificamente, o uso da cartografia não forma um grupo
de estudos homogêneo, mas tem sido cada vez mais aplicada, o que reforça, para Cíntia
Sanmartin Fernandes e Micael Herschmann (2015), a pluralidade e interdisciplinaridade da
Comunicação, sendo esta mesma constituída, ainda segundo eles, por uma disputa constante
a respeito de qual é o objeto sobre o qual se debruça. Embora reconheçam a inflamada
31

discussão sobre o tema, coadunam com uma perspectiva na qual a proficuidade do campo se
deve justamente pelos seus aspectos híbridos e transdisciplinares, responsáveis por torná-lo
tão rico e complexo:

analisar a comunicação enquanto um campo teórico significa debruçar-se sobre um


campo híbrido e transdisciplinar [...]. [Na atualidade], refletir sobre quaisquer
aspectos teóricos exige que se leve em conta outras teorias que não
necessariamente estão naturalizadas como endógenas em um campo disciplinar
específico (FERNANDES; HERSCHMANN, 2015, p. 296).

A cartografia desponta, então, justamente como um método potente em um campo


de estudos tão borroso quanto a Comunicação. Fundamentados basilarmente no espanhol
Jesús Martín-Barbero e no francês Bruno Latour, Fernandes e Herschmann (2015) pensam a
cartografia como mapas noturnos provocativos, que reconhecem a implicação política do
cartógrafo e elabora um pensamento arquipélago, no qual não há um único bloco continental,
mas múltiplas ilhas, diversas e interconectadas. Cartografar é se embrenhar por esses
recônditos e se esgueirar pelas brechas, pelo prazer, pelas frestas rejeitadas inclusive por
membros da Academia. Nas palavras de Martín-Barbero (2004, p. 18), cartografar trata-se de

indagar a dominação, a produção e o trabalho, mas a partir do outro lado: o das


brechas, o do prazer. Um mapa não para a fuga, mas para o reconhecimento da
situação desde as mediações e os sujeitos, para mudar o lugar a partir do qual se
formulam as perguntas, para assumir as margens não como tema, mas como enzima.
Porque os tempos não estão para síntese, e são muitas as zonas da realidade
cotidiana que estão ainda por explorar, zonas em cuja exploração não podemos
avançar senão apalpando.

Os “novos cartógrafos” assumem a instabilidade desse modo de trabalhar interessado


pelo menor, residual, sem credibilidade, assim como reconhecem as subjetividades envolvidas
e se despem de explicações totalizadoras. Propõem-se a caminhar lentamente pela geografia
que criam conforme caminham, e abrem mão de recursos conceituais e metodológicos que
possam acelerar o percurso (FERNANDES; HERSCHMANN, 2015, p. 297). Desejam se
embrenhar pelas brechas e pelos desvios, interagindo com o que atravessar seu trajeto.
À vista disso, observa-se o cartografar como um modo de olhar o pesquisar e o
encontro do pesquisador com seu campo/objeto: é “outra possibilidade de conhecer, não
como sinônimo de disciplina intelectual, de defesa da racionalidade ou de rigor sistemático
para se dizer o que é ou não ciência, como propaga o paradigma moderno” (ROMAGNOLI,
32

2009, p. 169). É um produzir conhecimento que não se norteia pelos valores cartesianos de
verdade, universalidade e objetividade/neutralidade (GROSFOGUEL, 2016).
Nesse sentido, trata-se de um método sinérgico aos conhecimentos encarnado e
incorporado dos quais falam, respectivamente, bell hooks (2013) e Santiago Castro-Gómez e
Ramon Grosfoguel (2007). A indissociabilidade entre corpo e mente é afirmada pelos autores
como responsável pelo conhecimento carregar em si marcas interseccionais de raça, gênero,
classe, sexualidade, nacionais, espirituais (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007;
GROSFOGUEL, 2016), entre outras, do pesquisador que o produz: “todo conhecimento
possível se encontra in-corporado, encarnado em sujeitos atravessados por contradições
sociais, vinculados a lutas concretas, enraizados em pontos específicos de observação (ponto
1, ponto 2, ponto n...)” (CASTRÓ-GOMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 21, tradução e grifos
meus15). Tentar produzir um conhecimento des-incorporado, a partir de um ponto zero
epistêmico16, além de impossível, é parte de uma estratégia epistemicida, racista e sexista17
utilizada pelo projeto-colonial moderno18 desde o século XVI para manter privilégios

15
No original, “Todo conocimiento posible se encuentra in-corporado, encarnado en sujetos atravesados por
contradicciones sociales, vinculados a luchas concretas, enraizados en puntos específicos de observación
(punto 1, punto 2, punto n…).”.
16
O ponto zero de produção do conhecimento é trabalhado por Santiago Castró-Gomez como o lugar em que
supostamente o “[...] sujeito de enunciação fica borrado, escondido, camuflado [...]. O sujeito epistêmico não
tem sexualidade, gênero, etnicidade, raça, classe, espiritualidade, língua, nem localização epistêmica em
nenhuma relação de poder, e produz a verdade a partir de um monólogo interior consigo mesmo, sem relação
com nada fora de si. É dizer, [o ponto zero] se trata de uma filosofia surda, sem rosto e sem gravidade. O
sujeito sem rosto flutua pelos céus sem ser determinado por nada nem por ninguém” (GROSFOGUEL, 2007, p.
64, tradução minha). No original, “[...] el sujeto de enunciación queda borrado, escondido, camuflado [...].
sujeto epistémico no tiene sexualidad, género, etnicidad, raza, clase, espiritualidad,
lengua, ni localización epistémica en ninguna relación de poder, y produce la verdad desde un monólogo
interior consigo mismo, sin relación con nadie fuera de sí. Es decir, se trata de una filosofía sorda, sin rostro y
sin fuerza de gravedad. El sujeto sin rostro flota por los cielos sin ser determinado por nada ni por nadie.”.
17
Grosfoguel (2016) denuncia quatro epistemicídios nos quais conhecimentos, epistemologias e cosmovisões
foram aniquilados junto aos genocídios dos corpos durante o projeto de expansão colonial europeu do “longo
século XVI” (período de 200 anos, entre 1450 e 1650). São eles: o do povo muçulmano e judeu, na conquista
de Al-Andaluz, que foram desapropriados de suas crenças e conhecimentos, sendo obrigados a se converter
ao cristianismo e, como forma de garantir que haviam aderido ao pensamento cristão de verdade e não
estavam apenas fingindo, tiveram seus livros queimados. O dos índios das Américas e, posteriormente, dos
aborígenes, cujos códices foram queimados. O dos africanos escravizados e impedidos de praticarem suas
religiões nas Américas. E o das mulheres na Europa que praticavam e transmitiam conhecimento indo-europeu
sobre astrologia, botânica etc. e foram consideradas bruxas para justificar a queima de seus corpos, que
tinham a característica de servirem de corpos-livros, uma vez que seus conhecimentos não eram registrados,
mas transmitidos oralmente (GROSFOGUEL, 2016).
18
O projeto colonial moderno, ou matriz colonial do poder, é a lógica, assim chamada por Anibal Quijano, da
dominação política e econômica imbricada no sistema colonial, mas que não findou com a independência das
colônias (PEREIRA, 2015). A lógica de tal matriz, ensina Pereira (2015), usa diferenças culturais como valores
para hierarquizar populações e regiões do mundo, criando zonas inferiores e sujeitos menores, abjetos,
subalternos. Marcadores geopolíticos, de raça e de gênero, outrora indicadores de diferenças culturais,
passam a ser usados para classificações epistêmicas e ontológicas (SANTOS, 2018).
33

epistêmicos a alguns poucos homens brancos, ocidentais, heterossexuais de cinco países


Norte-cêntricos19 (Alemanha, França, Itália, Inglaterra e Estados Unidos). Estes,
supostamente, teriam atingido o ponto zero ao serem capazes de apagar as marcas da própria
carne, o que, no jogo da legitimação epistemológica, justificaria continuarem sendo
protagonistas nas ciências sociais e humanas mesmo em meio à vastidão epistemológica do
século XXI (GROSFOGUEL, 2016).
Outra característica da cartografia é que, para praticá-la, não se pode imobilizar objeto,
pesquisa ou pesquisador, uma vez que ela se propõe a investigar a vida e, como esta, acontece
em movimento, acompanhando a vertigem do paradigma do perguntar e os processos,
conexões e percursos investigados (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015). A proposta, então,
não é mapear o que é, mas o que está em vias de ser. Tanto que Suely Rolnik (2006) difere
cartografia de mapa, pois, para ela, mapas representam espaços estáticos e intentam
desenhar o todo, enquanto a cartografia se debruça sobre movimentos de transformação das
paisagens, como a geografia de Hija de Perra que objetivo, a partir de seus rastros, cartografar.
No processo de compreensão desse modo de pesquisar, a analogia de Ana María
Fernández (2013) sobre a caixa de ferramentas é da mais pertinente. Para ela, cartografia é
uma caixa na qual as ferramentas que você colocará dentro dependerá da pesquisa que estiver
fazendo. Logo, cada cartografia se faz única e exige uma fundamentação própria
(ROMAGNOLI, 2009). A visão de Fernandes e Herschmann (2015) se soma a essa
interpretação, quando os autores afirmam o cartografar como uma investigação polifônica,
na qual se forja um conjunto de procedimentos a fim de investir sobre a riqueza social de
diferentes contextos.
Entretanto, independentemente das singularidades (as quais serão compartilhadas a
frente), identifico duas marcas entrelaçadas ao método e com as quais pretendo caminhar por
toda a pesquisa-viagem: criação e sensibilidade.
Investigar de um modo vertiginoso possibilita “a construção de categorias e novos
conceitos à medida que o trabalho em campo exige, ao mesmo tempo em que permite o
questionamento de processos heterogêneos com suas especificidades” (FERNÁNDEZ, 2013, p.

19
Grosfoguel (2016, p. 26, tradução minha) fala em autoridade do conhecimento Norte-cêntrica “que se impõe
por meio de mecanismos institucionais universitários, militares, internacionais (ONU, FMI, Bancro Mundial),
estatais etc.” através da “superioridade do conhecimento imposta pela dominação capitalista do mundo”.
34

14, tradução minha20). Noto, então, a potencialidade de criar durante uma pesquisa, seja ela
qual for, sendo acolhida e incentivada pelo método cartográfico. Sugere-se criar caminhos,
rotas, desvios, paradas, pontes, instrumentos, ferramentas. Criam-se mundos e desfazem-se
outros. Em uma pesquisa-viagem, modos de pesquisar são inventados, conceitos tensionados.
Faz-se o que for preciso para entender o fenômeno investigado. E entender “não tem nada a
ver com explicar e muito menos com revelar”, salienta Rolnik (2006, p. 66), pois, para o
cartógrafo,

não há nada em cima – céus da transcendência –, nem embaixo – brumas da


essência. O que há em cima, embaixo e por todos os lados são intensidades buscando
expressão. E o que ele quer é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo,
inventar pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem.

As pontes de linguagem são os usos da língua feitos pelo cartógrafo – cujas marcas no
conhecimento produzido já foram notadas por Grosfoguel (2006) – a fim de dar passagem
àquilo que, devido a sua singularidade, ainda não tem nome. E, uma vez que todos os
encontros entre corpos, independentemente de que matéria e origem sejam, são sempre
inéditos e responsáveis por produzir marcas que pedem passagem (ROLNIK, 1993; 2006), há
muitas pontes a se criar pela geografia de Hija de Perra. Esta pesquisa-viagem se propõe a
construir algumas delas, pois, junto a autora, entendo a linguagem como “tapete voador” e,
em si mesma, “criação de mundos” (ROLNIK, 2006, p. 66), capaz de construir pontes sensíveis
entre ciência e arte ao operar por analogias21.
Nesse processo de criação e destruição de mundos através da linguagem, também
chamado teorização, as referências utilizadas são múltiplas e de origens diversas. Ao
cartógrafo, não cabe discriminar. Enquanto Romagnoli (2009) aponta para o espaço fértil do
“entre” teorias de campos diversos, possibilitado pela transdisciplinaridade, Rolnik (2006, p.
65) avança ao afirmar: “pouco importam as referências teóricas do cartógrafo”. A autora não
está fazendo apologia à leviandade teórica, como essa citação pode soar se tirada de seu

20
No original: “la construcción de categorías y nuevos conceptos a medida que el trabajo en terreno lo requiere,
al mismo tiempo que habilita la indagación de procesos heterogéneos en su especificidad.”.
21
“Enquanto conhecimento que se molda no seu incessante fazer empírico, a analogia é combinação de imagens,
de variar para fazer coexistir o singular e o plural, a parte e o todo como um fluxo contínuo que substitui a
contiguidade da argumentação linear e causal. [...] [E]ntra em cena o pensamento contínuo que, em fluxos
relacionais, leva à comparação e às analogias entre elementos distantes enquanto origem ou destino. A
analogia nos aproxima da imagem e da possibilidade de pensar através da imagem, a partir dela e com ela”
(FERRARA, 2013, p. 63, grifos meus).
35

contexto original. Passos, Kastrup e Escóssia (2015) evidenciam isso ao apontar a cartografia
como um modo de pesquisar que não abdica, em momento algum, do rigor científico, mas
que o ressignifica para comportar os movimentos da vida. “A precisão não é tomada como
exatidão, mas como compromisso e interesse, como implicação na realidade [...] um método
não para ser aplicado, mas para ser experimentado e assumido como atitude” (PASSOS;
KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015, p. 10-11, grifos meus), ao que Rolnik (2006) demarca como único
“princípio antiprincípio” do cartógrafo: o compromisso com a vida.
Ele, o cartógrafo, cria mundos – teoriza – a partir de filmes, livros, músicas, conversas,
sonhos, delírios, medos, amores, brigas, dores, alegrias. Porque cartografar não envolve uma
preocupação com “falso-ou-verdadeiro”, “teórico-ou-empírico”. O interesse do cartógrafo é
com o que é “vitalizante-ou-destrutivo”, “ativo-ou-reativo”: sua bússola é a vida (ROLNIK,
2006). E para permitir que ela vibre em sua potência máxima, ele fará o que for, pois não se
guia por uma moral, nem mesmo científica, desde que não fira a vida. Aceitar a contribuição
apenas daquilo que fora legitimado pelo pensamento acadêmico racista, sexista e
epistemicida denunciado por Grosfoguel (2016) seria, por essa perspectiva, antiético, pois, ao
selecionar apenas um determinado tipo de material na construção do mundo, as pontes de
linguagem criadas se tornam limitadas e podem obstruir a passagem de afetos, obstruindo a
própria vida em si.

O que importa é que, para ele [o cartógrafo], teoria é sempre cartografia – e, sendo
assim, ela se faz juntamente com as paisagens cuja formação ele acompanha [...].
Para isso, o cartógrafo absorve matérias de qualquer procedência. Não tem o menor
racismo de freqüência [sic], linguagem ou estilo. Tudo o que der língua para os
movimentos do desejo, tudo o que servir para cunhar matéria de expressão e criar
sentido, para ele é bem-vindo. Todas as entradas são boas, desde que as saídas
sejam múltiplas. Por isso o cartógrafo serve-se de fontes as mais variadas, incluindo
fontes não só escritas e nem só teóricas. Seus operadores conceituais podem surgir
tanto de um filme quando de uma conversa ou de um tratado de filosofia. O
cartógrafo é um verdadeiro antropófago: vive de expropriar, se apropriar, devorar
e desovar, transvalorado. Está sempre buscando elementos/alimentos para compor
suas cartografias. Este é o critério de suas escolhas: descobrir que matérias de
expressão, misturadas a quais outras, que composições de linguagem favorecem a
passagem das intensidades que percorrem seu corpo no encontro com os corpos
que pretende entender (ROLNIK, 2006, p. 65-66, grifos no original).

Entre os “estrangeiros devorados” por Rolnik (2006), como ela se refere a suas
referências, está o francês Gilles Deleuze, com o qual pode-se traçar um paralelo entre a
proposta de um cartógrafo-antropófago, que devora “matérias de qualquer procedência”, e a
36

“espécie de enrabada” da qual ele fala ao descrever o modo como concebia a escrita de seus
livros sobre história da filosofia e alguns de seus autores:

Eu me imaginava chegando pelas costas de um autor e lhe fazendo um filho, que


seria seu, e no entanto seria monstruoso. Que fosse seu era muito importante,
porque o autor precisava efetivamente ter dito tudo aquilo que eu lhe fazia dizer.
Mas que o filho fosse monstruoso também representava uma necessidade, porque
era preciso passar por toda espécie de descentramentos, deslizes, quebras, emissões
secretas que me deram muito prazer (DELEUZE, 1992, p. 14).

Em uma tensão entre a devoração de Rolnik (2006) e o enrabamento teórico de


Deleuze (1992), propõe-se construir uma ponte de linguagem entre a boca da antropofagia e
o cu do enrabamento em direção ao que nomearei orgia teórica: um processo antropofágico
de “papar matérias” (ROLNIK, 2006, p. 232) teóricas e não-teóricas, textuais, audiovisuais,
sonoras, cotidianas, narrativas registradas em materialidades diversas, e o que mais
atravessar esta pesquisa-viagem.
Explorada a marca da criação da cartografia, parte-se para a marca da sensibilidade,
relacionada à dimensão afetual da vida. Afeto é palavra cara ao cartógrafo e ao olhar eleito
para guiar a pesquisa-viagem, o que, junto à polissemia do termo, exige delimitação.
Doravante, faz-se uso de afeto na perspectiva do filósofo Baruch Spinoza (1632-1677), a partir
das leituras metabolizadas de Suely Rolnik (2006) e Rose de Melo Rocha (2010). Tal discussão
será explorada a frente, quando apontarei os afetos mobilizados pelas performances de Hija
de Hija de Perra22, mas, por ora, entende-se que afetos não nascem dentro de corpos, da
individualidade dos sujeitos:

a própria palavra “afetar” designa o efeito da ação de um corpo sobre outro, em seu
encontro. Os afetos, portanto, não só [surgem] entre os corpos – vibráteis, é claro –
como, exatamente por isso, [são] fluxos que [arrastam] cada um desses corpos para
outros lugares, inéditos: um devir (ROLNIK, 2006, p. 57).

Afetos são, nessa perspectiva, efeitos dos encontros entre corpos diversos, sejam eles
quais forem, humanos, animais, sonoros, corpos de ideias etc. (ROLNIK, 2006). Nesse sentido,
então, o corpo dilatado e vibrátil de Hija de Perra, composto por rastros digitais, é
compreendido como capaz de afetar e ser afetado. De fato, afetar um corpo morto é
impossível, pois trata-se de um processo no qual a vida é elemento primordial. Contudo, ao

22
Cf. seção Afetos abjetos em narrativas impuras, no capítulo 2.
37

reconhecer a existência midiática, artística e intelectual de Hija de Perra enquanto “corpo


vibrátil” (ROLNIK, 2006), ou seja, que é capaz de afetar, ela torna-se, então, passível de ser,
igualmente, afetada. As apresentações em eventos, publicações de artigos, discussões sobre
ela, propagação de sua existência desencarnada, além das possibilidades de organizações de
mostras e exposições23, são maneiras de afetar esse corpo dilatado e vibrátil.
Feito esse panorama sobre o método escolhido para auxiliar na pesquisa-viagem pelas
dimensões perceptivas e afetuais de Hija de Perra, é preciso compartilhar as especificidades
desta cartografia em particular, ou, retomando Fernández (2013), os instrumentos eleitos
para compor minha caixa de ferramentas. Sendo assim, esta cartografia será guiada pelo
olhar, conforme será explorado a seguir24.

1.7 Por um olhar a(fe)tivado

Ver é uma experiência distinta de olhar. Para além de sutilezas semânticas, há uma
gramática própria a cada uma dessas experiências. Se ver é uma passividade inerente aos
dotados da percepção da visão, olhar é atividade apenas dos que questionam o que veem.
Não por acaso, Sérgio Cardoso (1988) pontua o “olho dócil” do vidente, que desliza sobre as
coisas, sem apreendê-las, interessado apenas na membrana superficial daquilo que vê. Já
“com o olhar, é diferente”, salienta o autor. Ele busca a interioridade do que é visto, age de
modo a ver e ver de novo, “direcionado e atento”, “tenso e alerta” para as dobras escondidas
do que é visto:

Ele remete, de imediato, à atividade e às virtudes do sujeito, e atesta a cada passo


nesta ação a espessura da sua interioridade. Ele perscruta e investiga, indaga a partir
e para além do visto, e parece originar-se sempre da necessidade de “ver de novo”
(ou ver o novo), como intento de “olhar bem” (CARDOSO, 1988, p. 348).

23
A mais recente é a Living in Foul, “a primeira apresentação institucional do trabalho de Hija de Perra na América
do Norte”, conforme descrito pela curadora Julia Eilers Smith, no site oficial do Hessel Museum of Art, um
museu que faz parte da Bard College, na cidade de Annandale-on-Hudson, em Nova York, onde aconteceu a
mostra de 7 de abril a 26 maio de 2019. Disponível em: https://ccs.bard.edu/museum/exhibitions/522-living-
in-foul. Acesso em: 6 maio 2019.
24
O olhar tem posição de destaque nesta pesquisa-viagem, não apenas em sua função de bússola cartográfica,
mas também dado seu protagonismo na sociedade contemporânea obcecada por imagens e seu desempenho
na configuração pulsional da subjetividade, ambos pontos que serão discutidos no terceiro capítulo, Devorar
e ser devorado, do consumo à consumação.
38

Diferentemente do que se pode assumir em uma explicação cotidiana, a diferença


entre ver e olhar não é de gradação, como se fossem atividades de um mesmo registro se
distinguindo pela intensidade; como se o ver se intensificasse até atingir o ponto de saturação
do olhar. De modo algum. A distância entre tais registros é um salto de configuração, pois ver
e olhar exigem mudanças não apenas no intento daquele que observa, mas na própria
configuração do mundo observado (CARDOSO, 1988).
O primeiro vê o mundo como um todo integrado e contínuo, uma horizontalidade
fruída e restituída em sua totalidade pela visão. O ver pressupõe uma configuração de mundo
“pleno, inteiro e maciço”, compreendendo-o como um “conjunto dos corpos ou coisas
extensas que preenchem o espaço” (CARDOSO, 1988, p. 349). O interesse do olhar é
diametralmente oposto, pois habita a curiosidade justamente pelo que não é coeso. Avança
em direção ao espaço fragmentado e dilacerado, perscruta “limites, lacunas, divisões”, “se
enreda nos interstícios de extensões descontínuas, desconcertadas pelo estranhamento”
(CARDOSO, 1988, p. 349). Se o ver opera por soma, conforme sintetiza o autor, “o olhar não
acumula e não abarca, mas procura; não deriva sobre uma superfície plana, mas escava, fixa
e fura, mirando as frestas deste mundo instável e deslizante [...]” (CARDOSO, 1988, p. 349).
Perceber tais distinções, nada sutis, possibilita, ainda, acrescentar que ver é separar
quem vê daquilo que é visto, olhar é amalgamar:

No universo do olhar, [...] vidente e visível misturam-se e confundem-se em cada


modulação do mundo, em cada nó da sua tecelagem, mostram-se imbricado em
cada ponto de sua indecisa extensão. E se a realidade os entrelaça, é porque o
mundo visível não se dá mais como conjunto de “coisas”, rígidas e íntegras, positivas
[...], mas como o contorno de um campo em que o sentido ora se adensa e se
aglutina, ora se difunde e dilui numa existência rarefeita, sempre vazado de lacunas
e indeterminação (CARDOSO, 1988, p. 349).

Para sintetizar, o olhar, segundo Cardoso (1988), é composto por uma visão ativa,
interrogativa, interessada pelos interstícios do quebrado do mundo, desejosa de mergulhar
na interioridade das coisas, perscrutadora do entrelaçamento entre vidente e visível no tecido
da vida. Propondo um diálogo com Rolnik (2006), acrescento que o salto do ver para o olhar
se dá através de um “fator de a(fe)tivação”, capaz de articular um “composto híbrido”, no qual
olho molar ou olho-da-retina – ambos termos para se referir ao olho nu – e olho molecular ou
olho vibrátil se unem a fim de capacitar o cartógrafo-vidente a capturar não apenas o visível
do mundo através do olho molar em sua dimensão da percepção, mas também, com o olho
39

molecular, a dimensão invisível dos afetos, realizando o salto ao qual Cardoso (1988) se refere.
O fator de a(fe)tivação “pode ser um passeio solitário, um poema, uma música, um filme, um
cheiro ou um gosto... Pode ser a escrita, a dança, um alucinógeno, um encontro amoroso –
ou, ao contrário, um desencontro” (ROLNIK, 2006, p. 39). Quem determina o que é preciso
para saltar do ver para o olhar é o próprio vidente, pois é ele quem sabe o que aguça a sua
sensibilidade de cartógrafo-vidente. Nesta pesquisa-viagem, são os contatos-contágios com
os rastros de Hija de Perra os fatores de a(fe)tivação que me fazem, enquanto pesquisador-
viajante-cartógrafo-vidente, “habitar o ilocalizável” (ROLNIK, 2006, p. 39).
Uma proposta como essa de Cardoso (1988) e Rolnik (2006), de ter o olhar a(fe)tivado
como instrumento de conhecimento, se aproxima do “olhar comunicacional” que Fabrício
Lopes da Silveira (2002) busca em Walter Benjamin, com o qual este investigava as imagens
de seu tempo. Em uma costura entre Antropologia e Comunicação, Silveira (2002, p. 7)
procura nos textos de Benjamin um modo de compor uma “etnografia das culturas
comunicacionais”, a fim de navegar antropológica e afetivamente pela “cultura midiática
contemporânea”. Uma navegação que acontece nesta pesquisa-viagem – tal como Benjamin
ao flanar, olhar e narrar a metrópole de dentro dela (SILVEIRA, 2002) – guiada por um olhar
a(fe)tivado que deriva pelos espaços digitais narrando de dentro do digital.
Aproprio-me dos usos de deriva que Rose de Melo Rocha (2009b), Simone Luci Pereira
e Martín de la Cruz López Moya (2018, p. 8) fazem para “produzir conhecimento sobre as
cidades através de cartografias afetivas e mapeamentos cognoscitivos”:

Derivas como uma maneira de se apropriar da cidade através do andar sem


caminhos pré-definidos, em que a desorientação na cidade gera a sua fruição,
deixando-se levar pelas questões, pessoas, situações que nela venha a encontrar,
mapeamento o ambiente urbano e os diversos comportamentos efetivados daí
engendrados (PEREIRA; LÓPEZ MOYA, 2018, p. 8).

Fernandes e Herschmann (2015, p. 298) também indicam a relação direta entre a


deriva e os estudos sobre a cidade, sobre novas possibilidades de interagir com o urbano por
uma via não-linear, não pré-estabelecida e não-racionalizada, tanto que a interpretam como
uma proposta pela via da experiência do sensível, um debruçar-se sobre uma “geografia
afetiva”.
Mas se o uso da deriva pelos autores se dá pelo corpo da cidade e as paisagens urbanas
cartografadas por eles são de vidro e concreto, as minhas são de luzes e de pixels. As incursões
40

pela paisagem-Hija de Perra envolvem “caminhar, derivar e errar” (PEREIRA; LÓPEZ MOYA,
2018, p. 8) por geografias digitais. Plataformas do Google (Acadêmico, YouTube, buscador),
do Facebook (Facebook, Instagram) e Twitter funcionam como sítios arqueológicos
preservando os rastros da passagem monstruosa da performer pelo “mundo sensível”
(RANCIÈRE, 1996). É por esses espaços digitais constituintes de uma nova urbanidade que
caminho com o olhar a(fe)tivado, expondo-me aos rastros digitais encontrados ao se
pesquisar o nome de Hija de Perra nessas plataformas.
Todavia, uma arqueologia em geografias digitais exige certos cuidados. O excesso de
fragmentos que compõem o corpo dilatado da performer, característicos de um contexto
comunicacional pós-massivo (LEMOS, 2007), evoca uma perigosa vertigem hipermoderna.
Rocha (2009b, p. 494; 495) já alertara que,

[n]as sociedades contemporâneas, onde muito se vê e pouco se olha, [...] imagens-


esfinges, fábulas visuais convocam o vidente, capturando-o em um jogo de
submersão visual que, por vezes, eclipsa a possibilidade de refletir sobre o vivido.
[...] O olhar, sentido educado na experiência urbana, é cada vez mais “embaçado”,
como se a luz da cidade se tornasse, por definição, bruxuleante. O que na
modernidade era excrescência, agora se torna essência.

Uma saída para interrogar as audiovisualidades25 contemporâneas, sem se esfacelar


pela sedução e excesso dos “corpos-imagem, imagens-corpos, corpos-objetos e objetos-
corpos” (ROCHA, 2012, p. 27), é forjar na tensão paradoxal entre a velocidade vertiginosa da
hipermodernidade e a velocidade de tartaruga do flâneur moderno um olhar capaz de
mergulhar e recuar ante a paisagem babélica de audiovisualidades que convidam “ao tudo
devassar e ao rápido devastar” (ROCHA, 2009b, p. 495).

25
Audiovisualidade é um conceito operacionalizado por Rose de Melo Rocha (2009a) para exprimir as dimensões
sonoras e visuais das imagens em circulação no contexto comunicacional pós-massivo atual, além de demarcar
uma distinção das audiovisibilidades. Toda audiovisibilidade é uma audiovisualidade, mas o contrário não
procede. Audiovisibilidades são audiovisualidades dotadas de legitimidade e legibilidade (ROCHA, 2009a), ou
seja, são autorizadas a circular livremente, reconhecidas como legítimas e passíveis de leitura. As segundas,
por sua vez, existem independentemente disso. “Creio que, ao falarmos em visível, pressupomos não apenas
uma qualidade daquilo que se dá a ver, que se constrói enquanto materialidade sígnica e efetividade simbólica.
Penso, complementarmente, que visibilidade refere-se a uma ‘visualidade portadora de legibilidade’ e,
igualmente, de um estatuto hierarquicamente estabelecido e socialmente acordado de credibilidade.
Visibilidade associa-se, portanto, a mecanismos sócio-culturais partilhados que conferem, a determinadas
imagens visuais, a qualidade de partícipes de sistemas de crenças e de leitura visual reconhecíveis e
reconhecidos como rastros e/ou registros de fatos dotados de relevância societal. O que é visível remete, pois
menos ao que se tornou imagem visual, e mais àquela visualidade que, via jogo societal e estratégias
comunicacionais, é reconhecida como dotada de valor de troca simbólico e de relevância comunicativa.
Visibilidade, finalmente, apenas se realiza e se consuma no momento do consumo, da recepção, da
codificação, da interpretação e da tradução” (ROCHA, 2009a, p. 273).
41

Se esse é o “olhar do viajante urbano” da autora, proponho, então, um olhar do


cartógrafo digital. Empresto de seu personagem a “habilidade de pular de flash em flash, de
cena em cena, de registro em registro”, encadeando “trilhos de imagens descarriladas,
farejando não apenas as pistas do que foi, mas, igualmente, tateando as imagens do vir a ser”
(ROCHA, 2009b, p. 495).
Após recorrentes derivas exploratórias26 pelos rastros digitais de Hija de Perra nos
espaços digitais, realizei o que chamei de mapeamento herético do rizoma. Uma fase
cartográfica quase ultrajante à memória da performer, que habitou o mundo de modo tão
errático e rizomático, mas sem a qual a pesquisa-viagem corria o risco de se perder no
emaranhado de rastros e não mais se encontrar; derivar até delirar, uma possibilidade
interessante, mas não para o momento.

1.8 Mapeamento herético do rizoma

Rizoma é uma imagem emprestada da botânica por Gilles Deleuze e Félix Guattari
(1995) ao proporem um modo de pensar o mundo alternativo ao pensamento arborescente
do Ocidente. A árvore, árvore-mundo ou, ainda, árvore-raiz são imagens que, segundo os
autores, operam por lógicas binárias, relações biunívocas, pressupõem unidades principais
onde se passa para chegar a qualquer lugar, e possuem pontos fixos e ordenação. Esse é o
modo como o pensamento ocidental se estruturou. O problema, continuam os autores, é que
nem na natureza, de onde se extraiu a imagem da árvore, existe a dicotomia que se tenta
alcançar no pensamento arborescente: as raízes das árvores são ramificadas, numerosas, se
expandem lateralmente, circularmente e em todas as direções. É na botânica que encontrarão
a imagem que melhor se adequa à visão de mundo que propõem em oposição à da árvore: o
rizoma. Trata-se de um conceito forjado para pensar as multiplicidades, o caos, os
deslocamentos, as dispersões, o mundo em sua complexidade.
Um rizoma é uma multiplicidade; não possui uma raiz principal; é constituído por linhas
que se entrelaçam independentemente de suas naturezas; transformam-se por constantes
movimentações chamadas agenciamentos; não possuem começo nem fim, apenas meio; tem

26
Chamo de derivas exploratórias porque o objetivo não era terminar nelas, como ocorre no método da deriva
realizado por Rocha (2009b) e Pereira e López Moya (2018), e sim que fossem uma fase da cartografia, um
modo de ter os primeiros contatos-contágios com o material, de explorá-lo.
42

múltiplas entradas; e apresenta descontinuidades e rupturas (DELEUZE; GUATTARI, 1995). O


próprio pensamento humano, a despeito do fascínio ocidental pela arborescência, opera por
uma ramificação rizomática, sendo “muito mais erva do que uma árvore” (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 24). Contudo, trata-se de um conceito polimorfo, podendo se apresentar
de formas mais dispersas às mais concentradas e em uma miríade de manifestações: “Até
animais o são, sob sua forma matilha; ratos são rizomas. [...] Há rizoma quando os ratos
deslizam uns sobre os outros”, descrevem Deleuze e Guattari (1995, p. 14; p. 17),
acrescentando, é “impossível exterminar as formigas, porque elas formam um rizoma animal
do qual a maior parte pode ser destruída sem que ele deixe de se reconstruir”.
O corpo dilatado de Hija de Perra, composto por seus rastros digitais, é esse rizoma
descrito por Deleuze e Guattari (1995), impossível de ser lido por lentes-árvore, pois um
rizoma só existe enquanto os agenciamentos o mantêm vivo. Tentar torná-lo árvore, fechá-lo
em modelos estruturais, é conduzi-lo à morte. “Por isto é tão importante tentar a outra
operação, inversa mas não simétrica. Religar os decalques ao mapa, relacionar as raízes ou as
árvores a um rizoma”, sugerem (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 23). Decalques, para eles, são
as tentativas de compreender rizomas de um modo reducionista, interrompendo os fluxos e
estancando o movimento, estando, portanto, mais relacionado a um pensamento-árvore.
Um pensamento-rizoma, por sua vez, tenta fazer mapas:

O mapa é aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível,


suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido,
adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um
grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebe-lo como
obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação. [...] Um
mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre “ao
mesmo” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 21).

Qualquer mapa, todavia, eventualmente, cairá em nódulos de arborescência e se


enroscará em raízes grossas e estruturantes, pois, do mesmo modo que é impossível viver só
árvore-raiz, é igualmente inviável viver só rizoma. Nesse sentido, e ressaltando a inexistência
de inícios e fins, apenas meios, entres, os autores entendem, então, que é possível começar
um mapa por uma linha dura, uma territorialidade, e sair em um rizoma, e vice-versa.

No coração de uma árvore, no oco de uma raiz ou na axila de um galho, um novo


rizoma pode se formar. Ou então é um elemento microscópico da árvore raiz, uma
radícula, que incita a produção de um rizoma. A contabilidade e a burocracia
43

procedem por decalques: elas podem, no entanto, começar a brotar, a lançar hastes
de rizoma, como num romance de Kafka. Um traço intensivo começa a trabalhar por
sua conta, uma percepção alucinatória, uma sinestesia, uma mutação perversa, um
jogo de imagens se destacam e a hegemonia do significante é recolocada em questão
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 23-24).

Inspirado por essa proposta de pensamento-rizoma e pela possibilidade reconhecida


pelos franceses de que é possível investigar um rizoma por uma linha dura de territorialidade,
chego a uma fase cartográfica na qual, após as derivas pelo corpo dilatado de HDP, opto por
realizar o que chamei de mapeamento herético do rizoma, a fim de me localizar em meio ao
seu emaranhado de rastros digitais.
Faz-se oportuno pontuar, aqui, uma tensão entre nomenclaturas, que se torna visível
neste ponto da pesquisa-viagem. Enquanto Rolnik (2006), ela mesma devoradora de Deleuze
e Guattari, faz uma distinção entre mapas e cartografias, os franceses a fazem entre mapas e
decalques. Aquilo que estes chamam de decalque, a brasileira entende como mapas; e o que
Deleuze e Guattari (1995) entendem como mapas, Rolnik (2006) chama de cartografia. Trata-
se de uma primeira tensão entre os teóricos mobilizados, mas que, em vez de minar,
potencializa a reflexão e se revela, na prática, como um dos pontos de intersecção e conflito
da própria discussão sobre rizoma. Assim, continuo afeito à proposta de cartografia de Rolnik
(2006) – mapeamento para Deleuze e Guattari (1995) –, e utilizo o termo “mapeamento”, na
fase cartográfica de mapeamento herético do rizoma, no sentido dos “mapas” da brasileira e
de “decalques” dos franceses. Posto isso, avancemos.
Tal mapeamento consistiu em, no segundo semestre de 201827, fazer buscas pelo
nome “Hija de Perra” em três espaços digitais: Google Acadêmico28, buscador do Google e
YouTube. Para compartilhar como se deu essa fase da cartografia, na prática, narrarei o
processo de busca no YouTube, sendo que tanto no Google Acadêmico quanto no Google

27
Os rastros digitais de Hija de Perra continuam proliferando nos espaços digitais, conforme vimos
acompanhando. Exibições de seus filmes com discussões têm sido organizadas, fotos e vídeos são
constantemente inseridos em plataformas como Instagram e YouTube. Contudo, devido ao tempo de duração
de um mestrado e a impossibilidade de se esgotar um rizoma, foi necessário definir um ponto para “fotografá-
lo” tal como ele se apresentou naquele momento e, a partir disso, seguir a pesquisa-viagem.
28
“Google Acadêmico possibilita uma maneira simples de pesquisar amplamente pela literature acadêmica. Em
um único lugar, você pode pesquisar por muitas disciplinas e fontes: artigos, teses, livros, resumos e decisões
judiciais, de editores acadêmicos, sociedades de profissionais, repositórios on-line, universidades e outros
sites”. Tradução minha. Disponível em: https://scholar.google.com/intl/en/scholar/about.html. Acesso em: 12
jun. 2019. No original: “Google Scholar provides a simple way to broadly search for scholarly literature. From
one place, you can search across many disciplines and sources: articles, theses, books, abstracts and court
opinions, from academic publishers, professional societies, online repositories, universities and other web
sites”.
44

ocorreu do mesmo modo. Pois bem: em um espaço digital, o YouTube, no caso, pesquisei pelo
nome da performer. A busca retornou com várias páginas de links para acessar, de fato, os
vídeos. Nesse momento, na primeira página com os resultados da busca, abri cada resultado
em uma janela paralela, a fim de não perder a janela na qual havia ocorrido a busca29. Depois,
entrei em cada uma das janelas abertas, que continha um vídeo, e observei: a qualidade do
vídeo, a estética, a duração, o número de visualizações, a quantidade de comentários, o teor
de alguns deles, o conteúdo, entre outras características que, em um primeiro momento,
permitia com que me familiarizasse com o vídeo. Alguns, assisti inteiro; outros apenas alguns
trechos; e tantos outros, nem isso – coletei apenas as informações que interessavam e
continuei o mapeamento, pois seria inviável, no tempo de duração do mestrado, assistir, ainda
que parcialmente, a todos os vídeos.
O modo mais organizado, naquele momento, de registrar e, futuramente, compartilhar
aquela fase da cartografia foi criar uma planilha para cada espaço digital por onde naveguei:
uma para os resultados encontrados no Google Acadêmico, uma para o buscador do Google,
e uma para os resultados do YouTube. Conforme começava a inserir os primeiros registros de
determinado espaço, surgiam as informações possíveis de serem coletadas naquela fase, de
acordo com as possibilidades de cada material. No caso dos vídeos, por exemplo, tentei utilizar
o máximo possível as informações que a própria plataforma oferece ao usuário. Quantas
visualizações esse vídeo tem? Qual o tempo de duração? Quantos comentários? Qual o nome
do canal que o disponibilizou? Qual a descrição do vídeo? E a data de upload? As perguntas
surgiam conforme o material começava a ser manipulado.
Cada espaço disponibiliza ao usuário informações diferentes, assim como a própria
natureza do material provoca questionamentos diversos. Assim, quando registrei os
resultados encontrados no Google Acadêmico, interessou saber não a quantidade de
visualizações de um determinado artigo científico, por exemplo, até porque essa informação
não era disponibilizada, mas de quem era a autoria? A pessoa estava vinculada a alguma
universidade? Qual era o teor do material? E o nome do periódico onde foi publicado?
Conforme identificava as informações a serem inseridas na planilha, cujas categorias
eram criadas durante a inserção das informações em resposta às necessidades e curiosidades

29
Isso se tornou muito importante, pois cada vez que se atualiza uma página de busca, os resultados
apresentados mudam: a ordem dos links se altera, por vezes aparece algo novo, o que torna fundamental
“congelar” o máximo possível a tela para capturar um instante do rizoma, por isso não atualizá-la durante o
mapeamento.
45

despertadas, já ia tendo contato com o material de um modo sistemático que as primeiras


derivas exploratórias e anteriores não possibilitaram. Foi assim que encontrei registros de Hija
de Perra que, mesmo em cerca de três anos de contato-contágio com ela, não havia
vislumbrado ainda, como sua presença enquanto animadora em uma festa de aniversário
(HIJA DE PERRA [...], 2008), por exemplo. Quando terminava de registrar na planilha os dados
de um vídeo, partia para outro, e assim sucessivamente até esgotar os resultados retornados
na página 1 da busca. Então, partia para a página 2 e repetia o procedimento: abrir cada link
em uma nova janela, anotar na planilha as informações sobre aquele determinado rastro
digital, e começar novamente com outro vídeo. O procedimento foi sistematicamente o
mesmo para o YouTube, o Google Acadêmico e o buscador Google, variando apenas, como
dito, as informações coletadas, a depender das características do material (vídeo, texto
científico, texto diverso30).
Os resultados, como já havia notado na fase das derivas exploratórias, foram
impressionantes: as buscas retornaram com centenas de materiais cujas palavras
fragmentação e excesso seriam o mais próximo possível para defini-los. Descreverei
detalhadamente a categorização de cada material a frente, mas adianto algumas observações:
no Google Acadêmico, encontrei links para diversos tipos de materiais acadêmicos contendo
o nome de Hija de Perra, indo desde o simples uso de alguma fala sua como epígrafe até ser
tema principal de artigo e ser citada como referência em artigos e dissertações. O buscador
do Google, por sua vez, retornou com links de sites de veículos de comunicação alternativos
ao mainstream publicando desde notícias sobre trabalhos, a morte de HDP e comemorações
póstumas até links para blogs amadores cujo autor se inspirou em HDP para criar o design de
um cartaz. Por fim, no YouTube, encontrei de vídeos profissionais de videoclipes, curta-
metragem e entrevistas protagonizados por HDP até vídeos amadores de homenagem
editados com fotos suas e registros de suas participações em casas noturnas, discursos em
público, aulas em universidade e, a já citada, animação de aniversário.
Devo pontuar que a busca pelo nome Hija de Perra na seção de Imagens do Google
retorna igualmente com uma profusão de registros da performer, dos mais distintos: fotos
amadoras e profissionais de sua presença em universidades, palestras, performances públicas,
apresentações em casas noturnas, entrevistas para canais no YouTube, tatuagens feitas com

30
Entendo como textos diversos por não poder caracterizar todos os resultados retornados no buscador Google
como jornalísticos, pois alguns deles eram postagens de blog, textos fragmentados, entre outros.
46

seu rosto; ilustrações; cartazes. Todavia, optei por não incluir tais registros visuais na pesquisa-
viagem, nem na fase do mapeamento herético do rizoma, devido à complexidade de rastrear
informações sobre a origem dos registros e sistematizá-los tal como proposto nesta fase da
cartografia. Assim, reconheço a potencialidade das imagens estáticas de Hija de Perra em suas
diversas expressões (fotos amadoras e profissionais; cartazes; ilustrações), mas não as
discutirei na atual pesquisa-viagem.
Outro apontamento relevante: durante o mapeamento, outra “hija de perra”
continuava aparecendo: o livro Hija de Perra31, publicado pela primeira vez em 1998, da poeta
chilena Malú Urriola32. Com o mesmo nome da performer, conteúdos relacionados ao livro de
Urriola retornavam junto aos de HDP, misturando, embaralhando e ressaltando as
contaminações de uma pesquisa-viagem conduzida por Hija de Perra. Contudo, uma vez ele
não se relacionando à performer, exigiu-se incluir no mapeamento um exercício de mineração
de rastros, excluindo tais resultados.
De volta aos rastros digitais – da nossa Perra, não a de Urriola – retornados nas buscas
e tendo em mente que se trata de uma figura do underground chileno, há uma impressionante
profusão de registros, assim discriminados: no âmbito da produção acadêmica,
compreendendo os resultados oriundos da busca no Google Acadêmico, contabilizei 35
rastros acadêmicos, ou seja, menções distintas para textos acadêmicos indexados pela
plataforma; no âmbito textual do buscador Google, foram 38 rastros textuais, compreendidos
como os textos que, frequentemente acompanhados por fotos e, por vezes, vídeos,
mencionavam Hija de Perra; e, por fim, no âmbito da produção audiovisual, entendida

31
“Hija de perra es un largo monólogo precedido por epígrafes de Roland Barthes, Las Blancanblues y Los
Redonditos de Ricota. El crítico peruano Julio Ortega ha señalado: ‘Hija de Perra lleva las pulsiones de lo real
(evidencias) de muerte a su extremo recusatorio, al inventario de la carencia y el desamparo (evidencias de
que lo real retoma incólume y aún más grotesco). El paisaje urbano, ‘Santiago muerto’, escenifica aquí el
paisaje interior desolado por la ruptura del diálogo. Entre ambos, discurre la soledad de la escritura, esa
obsesión de entender y de protestar, ese puente roto sobre un mundo arruinado. Sólo la violencia del poema
responde por el lenguaje de las articulaciones, por la lectura del sentido, por la reafirmación de ser en contra
de este estar desasido. Confesión de una otra confesión, estas letanías son una ceremonia de exorcismo y
patetismo: el poema es el producto desollado de las disputas de la realidad antagónica y el deseo insumiso,
del eros de empatía y la muerte de avidez. La poesía transforma el mundo de las evidencias en una figura
radical del desamparo, y clama y reclama por el diálogo que albergue el tributo y el sacrificio de esta sangre
vertida, de este discurso purificador’ (Ortega, Julio (1998).”. Disponível em:
http://www.memoriachilena.gob.cl/602/w3-article-95819.html. Acesso em: 12 jun. 2019.
32
Informações sobre a autora e sua produção bibliográfica, no site da Biblioteca Nacional do Chile. Disponível
em: http://www.memoriachilena.gob.cl/602/w3-article-3586.html#presentacion. Acesso em: 20 maio 2019.
47

enquanto os resultados da busca no YouTube, localizei 68 rastros audiovisuais – vídeos que


retornaram à busca pelo nome da performer.
Uma vez identificado o material, conforme o listava na planilha, já ia sistematizando-o
de acordo com as categorias que, elas mesmas, se apresentavam. A primeira categorização
foi pelo espaço digital de origem do material, sendo que os rastros audiovisuais encontrados
no YouTube foram agrupados em uma planilha nomeada “Audiovisual”; os rastros textuais do
buscador do Google em “Texto”; e os rastros acadêmicos do Google Acadêmico em
“Academia”. Dentro de cada um desses três âmbitos, criei novas categorias e especifiquei o
rastro digital de acordo com suas características, tal como será apresentado a seguir. As
planilhas completas, ou mapeamentos, contudo, estão disponibilizados nos apêndices deste
trabalho.

1.8.1 Rastros audiovisuais (YouTube)

Detalhei 11 características dos rastros audiovisuais possíveis de serem aferidas pelas


informações disponibilizadas pelos usuários que enviaram os vídeos (nome e descrição), pelo
próprio YouTube (time, views, likes, dislikes, comments, data, canal e link) e as complementei
com uma categorização autoral (formato). A saber:
Formato: criei 19 categorias para detalhar os vídeos, sendo elas curta-metragem
(curta-metragem protagonizado por HDP); discurso público (discurso em espaço público,
identificado pelo ambiente); documentário (documentário protagonizado por HDP);
entrevista (HDP sendo entrevistada); entrevistadora (HDP entrevistando outra pessoa);
homenagem (vídeos-tributo à performer; reportagem sobre evento em homenagem a ela;
vídeo de uma performance inspirada em HDP; covers de suas músicas; paródia de tutorial da
maquiagem de HDP); indefinido (uma apresentação musical de HDP cuja ausência de
informações no título, na descrição e nos comentários do vídeo, somada à impossibilidade de
identificar o espaço fechado onde acontece a performance, impede categorizá-lo); longa-
metragem (longa-metragem protagonizado por HDP); making of (bastidores do videoclipe de
outro cantor do qual participa); música/áudio (áudio de música autoral com alguma imagem
estática ou transições de imagens estáticas); música/clipe (videoclipe de música autoral);
palestra (palestra em universidade ou evento); participação/clipe (participação no videoclipe
de outro cantor); programa de rádio (áudio da participação em um programa de rádio);
48

show/aniversário (apresentação em festa de aniversário); show/casa noturna (apresentação


em casa noturna); show/evento (apresentação no que se identifica ser um evento pelas
informações na descrição e/ou título do vídeo); show/universidade (apresentação dentro de
uma universidade, identificada pela descrição e/ou comentário do vídeo); TV aberta.
Nome e descrição são duas informações inseridas ao vídeo pelo(a) usuário(a) no
momento do upload e referem-se, respectivamente, ao título que ele(a) dá ao vídeo e à
descrição que o acompanha. Já as outras informações coletadas estão disponíveis pela própria
organização da página do YouTube, que as exibe publicamente junto ao vídeo, sendo, no
mapeamento, time referente ao tempo de duração do vídeo; views, ao número de
visualizações dele; likes, ao número de reações da audiência classificadas como “likes” ou
“gostei” através do ícone de um “joinha”; dislikes, ao número de reação classificadas como
“dislikes” ou “não gostei” através do ícone de “joinha” de ponta cabeça; comments, ao
número de comentários; data de upload do vídeo; canal, ao nome do canal onde está o vídeo;
e link, ao endereço para acesso ao vídeo. Os números de views, likes, dislikes e comments se
referem à consulta no exato momento do mapeamento, pois eles são constantemente
atualizados, conforme os acessos aos vídeos.

1.8.2 Rastros textuais (buscador Google)

Os rastros textuais acompanham menos informações numéricas devido à própria


organização das páginas onde estão publicados, que não oferecem tantas informações de
acesso quanto o YouTube. Logo, as características descritas nesse âmbito do mapeamento
compreendem formato (categorizado por mim), site, data, título e link (informações
disponibilizadas pela própria página onde está publicado o conteúdo).
Formato: dividi os textos em 14 categorias, sendo elas acadêmico (discurso de HDP em
um evento, transcrito, traduzido para o português e publicado em um periódico científico
brasileiro); artigo opinativo (artigo opinativo em homenagem ao legado de HDP); biográfico
(textos na direção de compartilhar quem foi HDP); comemoração do legado (textos
comemorando e compartilhando o legado de HDP, auxiliados por fotos e, frequentemente,
vídeos); desdobramento da morte/HIV (notícias que abordam as consequências de sua morte
por HIV, como a dívida hospitalar herdada pela mãe de HDP, Rosa Peñaloza); desdobramento
da morte/propriedade intelectual (a tentativa judicial da mãe de HDP de registrar
49

comercialmente Hija de Perra enquanto marca); divulgação de evento (textos divulgando


eventos em comemoração ao legado e/ou ao aniversário de morte de HDP); divulgação de
evento/cineclube (uma menção a um vídeo de HDP, a ser exibido na programação de um
cineclube com temática “pósporno”); entrevista Irina La Loca (entrevista com a amiga e
também performer Irina La Loca, que acompanhou HDP em diversas performances); ficha
catalográfica (informações técnicas do documentário Perdida Hija de Perra, no catálogo
virtual da Cineteca Virtual, da Universidade do Chile); nome citado (uma única citação de seu
nome como referência de estética para outra performer entrevistada em um site); notícia da
morte (divulgação de seu falecimento); perfil jornalístico (perfil jornalístico sobre HDP, escrito
por uma repórter que acompanhou HDP em um evento); Wikipédia (inscrição na Wikipédia33
sobre a performer).
Já site, data, título e link são informações disponibilizadas pela própria organização
visual do site, que permite identificá-las, sendo autoexplicativas: o nome do site onde o texto
está publicado; a data original de publicação34 (quando disponível e tal como disponível – em
alguns casos “data, mês e ano” e, em um único, apenas “mês e ano”); o título do texto; e o
link de acesso, respectivamente.

1.8.3 Rastros acadêmicos (Google Acadêmico)

Quanto aos rastros acadêmicos, percorri 18 páginas com resultados que retornaram à
busca do nome “Hija de Perra” no Google Acadêmico, sendo que detalhei deles, no
mapeamento, título, autoria, publicação, local de publicação, link (disponibilizados no próprio
material encontrado), formato e descrição (informações definidas por mim). Especificarei cada
um desses detalhes a seguir:

33
“O projeto Wikipédia foi iniciado em 15 de janeiro de 2001, na versão em língua inglesa. Em apenas um ano
de existência, esta versão já possuía quase 10 mil artigos. Até hoje já foram criados mais de 14 milhões de
artigos em centenas de línguas e dialetos (1.007.782 artigos na versão em português). Todos os dias, centenas
de colaboradores de todas as partes do mundo editam milhares de artigos e criam muitos verbetes
inteiramente novos. Todo o conteúdo do site é coberto pela licença de documentação livre GNU (GNU Free
Documentation License) ou pela Creative Commons Attribution ShareAlike 3.0. Os contributos são
devidamente creditados a seus autores, enquanto que os direitos de cópia inclusos na licença garantem que
o conteúdo da enciclopédia poderá sempre ser reproduzido e distribuído livremente, desde que sejam
seguidas algumas regras simples”. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Wikip%C3%A9dia:Sobre_a_Wikip%C3%A9dia. Acesso em: 12 jun. 2019.
34
Por vezes, um site apresenta a data original de publicação e datas posteriores de alteração do texto. Para este
mapeamento, considerou-se apenas a data original.
50

Formato: os rastros acadêmicos foram segmentados em 18 categorias criadas, de


acordo com as características de cada um, sendo elas análise/artigo (artigo que analisa o
trabalho de HDP); análise/capítulo de livro (capítulo de livro que analisa a performance de Hija
de Perra e de outro performer chamado El Che de Los Gays); análise/dissertação (dissertação
de mestrado que analisa corpos transformistas no Chile e tem Hija de Perra como uma das
analisadas, entre outros); Autoria (artigo de autoria da performer); citação/artigo (artigo que
cita HDP enquanto referência bibliográfica); citação/dissertação (dissertação que cita HDP
enquanto referência bibliográfica); citação/monografia de graduação (monografia que cita
HDP nas referências bibliográficas); citação/tese (tese que cita HDP nas referências
bibliográficas); epígrafe/dissertação (uso de alguma fala de HDP na epígrafe do trabalho);
exemplo/artigo (artigo que não chega a analisar HDP, apenas a utiliza como exemplo para
alguma discussão a que o(a) autor(a) está se propondo); exemplo/dissertação (dissertação
que utiliza HDP mais como exemplo para a discussão proposta pelo(a) autor(a) do que uma
análise da performer); menção/artigo (o nome de HDP é mencionado no artigo brevemente,
sem a função de análise, citação, discussão nem exemplo; por vezes, em nota de rodapé ou,
ainda, indiretamente, se referindo a seu filme Empaná de Pino, a outro artista com o qual ela
colaborou ou a uma peça de teatro que, ao final, foi dedicada à performer);
menção/dissertação (dissertação na qual o nome da performer é mencionado quando se
discute o trabalho de outro artista com o qual ela colaborou ou uma foto sua é utilizada como
inspiração); menção/monografia de especialização (seu nome é mencionado na dedicatória
da monografia de especialização); menção/monografia de graduação (monografia de
graduação na qual seu nome aparece em uma tabela que parece ser uma sequência de
filmagem; não há qualquer outra explicação ou referência a essa aparição do nome da
performer); menção/tese (tese que menciona o nome da artista como inspiração e cita
brevemente uma fala sua, referenciada em nota de rodapé); referência (texto que não cita
HDP direta nem indiretamente, mas a inclui como referência); referência/artigo (artigo que
não cita HDP, mas a inclui nas referências).
Título refere-se ao título do texto científico; autoria preenchi com o nome do(a)
autor(a) do mesmo; publicação indica o nome do periódico ou livro no qual o artigo foi
publicado – quando monografia, dissertação ou tese, deixei este campo em branco; local de
publicação é a universidade a qual o periódico, a monografia, a dissertação e a tese são
vinculados – quando não identificado, também deixei em branco; descrição é um campo no
51

mapeamento preenchido com uma breve descrição, feita por mim, sobre o conteúdo do texto
acadêmico; observação se reserva a alguma informação complementar e importante para
contextualizar determinado rastro, sempre em relação à autoria; e link referente ao endereço
eletrônico de acesso ao material.
Em mãos desse mapeamento herético do rizoma, em uma categorização necessária
dos rastros digitais que compõem a paisagem rizomática Hija de Perra, tal como descrito
acima, finalmente, avança-se na pesquisa-viagem em direção à construção do corpus. Toda
construção de um corpus envolve a desconstrução de um corpo. Nesse sentido, é preciso
primeiro quebrar o corpo de HDP para, então, formar outro. Mas como fazer isso? Quais os
critérios para selecionar as hastes desse rizoma, os rastros dos quais se valer para construir
esse novo corpo?
Uma vez que “todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas”
(ROLNIK, 2006, p. 66), que “um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer” e
qualquer linha se relaciona com qualquer outra, independentemente de suas naturezas
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 17), decido, então, quebrar o corpo dilatado e rizomático de
HDP na altura das hastes audiovisuais35. É por elas que passarei, a partir de agora, a me
orientar pela geografia de Hija de Perra, de acordo com outro crivo metodológico que surge
no caminho – os encontros traumáticos.

1.9 Encontros traumáticos

“Eu gosto que as pessoas se divirtam e se traumatizem”, diz Hija de Perra (apud GRAU,
2012, p. 189, tradução minha36), “divertir e traumatizar são minhas palavras favoritas. Além

35
Chamo de hastes audiovisuais os vídeos de Hija de Perra quando em sua dimensão de imbricamento e
emaranhamento na composição junto às hastes acadêmicas e textuais do corpo dilatado e rizomático da
performer, em referência ao uso que Deleuze e Guattari (1995, p. 24) fazem ao narrarem rizomas como
emaranhados de hastes conectáveis: “Ser rizomorfo é produzir hastes e filamentos que parecem raízes, ou,
melhor ainda, que se conectam com elas penetrando no tronco, podendo fazê-las servir a novos e estranhos
usos. [...] Amsterdã, cidade não enraizada, cidade rizoma com seus canais em hastes, onde a utilidade se
conecta à maior loucura, em sua relação com uma máquina de guerra comercial”. “Lançar hastes de rizoma”
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 23) e “Chamamos ‘platô’ toda multiplicidade conectável com outras hastes
subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 32) são
outras passagens dos autores sobre as hastes na formação dos rizomas das quais me valho para pensar os
rastros audiovisuais, textuais e acadêmicos enquanto hastes, quando em sua tensão de composição do corpo-
dilatado-rizoma Hija de Perra.
36
No original: “‘A mí me gusta que la gente se divierta y se traume’ [...] ‘Divertir’ y ‘traumar’, dice, son mis
palabras favoritas. Aparte, la gente aprende, ya que si se trauma es porque tiene una mente débil, no logra
entender y le choca lo que ve”.
52

disso, a gente aprende que se traumatiza é porque se tem uma mente débil, não se consegue
entender e te choca o que vê”. É essa fala impactante que guia a pesquisa-viagem neste
momento. O choque e o trauma se revelam como chaves, oferecidas pela própria HDP, para
pensar suas audiovisualidades. Mas o que ela quer dizer especificamente com traumatizar?
Qual é o sentido do trauma para a performer? Como artista contemporânea, contudo, ela não
responde. Atira sua fala e atinge agressivamente. Nesse exercício de se expor
deliberadamente ao impacto de seus traumas, começarei pelo choque para, posteriormente,
chegar ao trauma, pois eles são distintos, porém articulados entre si.
A máquina que fragmenta o trabalho. Os transeuntes que se esbarram. O clique surdo
da máquina do fotógrafo. A montagem como estética do cinema. Os jogos de azar que
esquecem o passado de vitórias e derrotas do jogador a cada nova partida. O tiro dadaísta a
cada vez que escandalizava o público com as saladas de palavras que eram seus poemas e os
botões e bilhetes de trânsito colados a seus quadros. Essas imagens tão modernas e cotidianas
da vida urbana são utilizadas por Walter Benjamin (1987; 1989) para compor sua teoria do
choque37.
Segundo o autor, o processo urbano e industrial da modernidade desencadeou uma
série de fenômenos que alterou a experiência de estar no mundo. Um deles é o excesso de
estímulos externos com os quais passamos a ser bombardeados na vida moderna, exigindo do
nosso corpo um novo modo de lidar com tantos disparos. Um simples andar em público
envolve um estado de alerta constante aos sinais de trânsito, à conduta esperada de um
transeunte (andar de determinado lado da calçada para não impedir o fluxo, por exemplo), à
publicidade que salta aos olhos, às mercadorias sedutoras nas vitrines e, entre outras
tentações, aos intempestivos esbarrões entre os corpos na multidão. Ou seja, uma sucessão
de choques impossíveis de serem experienciados em sua plenitude, pois gerariam um
aumento de atividades psíquicas intolerável, cujo amortecimento é função do “consciente
desperto”, uma parte do cérebro supostamente tão “queimada” por estímulos externos que
se tornara propícia a ampará-los (BENJAMIN, 1989, p. 110). Desse modo, a consciência não
retém a infinidade de choques da modernidade e não é por eles modificada
permanentemente: os estímulos se “esfumaçam” no “fenômeno da conscientização”

37
Teoria do choque é como alguns autores se referem à discussão do choque em Walter Benjamin. Cf.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Quando a teoria reencontra o campo visual – Passagens de Walter Benjamin.
Concinnitas, v. 2, n. 11, p. 102-115, dez. 2007. TOMAIM, Cássio dos Santos. Cinema e Walter Benjamin: para
uma vivência da descontinuidade. Estudos de Sociologia, n. 16, p. 101-122, 2004.
53

(BENJAMIN, 1989, p. 108). Quanto mais frequente são os choques, mais inoculado se está
deles, incólume a seus efeitos.
Debrucemo-nos um pouco mais sobre a imagem da multidão para pensarmos sobre os
choques:

O mover-se através do tráfego implicava uma série de choques e colisões para cada
indivíduo. Nos cruzamentos perigosos, inervações fazem-no estremecer em rápidas
seqüências [sic], como descargas de uma bateria. [Charles] Baudelaire fala do
homem que mergulha na multidão como em um tanque de energia elétrica. E, logo
depois, descrevendo a experiência do choque, ele chama esse homem de “um
caleidoscópio dotado de consciência”. Se, em [Edgar Allan] Poe, os passantes lançam
olhares ainda aparentemente despropositados em todas as direções, os pedestres
modernos são obrigados a fazê-lo para se orientar pelos sinais de trânsito
(BENJAMIN, 1989, p.124-125).

Leitor e crítico de Charles Baudelaire (1821-1867), Benjamin (1989, p. 113) interpreta


o autor de As flores do mal como um esgrimista que se propõe a duelar com os choques,
enfrentá-los, ampará-los com o seu ser físico e espiritual, desferindo golpes e abrindo
caminhos pelas multidões, sejam estas quais forem, de “subúrbios”, de “pessoas”, de
“fantasmas”, de “palavras” e, acrescento, de imagens. Uma dessas imagens é o choque
narrado por Baudelaire (2012, p. 63, grifo no original) no poema A uma passante, no qual ele
compartilha um amor não à primeira senão à última vista:

A rua em torno era um frenético alarido.


Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.


Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade


Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!


Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!

Trata-se de uma cena de amor na cidade grande, esta que reverbera dentro dos seus
habitantes e das relações que eles (não) constituem entre si. “Uma despedida para sempre”,
54

segundo Benjamin (1989, p. 118), “que coincide, no poema, com o momento do fascínio.
Assim, o soneto apresenta a imagem de um choque, quase mesmo a de uma catástrofe [...],
capturando o sujeito [...]”.
Outra imagem do choque tátil38 proposta por Benjamin (1989) que interessa explorar
é a da mecanização do trabalho, pois, para ele, a técnica condicionou até mesmo o nosso
sistema sensorial. Quando das atividades artesanais, o processo de trabalho era contínuo e o
artesão tinha contato com todas as etapas da feitura, ao passo que, na indústria, as atividades
na linha de montagem são fragmentadas e o ritmo é o da máquina: “A peça entra no raio de
ação do operário, independentemente da sua vontade. E escapa dele da mesma forma
arbitrária” (BENJAMIN, 1989, p. 125). Trabalhar na linha de montagem da fábrica é mais uma
exposição aos choques da modernidade, cujos efeitos se espraiam para além do espaço de
trabalho, contaminando a indumentária, o comportamento e os gestos. Condicionamo-nos a
dar respostas automáticas, como quando nos chocamos com um transeunte e pedimos
desculpas imediatamente e na frase familiar “keep smiling”, pinçada por Benjamin (1989, p.
125) por atuar no comportamento como um “amortecedor gestual”.
A fragmentação, característica indissociável do choque, conforme se depreende do
autor, pode ser observada também nos jogos de azar, nos quais cada jogo não depende do
anterior, ignorando o passado de vitórias e derrotas daquele que joga. Jogador, operário e
transeunte se comportam, nesse sentido, sob a mesma lógica automática condicionada pela
exposição aos choques. Nas palavras de Benjamin (1989, p. 127):

O arranque está para a máquina, como o lance para o jogo de azar. Cada operação
com a máquina não tem qualquer relação com a precedente, exatamente porque
constitui a sua repetição rigorosa. Estando cada operação com a máquina isolada de
sua precedente, da mesma forma que um lance na partida do jogo de seu precedente
imediato, a jornada do operário assalariado representa, a seu modo, um
correspondente à féria do jogador. Ambas ocupações estão isentas de conteúdo.

A dinâmica dos choques está, ainda, na fotografia, na qual os cliques com os dedos
na máquina congelam e fragmentam momentos diversos e sem, necessariamente, conexão

38
Benjamin (1989, p. 124) usa choques óticos para se referir aos provocados pela fotografia e pelo cinema, e
choque táteis para os da circulação na metrópole: “Entre os inúmeros gestos de comutar, inserir, acionar etc.,
especialmente o ‘click’ do fotógrafo trouxe consigo muitas conseqüências [sic]. Uma pressão do dedo bastava
para fixar um acontecimento por tempo ilimitado. O aparelho como que aplicava ao instante um choque
póstumo. Paralelamente às experiências ópticas desta espécie, surgiam outras táteis, como as ocasionadas
pela folha de anúncio dos jornais, e mesmo pela circulação na cidade grande”.
55

(BENJAMIN, 1989), e no cinema, que tem o choque como “princípio formal” (BENJAMIN, 1989,
p. 125) com sua constante sucessão de imagens, interrompendo a todo instante possíveis
associações de ideias do espectador, privando-o da possibilidade de contemplação, expondo-
o a uma fragmentação imagética contínua e provocando “metamorfoses profundas do
aparelho perceptivo”: “o cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais
mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo” (BENJAMIN, 1987, p. 192,
grifos no original).
A consciência desperta, conforme aprendemos, é a responsável por amortecer essa
diversidade de choques aos quais a vida moderna nos expõe e bombardeia. Fragmentos
atirados como tiros certeiros. Como o esgrimista Baudelaire (BENJAMIN, 1989), resta-nos
duelar, golpear os choques, desferindo e recebendo golpes. No que concerne esta pesquisa-
viagem, interessa, mais especificamente, a esgrima com as imagens, para ser mais preciso,
com as audiovisualidades de Hija de Perra. “Educadora traumática que golpeia as mentes
débeis, indispostas a pensar o infamiliar”, tal como descreve Olga Grau (2012, p. 189, tradução
minha39), a performer está inserida na dinâmica moderna do choque, tanto por causa do
excesso e da fragmentação dos rastros digitais como pelas características de suas
performances, conforme exploraremos nos próximos momentos-capítulos.
De modo geral, na sociedade, os bombardeios de audiovisualidades talvez
provoquem uma queda de potência. Enfraquecemo-nos expostos aos sucessivos golpes na
retina. Deixamos de nos surpreender com o excesso e a fragmentação de choques da
modernidade, pois paramos de olhá-los. Nossas consciências despertas os amortecem com
relativo sucesso. Estamos vacinados, acostumados, fatigados, enfraquecidos pelas imagens,
como a Albertine de Marcel Proust (1871-1922), em Em Busca do Tempo Perdido, cujo excerto
pinçado por Benjamin (1989, p. 118) expõe o esgotamento parisiense pela multidão:

Quando Albertine voltou ao meu quarto, usava um vestido negro de cetim que a
empalidecia; e assim se assemelhava ao tipo ardente e, no entanto, pálido da
parisiense, da mulher que, desafeita ao livre, enfraquecida por seu modo de vida em
meio às massas e, talvez, até por influência do vício, pode ser reconhecida por um
certo olhar nas faces sem pintura que causa uma sensação de inquietação.

39
No original: “[…] educadora traumática que golpea las mentes débiles, no disponibles para pensar lo
infamiliar”.
56

A imagem invocada por Proust é de uma mulher cuja energia vital é drenada pela
multidão e tem sua queda de potência manifestada no próprio corpo. Pode-se pensar, em
uma costura com Rolnik (2006), em um corpo que não vibra mais. Um corpo drenado. As
imagens, ou audiovisualidades, em sua dimensão do excesso e da fragmentação, podem ter
essa potencialidade de nos devorar como as massas devoram a mulher de Proust? Essa
indagação será retomada mais a frente, no capítulo 3, mas, por ora, visualizemos uma linha
de fuga.
Márcio Seligmann-Silva (2009), leitor de Walter Benjamin, em sua preocupação com
as “imagens técnicas eletrônicas” – da fotografia digital, mas também de qualquer dispositivo
técnico contemporâneo de produção de imagens –, aponta para o efeito terapêutico possível
de ser depreendido no pensamento do autor. De acordo com ele,

[f]alando do cinema (que com a montagem incorpora também o choque como


princípio estético), ele [Benjamin] indicou uma capacidade terapêutica via esta
performance que abala. Estes dispositivos nos treinam para a vida pontuada por
choques e rupturas. Além disto, com Benjamin, também podemos ver tanto o
cinema como a fotografia como capazes de abrir aquilo que ele denominou de
inconsciente ótico. Este revela novos aspectos insuspeitos de nosso corpo e de
nossos gestos. Valorizando a recepção tátil das imagens [proposta por Benjamin]
[...], podemos pensar na capacidade destas de criar esteios para nosso mundo. Ou
seja: as imagens técnicas, e de modo mais radical, as imagens eletrônicas, servem
tanto de reprodução do abalo e de potenciação do trauma, como também podem
servir de terapia de choque. Evidentemente cada imagem resolverá esta
ambiguidade a seu modo, conforme também o seu modo de recepção. (SELIGMANN-
SILVA, 2009, p. 313).

Desse modo, então, quanto mais expostos aos choques, mais imunes a eles nos
tornaríamos, supostamente. Poderíamos encontrar no veneno o remédio? Pois, resgatando o
intento de traumatizar, declarado por HDP, sem esquecer o cenário de choque desenhado até
aqui, vislumbro no trauma a capacidade de nos tirar justamente do torpor que o excesso nos
vacinou. Poderia o trauma ser o veneno inoculado, o veneno tornado bálsamo que, em vez de
aliviar, consegue fazer voltar a arder nossos olhos fatigados?
Trauma, sintetizam Jean-Bertrand Pontalis e Jean Laplanche (2014, p. 522):

Acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela


incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo
transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização
psíquica. Em termos econômicos, o traumatismo caracteriza-se por um afluxo de
excitações que é excessivo em relação à tolerância do sujeito e à sua capacidade de
dominar e de elaborar psiquicamente estas excitações.
57

Na psicanálise freudiana, da qual Benjamin (1989) se apropria para pensar sua


própria teoria do choque, o trauma tem três características para se configurar: um choque
violento externo, uma efração (uma ruptura que expõe aquilo que foi golpeado) e um efeito
na organização do todo (LAPLANCHE; PONTALIS, 2014). Trata-se, de modo geral, de um
aumento de excitação interna intolerável ao aparelho psíquico. Uma intensidade tão alta em
um espaço de tempo tão curto que os meios habituais de lidar com esses golpes externos não
são suficientes, excedendo a tolerância do aparelho psíquico. A causa do trauma pode ser
tanto um evento único como o acúmulo de situações que, isoladamente, seriam toleráveis
(LAPLANCHE; PONTALIS, 2014). Nesta pesquisa-viagem, uma audiovisualidade única ou o
bombardeiro delas tal como faz Hija de Perra com sua profusão audiovisual.
Em Benjamin (1989, p. 109), um “choque traumático” é justamente aquele que foge
à vivência cotidiana, escapa à dinâmica dos choques com os quais estamos acostumados, e
rompe, de algum modo, a proteção do consciente, instalando-se inconscientemente na
memória. Seligmann-Silva (2009, p. 313) concorda que há uma aproximação entre as imagens
técnicas e o trauma, ressaltando que ambas experiências congelam o tempo, o achatam em
uma bidimensionalidade e servem de “fragmentos do mundo”, e não sua simbolização.

1.10 (Des)Construção do corpus

É na própria fala de Hija de Perra que encontro a saída para pesquisar-viajar por entre
o labirinto de sua geografia. São os encontros traumáticos entre o cartógrafo-viajante e seu
corpo que servem de crivo metodológico para construir o corpus. São os traumatismos
provocados por ela em meu aparelho psíquico que me guiam, as fraturas que atravessam a
consciência para se instalar na memória e provocar desconfortos que se espera poderem ser
elaborados nesta pesquisa-viagem.
Esse corpus, contudo, é tão monstruoso quanto a dona do corpo de onde ele se origina,
pois seu processo de construção foi tortuoso e cheio de reviravoltas. Em um primeiro
momento, selecionei cinco rastros audiovisuais de HDP (sete, se considerarmos que um dos
registros está fragmentado em três partes). Uma característica identificada entre eles,
posteriormente, é que foram os primeiros contatos-contágios que tive com seu material,
antes mesmo de entrar no mestrado. Tamanho o potencial traumático deles que ainda me
58

inquietavam, mesmo após três anos. Eram eles, conforme os títulos originais no YouTube, os
vídeos Discurso de Hija de perra en marcha por la diversidad sexual 2013 en Arica (2013)
(categoria Discurso público, no mapeamento herético do rizoma); Entrevista Hija de Perra &
Wincy (2013) (categoria Entrevista); Cortometraje Documental Perdida Hija de Perra (2012)
(categoria curta-metragem); Hija de Perra y Perdida – Reggaetón Venero (2012) (categoria
Show/Casa noturna); e Clase de Venéreas por Hija de Perra (partes 1 (2013a), 2 (2013b) e 4
(2013c)) (categoria Palestra). Cada um deles foi categorizado de um modo na fase do
mapeamento herético do rizoma, o que me fez pensar que seriam propícios para observar
como se dão as movimentações de Hija de Perra em diferentes espaços e como sua
performance acompanha esses deslocamentos.
Não foi tão simples assim e, durante o caminho da pesquisa-viagem, o corpus logo se
despedaçou, desestabilizando meu caminhar e se revelando arredio a tentativas de
unificações. Acontece que, durante o processo de produzir os rastros desta pesquisa-viagem
(a escrita da dissertação), outras imagens traumáticas de Hija de Perra vieram à tona. Como
ervas daninhas, associações diversas se agarraram às pernas, tirando o equilíbrio. Imagens de
HDP que, durante as derivas exploratórias, transpuseram-se sub-repticiamente da tela do
computador para minha mente, fizeram dela morada. E, conforme se davam as orgias teóricas
na escrita, impunham suas presenças. À semelhança da dinâmica sedutora e diabólica do
gênio maligno dos objetos da qual fala Jean Baudrillard (ROCHA, 2018b), quando estes
seduzem e invertem a relação sujeito-objeto dando as regras do jogo, Hija de Perra não
respeita crivos metodológicos e atordoa o pesquisador-viajante. Toma em suas mãos a
bússola e determina como se dará o caminhar.
É bem verdade que a própria descrição de trauma de Laplanche e Pontalis (2014)
aponta que o trauma não se instala quando da ação pela primeira vez, e sim em um segundo
momento, quando algum detalhe no presente remete a pessoa traumatizada a um
acontecimento no passado, quando uma descarga emocional provocada por um objeto
externo foi tão grande que seu aparelho psíquico não foi capaz de processar, obliterando o
acontecimento para preservar sua constituição. Assim, faz sentido pensar que escolher
encontros traumáticos como crivo metodológico torna impossível definir um corpus a priori,
como tentei, contraditoriamente, fazer ao selecionar as cinco audiovisualidades mencionadas.
Uma fez feita tal aposta metodológica, o corpus apenas se permitirá ser contemplado ao final
59

da jornada, pois é durante o processo que ele se revelará através de lampejos detonados face
às orgias teóricas promovidas.
Isso significa dizer que, embora tenha tentado selecionar os vídeos a priori em um
primeiro momento, o corpus final desta pesquisa-viagem acabou se tornando monstruoso. Ele
é fragmentado, despedaço, constituído por flashes que surgiram conforme se deu a escrita e
os materializei nesta dissertação através da captura de tela (prints) dos vídeos no YouTube. A
única costura desse corpus esquizofrênico é sua característica audiovisual. Vali-me apenas dos
vídeos de HDP disponibilizados no YouTube e arrolados no mapeamento herético do rizoma,
ainda que rastros de outras materialidades tenham tentado se impor. Mesmo quando suas
músicas são invocadas, isso acontece a partir dos vídeos que as disponibilizam.
A característica quase de revelia e imposição autômato desse corpus construído a
posteriori sugere algumas pistas sobre a performance de Hija de Perra. É como se sua
existência digital fosse uma presença e conservasse um fragmento de autonomia, um fiapo de
vi(a)da. Como se Hija de Perra seguisse viva e geniosa mesmo após a morte, recusando-se a
se sujeitar a um silêncio final. Segue fazendo barulho, provocando, embaralhando, impondo
forças sobre aqueles que são atravessados por suas audiovisualidades. É com essas
inquietações que avanço na pesquisa-viagem: como sua existência desencarnada segue com
tanta força de afetação? Quais são os afetos provocados? Qual a dinâmica dessa performance
que foi Hija de Perra e parece continuar mesmo após a morte? E suas especificidades? Qual o
papel dos espaços digitais na viabilização dessa “sobrevivência”?
60

2 AS PERFORMANCES DE HIJA DE PERRA

“Estou salva pelas águas e seguirei meu legado dissidente


até o fim dos meus dias. E pode ser que eu seja um
extraterrestre e não chegue ao final dos meus dias. [Pode
ser que] eu seja eterna.”
Hija de Perra (2013)

Como segurar um sopro de ar, capturar o efêmero, o que está em processo de devir?
O corpo de carne e osso de Hija de Perra não está mais no plano da percepção (ROLNIK, 2006),
esse no qual se pode ver, ouvir, sentir e cheirar – compartilhar tempo e espaço
simultaneamente. Ainda assim, ela continua a fazer sentir. Sua(s) presença(s) segue(m)
depositando “ovos de serpente” (ROLNIK, 1993) prestes a chocar e a forçar confrontos com
os afetos abjetos que o projeto de Modernidade e a matriz colonial do poder tanto tenta(ra)m
soterrar nas Américas. Seu corpo vibrátil serpenteia pelo plano dos afetos (ROLNIK, 2006),
transitando entre os fluxos dos encontros, perpetuando o fazer sentir provocado pelas suas
performances em vida, ainda que, após sua morte física, com outras camadas de
complexidade. Pois são pelas especificidades dessa performance continuada que a pesquisa-
viagem embrenhará. De que modo Hija de Perra continua a performar? O que essa
performance continuada pelos seus rastros digitais faz sentir?
É pelos meandros da vida e da morte que seguiremos, tentando acompanhar os
movimentos do que a tradição indígena ameríndia (nauatle, quéchua e aimara) chama de
“olin”, “a linha limítrofe entre a vida e a morte, aquilo que mantém os seres vivos, ou, de
maneira metafísica, a linha de transição entre o reino terreno e o divino” (TAYLOR, 2013, p.
43 apud AMARAL; SOARES; POLIVANOV, 2018, p. 69). E a bússola que orienta são os estudos
da performance, um campo aberto (SCHECHNER, 2013), sem fronteiras (TAYLOR, 2012) e
contaminado (DIÉGUEZ CABALLERO, 2011), impuro e que esgarça as disciplinas (SCHECHNER,
2013), tão indisciplinado quanto a própria Hija de Perra.

2.1 No princípio, era a performance

As origens da performance são tão polifônicas quanto suas práticas, o que exige
discutir a experiência da performance sempre no plural. Uma das possibilidades de
reconstituição de sua genealogia é a leitura de Richard Schechner (2013), um dos precursores
61

dos estudos da performance como campo, e que a localiza já em períodos pré-históricos.


Segundo ele, humanos faziam performances em cavernas há pelo menos 40 mil anos, pois,
embora dança, teatro e música não sejam termos universais, suas práticas são. Para o autor,
artefatos e registros pictóricos pré-históricos, como pinturas rupestres, cerâmicas ilustradas,
esculturas, entre outros resíduos materiais de outrora, indicam sofisticadas tradições
performáticas de treinamentos e ensaios de movimentos rítmicos, produção de som com
instrumentos e usos de máscaras e “fantasias” para simular animais e outros seres humanos
e sobrenaturais.

Ninguém sabe se os performers paleolíticos estavam interpretando histórias,


representando eventos passados, experiências, memórias, sonhos ou fantasias.
Gosto de pensar que estavam, que praticar o que chamamos de teatro, dança e
música coexiste à condição humana. Que esse tipo de atividade é um importante
marcador do que significa ser humano (SCHECHNER, 2013, p. 221, tradução e grifo
meus40).

Em sua empreitada genealógica da performance, o autor segue explicando que tais


práticas performáticas primevas transmitiam conhecimentos coletivos não pertencentes a
pessoas específicas, mas à coletividade. Tal transmissão, como também aponta Taylor (2012)
no caso de povos pré-colombianos, se dava através de “atos trans-pessoais” (SCHECHNER,
2013, p. 225) – também chamados de “atos ao vivo” e “ações corporais” (TAYLOR, 2012, p.
52) –, ou seja, gestos, danças, cantos, movimentos através dos quais encantamentos,
narrativas, saberes sociais e sentidos de identidade eram transmitidos entre os corpos dos
envolvidos e contribuíam para compor a “memória coletiva” (TAYLOR, 2012, p. 52).
Antecedentes filosóficos da performance – um pensar sobre –, por sua vez, podem ser
identificados já na Antiguidade e na Renascença, períodos nos quais Schechner (2013) aponta
questionamentos sobre as relações entre a vida, o teatro e o real, provocações inerentes ao
ato de performar. Alguns gregos antigos, em um viés platonista, consideravam que o
“verdadeiro real” só existia enquanto ideal e que não somos capazes de tocá-lo, tal como as
sombras na caverna de Platão. Por essa perspectiva, os artistas circulariam na arena das
sombras e com elas dançariam, distanciando-se ainda mais, pois duplamente, do real

40
No original: “No one knows if these paleolithic performers were acting out stories, representing past events,
experiences, memories, dreams, or fantasies. I would like to think they were; that making what we would call
theatre–dance–music is coexistent with the human condition. That this kind of activity is an important marker
of what it means to be human”.
62

verdadeiro. Já Aristóteles pensou o real verdadeiro como intrínseco às ações humanas, uma
potencialidade em todos os atos.
Contemporâneos dos gregos antigos, pensadores indianos também deixaram registros
de seus questionamentos sobre realidade e ilusão, interpretados por Schechner (2013) como
indícios de uma filosofia da performance. Em uma tradição indiana, o universo dos homens e
dos deuses é uma grande ilusão em incessante transformação chamada maya. Para alguns
pensadores do período, por trás do véu de maya não haveria nada; para outros, uma
maravilha tão grande que os humanos não seriam capazes de experienciar41. Outros, ainda,
defendiam ioga, meditação e práticas de uma “vida perfeita” segundo determinados preceitos
como um caminho para que seu atman, o interior absoluto, se libertasse do ciclo de
nascimento-morte-reencarnação (moksha) para, finalmente, se unir a brahman, o todo
absoluto, a versão indiana do real verdadeiro grego.
Essas indagações sobre real e ilusão são adaptadas ao contexto do período e se tornam
reflexões sobre vida e teatro na Europa da Renascença, conforme se pode observar nos
poemas do espanhol Francisco de Quevedo (1580-1645) e nas peças do inglês William
Shakespeare (1564-1616), entre outros autores contemporâneos a eles. Na literatura do
século XVII, era comum a invocação ao theatrum mundi, uma concepção na qual a vida
humana em sociedade é associada a um grande teatro. Em uma passagem da peça
shakespeariana Do jeito que você gosta, nota-se a referência quando o personagem Duque
aponta que os espetáculos do “teatro universal” são mais trágicos que os dos palcos, ao que
Jaques responde com a célebre frase “O mundo é um palco”, e continua, “todos os homens e
mulheres são na verdade atores: têm suas saídas e suas entradas e no decorrer da vida atuam
em vários papéis [...]”42. Na perspectiva renascentista do theatrum mundi, Schechner (2013)
observa que a vida cotidiana seria uma grande encenação na qual somos meros personagens
de uma força maior. Uma concepção que dialoga, de certo modo, com a “dramaturgia do
cotidiano” que o sociólogo Erving Goffman viria a apresentar no século XX, um caminho de
interpretação do cotidiano no qual a distinção entre ficção e realidade, originalidade e
falsidade é, senão apagada, ao menos desbotada (AMARAL; SOARES; POLIVANOV, 2018).

41
No épico indiano Mahabharata, quando Krishna se revela em sua verdadeira forma para o guerreiro Arjuna, a
experiência é aterradora (SCHECHNER, 2013).
42
Cf. SHAKESPEARE, W. Do jeito que você gosta. Trad. Rafael Raffaeli. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2011. p. 54.
63

2.2 Desafios linguísticos

Tão plural quanto as origens do performar são seus trânsitos linguísticos.


Cartografando as disputas sobre performance nos estudos da Comunicação, Adriana Amaral,
Thiago Soares e Beatriz Polivanov (2018, p. 66-67) reconstituem as possíveis viagens do termo:

Um primeiro movimento necessário para o reconhecimento da complexidade do


termo vem dos diferentes usos da palavra “performance”. Muitos desses usos
apontam para complexas camadas de referencialidades, muitas vezes contraditórias,
outras vezes complementares, acarretando um jogo sustentado por fragmentos
dispersos dos usos e suas ressignificações. Se pensarmos na matriz etimológica
francesa, “performance” deriva de “parfournir”, que significaria “fornecer”,
“completar”, “executar”, na concepção resgatada pelo antropólogo Victor Turner.
Sob esta alcunha, a performance aparece sob a noção de visualidade, execução. Ou,
de maneira mais detida, como uma espécie de camada de transparência capaz de
“revelar o caráter mais profundo das culturas” (TURNER, 1982, p. 9, tradução nossa).
[...] Do francês, o termo foi incorporado pelo inglês ainda no século XVI (TAYLOR,
2013) como uma espécie de disposição avaliativa sobre as práticas cênicas e
corporais. [...] [A] concepção de performance na tradição da língua inglesa remonta
à ideia de avaliação teatral, indicação de prática em torno do potencial, do talento e
do comprometimento com a encenação. Esta ideia de avaliação em torno das
competências corporais e cênicas dos indivíduos se espraia nos inúmeros usos da
noção de performance: do campo dos negócios, passando pela política, esportes e
tudo aquilo que envolve avaliação da relação expressiva do corpo com alguma
competência.

Do francês para o inglês e, ainda, para uma transposição intraduzível (TAYLOR, 2012)
das línguas hispânica e lusófona, nota-se a polissemia da palavra “performance”, que carrega
em seus trajetos certa irredutibilidade a traduções, preferindo torções linguísticas e
devorações locais que a dotam de especificidades idiossincráticas. A intraduzibilidade faz
Diana Taylor (2012) lembrar de que não nos entendemos de maneira simples nem
transparente. Um obstáculo não só aos falantes hispânicos e lusófonos, mas também próprio
dos anglófonos, pois permanecem sem compreender a complexa miríade de sentidos
carregada pela performance.

2.3 As cabeças polissêmicas da hidra43

43
A hidra de Lerna é um monstro da mitologia grega de nove cabeças, sendo que a cada cabeça decapitada,
outras duas surgiam. Matá-la foi um dos doze trabalhos de Hércules. Tomo as cabeças da hidra como metáfora
para me referir aos sentidos em circulação provenientes dos usos diversos do termo performance. Para cada
um deles, outros tantos surgem em espaços, temporalidades e contextos socioculturais diferentes. Por isso, a
64

Ainda que performances sejam tão antigas quanto a própria existência da humanidade
(SCHECHNER, 2013), o uso do termo começa a ser empregado com ênfase na primeira metade
do século XX, quando antropólogos, sociólogos e artistas de vanguarda o utilizam para se
referir, em síntese, às práticas ritualísticas de determinados povos, às teatralidades do
cotidiano e às ações de ruptura de determinados artistas que se recusavam a serem lidos pelas
categorias taxonômicas das belas artes.
Ao mesmo tempo que performance designa práticas artísticas de vanguarda,
também é empregada pelo próprio status quo contra o qual, por vezes, tais práticas afrontam.
Algumas das acepções contemporâneas coladas à performance a associam a desempenho e
rendimento. A eficácia em proteger os olhos dos óculos de sol, o estilo e a posição social de
quem os porta; a rentabilidade de negócios corporativos, o desempenho dos executivos
envolvidos em tais transações econômicas; os números acima da média de atletas
profissionais: são todos designados performances. Gestos e carisma de políticos são
convertidos em performances bem-sucedidas ou não, a depender do número de votos em
uma eleição; a performance de trabalhadores é medida com indicadores similares à avaliação
de automóveis, computadores e da bolsa de valores (TAYLOR, 2012). No sistema neoliberal,
são todas performances passíveis de aferição, constituindo um estágio avançado da situação
descrita por Walter Benjamin (2009) quando, no romance de Joseph Conrad, marinheiros
eram reduzidos a números desencarnados nos portos que atracavam44. É o triunfo da
mensuração propagada pela administração pública na Modernidade e espraiada para o
privado das empresas e da vida cotidiana. Taylor (2012) explica que a performance não está
alheia ao sistema no qual está inserida. Logo, pode apoiar ou subverter sistemas de poder, a
depender de quem a articule e como.
Tantas indefinições, contudo, não minam a performance, sendo, pelo contrário, vistas
por Taylor (2012, p. 55, tradução minha45) como pedra de toque de sua potencialidade,
excedendo disciplinas e operando simultaneamente como “processo, prática, episteme,
modo de transmissão, realização e meio de intervenção no mundo”. Amaral, Soares e
Polivanov (2018), leitores de Diana Taylor, apontam a porosidade, a maleabilidade e as

imagem da performance como uma hidra de cabeças polissêmicas. Cf. BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da
mitologia: histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
44
Sobre essa discussão, retomar a seção Rastros de uma passagem monstruosa, no capítulo 1.
45
No original: “[...] un proceso, una práctica, una episteme, un modo de transmisión, una realización y un médio
de intervenir en el mundo [...]”.
65

contradições como índices da complexidade das camadas que compõem aquilo analisado
enquanto performance.
Nos termos do pesquisador mexicano Antonio Prieto Stambaugh, por baixo da máscara
da performance não há rosto, apenas um algo impossível de ser descrito, uma substância
esponjosa e molhada, um corpo amorfo.

“Performance”, como termo, cria complicações práticas e teóricas tanto por sua
ubiquidade como por sua ambiguidade. A palavra multidimensional aponta as
conexões profundas entre atos estéticos, políticos, econômicos, lúdicos, sexuais,
religiosos etc. [...] Performance é uma “esponja mutante” – nas palavras de Antonio
Prieto Stambaugh – que absorve ideias e metodologias de várias disciplinas para se
aproximar de novas formas de conceituar o mundo (TAYLOR, 2012, p. 54, tradução
minha46).

Visão sincrônica tem a performer também mexicana Jesusa Rodríguez, para quem a
potencialidade da performance está, justamente, em expor a capacidade do humano se
transformar:

[...] colocar o espectador de frente a sua própria capacidade de transformação em


homem, mulher, pássaro, bruxa, sapato, ou o que seja. O melhor de ser humano é
poder assumir, como os camaleões, infinitas possibilidades de ser e de transformar-
se em tudo e em todos [...] (RODRÍGUEZ apud TAYLOR, 2012, p. 58, tradução
minha47).

Conforme traçado em momentos diversos desta pesquisa-viagem, é “e”, e não “ou”.


Performance é tudo isso, e também mais. E também menos. É a prática neoliberal de aferição
da reificação do humano tanto quanto a ação mais disruptiva que o mesmo humano consegue
conceber contra o status quo. É o bater de tambor xamânico ameríndio, o transe da dança
balinesa sanghyang dedari, a possessão pelas divindades africanas, o fenômeno da glossolalia
nas religiões cristãs. É o blockbuster hollywoodiano e o espetáculo da Broadway tanto quanto
a apresentação de teatro infantil na quadra da escola do bairro e o baile funk na periferia. É
cada grande espetáculo televisionado, como os desfiles de Carnaval brasileiros e a competição

46
No original: “‘Performance’, como término, crea complicaciones prácticas y teóricas tanto por su ubicuidad
como por su ambigüedad. La palabra multidimensional apunta a las conexiones profundas entre actos
estéticos, políticos, econômicos, lúdicos, sexuales, religiosos, etcétera. [...] Performance es una ‘esponja
mutante – en las palabras de Antonio Prieto Stambaugh – que absorbe ideas y metodologías de varias
disciplinas para aproximarse a nuevas formas de conceptualizar el mundo”.
47
No original: “[...] ponga al espectador de frente ante su propria capacidad de transformación en hombre,
mujer, pájaro, bruja, zapato o lo que sea. Lo mejor del ser humano es que puede asumir, como los camaleones,
las inifinitas posibilidades del ser y transformarse en todos y em todo [...]”.
66

europeia de música Eurovision, e os atos do cotidiano, como o manusear um álbum de família,


o fofocar com a vizinha e o (não)comportar-se de acordo com normas de sexualidade e
gênero.

2.4 Estudos da performance, um campo para orgias teóricas

Enquanto campo – estudos da performance – data da segunda metade do século XX,


quando departamentos de arte são desmembrados e dão origem a departamentos de artes
da performance em universidades como a New York University e a Northwestern University,
ambas nos Estados Unidos. Estudar práticas tão diversas exige um campo disciplinar
indisciplinado tal como aquilo que investiga. Os estudos da performance são “pós-
disciplinares” (TAYLOR, 2012), pois não se limitam a fronteiras acadêmicas. São tributários dos
departamentos de teatro, linguística, comunicação, antropologia, artes visuais (TAYLOR,
2012), das disciplinas de performing arts, ciências sociais, estudos feministas, de gênero,
história, psicanálise, teoria queer, semiótica, etologia, cibernética, teoria da cultura da mídia
e estudos culturais (SCHECHNER, 2013). Nessa orgia teórica pós-disciplinar, friccionam, mas
não se apaziguam. “Se a norma da performance é romper as normas, a norma dos estudos da
performance é romper com as barreiras disciplinares”, diz Taylor (2012, p. 165, tradução
minha48), com o que Schechner (2013, p. 17, tradução minha49) concorda, atestando que, “se
os estudos da performance fossem uma arte, seriam de vanguarda”. O objetivo não é
consolidar uma “teoria da performance” porque não há uma performance universal, logo,
uma medida não consegue medir tudo (SCHECHNER, 2013). Isso pode ser observado nas
próprias práticas de Hija de Perra, a partir do mapeamento herético do rizoma. Suas
performances divergem em forma e conteúdo em uma irregularidade impactante: ao mesmo
tempo em que canta sobre escatologia no palco de uma casa noturna underground, discute a
colonização das Américas em uma palestra na universidade, anima uma festa de aniversário,
protagoniza um longa-metragem trash, dá aula sobre doenças venéreas em uma sala de aula
universitária, entre outras presenças diversas. Olhar para essas performances com uma única

48
No original: “Si la norma del performance es romper las normas, la norma de los estudios de performances es
romper con las barreras disciplinarias”.
49
No original: “If performance studies were an art, it would be avant-garde”.
67

“medida” é impossível, exigindo uma movimentação teórica plural, uma orgia teórica da qual
nascem filhos (considerações) monstruosos.
Schechner (2013) aponta o campo como resposta às ações radicais de intelectuais e
artistas do século XX, tendo se configurado como um campo aberto, impossível de ser definido
em sua totalidade, carregado de tensões e contradições. Por esgarçar os limites das
disciplinas, é mais fluído e interativo do que a maior parte das disciplinas acadêmicas,
recusando-se à pureza e a constituir um campo unificado. Engendra uma “densa rede de
conexões” (SCHECHNER, 2013, p. 24), aberta, multivocal, incerta, indeterminada, que
confunde as distinções de aparência e realidade, fatos e faz-de-conta, superfícies e
profundezas. “Como campo, os estudos da performance são afins das vanguardas, da
marginalidade, do não convencional, das minorias, do subversivo, do bizarro, do queer, dos
negros e dos outrora colonizados” (SCHECHNER, 2013, p. 4, tradução minha50).
Desse modo, não é preciso adentrar o campo da performance como em uma luta na
qual se exige tomar partido e escolher uma única significação, abdicando de todas as outras
(TAYLOR, 2012). É possível avançar tateando, vagando, esbarrando, contaminando,
devorando, enrabando e sendo enrabado. Assim, o movimento desta pesquisa-viagem se
desenha como o da mariposa atraída pelo feixe de luz, circunscrevendo-o em linhas
rizomáticas e enfeitiçada pelo brilho, sem nunca dar conta de capturá-lo51. Enveredar por esse
caminho é apontar camadas polissêmicas, epistêmicas, metodológicas, sem nunca esgotar.
Rodeemos (sujeitos) objetos.

2.5 Características para uma definição

Em meio à vertigem que os estudos da performance e aquilo que eles analisam


provocam, alguns points de capiton podem ser identificados ao rodear tanto as práticas
quanto as considerações dos autores sobre elas. As contribuições do campo permitem

50
No original: “As a field, performance studies is sympathetic to the avant-garde, the marginal, the offbeat, the
minoritarian, the subversive, the twisted, the queer, people of color, and the formerly colonized”.
51
Faço referência aqui a uma passagem do físico e filósofo Luiz Alberto Oliveira (2014), quando este diz, na
palestra O silêncio de antes: “Vou seguir a metodologia sugerida pelo grande epistemólogo Adoniran Barbosa,
que é ‘as mariposa [sic] que dá vorta em vorta da lâmpida’. Vou dar várias ‘vorta em vorta da lâmpida’ para
com isso ver se a gente consegue decantar o problema que quero me dirigir”. Cf. OLIVEIRA, Luiz Alberto. Luiz
Alberto Oliveira O Silêncio. [S. l.: s. n.], 2014. 1 vídeo (1h32m44s). Publicado pelo canal Monocromo. Disponível
em: https://vimeo.com/93608472. Acesso em: 20 dez. 2019.
68

compreender performance como uma prática, uma execução, um ato, um movimentar; um


estar, não um ser; comporta verbo e substantivo, performar-performance-performer
(TAYLOR, 2012; SCHECHNER, 2013). É instável; borrada, confunde arte e cotidiano, arte e
política, arte e vida, ficção e realidade, público e performer, tempo e espaço; opera em
diversas escalas de público, podendo ocorrer para um único espectador (TAYLOR, 2012) ou o
próprio self do performer (AMARAL; SOARES; POLIVANOV, 2018). Deve ser pensada como um
espectro diverso, no qual acomodam-se – não sem atrito e com diversas sobreposições –
rituais; esportes; entretenimentos; performing arts (teatro, dança, música); performances do
cotidiano; papéis sociais, profissionais, de gênero, de raça, de classe; curas (do xamanismo
ameríndio às cirurgias da medicina ocidental); mídias e internet (SCHECHNER, 2013).
Mas se as práticas e o campo não são estáveis, tais características também não seriam.
São momentâneas, provisórias, até que outras se façam necessárias, rasurando estas,
sobrepondo-as ou mesmo eliminando-as. Schechner (2013) entende que as performances e
suas características mudam tanto porque os performers constantemente esgarçam definições
e exploram outras possibilidades de fazer e estar no mundo.
Um desses modos de ocupar o mundo sensível é o de Hija de Perra pela via dos seus
rastros digitais. Os estudos da performance se mostram receptivos a uma investigação por
meio dos resíduos, até porque, de acordo com Schechner (2013), analisar uma performance
é sempre investigar itens e artefatos da cultura, sejam eles quais forem – textos, arquitetura,
artes visuais etc. Contudo, o autor indica ressalvas, pois não basta examiná-los enquanto
coisas encerradas em si mesmas, mas como participantes de um processo relacional, ou seja,
como performances. O que quer que esteja sendo estudado pela perspectiva de Schechner
(2013, p. 2, tradução minha52) “é considerado como prática, evento e comportamento, não
como ‘objetos’ ou ‘coisas’. Essa característica de ‘vida’ – mesmo quando lidando com a mídia
ou materiais de arquivo – é o coração dos estudos da performance”.
Tal olhar – não para o que é a performance, mas para o que o conceito de performance
permite fazer (TAYLOR, 2012) – surge basilar, conforme se avança na reflexão sobre os rastros
audiovisuais de Hija de Perra.

52
No original: “[...] whatever is being studied is regarded as practices, events, and behaviors, not as ‘objects’ or
‘things.’ This quality of ‘liveness’ – even when dealing with media or archival materials – is at the heart of
performance studies”.
69

2.6 Não é o que “é”, mas o “como”

Se o que é performance é restritivo, dependendo de vetores históricos, sociais,


convencionais, de usos e de tradições para ser categorizado como tal, Schechner (2013) é
taxativo ao defender que qualquer coisa pode ser estudada como performance. Não há nada,
segundo ele, intrínseco a determinada ação que a qualifique ou não como performance, de
modo que ele propõe que toda ação é uma performance.

[...] no século XXI, distinções claras entre “é” performance e “como” performance
estão desaparecendo. Isso faz parte de uma tendência geral em direção à dissolução
das fronteiras. Internet, globalização e a cada vez mais onipresente mídia estão
saturando o comportamento humano em todos os níveis. Mais e mais pessoas
experienciam suas vidas como uma sequência de performances em série que,
frequentemente, se sobrepõem [...](SCHECHNER, 2013, p. 49, tradução minha53).

Concordando com essa ideia de um como da performance, passarei, a partir deste


momento, a rodear os meandros da performance em Hija de Perra e, mais especificamente, a
pensar tanto a própria Hija de Perra, quando estava encarnada, quanto seus rastros
audiovisuais como performances. Sobre as especificidades dessas performances e as
presenças que elas acionam, avançarei a seguir.

2.7 A performance-vida Hija de Perra ou “o museu é onde eu estiver”

Digressão necessária: abertura da exibição Metropolis. Museu Martin-Gropius-Bau.


Berlim, Alemanha. 1991. Na primeira mostra organizada no espaço desde a queda do muro
de Berlim e a unificação da Alemanha, duas noivas realizam um casamento simbólico.
Salto no tempo: mostra You are my biggest inspiration. Musée d’Art Moderne de Paris.
Paris, França. 2016. As “gêmeas hermafroditas” celebram sua união de mais de 25 anos em
uma exibição com duração de cinco meses na capital parisiense (de 30 de setembro de 2016
a 26 de fevereiro de 2017) (MUSÉE D’ART MODERNE, 2016).

53
No original: “[…] in the twenty-first century, clear distinctions between “as” performance and “is” performance
are vanishing. This is part of a general trend toward the dissolution of boundaries. The internet, globalization,
and the everincreasing presence of media is saturating human behavior at all levels. More and more people
experience their lives as a connected series of performances that often overlap […]”.
70

Há mais de 25 anos, a dupla alemã EVA & ADELE54 (Fig. 2) tem circulado pelos principais
eventos de arte da Europa, como a Bienal de Veneza (Itália), a Documenta de Kassel
(Alemanha) e a Feira de Arte de Basel (Suíça), entre outros. Nessas ocasiões, elas dão pistas
do que querem dizer quando afirmam: “Museu é onde quer que estejamos” (Wherever we
are is museum, no inglês original). Essas duas figuras se tornam o “evento dentro do evento”
por se apresentarem publicamente de cabeças raspadas, identicamente vestidas em roupas
excentricamente “ultrafemininas”, simpaticamente conversando com os presentes e
compartilhando sorrisos (MUSÉE D’ART MODERNE, 2016).

Figura 2 – Duo de performers berlinenses, EVA & ADELE

Fonte: Site I Heart Berlin55

A presença performática da dupla é carregada de transgressões de gênero, como elas


mesmas narram, mas me interesso particularmente pelo que chamo de performance vitalícia,
esse fazer dos eventos cotidianos uma performance deliberada há mais de duas décadas. “A
performance nunca termina. A arte e a vida são uma. Isso significa que fazemos coisas

54
Segundo a imprensa britânica, a dupla insiste em ser referenciada com o & e em letras maiúsculas. Cf. PIDD,
Helen. EVA & ADELE: “We invented our own sex”. The Guardian, 1 nov. 2011. Disponível em:
https://www.theguardian.com/artanddesign/2011/nov/01/eva-and-adele-interview. Acesso em: 20 dez.
2019.
55
Disponível em: https://www.iheartberlin.de/eva-adele-the-story-of-an-iconic-berlin-artist-couple/. Acesso
em: 20 dez. 2019.
71

mundanas, como ir ao dentista, com [essas] nossas roupas”, conta EVA (2016, s.p., tradução
minha) em uma entrevista usando um brilhante tailleur vermelho com babados. A imprensa
alemã chegou a considerar a dupla a “performance em execução mais longa do mundo” e que
elas “incorporam a forma de arte mais radical: a renúncia à própria identidade” (EVA & ADELE
[...], 2016, s.p., tradução minha). Todas suas aparições públicas são desse modo esteticamente
excêntrico e idêntico entre si, inclusive com a constante simpatia no tratamento com aqueles
com quem interagem. “Cada detalhe tem sido meticulosamente preparado e ensaiado” ao
longo de toda a trajetória do duo (MUSÉE D’ART MODERNE, 2016, s.p., tradução minha).
A indissociação entre arte e vida se revela na narrativa que EVA & ADELE fazem de si.
Embora se saiba pela imprensa que são os corpos biológicos de uma mulher e de um homem
(legalmente reconhecido como mulher sem nenhuma intervenção cirúrgica), elas não revelam
suas identidades, suas datas de nascimento, os lugares onde estudaram nem informações
sobre suas vidas antes de se conhecerem em 1989, ainda que, ironicamente em contraste ao
anonimato biográfico, divulguem as medidas de seus corpos no site oficial (altura, busto,
cintura e quadril). Alegam terem vindo do futuro, para “iniciar novos estilos de vida e
apropriações de gênero” (MUSÉE D’ART MODERNE, 2016, s.p., tradução minha).
Noto que isso que estou chamando de performance vitalícia para me referir ao
trabalho de EVA & ADELE é o como de Hija de Perra, no sentido empregado por Schechner
(2013). O anonimato biográfico deliberado, que faz com que não se saiba dados de seus
passados nem de suas identidades a não ser aqueles que decidem compartilhar publicamente;
o borramento entre ficção e realidade; e um certo paradoxo, pois ao mesmo tempo que estão
sempre repetindo EVA & ADELE, cada aparição pública é única, são também compartilhados
em Hija de Perra.
Serão apontadas, então, algumas especificidades da performance-vida Hija de Perra,
ou seja, HDP como uma performance reiterada que fez da vida uma performance deliberada,
nos âmbitos da narrativa, da estética e da política, assim categorizados apenas para fins de
compreensão, pois, na prática, entendo que tais divisões não existem.
72

2.7.1 A condição liminar da narrativa

Embora os rastros textuais compartilhem alguns dados biográficos de HDP (nome


supostamente civil56, formação, datas de nascimento e de morte, nome da mãe, informações
sobre as causas da morte, trabalhos realizados enquanto performer), os rastros audiovisuais
protagonizados por ela não fazem qualquer referência a tais informações. O nome Victor Hugo
Pérez Peñaloza só é citado em entrevistas e reportagens sobre ela, mas nunca consta nas
narrativas autorais da artista. Estas, quando ocorrem, trazem uma imprecisão sobre o que é
ficção e realidade, conforme compartilho a seguir.
“Fui jogada por meus pais, recolhida por minha avó. Minha avó jamais me chamou
por meu nome. Sempre me chamou de Hija de Perra. Acabei me encantando pelo nome”,
explica HDP, encarando a câmera em seu curta-metragem documental (CORTOMETRAJE
DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012), em um close de seu rosto monstruoso: sobrancelhas
bestias, ossatura quadrada, nariz grande, dentes espaçados, com uma maquiagem de arestas
marcadas, e um cabelo negro, comprido, de fios visivelmente duros e emaranhados. Sua voz
é suave, como em outros rastros audiovisuais, mas a palavra é proferida em um espanhol
rápido, determinado.
“Nunca julguei o que fazia”, rebate outro rastro que surge durante a pesquisa-
viagem, em 24 de agosto de 2019, desta vez de autoria de Rosa Peñaloza (2019, s.p., tradução
minha), mãe de HDP (Fig. 3). Uma matéria do site chileno El Desconcierto compartilha a
atuação ativista da mãe da performer com jovens gays, mães de gays e familiares de pessoas
portadoras de HIV. Acrescenta, ainda, que a senhora, atualmente com 71 anos, acompanhava
HDP em algumas de suas apresentações e em compras de chapéus extravagantes, sapatos de
salto alto e perucas coloridas: “Gostava muito de olhar a reação das pessoas quando o [sic]

56
Qualquer referência às informações de HDP exigem um pensar minucioso. Víctor Hugo Wally Pérez Peñaloza
é um nome associado à performer em alguns rastros textuais. Contudo, o que é esse nome? Era seu nome de
batismo? Não sei se ela foi batizada. Nome civil? Não tenho como saber se era esse o nome em seus
documentos civis. Nome verdadeiro? Terrível seria trazer a noção de “verdade” ao discutir Hija de Perra, pois
ela opera em outra dimensão que não uma de “verdade-mentira”, “real-falso”. Por isso, a necessidade de
sinalizar que Victor era supostamente seu nome civil, a partir de uma inferência pelo modo com que esse nome
é associado à performer.
73

viam. As pessoas se surpreendiam muito, mas servia para gerar uma mudança de
mentalidade, para educar”, narra a mãe ao site (PEÑALOZA, 2019, s.p., tradução minha57).

Figura 3 – Rosa Peñaloza, mãe de Hija de Perra

Fonte: Site El Desconcierto58.

Essas duas falas, de mãe e filha – filho, na fala da mãe, que emprega o masculino ao
se referir a HDP na matéria do site –, expõem uma tensão recorrente não apenas no âmbito
das narrativas performadas por HDP, mas em suas performances como um todo: o
borramento das fronteiras entre ficção e realidade. A narrativa da performer no curta-
metragem documental (CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012) faz parte da
biografia de Victor Hugo Pérez Peñaloza ou de uma biografia fictícia de Hija de Perra, citada
na narrativa da mãe como um “personagem criado”? O que(m), de fato, foi Hija de Perra? Esse
era o nome adotado pela performer quando não estava performando publicamente ou
compunha apenas a diegese biográfica dessa “personagem”?

57
No original: “Me gustaba mucho fijarme en las reacciones de las personas cuando lo veían. La gente se
sorprendía mucho, pero servía para generar un cambio de mentalidad, para educar. Yo nunca juzgué lo que él
hacía”.
58
Disponível em: https://www.eldesconcierto.cl/2019/08/24/la-memoria-viva-de-hija-de-perra-en-el-activismo-
de-su-madre-rosa-penaloza/. Acesso em: 20 dez. 2019.
74

Passo a pensar Hija de Perra como uma performer que faz de si a própria
performance, tecendo sua biografia pública com fios de ficção. O protagonismo do corpo e a
presença do artista no âmbito da performance não é novidade, como já salientaram Taylor
(2012), Schechner (2013) e a “performer pop”59 Marina Abramovic na performance A artista
está presente, comentada por Taylor (2012) em suas investigações. Contudo, observo em HDP
um esgarçamento nos usos do corpo em público ao se apresentar reiteradamente seguindo
uma lógica interna do universo Hija de Perra, uma diegese. No curta-metragem documental
(CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012), tal universo é explicitado. Vejamos.
O vídeo começa com uma sequência de registros amadores de performances
díspares, editados em uma sequência muito rápida e ao som de um punk rock latino-
americano. A sensação provocada é de estar sendo bombardeado visual e sonoramente.
Cortes secos nas imagens, alguns efeitos de flashes fotográficos e a movimentação
tremeluzente da câmera contribuem para intensificar a impressão de estar sendo
eletrocutado. O bombardeio é interrompido. Segue-se um quase silêncio, quebrado pelo
assobio de pássaros ao amanhecer, e imagens do que parece ser algo como um jardim
volumoso ou um campo, compondo no todo um alvorecer quase bucólico. Corte. Do lado de
fora, a câmera apresenta uma moradia carregada de signos do imaginário de uma pobreza
latino-americana: uma cerca irregular, improvisada, faltando ripas de madeira; uma varanda
coberta por uma estrutura se fazendo telhado. Corte. Dentro da morada do monstro, uma
decoração desarmoniosa, disparatada, que mistura uma grande quantidade de bonecas do
tipo Barbie seminuas, fotografias de uma pornografia de outrora, plantas e dildos no peitoril
da janela. O despertador começa a tocar e a câmera a lamber um corpo fragmentado que vai
se compondo: um pé, uma perna, cobertos por uma meia fina preta que, conforme se
acompanha junto à câmera, sobe à altura da coxa. Uma vagina protética, rosada e peluda. Um
torso coberto por uma camiseta e escorado em um corpo anônimo, de bruços, masculino e
nu. O monstro acorda de seu sono de ressaca, o cabelo desgrenhado (Fig. 4).

59
A mídia, frequentemente, ressalta o caráter “pop” e a relação da artista com outros nomes da cena pop.
Disponível em: https://guia.folha.uol.com.br/exposicoes/2015/03/1598524-marina-abramovic-
megaexposicao-da-performer-chega-a-sp-saiba-detalhes.shtml. http://www.virgula.com.br/famosos/os-
motivos-que-fazem-marina-abramovic-mais-pop-que-a-sua-diva-coracao/. Acesso em: 20 dez. 2019.
75

Figura 4 – Fotogramas da abertura do curta-metragem documental


76

Fonte: YouTube.

A câmera continua a acompanhar HDP no que a sinopse na descrição do vídeo no


YouTube informa ser “um dia na vida da conhecida performista trash chilena Hija de Perra,
durante os preparativos para uma de suas apresentações”60. Convém pontuar que na própria
descrição já se aponta um borramento entre público e privado, ao indicar que se trata de um
corpo observado no “espaço privado” e na “cidade”, onde “irrompe com seu travestismo
bizarro e indecente”61. E assim segue o curta-metragem documentário, ora lambendo com a
câmera o corpo monstruoso em closes pornográficos, ora abrindo o plano a fim de exibir
usuários de ônibus com olhares fixos através das janelas do veículo, hipnotizados pela
“indecência” desse corpo que circula pelo espaço urbano, à luz do dia, atravessando ruas
afetadamente, reproduzindo poses de modelos em anúncios de grandes vitrines nas calçadas
– “olha, igual, igual, igual”, ela ironiza –, despertando a curiosidade de bebês de colo que
acenam com os olhos fixos, tentando processar o que veem.
O curta-metragem documental, que se propõe a acompanhar o dia da performer,
combina elementos de ficção e realidade; performances deliberadas e cotidianas. Se a cena
inicial (no que não dá para saber se é, de fato, a casa da performer) é real ou não, os olhares
que ela reúne ao se fazer presente no espaço público são característicos dos “corpos
inconformes”, aqueles que viviane v. (2015) diz não se conformarem às normatividades da
cisgeneridade. Ela se apresenta no mundo sensível e atravessa o campo visual. Ativa a visão
dos videntes, forçando-os a lhe olharem. E, no processo do ver ao olhar, são provocados. Nas

60
No original: “Devela un día en la vida de la conocida performista trash Chilena, Hija de Perra, durante los
preparativo [sic] para una de sus presentaciones”.
61
No original: “Durante ese día nos situaremos tanto en su espacio privado como en la ciudad, en la que irrumpe
con su travestismo bizarro e indecente”.
77

calçadas, as cabeças se viram quando passa. Um homem velho, com poucos dentes, voz
embargada e debochada, chama “que linda, que preciosa, meu amor”.
Chupando sorvete em um parque, HDP olha novamente para a câmera, sempre
tremulante, e encara a lente:

Quando veem um documentário sobre travesti, o que querem ver? Querem ver
como o pobre menino, menino com “lita”, decidiu se maquiar e operar os seios. É
como se travesti não tivesse vida. É óbvio que tem, óbvio que tem amores, óbvio que
tem família, óbvio que come frango com batatas fritas. Óbvio que almoça, que lava
o rosto com sabonete de manhã, que tem uma vida pessoal, que pode desenvolver
uma carreira. Podemos ter carreira em um banco. [...] Se a “lolita” gosta de se
maquiar como mulher, ótimo, problema dele. O que você faz em casa? Faz ondas no
cabelo, encrespa antes de ir a uma festa? É o mesmo, são intimidades. Se o
homenzinho gosta de se maquiar como a tia, problema dele (PERRA, 2012, s.p.,
tradução minha).

Uma cena como essa, que toca às narrativas de outros corpos inconformes, é logo
sucedida por HDP se encontrando com Irina La Loca e Perdida – “personagens como eu, muito
bizarros”, em suas palavras –, presenças frequentes em suas performances, para assistir
pornografia em uma sala residencial e se tocarem parodicamente. Vestidas, se acariciam por
cima das roupas e seus gemidos histriônicos compõem uma cacofonia quando somados aos
originais do vídeo pornô que assistem. Trazem um dildo de duas cabeças, ao qual masturbam,
esfregam umas às outras, trocam tapas que se convertem em carícias. O celular toca, HDP
atende. “Estamos vendo pornografia”, responde sorrindo em voz inocente.
Cenas como as exibidas no curta-metragem documental são combinadas a outras
cenas arquivadas nos rastros audiovisuais das performances de HDP, tecendo, assim,
teatralidades difusas, confusas, borradas, sobretudo liminares. Fundamento-me para
defender essa borrosidade, tanto na diegese biográfica da performance quanto na orgia de
formatos e linguagens artísticas (música, cinema, videoclipe, fotografia, performing arts etc.),
no estudo da cubana radicada no México, Ileana Diéguez Caballero (2011). Ao investigar
práticas latino-americanas do que considerou de “natureza híbrida”, a autora identificou uma
“condição liminar” atravessando intervenções urbanas promovidas por pessoas de diversas
searas, como atores, músicos, dançarinos, artistas visuais e especialistas da imagem por toda
América Latina. Concordando com seu ponto de vista, entendo as teatralidades não como
uma exclusividade do teatro, muito menos como a materialidade do texto, mas uma textura
contaminada e performada por artistas de diversos campos, uma textura que traz em sua
78

trama uma indissociabilidade entre estética e política, e comporta um mosaico de olhares


filosóficos, posicionamentos éticos, circunstâncias sociais, linguagens e formatos artísticos
diversos.
Diéguez Caballero (2011) inicia devorando o antropólogo Victor Turner, que pensou o
liminar de fenômenos ritualísticos e o entorno social, para fazer, logo à frente, sua própria
orgia teórica:

Inicialmente associei o conceito de liminar aos conceitos de hibridação (BAHBHA;


CANCLINI), contaminação, fronteiriço (LOTMAN; BAKHTIN), excentris (LINDA
HUTCHEON), indicando essa região trans-disciplinar onde se entrecruzam o teatro, a
performance art, as artes visuais e o ativismo, e aproximando-a do conceito de exílio,
da não territorialidade, do mutável e transitório, do processual e inacabado, do fato
de apresentar mais do que representar (DIÉGUEZ CABALLERO, 2011, p. 20).

Em sua leitura de liminar, da qual compartilho aqui por pensar as performances de


HDP justamente nessa zona intersticial, simbólica e prática, trata-se de “um espaço no qual se
configuram múltiplas arquitetônicas, como uma zona complexa onde se cruzam a vida e a
arte, a condição ética e a criação estética, como uma ação de presença num meio de práticas
representacionais” (DIÉGUEZ CABALLERO, 2011, p. 20, grifo no original). Na esteira da arte
contemporânea e que vem sendo experimentada na América Latina desde os anos 80, de
acordo com a autora, a liminaridade é ao mesmo tempo estratégia artística de
entrecruzamentos e condição vivida por aquele que a pratica, por isso tão presente entre
quem vive fora dos centros, interessados em se organizar por outras lógicas não hierárquicas,
não oficiais e, acrescentaria, não condizentes à matriz colonial do poder62. A liminaridade
extrapola, vaza, é efêmera, processual e, desse modo, tão propícia às práticas performáticas
de HDP.
Outro aporte teórico útil às experimentações que estamos buscando nesta pesquisa-
viagem é a ideia de uma “entidade ficcional”, uma intervenção do performer que age através
de sua presença. Os “entes liminares”, no original de Victor Turner, eram os despossuídos,
pessoas sem posição social e marginais, como artistas, que, para o antropólogo, eram como
seres xamânicos possuídos por espíritos de mudanças, antes mesmo dessas serem visíveis. Na

62
A matriz colonial do poder será explorada na seção Exorcismo simbólico da colonialidade e a dimensão da
(des)possessão, ainda no capítulo 2.
79

leitura de Diéguez Caballero (2011), os entes liminares articulam estratégias ético-estético-


políticas de intervenção na esfera pública e afrontamento a representações e instituições.

Esses “entes liminares” são portadores de estados contagiantes próprios das anti-
estruturas, uma espécie de dionisismo cidadão ao qual me referi como “pathos
liminar”. A partir da visão nietzschiana o termo dionisismo expressa a colocação em
ação de estados orgiásticos. Vinculado a situações de possessão, de festividade
transbordante e contagiante, de liberação das regras e procura de um espírito
utópico, entendo sua colocação em ação no espaço público, em circunstâncias
excepcionais (DIÉGUEZ CABALLERO, 2011, p. 38, grifos no original).

Entendo os entes liminares como habitantes das soleiras, esse espaço intersticial da
porta sempre aberta, interessados mais no girar a chave do que no para onde vão ou de onde
vêm. O jogo que eles jogam é o do mascaramento, não em um sentido binário ocidental de
revela-esconde, tal como em certas práticas mascaradas da commedia dell’arte, clown, bufão,
topeng e nogaku. Mas do entre o “não mais” do passado e o “ainda não” do futuro, descrito
por Felisberto Sabino da Costa (2015) ao analisar “mascaramentos contemporâneos” – modos
de existência inacabados e de identidades tensionadas, fronteiras atravessadas. O
mascaramento, ensina o autor, não é exclusividade dos artistas nem está no âmbito das
“identidades-vestes”, prontas a serem vestidas. Sob a guarda de Genius, o deus latino protetor
dos nascimentos e rompedor do se bastar em si mesmo, o mascaramento está no território
das incertezas, tão familiar à prática das performances.

Um corpo-máscara [corpo em máscara ou, ainda, mascaramento] não se conforma


num território apascentado, não se apazigua num fechar em si, há sempre uma
tensão que o faz vibrar, há sempre um estrangeiro que o perturba, bate à porta e o
convida a adentrar a “zona de não conhecimento”. Permanecer somente no
conhecido é lidar com uma máscara morta (COSTA, 2015, p. 15-16).

Utilizado por Costa (2015, p. 16) para pensar corpos transviados e desviantes, em
seus termos, o mascaramento surge pertinente como condição dos entes liminares –
entidades ficcionais como Hija de Perra – por ser um modo de existência de experimentações
e de estranhar a vida através de uma “arte-vida”, que, na performance de Hija de Perra,
mobiliza afetos abjetos, atacando diretamente o projeto de Modernidade ocidental fundado
no trinômio beleza, pureza e ordem, descrito por Zygmunt Bauman (1998, p. 7-8):

[...] modernidade é mais ou menos beleza (“essa coisa inútil que esperamos ser
valorizada pela civilização”), limpeza (“a sujeira de qualquer espécie parece-nos
80

incompatível com a civilização”) e ordem (“Ordem é uma espécie de compulsão à


repetição que, quando um regulamento foi definitivamente estabelecido, decide
quando, onde e como uma coisa deve ser feita, de modo que em toda circunstância
semelhante não haja hesitação ou indecisão”).

Vejamos a seguir de que modo Hija de Perra suja suas narrativas com os afetos
abjetos acionados e como essa imundície por ela reivindicada – lembremos que essa é uma
palavra frequentemente usada em suas narrativas autorais e nas de outros sobre ela – pode
adquirir força de uma estratégia estético-política ao inverter o uso da abjeção social que lhe
é imposta para criar a “poética abjeta e monstruosa” com a qual Juan Pablo Sutherland (2014)
descreveu seu trabalho.

2.7.2 Afetos abjetos em narrativas impuras

Pois retomemos o curta-metragem documental por alguns instantes, quando HDP


masturba com suas amigas-amantes-devassas um dildo de duas cabeças em uma orgia
paródica. Na cena seguinte, caminham por ruas periféricas até entrarem em uma construção
sem identificação. Corte. HDP canta uma de suas músicas, Nalgas com olor a caca, um punk
rock ode ao cheiro de fezes nas nádegas. Iluminadas pelas luzes da casa noturna, as cenas são
escuras, com holofotes tentando focar o corpo nômade da performer. O som ambiente
começa a diminuir e o Réquiem em ré menor, a missa fúnebre de Wolfgang Amadeus Mozart,
sobe. A troca dramatiza a teatralidade performada na casa noturna e registrada pelo curta-
metragem documental: HDP lambe a lâmina de uma faca para, em seguida, cortar os mamilos
da prótese de silicone que usa como seios. Um sangue vermelho e artificial escorre e HDP,
como em um transe, segue serrando os mamilos com expressões faciais orgásticas, ao que o
público acompanha encantado. Quem consome essa teatralidade pelo YouTube tem ainda a
camada sonora da música clássica para compor a dramaticidade da performance (Fig. 5).
81

Figura 5 – Fotogramas das cenas finais do curta-metragem documental

Fonte: YouTube.

O trecho compartilhado explicita uma característica que permeia as diversas


performances de Hija de Perra, a provocação da abjeção. Para a filósofa e psicanalista Julia
Kristeva, “o abjeto é uma posição intermediária, nem sujeito nem objeto, uma força disruptiva
do entre, do ambíguo”, explica Leticia Alvarado (2018, p. 50, tradução e grifo meus63), com
quem compartilho a noção de abjeção para pensar HDP. A autora realiza uma profunda
reflexão sobre o que chama de “estética da abjeção” para investigar performances latino-
americanas que mobilizam essa categoria.
Segundo ela, trata-se de uma estratégia de artistas interessados nos “afetos negativos”
rechaçados pelo mainstream, como incerteza, nojo, não-pertencimento. Um modo de
produzir arte que, tal como a perspectiva dos estudos queer e dos sujeitos que se afirmam
como tal, renega coerências identitárias. Isso é particularmente importante pois se assumir
abjeto, como Hija de Perra fazia através das letras de suas músicas, dos modos como se
comportava publicamente, das roupas e acessórios que vestia e das produções nas quais se
envolvia, é construir uma “narrativa alternativa” às políticas identitárias coesas que
determinados grupos do movimento LGBT tentaram articular durante o século XX. Era uma

63
No original: “For Kristeva the abject is an intermediary position, neither subject nor object, a disruptive force
of the ‘in-between, the ambiguous, the composite’.”
82

estratégia de ordem e coesão para tentar que os inconformes fossem assimilados pelos
centros através de uma normatização dos corpos e da participação civil através de códigos
estéticos hegemônicos. Como efeito colateral, acabou-se reforçando a marginalização dos
corpos que não quiseram/puderam/conseguiram se submeter às normas cisgêneras
assimilacionistas. Alvarado (2018) ensina que a completude identitária galgada por esses
grupos para a construção de suas subjetividades só é possível através da expulsão dos que
não performatizam as normas. Um processo de expulsão que não é senão a abjeção.
A abjeção é uma parte do processo de formação do sujeito, de acordo com Julia
Kristeva (ALVARADO, 2018). O abjeto, por essa perspectiva, não é o sujeito nem o objeto,
ainda que compartilhe com este – o objeto – a oposição em relação ao “Eu” do sujeito. Abjeto
é aquilo considerado repugnante e, como tal, não faz parte do “Eu”. É o “entre”, um espaço
de “não humanidade”, uma “entidade intermediária”, aquilo que forma a coerência do sujeito
ao se posicionar como fora. A abjeção é um processo inconcluso e exigente de reafirmação
daquilo que é abjeto, pois, constantemente, ameaça esfacelar a suposta completude do
sujeito. Dito de outro modo, o sujeito precisa, a todo momento, se diferenciar daquilo que
“ainda-não-é-sujeito”, o abjeto. É, portanto, uma posição conferida àquilo que perturba o
sistema com suas fronteiras, regras, identidades coesas, ordem, beleza e pureza. A filósofa
dos estudos de gênero Judith Butler segue na mesma direção ao pensar o abjeto como aquele
que não é sujeito, mas constrói o fora que constitui os limites do sujeito, sendo necessário
repudiá-lo reiteradamente através de “repetições performativas” (ALVARADO, 2018, p. 29).
Ao investigar latinos queer portadores de HIV, Alberto Sandoval-Sánchez (apud
ALVARADO, 2018, p. 40, tradução e grifos meus64), ele também soropositivo, define: “Corpos
abjetos são repulsivos porque manifestam e infligem uma confusão de fronteiras que perfura,
fratura e fragmenta as supostas unidade, estabilidade e limites da identidade do sujeito
hegemônico e do corpo político da nação”.
Paradoxalmente, as forças de atração e repulsão do sujeito pelo abjeto são igualmente
proporcionais. Quanto mais repulsa o abjeto causa, maior é a atração que se tem por ele
(ALVARADO, 2018). E, nesse ponto, uma relação explícita entre a abjeção e a monstruosidade
– lembremos sempre de Hija de Perra se reivindicando enquanto monstro – é desenhada.

64
No original: “Abject bodies are repulsive because they manifest and inflict a confusion of boundaries which
punctures, fractures, and fragments the assumed unity, stability, and closure of the identity of the hegemonic
subject and the body politic of the nation’”.
83

Jeffrey Jerome Cohen (2000) sinaliza o maravilhamento e o assombro que as criaturas


monstruosas, tal como a abjeção descrita por Alvarado (2018), causam naqueles que cruzam
seus olhares com a besta:

As mesmas criaturas que aterrorizam e interditam podem evocar fortes fantasias


escapistas; a ligação da monstruosidade com o proibido torna o monstro ainda mais
atraente como uma fuga temporária da imposição. Esse movimento simultâneo de
repulsão e atração, situado no centro da composição do monstro, explica o fato de
que o monstro [e, acrescento, a abjeção] raramente pode ser contido em uma
dialética simples, binária (tese, antítese... nenhuma síntese). Nós suspeitamos do
monstro, nós o odiamos ao mesmo tempo que invejamos sua liberdade e, talvez, seu
sublime desespero (COHEN, 2000, p. 48).

A aproximação entre Alvarado (2018) e Cohen (2000) não é por acaso, pois ambos
buscam na abjeção de Julia Kristeva a dinâmica que seus interesses – abjeção e
monstruosidade, respectivamente – articulam. Logo, faz-se necessário invocar a própria
psicanalista para compartilhar, em seus termos, o que pensa do tema. No primeiro parágrafo
de seu livro Powers of Horror: an essay on abjection, ela diz:

Há, na abjeção, uma dessas violentas e obscuras revoltas do ser contra aquilo que o
ameaça e que lhe parece vir de um fora ou de um dentro exorbitante, jogado ao lado
do possível, do tolerável, do pensável. Está lá, bem perto, mas inassimilável. Isso
solicita, inquieta, fascina o desejo que, no entanto, não se deixa seduzir. Assustado,
ele se desvia. Enojado, ele rejeita. Um absoluto o protege do opróbrio, com orgulho
a ele se fia e o guarda. Mas, ao mesmo tempo, mesmo assim, esse elã, esse espasmo,
esse salto é lançado em direção de um outro lugar tão tentador quanto condenado.
Incansavelmente, como um bumerangue indomável, um polo de atração e de
repulsão coloca aquele no qual habita literalmente fora de si (KRISTEVA, 1982, p. 1,
tradução minha65).

Desse modo, estão Alvarado (2018) e Cohen (2000) descrevendo processos similares:
abjeção e monstruosidade funcionam como válvulas de escape para expurgar aquilo que
ameaça as fronteiras de constituição do Eu. Provocam, simultaneamente, um “prazer
escapista” ao servir de alter ego, um Outro Eu no qual posso expiar minhas monstruosidades,

65
No original: “There looms, within abjection, one of those violent, dark revolts of being, directed against a threat
that seems to emanate from an exorbitant outside or inside, ejected beyond the scope of the possible, the
tolerable, the thinkable. It lies there, quite close, but it cannot be assimilated. It beseeches, worries, and
fascinates desire, which, nevertheless, does not let itself be seduced. Apprehensive, desire turns aside;
sickened, it rejects. A certainty protects it from the shameful—a certainty of which it is proud holds on to it.
But simultaneously, just the same, that impetus, that spasm, that leap is drawn toward an elsewhere as
tempting as it is condemned. Unflaggingly, like an inescapable boomerang, a vortex of summons and repulsion
places the one haunted by it literally beside himself”.
84

e uma ameaça horrorosa de desabamento de si. Corpos monstruosos e abjetos carregam o


indesejável da sociedade que os cria e são bodes expiatórios para purgar os pecados. Socializar
corpos enquanto abjetos funciona como um exorcismo comunitário e publicizar o processo –
aqui, as mídias têm papel de destaque – serve de catecismo para pedagogizar outros corpos
a não cruzarem as fronteiras que os constituem enquanto aceitáveis (COHEN, 2000). Bauman
(1998, p. 8) é taxativo quando afirma que “nada predispõe ‘naturalmente’ os seres humanos
a procurar ou preservar a beleza, conservar-se limpo e observar a rotina chamada ordem”,
sendo necessário, então, obrigá-los a “respeitar e apreciar a harmonia, a limpeza e a ordem”.
Pois o processo de tornar algo/alguém abjeto, e os sofrimentos que isso acompanha, é
condição necessária para aprender a habitar o mundo moderno através de uma coerção
dolorosa.
Seguindo com Alvarado (2018), avançamos na discussão a fim de compreender o
movimento de um grupo de artistas latino-americanos que, cansado de refutar a abjeção que
lhe é imposta, decide tomá-la para si e fazer dela a estética de seus trabalhos. É por esse
caminho que ela acaba por conjecturar uma “teoria estética da abjeção”, a partir da
perspectiva kantiana do sublime, o que se mostra de extrema valia para pensar as
performances de Hija de Perra.
Para o iluminista Immanuel Kant (1724-1804), belo e sublime são categorias diversas
e de efeitos igualmente desiguais. O belo, tão almejado pela Modernidade, se caracterizaria
por uma relação de similaridade ou representação com o que é representado; é consensual,
não causa perturbação, provoca um prazer positivo, é moralmente bom, eleva a mente e é
reconhecido enquanto belo. Está dissociado de uma experiência empírica e deve se preocupar
estritamente com a representação, obliterando as condições daquilo que é representado.
“Para Kant, o espectador ideal, ou juiz de gosto, portanto, deve ser desinteressado. O
julgamento estético puro não pode ser manchado por aprazamento empírico” (ALVARADO,
2018, p. 13, tradução minha66). Novamente, a pureza se mostra como um ideal na topografia
do corpo, em uma suposta dissociação entre a mente elevada capaz de fazer juízos estéticos
e o corpo baixo, impuro, por causa da suscetibilidade aos efeitos empíricos da matéria. Essa
visão, como vimos com Castro-Gómez e Grosfoguel (2007) no primeiro capítulo, permanece
até os dias atuais na tentativa de produzir um conhecimento puro expurgado das marcas do

66
No original: “For Kant, the ideal spectator, or judge of taste, therefore, must be disinterested. Pure aesthetic
judgment cannot be tainted by empirical delight”.
85

corpo que o produz. No julgamento estético kantiano, seria preciso suprimir todas as
vicissitudes do intérprete para que haja rigor crítico: questões de sexo, gênero, raça, classe,
não apenas não deveriam interferir como, supostamente, seriam possíveis de serem
ignoradas na experiência estética.
Ao mesmo tempo, Kant elaborou outra reação afetiva possível, o sublime: “um
acionamento estético acionado mais pelo desprazer do que pelo prazer, que capturaria os
limites do imaginável” e é descrito como uma “experiência negativa dos limites” (ALVARADO,
2019, p. 14, tradução minha67). Trata-se de uma categoria útil para pensar a arte
contemporânea que, ao romper com os formalismos e tentar separar a arte da beleza, estaria
mais condizente com o sublime do que com o belo kantiano.

Kant descreve o sublime como diretamente ligado à emoção em oposição direta ao


prazer desprovido de emoção do belo. Diferentemente dos limites de forma do belo,
o sublime pode ser acionado por objetos sem forma, produzindo o que Kant
descreve como um “prazer negativo” (ALVARADO, 2019, p. 14-15, tradução
minha68).

Logo, o sublime é um paradoxo impossível de ser representado justamente por ser a


não-representação. E, ao não ser representável, comporta aquilo que não pode ser contido
pelos limites, que vaga para o sem limite do pensamento. Carrega em si uma proximidade
afetiva com o desconhecido, o maravilhoso, o medo, o encantamento, o terror. Alvarado
(2018, p. 15) relaciona o sublime kantiano, em sua dissolução de limites e trama de afetos
contraditórios, com a abjeção do queer, que provoca repulsa e atração. É uma categoria
pertinente para pensar manifestações que atravessam o território do belo e se enroscam com
os “sentimentos difíceis” pelo terror e maravilhamento do sublime queer. Uma estética do
abjeto se constrói, portanto, por uma dificuldade de narrar e temporalizar, deixar o
espectador incerto de sua experiência.
Nesse lugar de “fissura” possível pelo sublime kantiano e pela abjeção, Alvarado
(2018, p. 14; p. 16) enxerga uma possibilidade de ler o fazer sentir de artistas que usam a
incorporação do abjeto para provocar o espectador em direção ao “indiscernível, inominável,

67
No original: “[...] an aesthetic judgment, triggered more by displeasure than pleasure, which captures precisely
the limits of the imaginable. Described as about ‘negative experiences of limits […]”.
68
No original: “Kant describes sublimity as directly connected to emotion, as opposed to the specifically
articulated um-emotion-like pleasure of beauty. In distinction to the form-boundedness of beauty, a judgment
of the sublime can be triggered by objects without form, producing what Kant describes as ‘negative
pleasure’”.
86

indeciso, indeterminado e irrepresentável”. São sujeitos acionadores de uma “sensibilidade


antinormativa”, que se apropriam do abjeto e de um desejo de provocar nojo.
Com essa estratégia estética, eles se posicionam politicamente não renegando a
abjeção infligida a seus corpos e desinteressados em terem suas subjetividades reconhecidas
através de políticas assimilacionistas. Em vez disso, acolhem a abjeção simbólica de seus
corpos – não-heterossexual; não-homem; não-branco; não-ocidental; não-rico – para
performá-la esteticamente. Seguem tecendo modos de subjetividades interessados nos
“efeitos negativos” da repulsa, do nojo, da profanidade (ALVARADO, 2018, p. 60).
As potencialidades de se apropriar da abjeção também têm sido pensadas por outros
autores, como a cubana radicada nos Estados Unidos Juana María Rodriguez. Divergindo da
proposta decolonial de eliminação da abjeção racializante, em sua pesquisa sobre o prazer
dos desejos vergonhosos capturados na pornografia, ela enxerga uma vazão a imaginários
sexuais e propõe reclamar para si a abjeção como parte de uma autoconstituição erótica de
construção de mundo. Alvarado (2018) cita o trabalho de Rodriguez por compartilhar de sua
visão no que tange ao “potencial de criação de mundo” da abjeção. Mas ela faz uma ressalva
para não cair em uma possível fetichização do abjeto: “Para deixar claro, não estou centrando
uma dinâmica de desejo ontológico – um desejo de ser abjeto – mas um desejo de reconhecer
um lugar social [da abjeção] e as estratégias para transformar esse reconhecimento em uma
força desestabilizante” (ALVARADO, 2018, p. 11, tradução minha69). É um acolhimento e
inversão da abjeção para expor e desestabilizar a própria dinâmica que configura o que é
aceitável e o que deve ser renegado.
A estética da abjeção pode ser acionada em produções diversas, contudo, nota-se
um atravessamento que as conecta pela não-linearidade, não-sincronia e a provocação de
afetos negativos e subjetividades tensionadoras dos padrões modernos de ordem, beleza e
pureza. Conforme sintetiza a própria Alvarado (2018, p. 23, tradução minha70):

Performances abjetas oferecem um aterrorizante e movente vislumbre de uma


dinâmica merecedora do risco de tirar o poliéster colorido que cobre as políticas de
respeitabilidade, de tal modo que possamos, talvez, nos relacionar com a difícil e
promissora alteridade da abjeção latina.

69
No original: “To be clear, I am not centering here on a dynamic of ontological desire – a desire to be abject –
but one of recognition of a social location and strategies to propel this recognition into a destabilizing force.”.
70
No original: “Abject performances offer us a terrifyingly moving glimpse of a dynamism worth the risk of
unfurling the polyester iridescence that cloaks respectability politics so that we might engage with the
difficulty and promise of Latinidad’s abject otherness.”.
87

Nesse sentido, entendo que Hija de Perra articula essa estética da abjeção descrita
pela autora ao se valer de elementos contraditórios aos ideais do projeto de Modernidade.
HDP invoca o grotesco, a imundície e a desordem no modo como se veste e desenha o próprio
rosto, em suas narrativas escatológicas-venéreas-profanas, na heterogeneidade de suas
produções e no modo histriônico com que se apresenta publicamente.
Além disso, a normatividade e a respeitabilidade citadas por Alvarado (2019), e
provocadas pelos afetos negativos (ou afetos abjetos, como prefiro chamar) suscitados pelas
performances que se valem de uma estética da abjeção, não são senão a normatividade
trazida no convés dos navios colonizadores, a própria “matriz colonial do poder” denunciada,
entre outros, por Pedro Paulo Gomes Pereira (2015) e indissociável da Modernidade. Tornar
visível a abjeção simbólica e vomitar afetos negativos, tal como HDP faz, é um expurgo
simbólico dessa matriz e uma via possível para retomar a posse de si.

2.7.3 Exorcismo simbólico da colonialidade e a dimensão da (des)possessão

Diferentemente do que se imagina no senso comum, as independências das últimas


colônias nos séculos XIX e XX não foram suficientes para encerrar a exploração de populações
periféricas no mundo. O que aconteceu, de fato, com tais eventos foi uma transição de um
sistema de abusos explícitos para outro menos evidente. Ou, como definem Santiago Castro-
Gómez e Ramón Grosfoguel (2007), do “colonialismo moderno” para a “colonialidade global”.
Segundo eles, ainda experienciamos uma divisão internacional do trabalho entre
centro e periferia tanto quanto as hierarquias étnico-raciais, espirituais, epistêmicas, sexuais
e de gênero impostas pela “matriz colonial do poder”, a lógica, assim chamada por Anibal
Quijano, da dominação política e econômica imbricada no sistema colonial, mas que não
findou com a independência das colônias (PEREIRA, 2015). Por isso, a distinção entre
“colonialismo” e “colonialidade”: o primeiro tem a ver com um sistema jurídico-administrativo
que vigorou em determinado período histórico, enquanto o segundo está correlacionado a
isso, mas é mais amplo, pois implica na matriz colonial do poder.
A lógica de tal matriz, ensina Pedro Paulo Gomes Pereira (2015), usa diferenças
culturais como valores para hierarquizar populações e regiões do mundo, criando, assim,
zonas inferiores e, consequentemente, sujeitos menores, abjetos. Marcadores geopolíticos,
88

de raça e de gênero, outrora indicadores de diferenças culturais, passam a ser usados para
classificações epistêmicas e ontológicas.
Walter Mignolo (2007) defende que não é possível haver Modernidade sem
colonialidade, pois esta é intrínseca à primeira. A Modernidade como formação do capitalismo
mundial no século XVI foi justamente forjada na matriz colonial do poder, que utiliza faltas ou
excessos – assim considerados por seus moldes – como marcadores de diferenças coloniais e,
portanto, legitimadores da exploração/domínio/conflito de raça, gênero e trabalho
(BALLESTRIN, 2013).
O que, então, teria mudado com a independência das colônias? De acordo com Castro-
Gómez e Grosfoguel (2007), as formas de dominação, não a estrutura das relações entre os
centros e as periferias.
Eles defendem:

As novas instituições do capital global, tais como o Fundo Monetário Internacional


(FMI) e o Banco Mundial (BM), assim como organizações militares como OTAN, as
agências de inteligência e o Pentágono, todas formadas depois da Segunda Guerra
Mundial e do suposto fim do colonialismo, mantêm a periferia em uma posição
subordinada (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 13, tradução minha71).

Tratou-se, então, de um acontecimento jurídico-administrativo, mas que deixou as


hierarquias estabelecidas intactas. Os discursos e as estruturas de poder eurocêntricos,
racistas, homofóbicos e sexistas vomitados por machos heterossexuais europeus sobre os
territórios, que o egocentrismo da expansão colonial lhes dizia que haviam descoberto,
sobreviveram a essa primeira descolonização ocorrida com a independência das colônias
espanholas, inglesas e francesas, no fim do século XIX e início do XX (CASTRO-GÓMEZ;
GROSFOGUEL, 2007).
É para expor e erradicar esses fragmentos tão vívidos e presentes nas terras inferiores
dos países de Terceiro Mundo, periféricos, em desenvolvimento, entre tantas outras
classificações hierárquicas empregadas pela colonialidade do poder, que um grupo de
intelectuais latino-americanos com atuação em universidades estadunidenses se articularam,
nos anos 90, para formar o Grupo Latino-Americano dos Estudos Subalternos.

71
No original: “Las nuevas instituciones del capital global, tales como el Fondo Monetario Internacional (FMI) y
el Banco Mundial (BM), así como organizaciones militares como la OTAN, las agencias de inteligencia y el
Pentágono, todas conformadas después de la Segunda Guerra Mundial y del supuesto fin del colonialismo,
mantienen a la periferia en una posición subordinada.”.
89

A princípio, a proposta desses intelectuais estava profundamente afetada pelo Grupo


dos Estudos Subalternos do sul-asiático, formado nos anos 1970 para construir uma crítica à
historiografia indiana produzida por europeus ocidentais e pelo nacionalismo indiano
eurocêntrico (BALLESTRIN, 2013). Todavia, os latino-americanos começaram a ter algumas
divergências internas e a questionarem o espelhamento da crítica sul-asiática ao contexto da
América Latina, que possui suas próprias especificidades de dominação e resistência. Mignolo
(2007) observa, inclusive, que não houve, por parte da crítica sul-asiática e dos estudos pós-
coloniais, de modo geral, uma ruptura epistemológica completa com o pensamento
eurocêntrico, pois ela tem como “pontos de apoio” Michel Foucault, Jacques Derrida e
Jacques Lacan, posicionando-se, então, entre o pós-estruturalismo francês e as experiências
dos intelectuais do período colonial.
Por isso, em 1998, o Grupo Latino-Americano dos Estudos Subalternos se desfez para
se reagrupar com outra configuração, no mesmo ano, como Grupo
Modernidade/Colonialidade. E, em 2005, foi incorporado o termo “giro decolonial” à
discussão (BALLESTRIN, 2013), criado por Nelson Maldonado-Torres para explicitar ainda mais
a necessidade de um segundo processo de descolonização, a fim de dar conta, também, de
uma independência epistêmica, teórica e política. Tratava-se de um exercício para se abrir a
possibilidades outras, que não moldadas pela matriz colonial do poder. Eram propostas por
economias-outras, políticas-outras, subjetividades-outras (MIGNOLO, 2007), teorias-outras
(PEREIRA, 2015). Saberes que não apenas reconhecessem, mas incorporassem as
especificidades locais.
Conforme Mignolo (2007) faz questão de pontuar, contudo, a proposta do Grupo
Modernidade/Colonialidade não significa que a prática epistêmica decolonial já não existisse
nas Américas. Muito pelo contrário, inclusive. Em sua proposta de adotar referenciais-outros,
não eurocêntricos, o autor identifica uma genealogia decolonial no pensamento indígena
desde o século XVI, pois, como ele diz, trata-se de um movimento surgido junto à própria
imposição da Modernidade nas colônias. E se para os estudos pós-coloniais Foucault, Derrida,
Lacan, entre outros eurocêntricos, ainda eram as referências, o pensamento decolonial
identifica sua genealogia em trabalhos como o Nueva Corónica y Buen Gobierno (1616), do
nativo Waman Poma de Ayala, e o Thoughts and Sentiments on the Evil of Slavery (1787), do
escravo liberto Ottobah Cugoano, ambos “tratados políticos decoloniais que, graças à
90

colonização do saber, não chegaram a compartilhar as mesas de discussões com a teoria


hegemônica de Maquiavel, Hobbes ou Locke” (MIGNOLO, 2007, p. 28).
Preparemo-nos para mais uma orgia teórica, pois à proposta do “giro decolonial”
somo o “giro xamânico” e sigo caminho com Rose de Melo Rocha (2018b), que pensa as
dimensões mágicas e simbólicas do capitalismo a partir de perspectivas ameríndias. Nessa
orgia, profano sua leitura para pensar também tais dimensões na colonialidade. Quando
analisa o capitalismo contemporâneo, Rocha (2018b) desenha engendramentos entre as
lógicas capitalistas e a constituição de imaginários e sensibilidades dos sujeitos em seus modos
de pensar, agir e sentir. Ela identifica, na ausculta a que se propõe, os pontos de recorrência
atravessadores do consumo em sociedades pós-industriais e pós-massivas. Um desses pontos
é a (des)possessão e os paradoxos que ela carrega.
Algumas considerações sobre a polissemia da possessão são cartografadas pela
autora: a posse (de bens e propriedades) como valor instituído no projeto de Modernidade
do capitalismo; a ambivalência das possessões por espíritos (bons ou maus); adictos (dos
diversos tipos) que possuem adicções e são por elas possuídos (tão frequente em nossa
sociedade pós-orgástica na qual nos tornamos reféns de um gozar desenfreado); e as
despossessões excludentes, processos de expropriação dos corpos, dos gêneros, das
sexualidades e das cidades.
Se Rocha (2018b) faz referência à narração antropológica de pactos demoníacos para
obter sucesso na secularizada e industrial Modernidade, nos quais se abdica de si a fim de
possuir as benesses exaltadas pelo capitalismo, faço uma interferência no texto para narrar
uma cena de Empaná de Pino (EMPANÁ DE PINO [...], 2013), o longa-metragem protagonizado
por Hija de Perra que contribui de modo incisivo, e muito particular nos termos da própria Hija
de Perra, à discussão da possessão como a estou construindo.
No longa trash, HDP é uma viúva que abre os portões do Mal e desce ao inferno para
negociar com Zapanala, um demônio capaz de trazer de volta à vida Caballo, o marido que ela
mesma matou. “Como pude pensar que matá-lo faria eu deixar de amá-lo? Agora, o amo
mais”, ela desabafa em uma consulta com a vidente que conta sobre a possibilidade do pacto
demoníaco. Possuída pelo amor do marido a ponto de perder as próprias faculdades mentais,
entendo o assassinato de Caballo como um ritual a um só tempo de posse e despossessão:
uma tentativa de retomar a posse de si e ser despossuída pelo amor desse homem. “Não sou
como todas as mulheres, muito menos sou de sofrer por um homem”. Mas, sem se livrar da
91

possessão desse amor e em um liminar de transe e sonho, negocia com Zapanala a posse da
vida de seu amante. Para ressuscitá-lo, o demônio cobra a maior quantidade de empanadas
de carne humana que ela já fez. O canibalismo não é uma novidade para ela, famosa pelo
sabor de suas produções cujo ingrediente é secreto a seus clientes – e aqueles que insistem
em saber se tornam recheio. O dispêndio solicitado por Zapanala é outro: o recheio das
empanadas deve ser da carne humana das pessoas mais queridas, próximas e conhecidas de
Hija, ao que ela cede e promove uma chacina na própria casa. Mas Zapanala expõe, então, a
ardilosidade conhecida dos demônios e exige uma última vida, a de sua melhor amiga e
parceira, Perdida. Sucumbindo ao pedido72 e munida de mil empanadas, no último momento,
quando do ritual de ressurreição de Caballo, Perra decide que a vida que lhe faz falta não é a
do amante, e, assim, Perdida é quem ressuscita (Fig. 6).

Figura 6 – Fotogramas do longa-metragem Empaná de Pino

72
A cena da morte de Perdida é particularmente impactante: após tentar matar a melhor amiga com uma barra
de ferro, Perra a persegue por vielas até encurralá-la. Então, coloca uma camisinha (um detalhe curioso) no
cano de um revólver e violenta Perdida, para finalmente atirar nela com a arma ainda dentro da melhor amiga.
Não bastasse, lambe o cano da arma antes de se desesperar e começar a gritar com o que acabara de fazer.
92
93

Fonte: YouTube.

Como no texto de Fausto, de Goethe (1749-1832), os acordos com forças malignas


sempre desequilibram a balança e obrigam o signatário a perder “o domínio de faculdades e
abrir mão de princípios” (ROCHA, 2018b, p. 89). Para possuir de volta a vida de Caballo, HDP
desapropriou seus próximos da posse da vida, negando-lhes o direito de possuí-las. Um
sistema de exclusão comum ao capitalismo (ROCHA, 2018b), diga-se de passagem.
A orgia teórica aumenta quando Rocha (2018b) se vale de Michael Taussig para
fundamentar a (des)possessão. Este analisa grupos rurais na Colômbia e na Bolívia, onde se
dão choques entre a racionalidade produtivista do capitalismo e lógicas tradicionais locais.

Confrontando a forma de mistificação capitalista com o misticismo popular pré-


capitalista, o diabo está presente nos pactos que um trabalhador faz para obter
vantagens no exercício de suas funções no sistema produtivo capitalista, mas
também aparece, posteriormente, nas negociatas dos próprios capitalistas para que
se mantenham no topo da lucratividade (ROCHA, 2018b, p. 90).

O diabo surge, então, como figura de mediação nessa narrativa sobre as negociações
entre capitalismo e tradições locais dos produtores rurais, que exaurem a própria terra e seus
corpos no processo de transfiguração de um fetichismo pré-capitalista, no qual pessoas e
objetos se unem, para um fetichismo capitalista, de subordinação das pessoas às coisas
(ROCHA, 2018b).
94

Na magia circundante entre os pactos demoníacos, há, contudo, resistências diabólicas


dos insurgentes. Tal como Hija de Perra encontra ardilosamente uma brecha no pacto com
Zapanala para devolver a Perdida a posse da vida – “O pacto é reviver a um morto, não? Mudei
de opinião. Não quero reviver Caballo, quero revivê-la [Perdida]” –, há estratégias de
insubordinação engendradas por “posseiros da contracorrente” (ROCHA, 2018b, p. 82) que
reivindicam a posse do que lhes foi expropriado – os corpos, as cidades, os gêneros, as
sexualidades etc.
Ora, sendo a matriz colonial do poder indissociável do capitalismo e do projeto
europeu de Modernidade, conforme aprendido anteriormente, ler o capitalismo por uma
perspectiva ameríndia é também ler as dimensões mágicas da matriz colonial do poder. As
lógicas de posse e hierarquizações descritas por Rocha (2018b) são compartilhadas pela lógica
binária e ficcional do pensamento ocidental, que usurpa corpos, gêneros e sexualidades e os
possui em dicotomias coerentes a uma matriz de inteligibilidade (BUTLER, 2003) –
homem/mulher, masculino/feminino, heterossexual/masculino –, despossuindo-os do direito
a multiplicidades, incoerências e transitoriedades. Desse modo, práticas de entes liminares
como HDP, ou posseiros da contracorrente, se permanecermos com os termos de Rocha
(2018b, p. 81), evocam um “xamanismo pós-moderno que mergulha e desmonta as
expressões subjetivistas e midiatizadas”.
Pois voltemos à cena do show exibida no curta-metragem documental, quando Perra
se faz sangrar (CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012). Ela veste sobre sua
musculatura “masculina” uma prótese de seios grandes. Faz sua apresentação com uma roupa
com dois buracos na altura dos seios para deixá-los à mostra. Sobre o corpo “masculino”
coberto por uma prótese “feminina”, corta as “tetas”, como ela mesma diz. Constrói-se para
se mutilar e fazer sangrar o “leite imundo de uma cadela”73, uma monstruosidade que, se não
foi abortada pelos pais, conforme diz em sua narrativa biográfica ficcionalizada, o é pela matriz
colonial do poder, esse sistema que tenta interditar as existências de entes liminares
insubordinados a suas lentes dicotômicas.
Pois é desse modo, então, que penso não apenas a performance arquivada pelo curta-
metragem documental (a cena do corte dos mamilos), mas todas as performances em vida e
performances em arquivo de HDP como rituais de despossessão. Expurgos simbólicos da

73
Uma das amigas-devassas, Irina ou Perdida, não dá para identificar na escuridão das imagens, comemora no
microfone e pede para o público abrir espaço para que HDP dê seu “leite imundo” e de “cadela”.
95

matriz colonial do poder acionados a cada visualização, a cada momento que sua presença é
invocada e seu corpo – não de carne e osso, mas de luz e de pixel – é conjurado em uma tela,
esse portal de acesso aos deuses que Ana Taís Martins Portanova Barros e Michel de Oliveira
Silva (2018, p. 7; p. 12) descrevem como um espaço “limiar entre o mundo dessacralizado e
profano e a existência sagrada, exemplar e imortal das imagens”, lugar das existências perenes
“in imago”.

Dobras performáticas

Permanecendo mais um pouco no curta-metragem documental, aponto outra


característica que ele me faz ver, as diversas dobras performáticas em HDP: a performer, como
defendo, como uma primeira performance; a performance na casa noturna registrada pelo
documentário como uma segunda performance, ou uma segunda dobra performática; e o
próprio curta como uma terceira dobra performática.
A cada dobra, uma lasca de performance se solta e constitui-se uma performance por
si mesma em uma lógica não de soma, mas de estilhaçamento. Para o francês Jean Baudrillard
(1998), todos possuiriam uma pulsão secreta de proliferação, um desejo de espraiar em todas
as direções. Se “vírus” e “contaminação” foram termos propícios ao filósofo para pensar os
“fenômenos extremos” dos anos 1980 e início de 1990, as dinâmicas de produção,
compartilhamento e consumo (SANTOS, 201774; SHIRKY, 201275) dos anos 2000 fazem deles
pedra de toque ao analisar fenômenos inseridos no contexto pós-massivo da
contemporaneidade, descrito por André Lemos (2007, p. 125):

As mídias de função pós-massiva, por sua vez, funcionam a partir de redes


telemáticas onde qualquer um pode produzir informação, “liberando” o polo da
emissão, sem necessariamente haver empresas e conglomerados econômicos por
trás. As funções pós-massivas não competem entre si por verbas publicitárias e não
estão centradas sobre um território específico, mas virtualmente sobre o planeta. O

74
Consumir, produzir e compartilhar são “três particularidades intrínsecas às tecnologias digitais que, pelo baixo
custo envolvido na experiência e a contínua expansão da base de usuários, rompem a necessidade de uma
infraestrutura tecnológica e humana financeiramente dispendiosa, absolvendo o usuário/produtor de
investimentos vertiginosos e do aval de terceiros para ter seu conteúdo compartilhado” (SANTOS, 2018, p.
61).
75
“Estamos vivendo no meio do maior aumento da capacidade expressiva na história da raça humana. Mais
pessoas podem comunicar mais coisas para mais pessoas do que jamais foi possível no passado, e o tamanho
e a velocidade desse aumento, que foi de menos de 1 milhão para mais de 1 bilhão de participantes no
decorrer de uma geração, fazem da mudança algo sem precedentes” (SHIRKY, 2012, p. 57).
96

produto é personalizável e, na maioria das vezes, insiste em fluxos comunicacionais


bidirecionais (todos-todos), diferente do fluxo unidirecional (um-todos) das mídias
de função massiva.

A lógica pós-moderna de propagação aleatória e insana atinge e contamina a tudo e a


todos em uma metástase digital irascível. E os rastros audiovisuais de Hija de Perra não fogem
a essa dinâmica de espraiamento, possibilitando um novo salto performático na pesquisa-
viagem: se até o momento, olhei para Hija de Perra como uma performance-vida, ou seja,
uma existência que fez de si uma performance deliberada, a partir das dobras performáticas
viabilizadas e potencializadas pela descompressão pós-massiva, doravante, convido quem lê
a avançar por trajetos que sinalizam os rastros audiovisuais não apenas como registros das
performances em vida, mas, também, como performances por si mesmas. O caminho será
tortuoso, mas sigo certo de que o leitor que viajou até aqui já está hipnotizado pela
monstruosidade de nossa cicerone.

2.8 O monstro defeca seus filhos: rastros como performance post mortem

Um dos maiores medos na literatura é a de que os monstros vençam a batalha contra


os homens ou, ainda, que as criaturas superem a seus criadores. A despeito das tentativas de
exilá-los para os cumes das montanhas, as profundezas do oceano, a secura dos desertos, o
escuro das florestas fechadas, Cohen (2000) atesta: os monstros são nossos filhos e eles
sempre regressam. Quando voltam da viagem forçada aos confins do mundo, retornam
sábios, carregando na bagagem um conhecimento sobre a humanidade. E sobre isso,
humanidade, eles nos inquerem em seu regresso. Suas perguntas são afiadas demais para as
fragilidades de nossas supostas certezas. “Eles nos pedem para reavaliarmos nossos
pressupostos culturais sobre raça, gênero, sexualidade e nossa percepção da diferença [...]”
e, talvez, a mais mortal das perguntas, eles nos olham nos olhos e nos atravessam: “por que
os criamos”? (COHEN, 2000, p. 55).
Se homens criam monstros, podem monstros criar monstros? O suíço Paracelsus
(1493-1541), conhecido como “arauto da toxicologia moderna”, “pai da química”, “padrinho
da quimioterapia moderna”, entre outros títulos portentosos, escreveu no século XVI seu Liber
de Homunculis, no qual descreveu uma “pervertida” forma de reprodução característica dos
sodomitas do período. Para esse ícone da medicina moderna, sodomitas não pertenciam à
97

raça humana e eram gerados, em oposição à humanidade da mulher, no ânus de outros


sodomitas. Essa fantasia de reprodução sobrenatural com perversão sexual é descrita por Luiz
Nazário (1998) em seu compêndio sobre monstruosidades na cinematografia. Chamados de
Homúnculus, para diferenciá-los dos humanos, Paracelsus escreveu que tais seres se
alimentavam do esperma depositado em seus ânus e que o apodrecimento da substância os
fertilizaria, gerando outros Homúnculus, não no ventre feminino, mas no ânus dos sodomitas
da Renascença.

Desse ponto de vista, o sodomita seria um autômato de aparência humana, feito de


carne e osso, mas inumano por sua origem e natureza. Paracelsus esboçava os
rudimentos da moderna eugenia, projetando num grupo humano fantasias
sobrenaturais que o arrancavam pela raiz da nossa espécie (NAZÁRIO, 1998, p. 88).

Desde os Homúnculus de Paracelsus76, o ânus permanece carregando o terror


etimológico no seu uso enquanto “território” sexual (do latim, terreo-territor, terror,
aterrorizar) e como critério para a determinação da humanidade e da posse à vida. Acessar o
“cu” é a cancela para sair do registro do humano e ser despossuído da própria vida e liberdade,
pois, conforme apontam Javier Sáez e Sejo Carrascosa (2016), a prática do sexo anal é passível
de pena de morte em oito países no mundo e de prisão em mais de oitenta.
Entre os argumentos utilizados para depreciar o ânus enquanto território sexual, de
acordo com Sáez e Carrascosa (2016), estão sua associação às fezes e o discurso médico do
órgão como parte do aparelho digestivo, e não um órgão sexual nem reprodutor. Não
bastando a irônica observação dos autores de que a boca também não é considerada órgão
sexual pelo discurso médico, o que não impede seus usos sexuais, e a denúncia de [Paul]
Beatriz Preciado77 (2014) sobre uma artificialidade na associação entre órgãos reprodutores e
sexuais, convém, ainda, observar a presença do ânus e seus derivados nos rastros digitais das
performances de Hija de Perra.
Se as fezes são motivo de repúdio ao ânus, pois é seu “odor de putrefação” que
encanta Perra e Perdida em algumas de suas canções do álbum Envergadura, como na
autoexplicativa Nalgas con olor a caca (HIJA DE PERRA [...], 2012a):

76
Contemporâneo de Paracelsus, Leonardo da Vinci seria um Homúnculo, sabidas que são suas diversas
acusações de sodomia na Florença da época (SÁEZ; CARRASCOSA, 2016).
77
Quando publicou o livro citado, Manifesto Contrassexual, Preciado assinava como Beatriz Preciado.
Atualmente, após suas experimentações com autoaplicações de testosterona em gel, passou a assinar como
Paul B. Preciado.
98

Y ya voy, dentro de uma micro


Siento un olor a putrefacción
Proveniente de un intestino
Aniquilado por la infección

Es una obscena ilusión


Que ha penetrado en mi pulmón
Provocando mis orifícios
un fuerto flujo y dilatación

Nalgas con olor a caca


Nalgas, qué satisfacción [2x]

Nalgas com olor a caca [4x]

Nalgas

A todas partes a donde voy


Busco la inmundicia y el hedor
En los parques y los museos
Los cementerios y en el zoo

Los baños públicos son mi pasión


Restregando el culo con devoción

En este instante huelo tu ano


Y me excito con descontrol

Nalgas con olor a caca


Nalgas, qué satisfacción [2x]

Nalgas com olor a caca [4x]

Nalgas

Siéntate en mi cara
con tu olor a caca
Aún tengo tu caca
en mi uña
Me encanta tu olor a caca [2x]

Em outra música, também do mesmo álbum, Violencia intrafamiliar (VIOLENCIA


INTRAFAMILIAR – HIJA [...], 2011), elas compartilham no refrão suas fixações anais: “vem,
mamãe, abre as pernas que vou te fazer cagar / vem, mamãe, bem molhadinha, que vou dar
de costas / [...] ponha vaselina no olho, que vou te fazer cagar / deixe aberta a virilha, que vou
te fazer cagar”.
O ânus é o lugar de onde nascem os monstros de Paracelsus e também por onde se
determina as condições de abjeção, de vida e de morte de determinados corpos, a depender
99

dos usos que se fazem do órgão. Mas é também onde Hija de Perra encontra material (fecal?)
para suas criações e de onde fala, do Cone Sul, esse “cu de mundo” (PELÚCIO, 201478). Não à
toa, narra-se monstro. Ousou roubar o fogo da vida e conceber a si mesma. Em uma
(auto)gestação profana, pois abdicando de pai e de mãe, criou Hija de Perra, uma
performance-vida (ou vida-performance, o que viria primeiro?), nos termos discutidos
anteriormente. Todavia, seu corpo encarnado e incorporado (por essa performance que foi
Hija de Perra) morreu em 25 de outubro de 2014 – não sem antes materializar o delírio de
Paracelsus e defecar no mundo rastros digitais que, como rebentos profanos, excedem a
morte da criadora e dão continuidade ao seu legado de sacrilégio e imundície.

A memória da performance ou pode o efêmero ser capturado?

Richard Schechner (2013, p. 30, tradução e grifo meus) faz uma pergunta à qual ele
mesmo responde: se a pintura está no objeto físico do quadro e o romance nas palavras
escritas, onde está a performance? “[N]ão está em nada, e sim no entre”. Uma vez, então, que
a performance não existe enquanto coisa, apenas como ato, movimento, seria ela impossível
de materialização? Avessa, talvez, a ser salva, guardada, arquivada, transmitida?
Pois a preservação e arquivamento da performance é ponto nevrálgico e de conflito
no campo, relacionando-se diretamente com esta pesquisa-viagem: se o caminho não se dá
pelas performances em vida de Hija de Perra, mas pelos rastros digitais que elas deixaram no
mundo, não se está investigando a performance da artista no sentido das performing arts, do
acontecimento único e efêmero. Contudo, a característica performática de vida autômato que
os rastros digitais de HDP ganham no contexto pós-massivo não pode ser ignorada. Eles se
proliferam na velocidade da internet; desaparecem e ressurgem; dão continuidade às
provocações, sensações e movimentações das performances em vida de HDP. Taylor (2012, p.

78
“Na geografia anatomizada do mundo, nós nos referimos muitas vezes ao nosso lugar de origem como sendo
‘cu do mundo’, ou fomos sistematicamente sendo localizados nesses confins periféricos e, de certa forma,
acabamos reconhecendo essa geografia como legítima. E se o mundo tem cu é porque tem também uma
cabeça. Uma cabeça pensante, que fica acima, ao norte, como convêm às cabeças. Essa metáfora morfológica
desenha uma ordem política que assinala onde se produz conhecimento e onde se produz os espaços de
experimentação daquelas teorias. Esta mesma geopolítica do conhecimento nos informa também em quais
línguas se pode produzir ciência e, em silêncio potente, marca aquelas que são exclusivamente ‘produtoras de
folclore ou cultura, mas não de conhecimento/teoria’ (Mignolo, 2000 apud Grosfoguel, 2008, p. 24)” (PELÚCIO,
2014, p. 10).
100

166, tradução minha79) segue se(nos) perguntando: “Quantas vidas tem a performance: a de
aqui e agora [...], as do passado que podemos imaginar por meio de fotos, descrições e
documentações de arquivo?”.
Conforme escrito anteriormente, entre os sentidos do termo performance a circular
no início do século XX, estava o de associá-lo a práticas de artistas que queriam romper com
as tradições das belas artes. Nesse sentido, Taylor (2013) encontra germens da performance
no trabalho de uma miríade de artistas: nos futuristas, dadaístas e surrealistas europeus,
interessados mais no processo do que no produto final; na arte não-objetual mexicana; além
de traços de performance nos trabalhos dos brasileiros Flavio de Carvalho, Helio Oiticica e
Ligia Clark. Havia no campo das artes, de modo geral, um posicionamento questionador em
relação à ausência, até então, do corpo dos artistas em suas obras, o que resultou diretamente
no desenho do que viria a ser chamado de performing arts, nos anos 1960 e 1970 (TAYLOR,
2012). A arte materializada em um objeto era atacada, privilegiando-se os processos e as
práticas. Com isso, surgiram alguns impasses, como o do arquivamento e da memória das
performances. Como coloca Schechner (2013), qualquer que seja a performance, uma hora
ela acaba: a cortina fecha, o público se levanta, os dançarinos vão se trocar no camarim, o
performer vai para casa. Isso significa que a performance acabou?
Como tudo no que tange aos estudos da performance, essa resposta não é simples e o
mais apropriado seria pensá-la como um sonoro “depende”. Depende das lentes que o
investigador decide adotar e da prática investigada. Alguns autores, como Peggy Phelan (1993
apud TAYLOR, 2012), entendem a performance como impossível de ser capturada, pois
nenhuma forma de registro documental é capaz de capturar o ato ao vivo. A vida da
performance é a do presente:

A performance não pode ser guardada, gravada, documentada, sem que passe a
participar [do sistema] da circulação da representação [...]. O ser da performance,
como a ontologia da subjetividade [que proponho aqui] [...], torna-se performance
através do desaparecimento (PHELAN, 1993 apud TAYLOR, 2012, p. 143, grifo no
original, tradução minha80).

79
No original: “¿Cuántas vidas tiene el performance: el de aquí y ahora [...], las del pasado que podemos
imaginarnos por medio de fotos, descripciones y documentación de archivo?”.
80
No original: “El performance no puede ser guardado, grabado, documentado, sin que participe em la
circulación de la representación [...] El ser del performance, como la ontologia de la subjetividad propuesta
aqui, deviene performance a través de la desaparición.”.
101

Para autores como Peggy Phelan, performance é um ato efêmero, uma desaparição e
o desaparecimento é condição inalienável de sua constituição. Por essa perspectiva, Taylor
(2012) reconhece que, de fato, uma performance não pode ser guardada. Uma foto ou um
vídeo de uma performance não são a performance. Mesmo que um espetáculo, um evento,
uma cerimônia se repita, nunca será igual, pois o artista, o público, o contexto histórico e o
momento não serão os mesmos (TAYLOR, 2012). Por esse caminho, a performance resistiria à
fetichização do original. Uma vez que Preciado (2014) já ensinara que para haver original é
preciso haver cópia – sendo que primeiro nasce a cópia, depois o original –, não existe uma
performance original, pois ela não pode ser copiada. A efemeridade e incapturabilidade geram
impasses não apenas à documentação e arquivamento, como também à transmissão e
circulação.
Quando a coreógrafa estadunidense Martha Graham morreu, em 1991, seu herdeiro
declarou que a dança da artista era sua propriedade (como se fosse um objeto) e não poderia
ser ensinada nem encenada. De modo semelhante, ainda que com outros propósitos, a
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) tenta
salvaguardar, através de suas políticas de conservação de patrimônio imaterial, a
intangibilidade de danças, rituais, costumes e músicas (TAYLOR, 2012).
Todavia, conforme aprendemos, nem a performance nem os estudos sobre ela são
estáveis e disciplinados. Emaranhada aos contextos nos quais é tecida, a tapeçaria da
performance ganha novas tramas no pós-massivo da contemporaneidade. Se, pela
perspectiva exposta até aqui, a performance é desaparição, do que se constitui o legado de
um performer? É possível haver um legado artístico de efemeridades, desaparições,
intangibilidades? Como preservar e dar continuidade ao efêmero? Pois de Março a Maio de
2010, houve um grande experimento sintomático dessa questão, que passou a atravessar a
carreira daqueles que ajudaram a colocar em curso as performing arts: a retrospectiva The
Artist is Present, da performer sérvia Marina Abramovic (1946-). Se outrora a artista declarara
que performance não se repete, na retrospectiva de sua carreira no Museu de Arte Moderna
de Nova York (MoMA), nos Estados Unidos, ela acabou por introduzir um termo
ferrenhamente criticado por Taylor (2012), “reperformance”. Além de um modo de pensar
sobre preservação e continuidade da performance, a ocasião apontou para a reativação e a
proteção de um legado artístico nos moldes daquilo que havia sido diretamente atacado
quando os performers tiraram a arte dos museus, reintroduzindo-a no lugar de onde fugiu: “a
102

performance regressou ao museu, já não mais como intervenção radical, e sim como uma
forma de arte totalmente integrada e legitimada pelas instituições culturais” (TAYLOR, 2012,
p. 147, tradução minha81).
A crítica de Taylor (2012) não é à reflexão sobre preservação e continuidade, mas ao
modo como isso ocorreu. De acordo com a autora, houve mais do que uma “mumificação” da
performance, houve uma “MoMAficação”. A tentativa de “reperformances” é execrada pela
autora, uma vez que, segundo ela, trata-se de um contrassenso. O problema não seria realizar
uma performance do mesmo modo que já ocorrera, pois, conforme já exposto, cada uma é
única por si só. Mas o prefixo “re” é uma heresia: indica repetição, uma dimensão mimética
(que acompanha o prefixo em outras situações, como na reprodução e na representação) e a
restauração de um suposto original. “Esta retrospectiva de Abramovic, como todas, é
conservadora, é olhar para trás, conservar o que foi, não o que virá”, critica Taylor (2013, p.
147, tradução minha82).
Mas, atenção: preservar uma performance não é o mesmo que a reproduzir. Algumas,
realmente, são efêmeras e desaparecem, como em alguns casos das performing arts, todavia,
mesmo esse rótulo – performing arts – não é sólido, sendo composto por diversas práticas.
Algumas “performances híbridas” (TAYLOR, 2012) combinam materiais como fotografias e
vídeos em sua execução; performers resgatam registros de performances pregressas para
comporem uma nova. Essas situações diferem-se da MoMAficação por serem continuações,
novas ativações, não reproduções. Há, ainda, performances que só são conhecidas pelos
registros de fotos e vídeos, como os trabalhos da cubana Ana Mendieta; outras constituídas
por materiais digitais que nunca tiveram originais em outros meios; e, ainda, as que
promovem interações entre os corpos de artistas e de hologramas. (TAYLOR, 2012).
Soma-se à discussão sobre o arquivamento um vetor contemporâneo impossível de
ignorar, a virada digital. Sendo a performance uma esponja viva, pulsante, devoradora do seu
entorno, ela não permaneceria alheia às transformações do contexto sociocultural pós-
massivo. Peggy Phelan (apud SCHECHNER, 2013) ressalta o que chama de “paradigma
eletrônico” como um evento epistêmico de tensão, pois os estudos da performance tratam-
se de um campo, segundo ela, erigido sobre aquilo que desaparece, o que não pode ser

81
No original: “El performance ha regresado al museo, ya no como intervención radical sino como una forma de
arte totalmente integrada y legitimizada por las instituciones culturales.”.
82
No original: “Esta retrospectiva de Abramovic, como todas, es conservadora, es decir, el propósito es ver hacia
atrás, conservar lo que há sido, no loque vendrá.”.
103

arquivado, mas que não está alheio à potencialidade do digital. No “mundo híbrido” da virada
digital, no qual é difícil distinguir o orgânico do eletrônico, há novos obstáculos, mas também
novos modos de performatizar subjetividades e consumir outras performances (TAYLOR,
2012; AMARAL; SOARES; POLIVANOV, 2018).
A fricção entre a efemeridade e as possibilidades de registro explicitam ainda que,
“embora o corpo ao vivo tenha sido o elemento central na performance desde que surge como
ato estético e político nos anos 60, não se pode fetichizá-lo ao ponto de fazer a performance
depender dele para sua existência e definição” (TAYLOR, 2012, p. 152, tradução minha83). Por
esse caminho, “performances digitais” (TAYLOR, 2012, p. 152), como as acionadas pelos
rastros digitais de HDP, não são menos performances por surgirem “nulodimensionais”84
(BAITELLO JUNIOR, 2010), desprovidas das dimensões espaciais da carne (altura, largura e
profundidade). E, uma vez que não são as performances ao vivo de HDP, mas que entendo
serem mais do que frios registros técnicos, tais rastros digitais produzem novas afetações e
transgressões, dando continuidade à performance Hija de Perra e, ao mesmo tempo,
desdobrando-se em novas performances, cujas especificidades serão exploradas à frente.
Performances digitais, como as constituídas pelos rastros de HDP e os exemplos
anteriores, sugerem que, diferentemente das primeiras performing arts do século passado, o
corpo de carne e osso do performer não precisa compartilhar do mesmo tempo e espaço dos
corpos da audiência para que se deem ativações e afetações político-estéticas. “A força e
presença do artista se faz sentir, ainda que a distância. O público tem que completar a
performance” (TAYLOR, 2012, p. 79, tradução minha85). As tecnologias pós-massivas
atravessam o circuito das performances e diversos sentidos de presença transgridem a
exigência de outrora do corpo encarnado. Como é próprio do campo, reconhecer isso é
adicionar novas camadas de complexidade aos estudos da performance.
De acordo com Amaral, Soares e Polivanov (2018, p. 70), essa perspectiva da
performance digital e das possibilidades de estudar qualquer performance a partir do arquivo
de registros midiáticos sugere duas naturezas de investigação:

83
No original: “Aunque el curpo en vivo ha sido el elemento central en el performance desde que surge como
acto estético y politico en los años ’60, no hay que fetichizarlo a tal grado que el performance depende de él
para su existência y definición.”.
84
A passagem da tridimensionalidade do mundo para a nulodimensinalidade será discutida no capítulo 3,
Devorar e ser devorado, do consumo à consumação.
85
No original: “La fuerza y presencia del artista se hace sentir, aun a distancia. El público tiene que completar el
performance.”.
104

[U]ma que opera sobre a noção de performance em arquivo, ou seja, atos


performáticos registrados em suportes midiáticos, passíveis de recuperação a partir
do armazenamento material destes registros; outra que trata da performance em
repertório, ou seja, aquela que “desaparece”, está registrada na memória dos
viventes, a encenação que resultou de um estar-junto momentâneo e efêmero.

A discussão sobre performance em arquivo e em repertório é proposta por Diana


Taylor (2012) e se apresenta para os autores como um rico aporte ao campo da Comunicação,
pois possibilita olhar para as dinâmicas de partilha, experiência e do
compartilhável/compartilhado nas redes. As performances digitais de Taylor (2012) dialogam
com as “performances nas mídias” de Amaral, Soares e Polivanov (2018, p. 76), cujos pontos
de parada, convergência, contemplação, engajamento e desengajamento oferecem
vislumbres sobre sociabilidades, diferenças e políticas de visibilidade, afinal, o que se registra,
quem registra e com quais propósitos é mais que pertinente quando se discute questões de
arquivamento e exposição. Entendamos a diferença entre arquivo e repertório, na concepção
de Taylor (2012), uma das fontes de Amaral, Soares e Polivanov (2018) para perfurar a
Comunicação com os estudos da performance.

Performance em arquivo e performance em repertório

O arquivo é cercado por mitos, entre os quais o de que ele não seria mediado, como
se seus objetos fossem neutros e possuíssem um significado inegável a ser revelado por
qualquer um que o analise; que ele não muda; e que não pode ser corrompido nem
manipulado. Todavia, apenas o fato de fazer parte de um arquivo já significa que o objeto
selecionado para tal foi manipulado, assim como interesses diversos podem fazer com que,
convenientemente, partes ou arquivos inteiros desapareçam ou (re)apareçam. O
conhecimento e a memória transmitidos pelo arquivo se dão pela documentação, composta
por registros diversos, físicos ou digitais, como fotografias, áudios, textos inteiros ou
fragmentados, resíduos, restos arqueológicos etc. Trata-se de uma memória que distingue o
conhecimento daquele que o conhece, pois pode ser acessada em diferentes distâncias
temporais e geográficas, desde que se tenha acesso ao material. Nesse sentido, o arquivo
excede o ao vivo (TAYLOR, 2012).
105

O repertório, por sua vez, é tão mediado quanto o arquivo, mas por outras dinâmicas.
Gestos, narrativas orais, movimentos e todos os atos supostamente impassíveis de serem
capturados e efêmeros compõem a “memória corporal” do repertório, pois é armazenada no
corpo dos envolvidos naquele ato, sejam participações ativas de execução ou passivas de
contemplação. Mas o armazenamento se dá pela mediação do corpo através de processos de
seleção, memorização, internalização e transmissão, o que faz com que o conhecimento e a
memória transmitidos entre os grupos e gerações passem por constantes reatualizações. Esse
arquivo exige a presença física, um estar no momento e fazer parte da produção e reprodução
do conhecimento sendo transmitido através da performance. Divergindo da suposta
estabilidade do arquivo, os atos de repertório são alterados pelos caminhos percorridos em
suas viagens. E se o arquivo excede o repertório em temporalidade e geografia, o repertório
excede o arquivo em sua incapturabilidade. O ao vivo é impassível ao armazenamento e à
transmissão senão pelo corpo, o que não significa dizer que o repertório desaparece 86
(TAYLOR, 2012).
Um pensamento complexo e avesso a dicotomias, na linha do que se encontra em
autores como Preciado (2014) e Rolnik (2006), Taylor (2012) sinaliza que a relação entre
arquivo e repertório não é de verdade versus falso, mediado em oposição a não mediado,
primitivo ou moderno, muito menos sequencial, como se o repertório pertencesse a
sociedades não alfabetizadas e o arquivo a sociedades letradas. Não se trata também de o
repertório pertencer a uma ordem contra-hegemônica, pois confronta a imposição do arquivo
pela escrita das sociedades modernas ocidentais, e o arquivo uma dominação hegemônica,
afinal, há práticas corporais que reforçam sistemas opressivos. Logo, repertório (memória
corporal, como chama a autora) e arquivo (memória documental, como poderíamos chamar)

86
Para Diana Taylor (2012), ignorar a transmissão de conhecimento por outras vias que não a de sistemas de
arquivamento, como a escrita, faz parte de um pensamento colonizador. Frades dos séculos XV e XVI
atestavam o desaparecimento dos povos indígenas das Américas por estes não possuírem sistemas de escrita.
Contudo, conforme a autora advoga, a organização por outro sistema que não o da escrita não significou o
desaparecimento dos povos, pois há outras possibilidades de transmissão de conhecimento e memória
negligenciadas e inferiorizadas pelo pensamento ocidental europeu. De acordo com ela, danças, músicas,
festas e rituais são possibilidades outras. “Nós no Ocidente, temos privilegiado a escrita a tal grau que somente
a palavra escrita teria, supostamente, poder legitimizante. Todo o resto ‘desaparece’ [segundo esse
pensamento ocidental colonizador].” (TAYLOR, 2012, p. 153, tradução minha). O controle social, ela
acrescenta, dá-se não apenas pelo controle dos corpos humanos, mas também pelo controle das artes de
representação, daquilo que pode ser visível. Destarte, para além da força militar, sistemas hegemônicos
também fazem uso de uma força persuasiva, performática e simbólica, tão importante quanto o poderio
militar. O cuidado com uma defesa cega à efemeridade de todo e qualquer tipo de performance, por essa
perspectiva, é passível de ser interpretada como uma contaminação colonial.
106

não se articulam em dinâmicas de oposição. Excedem um ao outro, convergem entre si,


sobrepõem-se. Intercalam-se, friccionam-se, mesclam-se e mediam um ao outro (TAYLOR,
2012).

Aftermath, a continuação da vida da performance

Encontra-se em Schechner (2013) um diálogo eloquente com a discussão de


performance em arquivo que contribui para construir a ideia de uma performance de HDP que
continua mesmo após a morte, e que assim o faz pelas materialidades dos rastros deixados
pela performance-vida. Trata-se da proposta de “aftermath”87 de Schechner (2013, p. 246,
tradução minha88), na qual, basicamente, ele se dedica a pensar sobre a “continuação da vida
da performance”, o que, nitidamente, é de grande valia para o caminho que está sendo
percorrido até aqui.
Primeiramente, é preciso compreender que, embora esquemático e taxonômico, o
autor possui um didático esquema a fim de ilustrar as diversas fases que compõem uma
mesma performance. Sobretudo, ela é composta por “proto-performance”, “performance” e
“aftermath”, sendo tais fases subdivididas. Na proto-performance, há “treinamento”,
“workshop” e “ensaio”. A performance em si é uma combinação de “aquecimento”,
“performance pública”, “eventos/contextos que possibilitam a performance pública” e
“cooldown”. Já o aftermath, que interessa nesta pesquisa-viagem, comporta “críticas”,
“arquivos” e “memórias” (SCHECHNER, 2013, p. 225, traduções minhas89).
Pode soar paradoxal uma pesquisa-viagem que se propõe a caminhar pelas errâncias
se valer de um esquema tão categorizante, especialmente se pensarmos que tanto Hija de
Perra quanto os estudos da performance afrontam vigorosamente o modelo cartesiano de

87
Em inglês, aftermath é um substantivo para se referir ao período e aos efeitos de um evento, geralmente
desagradável. O Cambridge Dictionary usa o seguinte exemplo: “Many more people died in the aftermath of
the explosion”. O dicionário on-line brasileiro Michaelis, por sua vez, traduz a palavra para “resultado”,
“consequências”. Por considerar que se tratam de termos que não dão conta de abarcar os sentidos
empregados por Schechner (2013) no âmbito da performance, decidi manter o uso original em inglês. Cf.
AFTERMATH. In: Cambridge Dictionary. [S. l]: Cambridge University Press, 2020. Disponível em:
https://dictionary.cambridge.org/dictionary/english/aftermath. Acesso em: 20 dez. 2019. AFTERMATH. In:
Michaelis. [S. l.]: Editora Melhoramentos, 2020. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-
ingles/busca/ingles-portugues-moderno/aftermath/. Acesso em: 20 dez. 2019.
88
No original: “The continuing life of a performing is its aftermath”.
89
No original: “Proto-performance: training, workshop, rehearsal; performance: warm-up, public performance,
eventos/contexts sustaining the public performance, cooldown; critical responses, archives, memories”.
107

categorizações. Todavia, tal como já realizado outrora no mapeamento herético do rizoma, as


orgias teóricas, por vezes, resultam em práticas heréticas. Logo, mais do que a sequência
processual e o modo esquemático de Schechner (2013), interessa o que se pode fazer com
isso na fundamentação para o que chamarei de performance post mortem de Hija de Perra.
Desse modo, as contribuições do autor sobre os efeitos a longo prazo das performances,
didaticamente compreendidos na fase de aftermath, são muito bem-vindas e, por isso, é sobre
essa fase que focarei.
De acordo com Schechner (2013), o aftermath começa a partir do momento que “a
cortina fecha” e o performer começa seu processo de arrefecimento, o cooldown. Vale
lembrar que o performer em questão pode ser um cantor, ator ou dançarino quando sai dos
palcos, tanto quanto o anfitrião de uma festa quando seus convidados vão embora, pois a
discussão do autor compreende as performances artísticas tal como as do cotidiano. Pois bem,
continuando, ele entende que o aftermath não tem limite de duração, podendo ser breve e
rapidamente armazenado nas memórias pessoais dos envolvidos na performance – artistas e
público, anfitriões e convidados, por exemplo –; se espalhar pelo “boca a boca” das conversas
cotidianas dos que a presenciaram; ganhar fôlego através das críticas na imprensa, tradicional
e/ou alternativa; e até durar séculos, quando do caso de materialidades arqueológicas ou
midiáticas, como fotos, vídeos, áudios e rastros digitais de qualquer formato.
A maioria dos vestígios das performances contemporâneas acabam por se aninharem
nos “arquivos”, um termo guarda-chuva para Schechner (2013, p. 247, tradução minha90), em
diálogo com Taylor (2012), por abrigar aquilo que pode ser acessado por diferentes “meios
forense-performáticos”: “materiais de arquivo podem incluir gravações de som e vídeo,
materialidades impressas, objetos de cena e outros artefatos – qualquer coisa da ou relativa
à performance”. O arquivo de uma performance pode ser construído por aquele que a
investiga ao acessar e reunir os materiais mencionados, como tem sido feito nesta pesquisa-
viagem, mas também ao entrevistar envolvidos, quando possível; pesquisar sobre os roteiros,
figurinos e objetos; e visitar os lugares onde a performance se deu. Fazer o que Schechner
(2013, p. 247) resume como “reconstruir o que aconteceu”. O arquivo não é apenas formado
por elementos de performances artísticas; no cotidiano, ele é acionado ao tocar objetos

90
No original: “[…] ‘archive’, an umbrella term that means what can be accessed by various performance-forensic
means. Archival materials may include videotapes, films, digital, and sound recordings, printed matter, props
or other artifacts – anything at all from or concerning the performance.”.
108

envolvidos em situações vivenciadas, como cartas, fotografias, desenhos ou o que quer que
ative uma memória e invoque uma performance de outrora.
Tal como Taylor (2012) já pontuara, o arquivo pode gerar novas performances e, como
acrescenta Schechner (2013, p. 249), fazer com que certos “eventos míticos” existam apenas
enquanto efeitos do aftermath. O autor pergunta como imaginamos a cidade de Atlanta, nos
EUA, durante a Guerra Civil de 1864 e como foi a última ceia de Jesus Cristo. As imagens
invocadas, provavelmente das chamas do filme E o Vento Levou (1940) e d’A Última Ceia, de
Leonardo da Vinci, não são os eventos em si nem os registros documentais deles, mas ícones
visuais que constituem a memória coletiva de tal modo que outras produções os utilizam
como fontes enquanto performances estabelecidas e reconhecidas. Por esse caminho, inclui-
se como efeitos de aftermath de uma performance a documentação autogerada (fotografias,
vídeos, gravações de áudios, anotações, folhetos etc.), o impacto que a performance tem no
trabalho e na vida de outras pessoas e as produções geradas a partir disso, como novas
performances, críticas, artigos acadêmicos, entre outras materialidades que discorram sobre
o que já foi.
Concordando com essa linha de pensamento traçada entre a performance em arquivo
de Taylor (2012) e o aftermath de Schechner (2013), Amaral, Soares e Polivanov (2018, p. 71,
grifo meu) alinhavam a costura defendendo que o motor da vida da performance – olin – está
sempre em atividade:

Ainda que certos atos performáticos e seus registros – como shows de música e
apresentações teatrais – possam trazer uma ideia de término ou conclusão dos
mesmos, eles não se encerram em si mesmos, causando afetações, reverberações e
reelaborações mesmo após seu suposto fim e que certamente se iniciam antes de
seu começo. O motor da vida, da performance, não cessa.

Esse posicionamento é afim aos interesses de investigação dos autores, afeitos aos
“atos performáticos arquivados”, ou seja, registros oficiais ou amadores em circulação nos
espaços digitais. Pesquisando de dentro do campo da Comunicação, eles sinalizam a
importância do digital nessa interface Performance-Comunicação, pois não só a cultura digital
viabiliza o acesso ao material em circulação tal como “a própria mediação tecnológica vai
causar afetações nos modos como certos sujeitos, inscritos em territórios geográficos
distintos e espaços online comuns, vão performatizar seus modos de fruição [...]” (AMARAL;
SOARES; POLIVANOV, 2018, p. 73).
109

Influenciado por esse arsenal de autores, penso os rastros digitais da performance-


vida Hija de Perra como performances post mortem oportunizadas na esfera midiática do
contexto pós-massivo. Olhar para elas é investigar como se constroem, o que teatralizam e
quais os possíveis efeitos naqueles que as consomem. Tendo cartografado a performance-
vida através dos rastros audiovisuais e identificado especificidades como a liminaridade na
diegese biográfica, os afetos negativos da estética da abjeção e o exorcismo simbólico da
colonialidade, dedicar-me-ei aos acionamentos provocados pelas performances post mortem
constituídas por rastros digitais, essas criaturas autômatos defecadas por Hija de Perra e
responsáveis por mantê-la no liminar entre a vida e a morte, em um eterno trânsito entre
mundos.

2.8.1 Viralidade mortífera, o medo de ser contaminado pela morte

Para discutir as dobras performáticas em Hija de Perra, já foram citadas brevemente


as forças potentes de “virulência” e “contaminação” das configurações pós-massivas da pós-
modernidade. Façamos como a mariposa e voltemos a circular esse ponto, acrescentando as
metáforas do câncer e da Aids utilizadas por Jean Baudrillard (1998) em seus ensaios para se
referir à configuração social pós-moderna:

É lógico que a Aids e o câncer tenham se tornado os protótipos de nossa patologia


modernidade e de toda a viralidade mortífera. Quando se entrega o corpo às
próteses e às fantasias genéticas, desorganizam-se seus sistemas de defesa. [...]
Entra em metástase: as metástases internas e biológicas são simétricas das
metástases externas que são as próteses, as redes, as ligações (BAUDRILLARD, 1998,
p. 71).

Contextualizar a performance post mortem de HDP nesse cenário de contaminação é


de rica pertinência. Conforme autores do campo ensinaram (TAYLOR, 2012; SCHECHNER,
2013; AMARAL; SOARES; POLIVANOV, 2018), performances são por si mesmas impuras e
nunca estão sozinhas, vêm sempre infectadas de outras performances, seja quando
transmitidas por repertório ou, como neste caso, por arquivo.
Entendo que a “viralidade mortífera” (BAUDRILLARD, 1998) na performance post
mortem de HDP se dá por uma lógica de espraiamento pós-massivo, fazendo-a impassível de
captura, pois não é uma obra sólida e acabada; por se relacionar à discussão dos vírus no
110

contexto digital, não por acaso um vírus no computador é um ataque à máquina; por ser
contaminada por pedaços de performances anteriores que continuam infectando
performances vindouras e aqueles que as consomem em um processo de aftermath; e
também por se configurar, simbolicamente, como uma ameaça de infectar quem a consome
com a morte.
Em uma vertiginosa discussão sobre o interdito ligado à morte, o francês George
Bataille (1987) defende que o cadáver é um objeto angustiante e de ojeriza por ser uma
ameaça explícita ao ser humano, como se fosse capaz de contaminá-lo com a morte. Por isso,
a prática do sepultamento datada das primeiras coletividades humanas.
Isso poderia explicar algumas reações observadas em comentários nos vídeos – “Me
da miedo :v”91 (Usuário Gonzalo Cubillos) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013), “Gracias a Dios se
murió que asco” (Usuário María Vargas) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013), “Y al final muere de
SIDA que bien eso es selección natural” (Usuário TENAMAXTLI Peralta) (DISCURSO DE HIJA [...],
2013) –, pelos quais os autores expressam uma aversão à performance, querendo eles
mesmos sepultá-las, tirá-las do seu campo de visão.
Obviamente, esta é uma hipótese que opera na dimensão do pensamento simbólico,
pois poderíamos inferir pelo pensamento racional que tais comentários estão, em um
primeiro momento, relacionados aos efeitos de sentido da estética da abjeção acionada.
Contudo, Bataille (1987, p. 30) sinaliza “o horror do cadáver enquanto signo da violência e
ameaça de contágio”, o que não pode ser ignorado. Se a inumação, ele conta, desde os
primeiros tempos, tinha o objetivo de proteger o morto da voracidade dos animais, ao mesmo
tempo, ela protegia simbolicamente os que sepultavam do perigo de serem contaminados
pela violência à qual o morto sucumbiu – em última instância, a violência da morte como
devoração da vida. Assim, o sepultamento, nas sociedades domesticadas, é menos para
abrigar o morto do que para salvaguardar os que ficam do “perigo mágico” de serem
contaminados pela violência do morrer. A decomposição do cadáver expõe essa força temível
e agressiva, capaz de aniquilar a materialidade da carne, fazendo do cadáver em putrefação a
“imagem do destino” (BATAILLE, 1987, p. 31). Podemos não acreditar mais nessa “magia

91
Os comentários dos usuários serão transcritos tal como estão publicados, incluindo símbolos e possíveis erros
ortográficos e gramaticais.
111

contagiosa”, mas Bataille (1987, p. 31) pergunta provocativamente: “quem dentre nós poderia
dizer que, diante de um cadáver cheio de vermes, não empalideceria?”.
Conforme será discutido no próximo capítulo, as imagens também possuem essa
capacidade de confrontar o humano com o medo ontológico da finitude, logo, a performance
post mortem de Hija de Perra invoca a morte duplamente: ao ser constituída por
audiovisualidades (um duplo imortal de quem as cria) e por ela mesma acabar por se tornar
uma espécie de cadáver da performer. Não no sentido estático de corpo morto, mas de um
corpo dilatado, autônomo e em eterno processo de proliferação e putrefação digital que
acaba por fazê-la transgredir a morte.

2.8.2 Transgressões: da morte da performance e da morte da carne

Há duas transgressões de morte acionadas pela performance post mortem de Hija de


Perra. Uma é a superação da morte da performance, que já discuti anteriormente com as
orgias teóricas entre a performance em arquivo de Diana Taylor (2012) e o aftermath de
Richard Schechner (2013) – fundações para a própria concepção dos rastros digitais da
performance-vida de HDP como uma performance post mortem e que, por isso, sinalizo aqui
apenas para explicitá-la como violação, sem comentá-la novamente. A outra transgressão,
esta, sim, a ser explorada neste momento da pesquisa-viagem, é a da morte da carne, do
corpo encarnado de HDP.
George Bataille é quem continua amparando essa discussão sobre a morte, uma vez
que este é um dos temas principais de sua obra. Já vimos que o cadáver em putrefação
provoca repulsa por sua possibilidade de contaminar magicamente a vida de quem sobrevive
com a morte à qual sucumbiu o morto. A mesma imagem é retomada pelo filósofo brasileiro
Luiz Augusto Contador Borges (2012, p. 56) para expor que há uma dimensão de vida após a
morte: “[...] a doença supera a vida arruinando-a até a morte, mas a operação soberana dos
vermes, em sua efervescência proliferante, excede a morte com a vida [...]”. A morte é o
interdito à vida, mas, ao mesmo tempo, também sua superação. É o gasto mais luxuoso da
condição humana: supostamente a mais improdutiva das atividades humanas, pois atesta não
produzir nada reconhecido pelo mundo da razão e do trabalho, desvela-se como o último
dispêndio, tão voraz que consome a própria vida.
112

Tal como os vermes comendo o cadáver, responsáveis por impingir a dimensão de vida
à morte, e sendo as audiovisualidades as materialidades que formam o corpo da performance
post mortem, seriam as reações afetuais a esse corpo, manifestadas através de likes, dislikes
e comentários nos vídeos, os vermes responsáveis por mantê-lo vivo? Nas audiovisualidades
de HDP, há comentários dos mais antigos, à data de upload dos vídeos, a alguns tão recentes
que datam dos momentos em que este texto toma forma. Ou seja, seis anos após sua morte
física, continua-se interagindo com tais audiovisualidades, sendo elas consumidas e motivos
de vinculações afetivas. Não apenas isso, também são feitos uploads contínuos (os últimos em
2019) de vídeos em sua homenagem e registros de apresentações.
Trataria-se, portanto, de uma vida que não se encerrou na morte, transgredindo-a? As
afetações provocadas pelas audiovisualidades de HDP são materializadas em likes, dislikes e
comentários92 de usuários que choram ou se regozijam com a morte do monstro, alimentando
a performance post mortem e impedindo-a de minguar e evanescer – “PERRA TE
AMOOOOOOOO AAAAAAAH!” (Usuário Ner0) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013); “Gracias a
Dios se murió que asco” (Usuário María Vargas) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013); “Por el pico
a las lacras que se alegran de que éste gran ser humano se haya muerto en esas condiciones.
BASTARDOS ASQUEROSOS... LOS QUEMARÍA VIVOS” (Usuário Tony Montana) (ENTREVISTA
HIJA DE [...], 2013). Não esqueçamos que os consumidores de uma performance são
fundamentais para que ela exista como tal (SCHECHNER, 2013).
Mantém-se, então, ativa a memória de Hija de Perra, sugerindo uma morte que não se
deixa ser morta, mas também não pode ser considerada viva. Uma ausência-viva? Uma
presença-morta? Uma proliferação-putrefação após a morte pela via da “dispersão viral das
redes” (BAUDRILLARD, 1998, p. 10). “Nada mais (nem mesmo Deus) desaparece pelo fim ou
pela morte mas por proliferação, contaminação, saturação e transparência, exaustão e
exterminação, por epidemia de simulação, transferência na existência segunda da simulação”,
descreve Baudrillard (1998, p. 10). Concordo com o “modo fractal de dispersão” que ele
diagnostica, mas o que as reações afetuais e os modos remixados e videoclipicizados de
elaborá-las sugerem, como descreverei na próxima seção da pesquisa-viagem, é uma linha de
fuga, uma possibilidade-outra de proliferação. Sim, ainda é fractal, de dispersão, mas,
paradoxalmente, os estilhaços não subtraem. O corpo da performance post mortem não

92
As informações sobre quantidades de likes, dislikes e comentários de cada uma das audiovisualidades que
compõem os rastros audiovisuais estão no mapeamento herético do rizoma, anexado a esta dissertação.
113

encrue, pelo contrário, se fortalece e segue se propagando em uma metástase digital, essa é
sua dinâmica de transgressão.

2.8.3 Afetos remixados, reações videoclipicizadas

As reações afetuais às audiovisualidades responsáveis pela característica de


transgressão da morte da performance post mortem de Hija de Perra são diversas, implicando,
como já mencionado, desde usuários que comemoram a morte do corpo encarnado da
performer até outros que sonham em ressuscitá-la – “Si pudiese la reviveria” (Usuária lenore
Cassandra tepes) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).
A despeito dos comentários com críticas negativas e dos poucos dislikes nos vídeos,
não encontrei, durante o mapeamento herético do rizoma, reações audiovisuais (vídeos
criados pelos próprios usuários) com o único propósito de criticá-la negativamente. Por outro
lado, foi possível contabilizar 13 vídeos sob a categoria Homenagem (19% dos 68 rastros
audiovisuais), na qual fãs editam vídeos como forma de homenagear seu trabalho e, por isso,
entendo-os como reações audiovisuais às performances de HDP.
Tais audiovisualidades autorais carregam em seus títulos palavras como “RIP”93,
“tributo”94, “homenagem”95, “in memoriam”96 e “comemoração”97. Há, ainda, registros de
pessoas fazendo covers de suas músicas98, tutorial de sua maquiagem icônica99 e um vídeo do

93
RIP Hija de Perra ha muerto! [S.l.: s.n], 2014. 1 vídeo (1m15s). Publicado pelo canal Christian Ortiz. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=IuCCSbV-7Qo. Acesso em: 12 set. 2019.
94
Hija de Perra – Asesina por naturaleza (video tributo). [S.l.: s.n.], 2013. 1 vídeo (1m56s). Publicado pelo canal
Adraviel Bada Boom. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OMLoxN4BvwU. Acesso em: 12 set.
2019. Intento Tributo Hija de Perra. [S.l.: s.n.], 2014. 1 vídeo (22m35s). Publicado pelo canal baito kurage.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3d39Jfmy2Vo. Acesso em: 12 set. 2019. Hija de Perra 18+
(Tributo). [S.l.: s.n.], 2015. 1 vídeo (4m49s). Publicado pelo canal ENAMORADO TV. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=SKiWxeq5C3o. Acesso em: 12 set. 2019.
95
Homenajeamos a Hija de Perra en el estúdio de Roxy Foxy. [S.l.: s.n.], 2018. 1 vídeo (49m09s). Publicado pelo
canal VIA X. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ud55HusWa-I. Acesso em: 12 set. 2019.
96
Hija de Perra in memoriam. [S.l.: s.n.], 2016. 1 vídeo (2m27s). Publicado pelo canal OFAN. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=EEssrusBCpM. Acesso em: 12 set. 2019.
97
Conmemoración “Hija de Perra” en Y Qué Pasó? [S.l.: s.n.], 2017. 1 vídeo (6m58s). Publicado pelo canal VIA X.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rDFAdjCvDsM. Acesso em: 12 set. 2019.
98
Odessa “Me desnudo” (Cover de Hija de Perra). [S.l.: s.n.], 2015. 1 vídeo (2m55s). Publicado pelo canal Lau
Molina. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=T0ZBgHm2PSA. Acesso em: 12 set. 2019. Ellas no
– Asesina por naturaleza [cover hija de perra] [FemFest 2016]. [S.l.: s.n.], 2016. 1 vídeo (2m25s). Publicado
pelo canal Sudamerican Rockers. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PaWd2E4NWgk. Acesso
em: 12 set. 2019. RICHARDBAKER. Nalgas con olor a caca (Hija de Perra cover). [S.l.: s.n.], 2018. 1 vídeo
(1m45s). Publicado pelo canal DiablaBarker. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=QEL4c0KuslE. Acesso em: 12 set. 2019.
99
HIJA DE PERRA | Makeup tutorial. [S.l.: s.n.], 2018. 1 vídeo (1m16s). Publicado pelo canal Erika con K. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=q1Oo8-iYbLk. Acesso em: 12 set. 2019.
114

que parece ser um episódio de um programa de uma emissora chilena dedicado a celebrá-
la100.
O que essas audiovisualidades autorais materializadas em resposta às afetações
provocadas pelas performances de HDP indicam é um modo de reagir audiovisualmente, no
qual performances em arquivo da artista são fragmentadas, destrinchadas e sobrepostas em
um processo de remixagem característico da cultura pós-massiva em que os usuários estão
inseridos. Sobre esse modo específico de produzir materialidades, André Lemos (2005, p. 3;
2) diz:

A recombinação e a re-mixagem têm dominado a cultura ocidental pelo menos


desde a segunda metade do século XX, mas adquirem aspectos planetários nesse
começo de século XXI. Em recente artigo para a revista “Wired”, o escritor de ficção-
científica William Gibson mostrou como a prática do “cut and past” configurou as
vanguardas artísticas do século passado. Mais ainda, a nossa cultura não é uma
cultura da simples apropriação ou empréstimo, da produção, do produto ou da
audiência, mas uma cultura da participação, e essa participação se dá pelo uso e livre
circulação de obras. [...] Na cibercultura, novos critérios de criação, criatividade e
obra emergem consolidando, a partir das últimas décadas do século XX, essa cultura
remix. Por remix compreendemos as possibilidades de apropriação, desvios e criação
livre (que começam com a música, com os DJ’s no hip hop e os Sound Systems) a
partir de outros formatos, modalidades ou tecnologias, potencializados pelas
características das ferramentas digitais e pela dinâmica da sociedade
contemporânea.101

Elaborar a afetação provocada pelas performances de HDP, materializando seus


efeitos pela via de audiovisualidades remixadas, corrobora a hipótese de “videoclipicização do
globo” do filósofo brasileiro Peter Pál Pelbart (2000). Transformamos posturas, sensações e
sonhos em imagens em movimento, diagnostica o autor. Um sintoma desse viver
videoclipicizado é o “cinema macabro” que Adolf Hitler fez do mundo (PELBART, 2000). Já os
consumidores da performance post mortem de HDP fazem dele seu cinema i-mundo, para
ater-me à imundície tão cara à performer. Lidam com o que as audiovisualidades lhes
provocam vomitando no mundo mais imagens, bagunçadas, desencadeadas, remixadas.
Se, para Baudrillard (1998), o homem perde a sombra e cai em um delírio dissociativo
quando avança em direção a essa imortalidade e infinidade de registros técnicos, penso as

100
Homenajeamos a Hija de Perra en el estúdio de Roxy Foxy. [S.l.: s.n.], 2018. 1 vídeo (49m09s). Publicado pelo
canal VIA X. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ud55HusWa-I. Acesso em: 12 set. 2019.
101
Para uma discussão sobre práticas remixes, cf. SCUDELLER, Pedro de Assis Pereira. Curadoria remix: reflexões
sobre circulação e consumo de arte na 33ª Bienal de São Paulo. 2020. 213 f. Dissertação (Mestrado em
Comunicação e Práticas de Consumo) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo,
Escola Superior de Propaganda e Marketing, São Paulo, 2020.
115

consequências do estilhaçamento da performance-vida de Hija de Perra – manifestado nos


rastros que compõem sua performance post mortem – em outra ordem, a dos efeitos de
presença que ela causa, visto que comentários nos vídeos sugerem vinculações diversas entre
os consumidores de tais performances e a presença invocada por elas.
O menino-bolha de Baudrillard (1998), higienizado e de corpo purificado pelos avanços
científicos, está privado de paixões e simula viver através da virtualidade das máquinas. A
presença post mortem de Hija de Perra, por outro lado, segue imunda e jocosa, exercitando
afetos, transitando paixões, muito próxima – preparemo-nos para mais uma orgia teórica –
da “força feminina livre, selvagem, sensual e sexual” da pombagira, a figura brasileira cujas
imagens e imaginários midiáticos são cartografados, no campo da Comunicação, por alguns
autores (DRAVET, 2016; CASTRO, 2016; BESSA; 2016; DRAVET; OLIVEIRA, 2015; DRAVET;
CASTRO, 2014).

2.8.4 Presença post mortem

Como é possível que a performance post mortem de Hija de Perra seja capaz de
despertar tantos afetos diversos, mesmo circunscrita ao digital? Seriam as telas realmente
portais, como sugerem Ana Taís Martins Portanova Barros e Michel de Oliveira Silva (2018)?
As reações audiovisuais discutidas anteriormente são apenas um desses modos de elaborar
os afetos abjetos por ela mobilizados. Outros usuários se contentam em externar a afetação
no espaço para comentários dos vídeos. Em uma deriva por eles, observo reações das mais
díspares entre si, de amor à sua existência e reverência a suas “críticas encarnadas” ao ódio
pelo seu existir (ainda que digitalmente, neste caso). Felicitações por sua morte pelo vírus do
HIV (“Y al final muere de SIDA que bien eso es selección natural”) orbitam entre lamentos por
sua desencarnação. Alguns se emocionam, sentem-se órfãos dessa mãe-monstra (“Estoy
impactada, acabo de conocerla y supe de su muerte... es impresionante el vacío que me dejó
saber que su esencia no sigue en esta sociedad que necesita su espíritu revolucionário [...]”),
querem revivê-la, trazê-la novamente à carne (“Si pudiese la reviveria”), continuam a sentir
falta de sua presença encarnada mesmo após anos de sua morte física (“Mañana ya son 5
años, Haces mucha falta”). Ainda que virtual, sua presença continua a assustar, provocar
“medo” (“Me da miedo”,) “asco” (“Gracias a Dios se murió que asco”), um ódio pelas
116

diferenças sexuais canalizado e direcionado a sua figura (“Yo no creo que los homosexuales se
amén de verdade... tal vez sea pasión sexual”).
Mais alguns comentários atestam as intensidades da reverberação ao ter contato
com a performance post mortem de Hija de Perra, para o bem e para o mal:

Soy de Guadalajara Mexico tengo 16 les puedo decir que a pesar de no haber
conocido a esta mujer fue un gran apoyo y lo seguirá siendo en mi vida... Gracias a
que se atrevió a romper con muchos tabus y originalidad, siempre estarás y ocuparas
espacio en mi vida y alma hija de Perra, gracias por ayudarme a defender mis ideales
y mandar al carajo a todos los que no les guste o rechacen. Te amo (Usuário DHP)
(CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012).

No en todas las dinastias conocemos a un ser como hija de perra que estes bien en
el cosmos porque ahora eres libre, vives en el corazon de mucha gente (Usuário
Tempered Soul) (CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012).

Nunca me sentí tan identificada con nadie como lo sentí con hija de perra uu (Usuário
Mei San) (CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012).

No sé si sea inteligencia extrema lo que la define, sino que piensa distinto, nada mas
(Usuário Sebastián Moya) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).

A intrigante discussão sobre “efeitos de presença” das “materialidades da


comunicação”, promovida pelo alemão Hans Ulrich Gumbrecht (2010), é um caminho possível
para entender a força da presença de Hija de Perra em sua performance post mortem, mesmo
ela estando desencarnada. Façamos um desvio por seu pensamento e convidemo-lo para uma
orgia teórica.
Primeiramente, uma observação sobre nomenclaturas: o que venho chamando de
rastros digitais podem ser concebidos, na terminologia gumbrechtiana, como “materialidades
da comunicação”. Nos anos 1970 e 1980, o autor estava incomodado com o fato das análises
sobre produtos e fenômenos comunicacionais ignorarem a materialidade dos meios de
comunicação. Para ele, a natureza de uma página impressa, de uma tela de computador e de
uma ligação telefônica, por exemplo, é indissociável dos sentidos transportados por esses
meios. Não haveria como os sentidos extraídos a partir das interpretações dos fenômenos não
serem afetados pelas diferentes materialidades dos meios pelos quais eram viabilizados.
Demarcar a importância das “materialidades da comunicação” nas análises é uma de suas
principais contribuições, conceituando-as como “fenômenos e condições que contribuem
para a produção de sentido, sem serem, eles mesmos, sentido” (GUMBRECHT, 2010, p. 28).
Isso, contudo, é apenas a porta de entrada para seu pensamento.
117

De modo muito próximo à crítica de Susan Sontag (1987), que escreve um livro
chamado Contra a interpretação, Gumbrecht (2010) também critica o método da
interpretação. Enquanto a autora aponta a prática na fruição da arte, o alemão expande a
crítica aos estudos ocidentais das Humanidades de modo geral, nos quais, segundo ele,
identificar e atribuir sentidos – ou seja, interpretar – é uma prática nuclear e protagonista. Ele
tem uma explicação interessante para o motivo dessa obsessão: “Se atribuirmos um sentido
a alguma coisa presente, isto é, se formarmos uma ideia do que essa coisa pode ser em relação
a nós mesmos, parece que atenuamos inevitavelmente o impacto dessa coisa sobre o nosso
corpo e os nossos sentidos” (GUMBRECHT, 2010, p. 14). Assim, ao interpretar, caminha-se
sempre em direção a um além-mundo, um lugar que está para além da fisicalidade da vida,
como se os sentidos metafísicos de um fenômeno fossem superiores à sua presença material.
Não é surpresa alguma a essa altura da pesquisa-viagem que esse modo de construir
conhecimento tenha se originado no cogito cartesiano imbricado no projeto da Modernidade,
quando se propaga uma vocação hermenêutica de escavar sentidos e de criar dicotomias
hierárquicas, como espírito e matéria, mente e corpo, profundidade e superfície, significado
e significante – um sendo sempre mais valorado do que o outro (GUMBRECHT, 2010).
É neste além-mundo metafísico que estariam os sentidos acessados apenas pelos que
detêm o poder da hermenêutica, capazes de ultrapassar a camada sedutora das formas das
materialidades e acessar os enigmas do conteúdo, um modo de se posicionar muito próximo
ao defendido por Immanuel Kant para realizar o julgamento estético, conforme visto
anteriormente com Leticia Alvarado (2018). No âmbito da arte, Sontag (1987) deixa nítido em
sua escrita afiada a ironia do crítico de arte que se julga capaz de acessar os “céus da
transcendência” e as “brumas da essência” (ROLNIK, 2006, p. 66): “A tarefa da interpretação
é praticamente uma tarefa de tradução. O intérprete diz: ‘Olhe, você não percebe que X em
realidade é – ou significa em realidade – A? Que Y é em realidade B? Que Z é de fato C?’”
(SONTAG, 1987, p. 14).
Gumbrecht (2010) não é tão contrário à interpretação quanto a autora, para quem
interpretar é empobrecer o mundo e hipertrofiá-lo fantasmagoricamente de significados102.
Pelo contrário, ele atesta que interpretar, dar sentido às coisas, é parte fundamental da

102
“Interpretar é empobrecer, esvaziar o mundo – para erguer, edificar um mundo fantasmagórico de
‘significados’. [...] O mundo, nosso mundo, já está suficientemente exaurido, empobrecido.” (SONTAG, 1987,
p. 16).
118

“experiência do estar-no-mundo”. Mas se os autores divergem na função da interpretação, é


para logo se encontrarem novamente mais à frente. Ambos estão interessados no fazer sentir
do mundo, mais do que nos sentidos a ele atribuídos. Querem se expor e lidar com
experiências estéticas fora do âmbito da linguagem. Sujar as mãos nas camadas que não são
as do sentido (GUMBRECHT, 2010). Face o embotamento sensorial da hermenêutica, uma
erótica da experiência (SONTAG, 1987). E, assim, concordam na relevância das aparências, tão
renegada pelos juízos estéticos da Modernidade, preocupados com o conteúdo.
Sontag (1987, p. 22) diz que a melhor crítica é aquela capaz de fornecer uma
descrição “cuidadosa, aguda, carinhosa” da “superfície sensual da arte”, ao que acrescento a
fala de Gumbrecht (2010, p. 88) quando este, referenciando outro filósofo alemão, Martin
Seel, diz que “uma estética da aparência é uma tentativa de nos devolver à consciência e ao
corpo, a coisidade do mundo”. A estética, entendo então, como essa aparência das coisas do
mundo e como elas se apresentam aos nossos sentidos humanos. E aqui ocorre mais um salto
na discussão, que se relaciona diretamente à inquietação sobre como as audiovisualidades de
Hija de Perra são capazes de produzir presença e fazer sentir afetações diversas, como as
compartilhadas nos comentários de seus vídeos.
Para Gumbrecht (2010), as materialidades da comunicação produzem tanto “efeitos
de sentidos” – tão caros aos estudos de interpretação – quanto “efeitos de presença”. As
audiovisualidades de Hija de Perra a tornam presente no momento de seu consumo, uma vez
que “o que quer que ‘apareça’ está ‘presente’ porque se oferece aos sentidos do ser humano”
(GUMBRECHT, 2010, p. 28). Sobre a presença, Marcelo Jasmin (2010, p. 9) sintetiza assim:

Presença refere-se, em primeiro lugar, às coisas [res extensae] que, estando à nossa
frente, ocupam espaço, são tangíveis aos nossos corpos e não são apreensíveis,
exclusiva e necessariamente, por uma relação de sentido. Uma ária de Mozart, o
golpe do boxeador, um quadro de Edward Hopper, o passe do quarterback, a
“pedalada” de Robinho são, não à toa, fenômenos privilegiados para uma análise da
presença, daquilo que podemos experimentar, primordialmente, fora da linguagem.

Os efeitos da presença de Hija de Perra são um desses fenômenos que a linguagem


não consegue abarcar. Mesmo com sua performance-vida interditada pela morte da carne,
através dos rastros digitais – materialidades da comunicação, para Gumbrecht (2010) – se
viabiliza uma performance post mortem que segue afetando aqueles que a consomem,
fazendo com que alguns precisem externar tais provocações, seja por meio das reações
119

balizadas pela arquitetura do YouTube com seus botões de like, dislike e espaço para
comentários, seja através de um dispêndio de energia maior, na construção de outras
materialidades que venham a expandir a própria performance post mortem – os vídeos
autorais de homenagens.
Outros, como eu, tentam elaborar sua afetação em uma pesquisa de mestrado,
materializar os efeitos de sua presença post mortem em uma dissertação. Nesta seção, vali-
me das reações de outros para cartografar tais efeitos. Pois peço tanto ainda de fôlego da(o)
leitora para nos determos um pouco mais neste ponto da pesquisa-viagem, a fim de
compartilhar os efeitos da presença de HDP em mim e as associações feitas para nomear o
que me faz sentir o consumo da experiência estética que ela oferece.

Entre putas e pombagiras, a cadela dá um berro: a força da descompressão

Debochada, escrachada, sexual, imunda, portadora de um saber não-normativo e


avesso a ideias de beleza, pureza e ordem. Esses termos com que descrevo a presença de
Hija de Perra nesta pesquisa-viagem não são aleatórios e servem para “dar passagem”
(CASTRO, 2016) a outra presença igualmente controversa e poderosa, a da pombagira, com a
qual pretendo cruzar os caminhos. Mas o que a presença de uma monstra chilena cujos efeitos
são sentidos a partir de sua performance post mortem pode ter a ver com essa figura da
umbanda tão presente no imaginário popular brasileiro e que se manifesta a partir da
invocação e incorporação em terreiros, um modo tão diferente do acionamento pelas telas
digitais? A partir das investigações de alguns autores (DRAVET, 2016; CASTRO, 2016; BESSA;
2016; DRAVET; OLIVEIRA, 2015; DRAVET; CASTRO, 2014) sobre as imagens e imaginários da
pombagira, veremos como as entidades se relacionam.
Florence Dravet e Leandro Bessa Oliveira (2015, p. 51) descrevem a figura brasileira
da pombagira como “símbolo de uma força feminina livre, selvagem, sensual e sexual anterior
à dominação masculina da cultura falocêntrica e baseado em um tipo de racionalidade do
sensível”. Já nessa breve introdução da entidade, notam-se a força de algumas palavras que
saltam aos olhos – selvagem, sensual, sexual – e a recusa à certa normatividade imposta, o
que pode facilmente ser associado à Hija de Perra.
Arrolemos mais algumas palavras, fazendo essa associação entre a pombagira, cuja
produção de presença se dá nos terreiros e na mídia, e HDP, presença produzida nos terreiros
120

digitais da internet. “Gargalhada”, “deboche”, “desprezo”, “putaria”, “paixões”,


“espalhafatosa”, “falante”, “insaciável”, “animalesca”, “inominável”, “escória”, “lixo e luxo”,
“desordem”, “inversão” – esses são apenas os termos pinçados da cartografia das
encruzilhadas entre os imaginários da puta e da pombagira que Leandro Bessa (2016) faz. Já
da reflexão de Gustavo de Castro (2016) sobre a sabedoria da entidade, que opera por uma
lógica afetiva-emocional e afetiva-sexual, recolhe-se “sabedoria”, “magia”, “demônio”,
“hermafrodita”, “tira/faz alegria da tristeza”, “liberdade”, “resistente, estratégica e sábia”.
Outros tantos excertos e de outros autores poderiam ser compartilhados, mas esses são
suficientes para cruzar o caminho dessas duas figuras que, a apenas algumas linhas atrás,
pareciam tão distantes.
A performance post mortem de Hija de Perra invoca uma presença que se manifesta
enquanto um “selvagem-erótico, sem gramática e sem verbo, ouvinte de seus fluídos e
orifícios”. Estas aspas são de Frederico Feitoza (2015, p. 2), estudioso da pombagira e suas
manifestações na cultura midiática. Elas expõem, todavia, o quanto os efeitos de presença
dessas duas figuras estão próximos, no que tangem à manifestação de uma sexualidade
explosiva. Caso não seja especificado de quem se está falando, a descrição pode se aplicar
tanto a uma quanto a outra.
Perra desperta paixões no sentido de afetações, como podem ser observados nos
comentários dos vídeos; confunde com sua aparência monstruosamente hermafrodita; se
vale do lixo e do luxo para criar uma estética de inversão e desordem103; fala putaria; debocha
e despreza as ordens coloniais-modernas de contenção do corpo. Seu corpo é o “corpo-puta”
descrito por Bessa (2016, p. 66) e associado à descompressão da pombagira, “que grita, que
ejacula, que arde, que caga e que dorme”, que habita as superfícies da pele e não o centro de
uma suposta interioridade hermeticamente vedada. Puta e pombagira, no linguajar popular,
“são farinha do mesmo saco”. Pois então que se acrescente a esse saco Hija de Perra.
Todas essas presenças ousam recusar as regras sociais e a lógica moral, civilizatória e
colonizadora dos espaços que habitam. Fazem girar o médium que incorpora a pombagira
(DRAVET, 2016) e aquele que consome a performance post mortem de Perra. Girar até perder
os sentidos, não saber mais qual é a topografia do corpo, o que está em cima nem embaixo,
por onde caga a boca ou fala a merda. É quando o único sentir é a vertigem e não há mais

103
Detalhes sobre os efeitos de sentido da estética de Hija de Perra são apontados no capítulo 3, Devorar e ser
devorado, do consumo à consumação.
121

distinções entre a pureza da civilização e a imundície erótica do ser. Compartilham da abjeção


de outras tantas figuras rejeitadas na histórica da civilização moderna ocidental. A presença
de Hija de Perra me faz começar pensando nas pombagiras para logo me esparramar em
delírios e fazer parir uma caravana de aberrações. Ela carrega a força dionisíaca da
pombagira104, mas também a de outras monstras que, porque deixaram seus corpos abertos,
vazando e contaminando o mundo com seus saberes divergentes das normas, foram acusadas
de copular com o demônio (BESSA, 2016). As prostitutas, as bruxas, as feiticeiras, as histéricas,
as loucas, as diabas, as travestis, as bichas, as viadas. As que ousaram gozar a serviço do
próprio desejo e habitar o mundo por outra via que não a da linguagem institucionalizada de
seu tempo.
A pombagira chega girando e tira tudo de foco. Instala um estado anárquico, caótico,
original e livre do corpo (DRAVET, 2016). Mas é preciso “cantar para subir”105. “Abram os
caminhos”106. Ela libera a passagem e permite seguir viagem, não sem antes compartilhar um
pouco da sabedoria que Gustavo de Castro (2016) lhe atribui. A pista para a próxima etapa da
pesquisa-viagem chega pela voz de Leandro Bessa (2016, p. 75, grifo meu): “elas [as
pombagiras] são, por excelência, a estética do excesso, do deboche e do escárnio”. São pelos
caminhos da estética do excesso, dos efeitos de sentido das aparências libidinosas das
imagens que vamos seguir. “Pletora de sangue, esperma e lágrimas aos borbotões. Potência
do sim, potência do mais: haverá uma razão para o excesso a despeito da própria razão?”
(BORGES, 2012, p. 30).

104
“[A] pombagira gargalha, canta, xinga, usa vocabulário chulo, às vezes vulgar, quebra todas as barreiras, os
tabus, expressa aquilo que não se ousa expressar, dança e gira para tirar o corpo da imobilidade, incita ao
movimento e à ação. Nesse sentido, ela pode ser considerada como um tipo dionisíaco do feminino. Gosta de
zombar, debochar, rir de tudo aquilo que as civilidades impõem como limitação aos homens e às mulheres.”
(DRAVET; OLIVEIRA, 2015, p. 55).
105
Expressão utilizadas em algumas práticas religiosas de matriz africana para se referir ao momento do cantar
para desincorporar. Cf. AMARAL, Rita; SILVA, Vagner Gonçalves da. Cantar para subir: um estudo antropológico
da música ritual do candomblé paulista. NAU - Núcleo de Antropologia Urbana da USP, [S.l: s.n.], 2009.
Disponível em:
http://www.espiritualidades.com.br/Artigos/A_autores/AMARAL_Rita_et_SILVA_Vagner_Gon%E7alves_tit_
Cantar_para_subir.pdf. Acesso em: 20 dez. 2019.
106
Referência à música Rito de Passá, de MC Tha. MC Tha – Rito de Passagem. [S.l.: s.n.], 2019. 1 vídeo (4m02s).
Publicado pelo canal MCTha. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PRAx8dgvPAo. Acesso em:
20 dez. 2019.
122

3 DEVORAR E SER DEVORADO, DO CONSUMO À CONSUMAÇÃO

“Ia certa vez passando ele pelo mato quando ouviu um


barulho e notou que duas cobras brigavam. A certa altura
da peleja, uma abocanhou o rabo da outra e ambas
começaram a se engolir. Foram bem lentamente engolindo
uma a outra, até que, chegando à cabeça, num último
esforço e num último golpe, uma engoliu a outra – e ambas
desapareceram no ar!”
Gustavo Castro e Silva (2007, p. 65)

Como escreveu Rose de Melo Rocha (2009a, p. 268), “é a partir das imagens que
falamos de consumo”. Ou seja, o consumo a ser discutido aqui não é o de bens materiais, mas
o consumo em sua dimensão audiovisual e simbólica, ainda que materialidades e simbolismos
compartilhem de uma relação simbiótica (ROCHA, 2012). Essa perspectiva já foi trabalhada
por outros autores e não é uma novidade em si. A antropóloga Mary Douglas e o economista
Baron Isherwood (2006) foram pioneiros ao apresentar a dimensão simbólica do consumo.
Uma imagem eloquente disso é a etnografia de Abner Cohen, compartilhada pelos autores,
na qual se comenta as práticas de consumo das mulheres hauça107, em Ibadan, na Nigéria.
Mantidas em reclusão pelos homens hauça, elas possuíam restritas possibilidades de
participação no mercado de trabalho: poderiam ser prostitutas ou matronas respeitáveis. A
diferença era que as primeiras não conseguiam acumular tanta riqueza quanto as segundas.
Como o quarteirão hauça, nos anos 1960, era um centro comercial em ascensão com muitos
homens solteiros trabalhando, “a mulher casada podia abrir uma lucrativa indústria de
alimentos, cozinhando e vendendo comida. [...] Ela conduziria um negócio praticamente sem
despesas correntes, pois o marido pagava seu aluguel, a alimentava e a vestia” (DOUGLAS;
ISHERWOOD, 2006, p. 204).
Com uma clientela regular, elas conseguiam acumular bastante riqueza. Todavia,
eram proibidas de investir o dinheiro em qualquer outro negócio que não fosse o
fornecimento de comida, a fim de impedir que competissem com as atividades dos homens.
A despeito da quantidade de casas, joias e dinheiro, desenvolveu-se entre essas mulheres um
“padrão especial de consumo” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2006): investir em panelas
esmaltadas e coloridas da Checoslováquia. As peças eram símbolo da posição social e do

107
Os hauça são um grupo étnico, localizado na África. Para mais informações sobre esse povo, cf. SMITH,
Abdullahy. Considerações concernentes à formação dos Estados Huaçás. Afro-Asia, n. 13, 1980, p. 119-142.
123

sucesso, sendo medidas de hierarquização. Quanto maior o número de panelas, mais bem-
sucedida ela seria. Alvo de admiração na sociedade, essa mulher era procurada por jovens –
conhecidas ou estranhas – interessadas em trabalhar para a matrona, na esperança de serem
ajudadas e conseguirem bons casamentos. O tesouro construído era parcialmente dilapidado
quando uma dessas jovens casava e herdava parte da coleção.
Douglas e Isherwood (2006, p. 205) concluem:

Isso tudo soa maníaco, irracional, consumo títere. Mas o etnógrafo [Cohen] não cai
na armadilha de tratar a utilidade como inteiramente independente da capacidade
de ganhos. “Uma dona-de-casa atrairá e reterá mais jovens casadoiras entre suas
parentes quanto mais panelas acumular. Quanto mais velha for, mais estabelecida
como dona-de-casa e mais meninas atrai para seu serviço.”.

As imagens, enquanto materialidades estritamente comunicacionais, pertencem,


também, a esse campo do simbólico. Quando invocadas, há diversas perspectivas que podem
ser adotadas. Uma questão é sua ontologia. Para que servem as imagens? Alguns autores
(BAITELLO JUNIOR, 2010; 2014; ROCHA, 2009a) apontam que, ao criar o seu duplo, a imagem
seria a tentativa de o humano vencer a morte. Outra discussão pertinente é sobre sua
natureza. Nesse ponto, a categorização de Hans Belting (2015) em endógenas e exógenas se
torna útil para não só compreendermos as especificidades de cada tipo como a relação entre
elas. Sonhos, pensamentos e imaginação são consideradas imagens internas, mentais,
produzidas dentro do aparato psíquico e, portanto, endógenas. Já as imagens em sua
concretude são exógenas, pois elaboradas fora do homem. Essa categorização, vale ressaltar,
não tem como objetivo estancá-las e mantê-las isoladas. Pelo contrário, a homeostase desse
fluxo é responsável por um modo de habitar o mundo saudável e profícuo, bem como veremos
à frente.
Todavia, com o advento e desenvolvimento dos meios de comunicação de massa no
século XX, esse sistema de comunicação entre imagens internas e externas se desequilibrou,
e uma avalanche de imagens exógenas tem se sobreposto a nossas reservas internas. Esse
desequilíbrio seria responsável por um embotamento ou sobrecarga internos. As imagens
exógenas têm a capacidade de alimentar o aparelho psíquico e fazer com que ele crie
conexões com as endógenas, por meio de um processo de retroalimentação que, quando em
homeostase, gera vida e criatividade. O problema é que na selva de imagens da
contemporaneidade, tal como o humano de Walter Benjamin (1987) que perdeu a habilidade
124

de narrar, o humano do contemporâneo teria perdido a habilidade de processar a avalanche


de imagens dos tempos atuais. Com isso, nos tornamos empobrecidos de nós mesmos e
passamos a devorar sem engolir. Norval Baitello Júnior (2010; 2014) é responsável por
desdobrar essa linha de raciocínio ao ponto de propor que não somos nem mais nós, os
humanos, que consumimos as imagens, mas somos por elas consumidos, no que ele
caracteriza como iconofagia. Tal proposta se revela atraente frente à profusão de
audiovisualidades de HDP e os excessos avessos à devoração mobilizados em suas
performances. Hija quebra, e, com isso, desestabiliza o automatismo desse fluxo.
A partir deste capítulo-momento da pesquisa viagem, o exposto será esmiuçado com
o objetivo de tentar, retomando Gumbrecht (2010), cercar com a linguagem aquilo que ela
não dá conta. Se no capítulo anterior a performance foi a bússola teórica, aqui será o excesso
em suas múltiplas acepções nos rastros audiovisuais de Hija de Perra. O excesso, essa pedra
de toque apresentada por Hija, instiga e embaralha por sua própria ontologia do muito.
Novamente, como a mariposa rodando em volta da luz, circularei o excesso para pensá-lo em
duas dimensões principais: o consumo do excesso de imagens e nas imagens. Consumo este
que se dá de um modo muito específico e se relaciona com uma obsessão humana: a atividade
de olhar.

3.1 Anamnese do excesso

Em uma investigação sobre a estrutura poética e os recursos da obra de Manoel de


Barros, Fabrício Carpi Nejar (2001) aponta as múltiplas camadas do que chama de “poesia do
excesso” nos textos do escritor mato-grossense. Em contraste com seu contemporâneo, João
Cabral de Melo Neto, cuja poesia do menos e do essencial caracterizou sua obra, Manoel de
Barros foi um autor manipulador do mais. Carpi Nejar (2001) aponta uma “ótica do excesso”
responsável pelo acúmulo de imagens e metáforas no texto do escritor. Tal ótica, ainda
segundo o pesquisador e também poeta, é responsável por atordoar o leitor e,
principalmente, impedi-lo de ter uma visão panorâmica dos poemas:

Ou seja, são tantas as pequenas observações, tantos os apontamentos, tantas as


notas de rodapé dentro do próprio poema, que não se visualiza o todo, apenas
fragmentos isolados. O leitor é chamado a responder um apelo a cada verso e perde
o fio da meada, a inteireza do conjunto e de uma mensagem (CARPI NEJAR, 2001, p.
30).
125

“Desordem”, “dispersão”, “pulverização”, “ambiguidade”, “superposição”, “conflito”


e “exagero” são termos com que Carpi Nejar (2001, p. 55) segue descrevendo o trabalho desse
“colecionador de entulhos” e “ilusionista”, de um modo tão familiar a esta pesquisa-viagem
que poderiam ser usados para descrever a poesia do excesso de nossa própria colecionadora
de entulhos chilena.
Um detalhe entre muitos, contudo, é preciso destacar. Enquanto o conteúdo da poesia
do excesso de Manoel de Barros está na ordem do prosaico e aciona imagens do imaginário
infantil e rural, a poesia do excesso de Hija de Perra, ainda que compartilhe adjetivos da forma
com o brasileiro – também fragmentária, não linear e tantos outros citados no parágrafo
anterior – está mais próxima, no que tange ao conteúdo, do louvor ao excesso do filósofo
francês George Bataille.
O universo batailliano é por si só excessivo. Em sua profícua obra, uma constelação de
conceitos se intercalam em uma teia teórica, o que torna uma tarefa hercúlea pinçar um único
operador conceitual sem se ver emaranhado por seu pensamento transgressor. Desse modo,
acrescenta-se à noção de excesso fragmentado descrita por Carpi Nejar (2001) um fio invisível
que atravessa – sem homogeneizar nem unir – uma teoria do excesso estilhaçada. Dito isso,
façamos o possível para ler o excesso pela ótica batailliana, sem sermos por ela consumados,
mas cientes de que seremos cortados por alguns de seus estilhaços.
O excesso é uma haste para adentrar o pensamento-rizoma batailliano. Segundo ele,
diferentemente do preconizado pelo sistema capitalista acionado pelo desenvolvimento
industrial, não são as atividades produtivas que estão arraigadas na ontologia do ser, mas o
seu oposto, as atividades improdutivas, aquelas que não têm outra finalidade a não ser um
fim em si mesmas. A lógica de tais atividades é dilapidar tudo a nossa volta até o ponto de
dilacerarmos a nós mesmos. Conforme Jean Piel (1975), é pelo consumo, e não pela produção,
que o homem se alinha ao destino do universo (esta realização inútil e infinita) e cabe a ele, o
homem, levar adiante esse destino. Notemos que a própria etimologia da palavra consumir,
do latim consumere, indica “gastar ou corroer até a destruição” (CUNHA, 2010), possibilitando
uma articulação com a visão de consumo de Piel (1975) e com a qual estamos nos alinhando.
A violência dessa profecia apocalíptica, cujo movimento se dá pelo “princípio de perda”
(BATAILLE, 1975), é tão vilipendiosa e aterradora, contudo, que a “razão” e o “trabalho” são a
126

tentativa humana de controlá-la. Sob esses valores, cria-se um mundo homogêneo108,


ordenado por uma lógica racional de produzir e acumular, a qual canaliza e funcionaliza a
energia do homem. Nesse sentido, são legitimadas apenas aquelas atividades cuja função é
produzir algo. Um exemplo é o matrimônio, pois se trata de uma instituição que produtiviza o
sexo ao transformá-lo em atividade destinada à procriação (BORGES, 2014), ou seja, uma
instrumentalização do sexo.
O dinheiro, as ciências e as técnicas são as medidas utilizadas para legitimar as
atividades enquanto produtivas no mundo homogêneo. Quando inúteis ao sistema,
impossíveis de serem aferidas ou funcionalizadas, as práticas são consideradas improdutivas.
Logo, se tornam controladas, vigiadas e interditadas. Daí a criação das interdições do mundo
social, as quais tentam impedir o escoamento energético humano para algo que não seja
produtivo. Mas, como assinala Borges (2014, p. 17), “nada contém o excesso e o excesso
excede tudo”.
Assim, simultaneamente ao surgimento da interdição, surge também a transgressão –
uma não existe sem a outra (BORGES, 2014). O excesso é a um só tempo potência e medida:
quanto maior a transgressão provocada pelo impulso ontológico de exceder, maior o excesso.

O excesso é esta força que supera o que quer que seja, venha de onde vier, de fora
ou de dentro do homem. O excesso é perpétuo devir. Nenhum discurso o contém,
nenhum saber o detém. Tal movimento responde por si e só se rende a si mesmo,
numa relação de forças em que a mais forte sempre supera a mais fraca. Se há um
limite para o excesso, existe sempre a possibilidade de um excesso ainda maior
poder suplantá-lo, e assim por diante. A cada ato excessivo supera-se um limite e ao
mesmo tempo se assinala outro, que via de regra é excedido depois (BORGES, 2014,
p. 12).

Sob o princípio do excesso, o indivíduo gera violência levando a razão a agir contra a
razão, mas fundando com isto todo o campo das experiências heterogêneas que se
caracterizam por um movimento de dispêndio de energia, desviada da atividade
produtiva. [...] O homem passa então a consumir, gastar, dilapidar suas reservas ao
invés de produzir e acumular. Do ponto de vista econômico, o gasto ou despesa,
déspense, é o efeito último que a potência do excesso provoca na esfera das relações
humanas por meio das quais se consomem seres e coisas num âmbito de morte e
ruína (BORGES, 2014, p. 15).

É necessário fazer uma observação sobre os diversos termos empregados para se


referir ao mesmo movimento: “transgressão”, “experiência heterogênea” e “atividade

108
Cabe traçar um paralelo entre o “mundo homogêneo” de Bataille (1975) e o “campo do visível” de Rancière
(1996), do qual já nos valemos anteriormente. Em ambos, há uma tentativa de regular as práticas dos corpos
a fim de estabelecer atividades admissíveis e não-admissíveis.
127

improdutiva”. As palavras são estratégicas, ensina Suely Rolnik (2019), logo, cada um desses
termos ressaltam uma característica do mesmo movimento. Quando “transgressão”, aciona-
se automaticamente os interditos e sua superação. Já quando Borges (2014), explicando
Bataille, vale-se de “experiência heterogênea”, é a característica de oposição às práticas
reguladas do mundo homogêneo que se evidencia. E, quando “atividade improdutiva”, é sua
dimensão de inutilidade ao sistema produtivo que se destaca.
Ciente da importância de tais experiências na vida, chega-se até aqui sem, no entanto,
explicitá-las. O que, de fato, são tais atividades improdutivas, experiências heterogêneas ou,
ainda, transgressões? Ciro Marcondes Filho (2008, p. 209) as entende como “estados de
extremo possível”, “situações de êxtase, arrebatamento, delírio, encantamento”, mais
especificamente, as festas, orgias, sacrifícios, sexo não reprodutivo (erotismo, para Bataille),
guerras. Conforme sintetiza Borges (2012, p. 10), “tais ‘condutas soberanas’, na expressão do
autor [Bataille], dizem respeito a atividades que se caracterizam por um grande dispêndio de
energia, por isso mesmo denominadas ‘improdutivas’”.
As performances protagonizadas por Hija de Perra são fragmentos dessas atividades
soberanas de dispêndio. Elas não são funcionais ao capitalismo/modernidade, pois divergem
de seus valores e propõem o gozar em comunhão, com ela e com os demais presentes em
seus atos. Em seus rastros audiovisuais, o excesso é performado.
De volta a Bataille e à potência ontológica do excesso: ele é incontrolável porque
justamente o que o caracteriza é nossa subjugação ao seu poder, por isso, o caráter
“soberano” do excesso, do dispêndio. Como o vento midiático de Vilém Flusser, que invade a
tudo e a todos e do qual não podemos nos proteger na contemporaneidade (BAITELLO
JUNIOR, 2010), o excesso transgride qualquer interdito. E quando o faz, a lógica racional de
produzir e acumular é substituída pela do gastar e dilacerar, consumir até destruir.
A violência do excesso é tão grande a ponto de tentarmos controlá-lo com a razão, o
trabalho, as interdições, porque todas as atividades improdutivas acionadas por ele
direcionam o homem ao gasto mais luxuoso de todos, “no qual destruição, supressão e
sacrifício constituem uma despesa tão irreversível e radical [...] que já não podem ser
determinados como negatividade” – a morte, “o próprio princípio do excesso”, na qual gasta-
se a própria vida (MBEMBE, 2016, p. 126). Em última instância, pela ótica batailliana seguida,
o que o excesso quer é a exaustão até o ponto da consumação de si: “o indivíduo se consuma
em gozo íntimo e pura perda” (BORGES, 2014, p. 22). Tomo então “consumar” como a ação
128

da “consumação”, ou seja, o consumo em sua última instância, como na palavra grega


dapanau, que significa “esgotar, saldar, finalizar” (SILVA, 2007, p. 56).

3.2 Da fome à gula: uma fisiologia do excesso

O consumo – do mundo e, em última instância, de si – do excesso batailliano encontra


equivalente em nossa própria fisiologia humana, mais precisamente no que considero a
dimensão do excesso da fome, a gula. O filósofo da comunicação Vilém Flusser (1963) possui
um interessante ensaio no qual ele distingue a fome da gula e aponta as características de
sociedades pobres, sob a “economia da fome”, e ricas, em que se opera a “economia da gula”.
A fome, explica o autor, é uma condição presente em todos os animais – humanos
ou não –, possui uma força majestosa que nos impele ao movimento para saciá-la e é perfeita
em sua organização na cadeia alimentar: “A toda noz corresponde um dente a quebrá-la, a
toda carne uma garra a rasgá-la, a todo sangue uma tromba a sugá-lo, a todo nervo um vírus
a destruí-lo” (FLUSSER, 1963, s.p.). Acontece que, conforme os seres sobem no reino animal,
mais precisamente a partir dos primatas, entra em cena a gula, a qual o filósofo considera uma
perversão da fome.
Pois bem. Familiares que estamos com as forças moventes do excesso, sem
esquecermos que o homem opera sob o princípio da perda e tem como destino a consumação,
a gula compartilha da mesma dinâmica titânica:

[O homem] devora a superfície e as entranhas da terra. Devora, psicologicamente as


suas próprias entranhas. Devora, hegelianamente, o seu próprio passado. Devora,
pela ciência, o seu próprio futuro. Devora, pelo espírito, não somente tudo que é,
mas ainda tudo que é possível. A sua gula é insaciável. Quanto mais devora, tanto
mais e mais depressa precisa devorar. Esse devorar insaciável e geometricamente
acelerado é chamado de “progresso” (FLUSSER, 1963, s.p.).

A devoração é traiçoeira: se o vazio fisiológico da fome é passível de solução, o vazio


existencial da gula é insaciável (BAITELLO JUNIOR, 2010). Na “fisiologia da gula” proposta por
Flusser (1963), começamos devorando a natureza para compreendê-la. Mas, logo, não
satisfeitos, decidimos dominá-la. O resultado dessa metabolização distorcida é os
instrumentos, a ciência, a tecnologia – as medidas outrora denunciadas por Bataille para aferir
a produtividade humana (BORGES, 2012). Em sua descrição cortante:
129

O homem devora, por exemplo, a natureza. Primeiro põe a natureza na boca:


apreende a natureza. Segundo, engole a natureza: compreende a natureza. Terceiro,
digere a natureza: subjuga a natureza. Quarto, expele os detritos da natureza
apreendida, compreendida e subjugada: evacua instrumentos. [...] A gula humana
transforma a natureza progressivamente no excremento chamado “parque
industrial”. Mas a gula não para neste ponto. Volta-se contra o próprio parque
industrial para devorá-lo (FLUSSER, 1963, s.p.).

Trago a insaciabilidade da gula para o âmbito das audiovisualidades de Hija de Perra


com a ajuda de Norval Baitello Junior (2010; 2014). Estudioso das imagens109, o autor é
perspicaz ao identificar a dimensão gulosa do consumo de imagens na contemporaneidade.
Com ele, somos convidados a seguir no caminho das voracidades: das experiências extremas
apontadas por Bataille (1987), passando pela gula flusseriana e, agora, chegando ao consumo
obsessivo de imagens.

3.3 O início de uma adicção ou obsessus imago

“Para que elas nos tatuem, mas não nos desfaçam”


Rose de Melo Rocha (2012, p. 44)

Muito antes dos registros nas cavernas rochosas, as imagens nasceram nas cavernas
densas e obscuras dos sonhos, dos devaneios e da imaginação. Depois, foram paridas pelas
palavras que contavam da origem do mundo, das coisas e da vida, conforme a imaginação se
desenhava ao som das histórias. É na mente de quem imagina que está a nascente das
imagens endógenas: aquelas dos sonhos noturnos (imagens oníricas), diurnos (devaneios), a
imaginação, o pensamento. São imagens interiores, por vezes involuntárias, enigmáticas e
cifradas, portadoras de mensagens intrapessoais, que provocam o sonhador-pensador a
construir sistemas interpretativos com base em suas histórias pessoais, a encontrar
correspondências no mundo externo e a criar modos de compartilhá-las, comunicá-las
(BAITELLO JUNIOR, 2010; CONTRERA; BAITELLO JUNIOR, 2006).

109
O autor entende imagens em um sentido dilatado, independentemente da natureza da linguagem – acústica,
olfativa, gustativa, tátil, proprioceptiva, visual (BAITELLO JUNIOR, 2014) –, o que permite considerar os vídeos,
ou audiovisualidades, de HDP também como imagens.
130

É só muito tempo depois que as “imagens mentais”110 foram transferidas para as


pedras e as rochas, finalmente vencendo as limitações das mentes que as criaram. Quando
materializadas em suportes (rochas, papel, telas digitais), cuja durabilidade ultrapassa a da
vida do corpo que fez o registro, são categorizadas no sistema do historiador alemão e teórico
da imagem Hans Belting como imagens exógenas, veiculadoras de mensagens interpessoais
(BAITELLO JUNIOR, 2010; CONTRERA; BAITELLO JUNIOR, 2006).
Entre esses dois universos imagéticos, há uma homeostase responsável pelo equilíbrio
salutar da vida psíquica, de acordo com Malena Segura Contrera e Norval Baitello Junior (2006,
p. 121): “Ambas, imagens endógenas e imagens exógenas, são evidentemente mediadoras de
sentidos e enquanto as imagens exógenas veiculam esses sentidos em mensagens
interpessoais, as imagens endógenas são portadoras de mensagens intra-pessoais”.
Acontece que as imagens exógenas possuem uma dimensão mágica irresistível, cujo
encantamento desequilibrou essa homeostase imagética. É com o objetivo de vencer a morte
que os humanos criaram suportes para conservar as imagens e transferir uma lasca de si –
criar um duplo – para uma materialidade imortal, enfrentando, assim, seu “medo ontológico
de morrer” (ROLNIK, 2006). Baitello Junior (2014) explica que as imagens, assim como a
escrita, são a negação da morte, pois a durabilidade delas ultrapassa a dos corpos que
deixaram os registros. Daí carregarem em si um fragmento de quem as criou. É “em sua longa
vida que prorrogamos e prolongamos a nossa própria vida, simbolicamente” (BAITELLO
JUNIOR, 2014, p. 24). Um duplo que, na literatura, foi explorado com riqueza por Oscar Wilde
em O Retrato de Dorian Gray.
Como poderia, então, o homem resistir à essa promessa de imortalidade? O
desequilíbrio imagético na “selva de imagens” da contemporaneidade, provocado por essa
obsessão, resulta no diagnóstico apocalíptico de Contrera e Baitello Junior (2006) de que nos
tornamos “zumbis contemporâneos”.
Para eles, o excesso de imagens exógenas soterra as endógenas, atrofiando nossa
capacidade de processá-las e criar vínculos com nosso mundo interno. Deixamos de criar,

110
Norval Baitello Junior (2010; 2014), compartilhando do pensamento de Hans Belting, também utiliza “imagens
mentais” para se referir às imagens produzidas na mente, mas os autores não são os únicos. Jacques Aumont
(1993, p. 118) define imagens mentais como “aquilo que, em nossos processos mentais, não pode ser imitado
por um computador que utiliza informação binária. A imagem mental não é portanto uma espécie de
‘fotografia’ interior da realidade, mas uma representação ‘codificada’ da realidade (mesmo que esse códigos
não sejam os do verbal).”.
131

elaborar e prosperar para nos tornarmos insaciáveis em nossa gula flusseriana pelas imagens.
Nosso mundo interno embolora, sem que consigamos encontrar a saída para o labirinto de
espelhos no qual entramos.

Esse movimento de mão dupla [entre imagens endógenas e exógenas] e sua


homeostase é que se encontra afetado [...] somos solicitados (e vemos nossa
atenção nisso concentrada) a um contínuo movimento de exteriorização. Na mesma
proporção dedica-se tanto menos atenção às imagens endógenas. Estas, é claro, não
se extinguem, mas tornam-se cada vez mais inacessíveis, relegadas a um segundo e
terceiro planos. Ao invés de cumprirem o papel de alimentar o âmbito externo,
passam a espelhá-lo indiscriminada e acriticamente (CONTRERA; BAITELLO JUNIOR,
2006, p. 121).

Essa saturação exógena e subnutrição endógena faz o homem do século XXI perder o
contato com o próprio mundo interior, carente de vínculos internos, pois sem tempo de
processar os choques externos outrora já denunciados por Benjamin (1987; 1989).

Quando a consciência está sub-alimentada pelas imagens endógenas, ou seja,


quando não há vida simbólica interior, vida reflexiva, o sistema cognitivo pessoal
acaba se colocando mais no papel de mero consumidor das imagens exógenas
oferecidas pelo mercado do que como receptor e transformador dessas imagens,
extraindo delas apenas os seus significados funcionais, e não os demais significados
complexos que elas poderiam evocar. E no final as imagens exógenas restam ocas e
inúteis, obtendo apenas resposta de padrões psíquicos autômatos e inconscientes
como os padrões maníacos do consumo. [...] Ou seja, estramos mais expostos ao
ritual de enfeitiçamento do que ao teor do feitiço propriamente dito [...] (CONTRERA;
BAITELLO JUNIOR, 2006, p. 123).

Diagnóstico semelhante tem Gustavo Castro e Silva (2007). Interessado pelo consumo
da linguagem e pela habilidade de contar histórias, ele entende que o excesso de imagens
exógenas – midiáticas, para permanecer em seus termos – ameaça a capacidade humana de
imaginar, criar e entrelaçar visões, uma pane em nosso “cinema mental”.
A esses efeitos colaterais, em outra reflexão, Baitello Junior (2014), desta vez sozinho,
se pergunta se ainda somos capazes de enxergar algo nesse ofuscamento das imagens, como
se nossos olhos estivessem inflamados por tanta poluição visual. Seu diagnóstico:
“Padecimento dos olhos”, doença provocada pela infecção do excesso de imagens.
Atrofiamento do olhar. Patologia do visível. Manifesta-se pelo ver sem enxergar. De acordo
com ele, o prognóstico não é otimista, já que países economicamente ricos estariam tendo
um aumento nas taxas de analfabetismo. Esse “neoanalfabetismo”, como chama, seria
resultado da primazia da visão no tempo acelerado da imagem técnica. Ele utiliza o jornal
132

alemão Bild como exemplo, no qual textos não ultrapassam dez linhas e as imagens
fotográficas e verbais construídas por manchetes sensacionalistas dão o tom. No Brasil, não
faltariam exemplos de similares, assim como o famigerado fenômeno das fake news também
aponta a incapacidade da pausa para a reflexão.
A infecção não ocorre pelo consumir imagens, pois isso é uma necessidade humana
(SILVA, 2007) e as imagens são condição para a sobrevivência psíquica: elas escoam e
alimentam o fluxo da produção imaginária, além de possibilitar sobrevivermos à nossa
insignificância humana (ROCHA, 2009a). O contágio se dá pelo excesso e o antídoto para a
doença dos olhos está na boca do oráculo de Delfos: “Nada em excesso. Tudo em sua justa
medida”111.
A sociedade gulosa por imagens está muito mais próxima dos romanos antigos do que
dos gregos e egípcios. Enquanto estes possuíam princípios moralistas que serviam de esteio
às práticas de consumir, medindo o homem pelo conhecimento, Augusto (27 a.C – 14 d.C)
criou uma lei para tentar controlar a quantidade de dinheiro gasta pelos romanos em jogos,
festas, bibliotecas, termas, funerais e até de joias autorizadas a serem usadas – atividades
improdutivas e de dispêndio pela ótica batailliana. Em contraste aos gregos e egípcios, posses
e bens eram as unidades de medida para os romanos. As sociedades medievais da Europa
Ocidental também tentaram frear o consumir associando-o ao demônio: “na luxúria o
consumo era o que saciava a carne; na preguiça era o que saciava o corpo; na gula era o que
alimentava os prazeres do estômago; na cobiça, o que saciava o desejo de mais e mais” (SILVA,
2007, p. 59).
A proposta de Silva (2007) não é demonizar o consumo, impor decretos oficiais como
tentou Augusto nem desenhar os interditos dos quais fala Bataille (1987). Está mais próxima
da bússola ética guiada pela vida de Rolnik (2006), vista no primeiro momento-capítulo desta
pesquisa-viagem, ao considerar a “justa medida” grega como unidade de mensuração do
comportamento do homem para com o grupo e para consigo.
Por isso, acredito que, em vez dos zumbis contemporâneos que falam Contrera e
Baitello Junior (2006), nos tornamos adictos. A fome pelas imagens se transformou em gula,
e o consumo se tornou adicção. Enquanto zumbis não podem mais voltar à vida, porque já
cruzaram o interdito da morte, a condição de adictos abre brechas para uma recuperação.

111
A frase estaria escrita no frontão do templo de Apolo, em Delfos (SILVA, 2007).
133

Pedro Luiz Ribeiro de Santi (2011), aproximando os estudos sociológicos do consumo aos da
psicanálise, aponta que o consumir gera satisfação de um desejo, enquanto a adicção provoca
alívio. Na era da reprodutibilidade técnica – pensemos com Benjamin (1987) –, consumir
imagens se tornou uma obsessão, palavra esta do latim obsessus, que indica “importunado,
atormentado” (CUNHA, 2010). Imagem, do latim imago (BAITELLO JUNIOR, 2014). A adicção
contemporânea é esta: obsessus imago.
Embora, particularmente, concorde com a proposta de Silva (2007) da “justa medida”
grega e com a importância de encontrarmos meios de trazermos de volta à vida nossa
produção endógena como possibilidades de aliviar a obsessus imago contemporânea, Hija de
Perra, entidade de força presente, gargalha das sugestões de comedimento. A monstra é a
“encarnação do excesso”, psicografa Daniela Cápona (2014). Não quer resistir à reificação
visual e abre mão de suas dimensões tridimensionais voluntariamente para habitar a
nulodimensionalidade das imagens técnicas. Escolhe ser filmada, gravada, arquivada. Ora
ciente de estar sendo devorada pela goela flusseriana, quando está em videoclipes, longa-
metragem, sendo entrevistada ou entrevistando, ou seja, consciente de que está sendo
filmada ou tendo sua fala transformada em escrita para um texto; ora independentemente de
sua vontade, quando suas performances são registradas amadoramente e escritos são
produzidos sobre os efeitos de sua presença. Escolhe ser embalsamada em vida. Uma vida
que, como sugere a ontologia das imagens, se desdobra após a morte. Sua performance post
mortem acontece, então, pela reificação visual, ao ser arquivada e transformada em imagem.
Ela sabe que uma vez imortalizada em imago, sua existência in effigie continuará explodindo
em excessos e, mais do que isso, seguirá em um eterno gozar junto.

3.4 A eróptica das imagens

Ela olha para a câmera, respira dramaticamente fundo, desliza para a ponta do
assento e responde, encarando a câmera, em um tom de voz pausado como quem explica
algo a uma criança: “O que sou é mais do que cotidiano”, responde Hija de Perra à inútil
pergunta do repórter sobre “o que significa Hija de Perra” já que “foge da cotidianidade dos
vídeos acessados no YouTube”. A câmera-olho se aproxima, lambe, cresce o rosto do monstro
na tela e torna o vidente mais próximo. HDP responde à pergunta do repórter à câmera, com
pausas dramáticas e olhares teatrais para fora do quadro. Seu rosto de ossatura grande,
134

dilatado pelas sobrancelhas negras reluzentes, está tão próximo daquele que a assiste que sua
boca lasciva, pintada de um vermelho queimado, está pronta para o beijo que W. J. T. Mitchell
(2009) diz as imagens desejarem. Um ósculo imagético consentido, tão perigoso, violento e
agressivo quanto afetuoso, no qual se engole sem matar (MITCHELL, 2009). Humanos e
imagens se cruzam em um sexo antropofágico em que o gozo se dá quando incorporam uns
aos outros pelo olhar. “Comer pelos olhos” adquire sentido tão antropofágico quanto sexual.

As pálpebras são semelhantes aos lábios, lábios abertos sobre uma boca pela qual
sai a pupila umedecida. Por isso também as lágrimas são semelhantes ao esperma:
porque ambos saem do olho. Quando as pálpebras se fecham, dispara a imaginação
(CANEVACCI, 2008, p. 264).

Não por acaso, Massimo Canevacci (2008, p. 264) descreve as imagens como
portadoras de uma erótica própria, “eróptica”, e os olhos como órgãos receptivos aos seus
“fetichismos visuais”. Sua escrita é tão libidinosa quanto as imagens que analisa, em uma orgia
semântica que remete a Bataille (2003) em História do Olho, referenciado em diversas
passagens do texto luxurioso.

A eróptica busca ultrapassar este dualismo orgânico e o fetiche é a coisa para odorar
com os olhos tanto quanto para olhar com a boca ou para tatear com o nariz. O
fetiche é polissensorial. Por estas promessas, a mutação visual do fetichismo impele
o olho – junto com os outros múltiplos sentidos – a refinar-se em eróptica. [...]
Eróptica: abre novamente o olho – o dilata semelhantemente à boca – cujos lábios-
pálpebras se abrem sobre uma língua-íris. A sua pupila é língua. Tateia e saboreia
visões, as deglute corroendo-as com a saliva. Saliva de lágrimas que dissolvem
imagens (CANEVACCI, 2008, p. 263).

Ora Hija de Perra performa o sexo em frente à câmera, que a captura “transando”
com seu público em shows e com outros performers com quem compartilha a cena112,
sugerindo quase um registro de pornô amador, ora transa com a própria câmera e,
consequentemente, com o vidente que se entrega a essa cópula imagética. Mas, cuidado,
vidente-leitor: o pecado das bruxas e feiticeiras era copular com o demônio (BESSA, 2016).

112
O uso das aspas é porque todos os rastros com os quais tive contato indicam que Hija de Perra performava
cenas de sexo e masturbação de modo paródico, escrachado, e não explícito, como é o caso de outros artistas
que trabalham com questões de sexo, sexualidade e gênero. Também penso as apresentações musicais de
HDP, quando ela apresentava suas músicas de conteúdo sexual, como um ato sexual com o público presente.
Seus movimentos simulatórios nos palcos sugerem um contrato contrassexual, nos moldes de Preciado (2014),
entre artista e público, quando do consentimento de compartilharem do mesmo tempo-espaço, coproduzirem
a performance e gozarem juntos.
135

Nos vídeos de suas apresentações em casas noturnas, são frequentes as simulações de sexo e
masturbação. O convite da besta está feito.
Com uniforme de enfermeira, canta Me desnudo (HIJA DE PERRA [...], 2009), na casa
noturna Pagano, em Valparaíso, em 31 de janeiro de 2009113 (Fig. 7). Aponta incisivamente
para o público, rebola até o chão, esfrega seus peitos de silicone que escapam pelo decote do
uniforme e masturba a vagina protética, igualmente escondida-exposta pelo cumprimento da
roupa. Gritos do público são ouvidos quando ela tira o uniforme em um strip-tease
escrachado, rodando a peça sobre a cabeça e revelando um figurino com recortes estratégicos
no tecido para expor as próteses. O microfone fálico segue tão próximo da boca cantante e
escancarada que aciona a imagem de um pênis eletrônico, um tecnopênis.

Figura 7 – Fotogramas de Me Desnudo, em Valparaíso

113
De acordo consta nas informações do rastro audiovisual.
136

Fonte: YouTube.

Já em outras cenas, estas no curta-metragem documental (CORTOMETRAJE


DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012), a provocação sexual com a câmera, e consequentemente
com o vidente, se explicita. Em um restaurante, come seu sanduíche de formato fálico sem
tirar os olhos da câmera, para então mastigá-lo de olhos fechados com expressão de prazer.
Em outro momento do mesmo vídeo, adota uma entonação mais agressiva, de fala rápida e
disparada, mexendo-se em cena, com a cabeça indo e voltando em direção à câmera, acuando
o vidente. A fala é entrecortada apenas para lamber luxuriosamente o sorvete que chupa. A
cena seguinte é um close tão grande de sua boca-vagina, com lábios vermelhos, que basta o
vidente colar seus lábios à tela portal para consumar o ato (Fig. 8).

Figura 8 – Fotogramas do curta-metragem documental Perdida Hija de Perra


137

Fonte: YouTube.

Beijar com os olhos as audiovisualidades de Hija de Perra é satisfazer a “pulsão do


ver”, ou “pulsão escópica”, da qual a psicanálise nos fala e Jacques Aumont (1993) se vale para
construir sua “antropologia do telespectador”. Interessado em compreender o espectador das
imagens como um sujeito desejante, cujos afetos, pulsões e emoções intervêm em sua relação
com as visualidades, Aumont (1993) fundamenta-se na teoria lacaniana para compreender o
“olhar” como objeto, ou seja, um meio de satisfazer uma pulsão, e o olho como fonte de libido,
não apenas de visão.
O psicanalista Cleo José Mallmann (2016, p. 45), interessado nas potencializações e
explorações do prazer de olhar no espaço da internet, descreve a “pulsão escopofílica” como
uma necessidade de olhar e uma das possibilidades de expressão da pulsão sexual. Essa
relação entre “olhar” e “sexo” arremata, psicanaliticamente, o caminho que percorremos com
a eróptica de Canevacci (2008), também tributário da psicanálise. E se o sexo e a morte
compartilham de proximidades (BATAILLE, 1987), temos, ainda, uma conexão entre as
atividades de olhar, transar e morrer. Na ficção História do Olho, Bataille (2003) expõe essa
relação com força surrealista e descreve fantasias sexuais com objetos diversos que
compartilham entre si a similaridade – geométrica, viscosa – com o órgão da visão.

Quando perguntei o que lhe lembrava a palavra urinar, ela me respondeu burilar, os
olhos, com uma navalha, algo vermelho, o sol. E o ovo? Um olho de vaca, devido à
cor da cabeça, aliás, a clara do ovo era o branco do olho, e a gema, a pupila. A forma
do olho na sua opinião, era a do ovo. Pediu-me que, quando saísse, fossemos
quebrar ovos no ar, sob o sol, com tiros de revólver. Parecia-me impossível, mas ela
insistiu com argumentos divertidos. Jogava alegremente com as palavras, ora
dizendo quebrar um olho, ora furar um ovo, desenvolvendo raciocínios
insustentáveis (BATAILLE, 2003, p. 56).

Nunca tinha visto testículos de touro sem pele. [...] Nada me levava a associar, até
então, esses testículos [de touro sem pele] com o olho e o ovo. Meu amigo mostrou-
me que estava errado. Abrimos um tratado de anatomia, onde verifiquei que os
testículos dos animais e dos homens são de forma ovoide e que têm o aspecto e a
cor do globo ocular (BATAILLE, 2003, p. 96-97).

A atividade de olhar, entretanto, não é a única instância da pulsão escópica,


constituída por uma fase ativa (olhar), reflexiva (olhar a si) e passiva (ser olhado), explica
Antonio Quinet (1997). Se aplicada tal dinâmica às imagens, pode-se pensar que a fase ativa
se dá quando se olha para as imagens exógenas; a reflexiva ao processá-las internamente,
138

criando vínculos com as imagens endógenas; e passiva quando as imagens nos olham ou,
parafraseando Mitchell (2009), retribuem nosso beijo.
O poético beijo do autor, contudo, não é a única coisa que as imagens querem de
nós. “São elas, as imagens, com sua alma irônica, que estão a nos olhar”, pensa Rocha (2010),
e, se padecemos de obsessus imago, também elas estão adictas: “Nós somos seu vício e elas
o nosso destino fatal”.

3.5 Da consumação

Portais sedutores, convites para outro mundo, abrigos para uma morada eterna.
Fazem gozar pelos olhos, um último orgasmo antes de te transformarem em imago. O colorido
sedutor excita o olhar, intumesce as pálpebras, acaricia a íris. Famintas, querem gozar junto.
Mas quando da petite mort do orgasmo das imagens, nem sempre se retorna à vida. O beijo
molhado de tinta começa pelos pés. Sobe sem que se perceba pelas pernas quentes de um
corpo vivo. A princípio, com delicadeza, sem que a pele perceba estar sendo beijada. Mas,
como no sexo, a excitação das imagens também cresce. Depois de passada pela altura do sexo,
não conseguem mais se controlar e a velocidade aumenta. Tentar impedir a consumação, a
essa altura, é inevitável, e o tesão icônico consome a carne do corpo e o artifício da máquina.
Qualquer suporte – carnal ou tecnológico – é passagem para a descompressão. O último lugar
a ser beijado é onde tudo começou. Pelos olhos, o êxtase acontece, a consumação se
concretiza (Fig. 9).
A narrativa é uma descrição delirante de uma cena do eróptico filme Velvet Buzzsaw
(2019), do estadunidense Dan Gilroy. Ambientado em um sexy e competitivo universo das
galerias e museus de arte, o roteiro é sobre a apropriação por um crítico e duas galeristas das
obras um pintor falecido que, antes de morrer, deixou instruções para que todo seu acervo
fosse destruído. Acionando uma discussão sobre o duplo das imagens, a imortalidade através
delas, sua dimensão mágica e o consumo que se transforma em consumação, assistimos ao
magnetismo das imagens do pintor falecido sobre aqueles que as miram.
139

Figura 9 – Fotogramas do longa-metragem Velvet Buzzsaw


140

Fonte: Netflix.

Magnetizados pela força expressiva e pelos olhares retratados nas pinturas, eles fazem
conluios para valorizar as peças, que são rapidamente aclamadas no circuito de arte. Olhares
representados em fotos ou em pinturas estão espalhados por diversas cenas do filme, que se
passa em Los Angeles, uma metrópole como a de Canevacci (2008), que devolve o olhar de
141

quem a mira. Os personagens estão sendo observados a todo o tempo, como na teoria
lacaniana que defende um olhar onividente exterior ao sujeito e, por isso mesmo, contribui
na sua constituição enquanto um.
Diversas mortes acontecem na história, com personagens que se aproximam demais
da mirada sedutora e lasciva das imagens do pintor que criava as sombras e os tons de
vermelho escuro com sangue. As imagens de Velvet Buzzsaw estão mais próximas da icônica
cena de Poltergeist (1982) do que da boca na tela da televisão citada por Mitchell (2009) em
Videodrome (1983). No clímax do filme, de onde se extraiu a descrição que abre esta seção,
Josephina, a galerista que se apropria inadvertidamente das pinturas do pintor morto, é
consumida pelo grafite em um muro da cidade, uma metrópole que, tal como as imagens, não
satisfaz mais seu apetite em apenas devolver o olhar e passa a incorporar aqueles que a
miram.
“Queremos assimilar a imagem a nossos corpos, e elas querem assimilar-nos aos
delas”, diz Mitchell (2009, p. 4). Se, concordando com Baitello Junior (2010), as imagens da
contemporaneidade fugiram do espaço e são caracterizadas pela imaterialidade, tornando-se
espíritos errantes e nômades sem corpos, penso que, talvez, elas precisem dos corpos
humanos para animá-las, trazê-las à vida e, em uma visada xamânica, possuir nossos corpos
para circularem pelo mundo. Rocha (2010) já denunciou a adicção das imagens pelo nosso
olhar. É possível, então, compreender a transposição da imagem do suporte midiático para a
mente como uma possessão? Em Velvet Buzzsaw, as imagens estão desenfreadas em sua gula.
Beijar não lhes satisfaz, é preciso possuir, in-corporar a humanidade.
A despeito do surrealismo do filme e dos delírios teóricos que ele suscita, é inegável
que as imagens constituem um universo autômato na contemporaneidade, cuja força e
sedução ecoam a profecia de Mary Shelley da criatura que se volta contra seu criador. Há
muito tempo as imagens se tornaram independentes do mundo da vida e das coisas e
impuseram seu domínio (BAITELLO JUNIOR, 2014; ROCHA, 2010), fundando seu mundo
próprio e convidando-nos incisivamente a nos transferirmos para lá e cultuá-las em seus
simbolismos e luminosidades. Portadores de uma “cegueira para o apocalipse” (BAITELLO
JUNIOR, 2014, p. 33), somos seduzidos por promessas de bem-estar, otimismo, heroísmo,
invencibilidade e imortalidade das imagens. Mas para adentrar pelos portões de Hades114, é

114
Na mitologia grega, Hades é o deus dos mundos subterrâneos e o nome do lugar para onde as almas vão após
a morte para serem julgadas por esse deus. “O deus Hades inspirava medo e era considerado austero,
142

preciso abandonar o próprio corpo. Precisamos deixá-lo para trás em prol de uma existência
em imagem, in effigie.
Paula Sibilia (2004) materializa a discussão ao investigar o “pavor da carne” na
contemporaneidade, quando técnicas e estratégias de estilização corporal são empregadas
para expurgar tudo aquilo que denuncie a humanidade do corpo – suor, gordura, viscosidades.
O objetivo final das “práticas bio-ascéticas” dos regimes alimentares, cirurgias plásticas e
exercícios físicos – que têm como unidades de medida e valoração dor, tempo e dinheiro – é
a construção de um “corpo-imagem”, disponibilizado para o consumo exclusivamente visual.
Consumo escópico, eu diria. Nessa cosmologia descrita pela autora, cozinhamos a nós
mesmos para o banquete final: quando as imagens, como Dan Gilroy delira em seu filme,
devoram a (nossa) humanidade (BATEILLO JUNIOR, 2014). Tal como a consumação pelo
excesso, quando em seu extremo mortífero, as imagens são capazes de devorar a nós mesmos
e o beijo delas se torna o beijo da morte.
Esse processo é a iconofagia de Baitello Junior (2010; 2014), quando as imagens
passam a orientar nossos sentimentos e percepções, ou seja, devorar nossa humanidade. Na
era digital, trata-se de uma condição inexorável, da qual não se pode escapar. Assim, devorar
ou ser devorado por imagens não são opções a serem escolhidas, mas condição simultânea
do habitar o mundo contemporâneo (ARRIAGA FLÓREZ, 2014), no qual o excesso se tornou
cotidiano e avançou para todos os espaços (BAITELLO JUNIOR, 2014).
Tal perspectiva pode soar delirante, visto que estamos acostumados “ao excesso de
imagens e à visualidade exuberante que caracterizou progressivamente o desenrolar do
século XX, moldado que foi pelas máquinas de reprodução, de conservação, de projeção e de
transmissão [...]” (BAITELLO JUNIOR, 2010, p. 81). Não obstante, o autor entende que os
modos de habitar e se relacionar, consigo e com o mundo, são muito diferentes entre a
sociedade que produzia manualmente suas imagens – entalhadas, esculpidas, pigmentadas
lentamente – e a que pariu as máquinas reprodutoras de imagem. Essa proliferação disputa

impiedoso, insensível, intimidativo e distante. O Hades, lugar dos mortos, era o local para onde todos os
mortos, bons ou maus, eram guiados por Hermes a fim de serem julgados pelo deus Hades. Era dividido em
dois espaços: o Tártaro, personificado por um dos deuses primordiais, nascidos de Caos e de Gaia, que geraram
as mais terríveis imagens da mitologia grega, e era uma região de nevoeiros e de árvores sombrias, repleto de
cavernas e grutas profundas onde as almas condenadas, ficavam aprisionadas; e, os Campos Elíseos (Ilha dos
Bem Aventurados) rodeado por paisagens verdes e floridas, onde iam os heróis e homens virtuosos.”
(QUINTILIANO, 2009, p. 3). Cf. QUINTILIANO, Angela Maria Lucas. De Hades ao Diabo: uma reflexão sobre os
significados das imagens no imaginário pós-moderno da figura do Diabo. Revista Brasileira de História das
Religiões, ano 1, n. 3, 2009.
143

espaço no mundo assim como o olhar e o tempo de vida dedicado a consumir e se transformar
em imagens, conforme exemplifica a análise crítica de Sibilia (2004).
A iconofagia serve tanto para quando os humanos devoram as imagens, como para
quando as imagens devoram os humanos e surge de uma leitura de Baitello Junior (2010;
2014) sobre Vilém Flusser e Oswald de Andrade. Deste último, ele se apropria do conceito de
antropofagia, uma proposta de devorar a cultura europeia em vez de imitá-la, com um sentido
construtivo e criativo. E, de Flusser, ele se vale da “escada da abstração”, onde a cada degrau
que se desce, perde-se uma dimensão do mundo, como em direção a uma “goela que faz
sumir tudo em suas entranhas” (BAITELLO JUNIOR, 2010, p. 22).

A dimensão da profundidade (que dá a materialidade palpável, corpórea) perde-se


no universo das imagens planas, das tradicionais representações imagéticas sobre
superfícies. O degrau seguinte é alcançado pela transformação as imagens em
pictogramas, ideogramas e letras, que abrem ao homem o caminho para o universo
da escrita (e de sua decifração, a leitura). [...] A linearização do mundo por meio da
escrita exigiu a tradução do mundo tridimensional e do mundo bidimensional ao
mundo unidimensional. Com a escrita o mundo passa a ser descritível, o que abre os
caminhos para o pensamento lógico, linear e conceitual. [...] Pois foi justamente esse
pensamento linear e conceitual que criou as bases para o surgimento dos aparelhos
produtores da imagens técnicas ou tecnoimagens. Tais tecnoimagens nada mais têm
a ver com as imagens tradicionais, pois são frutos da etapa seguinte na escalada da
abstração: não possuem mais nenhuma corporeidade, são uma fórmula, um cálculo,
um algoritmo (que apenas se projetam sobre um suporte qualquer: papel, vidro,
parede e até mesmo a névoa, o vapor ou o ar). Elas são nulodimensionais, uma vez
que a última dimensão espacial que lhes restava também é subtraída (BAITELLO
JUNIOR, 2010, p. 53-54).

Esse descenso descrito não é uma imagem de devoração, e sim de ser devorado. Uma
queda no vazio vertiginosa muito semelhante ao efeito dos movimentos errantes das
audiovisualidades de HDP. Atraído por sua eróptica, tem sido sufocante o caminho desta
pesquisa-viagem. O mapeamento herético do rizoma, realizado ainda no primeiro ano do
mestrado, já expusera a quantidade exasperante de materialidades comunicacionais
orbitando o universo nulodimensional da internet. Não importa o tamanho da gula por
imagens, não é possível abocanhar todas as suas audiovisualidades. Lembremos: são 68
rastros audiovisuais. Um excesso que não é só numérico. Para além do bombardeio
audiovisual, o excesso se manifesta no interior das audiovisualidades. Elas carregam uma
profusão que satura os olhos e faz padecer115. E dado que é uma característica do ambiente

115
Sobre eles, os excessos internos, discorrerei na próxima seção, Estilhaços do excesso: elementos para
construção de uma poética audiovisual.
144

digital a proliferação em dimensão virulenta (BAUDRILLARD, 1998) e excessiva (BATAILLE,


1975), vídeos, fotos, reportagens sobre a performer continuaram a surgir e desaparecer nos
meses que se seguiram.
Há rastros digitais mapeados outrora que não estão mais disponíveis, conforme
descobri quando tentei acessá-los. Uma mensagem de “video unavailable” aparece na tela116.
Teria sido excluído pelo próprio usuário que fez upload? Teria infringido alguma política do
YouTube? O motivo não é compartilhado com quem acessa o link. Em contrapartida, vídeos
não mapeados da primeira vez surgem na tela à resposta da pesquisa “Hija de Perra” no
buscador do YouTube, indicando que novos materiais continuam sendo compartilhados. E
embora haja sempre um corpo humano fazendo esse upload, uma vez no espaço digital,
perde-se o controle sobre essa imagem audiovisual, que circula à revelia do usuário que fez o
upload original, podendo ser indexada e compartilhada em redes sociais digitais e sites
diversos ou mesmo excluída, caso denunciada por infringir alguma política do YouTube.
Ainda que isso ocorra e a existência nulodimensional da imagem seja excluída-
destruída, concordando com Hans Belting (2015), uma vez transferida para a mente de um
usuário, ela segue viva. Consumir as audiovisualidades de HDP é ser, por essa presença
audiovisual, consumido. Não há alternativa. Como Josephina consumida em Velvet Buzzsaw,
HDP possui quem a consome. E sua incorporação é indigesta. É difícil digeri-la com tanto dildo,
tanta prótese, tanto cabelo, tanta maquiagem. Quando comemos algo que nos faz mal,
podemos sofrer de refluxo gastrointestinal. Os excessos de HDP, por sua vez, provocam um
refluxo visual, difícil de ser metabolizado.

3.6 Estilhaços do excesso: elementos para construção de uma poética audiovisual

Em uma sociedade iconofágica, saturada pelas aparências, na qual a forma venceu a


batalha contra o conteúdo (BAUDRILLARD, 1998) e a humanidade do corpo é expurgada
(SIBILIA, 2004), a performance de Hija de Perra mobiliza alguns elementos estéticos que, dada
a sua combinação e reiteração em suas performances, acionam a sensibilidade camp, descrita
por Susan Sontag (1987), e a teoria do grotesco, de Mikhail Bakhtin (1987). Através dos rastros

116
O vídeo HIJA DE PERRA – Makeup tutorial, categorizado como Homenagem, no mapeamento herético do
rizoma, é um desses vídeos. O link para acessar o vídeo retorna com uma mensagem de vídeo indisponível.
Mas há outros também na mesma situação de desaparição. (in)Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=q1Oo8-iYbLk. Acesso em: 20 dez. 2019.
145

audiovisuais, sente-se uma presença que se constrói na órbita dos “imaginários do excesso e
da sedução do artifício” dos quais fala Rose de Melo Rocha (2018a). Leitora de Jean Baudrillard
e refletindo sobre os corpos das mulheres frutas da mídia – “hipermulheres” –, ela desenha
um cenário, já apontado pelo autor francês, no qual se perde o norte na espiral delirante do
consumo contemporâneo e se entrega à sedução dos artifícios. Todavia, ela é precisa ao
pontuar que se trata de um cenário de tensões e paradoxos. Enquanto há “decréscimo de
potência de subjetivação” (ROCHA, 2018a, p. 233) de um lado, como no caso das
hipermulheres observadas pela autora, há brechas pelas quais outros se valem dos mesmos
códigos para, em um rearranjo, resistirem. A bricolagem na performance de Hija de Perra é
um desses rearranjos que torna frívolo o sério e desorganiza as supostas fronteiras entre
natureza e artifício.
Vejamos alguns desses elementos considerados por mim como estilhaços da poética
audiovisual que Hija de Perra constrói em sua performance. Penso os estilhaços tensionando
essa característica fragmentária da pós-modernidade apontada por Baudrillard (1998) e as
mônadas benjaminianas. Estas são explicadas por Maria Inês Petrucci Rosa et al. (2011, p. 203-
204) como “centelhas de sentidos” experienciáveis não como partes de um todo, mas como
“partes-todo”: “as mônadas podem ser entendidas como pequenos fragmentos de histórias
que juntas exibem a capacidade de contar sobre um todo, muito embora esse todo possa
também ser contado por um de seus fragmentos”. Organizo essas “miniaturas de sentidos”
em uma constelação de imagens cujos efeitos ajudam a contar sobre o imundo mundo de Hija
de Perra.

Estilhaços 1 – Estampas animais

Mountain Men117 pós-modernos caçam simbolicamente – às vezes nem tão


simbolicamente – onças e zebras, para elas esfolarem e transformarem suas peles naturais
em tecidos artificiais. Com estes, um leque de produtos é produzido e escoado no sistema de
distribuição e distinção da moda. Orgulhosos somos das ferramentas que criamos e com elas
termos, supostamente, dominado a natureza. Ainda assim, às imagens da natureza
retornamos para alimentar nossa produção imaginária e continuarmos a criar. Dos bichos,

117
Mountain Men era o nome dos caçadores de peles das Montanhas Rochosas, nos Estados Unidos, no século
XIX.
146

tentamos roubar a força e usar suas peles como mantos em um movimento como o do canibal
que também devora o inimigo buscando incorporar sua força. Em Hija de Perra, a estampa
animal adquire alguns sentidos próprios. Sendo ela mesma uma monstra, a estampa é sua
pele, reforçando a animalidade de sua abjeção e, talvez por isso, tão frequentemente
utilizada. No circuito da moda, ora evoca poder, sensualidade e extroversão, ora é sinal de
breguice, a depender da posição de quem usa no sistema de distinção. Como tudo em HDP,
não é um nem outro, mas os dois. A um só passo se conecta à hipersexualidade que ela
performa publicamente e a um certo aspecto de roupa barata, artificial. O cobertor de zebra
e o que parece ser um travesseiro de onça sobre o qual dorme, no início do curta-metragem
documental Perdida Hija de Perra (2012), tem efeito sinestésico. É quase possível sentir o
material barato pinicando a pele. Talvez porque pinique o olhar. Às vezes, a estampa está
mais discreta, como na blusa justa que usa como segunda pele, no discurso em Arica, ou nos
sapatos altos e refletivos funcionando como atratores estranhos em sua composição
sofisticada para dar palestra na universidade. Em outros momentos, mais frequentemente
quando está em situações de ápice de sua hipersexualidade, a estampa cresce no corpo. É o
que acontece no videoclipe de Indecencia Trance (HIJA DE PERRA [...], 2012c) e, mais
intensamente, quando a estampa lhe cobre quase todo o corpo na apresentação musical que
faz cantando Me desnudo (HIJA DE PERRA [...], 2009), no que parece ser uma casa noturna.
Neste rastro audiovisual, canta que se despirá para o interlocutor, porque é “caliente porque
si”. E quando o faz, sob o uniforme de enfermeira, não há nada, senão sua pele felina e seus
órgãos protéticos à mostra (Fig. 10).

Figura 10 – Flashes das estampas animais


147

Fonte: YouTube.

Estilhaços 2 – Órgãos artificiais

Se a Ciciolina de Baudrillard (1998) e as hipermulheres de Rocha (2018a) alteram a


anatomia do corpo orgânico em seus processos de embonecamento, as intervenções de HDP
estão no campo do simulacro, a simulação da simulação. São próteses que, em um primeiro
momento, se apresentam realistas a olhares desatentos, principalmente por causa da baixa
resolução dos registros audiovisuais amadores (Figs. 11 e 12). Diversos usuários comentam no
vídeo do curta-metragem documental, perguntando se HDP realmente mutilou os mamilos
em uma das cenas finais. Performando em uma casa noturna, ela faz verter um sangue
artificial das próteses (CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012). Em outras
situações, veste roupas com recortes estratégicos para deixar os seios à mostra (HIJA DE
148

PERRA [...], 2012e; HIJA DE PERRA [...], 2009). No corpo das hipermulheres, a “opulência
corpórea” (ROCHA, 2018a, p. 249) é conquistada por próteses de silicone sob a pele, no de
HDP estão sobre. Hija de Perra está do avesso. No discurso das músicas, traz a viscosidade do
corpo para fora e canta os fluídos das doenças sexualmente transmissíveis e os odores da
matéria fecal. No discurso do corpo, inverte a lógica das roupas e as usa não para camuflar,
mas para expor. As narrativas do consumo e as representações midiáticas convocam à
hipertrofia dos corpos a ponto de que eles escapem das roupas e, ao mesmo tempo,
delimitam uma geografia ilhar, na qual mamilos e órgãos reprodutivos devem ser ocultados
em ilhas minúsculas de tecido e cercados por um oceano de pele a ser consumida pelo olhar.
A transgressão é uma característica da performance e HDP ignora os interditos, redesenhando
a geografia do seu corpo. Cobre o que se espera estar de fora e expõe o que deveria
permanecer privado. “Podemos ter um plástico que nos deleita como um genital real, que
maravilha. As pessoas amam plásticos. Podemos nos masturbar com plástico e sermos muito
felizes”, comemora no curta-metragem (CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012).
Nos paraísos artificiais da contemporaneidade, o embonecamento, fazer-se boneca
(calada ou, se falar, que se faça risível e disponível para consumo), é um imperativo às
hipermulheres (ROCHA, 2018a). Embora chilena, notemos que “boneca”, na cultura brasileira,
mais especificamente do circuito queer, se refere às travestis. Em sua etnografia com jovens
entre 15 e 21 anos que estão no início de processos de se tornar travesti, Marília dos Santos
Amaral (2012) aponta que “boneca” é um termo utilizado há décadas no Brasil para se referir
tanto a travestis experientes quanto iniciantes e tem sido empregado de modo afetuoso entre
elas, principalmente nas narrativas de si e entre si nas redes digitais. Há uma relação entre as
bonecas, a plasticidade dos corpos que “borram as margens de um esquema binarista e
heterocentrado” e a “construção plástica, quase irreal, pouco natural” de alguns deles
(AMARAL, 2012). O que pode ser mais “boneca” do que Hija de Perra com sua hipervagina e
hiper-seios? Não se narra mulher para ser hipermulher. Que seja, então, hipermonstra.
149

Figura 11 – Flashes da vagina protética

Fonte: YouTube.
150

Figura 12 – Flashes dos seios protéticos

Fonte: YouTube.

Estilhaços 3 – Dildos e objetos fálicos

O dildo é o espelho de Alice pelo qual [Paul] Beatriz Preciado (2014) nos convida a
entrar. É também a categoria de análise a partir da qual propõe investigar a sexualidade, tal
como Karl Marx propôs ler a sociedade industrial a partir da mais-valia. O dildo, fisicamente
ou na forma de objetos fálicos, tem uma presença nas audiovisualidades de HDP, que faz dele,
deliberadamente, atrator estranho (Figs. 13 e 14). Trata-se de objeto universal, pois passível
de utilização em práticas sexuais independentemente de orientações sexuais e sem superfície
ou orifício predeterminado para uso. HDP mostra isso quando, ao escrutinar
voyeuristicamente sua casa, a câmera lambe um dildo quase kitsch decorando o parapeito de
sua janela (CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012). Para Preciado (2014), o dildo
não é um substituto artificial para o pênis, mas uma tecnologia criada para acessar o prazer
tanto quanto o pênis. Este passou de “órgão reprodutor” para “órgão sexual” por um processo
heterocentrado tecnológico que recorta e determina quais partes do corpo são admissíveis
para sentir prazer e transar. O mesmo processo também é responsável por definir
arbitrariamente que um órgão específico – no caso, o pênis – é o determinante da diferença
sexual e de gênero. Todavia, as tecnologias que criaram o dildo não previram sua traição. Ele
151

expõe a arbitrariedade do sexo e da sexualidade tal como entendidos pela lógica


heterossexual. Do sexo, porque é a redução dele a um único órgão ou conjunto de
características biológicas como determinante para a identificação sexual. Da sexualidade,
porque é a simplificação das múltiplas possibilidades e combinações de prazer a zonas
específicas do corpo e a uma combinação única (pênis-vagina) (PRECIADO, 2014). O dildo
deforma “as ideias e os afetos tradicionais em torno do prazer sexual e do orgasmo, tanto
heterossexuais como homossexuais”, explica Preciado (2014, p. 86). Vejamos o que mais o
autor diz sobre esse objeto:

Como objeto móvel, que é possível deslocar, soltar e separar do corpo,


caracterizando-se pela reversibilidade no uso, ameaça constantemente a
estabilidade das operações dentro/fora, passivo/ativo, órgão natural/máquina,
penetrar/cagar, oferecer/tomar...[...] Eis aqui um objeto que se deve ferver em
temperatura alta para estar bem limpo, que se pode dar de presente, jogar no lixo
ou servir de peso para papéis. O amor vai embora, o amor volta, os casais sexuais
vão e vêm, mas o dildo está sempre ali, como sobrevivente do amor. Como o amor,
e não essência (PRECIADO, 2014, p. 87).

O dildo extraiu do corpo o órgão que supostamente determina a identificação sexual


e evidencia que o prazer não está concentrado em um “suposto centro orgânico de produção
sexual” (o pênis como elemento indispensável para transar). É possível obter prazer a partir
do dildo, esse objeto inorgânico, essa fonte de prazer localizada fora do corpo, extracorpórea.
“Podemos ter um plástico que nos deleita como um genital real, que maravilha! As pessoas
amam plásticos. Podemos nos masturbar com plástico e sermos muito felizes”, se encanta
HDP em uma cena do seu curta, na qual está em uma loja de produtos eróticos, em meio a
prateleiras de pênis de borracha (CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012). O dildo
rompe as distinções entre sujeitos sensíveis e objetos inanimados, sinalizando que os limites
do corpo não coincidem com os limites da carne.
Hija de Perra performa a reflexão de Preciado (2014) em cenas com dildos infláveis,
tradicionais, de duas cabeças, e outros objetos fálicos, como cachorro-quente, garrafa de
suco, sorvete, microfone. Ela lambe, engole, chupa e goza olhando e sendo olhada pela
câmera, que, por sua vez, goza junto em um orgasmo imagético. Nota-se, contudo, uma
restrição na geografia do corpo da performer. Enquanto Preciado (2014) propõe um gozar por
todo o corpo (pés, braços, cotovelos, calcanhares etc.), as performances de HDP estão fixadas
na genitalidade e oralidade. Suas simulações de prazer, sozinha ou com alguma de suas
152

companheiras de cena, estão sempre restritas a toques e uso dos dildos ou objetos fálicos na
sua vagina protética ou na boca.

Figura 13 – Flashes dos dildos

Fonte: YouTube.

Figura 14 – Flashes de objetos fálicos

Fonte: YouTube.
153

Estilhaços 4 – Palimpsestos e dilaceramentos têxteis

A fragmentação é uma característica nas audiovisualidades de Hija de Perra. Como


muitos dos rastros são registros amadores, eles começam e terminam abruptamente, nem
sempre incluem a performance ao vivo inteira, haja vista que possuem cortes bruscos. Isso faz
com que tais rastros audiovisuais sejam um conjunto de retalhos das performances de HDP, o
que, por si só, já constitui outra performance, dando continuidade à gravada no que
chamamos de performance post mortem no capítulo-momento anterior desta pesquisa-
viagem. Mesmo quando se trata de um registro profissional, a fragmentação é um elemento
deliberadamente acionado pelas escolhas de enquadramento e edição. No curta-metragem
(CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012), há momentos em que a performance é
fragmentada em closes monstruosos, preenchendo a tela com pedaços de seu corpo. A edição
também possui cortes bruscos, sem transições, e a ambientação da filmagem muda não por
transição, mas por saltos de uma imagem para outra. A estética amadora do curta-metragem
ecoa a fragmentação do conjunto de audiovisualidades que compõem a performance post
mortem. Suas roupas parecem materializar esse despedaçamento (Fig. 15). São peças
desconexas, com tecidos sobrepostos (palimpsestos têxteis), cortes inusitados. Hija de Perra
veste muita sobreposição, como no clipe de Indecencia Trance (HIJA DE PERRA [...], 2012c).
Meia calça rasgada, por baixo de um microshorts, por cima de um body, por baixo de um
bolero. Na apresentação de Me Desnudo (HIJA DE PERRA [...], 2009), há os rasgos já
mencionados para exposição das próteses e uma meia calça rasgada que aparece novamente
na apresentação de Nalgas con olor a caca (HIJA DE PERRA [...], 2012a). Cantando Reggaeton
Venereo (HIJA DE PERRA [...], 2012e), calça botas de couro cujos canos terminam abaixo do
joelho, enquanto as meias continuam até as coxas, o que se repete no curta-metragem. Uma
peça frequente em seu guarda-roupa público é arm warmers, uma espécie de polaina para os
braços, como é visto na entrevista para a revista Fill (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013), no curta-
metragem (CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012) e nas apresentações de
músicas (HIJA DE PERRA [...], 2012a; HIJA DE PERRA [...], 2012e; HIJA DE PERRA [...], 2009).
Esses retalhos e palimpsestos têxteis no guarda-roupa, rasgos, dilacerações, provocam um
efeito de recortar visualmente o corpo da performer, tornando-a, mesmo quando encarnada,
despedaçada.
154

Figura 15 – Flashes dos tecidos dilacerados e sobrepostos

Fonte: YouTube.

Estilhaços 5 – Sobrancelhas e presilhas

O rosto é a morada do olhar. A importância do último nesta pesquisa, suponho, está


evidente a esta altura. Expus a potência do olhar como guia de uma investigação cartográfica,
no primeiro momento-capítulo, e as vinculações possíveis entre imagem e olhar em sua
dimensão orgástica algumas seções acima. Posto isso, a potencialidade do rosto de Hija de
Perra em suas audiovisualidades surge, agora, como trajeto a ser percorrido em duas
vertentes, uma filosófica, posicionando o rosto como metáfora de um modo de habitar o
mundo, e uma prática, de intervenção sobre a fisicalidade da face.
155

Nossos já familiares Gilles Deleuze e Félix Guattari (1996) possuem uma complexa
discussão sobre Rosto e rostidade, na qual pensam sobre os processos de subjetivação e como
estes se dão em relação às possibilidades de um sistema que baliza os modos de existência no
mundo. Jorge Luiz Viesenteiner (2006) auxilia na compreensão ao explicar que o Rosto, para
os autores, é entendido como uma “máquina abstrata” que cria códigos e modos de existir
para, depois, inscrevê-los nos homens, dando-lhes um Rosto. Este Rosto não é o rosto
concreto, individual, até porque primeiro vem o Rosto, depois o rosto e, novamente, o Rosto.
Somos introduzidos em categorias que existem antes de nossa própria existência, de modo
que apenas nos encaixamos ao que já existe e, assim, em conjunto, continuamos a alimentar
unidades comuns que vão se somando até desembocarem no Rosto – um processo de
retroalimentação.

[...] é importante dizer que a produção social do Rosto não significa individualizar
cada rosto concreto em particular, ou seja, produzir o Rosto concreto de João, Maria,
José, etc. Ao contrário, segundo Deleuze os rostos concretos individuados se
produzem e se transformam numa grande unidade comum, construído através das
codificações que a cultura produz, até desembocar no grande Rosto. Assim, ao invés
de construirmos um rosto próprio somos metidos e gravados em um Rosto
produzido culturalmente (VIESENTEINER, 2006, p. 4).

Esse Rosto, preexistente e no qual somos forjados a inscrever nossa subjetividade, é,


para Deleuze e Guattari (1996), o rosto de Cristo – um padrão de homem branco europeu,
com suas “grades bochechas”, cumpridor de funções sociais e deveres, produtivo e
consumidor. Por isso, Viesenteiner (2006) entende que as primeiras desvianças são de ordem
racial, dos homens amarelos e negros. Inserimo-nos em um Rosto mais do que possuímos um
(DELEUZE; GUATTARI, 1996).
Isso não significa que não podemos escapar da “máquina abstrata da rostidade”
(DELEUZE; GUATTARI, 1996). Desenhar as linhas de fuga do Rosto é algo extremamente difícil.
Uma imagem acionada pelos autores para ilustrar a força cerceadora do Rosto é o tique
enquanto traço de rostidade que tenta fugir, mas é capturado antes de romper com o Rosto.
Difícil, não impossível. Com os pincéis com os quais desenha seu rosto, HDP esboça também
suas linhas de fuga da máquina abstrata da rostidade (SANTOS, 2019). Cria para si um rosto
que não é lido pela binarização da matriz colonial do poder nem pelo sistema biunívoco da
156

rostidade. “Que horror!”, escreve um vidente que, aparentemente, se viu interpelado pela
monstra, “nem homem, nem mulher, nem mesmo cadela. Parece o diabo”118.
Em uma leitura empírica das audiovisualidades de HDP, observa-se a força de seu
rosto nas imagens. Há um preenchimento da tela em enquadramentos que dão protagonismo
ao seu rosto monstruoso, exagerado, em excesso. Aos traços fisionômicos que poderiam ser
considerados “excessivamente grandes” se comparados ao Rosto de Cristo de Deleuze e
Guattari (1996) – como os olhos, o nariz, a boca e as maçãs do rosto, além da “dureza” do
formato geométrico retangular – se sobrepõe uma “máscara-maquiagem” (COSTA, 2015) que
só faz exagerar o excesso da carne. Os lábios são pintados em tons de vermelho forte e, em
alguns closes, observa-se que a tinta excede as fronteiras da boca, tornando-a ainda maior. Os
olhos enegrecidos aprofundam o olhar da performer, tornando-os “buracos negros”
(DELEUZE; GUATTARI, 1996) nos quais se rasga a imposição das subjetividades impostas pela
rostidade, pela matriz colonial do poder e pelo binarismo ocidental – sistemas interligados e
que descrevem a mesma coisa, a formatação prêt-à-porter dos modos de existir no mundo.
Suas presilhas, quase sempre presentes, são como chifres. Mas nada é tão icônico quanto as
sobrancelhas bestiais. Exageradas, grossas, negras, transgridem a humanidade do rosto para
aproximá-lo da recorrente imagem do demônio no imaginário das representações visuais.
João Victor de Sousa Cavalcante (2019, p. 3) aponta que as vanguardas do século XX já haviam
se interessado pela dilaceração do corpo e, sob o operador conceitual “informe” de Bataille,
provoca: “quanto podemos decompor a figura humana para que esta permaneça ainda
humana?”. HDP pode não se dilacerar nos moldes do surrealismo, do expressionismo alemão,
do dadaísmo ou das imagens de rostos informes analisadas por Cavalcante (2019), mas
lembremos que a Bíblia atesta que Deus fez o homem à sua imagem e semelhança e, para
Deleuze e Guattari (1996), o Rosto é o de Cristo. Logo, profanar a imagem sacra do rosto é um
sacrilégio e as sobrancelhas de besta de HDP são elementos iconoclastas na estética que
constrói. Iconoclasta vem do latim, iconoclastes, derivado do grego eikonoklastes, e significa
“destruidor de imagens” (CUNHA, 2010). O que poderia ser mais iconoclasta do que destruir
a “mais perfeita imagem” de Deus, o corpo humano?

118
Comentário no vídeo da entrevista à revista Fill (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).
157

O iconoclasmo de Hija de Perra afronta diretamente as narrativas do consumo


contemporâneas, nas quais há um protagonismo atual do rosto, segundo observa Gabriela
Reinaldo (2012, p. 122):

Há rostos por todos os lados, nos convidando, nos convocando, nos espionando e
calculadamente fingindo nos ignorar. [...] Nosso consumo desenfreado por feições
novas e frescas faz crescer de forma galopante uma constelação de faces que (num
movimento de uma ordinária prosopagnosia), rapidamente esqueceremos e
confundiremos com tantas outras.

Na “era dos rostos” como descreve a autora, há uma “prosopagnosia programada”.


Prosopagnosia (prosopon = cara e agnosia = ignorância ou perda de conhecimento) é um
termo cunhado pelo neurologista Joaquim Bodamer, em 1947, e indica uma condição médica
na qual não se reconhece os rostos dos outros nem de si, acometendo 2% da população
mundial (REINALDO, 2012). Na profusão de imagens do rosto propagadas pelas narrativas
atuais, ela se torna programada. Acredito, porém, que o rosto de HDP não se confunde nem
sucumbe a esse mar de autoimagens, porque não compartilha com esses “rostos midiáticos”
(REINALDO, 2012) os códigos pasteurizados e saturados de beleza. Ter contato com esse rosto
monstruoso pode não ocorrer pelas correntes do mainstream, como acontece com os rostos
midiáticos da espiral iconofágica, mas uma vez por ele atravessado, ou melhor, olhado, o
trauma de sua monstruosidade reverte a prosopagnosia programada. Conforme defendemos
no primeiro capítulo-momento, o trauma talvez seja uma possibilidade para acordar do torpor
iconofágico.
Os rostos midiáticos de Reinaldo (2012) convidam a consumi-los, devorá-los,
passivamente. O de HDP inverte esse processo e quer ele nos devorar, como a imagem do
gigante Gargântua de François Rabelais, insaciável em sua fome. Nos rastros audiovisuais de
HDP nos quais sua performance em alguma casa noturna ou outra performance pública foi
arquivada midiaticamente, seu rosto está virado para os presentes, estes são os alvos de seu
olhar de górgona. Mas é possível constatar que a vinculação pelo olhar, entre público e
performer, acontece. Ela está frequentemente olhando, interrogando, fazendo com que o
vidente que assiste voyeuristicamente ao vídeo se sinta quase interrogado como o público do
show. Quando os registros são de HDP em entrevistas (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013; HIJA
DE PERRA [...], 2012d) e no curta-metragem (CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...],
2012), então, a devolutiva do olhar é explícita. A inversão se concretiza. Rose de Melo Rocha
158

e Marina Caminha (2019, p. 10) entendem que olhar diretamente para a câmera é um “recurso
narrativo que pressupõe um espectador que se deseja seja implicado tanto na provocação
[quanto] na conclamação existencial”.
HDP não se permite ser consumida passivamente e encara a câmera incisiva, falando
diretamente com o vidente. “Os rostos [...] quando nos encaram, nos convidam, mas também
nos flagram. Quando se voltam a objetiva que os capta, violam a natureza (que se presume)
oculta do voyeur. Mostram-se conscientes de sua exposição e essa transgressão ressignifica a
imagem” (REINALDO, 2012, p. 118).
O vidente dos vídeos, ainda que à sua revelia, é convocado pelo olhar a uma vinculação
eróptica, na qual HDP se expõe para consumo visual e satisfação da pulsão escópica ao mesmo
tempo em que demarca, figurativamente através do olhar para a câmera, a sua própria
vontade de gozar através da imagem. Um gozo que, dada a sua monstruosidade, é igualmente
profano e será consumado em meio à viscosidade dos fluídos que circulam pelo imaginário
que cria para si, alimentado pelas suas músicas sobre DST’s e escatologias (Fig. 16).

Figura 16 – Flashes das sobrancelhas e presilhas


159

Fonte: YouTube.

Modos de presença

Bricoleur astuta, Hija de Perra se valia de diferentes combinações dos estilhaços


descritos acima para compor os modos como se apresentava em territórios diversos. Pelos
registros audiovisuais, é possível notar certas repetições possíveis de serem agrupadas – mais
uma tentativa de se localizar na desordem que a presença da performer provoca –, sugerindo
alguns modos de presença específicos. Em algumas apresentações musicais, ela se valia de
escolhas estéticas que, a partir dos registros audiovisuais, causam um efeito de presença mais
agressivo, punk. Em outras, é uma sensualidade escrachada que é invocada. Há ainda
combinações estéticas que performam uma presença encantadora, observada em situações
nas quais ela entrevista alguém ou está sendo entrevistada. Os registros audiovisuais de sua
passagem pelos territórios universitários, dando palestra ou alguma aula, indicam uma
presença acadêmica, combinando comedimento e sensualidade. Por fim, há ainda um modo
de presença policial, produzido em situações de falas públicas em tom enérgico e incisivo em
direção aos ouvintes, valendo-se, inclusive, de elementos que acionam um imaginário de
guerra, como quepes militares e metralhadoras.

Modo de presença punk

A socióloga portuguesa Paula Guerra (2013) tem um extenso trabalho sobre os


significados culturais, sociais e simbólicos sobre a expressão estética punk e como ela se
configura também enquanto um modo de estar na vida. Algumas de suas considerações são
espelhadas nas performances de Hija de Perra quando ela canta certas músicas em casas
160

noturnas ou em videoclipes, conforme observa-se nos rastros audiovisuais Nalgas con olor a
caca e Indecencia Transe.
No cerne da subcultura punk está a bricolagem estética, artística e cultural (GUERRA,
2013), o que também está presente nas performances de Perra: na polifonia estética de suas
roupas e maquiagens, nas produções artísticas combinatórias de diferentes linguagens
(vídeos, fotos, performances, músicas etc.) e na pluralidade de temas que articula, conectando
escatologias e decolonialidades.
Alguns signos estereotipados da estética punk são identificados nos rastros
audiovisuais citados: peças de couro, rasgadas, acessórios com correntes e perucas com
penteados que expõem as laterais raspadas. Porém, Guerra (2013, p. 121) aponta que o punk
é mais do que signos visuais e gênero musical, “é uma atitude, uma ética, uma forma de estar
que ultrapassa fronteiras [...]”. A configuração punk comporta a lógica do-it-yourself (DIY); a
revolta e o protesto contra as lógicas de poder vigentes; o sentimento de pertença a um grupo
com valores compartilhados; o incentivo à produção cultural; o emprego de “saberes da rua”
(GUERRA, 2013).
O modo como Hija de Perra performa em seus shows articula os elementos
configuracionais punk. Ela se vale de signos visuais da subcultura punk, grita suas músicas –
literalmente, na apresentação de Nalgas con olor a caca (HIJA DE PERRA [...], 2012a) –,
mobiliza outros sujeitos com os quais compartilha desejos semelhantes – em Indecencia
Trance (HIJA DE PERRA [...], 2012c), goza a vida na companhia de outras figuras extravagantes
–, produz e faz circular sua própria arte se valendo das facilidades pós-massivas, e se mune de
saberes e afetos abjetos desconsiderados pelas correntes do mainstream, configurando um
modo de presença punk (Fig. 17), cuja força está na “capacidade de chocar, de desobedecer a
normas estabelecidas” (GUERRA, 2013, p. 123).

Figura 17 – Flashes do modo de presença punk

Fonte: YouTube.
161

Modo de presença sensual debochado

De.bo.che. Substantivo masculino definido pelo dicionário Michaelis como: 1.


Depravação dos costumes; devassidão, libertinagem. 2. Zombaria explícita e refinada;
caçoada. 3. Desprezo que denota escárnio e ironia (DEBOCHE, 2020). Gulosa como ela só, Hija
de Perra engole as três definições do dicionário em uma única bocada, ou melhor, uma única
performance. Ou em duas. Ou três. Quantas invocarmos aqui, pois deboche é o que não lhe
falta. Nos rastros audiovisuais de suas apresentações em eventos e casas noturnas, são
frequentes os registros de uma performance debochada de movimentos sensuais e sexuais.
Raggaeton Venereo (HIJA DE PERRA [...], 2012e) e Me Desnudo (HIJA DE PERRA [...], 2009)
explicitam isso. Acompanhada de sua frequente companheira de cena, Perdida, no primeiro
vídeo, ou sozinha no segundo, Perra simula se masturbar. Toca a si, a sua vagina e aos seios
protéticos. Não se contém em interagir apenas com a companheira de palco: seduz o público
e até os objetos de cena. Canta com o microfone excessivamente perto da bocarra, pronta
para fazer sexo oral nesse objeto fálico a qualquer momento. Esfrega-se em caixas de som,
faz strip-tease. Tudo de um modo histriônico, escrachado, debochado (Fig. 18).
Comentando uma figura que também se vale do deboche em sua experiência estética,
embora com fortes matizes da cultura pop mainstream, a brasileira Lia Clark, Rocha e Caminha
(2019, p. 5) fazem uma reflexão que muito acrescenta ao pensar o modo combinatório de
HDP: “é uma artesania de si que recusa e ironiza qualquer pretensão à verdade, a um vir a ser
fundado em valores profundos, últimos, preservados, ocultos”. O deboche, para as autoras, é
se apropriar do riso de modo a se aproximar do público, de fazer se divertirem enquanto se
diverte, de transitar entre estéticas diferentes. Atrás de Perra, há uma profícua produção
latino-americana que opera pela lógica do deboche, defende Erica Ramos Sarmet dos Santos
(2015). Na tradição visual-performática latino-americana analisada por esta autora, o deboche
negocia com códigos hegemônicos culturais, se associa à cultura popular e tem efeito de
choque face às convenções sociais.
Fala-se de uma sensualidade debochada, mas o deboche vaza pelos poros de Hija de
Perra. Contamina sua estética, sua performance, seus modos de presença, suas narrativas. No
discurso público em Arica (DISCURSO HIJA DE [...], 2013), debocha da religião e da própria
biografia. Ela pergunta: “Evangélicos atualmente exorcizam a jovens homossexuais, porque
justamente acreditam que têm o demônio em seu interior. Por que os líderes espirituais não
162

se autoexorcizam com seus poderes mágicos para eliminar a estupidez e ignorância de suas
mentes inumanas?”. Logo à frente, ainda no mesmo discurso, conta ter passado por um
tratamento psicológico público de cinco anos de duração para curar sua “trágica doença da
homossexualidade”, quando, 14 anos antes a esse episódio, em 1973, a homossexualidade já
havia sido despatologizada pela comunidade científica internacional. “Esta terapia, como
podem ver, teve excelentes resultados em minha fantástica e divertida vida”, debocha.

Figura 18 – Flashes do modo de presença sensual debochado

Fonte: YouTube.

Modo de presença encantador

“Sou encantadora, sou tão amorosa”, reage HDP quando é descrita por um repórter
como “personagem superchocante” (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013). Ela o faz performando
uma inocência debochada: fala suave, olha para os lados perguntando a alguém que
acompanha a gravação, “sou encantadora, não?”, olha para a câmera com um sorriso
cúmplice com o vidente, mexe-se no assento, ajeitando os cabelos delicadamente. Essa
atitude comedida, ou encantadora para usar a maneira como narra a si, está presente nos
rastros audiovisuais que a registram sendo entrevistada, como na entrevista à revista Fill
(ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013), ou entrevistando, como em Sonidos Ardientes (HIJA DE
PERRA [...], 2012d) (Fig. 19). Uma diferença precisa ser pontuada entre os dois registros,
contudo. No primeiro, HDP se apresenta de modo contido e seus toques, quando existem,
estão direcionados ao próprio corpo. Já no segundo, ainda compartilhando certa delicadeza
como no primeiro registro, se coloca mais calorosa, talvez em virtude da natureza da gravação.
Antes era entrevistada em um espaço que parece uma livraria, por um veículo de comunicação
(Revista Fill) e, dadas as características da qualidade da gravação (enquadramentos, qualidade
163

do áudio e da imagem), sugere uma atmosfera de comedimento profissional nos moldes


hegemônicos (controle dos movimentos corporais e do tom de voz119). Em seu próprio
programa, entrevistando a drag queen espanhola La Prohibida, ainda mantém certa
delicadeza, mas tem uma atitude não típica à figura de uma entrevistadora: fala
excessivamente perto da entrevistada, elogia-a sedutoramente e, principalmente, toca-a
sobremaneira. “Deliciosa essa mulher de pernas suaves”, diz, gemendo, enquanto acaricia as
pernas da entrevistada.
A performance da voz nesse modo de apresentação também se faz necessária
mencionar, pois, enquanto em suas performances de atitude punk grita ao microfone e nos
discursos públicos adota tom enérgico, nesses momentos de entrevista modula sua voz em
tons suaves e delicados. Um conjunto de comentários nos vídeos aponta que a voz é uma
característica proeminente em sua performance e preponderante no vínculo que o público
desenvolve com suas audiovisualidades.

los dialogos que tiene ... son como de un villano de comics hablando con un super
heroe tirado moribundo en el suelo :O! (Usuário M3lldryck) (CORTOMETRAJE
PERDIDA HIJA [...], 2012).

me encanta su voz jaja (Usuário asdfpink) (CORTOMETRAJE PERDIDA HIJA [...], 2012).

Genial ,,, no sabia de esto,, muy en la onda española post feminista ,rollo puti latex,,al
fin algo no en ese plan gay genérico ,super super, me encanta su tono neutro de
voz,,deo parao .Wena perra.Perra que va de moderna perra kiltra,besos (Usuário
Clemente Chúkaro) (CORTOMETRAJE PERDIDA HIJA [...], 2012).

lo que mas me gustaba de ella era su voz y su manera de vivir el dia y expresarlo y
taparle la voca a todos (Usuário francisca bustos) (CORTOMETRAJE PERDIDA HIJA
[...], 2012).

No sé por qué pero me gusta la forma en que habla la hija de perra (Usuário Hector
Santiago) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).

Me encanta su voz parece la voz de willy wonka en español latino (Usuário fabio
gustoso) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).

Me hipnotiza la forma en que habla!! (Usuário 31Superluigi) (ENTREVISTA HIJA DE


[...], 2013).

La Mujer de las 5 mil voces (Usuário Alex Gomez) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).

119
Sobre o comedimento do corpo intensificado no projeto de modernidade ocidental, Gabriela Reinaldo (2012,
p. 121) diz: “A partir do momento em que começa a se dissolver a hierarquia de sangue ligada à aristocracia
medieval, começa a se legitimar um novo tipo de linguagem corporal que está subjugada ao aprendizado de
boas maneiras (cf. Courtine e Haroche, 2007, p. 20, 21, 22 e 23). Bons modos e civilidade classificam os homens
e essa antropologia corporal o aparta da bestialidade. São selvagens aqueles que não seguem as regras dos
códigos de contenção corporal largamente difundidas pelas monarquias absolutistas.”.
164

Muy icónica y todo perfecto no me gusta como habla... Cómo enojada, retadora
(Usuário VIC VAC) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).

Uma vez que a reação dos usuários às performances de HDP ressaltam a voz como
mônada para os efeitos de presença da performer, a discussão de Jacques Rancière (1996)
sobre a distinção entre voz e palavra se mostra pertinente. O autor francês retoma Aristóteles,
no livro I da Política, quando este diz que logos, a palavra, é o signo distintivo político do
homem e dos outros animais. A voz (phone) é comum a todos, homens e animais, mas só os
primeiros são capazes de discursar, de elaborar e manifestar o útil e o prejudicial, o justo e o
injusto. O reconhecimento do som produzido pelo outro como discurso, contudo, não é
natural. Trata-se de uma operação arbitrária que reconhece a palavra de alguns e ignora a de
outros (RANCIÈRE, 1996). Quem não fala a linguagem do mundo homogêneo não é nem
reconhecido como ser falante, portador da habilidade de discursar. Suas demandas e
propostas – “Hoje preparei um discurso para abrir suas mentes, em especial aos que estão
longe desse grupo a minha volta” – não são ouvidas. Quando sua boca abre, ouve-se apenas
ruídos:

habla como una persona de 15 años, intenta ser intelectual (Usuário Andres
Maurenzi) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).

Lo unico que veo es a una persona hablando sobre cosas que cree que sabe pero no
sabe con un proposito sin sentido que no la lleva a ninguna parte. Entiendo que lo
que hace es una critica social, pero hay mejores formas de hacerlo que ser un esclavo
de la nueva izquierda. Buenas ideas aplicadas de formas absurdas. (Usuário kevyn
falconi zapata) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).

Instala-se uma tensão: enquanto alguns reconhecem a dimensão da voz e da palavra


em Hija de Perra, outros só ouvem a voz do animal. Mas como ela mesma é uma monstra,
retiro um excerto de seu discurso em Arica para cogitar qual poderia ser sua reação a isso:

Muitos débeis calam e acatam as normas e obrigações [...], mas rejeitam os que não
se unem a ideologias antiquadas e perversas. Perdem seu pensamento próprio e
descansam sobre os pensamentos dos outros, deixando-se levar, sem se
conscientizar, que estes ideais só servem para fomentar a descriminação (DISCURSO
DE HIJA [...], 2013).
165

Figura 19 – Flashes do modo de presença encantador

Fonte: YouTube.

Modo de presença acadêmico

Com acesso apenas a uma de suas aulas em universidades através dos rastros
audiovisuais (dividida em três vídeos, CLASE DE VENEREAS [...], 2013a; CLASE DE VENEREAS
[...], 2013b; CLASE DE VENEREAS [...], 2013c), as considerações que se faz sobre elas não
podem ser generalizadas, uma vez que não se tem acesso aos modos como ela apresentou
sua performance-vida em outras ocasiões nesses espaços acadêmicos. Entretanto, algumas
observações podem ser feitas.
Seu tom de voz e ritmo compartilham da suavidade e delicadeza sedutora encontrada
nos rastros das entrevistas. Ela fala olhando para os seus interlocutores, provocando-os,
166

fazendo perguntas, exigindo respostas, incitando risos. Nesse ambiente, é necessário pontuar
a combinação de elementos estéticos que resultam em um efeito “professoral” ou
debochadamente professoral. Sendo o deboche uma constante em suas performances
públicas, sua moda “comportada” nessa palestra permite refletir sobre uma suposta ironia. A
monstra entra na universidade vestindo tailleur branco, com blazer ajustado à cintura e
cobrindo o volume dos seios protéticos, frequentemente à mostra nas apresentações em
casas noturnas, mas não aqui; volume nos ombros; saia à altura dos joelhos, em contraste aos
vestidos e minissaias que usa em shows e expõem sua peluda vagina protética; óculos de grau;
e maquiagem discreta em comparação aos excessos coloridos de outros modos de presença.
Um detalhe chama a atenção: o contraste entre o excesso da estampa animal nos sapatos e a
sofisticação artificial das joias. HDP combina salto alto vermelho e com estampa de zebra com
colar e pulseiras de pérolas visivelmente falsas (pelo tamanho e brilho artificial), e um terço
usado como pulseira. O uso de um terço em uma palestra sobre, entre outras coisas, doenças
sexualmente transmissíveis, associado a um figuro imaculadamente branco denotam uma
ironia ímpar (Fig. 20).

Figura 20 – Flash do modo de presença acadêmico

Fonte: YouTube.
167

Modo de presença policial

Diferentemente do que se concebe no senso comum, Jacques Rancière (1996) defende


que política não é uma organização harmoniosa dos interesses e sentimentos da comunidade,
sendo o pilar democrático o “dissenso”, e não o “consenso”. Não no sentido de antagonismos
e conflitos, mas de uma lógica responsável pela partilha do mundo sensível, este em que
vivemos. O autor ressalta que a política não é uma organização harmoniosa dos interesses e
sentimentos da comunidade, inerente ao ser humano, mas uma dinâmica arbitrária – ou um
“recorte do mundo sensível” em suas palavras – escolhida em detrimento de outra dinâmica
de ser. Para ele, “o consentimento das coletividades, a organização dos poderes e a gestão
das populações, a distribuição dos lugares e das funções e os sistemas de legitimação dessa
distribuição” (RANCIÈRE, 1996, p. 372), comumente processos atribuídos à política, são, em
um sentido amplo e não pejorativo, o que ele chamará de polícia. Essa ressignificação visa
ainda abarcar as funções de vigilância e repressão atribuídas à atuação da polícia aos
processos descritos, pois seriam modos de “distribuição sensível” dos corpos na sociedade
(RANCIÈRE, 1996, p. 372). A polícia é o recorte do mundo sensível que organiza o que é visível
e dizível e em quais espaços o são.
Posto isso, restringe-se à política, no sentido de Rancière (1996, p. 372), o “conjunto
das atividades que vêm perturbar a ordem da polícia”. Trata-se da manifestação pela qual se
perturba o sensível e, só então, exerce-se a igualdade entre os seres falantes. É quando se
provoca o que a polícia determina ser visível, dizível, contável. O dissenso é um conflito sobre
o recorte que a polícia propõe sobre o mundo sensível. É trazer para onde, supostamente, não
se deve, o que não se vê e não se diz, por aqueles que, em última instância, simplesmente,
não são (SANTOS, 2018). É a partir dessa fundamentação teórica que concebo um modo de
presença policial em algumas performances de Hija de Perra acessadas através dos rastros
audiovisuais Discurso de Hija de perra en marcha por la diversidad sexual 2013 en Arica
(DISCURSO DE HIJA [...], 2013) e Hija de Perra en encuentro "Ciudadanías del cuerpo" (HIJA DE
PERRA [...], 2011).
No discurso em Arica (DISCURSO DE HIJA [...], 2013), HDP performa publicamente uma
atitude policial. Para além dos elementos estéticos que a metamorfoseiam em uma figura de
autoridade – o quepe militar e a companhia de dois “aliados” empunhando metralhadoras –,
sua fala acelerada, como se vomitando seu discurso, contrasta à cadência lenta dos registros
168

que a mostram em entrevistas. A suavidade e delicadeza do tom são quebrados por


rompantes dramáticos sincronizados a momentos estratégicos do discurso. Observo que
quando está dando palestras, adota esse tom contundente, conforme pode ser comprovado
no outro rastro audiovisual. Quando dessas palestras, não é possível traçar uma linearidade
no arranjo combinatório de elementos estéticos. Enquanto em Arica, uma fala no que parece
uma praça pública, se vale dessa figura policial, na palestra no evento Ciudadanías del Cuerpo,
na Universidade do Chile, está com seu “look acadêmico” (HIJA DE PERRA [...], 2011). Poder-
se-ia presumir que esta imagem acadêmica é acionada pelo evento acontecer em uma
universidade, compartilhando uma ligação com sua aula sobre doenças venéreas e, por isso,
a mesma combinação estética. Todavia, outro registro audiovisual da performer também a
exibe proferindo uma palestra na universidade, mas com uma combinação mais próxima a
suas performances públicas em casas noturnas, pois, embora a gravação fragmente seu corpo
em um enquadramento de primeiro plano, dar-se a ver correntes grossas e estampa animal
(HIJA DE PERRA [...], 2016). Logo, como tudo em HDP, não é possível atestar linearidades. Mas
uma coisa é certa, se a polícia tenta lhe expurgar do mundo sensível, Hija de Perra se faz polícia
(Fig. 21).

Figura 21 – Flashes do modo de presença policial


169

Fonte: YouTube.

3.7 Abram espaço, a monstra vai parir: uma trans-estética do excesso

Cansa olhar para cima, é necessário baixar os olhos.


(BAKHTIN, 1987, p. 266)

Associar Hija de Perra à figura excêntrica da drag queen Divine (1945-1988), circulante
nas correntes midiáticas, principalmente em um circuito underground, desde os anos 1970, é
tentador. Principalmente, se tomarmos a análise do sociólogo chileno Alejandro Donaire
Palma (2015) sobre Pink Flamingos, filme protagonizado por Divine e pelo qual ganhou
notoriedade. O excesso e a abjeção são elementos constituintes da performance colocada em
andamento no filme. Diz ele:

Através do excesso do corpo, a feminilidade obscena dela/dele [Divine] invoca uma


materialização excessiva da norma, estabelecendo uma concretização impossível da
posição subjetiva verdadeira, uma cópia falida. Aquilo que deveria ser verdadeiro,
ao ser invertido por traços abjetos, se apresenta como sua paródia (DONAIRE
PALMA, 2015, p. 180, tradução minha120).

120
No original: “A través del exceso de cuerpo, la femineidad obscena de ella/él invoca una materialización
excesiva de la norma, estableciendo una concreción imposible de la posición subjetiva verdadeira, una copia
fallida. Aquello que debería ser verdadeiro, al ser intervenido por rasgos abyectos, se presenta como sua
parodia.”.
170

De fato, é inegável os elementos estéticos e performáticos (excesso, abjeção, paródia)


que convergem entre ambas performers, sendo que o diretor de Empaná de Pino e amigo de
Hija de Perra, Wincy, reconhece que há referências comuns às duas (ENTREVISTA HIJA DE [...],
2013). Contudo, vejamos o que a própria performer tem a dizer quando um repórter a associa
à Divine, cogitando se ela seria uma “Divine chilena”. Com sua voz suave característica em
entrevistas, responde cortante:

Isso é ignorância, porque [quem faz essa comparação] não sabe quem é Nina Hagen,
nem Cindy Sherman, nem Orlan, porque olho para tudo isso. [...] Eu nasci na
periferia, como qualquer segregada social, onde abunda a prostituição, o crime
organizado. Então, desde pequena me encantava ver as garotas com suas roupas
excêntricas, que levavam suas vidas pela noite para dar prazer ao macho. Isso me
encantava e deleitava minha alma. E é daí que vem tudo (PERRA, 2013, s.p.).

É peculiar que estejam no mosaico da bricolagem estética e performática de Hija de


Perra os trabalhos de outros artistas conhecidos justamente por suas experimentações com o
corpo e presenças excêntricas. Nina Hagen121 é uma cantora alemã, cujas vocalizações
transitam de registros de ópera a grunhidos histriônicos, tendo se tornado conhecida nos anos
1970 e 1980. Cindy Sherman122, por sua vez, é uma estadunidense internacionalmente
reconhecida por seu trabalho com autorretratos, nos quais se fotografa como diferentes
personagens, há mais de 30 anos. O artifício e o grotesco são elementos marcantes em suas
autoimagens e sugerem a artificialidade de todas as construções identitárias, tal como os
imperativos da beleza – “Fico enojada com o que as pessoas fazem para ficarem bonitas, sou
muito mais fascinada pelo outro lado” –, analisa a historiadora da arte e curadora Kristen
Gaylord (2016). E a francesa Orlan, por sua vez, é uma presença na história da arte desde os

121
“A marca registrada de Nina Hagen tornou-se o seu jeito punk, os seus textos diretos e agressivos, bem como
a sua voz marcante. Às vezes, ela canta com voz rouca, grunhe ao microfone e, então, emite tons suaves num
registro de contralto da ópera clássica. [...] Nina Hagen provoca, choca e adora a confrontação. [...] A
apresentação pública mais espetacular de Nina Hagen foi em 1979, na televisão austríaca. Sem pudor, ela
demonstrou diante das câmeras o que as mulheres tinham de fazer para atingir o orgasmo.”. Cf. GEISSLER,
Ralf. 1955: Nascia a cantora Nina Hagen. DW. 2020 [data de consulta]. Disponível em:
https://p.dw.com/p/1y0A. Acesso em: 20 jan. 2020.
122
“Trabalhando como sua própria modelo há mais de 30 anos, Sherman registra ela mesma em diferentes
disfarces e personas, que são igualmente encantadoras e perturbadoras, desconfortantes e passionais. Para
criar suas fotografias, ela assume múltiplos papéis de fotógrafa, modelo, maquiadora, cabeleireira, estilista e
camareira. Com um arsenal de perucas, figurinos, maquiagem, próteses e objetos de cena, Sherman altera
habilmente sua aparência e o ambiente para criar uma miríade de intrigantes cenas e personagens, de estrelas
do cinema antigo a palhaços e socialites envelhecidas.”. Cf. CINDY Sherman. MoMA. 2020 [data de acesso].
Disponível em: https://www.moma.org/calendar/exhibitions/1154?. Acesso em: 20 jan. 2020.
171

anos 1960, tendo provocado afetação mundial quando, entre 1990 e 1993, passou por um
processo de nove cirurgias plásticas para mimetizar características das cinco maiores
representações imagéticas de beleza na história da arte123.
HDP soma a suas referências internacionais a estética local das prostitutas e do crime
das sarjetas de onde vêm e que saciavam sua pulsão escópica quando criança. Alguns flashes
do videoclipe Papito rico (INDECENCIA TRANSGÉNICA PAPITO [...], 2012) sugerem o que pode
ser esse imaginário rueiro chileno (Fig. 22). Estampas animais e casacos de pele compreendem
a estética do que poderia ser a das prostitutas citadas e se combinam a homens de roupas
largas, gorros e facas. “Como me excita sua falta de educação e que seja um ladrão / [...] Que
sua mentalidade seja livre de moral e pecado / [...] Que roube, que mate, que seja
delinquente”, canta junto a sua companheira de calçada.

Figura 22 – Fotogramas do videoclipe Papito Rico

123
O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli; Mona Lisa, de Leonardo da Vinci; Jupiter e Europa, de Gustave
Moreau; Cupido e Psiquê, de Françoias Gérard; e Diana, a caçadora, autoria desconhecida. “Ela transformou
a sala de cirurgia em um palco para seu teatro burlesco de cirurgiões extravagantemente vestidos, dançarinos
de fundo, e transformou sua carne em sua mídia artística. Com a ajuda de epidurais, a artista, consciente e em
figurino extravagante, foi a diretora de uma performance altamente coreografada”. Cf. TESSIN, Stephanie.
Visions of Excess: Orlan’s Operational Theater. 2007. 75 f. Dissertação (Masters of Art) – Department of Art
History, Florida State University, Tallahassee, Florida, USA. Disponível em:
http://purl.flvc.org/fsu/fd/FSU_migr_etd-1613. Acesso em: 20 jan. 2020.
172

Fonte: YouTube.

Essa alquimia estética, bricoladora de corpos que trabalham profissionalmente com


performance e da estética do crime organizado e da prostituição de rua, explode em uma
combinação sui generis. Não porque nunca foi feita, mas porque, como acreditamos, é única
nos sentidos dos encontros afetuais de Suely Rolnik (2006), já explorados no primeiro capítulo-
momento. Os mesmos elementos poderiam ser combinados por outra artista e o resultado
seria diferente, pois em outras medidas, em outras doses, resultado de outros processos de
afetação. A intricada bricolagem estético-performática de Hija de Perra me faz pensar em uma
trans-estética.
O prefixo “trans” vem do latim trans, que significa “através de, para além de”. É
empregado para formar tanto os vocábulos “transcender” (do latim, transcendere),
“ultrapassar limites”, como “traduzir” (trans reduzido a tras, formando, no latim, traducere),
“transpor de uma língua para a outra” (CUNHA, 2010). A estética de Hija de Perra transcende
as fronteiras moderno-coloniais de beleza, pureza e ordem, sendo traduzida de diferentes
modos. Comentários em seus vídeos expõem essa ambiguidade da “língua bifurcada” que ela
fala e pode sugerir a dificuldade de alguns reconhecerem sua voz enquanto palavra, no
sentido rancieriano exposto na seção anterior.
Essa imagem é acionada pela performer Jota Mombaça (2018) para apontar a
“opacidade” e “ambiguidade” das falas de corpos inconformes. A língua bifurcada é traduzida
nas escutas de maneiras singulares, sendo aquele que ouve o autor da própria tradução. Para
a pensadora, esse movimento de provocar modos de compreender ambivalentes evoca a
tradição da malandragem, da malícia. Ainda seguindo seu jogo de palavras, a língua bifurcada
é um se fazer visível sem se tornar transparente, não ser silenciado, mas também não ser
completamente traduzido. É habitar as zonas limítrofes da linguagem. É se fazer opaco: ocupar
espaços de visibilidade e se fazer ouvida, deixando espaço para as escutas próprias. Não falar
173

uma língua unitária, que se faz compreendida, mas uma língua bifurcada, esquiva, que
chicoteia repelindo tentativas de leituras unívocas ou dicotômicas.
A ambiguidade dessa língua malandra e maliciosa pode ser conferida nos comentários
de alguns vídeos de HDP. Enquanto alguns veneram sua poética audiovisual abjeta e marginal,
outros se sentem horrorizados. A um só tempo, a língua bifurcada provoca fascinação e
encantamento tanto quanto asco e medo, a depender da tradução que se faz na escuta
daquele que a ouve/vê.

Impresionante escuchar a esta artista, lastima que apenas en este 2019 saber de su
existencia. Escuche algunas canciones tecno punk cyber flan trasvestido
asexualizado que forma parte de su propuesta y quedé fascinado. Saludos desde
México. (Usuário Fidel Algonecio) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).

Que rico como se corta las tetas <3 (Usuário RenTheHumanCat) (CORTOMETRAJE
DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012).

Que porquería está ignorancia de esta cosa, por qué a ese travesti no se le llama
como una persona sino como una imperfección del mundo (Usuário Sergio Garcia)
(ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).

Há, ainda, mais duas atribuições ao prefixo trans que me é caro para dizer que HDP
mobiliza uma trans-estética, além da origem etimológica de transcendência e tradução
apontadas: aquela que forma os sujeitos que atravessam as fronteiras de gênero –
transexuais, travestis, transgêneros, transvestigêneres – e a trans-estética de Jean Baudrillard
(1998).
Por causa da origem etimológica do prefixo trans, ele é utilizado na formação dos
vocábulos que indicam uma transgressão das fronteiras de gênero. Sujeitos que estão em
trânsito (esta também formada pelo prefixo trans), “nômades pós-modernos”, não se
conformam com os trajetos preestabelecidos pelas normativas de gênero, sexo e sexualidade
estabelecidos antes mesmo de seus nascimentos (LOURO, 2015).
Na análise do que chama de fenômenos extremos da pós-modernidade, Baudrillard
(1998) utiliza o trans para apontar o que ocorre após a explosão da modernidade. Ao viabilizar
a descompressão em todos os setores da vida social (liberação política, sexual, das forças
produtivas e destrutiva, liberação da mulher, da criança, das pulsões inconscientes, da arte),
ele se pergunta “o que fazer após a orgia?”. Resta apenas à pós-modernidade um estado
contínuo de pós-orgia. Um anestesiamento absoluto caracterizado pela indiferença
provocada pela espiral delirante do “tudo já pôde”, não resta nada mais além de reproduzir o
174

real em um hiper-real. Assim, ele discorre sobre trans-estética, transexualidade, transpolítica,


transeconomia. Interessa-nos, particularmente, suas ideias sobre transexualidade e trans-
estética, pois dialogam com as performances de Hija de Perra.
Para o autor, somos todos transexuais. Não no sentido anatômico, e sim do jogo da
comutação dos signos do sexo. Em oposição às diferenças sexuais da modernidade, vivemos
o “jogo da indiferença sexual”, no qual não há distinções, como na proposta dos corpos
falantes de Preciado (2014) que não se reconhecem enquanto homens nem mulheres124.
Acrescenta-se ainda que:

O sexual tem por objetivo o gozo [...], o transexual tem por objetivo o artifício, seja
ele o de mudar de sexo ou o jogo dos signos vestimentares, morfológicos, gestuais,
característicos dos travestis. Seja como for, operação cirúrgica ou semi-úrgica, signo
ou órgão, trata-se de próteses e, hoje, em que o destino do corpo é tornar-se
prótese, é lógico que o modelo da sexualidade se torne a transexualidade, e que esta
se torne em toda a parte o espaço da sedução. [...] Assim como somos mutantes
biológicos em potência, somos transexuais em potência. E não é questão de biologia.
Somos todos simbolicamente transexuais (BAUDRILLARD, 1998, p. 27, grifo do
autor).

Quanto ao que concerne à estética na modernidade, ainda imperavam os valores


kantianos de “belo” e “feio”, com os quais se julgava a produção artística e as fronteiras entre
as artes eram discerníveis. Havia um interesse por escavar “sentidos” nas obras. Na pós-orgia
da pós-modernidade, tudo isso foi explodido. “Através da liberação de formas, linhas, cores e
concepções estéticas, através da mixagem de todas as culturas e de todos os estilos, nossa
cultura produziu uma estetização geral, uma promoção de todas as formas de cultura”
(BAUDRILLARD, 1998, p. 23). A transestética é a simulação da simulação, a supressão do
conteúdo pela forma, a derrocada do real e a entrega à sedução do artifício. Nesse vórtice
fetichista de um eterno gozar, “a sedução, em uma dinâmica bastante próxima da adição, é
um jogar ininterrupto, feito para nunca se finalizar”, sintetiza Rocha (2018a, p. 239). O fascínio
despertado não é mais do belo ou do feio, ainda valores do julgamento estético moderno.
Baudrillard (1998) observa que, uma vez libertos de suas coerções, emerge a segunda

124
“[...][O]s corpos se reconhecem a si mesmos não como homens ou mulheres, e sim como corpos falantes, e
reconhecem os outros corpos como falantes. Reconhecem em si mesmos a possibilidade de aceder a todas as
práticas significantes, assim como a todas as posições de enunciação, enquanto sujeitos, que a história
determinou como masculinas, femininas ou perversas. Por conseguinte, renunciam não só a uma identidade
sexual fechada e determinada naturalmente, como também aos benefícios que poderiam obter de uma
naturalização dos efeitos sociais, econômicos e jurídicos de suas práticas significantes” (PRECIADO, 2014, p.
21).
175

potência: a sedução não é mais pelo belo e o feio, mas pelo mais belo que o belo e o mais feio
que o feio. Sobre a pintura da época em que escreveu, ele diz que ela “cultiva não exatamente
a feiura (que ainda é um valor estético) mas o mais (o bad, o worse, o kitsch), uma feiura
elevada à segunda potência porque liberada da relação com seu oposto” (BAUDRILLARD,
1998, p. 25).
No caminho da segunda potência pela transestética de Hija de Perra, dois elementos
se adicionam, intensificando a orgia teórica que, a essa altura, já excedeu qualquer barreira
de contenção, materializando na escrita o excesso da monstra que nos guia, dada a
quantidade de combinações que vimos feito nesta pesquisa-viagem. Baudrillard (1998) fala
no kitsch da pintura como a segunda potência do feio. Penso que na estética das performances
de Hija de Perra, as ideias de camp e grotesco podem ser úteis como segunda potência do
belo e do feito, respectivamente. Essa relação, é claro, embora aparentemente oposta, não
deve ser compreendida como tal, uma vez que já vimos que o arreio que interligava os opostos
é extraviado na transestética.

Dimensão camp da transestética

A “sensibilidade camp” é descrita por Susan Sontag (1987, p. 332) como “experiência
do mundo consistentemente estética. Ela representa a vitória do ‘estilo’ sobre o ‘conteúdo’,
da ‘estética’ sobre a ‘moralidade’, da ironia sobre a tragédia”. Uma sensibilidade afeita ao
exagero e ao artificial, só possível de emergir em uma sociedade sob a “psicopatologia da
afluência”, na qual os excessos se tornaram cotidianos e a predileção pelo inatural prosperou
(SONTAG, 1987). Posto isso, façamos um exercício empírico.
Relatório global da Organização Mundial da Saúde: mais de um milhão de novos casos
de doenças sexualmente transmissíveis ocorrem diariamente125, sendo a população de 15 a
49 anos a mais afetada126. Hija de Perra cantando com sua amiga Perdida em um clube
noturno: “Dame tu gonorrea/Pegame el papilomas/Quiero tener un herpes/La ladilla de
moda” (HIJA DE PERRA [...], 2012e).

125
Informação do Report on global sexually transmitted infection surveillance 2018, da Organização Mundial da
Saúde. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/277258/9789241565691-
eng.pdf?ua=1. Acesso em: 10 fev. 2020.
126
Informação da Organização Pan-Americana de Saúde. Disponível em: https://www.paho.org/salud-en-las-
americas-2017/?tag=sexually-transmitted-infections. Acesso em: 10 fev. 2020.
176

O refrão de Reggaeton Venereo é repetido excessivamente em um ritmo frenético de


louvor ao deboche. Susang Sontag (1987) é clara ao dizer que o camp, como faz HDP,
transforma o sério em frívolo. Entre seus apontamentos para descrever a “sensibilidade
camp”127, a autora diz:

Camp é um certo tipo de esteticismo. É uma maneira de ver o mundo como um


fenômeno estético. Essa maneira, a maneira do Camp, não se refere à beleza, mas
ao grau de artifício, de estilização. [...] Não só existe uma visão Camp, uma maneira
Camp de olhar as coisas. Camp é também uma qualidade que pode ser encontrada
nos objetos e no comportamento das pessoas. Há filmes, roupas, móveis, canções
populares, romances, pessoas, edifícios campy (SONTAG, 1987, p. 320).

O camp é o excesso em tudo que puder ser excedido: as roupas, a maquiagem, o


cenário, os gestos, o tom de voz, o comportamento... No show de Reggaeton Venereo citado,
os figurinos de HDP e Perdida invocam um material barato, sintético, brilhoso, tão artificial
quanto os movimentos de sexo que elas simulam no palco, enquanto pedem pela DST do
interlocutor. Lambem as mãos, sem tocá-las; rebolam com exagero; Hija de Perra simula uma
masturbação caricata de sua vagina protética, exposta embaixo da minissaia. Trata-se de uma
“debochada hipererotização” (ROCHA; CAMINHA, 2019), uma erotização elevada à sua
segunda potência.
Ao fazer troça de um assunto sério como as doenças sexualmente transmissíveis, HDP
faz frívolo o sério, clamando pelas viscosidades que o corpo-imagem analisado por Paula
Sibilia (2004) quer expurgar. Ataca, desse modo, o panteão da cultura erudita: verdade, beleza
e ordem: “o Camp é jocoso, anti-sério. Mais precisamente, o Camp envolve uma nova e mais
complexa relação com o ‘sério’. Pode-se ser sério a respeito do frívolo, e frívolo a respeito do
sério” (SONTAG, 1987, p. 332). HDP aprecia a vulgaridade, aquilo que é considerado abjeto e
deve permanecer ob-sceno, fora de cena. Traz à cena, ao centro de sua audiovisualidade,
justamente o que é considerado de mau gosto, tanto no sentido do camp quanto no do
grotesco.

127
Posicionar o camp enquanto sensibilidade, ou seja, na ordem do sensível, é fundamental, pois ele é quase
impossível de ser exprimido em palavras, podendo ser, no máximo, exibido, mas não analisado (SONTAG,
1987).
177

Dimensão grotesca da transestética

Ao mesmo tempo em que HDP joga com o camp, considerado uma segunda potência
do belo – mais belo que o belo –, ela também se vale do que considero mais feio que o feio, o
grotesco. Sua predileção por aquilo que o corpo humano expele e sua interioridade traz para
suas performances, nos elementos de cena ou no discurso, sangue, fezes, saliva, secreções
venéreas, flatulências, vísceras, como expõem os videoclipes de Indecencia Trance (HIJA DE
PERRA [...], 2012c) e Papito Rico (INDECENCIA TRANSGENICA PAPITO [...], 2012) (Fig. 23).
Trata-se de uma explícita inversão na topografia do corpo, expondo seu avesso e rompendo
com a tentativa moderna de torná-lo um invólucro fechado.

Figura 23 – Fotogramas dos videoclipes Indecencia Trance e Papito Rico, respectivamente

Fonte: YouTube.

A teoria do grotesco de Mikhail Bakhtin (1987) é precisa para compreender esse mais
feio que o feio, além de apontar o fato de não se tratar de uma novidade contemporânea nas
artes. Ele estuda o grotesco no contexto medievo de François Rabelais, autor do século XVI. A
nós, mais do que as considerações sobre a obra rabelaisiana, interessa o que Bakhtin (1987)
extrai dela concernente ao grotesco.
Em uma primeira definição, o autor explica que o grotesco é caracterizado pelo
hiperbolismo, profusão, excesso, ambivalência – um exagero levado ao extremo que toca na
monstruosidade. Ora, estes termos são os com que Hija de Perra tece sua própria
monstruosidade, sendo, portanto, já muito familiares a nós. Há excessos em suas
audiovisualidades, em sua estética, na forma como transgride interditos da morte e do sexo,
ambivalência nas escutas de sua língua bifurcada, hipérboles nas sexualidades, feminilidades
178

e comportamentos paródicos performados (de entrevistadora, entrevistada, professora,


palestrante).
Há, ainda, uma predileção pelo inacabamento do corpo, por mantê-lo aberto, com suas
secreções vazando e contaminando o mundo, rompendo com o projeto de modernidade de
determinar um dentro e um fora. Bakhtin (1987, p. 279, grifos no original) descreve essa
obsessão moderna pela privatização do corpo, iniciada no século XVI e solidificada no XVII:

[...] é um corpo perfeitamente pronto, acabado, rigorosamente delimitado, fechado,


mostrado do exterior, sem mistura, individual e expressivo. Tudo que sai, salta do
corpo, isto é, todos os lugares onde o corpo franqueia os seus limites e põe em
campo um outro corpo, destacam-se, eliminam-se, fecham-se, amolecem. Da
mesma forma se fecham todos os orifícios que dão acesso ao fundo do corpo.

Hija de Perra ataca ferozmente esse projeto, como a “fera raivosa” que canta ser em
Asesina por naturaleza (INDECENCIA TRANSGÉNICA ASESINA [...], 2018). Rasga o próprio corpo
e expõe seus orifícios, suas entranhas, oferece para consumo escopofílico as secreções
interditadas. Em Indecencia Transgénica (Hija de Perra + Perdida) – Megamix inmundo
(INDECENCIA TRANSGÉNICA HIJA [...], 2019), vemos uma HDP se deleitando sob um líquido
branco que “cai dos céus”, no que parece ser um banheiro, enquanto canta sobre sêmen. Em
uma cena do videoclipe Indecencia Trance (HIJA DE PERRA [...], 2012c), vomita com um grupo
de amigas para depois se beijarem com muita saliva, além da cena já exibida anteriormente
de sangue menstrual (Fig. 24).

Figura 24 – Flashes de secreções e fluídos em HDP


179

Fonte: YouTube.

Oferece para consumo tudo aquilo que Bakhtin (1987) diz ser rechaçado pela
modernidade e o corpo-imagem das hipermulheres expurga. Sua boca constantemente
escancarada mantém seu corpo aberto para o mundo, em um entra e sai de forças, ora
devorando o que recebe, simbolicamente ou na prática, como quando beija, lambe, chupa,
come – todas essas ações deslocadas para a intimidade pela modernidade e trazidas a público
por ela –, ora vomitando, literalmente nas cenas em que troca saliva e vomita, e
simbolicamente, cantando, falando, fazendo da sua voz palavra (RANCIÈRE, 1996). Seu outro
orifício é tão escancarado quanto a boca. Uma cena em Papito Rico (INDECENCIA
TRANSGÉNICA PAPITO [...], 2012) a mostra fazendo pose em um banheiro químico para, logo
depois, cortar para imagem de fezes no assento de uma privada (Fig. 25).

Figura 25 – Flashes de fezes, insinuadas e expostas, em Papito Rico

Fonte: YouTube.

Nalgas con olor a caca (HIJA DE PERRA [...], 2012a) é uma grande ode ao cheiro de
merda – “sente em minha cara com seu cheiro de cocô / agora tenho seu cocô na minha unha
/ me encanta seu cheiro de cocô” –, enquanto em Violencia intrafamiliar (VIOLENCIA
INTRAFAMILIAR HIJA [...], 2011) propaga o desejo de ter a merda do outro – “vem, mamãe,
180

abre as pernas que vou te fazer cagar / vem, mamãe, bem molhadinha, que vou dar de costas
/ [...] ponha vaselina no olho, que vou te fazer cagar / deixe aberta a virilha, que vou te fazer
cagar” –. Onde outros se sentem ofendidos, HDP se deleita.
Sontag (1987, p. 334) pontua os cheiros da metrópole moderna, quando lembra que o
“dândi levava um lenço perfumado às narinas e costumava desmaiar”. HDP, por sua vez, aspira
o mau cheiro e o comemora (Fig. 26). Percebo, inclusive, deboche da obsessão à higienização
do corpo em momentos como em uma passagem da música Amor patético (INDECENCIA
TRANSGENICA AMOR [...], 2018): “Desinfetarei meu hímen com álcool / Deixarei meu hímen
com cheiro de flor”.

Figura 26 – Fotograma do videoclipe Megamix Inmundo

Fonte: YouTube.

Faz tudo isso de modo debochado. Até mesmo porque o grotesco é inverossímil. Como
o “real encenado” apontado por Rocha e Caminha (2019) em videoclipes de figuras da música
queer, não é para ser levado a sério. São os “contrabandos de sentidos”, na terminologia das
autoras, que constroem as intrincadas camadas de complexidade de audiovisualidades
debochadas. Como acreditar em uma música em que se grita “Sou assassina por natureza /
Indecente e transgênica / Amo pornografia e cropofagia / Sou uma fera raivosa” (INDECENCIA
181

TRANSGENICA ASESINA [...], 2018), gritada e mixada em um ritmo frenético de um “cyber


punk”?
A paródia é uma potente estratégia ao narrar a si e/ou aos engendramentos que
constituem as dinâmicas de dominação. Louro (2015, p. 20) sinaliza que sujeitos desviantes
“apela[m], por vezes, para o exagero e a para a ironia, a fim de tornar evidente a
arbitrariedade das divisões, dos limites e das separações”. Em busca de uma poética da pós-
modernidade, Linda Hutcheon (1991, p. 58) relaciona a paródia e o que chama de sujeitos ex-
cêntricos, aqueles marginalizados por ideologias dominantes:

A paródia passou a ser uma estratégia muito popular e eficiente dos outros ex-
cêntricos – dos artistas negros ou de outras minorias étnicas, dos artistas gays e
feministas – que tenham um acerto de contas e uma reação, de uma maneira crítica
e criativa, em relação à cultura predominantemente branco, heterossexual e
masculina na qual se encontram.

Paródia, deboche, escracho – operadores mobilizados nesta pesquisa-viagem como


vetores de uma mesma estética: a do riso imbricado ao grotesco, daquilo que faz rir pelo
avesso. O modo de existência que se vale desse artifício não está nunca finalizado, é uma
processualidade de si (ROCHA; CAMINHA, 2019). Talvez por isso tão incômoda ao projeto
burguês, que queria se validar como um projeto de mundo alcançado, concluído tanto no
exterior quanto no interior – um traçar de limites do corpo do mundo e do mundo do corpo.
Tal como o corpo grotesco descrito por Bakhtin (1987, p. 277), tanto o corpo de HDP à época
encarnado como aquele que se constrói por suas audiovisualidades – corpo audiovisual –
permanecem em movimento, não estão prontos nem acabados, são corpos que “absorve[m]
o mundo e [são] absorvido[s] por ele”.
Por manter seus orifícios escancarados e passíveis de penetração, o corpo audiovisual
de Hija de Perra promove um tipo de comunicação muito específica, a qual Georges Bataille
(1987) chamou de “comunicação erótica”. O erotismo não do sexo, mas das experiências
extremas discutidas anteriormente128, viabilizado em atos improdutivos nos quais sujeito e
objeto são dissolvidos e atravessados por uma correnteza inominável. Esse modo de pensar a
comunicação é muito próximo de como aprendemos com Suely Rolnik (2006), no início desta
pesquisa-viagem, que se dão os encontros e os processos de afetação, atravessados também

128
Sobre a discussão de Bataille e das experiências extremas, conferir a seção Anamnese do excesso, aqui no
capítulo 3.
182

por fluxos de energia inomináveis, impossíveis de serem descritos, que fogem às palavras, às
imagens e à razão.

3.8 Por uma comunicação eróptica das audiovisualidades

Soy de Guadalajara Mexico tengo 16 les puedo decir que a pesar de no haber
conocido a esta mujer fue un gran apoyo y lo seguirá siendo en mi vida... Gracias a
que se atrevió a romper con muchos tabus y originalidad, siempre estarás y ocuparas
espacio en mi vida y alma hija de Perra, gracias por ayudarme a defender mis ideales
y mandar al carajo a todos los que no les guste o rechacen. Te amo. (Usuário DHP)
(CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012).

Que cosSa masS fea 😑 graciias a ija de perra muchasS personas del jenero gay ,trans
etc sonN discrimiNados a causa de este tipo de vocabulario, expresión etc. (Usuário
Ray Cendejas) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).

Nunca me sentí tan identificada con nadie como lo sentí con hija de perra (Usuário
Mei San) (CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012).

Que rico como se corta las tetas <3 (Usuário RenTheHumanCat) (CORTOMETRAJE
DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012).

Me da miedo :v (Usuário Gonzalo Cubillos) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).

A performance post mortem de Hija de Perra é capaz de provocar afetações e


vinculações entre as presenças produzidas e os consumidores das audiovisualidades. Os
comentários acima, extraídos de algumas de suas audiovisualidades no YouTube e cujos grifos
são meus, expõem essa dinâmica. Partindo desse pressuposto, questiono quais são as
características desse fluxo comunicacional, que dissolve vidente e objeto visto, quando da
consumação da pulsão escópica no êxtase orgástico inominável ao qual Bataille (1987) chama
de comunicação erótica?
Ciro Marcondes Filho (2008, p. 209) explica a comunicação erótica de Bataille como
uma “uma experiência mais ou menos mística, sem palavras, comum de duas ou mais pessoas,
como, por exemplo, no encontro dos corpos no erotismo, na paixão, no riso em que as pessoas
‘se perdem’, mas também no sacrifício como forma de contágio” (MARCONDES FILHO, 2008,
p. 209). O riso, diga-se de passagem, vimos acima, é elemento fulcral nas performances de
Perra.
Se Bataille (1987) fala em comunicação erótica, parece-me pertinente esgarçar seu
conceito para adaptá-lo ao contexto desta pesquisa-viagem percorrida por entre
183

audiovisualidades. No âmbito das imagens de Hija de Perra, torna-se possível, então,


pensarmos em uma comunicação eróptica, tensionando a comunicação erótica de Bataille
(1987) com a eróptica já vista de Massimo Canevacci (2008)?
A comunicação batailliana é um estado de dissolução entre sujeito e objeto, uma
dinâmica que não se dá de modo racional, na qual há apenas o não saber e o desconhecido.
Marcondes Filho (2008, p. 210) resume dizendo que “comunicado quer dizer vivido como
êxtase, como fusão não lógica, não racional com o objeto, este também, desconhecido”.
Perder-se é abandonar o poder das palavras, desapegar-se do mundo, permitir-se atravessar
pelo silêncio, sacrifício, riso, paixão – atividades extremas incorpóreas que atravessam aqueles
que as compartilham.
Penso o vínculo entre humanos e as audiovisualidades de HDP nessa ordem do
atravessamento inexplicável. No primeiro capítulo-momento, já vimos que o contato entre os
corpos, de qualquer tipo, altera os envolvidos, logo, ser tocado, beijado, pelas
audiovisualidades de Hija de Perra não seria diferente. Sua comunicação eróptica seduz para
depois esfacelar sujeito e objeto como as ondas do mar quebrando umas nas outras e
deslocando mundos internos.

Um turbilhão, que é você, entra em choque com outros turbilhões semelhantes [...]
Assim, viver, para cada um de nós, são os fluxos e os jogos de luz que se unificam em
você, adicionados das passagens de calor e luz que trocamos, nós dois. Palavras,
livros, monumentos, símbolos, risos, diz Bataille, são os caminhos desse contágio,
dessas passagens (MARCONDES FILHO, 2008, p. 211).

Observemos o contato-contágio entre as audiovisualidades de Hija de Perra e como


respondem aqueles que as consomem, a partir de alguns comentários em seus vídeos no
YouTube:

¿Cómo es que está canción me ah hecho bailar, cantar y emocionar tanto al mismo
tiempo? La amo jajaja 😍 (Usuário Maggie Álvarez) (HIJA DE PERRA [...], 2012a).

Estoy impactada, acabo de conocerla y supe de su muerte... es impresionante el


vacío que me dejó saber que su esencia no sigue en esta sociedad que necesita su
espíritu revolucionario y que va al choque. Grande! Te recordamos y recordaremos!
(Usuário Espe Barrera) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).

Que porquería está ignorancia de esta cosa, por qué a ese travesti no se le llama
como una persona sino como una imperfección del mundo (Usuário Sergio Garcia)
(ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).
184

Gente que se vino a meter acá por un weon que dijo que esto era cancerígeno,
patético.... Esta wea es performismo bizarro, juicios negativos de valor son usados
de complemento, digo, los weones que se colan (Usuário Matias Santander) (HIJA DE
PERRA [...], 2012a).

a pesar de su apariencia , que por cuestiones de cultura y de crianza no me gusta ,


tenia algo claro como mensaje y dentro de su físico hay que destacar que si viéramos
gente así todos los días nos seria tan normal como lo pueden ser una mujer o un
hombre , ne hizo pensar mucho acerca de este tema , gracias allí donde este hija de
perra. (Usuário ¿y las criticas?que) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).

O primeiro comentário sugere uma resposta na forma de encantamento com o fato de


se sentir afetado pela audiovisualidade de HDP. “Como essa canção me fez dançar, cantar e
emocionar tanto?”, se pergunta, sem saber explicar ou nomear a afetação ocorrida. O
segundo, mesmo tendo a conhecido naquele momento, aponta se sentir “impactado” em uma
vinculação tão intensa a ponto de “sentir um vazio” ao descobrir de sua morte. Já a resposta
do terceiro usuário é quase um balbuciar através de uma construção sintática difícil de
compreender, mas que expõe seu horror àquela monstruosidade, definida por ele como uma
“imperfeição do mundo”, tão indignado quanto o quarto usuário, que considera o
“performismo bizarro” de Perra “cancerígeno”. O quinto responde em uma ambivalência:
sente-se repelido pela aparência de HDP e atraído pelo conteúdo do que fala, em um
movimento de atração-repulsão característico da abjeção.
É interessante notar os diferentes modos de responder à eróptica das
audiovisualidades de Hija de Perra. Enquanto alguns reagem ao contato-contágio com o
diferente de si expandindo seus mundos internos para fazer caber mais mundos, como diria a
filósofa Viviane Mosé (2012)129, outros se fecham em “estátuas de bronze” (ROLNIK, 2006),
como os corpos impenetráveis da modernidade, tão apegados estão aos seus mundos e
fóbicos da “corrente de intensa comunicação” (MARCONDES FILHO, 2008, p. 211) que
atravessa a experiência.
A comunicação batailliana é, em última instância, “diluidora do eu” (MARCONDES
FILHO, 2008, p. 216). Só é comunicação quando me perco no abismo rasgado pela corrente
comunicacional que atravessa os seres compartilhando a risada, o sacrifício, o gozo ou outra

129
Inspiro-me e distorço a reflexão da filósofa sobre o sofrimento: “É o sofrimento que nos move. Não temos
que buscar o sofrimento… Uma das razões do sofrimento é o rompimento da alma para se tornar maior. E
quando uma alma se torna maior, ela cabe mais mundo. Ela permite mais contradição”. Cf. MOSÉ, Viviane.
Viviane Mosé em Anamnese. [S. l.: s. n.], 2012. 1 vídeo (29m23s). Publicado pelo canal Anamnese Entrevistas.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=thJxZl0C24Q. Acesso em: 20 dez. 2019.
185

experiência extrema. Todavia, nem todos se permitem entregar ao êxtase de Santa Teresa,
quando se morre sem morrer. Lançar-se ao abismo é entrar em contato com os medos de
morrer, fracassar e enlouquecer.
A petite mort do gozo escopofílico consumado na vinculação eróptica das
audiovisualidades, carregada das ambiguidades que vimos nos comentários, retoma a
discussão do duplo nas imagens. Se estas carregam em si uma lasca de quem as criou e, no
momento de consumação da vinculação, quando vidente e imagem se estilhaçam,
dissolvendo-se um no outro, e a exoimagem é transposta para a mente de quem vê, não seria
a comunicação eróptica das audiovisualidades, quando consumada, um processo de
possessão? Se sim, quais seriam as características dessa possessão?
Definitivamente, não se trata de “perda total ou parcial da consciência, renúncia do
comando sobre o próprio corpo e vontade e sujeição a poderes enraizados no passado”, como
pontua a socióloga Miriam Rabelo (2008, p. 88) sobre algumas teorias a respeito do
fenômeno. Alinho-me ao pensamento de Rocha e Caminha (2019) sobre práticas de
subjetivação negociadoras, de contrabando de sentidos. Portanto, o possível caminho que
começa a se revelar no horizonte não abarca um agenciamento entre humanos e imagens no
sentido de outrora dos estudos de comunicação funcionalistas, mas uma agência negociadora
mais próxima da compreensão de Deleuze e Guattari, de movimentação entre as forças.
Florence Dravet (2016), em uma extensa discussão sobre o fenômeno da
incorporação e suas negociações com o imaginário, adianta alguns elementos circundantes da
possessão que dialogam com o caminho avistado. Um dos sentidos de incorporação, advindo
do francês, é o da incorporação pelos olhos: “O olho penetra o mundo exterior ao mesmo
tempo que é por ele penetrado. Incorpora aquilo que recebe e o distribui ao espírito que o
carrega” (DRAVET, 2016, p. 290). Bem se sabe sobre o protagonismo do olhar na sociedade
iconofágica e sua potencialidade pulsional.
Seguimos, então, com interesse em uma comunicação que se constitui enquanto
processo de afetação e vinculação entre corpos, não necessariamente humanos, articulando
dimensões mágicas, imaginárias e psicanalíticas. E, ainda que não carregue características dos
“transes selvagens” (DRAVET, 2016) atribuídos às possessões em determinadas práticas
religiosas, a hipótese em construção de uma possessão pelas imagens não se encaixa
completamente na concepção de “transe domesticado” (DRAVET, 2016), pois não é de todo
controlada. Aponta ser uma possessão sub-reptícia, que se dá à revelia. O fragmento da
186

imagem permanece a habitar o mundo interno do vidente ainda que não se tenha consciência
disso, pois, uma vez transposto para a mente, perde-se a ingerência sobre.
Elucubrações para uma próxima pesquisa-viagem.
187

CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS

Viajar. Para mudar o que está fora e o que está dentro. Quem vem de fora e o que sai
de dentro? Virar ao avesso, e nele seguir. Fazer do caminho, morada. Dos passos, revoada.
Engolir desagrados, encontrar afagos. Quebrar o tempo, dobrar o espaço. Parar. Ficar. Para,
só depois, continuar. Pôr o corpo em ação, fazer de si desconstrução. Desforme. Devir-
informe. Deixar-se ser monstro. Ação! Mas também teoria. Tentar se curar pela escrita,
rasgando a pele e o papel com a palavra encarnada. Fazer as pazes com o silêncio. Desafiar os
centros. Esgueirar-se pelas bordas. Cruzar fronteiras. Depois, cruzá-las de novo. Trans-itar. Ir
e voltar. Às vezes, para o mesmo lugar. Saiu, em primeiro lugar? O caminho se faz caminhando,
a labirintite se cura girando. A vertigem? Penhasco. O problema não é olhar para o abismo, e
sim que ele olha de volta. Encarar, encarnar. Os demônios se vence olhando-os nos olhos e
perguntando-lhes o nome. Perlaborar encontros. Perfurar a própria pele para escoar o que
ainda não tem nome. Vazar a si. Viajar para fazer as pazes com os fenômenos do -in.
Incomunicável. Invisível. Inominável. Inenarrável. A(fe)tivar. Deixar pegadas. Aprender a
coletar rastros, cheirar memórias, provar imagens. Expandir o corpo, dilatar as veias.
Continuar a viajar. Criando duplos. Transgredindo a morte. Padecendo da imortalidade.
Dobrando-se uma, duas, três vezes sobre si mesmo. Continuar a afetar. Entornar sentidos.
Beber presenças. Se fazer presente. Do mundo, um espetáculo. Protagonizar o próprio show.
Teatralizar a abjeção. Brincar de criador e criatura. Habitar a passagem do que já foi e o que
virá a ser. Terceiro de dois, o entre. Exorcizar mundos. Possuir outros. Manter os orifícios
abertos para não se fechar às penetrações de outros mundos. Gargalhar, debochar, cagar e
vomitar. Tomar cuidado para não se afogar na própria saliva. Quer saber? Não resta tempo
para tomar cuidado. Tentar abocanhar para não ser abocanhado. Não adianta lutar, a bocarra
do monstro será sempre maior. Uma mordida daqui, duas de lá. Será que tem como ganhar?
Melhor se entregar e gozar. Deixar-se ser consumado e explodir no êxtase da morte.
Dependendo do que se acredita, outra viagem pode vir a começar.

Tentando extrair sentido do sentir

Contenções institucionais interditam esta pesquisa-viagem e a impedem de


prosseguir. É descabido chamar este momento de fim e, por isso prefiro, uma parada
188

provisória. Hija de Perra segue, sem paciência para esperar. Fico um pouco para trás tentando
ler o desenho que o fio de Ariadne formou por esse caminho tortuoso que vimos percorrendo.
Foi preciso jogar migalhas de pão para não se perder e mesmo assim não sei se obtive sucesso.
A prosa acima foi um exercício de experimentação de tentar recolher essas migalhas. E, agora,
tentarei nas próximas linhas extrair sentidos desses fragmentos de sentir. É um tipo de
inventário de guerra para desenhar considerações provisórias. Trago essa ideia de Hans Belting
(2015, s.p., tradução minha), para quem “tudo que fizermos deve ser preliminar, se quisermos
ser honestos”.
Saímos para esta pesquisa-viagem com algumas perguntas-problema e objetivos em
uma bolsinha de mão. Nela, algumas ferramentas para criar a versão do método cartográfico
adequada a uma investigação no escuro, procurando pelos rastros que a performer bizarra
Hija de Perra deixou no mundo sensível. Rastros têm sido utilizados pela humanidade desde
a pré-História, quando utilizávamos pegadas e outros sinais de animais para caçar e
sobreviver. A simples existência no mundo já é capaz de marcar, deixar rastros de nossa
passagem. Na Modernidade, essa produção se intensificou com as casas burguesas e seus
tecidos-memória, caixas de veludo, tapetes felpudos e cortinas pesadas. Um contexto
sociocultural perfeito para a emergência de histórias de detetives que resolvem casos de
assassinatos através dos rastros deixados pelos assassinos e para um homem parir um método
de investigação a partir dos resíduos inconscientes manifestos em sonhos e livres associações,
no que viria a ser conhecida como a psicanálise. A produção de rastros no século XX se
intensificou e se transformou, culminando na nulodimensionalidade dos rastros digitais. São
eles que funcionam como materialidades comunicacionais para se ter contato com Hija de
Perra, quase que uma tábua ouija para invocar a presença dessa entidade.
Primeiramente, fiz um mapeamento herético do rizoma, que consistiu em mapear o
máximo possível dessas materialidades e categorizá-las: separei-as em audiovisuais (vídeos no
YouTube), textuais (resultados de pesquisa originados no buscador do Google, em sua maioria
notícias jornalísticas) e acadêmicos (artigos, monografias, dissertações e teses listadas no
Google Acadêmico). A essas materialidades comunicacionais (vídeos e textos jornalísticos e
acadêmicos), dei o nome de rastros digitais, clivando-os em 68 rastros audiovisuais, 38 rastros
textuais e 35 rastros acadêmicos. O corpus é composto apenas pelos rastros audiovisuais,
porque eles concedem acesso ao corpo em movimento da artista, o que permite cartografar
o que ela diz (conteúdos das músicas, das entrevistas, das palestras, das aulas), como diz
189

(roupas que veste, maquiagem que usa, como se movimenta, gestos, tom de voz, como
interage com seus interlocutores) e onde diz (espaços em que está). Assim, interessei-me
pelas dimensões da forma e do conteúdo das performances de Hija de Perra,
simultaneamente. O modo pelo qual essas considerações sobre cada uma das dimensões
apareceram no texto não é dicotômico, pois, embora seja possível eleger uma ou outra para
analisar, preferi me valer de ambas as dimensões sinergicamente e sem dissociá-las.
Esse corpus, todavia, é tão monstruoso quanto a entidade que o origina. A cartografia
usada é guiada pelo (meu) olhar e por (meus) encontros traumáticos com as audiovisualidades
da artista. Depois de derivar por entre os rastros audiovisuais, comecei a escrita da dissertação
e, conforme ela ocorria, algumas audiovisualidades me interpelaram face à teoria sobre a qual
eu estava escrevendo. Apropriei-me desses flashes de modos diversos: ora pinçando o
conteúdo de uma fala de Hija de Perra, ora dando atenção a um atrator estranho na imagem,
ora ressaltando a forma, ora o conteúdo, às vezes os dois juntos. Nunca, contudo, na análise
exaustiva de uma única audiovisualidade. Interessei-me pelas mônadas, fragmentos que
carregam sentido nas audiovisualidades e pelo que elas invocam quando combinadas.
Sinteticamente, em uma tentativa de linearizar cronologicamente um processo que foi
rizomático, cheio de idas e vindas, a dinâmica se deu assim: deriva pelo material, mapeamento
herético do rizoma, pesquisa bibliográfica sobre alguns eixos possíveis de experimentação a
partir do que as audiovisualidades me despertavam, escrita, flashes mnemônicos de
audiovisualidades que me interpelavam face o tema que estava escrevendo, retorno à
audiovisualidade para analisá-la novamente sob a guia do olhar, escrita novamente, e assim
sucessivamente.
A partir desses encontros com as audiovisualidades, percebi que a força delas era
muito intensa. Elas irrompiam em minha mente, às vezes quando eu estava pensando sobre
a pesquisa, às vezes, não. Por vezes, algumas delas me fizeram voltar a elas sem saber
exatamente o porquê, apenas com uma inquietação, uma necessidade de observá-las
novamente. Em outras situações, não se tratava de uma audiovisualidade específica, mas uma
característica, como a voz, que abordei no terceiro capítulo. Sempre percebi como as
modulações da voz da performer me afetavam, quase me hipnotizando: em uma
audiovisualidade, é suave e delicada; em outra, agressiva e cortante. A potência das
audiovisualidades e o efeito que elas provocavam em mim fizeram com que eu
190

compreendesse que elas não são apenas registros técnicos das performances de Hija de Perra,
rastros de sua passagem pelo mundo sensível.
Comecei, então, a me questionar sobre os significados e sentidos da performance,
em geral, e do que as performances de Hija de Perra despertam. Uma vez que não tive contato
com as performances ao vivo, compartilhando espaço e tempo com a performer, o acesso a
elas foi via rastros digitais. Mas, como dito, eles não são apenas arquivo, pois são dotados da
capacidade de afetar. Seccionei a performance de Hija de Perra em duas dimensões chamadas
performance-vida e performance post mortem.
A performance-vida se refere ao modo de existência de Hija de Perra quando de seu
tempo encarnada no mundo. Como o acesso às performances foi apenas pelos rastros digitais,
o que é possível conhecer delas são as informações que eles carregam e são frequentemente
contraditórias. Primeiramente, observa-se que Hija de Perra fez de sua vida uma performance.
A despeito da discussão de que toda vida é teatralizada e vivida como um conjunto de ações
reiteradas – performatividades –, a artista fez do seu tempo no mundo uma performance
deliberada. Muito lúcida da configuração sociocultural moderno-colonial, fez de suas
aparições públicas, pelo menos das que se têm acesso via rastros digitais, oportunidades para
questionar as lógicas de poder colonizadoras. O conjunto de rastros audiovisuais de Hija de
Perra aponta que a reiteração de suas performances compõe a grande performance que foi
sua vida, por isso chamar de performance-vida. Trata-se de um processo semelhante ao do
duo berlinense EVA & ADELE130, de quem não se tem nenhuma informação que não seja
deliberadamente publicizada pela dupla. A imprensa e o público sabem apenas o que esses
dois corpos falantes permitem saber. E, mais do que isso, inserem-se no espaço público
sempre com o corpo em máscara, há mais de 20 anos.
Hija de Perra compartilha das mesmas características que o duo: faz-se ver
publicamente apenas com o corpo mascarado, implicado em performances deliberadas; narra
a si com informações que convêm para uma diegese biográfica; e executa essa proposta há
anos. A isso, chamo performance-vida. A performance-vida de Hija de Perra possui suas
particularidades: a liminaridade da narrativa, os afetos abjetos mobilizados e o exorcismo
simbólico da colonialidade.

130
Foto de EVA & ADELE pode ser conferida na seção A performance-vida Hija de Perra ou “o museu é onde eu
estiver”, no capítulo 2.
191

Quanto à liminaridade, refiro-me ao mistério envolto em sua biografia e às


contradições entre as informações publicizadas, que coadunam a visão contemporânea de
indissociação entre a arte e a vida. O que é vida de Hija de Perra, o que é performance?
Entendo que não é possível desenhar uma linha divisória no caso da performance-vida de
Perra. Não dá para saber o que é biografia, o que é ficção. Em seu curta-metragem diz que foi
renegada pelos pais; em uma entrevista recente, sua mãe, ativista política pelas causas LGBT+,
diz nunca ter julgado o filho (ela se refere à artista no masculino) e tê-lo acompanhado em
muitas situações. Essa borrosidade entre verdade-mentira, vida-arte, ficção-biografia, é
compartilhada no trabalho de outros artistas latino-americanos contemporâneos e remetem
à ideia de entes liminares, sujeitos que habitam as linhas limítrofes, as indefinições.
Os afetos abjetos, por sua vez, se referem ao protagonismo da abjeção nas
performances que compõem a performance-vida. Perra invoca os imaginários da putaria, da
devassidão ou, para se ater a um termo comum em suas narrativas e nas dos que consomem
suas audiovisualidades, da imundície. Sexo e escatologia são protagonistas em suas músicas
autorais e nas produções audiovisuais que protagonizou, como seu curta e longa metragens.
Suas performances são diretamente contrárias aos ideais de beleza, pureza e ordem do
projeto de modernidade ocidental. Ela ataca a beleza narrando a si como monstro – nem
homem nem mulher – e desenhando uma máscara incongruente com as características do
que é ser belo na modernidade ocidental; resgata tudo quanto é tipo de referência à
contaminação e sujeira (fezes, saliva, suor, flatulências, vômitos, doenças sexualmente
transmissíveis), provocando a pureza; e personifica a desordem através do caos de suas
apresentações musicais (espalhafatosas e descomedidas nos palcos) e das escolhas estéticas
que faz (nas roupas e maquiagem usadas).
O exorcismo simbólico acontece ao desafiar os ideais do projeto de modernidade
ocidental, que é indissociável da colonização. Modernidade e Colonialidade são duas
dimensões de um mesmo projeto ocidental burguês de partilha do sensível, um modo de
configurar o mundo a fim de privilegiar os autores de tal projeto – homens brancos, europeus
ocidentais, heterossexuais, cisgêneros, ricos. A colonização, como visto, não foi só dos
territórios, mas também dos saberes e dos corpos, impondo a estes últimos o que poderia ser
considerado como uma matriz de inteligibilidade heterossexual – a coerência entre sexo,
gênero e sexualidade, ou seja, homem>masculino>heterossexual e
mulher>feminino>heterossexual. A performance-vida de Hija de Perra é terrorista ao explodir
192

delimitações (de sexo, de gênero, de sexualidade, mas também de beleza, de pureza e de


ordem). É uma via do terceiro em uma dicotomia. Ela retoma para si o corpo usurpado e
outrora possuído pelo projeto moderno-colonial, exorcizando essas matrizes delimitadoras
dos modos de existência, tanto quanto a posse dos espaços públicos igualmente delimitados
segundo a partilha do sensível moderno-colonial. Ora, ela se apresentou em praças e
universidades, estas últimas importantíssimas para o projeto de colonização, principalmente
a colonização epistemológica. Hija de Perra entra na universidade com seu corpo e seus
saberes imundos, abjetos. Segue outra gramática, fala outra língua, uma ambígua e bifurcada.
A performance post mortem, por sua vez, é composta pelos rastros digitais.
Considero-os, como dito, não apenas registros técnicos de sua presença encarnada, mas,
tendo a capacidade de afetar, principalmente no âmbito das audiovisualidades, performances
em si mesmos. Enquanto registros técnicos, eles têm a capacidade de estender as
performances individuais de Hija de Perra, sugerindo uma espécie de performance
continuada. Isso porque a performance dela em vida não desapareceu na efemeridade do
momento, mas foi arquivada nos registros técnicos, carregando um duplo da performance ao
vivo. Esse registro arrasta, continua, a performance ao vivo ao mesmo tempo em que se
constitui enquanto uma performance em si mesma, envolvendo outros contextos de consumo
e outros modos de afetação que não os da performance ao vivo, de onde se originou. Esta
característica, chamo de performance post mortem, porque “surge” ou é “ativada” após a
morte da artista. Lembremos que vídeos com registros de suas performances ou homenagens
à performer são publicados frequentemente. Ela, a categoria de performance post mortem,
pode ser aplicada tanto à audiovisualidade individualmente, que é uma performance por si,
quanto ao conjunto de audiovisualidades que, uma vez combinadas, formam outra
performance, também post mortem. Reforço a ideia de uma performance post mortem
pontuando que, se o corpo é fundamental para a existência da performance como defendem
alguns nas performing arts, o conceito de corpo dilatado permite considerar muitas coisas
corpos, inclusive o corpo individual de uma audiovisualidade e o conjunto delas, que também
forma um corpo. Resumindo, a performance post mortem tem, a um só tempo, o efeito de
continuar a performance-vida de Hija de Perra e constituir outra performance por si mesma.
Entre as especificidades cartografadas dessa categoria de performance, no contexto
de Hija de Perra, estão a viralidade mortífera, as transgressões da morte, a videoclipicização
das reações e a produção de presença.
193

Utilizo virulência e contaminação em um jogo de palavras que aciona dimensões


mágicas, epidemiológicas e digitais. A performance post mortem, assim como as imagens, é
um duplo, ou seja, são uma segunda vida de quem a criou (ainda que não deliberadamente),
uma via para acessar a imortalidade. Ela remete constantemente à figura da morte, um dos
medos ontológicos humano. Há um perigo mágico e primitivo de que o cadáver pode
contaminar os vivos com a sua morte, o que estaria na origem do ritual de sepultamento (junto
com o motivo prático de proteger o cadáver do ataque de outros animais). Não só a
performance post mortem de Hija de Perra traz a ameaça da morte por servir de duplo da
performer e por se constituir por audiovisualidades, que já são duplos por si só, ela também
é um corpo, disse algumas linhas acima. Mas se é um corpo criado após a morte, só pode ser
um corpo morto, um cadáver da performer. E aí está, pela terceira vez, a aparição da morte.
Esta é a dimensão mágica do contágio, o contágio da morte. A dimensão epidemiológica
remete ao protagonismo de doenças infecciosas na pós-modernidade, como o vírus da HIV.
São patologias contagiosas que se espraiam rapidamente por vírus e com potencialidade
mortal. Para começar, não existe performance pura, toda performance é pela própria
ontologia impura, está sempre carregada de outras performances, ou seja, infectada por
outras e a infectar as vindouras. No caso da performance post mortem de Hija de Perra, ela
está infectada de si mesma. O corpo audiovisual como um todo – o conjunto de
audiovisualidades que compõem a performance post mortem – está infectado de
performances individuais – as audiovisualidades, também passíveis de serem consideradas
performances post mortem – que, por sua vez, estão infectadas das performances ao vivo.
Esta, quando ocorreu, também estava infectada de outras performances utilizadas como
referências. A contaminação não se dá apenas em direção ao passado – a infecção por
performances passadas –, mas também em direção ao futuro – performances porvir passíveis
de infecção e afetação. Finalmente, a dimensão digital diz respeito ao contexto sociocultural
pós-massivo de espraiamento desenfreado, remetendo, inclusive, aos vírus de computador e
aos virais (vídeos, memes, ações de marketing que são chamadas de virais pela rapidez com
que se espalham na internet e se tornam populares).
A transgressão da morte da performance post mortem, como em um rizoma, está
conectada à dimensão mágica da viralidade mortífera. Isso porque ela também se refere ao
duplo e à imortalidade. Há duas transgressões da morte: uma é a superação da morte da
performance, a outra é a da superação da morte da carne. A primeira acontece quando a
194

performance ao vivo é arquivada através de algum registro técnico (fotografia ou vídeo, por
exemplo). O registro, amador ou profissional, autorizado pelo performer ou não, arquiva a
performance de modo a impedir que ela morra na efemeridade do ato performático. Esse
registro invoca uma “vida após a morte da performance”, porque ele transgride a morte da
performance ao vivo. A segunda transgressão, a da morte do corpo encarnado de Hija de
Perra, acontece porque toda morte é uma interdição à vida e uma superação. Os vermes de
um cadáver em putrefação indicam a superação da morte pela vida. Logo, há vida na morte.
A performance post mortem de Hija de Perra é composta, entre outras coisas (os textos
jornalísticos e acadêmicos, apenas para me ater ao mapeamento herético), por
audiovisualidades. Considero que as reações a elas (likes, dislikes, comentários,
compartilhamentos etc.) são os vermes proliferando para criar vida após a morte do corpo
encarnado.
É isso que me conduz à ideia de videoclipicização das reações. Clicar nos botões de
like e dislike dos vídeos no YouTube, escrever um comentário ou compartilhar um vídeo são
modos de processar a afetação da audiovisualidade, possibilidades de perlaborar o que surge
desse encontro. Esta dissertação é outro modo. Entre os muitos outros viáveis, identifiquei
nas audiovisualidades com as quais tive contato, o de reagir à afetação provocada por Hija de
Perra através da produção de vídeos em sua homenagem. Eles comemoram e prestam sua
reverência à performer. É isso que estou chamando de reações videoclipicizadas, esse modo
de reagir às afetações através de produção audiovisual. No mapeamento herético, encontrei
12 audiovisualidades desse tipo. Todas elas têm como característica uma prática de
remixagem. São vídeos editados a partir de outros da performer em um processo remix tão
característico da pós-modernidade quanto a videoclipicização da vida. Como Hitler fez do
mundo seu “cinema macabro”, tais usuários estão, para permanecer nos termos de Perra,
criando seu cinema i-mundo.
A capacidade de continuar provocando afetações mesmo após morrer, a partir da
materialidade comunicacional dos rastros audiovisuais, faz pensar na produção de presença
de Hija de Perra e nas características do que essa presença causa. Os efeitos que suas
audiovisualidades provocam remete a uma figura popular no imaginário sincrético brasileiro,
a pombagira.
As telas digitais por onde se tem contato com as audiovisualidades de Hija de Perra
servem como portais para acessar o i-mundo que ela criou em vida e continua a ser
195

alimentado após sua morte. São como tábuas ouija para invocar uma presença de outra
dimensão. A discussão da presença post mortem e dos efeitos dela são possíveis por uma
lógica alternativa à da interpretação. Nesta, atribui-se sentidos às coisas do mundo. A lógica
de presença está mais interessada no que tais coisas fazem sentir. Atribuir sentidos e
presenças são igualmente relevantes no processo de estar no mundo. O único problema é que
o projeto de modernidade-colonialidade – ele de novo – privilegiou a atribuição de sentidos,
infiltrando-se nevralgicamente no modo de produzir conhecimento no ocidente.
De toda maneira, é pela perspectiva do fazer sentir, mais do que a do sentido, que se
relaciona a presença produzida pela performance post mortem de Hija de Perra à presença de
outra figura igualmente controversa e que manipula, deliberadamente, a abjeção que lhe é
atribuída, a pombagira. Perscrutando o imaginário da pombagira, que cruza com o da putaria
brasileira, encontram-se termos que são facilmente aplicáveis ao i-mundo de Hija de Perra,
como deboche, putaria, paixões, espalhafatosa, inominável, escória, luxo, desordem,
inversão, demônio. Tanto a figura brasileira quanto a chilena compartilham da repulsa que
acomete os sujeitos abjetos por suas práticas comportamentais serem contrárias aos valores
vigentes. Todavia, em vez de encruar, elas se valem da mesma putaria pela qual são
condenadas para configurarem suas presenças no mundo. Gargalham, debocham e fazem
girar até causar vertigem o médium que incorpora e o usuário que a invoca. Estão ainda na
esteira de outras presenças repudiadas pelas barras de contenção do projeto de civilização
ocidental. Orbitam as margens junto com as prostitutas, as bruxas, as feiticeiras, as histéricas,
as loucas, as diabas, as travestis, as bichas e as viadas. São todas presenças portadoras de uma
erótica selvagem, sem medo de gritar, gozar e fazer arder. Invertem a topografia do corpo e
cagam pela boca enquanto falam pelo cu. Não à toa, este último é um território
frequentemente acessado através das letras das músicas de Hija de Perra. São presenças do
excesso.
Por essa entrada, inicia-se o terceiro capítulo, no qual há a discussão sobre o consumo
em sua dimensão simbólica e audiovisual pela via do excesso. Este está na própria constituição
do ser humano, cujo único destino é consumir até destruir, o mundo e a si. Para além dessa
perspectiva ontológica, a própria fisiologia humana guarda sua dimensão do excesso.
Enquanto a fome é passível de ser saciada, a gula é o que nos lembra da nossa voracidade. A
ânsia por devorar o mundo com a boca pode ser equiparada à gula de comer o mundo com os
olhos, chamada pela psicanálise de pulsão escópica.
196

Entre os fetichismos visuais e a sedução eróptica da pós-modernidade, sucumbimos


ao gozo escópico a ponto de entregarmos de bom-grado nossos corpos à gula das próprias
imagens. Porque, sim, se nós quisermos beijá-las com nossas pálpebras, elas também querem
tocar nossa pele. E, assim, engajamo-nos em uma relação abusiva e adicta. A obssessus imago
nos torna reféns das audiovisualidades tanto quanto elas de nós, afinal, elas só ganham vida
com o olhar. As audiovisualidades de Hija de Perra convidam para gozar com elas e consumar
o ato. Não apenas Hija de Perra simula debochadas e extravagantes cenas de sexo, como ela
olha nos olhos do vidente e fala com a câmera, frequentemente, enquanto lambe, chupa,
engole objetos fálicos diversos, de sorvetes e cachorros quentes a dildos de duas cabeças. Ela
não esconde que está ansiosa por gozar tanto quanto nossa pulsão escópica nos incentiva.
Reiteradamente, closes monstruosos de tão próximos permitem à câmera lamber seu rosto.
Essa relação adicta dos dois lados, tal como a ontologia do excesso, na qual
consumimos até nos destruirmos, também deseja uma consumação final, de outra ordem. A
iconofagia é o processo tanto de devorar imagens como de ser por elas devorado. Seduzidos
pela eropticidade, entregamo-nos a promessas de imortalidade e invencibilidade pelas
imagens, almejando uma existência in effigie. Mas, para isso, precisamos abandonar a
carnalidade do próprio corpo, simbolicamente tanto quanto literalmente. Tornar-se imagem
exige subtrair as dimensões do mundo e se jogar na queda da abstração, passando da
tridimensionalidade do mundo das coisas para a nulodimensionalidade do mundo das
imagens técnicas. Daí o simbolismo da queda. Já a literalidade é que o corpo se tornou
commodity e quanto menos humano, maior o seu valor no mercado audiovisual. Nessa
empreitada, práticas bio-ascéticas de emagrecimento, cirurgias plásticas e tratamentos
estéticos visam inflacionar o valor de corpo-imagem, subtraindo dele a viscosidade que lhe
torna humano. Aí se vão a gordura, o suor, as secreções de todos os tipos. O corpo-imagem
ideal é aquele que é mais imagem do que corpo.
Hija de Perra ignora duplamente o exposto. É pelas viscosidades e secreções que se
vale para criar sua poética audiovisual do excesso, na qual quanto mais sangue, mais fezes,
mais saliva, mais suor, melhor. E não se permite ser devorada, pelo menos não
completamente. Consumimos menos suas audiovisualidades do que elas nos consomem. Nem
mesmo nossa gula escópica consegue extinguir a quantidade de materialidades que produziu
em sua performance-vida e continua a produzir em sua performance post mortem. O
197

mapeamento herético do rizoma expôs isso. Lembremos: são 68 rastros audiovisuais, 38


rastros textuais e 35 rastros acadêmicos, à época do levantamento.
Além dessa justificava numérica que soterra o vidente com um bombardeio
audiovisual, há também o excesso interno das audiovisualidades: a profusão de exageros que
satura o olhar. Denominei-os de estilhaços do excesso: miniaturas de sentido que isoladas ou
combinadas carregam a potência do excesso e constroem a poética audiovisual da performer.
Por isso, dizer que são partes-todo, e não partes de um todo. Sozinhos, esses estilhaços já são
o todo, tanto quanto quando estão combinados entre si, nas mais diversas intensidades, para
compor os diferentes modos de presença de Hija de Perra.
Identifiquei cinco estilhaços, a saber: estampas animais, órgãos artificiais, dildos e
objetos fálicos, palimpsestos e dilaceramentos têxteis, e sobrancelhas e presilhas. As
estampas animais se referem à predominância dessa estampa nos figurinos utilizados por
Perra. A polivalência delas encanta: a um só tempo, sugerem a animalidade (o
descomedimento característico dos animais e tão presente nas apresentações musicais de
Perra, diametralmente oposto à pedagogia dos sentidos e do corpo promovida pelo projeto
de modernidade-colonialidade) e a dupla artificialidade do material, porque são peles falsas e
por terem aparência de material barato, que chega a pinicar o olhar, além de serem usadas
em produções de moda tanto para enfatizar algo brega quanto para evocar poder e
sofisticação, a depender do contexto e de quem usa – em Perra, há os dois casos, dependendo
da audiovisualidade.
Nos órgãos artificiais, demarcados pelo uso de seios e vagina protéticos, é
interessante ela usá-los, frequentemente, à mostra, por cima das roupas ou com peças
recortadas estrategicamente para expô-los. Se a colonização dos corpos censura regiões, a
performer não apenas as expõem como corta os mamilos e masturba sua peluda vagina
protética nos palcos das casas noturnas onde se apresentou. Ela comemora a existência do
plástico e do dildo, objetos que destacaram a produção orgânica de prazer do arbitrário centro
humano que foi delimitado como sendo o pênis. Para gozar, não é preciso mais ter pinto,
como fizeram parecer ser preciso tecnologias que recortaram o corpo e reduziram os órgãos
sexuais aos órgãos reprodutores. Todo o corpo é um órgão sexual, não apenas o pênis e a
vagina, passível de exploração pelo dildo, compreendido como qualquer objeto, fálico ou não.
Nas audiovisualidades, Perra lambe, engole, chupa e goza olhando e sendo olhada pela
câmera, que, por sua vez, goza junto em um orgasmo imagético.
198

Chamo palimpsestos e dilaceramentos têxteis para apontar que a fragmentação tão


característica às audiovisualidades – vídeos remixados, editados a partir de vários outros; de
cortes abruptos entre as cenas; sequências de cenas curtas, provocando choques no olhar;
registros técnicos que começam e terminam do nada, arquivando apenas fragmentos das
performances – também se manifesta nas escolhas de roupa da performer. Suas peças são
sempre muito curtas, rasgadas (minissaias, microshorts, regatas, meias rasgadas, partes de
luvas), como se estivessem inacabadas, faltando partes, por isso dilaceramentos. E
palimpsetos pois há uma constante sobreposição de tecidos, com blusas por cima de vestidos,
vestidos por cima de outros vestidos, e assim por diante, sobrepondo escritas ao próprio
corpo.
Por fim, entre os diferentes elementos estéticos que combina em proporções
diversas, a depender do território onde está (universidade, casa noturna, praças públicas,
festas de aniversário, videoclipes, entrevistas), dois elementos se repetem: as sobrancelhas
excessivamente arqueadas e duas presilhas no cabelo à altura da testa, em cada lado da
cabeça, como chifres – são as marcas da besta. Com eles, criam-se linhas no seu rosto que ao
mesmo tempo em que direcionam o olhar do vidente ao seu próprio olhar também remetem
a chifres e à fisionomia do demônio. O rosto é lugar privilegiado no processo de subjetivação
dentro da complexa maquinaria do mundo que tenta cercear os modos de estar e se
apresentar. Alguns, como Hija de Perra, conseguem encontrar linhas de fuga e perfurar os
muros de contenção, vazando por buracos negros antes de serem novamente capturados por
essa potente máquina cerceadora que é o sistema colonizador e autoritário moderno-colonial.
Se construído à imagem e semelhança de Deus, o corpo, e mais precisamente o rosto que Hija
de Perra constrói para si, é um iconoclasmo. Uma heresia por ousar destruir a mais perfeita
imagem divina, o corpo humano. Na profusão de imagens protagonizadas por rostos e em
circulação nesta que é a era dos rostos, as audiovisualidades do rosto de Hija de Perra
perfuram a prosopagnosia programada. O rosto bestial se destaca entre um oceano de rostos
midiáticos visibilizados por seguirem padrões estabelecidos de beleza e critérios de
legibilidade eurocêntricos. Traumatiza no sentido de não poder ser processado entre os
choques cotidianos aos quais nos acostumamos e anestesiam os sentidos. Ela olha, devolve o
olhar do vidente, encara a câmera, não se permite ser consumida passivamente e quer
consumir também. Encara e convoca o olhar a uma vinculação eróptica à revelia do vidente.
Satisfaz a pulsão escópica de quem goza com suas audiovisualidades, mas quer ela também
199

gozar com e pelas imagens. Não por acaso, são comuns as cenas em que simula orgasmos e
orgias.
A combinação em diferentes proporções desses estilhaços de excesso configura
modos de presença diferentes, dependendo de onde a performance em vida ocorreu.
Pontuam-se os modos de presença punk, sensual debochado, encantador, acadêmico e
policial. O punk aciona tanto elementos estéticos (peças de couro, rasgadas, acessórios com
correntes e perucas com penteados que expõem as laterais raspadas) quanto significados
culturais, sociais e simbólicos das expressões estéticas da subcultura punk: as práticas de faça-
você-mesmo punk são manifestas no contexto da performer pelas produções audiovisuais
independentes e alternativas às correntes mainstream, na estética deliberadamente amadora
utilizada na gravação e edição de seus videoclipes e nos registros técnicos amadores daqueles
que presenciaram sua performance-vida; a revolta e os protestos contra as normatividades
vigentes características da atitude punk estão no modo da performer habitar o mundo
(quando encarnada e mesmo agora desencarnada) divergente das imposições normativas
moderno-coloniais de beleza, pureza, ordem e de coerência gênero-sexual; e o emprego de
saberes da rua, valorizados pelo punk, pelas ressignificações do corpo, das escatologias, das
sexualidades, dos sexos e dos gêneros realizadas por Perra. Seu modo de presença punk choca
e desobedece normas.
Debochar das interdições e valores sociais debochando também de si faz parte do
processo de subjetivação da performer. Destaca-se a característica do deboche, do escracho,
nas performances em que ela simula cenas extravagantemente sensuais. Não um sensual que
excita, mas que zomba do que é legitimado socialmente a excitar. Faz rir enquanto ri junto
nesse modo de presença sensual debochado, característico dos videoclipes e apresentações
em casas noturnas. Vale-se de movimentos sexuais histriônicos, afetados, exagerados;
transforma objetos fálicos em alvo de felações públicas, lambendo e chupando microfones,
sorvetes, sanduíches. Esfrega-se parodicamente no que estiver pelo seu caminho, uma
companheira de performance ou uma caixa de som. O deboche vaza por todos seus orifícios:
zomba da religião, da patologização das práticas sexuais, da colonização.
O modo de presença encantador é devido às audiovisualidades nas quais se
apresenta delicada, falando suavemente, com uma voz que é reconhecidamente marcante em
suas performances, conforme usuários atestam em comentários nos seus vídeos no YouTube.
Um diz que sua fala ritmada o lembra dos vilões de histórias em quadrinho. Quando alguém a
200

chama de chocante, ela jocosamente questiona o porquê, se é tão “encantadora e amorosa”,


em suas próprias palavras. Ela faz questionar sobre o chocante, o horroroso, o monstruoso. O
que há nela de tão assustador assim? Finge alienação à própria desconstrução. Responde se
fazendo de desentendida ao entrevistador, enquanto olha furtivamente à câmera e sorri,
fazendo o vidente seu cúmplice. Esse modo encantador contrasta com o modo punk.
Enquanto neste, sua voz grita, rasga e é acelerada, no primeiro é suave, aveludada e
cadenciada, muito próxima à voz que utiliza no modo de presença acadêmico.
Embora com acesso a apenas uma audiovisualidade que registra sua passagem como
“instrutora de doenças venéreas”, como se dizia, nota-se certa ironia em como se apresenta
no ambiente da sala de aula. No modo de presença acadêmico, utiliza movimentos contidos,
voz suave, faz referências sexuais menos explícitas do que no modo de presença sensual
debochado. E, vale pontuar, veste roupas tão socialmente consideradas comportadas que
contrastam com outros modos de presença em que se vale de seios e vaginas protéticos à
mostra, dildos e simulações de masturbação e sexo com objetos.
Por fim, o modo de presença policial é efeito de sua presença em audiovisualidades
de discursos seus. Nelas, mobiliza elementos de um imaginário militar, usando quepes e sendo
acompanhada por pessoas empunhando metralhadoras. Mantém-se ereta, com o corpo rijo,
tão diferentemente das curvas que desenha no espaço dos palcos quando se apresenta
cantando. A voz amorosa e de ritmo suave do modo encantador é modulada para um tom
ditatorial, de ordem, com direito a dedo em riste e as folhas do discurso que está lendo
jogadas ao vento. O uso da palavra policial se dá no sentido rancieriano, quando este
diferencia política de polícia. Seja em qual modo estiver se expressando, Hija de Perra é o
próprio dissenso político: perturba a ordem estabelecida do mundo sensível trazendo para o
visível aquele que deveria estar ob-sceno, fora de cena, e ousa fazer da voz, palavra, quer seja
reconhecida ou não. Quando a partilha do sensível tal como está dada – e essa é a polícia, a
ordem do que pode ser visto e falado – tenta lhe expurgar do mundo sensível, ela se torna
ainda mais política. Debochadamente, se faz polícia para criar política.
Ao unir os estilhaços do excesso e os modos de presença, Hija de Perra mobiliza uma
estética denominada trans-estética do excesso. Ela conta em entrevista que suas referências
vão de Cindy Sherman, Orlan e Nina Hagen – figuras reconhecidas por suas performances e
usos do corpo – às prostitutas e criminosos que via quando criança nas periferias chilenas,
onde diz ter crescido. Em videoclipes, excita-se com bandidos que lhe impõem facas ao
201

pescoço e dança com eles e prostitutas por ruas periféricas. Sua trans-estética atravessa as
experiências estéticas que o projeto moderno-colonial tenta, há séculos, regular, desde os
ideais de beleza kantianos e burgueses com suas valorizações do conteúdo em detrimento da
forma. Na descompressão e saturação da pós-modernidade, quando o que era possível de ser
feito já foi, as fronteiras foram borradas e as aparências triunfaram, não resta mais nada a não
ser simular o que já foi simulado – simulacro – e elevar tudo a uma segunda potência: tornar
hiper-real o real, hiperfeio o feio, hiperbelo o belo. Na transestética do excesso de Hija de
Perro, a segunda potência do belo e do feio são o camp e o grotesco.
Do conceito de camp, apropriei-me de algumas notas para ressaltar que as
performance-vida e a performance post mortem da artista valorizam o estilo e as aparências,
embora não em detrimento do conteúdo, como definia o camp clássico; tornam sério o frívolo
e frívolo o sério; comemoram o inatural, aquilo que é artificial; exageram todos os elementos
(roupas, maquiagem, cenário, gestos, tom de voz); e fazem do sexo hiperssexo, do artificial e
dos simulacros a regra.
O mais feio que feio da trans-estética do excesso é a dimensão grotesca das
performances da artista. Nelas, ela mantém seu corpo aberto, com os orifícios vazando
interioridade e sendo penetrados pelo exterior. Uma clara afronta ao projeto moderno-
colonial de fechar o corpo humano e tirar as secreções, as viscosidades e os maus odores do
campo do visível. Perra fala sobre e faz usos de sangue, fezes, saliva, secreções venéreas,
flatulências, vísceras – tudo com as características debochada e artificial que lhe são
familiares. Seus usos desses elementos são tão intensos, evocam uma profusão, um excesso,
uma tensão entre atração-rejeição tão grandes que, como é próprio do grotesco, levam o
exagero ao extremo da monstruosidade. Com a boca e em público beija, lambe, chupa, come
– ações privatizadas pelo projeto moderno-colonial e deslocadas para o espaço privado – e,
com o cu, expõe ao campo do visível sua merda e clama pela dos outros. Vomita, literalmente
em algumas audiovisualidades e simbolicamente quando canta, fala e faz da sua voz palavra.
Faz tudo isso debochadamente, porque o grotesco é inverossímil em um real encenado,
contrabandeando sentidos em suas audiovisualidades debochadas.
Por fim, por manter seus orifícios escancarados e passíveis de penetração, o corpo
encarnado da performance-vida e o corpo audiovisual da performance post mortem realizam
uma comunicação própria chamada comunicação eróptica. Isso porque os encontros com as
audiovisualidades da performance post mortem de Hija de Perra provocam afetações,
202

contágios, contaminações. Apelam aos sentidos da visão e da atividade do olhar. Criam


vínculos entre vidente e audiovisualidades como correntes de energia atravessando os
envolvidos no processo. Em última instância, diluem sujeito e objeto.

Um último fôlego

Sinto que não guiei esta jornada, mas fui por ela guiado. Sei menos ainda o quanto
há de mim e o quanto há de Perra, afinal, quando os orifícios estão abertos, não existe dentro
nem fora, eu nem o outro. Somos todos turbilhões. De afetos, saliva, desejo. Desfazemo-nos
uns nos outros como as ondas do mar se quebrando entre elas. Entre nós. Entre mundos i-
mundos. Mundos que estão dentro de outros mundos, porque a cada vez que nos rasgamos,
permitimos caber mais. Entre: a pele está exposta, os orifícios estão abertos, para entrar é só
cuspir.
Tenta-se dar língua aos afetos mobilizados, criando palavras, imagens, vídeos,
dissertações – o que estiver ao alcance para perlaborar o trauma. Senti-me impelido a criar
passagens, pontes de linguagem, para o que a presença de Hija de Perra manifesta em sua
performance post mortem me fez e faz sentir. Talvez, apenas talvez, algumas dessas pontes
construídas a partir de orgias teóricas tenham ajudado a(o) leitora a processar o próprio
encontro com as audiovisualidades de Hija de Perra.
A pesquisa-viagem desacelera, vai parando por ora. Em um último fôlego, ressalto
que o caminho da investigação do consumo do excesso, como se espera ter exposto, tratou-
se de um consumo do excesso em sua dimensão audiovisual e simbólica, por isso dizer que é
um consumo escopofílico, que se dá pelo olhar, essa atividade tão protagonista na ontologia
humana. Com os olhos, beijamos as audiovisualidades de Hija de Perra; pelos olhos, gozamos
com ela. E reconhecendo que não falei abertamente de comunicação a não ser mais
recentemente no trajeto, quero fazer como Gustavo de Castro (2016) em um de seus artigos
e dizer que estive, contudo, falando de comunicação este tempo todo. Uma comunicação
inominável, inenarrável, incomunicável e invisível. Como tal, ela esteve aqui antes, durante e
continuará depois do último ponto final. Este, o último ponto, a última palavra, tinha de ser
dela. Como diz ao finalizar seus próprios discursos, Hija de Perra encerra esta parte da viagem:
“Tenho dito. Caso encerrado!”.
203

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VELVET Buzzsaw. Directed by Dan Gilroy. Netflix, 2019. Streaming (1h53m).

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APÊNDICE A - MAPEAMENTO HERÉTICO DO RIZOMA: RASTROS AUDIOVISUAIS

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Guión y Dirección: Wincy Oyarce
Producción: Adriana Silva Dirección de
Arte: Ponny Lee Fotografía: Wincy
Oyarce Sonido Directo: Rodrigo
Troncoso Maquillaje: Claudia Acuña
NIÑO BIEN - GOOD BOY https://www.youtube.com/
Curta-metragem Vestuario: Ponny Lee, Irina Gallardo, 09:23 10.224 186 9 16 17/03/2016 Wincy Oyarce
(English subtitles, 2013) watch?v=oH2vGklTt08
Hija de Perra Música: Márgaro
Edición/Post-Producción: Wincy Oyarce
INTÉRPRETES: Irina Gallardo Hija de
Perra Caleb Gutiérrez Josecarlo
Henriquez
video que hicimos junto a Hija de Perra
en el año 2006 para el lanzamiento del
YO LA PEOR DE TODAS - Hija https://www.youtube.com/
Curta-metragem libro de poemas de Estela Lamat. Qué 07:02 4.412 166 6 14 29/04/2016 Wincy Oyarce
de Perra & Wincy presentan watch?v=IVieHRhPFZc
sirvió de inspiración estética también
para Empaná de Pino luego...
Discurso de Hija de perra en
https://www.youtube.com/
Discurso público marcha por la diversidad sexual - 17:48 35.146 705 11 65 04/06/2013 Gustavo Canales
watch?v=0XY009QcQSA
2013 en Arica
Devela un día en la vida de la conocida
performista trash Chilena, Hija de Perra,
durante los preparativo para una de sus
presentaciones. Durante ese día nos
situaremos tanto en su espacio privado https://www.youtube.com/
Cortometraje Documental
Documentário como en la ciudad, en la que irrumpe 21:40 92.809 1.1k 72 197 05/09/2012 xxbonex watch?v=rWFY8X8bJig&t=
Perdida Hija de Perra
con su travestismo bizarro e indecente. 2s
Su cotidianidad, sus intensiones como
artista y los devenires sexuales de un
personaje que nos habla desde los
márgenes de la sociedad.

Porque en Revista Fill nos gusta


conocer diferentes perspectivas de la
sociedad y la cultura, gracias a la
gestión realizada por el Colectivo
Gabinete de Quijote, conocimos a la
controversial Hija de Perra, reconocida
travesti que debutó como actriz en
"Empaná de Pino", la irreverente
película del destacado cineasta chileno
independiente Wincy. Ambos visitaron
https://www.youtube.com/
la ciudad para presentar sus proyectos
Entrevista Entrevista Hija de Perra & Wincy 13:37 149.016 1.6k 134 212 23/01/2013 Revista Fill watch?v=IkmKJey7ZXI&t=
independientes; Hija de Perra con su
2s
proyecto musical "Indecencia
Transgénica" y Wincy, quien desarrolló
una charla de cine independiente y
presentó su última producción "Otra
película de amor", proyectos apoyados
por una amistad que los une hace ya
décadas. En Biblioteca Viva y tras
realizarse la charla, tuvimos el privilegio
de compartir una amena conversación
con ambos.
219

El tercer programa de Sonidos


Ardientes con nuestra invitada
Hija de Perra y La Prohibida - internacional LA PROHIBIDA, quién nos https://www.youtube.com/
Entrevistadora 17:17 55.849 324 20 54 09/09/2012 xxbonex
Sonidos Ardientes (cap 3) presenta sus últimos videos. Video de watch?v=MD7nd2jgWIc
Edwin Oyarce (wincy)
www.mundoparalelotv.com
Video Exclusivo desempolvado de
nuestro archivo privado!! "Fashion
Police" realizado por Hija de Perra y
MUNDO
FASHION POLICE con Hija de Miss Documentos en el estreno del https://www.youtube.com/
Entrevistadora 18:23 17.334 155 5 19 03/10/2013 PARALELO
Perra documental de Lucía Egaña "Mi watch?v=CeXDRxr7A5I
TELEVISIÓN
sexualidad es una creación artística" en
Centro Arte Alameda en algún día del
2011
Sobre su vida y trascendencia en sus https://www.youtube.com/
Homenagem RIP Hija de Perra ha muerto! 1:15 27.065 330 26 66 25/08/2014 Christian Ortiz
palabras Con respeto y cariño watch?v=IuCCSbV-7Qo
UN INMUNDO HOMENAJE A HIJA DE
HIJA DE PERRA - ASESINA PERRA Imágenes: Documental
Adraviel Bada https://www.youtube.com/
Homenagem POR NATURALEZA (VIDEO ''Perdida hija de Perra'' Música: Extracto 1:56 23.678 225 10 41 22/08/2013
Boom watch?v=OMLoxN4BvwU
TRIBUTO) de la canción ''Asesina por Naturaleza''
Edición: Adraviel Bada Boom
Fuimos al cine Arte Alameda a vivir una
Conmemoración "Hija De Perra" tremenda experiencia con todo el https://www.youtube.com/
Homenagem 6:58 11.744 184 16 22 31/08/2017 VIA X
en Y Qué Pasó? séquito de Hija De Perra. Mira la nota watch?v=rDFAdjCvDsM
de nuestras gansas ♥
Transmitimos en vivo con las gansas,
directamente desde los Estudios Del
Homenajeamos a Hija de Perra https://www.youtube.com/
Homenagem Rey con nuestra querida Roxy Foxy, y 49:09 2.856 82 6 10 28/08/2018 VIA X
en el estudio de Roxy Foxy watch?v=Ud55HusWa-I
aprovechamos de probar un singular
maquishaje. Disfrutálo!
Intento de Tributo realizado en tocata
enmaracada en la semana de la
facultad de la Universidad de la
frontera, es por ello se que algunas
letras fueron cambiadas para estar ad
hoc, pero en otras ocasiones
simplemente olvide la letra xD o la https://www.youtube.com/
Homenagem Intento Tributo Hija de Perra 22:35 3.017 58 9 21 21/10/2014 baito kurage
cambié, los nervios y el escaso ensayo watch?v=3d39Jfmy2Vo
me la cobraron :S Pero a pesar de todo
lo hice con mucho cariño y dedicación,
espero que no se tome como una
parodia o burla hacia hija de perra, ya
que la intención no fue esa, sino todo la
contrario :D
Disidencia - Discurso de Hija de https://www.youtube.com/
Homenagem - 1:45 4.683 56 1 1 30/07/2013 OyeNacho
Perra watch?v=QqbN9pzX2t0
Hoy 25 de agosto es el aniversario de la
partida de la extraordinaria performer
https://www.youtube.com/
Homenagem HIJA DE PERRA IN MEMORIAM Hija de Perra, gran bizarra del 2:27 4.023 49 8 8 25/08/2016 OFAN
watch?v=EEssrusBCpM
underground chileno y reina del
electromugre.
¿Que tan inmundo eres tú? ENAMORADO https://www.youtube.com/
Homenagem HIJA DE PERRA 18+ (Tributo) 4:49 811 27 0 7 12/04/2015
#HijadePerra TV watch?v=SKiWxeq5C3o
Odessa "Me desnudo" (Cover de https://www.youtube.com/
Homenagem tocata en el clan 23-01-2015 2:55 856 15 1 2 28/01/2015 Lau Molina
Hija de Perra) watch?v=T0ZBgHm2PSA
Ellas No - Asesina por naturaleza
Sudamerican https://www.youtube.com/
Homenagem [cover hija de perra] [FemFest - 2:25 515 10 0 0 22/02/2016
Rockers watch?v=PaWd2E4NWgk
2016]
220

Inmundo registro de "Tan Dichosa y Tan


Tan Dichosa y Tan Feliz: https://www.youtube.com/
Homenagem Feliz: Celebrando a Hija de Perra" en el 1:02 1.034 6 0 0 30/08/2016 Funky Cine
Celebrando a Hija de Perra watch?v=JwUKe2OKiUI
Centro Cultural Manuel Rojas.
Un Homenaje a la realidad de la vida;
HIJA DE PERRA | Makeup https://www.youtube.com/
Homenagem La belleza ayuda pero no es nada sin 1:16 123 4 1 1 14/02/2018 Erika con K
Tutorial watch?v=q1Oo8-iYbLk
actitud!!
RICHARDBAKER. Nalgas con Ambato. Julio 2018 En vivo en el No https://www.youtube.com/
Homenagem 1:45 87 4 1 0 30/07/2018 DiablaBarker
olor a caca (Hija de Perra cover) soporto sus karas falsas watch?v=QEL4c0KuslE
Hija de Perra e Irina la Loca - https://www.youtube.com/
Indefinido - 3:04 6.224 52 2 4 15/08/2012 xxbonex
Absceso Perianal watch?v=L3kEuQGwi4U
VIDEOFLIMS PRESENTA: EMPANA
DE PINO de Wincy Hija de Perra y su
esclava sexual, la prostituta llamada
Perdida, comercializan "empanadas de
pino", hechas con trozos de carne
humana molida, en un pequeño
mercado de Santiago, Chile. Este
macabro accionar tendrá el objeto de
intentar revivir a su esposo muerto,
https://www.youtube.com/
EMPANÁ DE PINO - Película Caballo, mediante el sacrificio humano, VideoFilms
Longa-metragem 01:28:47 71.927 807 90 154 06/05/2013 watch?v=v3HYLQt1ySw&t
completa previo arreglo de pleitesía con el Distribución
=2871s
demonio Zapanala. Elenco: Hija de
perra, Perdida, Barbara Vera, Adriana
Diaz, Pablo Peña Lang, Melisa
Mardones, Irina Gallardo, Paula Bravo,
José Miguel Gallardo. RECORDA QUE
PODES COMPRARLA EN
www.videoflims.com.ar Y ASÍ
COLABORAR CON QUE SE SIGAN
HACIENDO ESTAS PELÍCULAS.
HIJA DE PERRA Y FELIPINK EN
https://www.youtube.com/
Making of LA GRABACIÓN DE "OBEY MY - 0:48 4.190 30 0 1 28/08/2012 xxbonex
watch?v=30N4qOelD6s
ORDERS"
Versión de estudio del épico tema
Hija de Perra - Reggaeton "Reggaetón Venéreo" o "Perreo https://www.youtube.com/
Música/Áudio 02:35 244.788 1.2k 222 203 27/08/2012 xxbonex
Venereo Venéreo" ,cantado junto a su grupo con watch?v=fA_aVqa7KSk
Perdida, "Indecencia Transgénica"
violencia intrafamiliar - hija de wajkdlasjlkjdalskjdlkasjkldjaskl me cago https://www.youtube.com/
Música/Áudio 03:08 78.486 576 59 74 26/11/2011 Carlos Mena
perra xd watch?v=jfPDWESqFQU
https://www.youtube.com/
Música/Áudio Axilas hediondas - hija de perra - 2:52 100.370 509 117 95 26/11/2011 Carlos Mena
watch?v=BaUnnYCJgA8
https://www.youtube.com/
Música/Áudio Hija de Perra - Me Desnudo - 02:26 60.164 397 29 34 28/11/2011 No More
watch?v=VbW7NSNKxH0
Indecencia Transgénica -
Hija de Perra + Perdida Incluída en el https://www.youtube.com/
Música/Áudio Asesina Por Naturaleza (Hija de 2:28 531 23 2 1 03/07/2018 Olga Sana
disco "Envergadura" watch?v=Si5dNW1QIQw
Perra + Perdida)
Indecencia Transgénica - Hija de Perra + Perdida versión de
https://www.youtube.com/
Música/Áudio Indecencia Trans (Hija de Perra + estudio incluída en el disco 2:24 182 7 0 0 04/07/2018 Olga Sana
watch?v=5A9EgtOsExU
Perdida) "Envergadura"
Indecencia Transgénica - Templo
Hija de Perra + Perdida Incluída en el https://www.youtube.com/
Música/Áudio de Promiscuidad (Hija de Perra + 01:39 250 6 0 1 03/07/2018 Olga Sana
disco "Envergadura" watch?v=6aVB2dOfq6E
Perdida)
221

ATENCIÓN!!! si le ofende el sexo fuera


del orden "natural", si es del opus dei, si
es homófobo, sexófobo, frígido o
Hija de Perra + Perdida -
impotente, o si su religión o su moralina https://www.youtube.com/
Música/Clipe Indecencia Transgenica - 5:12 59.123 561 65 80 16/10/2012 Wincy Oyarce
no se lo permiten, abstengase de ver watch?v=mkGJHUkBLgQ
Indecencia Trance
éste video en vez de andar
denunciándonos al gran hermano de
Youtube.
Felipink & Hija de Perra - OBEY Javiera de la https://www.youtube.com/
Música/Clipe - 3:48 30.855 380 15 30 08/09/2011
MY ORDERS Veja watch?v=zGoAlnGvHhk
Hija de Perra & Felipink - https://www.youtube.com/
Música/Clipe - 3:16 38.427 337 22 43 02/08/2011 Pedro Echeverria
Vagabunda de la Lujuria watch?v=cRVa228U7_o
tema del disco ENVERGADURA de
Indecencia Transgénica - Papito INDECENCIA TRANSGENICA con HIJA https://www.youtube.com/
Música/Clipe 02:17 39.870 305 25 37 28/08/2012 xxbonex
Rico DE PERRA y PERDIDA DIRECCIÓN: watch?v=NXKwyyKakSQ
WINCY
Indecencia Transgénica - Me https://www.youtube.com/
Música/Clipe - 03:04 3.564 89 6 12 19/06/2017 jzzalf flazzj
Desnudo watch?v=jVMDhxNHhy4
INDECENCIA TRANSGÉNICA - Dirección y Edición: Wincy Oyarce Con
https://www.youtube.com/
Música/Clipe PAPITO RICO (Hija de Perra + la participación de : Hija de Perra + 02:14 1.435 38 0 4 29/04/2016 Wincy Oyarce
watch?v=pVT05Y0tGAU
Perdida) Perdida + Irina La Loca
Amig@s: lamentablemente no llevé la
suficiente memoria para grabar toda
esta magistral e inmunda clase de la
grandísima Hija de Perra. El coloquio se
extendió por mucho más tiempo de lo
https://www.youtube.com/
Clase de Venéreas por Hija de que muestran esta seré de vídeos. Está
Palestra 30:15 22.981 220 2 15 02/12/2013 Romano Barbini watch?v=f3MqknS3NEQ&t
Perra (parte 4 y última :C) de más decir que todo lo que se abordó
=3s
fue de suma importancia para tod@s
las mentes pensantes que pululan este
espacio-tiempo. Ojala alguien pueda
subir más material sobre clases de
venéreas de nuestra p
Ponencia realizada por una ilustrada
Hija de Perra en el marco de las
PRIMERAS JORNADAS
HIJA DE PERRA OFENSIVO
ESTUDIANTILES DE TEORÍA DE https://www.youtube.com/
Palestra MARGEN SEXUAL EN UNA 26:18 7.064 211 6 8 14/05/2016 Ruth Diravonitz
GÉNERO. Facultad de Derecho de la watch?v=Q0gBqKd7iyY
RAZA SOSPECHA
Universidad de Chile 17 de Noviembre
del2010 registro y post producción:
Wincy
La Maestra de Maestras, la grandisima
Hija de Perra nos instruyó acerca de
cómo el poder que posee el sexo ha
sido ocultado por medio de la
ignorancia impuesta por lo poderes
fácticos. En este marco, este taller nos
brinda información acerca de las https://www.youtube.com/
Clase de Venéreas por Hija de
Palestra distintas "enfermedades" que se 04:46 38.985 207 5 5 14/10/2013 Romano Barbini watch?v=t5uQs_N0JYg&t=
Perra (parte 1)
pueden contagiar a través del acto 109s
amatorio. Lamentablemente, no está la
conferencia completa ya que la
memoria de la cámara no me
acompañó, pero se recoge información
valiosisima y digna de ser viralizada por
la web.
La grandísima Hija de Perra
https://www.youtube.com/
Clase de Venéreas por Hija de derramando toda su inmundicia en una
Palestra 7:55 21.501 153 1 8 16/05/2013 Romano Barbini watch?v=wA9939AI26U&t
Perra (parte 2) clase magistral sobre venéreas en
=180s
Arica.
222

Hija de Perra como ponencista en


encuentro "ciudadanías del cuerpo:
Hija de Perra en encuentro emplazamientos al estado y a la iglesia" https://www.youtube.com/
Palestra "Ciudadanías del cuerpo" 21-10- , acompañada por Irina la loca y Tito, en 23:37 8.668 0 0 8 22/10/2011 Oftanova watch?v=I6xx3RK8sXU&t=
2011 el auditorio de facultad de arquitectura y 1178s
urbanismo, Universidad de Chile, el
viernes 21 de octubre del 2011
Videoclip realizado improvisadamente
en Santiago de Chile en el 2010. Acá se MUNDO
Participação/Clip Kumbia Queers - Control Remoto https://www.youtube.com/
ve el momento en que las chicas le 4:10 1.517 24 2 0 12/11/2014 PARALELO
e (con intro de Hija de Perra) watch?v=45-J1vQgH7s
proponen a Hija de Perra grabar el TELEVISIÓN
video. Dirigido por Wincy
Programa de Hija de Perra en Femfest, Radio Programa FEMFEST, 03 de Noviembre https://www.youtube.com/
58:23 7.539 109 5 10 07/08/2012 xxbonex
rádio Tierra de 2008. http://www.radiotierra.info watch?v=T7QhbpLq0no
Hija de Perra en cumpleaños de https://www.youtube.com/
Show/Aniversário 26 enero 2008 12:36 527 12 0 2 02/07/2017 Lontano
Lontano - 2008 watch?v=RvfZfZ-UTjE
La Rueda de la Fortuna de Hija Presentación concurso cumpleaños https://www.youtube.com/
Show/Aniversário 0:28 5.290 1 1 0 30/01/2008 Lontano
de Perra Lontano, Enero 2008 watch?v=SmBH4-qoK48
Show/Casa Hija de Perra - Nalgas con olor a Luis Figueroa https://www.youtube.com/
Cantando en el Juego e' la Botota 04:35 572.025 5.2k 1.9k 2.216 11/12/2012
noturna caca Contreras watch?v=H-32vQFqWg8
Show/Casa El Juego E La Batota - T03 C20 - Sigan compartiendo en sus redes https://www.youtube.com/
55:02 161.122 1.1k 102 349 26/10/2012 bototafox
noturna Hija de Perra sociales! watch?v=HgGyh_NDXiU
Show/Casa https://www.youtube.com/
HIJA DE PERRA IS DEAD - 10:48 36.771 264 35 53 21/01/2013 PascueTV
noturna watch?v=8INCHKa0T-k
Show/Casa Hija de Perra y Perdida - Indecencia Transgénica 19 de https://www.youtube.com/
2:15 14.022 49 10 5 15/08/2012 xxbonex
noturna Reggaetón Venereo Septiembre, Club Atlantis watch?v=RLjNqZpfHPM
Show/Casa Hija de Perra / Regeaton https://www.youtube.com/
Hija de perra / Regeaton venereo 2:39 27.076 28 7 11 30/12/2007 ChileLindo
noturna Venereo watch?v=1e14fMHQ2kM
La raja suciaaa, Ahora, ahora, cochina
Show/Casa Hija de Perra e Irina La Loca - cohina, hay rebisame el culo que tengo SteampunkMorg https://www.youtube.com/
2:54 10.561 28 6 6 14/01/2011
noturna Acceso Penianal (live XD) un poroto XDD. Grande perra CTM!!!----- an watch?v=HJZGb71nT0I
Valpo City(Morgana)
Show/Casa Hija de Perra, Me desnudo https://www.youtube.com/
- 2:18 6.695 23 6 4 28/05/2009 Remaro Music
noturna (Pagano 31 de Enero 2009) watch?v=4wj3v8vtprg
Show/Casa hija de perra en divas y divos by https://www.youtube.com/
hija de perra en divas y divos 2:22 9.741 19 1 6 05/04/2006 Andy Stein
noturna andystein watch?v=mu7G3dKQ-ng
Show/Casa Hija de Perra: "Diosa y Patrona Este video se subi� de un tel�fono https://www.youtube.com/
36:06 553 14 0 4 26/08/2014 Patricio Barria
noturna de las Bizarras" Android. watch?v=YtwucKB1Lkw
Show/Casa MORGANA. 19 DE MAYO, https://www.youtube.com/
SHOW DE HIJA DE PERRA 3:18 2.223 9 1 1 26/05/2012 dondegritaba
noturna VALPARAÍSO. watch?v=DDKYLsUibv4
Part 1 de hija de perra en Super stard
Show/Casa https://www.youtube.com/
Hija de Perra Parte 1 Bar Concepción Chile, el dia 2 de 08:09 2.390 6 3 1 09/12/2006 zilchide1
noturna watch?v=NIhGRfkyX1Y
diciembre del 2006
Part 2 de hija de perra en Super stard
Show/Casa https://www.youtube.com/
Hija de Perra Parte 2 Bar Concepción Chile, el dia 2 de 8:36 2.209 5 1 0 09/12/2006 zilchide1
noturna watch?v=vh9hj8dKdts
diciembre del 2006
Show/Casa https://www.youtube.com/
Hija de Perra (Antofagasta) Noche inolvidable!! ♥ 1:24 803 5 0 2 21/01/2013 Bisha Rara
noturna watch?v=nOXfCwSmDzw
Show/Casa https://www.youtube.com/
Hija de Perra - Me Desnudo Hija de Perra. Morgana - Valparaíso 2:22 1.103 4 0 1 18/01/2011 Empaathy
noturna watch?v=6Fpn_YDLwcE
Show/Casa https://www.youtube.com/
Hija de Perra y la perdida. Hija de perra y La Perdida. 6:46 2.462 2 3 0 30/11/2007 ChileLindo
noturna watch?v=MZzYTckU0SI
Cine Arte alameda, el nuevo hit del
Hija de Perra y Perdida - Ponte https://www.youtube.com/
Show/Evento verano. PONTE VASELINA EN EL OYO 2:58 49.994 150 30 34 10/09/2009 TheMisterfactory
Vaselina en el Oyo watch?v=uzTTs6K-n5s
, QUE VOY HACERTE CAGAR :o

https://www.youtube.com/
Show/Evento Hija de Perra - Me desnudo Cine Arte Alameda 2:20 8.877 18 3 4 10/09/2009 TheMisterfactory
watch?v=0HDQDmwDvQE
223

La Hija de Perra y La Perdida - Esto es lejos lo más bizarro ke me ha https://www.youtube.com/


Show/Evento 2:58 4.515 18 2 8 04/04/2010 ChileLindo
Ponte Vaselina en el Oyo tocado ver en Chile. watch?v=OFON81qcshg
https://www.youtube.com/
Show/Evento Hija de Perra Cine Arte Alameda 1:27 1.629 9 0 5 10/09/2009 TheMisterfactory
watch?v=KCxS3HgckI4
https://www.youtube.com/
Show/Evento Hija de perra Femfest 2010.MOV - 3:59 1.453 4 0 1 19/12/2010 elintronauta
watch?v=gSPtRkJ89B8
Show/Universida Wow ! grabando en la U voladizimo https://www.youtube.com/
Hija de Perra. 2:09 33.586 43 16 35 03/04/2009 z0mbixxx
de Viendo hija de perra. watch?v=Ac016iLhswo
Un trozo de la presentación de Hija de
Show/Universida https://www.youtube.com/
Hija de Perra e Irina la Loca Perra e Irina la Loca en el patio de los 3:30 2.625 21 0 2 20/07/2012 analfabeto6
de watch?v=vqvNauV1TGI
perros- USACH
Trailer de Empaná de Pino por primera
EMPANÁ DE PINO em la tv vez en la tv abierta...¡pero esas caras wincyproduccion https://www.youtube.com/
TV Aberta 4:20 8.139 24 2 14 13/01/2008
abierta que significan!!! si hija de perra es es watch?v=brnZHX_r7E0
hermosa!!!!
224

APÊNDICE B - MAPEAMENTO HERÉTICO DO RIZOMA: RASTROS TEXTUAIS

FORMATO SITE DATA TÍTULO LINK


Wikipédia Wikipedia Hija de Perra https://es.wikipedia.org/wiki/Hija_de_Perra
Interpretações imundas de como a Teoria Queer
coloniza nosso contexto sudaca, pobre de aspirações
https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/vi
Acadêmico Revista Periódicus e terceiro-mundista, perturbando com novas
ew/12896
construções de gênero aos humanos encantados com
a heteronorma
15 textos de Hija de Perra que te ayudarán a entender https://www.biobiochile.cl/noticias/2014/08/31/15-textos-de-
Comemoração do legado Biobio Chile 31/08/2014
su trabajo hija-de-perra-que-te-ayudaran-a-entender-su-trabajo.shtml
Hija de Perra, la transformista que escandalizó a toda https://culturacolectiva.com/historia/la-hija-de-perra-
Biográfico Cultura Colectiva 23/23/2016
uma sociedad conservadora escandalizo-a-toda-una-sociedad-conservadora/
Cineteca Universidad de
Ficha catalográfica Perdida Hija de Perra (2010) http://www.cinetecavirtual.cl/fichapelicula.php?cod=39
Chile
http://corporalidades.com.br/site/2017/06/07/hija-de-perra-
Biográfico Corporalidades 07/06/2017 Hija de Perra - Imunda e necessária
imunda-e-necessaria/
Así recuerdo a Hija de Perra: Celebremos juntos el
Divulgação de evento Pousta 23/08/2017 https://pousta.com/hija-de-perra-calientes-transnacionales/
legado de la artista y activista travesti
El Che de los Gays: "La muerte de Hija de Perra fue https://www.elciudadano.cl/chile/el-che-de-los-gays-la-muerte-
Comemoração do legado El Ciudadano 25/08/2017
um llamado de alerta al VIH" de-hija-de-perra-fue-un-llamado-de-alerta-al-vih/08/25/
http://www.soychile.cl/Santiago/Espectaculos/2014/08/26/270
Murió Hija de Perra, conocida cantante y performista
Notícia da morte Soy Chile 26/08/2014 542/Murio-HIja-de-Perra-conocida-cantante-y-perfomista-del-
del underground nacional
underground-nacional.aspx
https://www.nuevamujer.com/entretenimiento/2017/08/22/hija-
Hija de Perra: A tres años de su muerte revisamos su
Comemoração do legado Nueva Mujer 22/08/2017 de-perra-a-tres-anos-de-su-muerte-revisamos-su-
descarnado e hermoso legado
descarnado-y-hermoso-legado.html
http://www.theclinic.cl/2016/05/10/mama-de-la-transformista-
Mamá de la transformista Hija de Perra: "el trato em
Desdobramento da morte/HIV The Clinic 10/05/2016 hija-de-perra-el-trato-en-las-oficinas-publicas-y-privadas-es-
las oficinas públicas y privadas es un asco"
un-asco/
https://espacaarca.noblogs.org/post/2014/08/27/morre-hija-
Notícia da morte Arca 27/08/2014 Morre Hija de Perra
de-perra/
https://www.cooperativa.cl/noticias/entretencion/personajes/m
Notícia da morte Cooperativa 26/08/2014 Murió la reconocida performista Hija de Perra urio-la-reconocida-performista-hija-de-perra/2014-08-
26/114537.html
http://www.revistacloset.cl/2016/02/25/el-sida-sin-metaforas-
Desdobramento da morte/HIV Revista Closet 25/02/2016 El Sida sin metáforas: Hija de Perra
hija-de-perra/
Centro arte Alameda conmemora a "Hija de Perra" a http://lanacion.cl/2018/08/22/centro-arte-alameda-
Divulgação de evento La Nación 22/08/2018
cuatro años de su partida conmemora-a-hija-de-perra-a-cuatro-anos-de-su-partida/
Ministerio de Economía niega a madre de Hija de http://www.eldesconcierto.cl/2016/12/28/ministerio-de-
Desdobramento da
El Desconcierto 28/12/2016 Perra inscribir nombre artístico de su hijo porque economia-niega-a-madre-de-hija-de-perra-inscribir-nombre-
morte/Propriedade intelectual
"atenta contra la moral" artistico-de-su-hijo-porque-atenta-contra-la-moral/
https://mssa.cl/events/event/conversatorios-en-memoria-de-
Divulgação de evento MSSA 24/08/2017 Conversatorios en memoria de Hija de Perra
hija-de-perra/
http://ismorbo.com/niegan-a-la-madre-de-hija-de-perra-el-
Desdobramento da Niegan a la madre de Hija de Perra el registro de la
Morbo 28/12/2016 registro-de-la-marca-por-estar-contra-la-moral-y-buenas-
morte/Propriedade intelectual marca por estar "contra la moral y buenas costumbres"
costumbres/
Familiares de "Hija de Perra" procesionan en contra https://radio.uchile.cl/2016/02/26/familiares-de-hija-de-perra-
Desdobramento da morte/HIV Diario U Chile 26/02/2016
del lucro com el SIDA procesionan-en-contra-del-lucro-con-el-sida/
225

http://www.upsocl.com/cultura-y-entretencion/el-legado-de-
El legado de Hija de Perra: El travesti y activista que
Comemoração do legado UPSOCL 03/10/2017 hija-de-perra-el-travesti-y-activista-que-cambio-los-
cambió los paradigmas a través de lo extraño
paradigmas-a-traves-de-lo-extrano/
La "Hija de Perra" será homenageada en Centro Arte http://www.radiozero.cl/agenda/2016/08/la-hija-de-perra-sera-
Divulgação de evento Radio Zero 18/08/2016
Alameda homenajeada-en-centro-arte-alameda/
http://www.revistabellopublico.cl/index.php/rbp-
Irina La Loca, performer: "Se murió Hija de Perra y yo
Entrevista Irina La Loca Revista Bello Público 13/10/2017 interviu/entrevistas/86-irina-la-loca-se-murio-hija-de-perra-y-
quedé a poto pelao"
yo-quede-a-poto-pelao
Murió "Hija de Perra", Drag Queen y exponente chilena https://www.eldinamo.cl/cultpop/2014/08/26/hija-de-perra-
Notícia da morte El Dínamo 26/08/2014
del "Marginal Style" muerte-drag-queen-marginal-style/
Calientes Transnacionales, el homenaje a la activista http://burdas.cl/calientes-transnacionales-homenaje-la-
Divulgação de evento Burdas 24/08/2017
"Hija de Perra" activista-hija-perra/
Estuvimos en el lanzamiento de la exposición http://vistelacalle.com/143306/estuvimos-en-el-lanzamiento-
Divulgação de evento Viste la calle 20/08/2015
homenage a "Hija de Perra" de-la-exposicion-homenaje-a-hija-de-perra/
http://www.elobservatodo.cl/noticia/sociedad/fallece-hija-de-
Notícia da morte El Observatodo 26/08/2014 Fallece Hija de Perra
perra
http://www.clarinet.cl/nuevo/index.php/miselanea/espectaculo
Performista, feminista, drag queen y artista
Comemoração do legado Clarinetet s/515-la-muerte-de-hija-de-perra-y-el-arte-politico-desde-la-
transgresora
marginalidad-real
Biográfico Aim 21/07/2018 Hija de perra, grotesca disidente http://www.aimdigital.com.ar/hija-de-perra-grotesca-disidente/
Cuántas Hijas de Perra son necesarias para hacer https://hysteria.mx/cuantas-hijas-de-perra-son-necesarias-
Artigo opinativo Revista Hysteria estallar el mundo? Escrituras transgénicas em para-hacer-estallar-el-mundo-escrituras-transgenicas-en-
homenage a Hija de Perra homenaje-a-hija-de-perra/#_ftn1
http://www.disorder.cl/2014/02/17/recibi-lecciones-de-amor-
Perfil jornalístico Disorder Magazine 17/02/2017 Recebí lecciones de amor de Hija de Perra
de-hija-de-perra/
Biográfico Post Dictadura 08/06/2009 Hija de Perra http://postdictadura.blogspot.com/2009/06/hija-de-perra.html
Reconocido drag queen "Hija de Perra" falleció este https://www.publimetro.cl/cl/entretenimiento/2014/08/26/recon
Notícia da morte Publimetro 26/08/2014
domingo ocido-drag-queen-hija-perra-fallecio-este-domingo.html
Divulgação de evento Portal Saci UFOP 17/11/2016 II Semana de Diversidade de Ouro Preto - UFOP https://www.saci2.ufop.br/servico_clipping?id=3092
https://revistahibrida.com.br/2017/10/17/alma-negrot-
Nome citado Híbrida 17/10/2017 A moda manifesto de Alma Negrot
entrevista/
Divulgação de https://anarcopunk.org/v1/2017/07/rio-de-janeiro-cine-clube-
Anarcopunk jul/17 [Rio de Janeiro] Cine Clube pósporno + debate
evento/cineclube posporno-debate/
226

APÊNDICE C - MAPEAMENTO HERÉTICO DO RIZOMA: RASTROS ACADÊMICOS

FORMATO TÍTULO AUTORIA PUBLICAÇÃO LOCAL DE PUBLICAÇÃO DESCRIÇÃO OBSERVAÇÃO LINK


Professora da
Universidade do Chile.
Discute as diferenças sexuais e
Las implicancias de la figura Nomadías, n. 16, p. Texto apresentado no I
utiliza Hija de Perra como exemplo https://nomadias.uchile.cl/index.php/
Exemplo/Artigo andrógina para pensar la Olga Grau 187-196, novembro Universidade do Chile Congreso Nacional de
de provocação de certezas sobre NO/article/view/25009
diferencia sexual 2012 Filosofía, na Biblioteca
identidade e diferença sexual
Pública de Santiago, em
setembro de 2009
Discussão sobre feminismo e pós-
Ativista do Colectivo
Cómo gozamos las feministas con Nomadías, n. 25, p. porno. Menciona Hija de Perra no https://revistas.uchile.cl/index.php/N
Menção/Artigo Cristeva Cabello Universidade do Chile Utópico de Disidencia
el porno 243-249, julho 2018 texto e apresenta uma nota de O/article/view/51554/53911
Sexual (CUDS)
rodapé sobre ela
Ativistas do Colectivo
¿Cuántas hijas de perra son
Lucha Venegas, Punto Género, n. 4, Utópico de Disidencia
necesarias para hacer estallar el Artigo sobre a obra de Hija de Perra https://revistas.uchile.cl/index.php/R
Análise/Artigo Cristeva Cabello e p.17-22, dezembro Universidade do Chile Sexual (CUDS), com o
mundo? Escrituras transgénicas como um todo PG/article/view/36406/38038
Jorge Díaz 2014 qual Hija de Perra
en homenaje a Hija de Perra
chegou a trabalhar
El fin de la idealización retrógrada Escrito pela própria Hija de Perra,
https://revistapuntogenero.uchile.cl/i
de la sexualidad es el mágico Punto Género, n. 2, p. discute a repressão sexual e como
Autoria Hija de Perra Universidade do Chile ndex.php/RPG/article/view/28372/30
espiral del apocalipsis multisexual 223-230, outubro 2012 ela se manifesta na (não)
077
eterno manifestação sexual das pessoas

Mariconadas escénico-callejeras. Análise da teatralidade das http://www.ojs.arte.unicen.edu.ar/ind


Cuerpo del Dram, n. 2, Universidad Nacional del Centro
Análise/Artigo Materializaciones estratégicas del Daniela Cápona performances de Hija de Perra e de ex.php/cuerpodeldrama/article/view/
p. 1-12, 2014 de la Provincia de Buenos Aires
cuerpo cola em espacios urbanos El Ché de los Gays 87/84

Análise das performances de Hija


Autora escreveu uma
de Perra por três chaves: estética
Liminalidades del deseo y dissertação, na PUC do
Roxana Gómez El Arbor, n. 6, p. 1- política (camp), teatralidade http://www.elarbol.cl/006/pdf/a=09.pd
Análise/Artigo ocupaciones inscritas en el Plataforma digital Chile, que tem Hija de
Tapia 15abril 2012 (estrutura dramática) e espaço de f
cuerpo de Hija de Perra Perra como uma de
subjetivação (Rancière, polícia e
suas analisadas
emancipação)

Emergencia y rebase en la pose y Dissertação sobre corpos


puesta en práctica del cuerpo Roxana Gómez transformistas e travestis no Chile, https://repositorio.uc.cl/handle/11534
Análise/Dissertação PUC Chile
transformista/travesti (trans/trave) Tapia que tem Hija de Perra como uma /2960
en Chile das analisadas (é uma entre outras)

Mencionada duas vezes devido à


Anagnórisis - Revista
Usos del testimonio para disentir homanagem que era feita a ela ao
de investigación
con la sexopolítica hegemónica, final da peça Cuerpos para odiar, http://anagnorisis.es/pdfs/n16/Ezequ
Menção/Artigo Ezequiel Lozano teatral, n. 16, p. 266-
en la escena teatral que tem Irina La Loca e Wincy no ielLozano(266-275)n16.pdf
275, dezembro de
latinoamericana elenco. Ela havia morrido alguns
2017
meses antes da estreia

Cita o artigo da Daniela Cápona e a


própria Hija de Perra. Discute a
Teatralidad trans en Valparaíso:
Panambí, n. 5, p. 91- teatralidade trans em Valparaiso. https://micologia.uv.cl/index.php/Pan
Citação/Artigo Los elencos de Pagano y Mara Luis Pinto Herrera Universidad de Valparaiso
112, 2017 Discussão importante sobre ambi/article/view/1042
Taylor
teatralidade, performance, teatro
pós-dramático
O texto Interpretaciones Imundas
consta na bibliografia de um http://repositorio.filo.uba.ar/jspui/bitst
Seminario: Deseables y
seminário/disciplina ministrado em ream/filodigital/3676/1/uba_ffyl_p_20
Referência deseantes. Uma aproximación Laura Milano Universidad de Buenos Aires
fevereiro e março de 2016 no curso 16_art_Seminario_Deseables%20y
crítica a la pospornografía
de Artes da Universidade de %20deseantes.pdf
Buenos Aires
227

Cita o artigo de Olga Grau e acaba


"Ninguna guerra en mi nombre": http://nomadas.ucentral.edu.co/nom
Nómadas, n. 40, p. 159- mencionando, portanto, Hija de
Menção/Artigo feminismo y estudios culturales en Martínez et. al Universidad Centra adas/pdf/nomadas_40/40_10GCVH
173, jan. jun. 2014 Perra, uma vez que ela é usada
Latinoamérica V_NingunaGuerraenminombre.pdf
como exemplo por Grau
http://repositorio.cesmeca.mx/bitstre
Livro Sólo las amantes am/11595/914/1/Libro%20FINAL.%2
"Ninguna guerra en mi nombre": serán inmortales - 0EDICI%C3%93N%20DIGITAL.%20
Menção/Artigo feminismo y estudios culturales en Martínez et. al Ensayos y escritos en Artigo republicado em livro S%C3%B3lo%20las%20amantes%2
Latinoamérica estudios culturales y 0son%20inmortales.%20Con%20por
feminismo tada%20y%20contraportada.pdf#pa
ge=92
A versão em português do
Arte y política de Interpretaciones Imundas,
Algunas reflexiones sobre las Paola María https://revistas.um.es/reapi/article/vi
Referência/Artigo Identidad, v. 16, p. 76- Universidad de Murcia publicado na Periodicus, da UFBA,
prácticas queer en Pindorama Marugán Ricart ew/317081/223721
96, 2017 consta nas referências, embora não
tenha sido citado no texto
El Banquete de los https://publicaciones.sociales.uba.ar/
Dispositivos y soportes del placer Camila A. Osuna e Citada e referenciada a partir do
Citação/Artigo Dioses, v. 5, n. 7, nov. Universidad de Buenos Aires index.php/ebdld/article/view/2433/20
en la Teoría Queer Valentín E. Ibarra texto Interpretaciones Imundas
2016 maio 2017 56
Femenina, ferviente y disidente: Nesta dissertação, consta uma
mandolina metodista pentecostal seção sobre o trabalho do músico https://repositorio.uc.cl/bitstream/han
Marco Hugo
Menção/Dissertação como herramienta de control y PUC Chile Felipink. Como ele teve dle/11534/16823/000675738.pdf?se
Marchant Moreno
desarticulación de normas de colaborações com Hija de Perra, quence=1&isAllowed=y
género ela é mencionada cinco vezes
Corpos abjetos e amores Dissertação que utiliza duas https://acervodigital.ufpr.br/bitstream
malditos: homossexualidade, citações como epígrafe, uma de /handle/1884/37958/R%20-
Epígrafe/Dissertação anonimato e violência institucional Clara Eliana Cuevas UFPR Michel Foucalt e outra de Hija de %20D%20-
na ditadura stronista em Perra (retirada de seu discurso %20CLARA%20ELIANA%20CUEVA
Assunção, 1959 Interpretaciones Imundas) S.pdf?sequence=3&isAllowed=y
Incorporación del enfoque de
género en la materia de Ética Hija de Perra é um dos nomes que http://ri.uaemex.mx/bitstream/handle
Profesional e Identidad consta na dedicatória desta /20.500.11799/68373/PROYECTO%
Menção/Monografia Julio César Valencia Universidad Autónoma del
Institucional en la carrera de monografia de Especialização em 20FINAL%20JULIO%20C%C3%89S
de especialização Pulido Estado de México
Diseño Gráfico del Instituto Género, Violencia y Políticas AR%20VALENCIA%20PULIDO%20.
Universitario del Estado de Públicas pdf?sequence=1&isAllowed=y
México
Interpretações imundas de como
Texto lido no Congresso “El sexo
a Teoria Queer coloniza nosso
no es mio”, na 1ª Bienal de Arte e
contexto sudaca, pobre de
Sexo, realizado em Santiago do
aspirações e terceiro-mundista, Periódicus, v. 1, n. 2, https://rigs.ufba.br/index.php/revista
Autoria Hija de Perra UFBA Chile durante os dias 26, 27 e 28 de
perturbando com novas nov. 2014 abr. 2015 periodicus/article/view/12896
novembro de 2012. Traduzido para
construções de gênero aos
a Língua Portuguesa por Helder
humanos encantados com a
Thiago Maia
heteronorma
El Che de los
Gays and Hija de
Perra: Utopian Queer
Análise sobre El Che de Los Gays e
Performances in
Hija de Perra como performances
El Che de los Gays and Hija de Postdictatorship Chile. Autora é da
que possibilitam outros mundos,
Análise/Capítulo de Perra: Utopian Queer In: Beauchesne K., Universidade de https://link.springer.com/chapter/10.
Manuela Valle rearticulam imaginários políticos e
livro Performances in Postdictatorship Santos A. (eds) Saskatchewan, no 1057/978-1-137-56873-1_12
memórias outras. Cita Rancière
Chile Performing Utopias in Canadá
com o espectador emancipado e
the Contemporary
Muñoz com a desidentificação
Americas. Palgrave
Macmillan, New York,
2017
228

https://dspace.unila.edu.br/bitstream
Corpo-espetáculo: o audiovisual Trabalho de conclusão de curso /handle/123456789/3640/Corpo-
Citação/Monografia como ferramenta de expansão que usa Hija de Perra na epígrafe e Espet%C3%A1culo_FINALREAL%2
Adri Alves de Sousa UNILA
de graduação corporal das potências a cita no texto Interpretaciones 0-
gênerodissidentes Inmundas %20Documentos%20Google.pdf?se
quence=1&isAllowed=y
Artigo que tem uma nota de rodapé
que indica, para o queer em uma http://www.scielo.br/scielo.php?pid=
Civitas - Revista de
Gênero como categoria de análise Camilla de perspectiva decolonial, Larissa S1519-
Referência Ciências Sociais, v. 18, PUC-RS
decolonial Magalhães Gomes Pelúcio, Pedro Paulo Pereira, 60892018000100065&script=sci_artt
n. 1, jan./abr. 2018
viviane v. e Hija de Perra com seu ext
Interpretações Imundas
Discute o cinema e menciona o
filme Empana de Pino, descrevendo
https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?pi
Nuevas Tendencias del Cine brevemente a sinopse e propondo o
Carolina Larraín Aisthesis, n. 47, jul. d=S0718-
Menção/Artigo Chileno tras la llegada del Cine PUC Chile longra-metragem como um dos
Pulido 2010 71812010000100011&script=sci_artt
Digital primeiros a abrodar a temática
ext&tlng=en
queer e ter como protagonista uma
"travesti"

https://www.e-
Concinnitas, ano 17, v. Manifesto que cita o texto
Citação/Artigo Manifesto Traveco-Terrorista Tertuliana Lustosa UERJ publicacoes.uerj.br/index.php/concin
1., n. 28, set. 2016 Interpretações Imundas
nitas/article/viewFile/25929/18560
Uma tabela que parece ser uma
sequência para filmagens tem uma
Documental Cinematográfico menção à Hija de Perra, na qual lê-
sobre cómo los grupos de la se o que parecem ser
http://157.100.241.244/bitstream/470
Menção/Monografia diversidad sexo-genérica en la Mélida Margarita apontamentos para filmagens,
Universidad Tecnológica Israel 00/1594/1/UISRAEL-EC-P.TM-
de graduação ciudad de Quito utilizan el Coello Vítores indicando locação, tipo de gravação
378.242-2018-004.pdf
performance como una expresión de áudio e atividade. "Int. Discoteca
cultural, artística y social Queens/Noche | Presentación de
tributo a la "Hija de Perra" |
Ambiental"
Abordando um festival chamado
FemFest, diz-se que a animação do
festival ficava a cargo de Hija de https://repositorio.uc.cl/bitstream/han
La Performance Femenina como Estudios Resonancias,
Menção/Artigo Guadalupe Becker PUC Chile Perra todos os anos, uma dle/11534/4566/000568338.pdf?seq
evocación del Tabú 28
transformista equivalente à uence=1
Coordenadora, junto a Barbie
Chilena
Propõe uma discussão entre queer
e estudos subalternos, a partir de
Spivak, e utiliza como exemplos de
Estética queer: experiência, https://riuni.unisul.br/bitstream/handl
Juliano Guimarães Universidade do Sul de Santa "práticas subversivas" Hija de
Exemplo/Dissertação subversão, multiplicidade e devir e/12345/490/110772_Juliano.pdf?se
Felizardo Catarina Perra, o filme Tatuagem, Ney
na contemporaneidade quence=1&isAllowed=y
Matogrosso e Divine. É usada mais
como exemplo para ilustrar a
proposta do que uma análise
Estudo autoetnográfico sobre o
projeto Freeda, um "negócio social"
sobre diversidade, e como a
Políticas de respeito à diversidade
promoção da diversidade se
sexual e à igualdade de gênero na http://repositorio.unb.br/bitstream/10
Patrícia Vilanova relaciona com lógicas capitalistas.
Citação/Dissertação iniciativa privada: uma análise a Universidade de Brasília 482/31406/1/2017_PatriciaVilanova
Becker Articula queer e subalternidade.
partir do projeto Freeda: espaços Becker.pdf
Cita Hija de Perra, no texto
de diversidade
Interpretaciones Inmundas, para
pontuar as limitações geopolíticas
do queer
229

Artigo sobre o ativismo queer em


Panteras e locas dissidentes: o Portugal e no Chile. Apenas
Lua Nova, n. 93,
ativismo queer em Portugal e Centro de Estudos e Cultura menciona Hija de Perra como uma http://www.redalyc.org/pdf/673/6733
Menção/Artigo Leandro Colling set./dez. 2014, p. 233-
Chile e suas tensões com o Contemporânea "potência queer" no Chile e indica a 5779009.pdf
266
movimento LGBT entrevista "Hija de Perra & Wincy",
no YouTube, em nota de rodapé
Dissertação em Artes sobre as
experiências de criação artísticas
do autor, enquanto ator e integrante
de uma companhia de teatro, e
questões de gênero e sexualidade.
Hija de Perra é citada junto a P. B.
Quando uma bixa periférica faz https://repositorio.unesp.br/bitstream
Bruno César Tomaz Preciado, bell hooks, B. Bento, G.
Citação/Dissertação teatro ou quando o teatro faz uma UNESP /handle/11449/152133/lopes_bct_me
Lopes L. Louro, M. Foucault, J. Butler,
monstra _ia.pdf?sequence=4&isAllowed=y
entre outros, como embasamento
teórico. Citada na epígrafe,
homanageada em uma parte do
trabalho, e citada no texto a partir
de seu Interpretações Imundas, na
Periodicus
Dissertação em Artes Visuais, texto
que é mistura de poético e
acadêmico. Discorre sobre a
própria experiência do autor na
Miscelânea marmota: a Poética Felipe Ramon Alves criação de uma pesquisa artística. http://repositorio.unb.br/handle/1048
Menção/Dissertação Universidade de Brasília
das Travas Elétricas Olalquiaga Texto fragmentado, poético, 2/21244
ilustrado por fotografias e
ilustrações. Exibe uma foto de Hija
de Perra no proyecto Macrodosis,
de Zaida González
Dissertação em Estudos de Gênero http://repositorio.uchile.cl/bitstream/h
Migración, género y etnia.
Nilvia Ordón e Cultura. Cita Hija de Perra, no andle/2250/152234/Migraci%C3%B3
Citação/Dissertação Identidad Muxe' em la ciudad de Universidad de Chile
Regalado texto Interpretaciones Inmundas, n,%20g%C3%A9nero%20y%20etnia
Gudalajara, México
uma vez .pdf?sequence=1
Tese em Estudos Artísticos,
discussão sobre performance,
dissidências sexuais e
corpxs sem pregas: performance, https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstrea
desobediências anticoloniais. Usa
Citação/Tese pedagogia e dissidências sexuais André Luís Rosa Universidade de Coimbra m/10316/42728/4/corpxs%20sem%2
Hija de Perra, em Interpretações
anticoloniais 0pregas.pdf
Imundas, da Periodicus, para
discurtir as "(re)colonizações da
agenda queer na América Latina"
230

Tese em História sobre a


construção de feminilidades no
Chile, durante a Guerra Fria.
Menciona Hija de Perra nos
agradecimentos, como inspiração e
uma das "maiores ativistas políticas
sexuais" do Chile; menciona a fala
"Sexualidade é desorganizada",
Everything is drag: the politics of https://digitalrepository.unm.edu/cgi/
referenciada em nota de rodapé
Menção/Tese performing beautiful women in Carson Emily Morris University of New Mexico viewcontent.cgi?article=1056&conte
como dita no debate Trans en
Cold War Chile xt=hist_etds
Chile, na Universidade do Chile; e a
menciona novamente como uma
ativista que dedicou sua vida à
performance de políticas sexuais,
"a Gabriela Mistral da pós-
modernidade", segundo Victor
Hugo Robles, em uma matéria
referenciada em nota de rodapé.
Menção ao nome de Hija de Perra
Memória em disputa: Artes Concinnitas, ano 17, v.
Menção/Artigo Fernanda Nogueira UERJ como um nome de uma "revolução
obscenas em foco 1., n. 28, set. 2016
estético-política"
As ações estético-políticas de Carlos Guilherme
https://portalseer.ufba.br/index.php/r
enfrentamento direto de Indiana Mace Altmayer e Periódicus, v. 1, n. 7, Citação do texto Interpretações
Citação/Artigo UFBA evistaperiodicus/article/view/22280/1
Siqueira, pessoa normal de peito Denise Berruezo maio/out. 2017 Imundas
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e pau Portinari

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