Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
templo de
promiscuidade”:
consumo escópico do excesso nas
performance-vida e performance
post mortem de Hija de Perra
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________
Orientadora e Presidente da Banca:
Profa. Dra. Rosamaria Luiza (Rose) de Melo Rocha (ESPM-SP)
____________________________________________________________
Avaliadora Externa
Profa. Dra. Maria Bernadette Cunha de Lyra (UFES)
____________________________________________________________
Avaliadora Interna
Profa. Dra. Milene Migliano Gonzaga (ESPM-SP)
A todas as manas
que travam batalha
puxando navalha.
A todas as bixas,
baixas e bruxas,
que fazem bixaria
e praticam necomancia.
Às afeminadas,
às mais engraçadas,
às bunitas
e, é claro, às montadas.
Às especialistas em destruição,
que encabeçam a revolução.
AGRADECIMENTOS
À casa das quatro mulheres – Luiza, Regina, Márcia e Patrícia. E a todas que vieram antes
abrindo os caminhos e às que ainda estão por vir, além das que já estão aqui. Forças potentes
de um mundo que não aguentou e ruiu. Quebraram a costela de Adão e me libertaram.
À Rose de Melo Rocha, por incentivar delírios, fomentar paixões e não ter medo de monstros.
Por alertar quando se está muito longe a ponto de não enxergar ou muito perto a embaralhar
a vista. Por ensinar que, quando a luminosidade cega, os centros endurecem e as superfícies
enganam, é inspirador tatear no escuro, esgueirar-se pelas margens e encarar os abismos.
À Marina Hungria, cujo sofá continua acolhedor àqueles que precisam, e à Gabrielle Angelim,
por aliviar a jornada com sua generosidade. Às duas, por dividirem o lar e a Jade, que
transformou o que achei não ser passível de transformação.
À Isabella Reis Pichiguelli e à Patrícia Hehs, por virem ao auxílio de quem, com os olhos
padecidos e o peito pesado, precisa de olhares descansados e escutas leves.
Às presenças que fazem existir o Juvenália, essa formação terrorista que explode os centros e
propõe outros modos de partilhar o sensível. Sob a proteção das bixas e das bruxas, exorcizam
certezas e invocam devires.
Ao squad: Ana Laura Costa, Mariana Rossi, Renata Rossi, Stella Silva e Thiago Goya, por serem
companheiros de palco e de público dessa performance que é a vida.
Quero ser teu templo de promiscuidade
Lamber teu saboroso suco vaginal
Lamber teu orifício celestial
Entregue-me toda tua imundície
Profane tua santa castidade
RESUMO
Esta pesquisa investiga as audiovisualidades da performer bizarra chilena Hija de Perra (1980-
2014). O objetivo geral é analisar, em uma perspectiva comunicacional e do consumo, a
performance pública da artista e compreender os contextos expressivos e de consumo de seus
rastros digitais, com recorte específico para as audiovisualidades disponibilizadas na
plataforma de vídeos YouTube. Entre os objetivos específicos, estão: a) construir um método
que se valha de rastros digitais e de suas dinâmicas de circulação e consumo, para pesquisar
objetos/sujeitos contemporâneos atuantes em zonas intersticiais do urbano e do pós-
massivo; b) descrever as diferentes dimensões das performances arquivadas em vídeo e suas
especificidades; c) identificar as bricolagens estético-políticas da poética audiovisual das
performances em arquivo, problematizando suas configurações e características; d) investigar
o consumo de audiovisualidades no contexto sociocultural pós-massivo e como ele se dá,
especificamente, no tocante ao arquivo de Hija de Perra. Para tanto, o método utilizado é a
cartografia conduzida pelo olhar e pelos encontros traumáticos do pesquisador com as
audiovisualidades de Hija de Perra. Com o auxílio de uma categoria denominada “orgias
teóricas”, vale-se do caráter multidisciplinar da Comunicação para cotejar autores oriundos
de diferentes campos, como comunicação, psicanálise, sociologia e estudos da performance
e do consumo. Observou-se que a performance das audiovisualidades de Hija de Perra podem
ser clivadas em duas dimensões interconectadas: a performance-vida e a performance post
mortem. A primeira refere-se à indissociabilidade entre arte e vida articulada pela
performance da artista quando em seu tempo encarnada neste mundo. Entre as
especificidades desta dimensão performática, identificou-se a liminaridade da narrativa de si,
os afetos abjetos mobilizados e o exorcismo simbólico da colonialidade. A performance post
mortem, por sua vez, é composta pelos rastros digitais que a artista deixou no mundo, suas
materialidades comunicacionais. Dada a capacidade de afetação deles, principalmente no
âmbito das audiovisualidades, eles se configuram enquanto performances em si e, quando em
conjunto e compondo um corpo audiovisual, outra performance, denominada post mortem.
Suas particularidades incluem viralidade mortífera, transgressões da morte, videoclipicização
das reações e produção de presença. Finalmente, a chave de experimentação do excesso é o
que permite conectar as performances ao consumo do excesso em sua dimensão audiovisual
e simbólica. Por ocorrer exclusivamente pela via do olhar, deu-se a denominação de consumo
escópico do excesso. Estilhaços desse excesso e os modos de presença por eles produzidos,
quando articulados em diferentes intensidades, são descritos e analisados para compor a
trans-estética do excesso de Hija de Perra. Por fim, apreendeu-se que as performance-vida e
performance post mortem da artista são mobilizadoras de uma comunicação eróptica, a um
só tempo vincular de vidente e imagem, atravessando-os por correntes de energia diluidoras
do eu, e exteriores às barreiras de contenção da linguagem e das tentativas de interpretação.
Uma experiência de fazer sentir, e não de dar sentidos.
ABSTRACT
This research investigates the audiovisualities of the bizarre Chilean performer Hija de Perra
(1980-2014). The general objective is to analyze, through a communication and consumption
perspective, the public performance of that artist and to understand the consumption-related
and expressive contexts of her digital tracks, with a specific focus on the audiovisualites
available on the YouTube video platform. The specific objectives are: a) to build a method that
uses digital traces and their circulation and consumption dynamics to research contemporary
objects/subjects in the urban and post-mass interstitial areas; b) to describe some different
dimensions of the archived video performances and their specificities; c) to identify the
aesthetic-political bricolages of the archived performances’ audiovisual poetics, as well as
problematizing their configurations and characteristics; d) to investigate the consumption of
audiovisualities in the post-massive socio-cultural context and how it occurs, specifically, with
regard to the Hija de Perra archive. The method utilized for such purpose was cartography,
which was led by this researcher's gaze and the traumatic encounters between him and Hija
de Perra’s audiovisualities. Under a category named “theoretical orgies”, the multidisciplinary
character of Communication is employed to compare authors from different fields, such as
communication, psychoanalysis, sociology and performance and consumption studies. As a
result, we find that Hija de Perra's performance of audiovisualities can be divided into two
interconnected dimensions: performance-life and post-mortem performance. The first one
refers to the inseparability of art and life, as articulated by the artist's performance during her
incarnated time in this world. Among the specificities of this performative dimension, we
identified the the liminality of self-narrative, mobilization of abject affections and the symbolic
exorcism of coloniality. The post-mortem performance, in turn, is composed by the artist’s
digital tracks left in the world, her communicational materialities. Given their capacity to
affect, especially in the audiovisualities field, they constitute performances in themselves and,
once considered altogether as a whole audiovisual body, they can be considered yet another
performance which we name post-mortem. Its particularities include deadly virality, death
transgressions, reactions through videoclip and presence production. Finally, the "excess" is
seen as a category of experimentation, which allows us to connect this artist's performances
to the consumption of excess in its audiovisual and symbolic dimensions. For it occurs
exclusively through the gaze, we name it “scopic consumption of excess”. Shards of excess
and their produced modes of presence, when articulated in different intensities, are described
and analyzed to compose Hija de Perra’s trans-aesthetic of the excess in a camp and grotesque
bricolage. Finally, we argue that this artist's performance-life and post-mortem performance
are mobilizers of an eroptic communication, linking at once the seer to the image, and going
through them by self-dissolving energy flows, and also external to the contentional barriers of
language and all attempts at interpretation. An experience of feeling, not of attributing
meaning.
Keywords: Communication and Consumption; Performance; Audiovisualities; Excess; Hija de
Perra.
LISTA DE FIGURAS
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Eu apenas brincava. Mas, com cerca de cinco ou seis anos, me disseram que eu era
“diferente”. Em relação a quem ou ao quê, eu ainda não sabia. Diziam não de modo claro,
objetivo, o que talvez teria poupado algumas dificuldades no caminho percorrido para
identificar os afetos sentidos. Era aos poucos, em atos reiterados de um cotidiano do jardim
de infância. A partir de comentários externos, a essa altura embaralhados em reminiscências
infantis e sem autoria – se de professoras, da minha família ou, mais provavelmente, dos
meninos da turma –, apontou-se essa característica do meu comportamento – a “diferença”.
Nem mesmo sei, com certeza, se eram comentários verbalizados em minha direção ou
sussurrados entre os pares, talvez nem verbalizados fossem. Mas entre o tanque de areia, a
gangorra e o escorregador, algo não compreendido pela minha (não)maturidade infantil
circulava. Comunicavam-me algo sobre mim que nem mesmo sabia. Eu apenas brincava.
Logo essa comunicação se intensificou. “O que é que tem em mim que tanto incomoda
você?”, pergunta a cantora travesti Linn da Quebrada em uma de suas músicas 1. Talvez se
meu eu de outrora, com sete, oito anos, fosse capaz de articular esse questionamento, nem
mesmo o garoto que me socou no estômago – do qual não lembro do nome nem do rosto,
apenas da sensação do golpe – saberia responder. As agressões, agora físicas, mas ainda
diáfanas e borradas nas lembranças, continuaram até a terceira ou quarta série. Em casa,
minha mãe insistia para eu revidar. Só assim isso nunca mais aconteceria. De fato, o
constrangimento dela reclamar com a direção da escola e as crianças agressoras serem
confrontadas parecia piorar minha sensação de inadequação. Eu não tinha recursos
emocionais nem era capaz de entender tanto desconforto – meu e, obviamente, despertado
nos outros. O sonho dela era que eu fizesse algum tipo de luta como esporte. Ela buscava em
mim uma força que eu não era capaz de simular.
Com o tempo e o amadurecimento da turma, as agressões foram se sofisticando. Elas
deixaram a linha do visível e abandonaram as marcas físicas. Socos na boca do estômago para
calar a diferença imposta e rasteiras nos caminhos tortuosos percorridos pelos corredores
escolares se transformaram em sussurros audíveis quando eu passava por certos grupos.
1
LINN da Quebrada – Submissa do 7º Dia (Áudio-Vídeo Oficial). [S.l.: s. n.], 2010. 1 vídeo (3m55s). Publicado pelo
canal Linn da Quebrada. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Kfjhie6Y5Qc. Acesso em: 20 dez.
2019.
12
Percebo algo de descontrole infantil nas ocasiões em que houve agressão física nos primeiros
anos da escola. Crianças, elas mesmas não sabendo lidar com as próprias mudanças
características do período, tentavam sufocar os desvios de outros corpos-crianças não
correspondentes às expectativas que estavam(os) aprendendo. Essas (minhas) possibilidades-
outras de existir tensionavam o movimento de colagem da heteronormatividade aos corpos.
Os arroubos físicos, como o bebê que morde ao se frustrar, desapareceram por volta da quinta
série. Mas ainda circulavam invisíveis gatilhos que, de tempos em tempos, acionavam meu
desconforto e lembravam-me que eu permanecia tão diferente. Do quê, eu continuava ainda
sem saber.
Salto no tempo
escancara o referencial que, por oposição, constitui-se como igual. Discorre de maneira
artística sobre o processo de colagem da diferença que iniciaram em mim, e em tantos outros,
na pré-escola e assim foi se reiterando por toda uma biografia. Mas faz isso enquanto linha de
fuga. Lembra-nos das possibilidades de (r)existências que podem ser sutis ou afrontosas,
desde que existam.
A (auto)(des)construção dessa criatura monstruosa enquanto diferente, e que toma
para si, deliberada e ironicamente, o lugar e os rótulos impostos, responde à pergunta de Linn
da Quebrada com um grito de força. Não a força que minha mãe queria que eu desenvolvesse
em um esporte de luta. Mas a força dos corpos não-normativos das crianças-viadas. Potência
de vida pela qual tento me deixar a(fe)tivar. Pois, afinal, se eu já sei “o que é que tem em mim
que tanto incomoda você”, ainda assim, eu apenas brincava.
O esqueleto
Esta dissertação é uma tentativa de elaborar meu encontro afetivo com Hija de Perra,
por isso, o tom assumidamente pessoal da primeira pessoa do singular. Tentei evitá-lo o
máximo possível para não cansar a leitura de quem me acompanhará nesta viagem. E isso é
importante. Entendo esta escrita quase como um relato de viagem, uma que já fiz, mas será
refeita cada vez que alguém decidir ler estas páginas. Quando isso acontecer, a jornada se
reiniciará, ativada por quem decidir fazê-la. Assim, tal como apontam alguns autores dos
Estudos da Performance sobre a irreprodutibilidade de suas intervenções, cada leitura é única,
porque a materialidade do texto pode até ser a mesma, mas eu, que escrevi, não serei mais,
e quem ler também será diferente.
O objeto de pesquisa são as performances em arquivo da artista chilena Hija de Perra
(1980-2014), a serem investigadas pelo método cartográfico. Já o problema é construído pela
pergunta “Quais as configurações das performances em arquivo de Hija de Perra e como elas
se articulam à disseminação e ao consumo de seu trabalho, em contextos de comunicação
pós-massivos?”.
O objetivo geral é analisar, em uma perspectiva comunicacional e do consumo, a
performance pública da artista e compreender os contextos expressivos e de consumo de seus
rastros digitais, com recorte específico para as audiovisualidades disponibilizadas na
plataforma de vídeos YouTube. Entre os objetivos específicos, estão:
14
mais longínquos, ainda na pré-história, pelos desafios linguísticos e semânticos deste termo
importado, pela constituição da performance enquanto um campo de estudos em disputa
para, finalmente, expor as características que compõem a performance tal como entendida
nesta pesquisa-viagem. Avançar-se-á, então, para uma análise da performance em Hija de
Perra em duas dimensões: a performance que ela fez de sua própria existência quando
encarnada e suas especificidades de liminaridade, abjeção e exorcismo simbólico, e os rastros
audiovisuais como uma performance em si, cujas características incluem viralidade mortífera,
transgressão, afetos remixados, reações videoclipicizadas e a invocação de uma presença post
mortem.
Por fim, o capítulo 3 introduzirá uma discussão sobre as audiovisualidades de Hija de
Perra pela ótica do excesso e inseridas no contexto iconofágico da contemporaneidade, no
qual a profusão de imagens altera a relação do humano com o mundo e o impele a uma
passagem do consumo de imagens para a consumação pelas imagens. Uma reflexão filosófica
do excesso abrirá o capítulo, abarcando suas características de dispêndio de energia intrínseco
ao ser humano, o que acaba conduzindo-o a um encantamento pelas imagens que, no século
XX, se transformou em obsessão, fazendo o homem refém de uma adicção visual. Vencer a
sedução das imagens é particularmente difícil, porque, em sua dimensão libidinosa, elas
satisfazem a pulsão escópica, ou seja, o desejo de olhar. A sedução das audiovisualidades de
Hija de Perra será, então, escrutinada a fim de identificar qual é a poética audiovisual
construída e de que modo isso acaba por forjar uma trans-estética do excesso. O capítulo
finalizará com reflexões sobre o tipo de comunicação específica acionada pelas
audiovisualidades e como isso deixa brechas para investigações futuras no âmbito das
audiovisualidades de corpos inconformes como os de Hija de Perra.
O último capítulo trará uma costura final entre as reflexões suscitadas na longa
pesquisa-viagem pela geografia de Hija de Perra e quais os efeitos das provocações em quem
fez a viagem.
16
1.2 Monstros
Como sua etimologia expõe, Jorge Leite Júnior (2007, s.p.) explica que monstrum é
aquele que revela “a ira de Deus, as infinitas e misteriosas possibilidades da natureza ou aquilo
que o homem pode vir a ser”. Jeffrey Jerome Cohen (2000, p. 27) afirma: “o monstro existe
apenas para ser lido [...]”. E ler o corpo monstruoso é, então, se debruçar sobre as intricadas
relações sociais, culturais e históricas da sociedade que o gera, pois ele traz gravado em si
medos, desejos, ansiedades e fantasias (COHEN, 2000).
2
Com exceção dos termos em idiomas estrangeiros e dos grifos nos originais dos autores, devidamente
sinalizados, utilizarei itálico toda vez que um termo incorrer em um neologismo ou intentar reforçar uma ideia,
uma passagem, uma palavra.
17
Leite Júnior (2007) conta que, na Antiguidade, essas figuras fora da norma – anormais
– fascinavam os humanos com suas monstruosidades, tanto que eram consideradas
“maravilhas” ou “prodígios”. Entretanto, elas sempre estiveram suscetíveis a diversos
enquadramentos a depender da instituição de poder influenciadora do discurso vigente:
foram associadas ao demônio pela Igreja na baixa Idade Média; consideradas erros da
natureza e dignas de piedade pelo discurso médico do século XIX; e tiveram sua
monstruosidade deslocada do corpo para a mente pelas ciências da psique, no início do século
XX (LEITE JÚNIOR, 2007).
Em pleno século XXI, monstros ainda (nos) habitam. Atualmente, contudo, as
diferenças que denunciam a monstruosidade podem ser culturais, políticas, raciais,
econômicas e/ou sexuais. Entre elas, está a monstruosidade de travestis, transexuais,
transgêneros, drag queens e todos os seres que desafiam saberes sobre o que(m) é
mulher/homem (COHEN, 2000; LEITE JÚNIOR, 2007). A diferença tem sido hiperbolizada até
se tornar uma aberração e o perigo da pluralidade exposto, pois, por sua ontologia liminar, o
monstro provoca o choque entre extremos, desestabiliza binarismos, quaisquer que sejam; é
um terceiro entre dois (COHEN, 2000). Hija de Perra é um desses monstros.
Hija de Perra (HDP, conforme será referenciada) (Fig. 1) não foi homem nem mulher,
mas uma criatura nova, mutante, escorregadia. Criada pelo artista chileno Victor Hugo Perez
Peñalosa (1980-2014)3, essa figura de sobrancelhas bestiais não se identificava com nada fixo.
3
À época de sua morte, em 2014, algumas notícias informaram que, após dois meses e meio internada, a artista
morrera de infecção pulmonar. Já em notícias de 2016, quando da divulgação de uma decisão da
Superintendência de Saúde do Chile a favor da mãe da artista, Rosa Peñaloza, que estava sendo cobrada em
58 milhões de pesos pela clínica privada onde HDP foi internada, acrescentou-se que ela era portadora de HIV
e sua morte fora em decorrência do vírus. Disponível em:
https://www.soychile.cl/Santiago/Espectaculos/2014/08/26/270542/Murio-HIja-de-Perra-conocida-
cantante-y-perfomista-del-underground-nacional.aspx;
https://www.cooperativa.cl/noticias/entretencion/personajes/murio-la-reconocida-performista-hija-de-
perra/2014-08-26/114537.html; http://www.theclinic.cl/2016/05/10/mama-de-la-transformista-hija-de-
perra-el-trato-en-las-oficinas-publicas-y-privadas-es-un-asco/; http://www.revistacloset.cl/2016/02/25/el-
sida-sin-metaforas-hija-de-perra/. Acessos em: 12 dez. 2019.
18
Ora se descrevia performer bizarra4, ora travesti5, ora monstro6. Só no espaço para biografia
de sua página oficial na rede social digital Facebook7 – onde, na seção para identificação de
gênero, declara ser “Plural (misto)” –, constam 17 títulos: performista bizarra; produtora e
diretora de espetáculos imundos; animadora do programa on-line Sonidos Ardientes; estilista;
licenciada em arte; mestre internacional em felação; atriz protagonista de vídeos,
documentários, curtas-metragens e do filme Empaná de Pino; cantora de electro mugre do
grupo Indecencia Transgenica; membra [sic] ativa do coletivo de cabaré Chiquitibum; modelo
trans; animadora de eventos; animadora oficial do festival feminino de bandas de rock Fem
Fest; musa inspiradora de pós-graduandos8, fotógrafos profissionais, artistas visuais e
jornalistas; instrutora de enfermidades venéreas; dominatrix; ícone da imundície under
chilena; e palestrante na Escola de Direito e na Faculdade de Dança da Universidade do Chile.
4
Na biografia de sua conta na rede social digital Twitter (@perra_inmunda), autodescreve-se “performista
bizarra, espetáculos imundos, protagonista de curtas-metragens, videoclipes, documentários e do filme
Empaná de Pino, cantora de ElectroMugre”. Tradução minha. Disponível em:
https://twitter.com/perra_inmunda. Acesso em 12 jun. 2019.
5
Em seu curta-metragem documental, se diz performista bizarra e travesti (PERRA, 2012).
6
Em uma entrevista, Perra (2013) se apresenta como “um monstro que divaga pelo binarismo de gênero”.
7
Disponível em: https://www.facebook.com/Hija-de-Perra-Oficial-262531673764090/. Acesso em 12 jun. 2019.
8
No original: “tesistas”.
9
Disponível em: https://www.biobiochile.cl/noticias/espectaculos-y-tv/celebridades/2017/01/10/zaida-conoce-
a-la-talentosa-y-polemica-hermana-del-musico-jorge-gonzalez.shtml. Acesso em: 12 jun. 2019.
19
Um monstro cercado por outros. Seu funeral, em 2014, descreveu Juan Pablo
Sutherland (2014, s.p., tradução minha) à época, foi um réquiem bizarro, composto por “uma
comunidade de mutantes: ativistas kuir, dissidentes sexuais, lésbicas feministas, bichas punks,
culturais e de esquerda, sadomasoquistas, trans bizarras e políticas, amigos e familiares
[...]”10.
Meu primeiro contato-contágio com HDP aconteceu, em 2015, quando, à procura de
uma drag queen11 latina não-brasileira como sujeito-objeto para uma disciplina na
Especialização de Jornalismo Cultural da PUC-SP, o amigo de um amigo – ambos artistas visuais
gays – sugeriu Hija de Perra (HDP). Desde então, tem-se tentado processar a afetação
provocada por esse encontro traumático. Esta pesquisa-viagem é uma dessas tentativas.
Fui chutada pelos meus pais e recolhida por minha avó. Ela jamais me chamou pelo
meu nome: era sempre Hija de Perra. Terminei me encantando pelo nome. Sim, as
pessoas me humilharam toda a vida. Isso é normal? Claro que sim. Quantas pessoas
são humilhadas a vida toda? (PERRA, 2012, s.p., tradução minha).
Adepta de uma “poética abjeta e monstruosa”12 (SUTHERLAND, 2014, s.p.), Hija foi
marginal dentro da marginalidade, pois, como Sutherland (2014, s.p., tradução minha)
registra, organizações LGBT notórias do Chile ignoraram o funeral daquela que fez parte de
uma geração que nos últimos 12 anos anteriores à sua morte criticou as “formas tradicionais
de entender a sexualidade e sua construção normativa no mundo já institucionalizado da
diversidade sexual na sociedade chilena”13. A performer torceu as normas e se equilibrou nas
bordas, apropriando-se em um processo antropofágico das dissidências (SANTOS, 2018) e,
para fazer uso de sua poética abjeta, expelindo no mundo excrementos conservados na
perenidade dos espaços digitais (redes sociais digitais, sites de notícias, plataformas de vídeos,
diretórios de textos acadêmicos etc.). Esta pesquisa se apropria, justamente, dos rastros de
tais excrementos para continuar a viagem.
10
No original, “Una comunidad de mutantes: activistas kuir, disidentes sexuales, lesbianas feministas, maricas
punks, culturales y de izquierda, sadomasocas, trans bizarras y políticas, amigos y familiares [...]”.
11
À época, interpretei Hija de Perra pela lente da drag queen, uma “metamorfose de gênero” (SANTOS, 2012)
que não deve ser confundida com outras como a da travesti, transexual ou crossdresser, pois tem como
principais características temporalidade, corporalidade e teatralidade (VENCATO, 2002). Conforme será
explorado, essa lente se tornou restrita demais para compreender a potência de Hija de Perra. A grafia sem
itálico, por sua vez, segue a proposta dos autores citados de apropriação linguística do termo.
12
No original: “poética abyecta y monstruosa”.
13
No original: “formas tradicionales de entender la sexualidad y su construcción normativa en el mundo ya
institucionalizado de la diversidad sexual en la sociedad chilena”.
20
14
Uma versão transcrita e traduzida para o português do texto lido por Hija de Perra na ocasião foi publicada
pela revista Periódicus, da Universidade Federal da Bahia. Disponível em:
https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/12896/9216. Acesso em: 12 jun. 2019.
21
Os fósseis de Hija de Perra estão conservados nos espaços digitais por onde exige-se
circular como “caçadores de rastros” (ROCHA; FERRAZ, 2019), investigando pelos interstícios
e coletando fragmentos produzidos por ela – como seus curtas e longas-metragens,
videoclipes, entrevistas – e sobre ela – vídeos de homenagem, registros audiovisuais
amadores de suas aulas, apresentações em espaços públicos e em casas noturnas, presença
em festas de aniversário.
Coletar, ensina Carlo Ginzburg (1989), é uma habilidade humana que remonta a
milênios atrás. Nossos ancestrais reconstruíram suas presas “pelas pegadas na lama, ramos
quebrados, bolotas de esterco, tufos de pêlos [sic], plumas emaranhadas, odores estagnados”,
aprendeu-se a “farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais” de presas
invisíveis, que não mais estavam onde seus rastros as denunciavam (GINZBURG, 1989, p. 151).
Essa habilidade nos acompanha desde então e foi sendo lapidada ao longo do tempo, sendo
que, ao passo em que nos tornamos especialistas em coletar rastros, tornamo-nos, a partir do
século XIX, igualmente especialistas em deixar rastros.
Os rastros humanos, propositalmente deixados, também interessaram a Walter
Benjamin (2009, p. 261-262), que pensa em uma “teoria dos rastros” nas dimensões pública
e privada, a partir das casas burguesas e da administração das metrópoles no século XIX. Para
o autor alemão, o desenvolvimento da decoração, “interieur” como ele chama, fez parte de
um processo de construção de si da burguesia durante a modernidade. Ele mesmo um coletor
de rastros, recolhe de excertos de textos e fotografias da época informações sobre algo que
não mais existe tal como registrado. De acordo com Benjamin (2009), a burguesia tinha um
fascínio pela decoração dos seus lares, tecendo casulos com tapetes deslumbrantes, cortinas
pesadas, móveis revestidos com tecidos adamascados, estojos infinitos para objetos antes
inexistentes e, principalmente, apreço por materiais como seda, pelúcia e veludo,
extremamente suscetíveis a marcas e toques.
Essa obsessão pelos interiores, preenchidos por mobiliários de “formas estranhas”
inspirados nas “fortificações medievais” (BENJAMIN, 2009, p. 247) e tecidos-memória, é
interpretada por Benjamin (2009, p. 252) como uma defesa à “armadura de vidro e ferro” que
vestia o exterior das metrópoles. Até os espaços de fora eram transformados em espaços de
dentro, como revela um dos excertos coletados sobre um baile promovido pela embaixada
inglesa na França, em 1839: na ocasião, transformou-se o jardim em um salão, cobrindo o
gramado com “tapetes deslumbrantes”, escondendo o céu com toldos, substituindo bancos
22
Viver dentro deles [o interior burguês] era como ter se enredado numa teia de
aranha espessa, urdida por nós mesmos, na qual os acontecimentos do mundo ficam
suspensos, esparsos, como corpos de insetos ressecados. Esta é a toca que não
queremos abandonar (BENJAMIN, 2009, p. 251).
Mas se essa toca, esse casulo construído pelos próprios burgueses, aprisiona, ela
também conserva. Os materiais já citados, como pelúcia, veludo e seda, servem do que chamo
tecido-memória, pois guardam em si os rastros daqueles que os manipularam. “Pelúcia”,
descreve Benjamin (2009, p. 257) em um aforismo, “a matéria na qual se imprimem mais
facilmente os rastros”, para em outro momento concluir que deixamos o registro dos “rastros
da alma” para circular pelos “rastros das coisas” (BENJAMIN, 2009, p. 247). Mas não eram
apenas os tecidos que conservavam rastros. O mobiliário – volátil à “varinha mágica” da moda,
que metamorfoseava “poltronas de braços em cadeiras curul, copos em taças”, conforme
observado em excerto de 1837 resgatado por Benjamin (2009, p. 252) – acabava por construir
um “mundo das coisas”, carregando “rastros estilísticos” a ponto de dotar as moradas de
“fisionomias”.
Habitar casas dessa maneira se tratava, então, para o autor, de um modo de
existência característico do século XIX, uma vez que nenhum outro século teria tido tamanha
fixação pela moradia. Construía-se um lar que trazia a “impressão de seu morador” nos
tecidos, nos objetos, nos estojos para guardar objetos, servindo ele mesmo, o lar, de “estojo
do homem” (BENJAMIN, 2009, p. 255).
O século XIX [...] entendia a moradia como o estojo do homem, e o encaixava tão
profundamente nela com todos os seus acessórios, que se poderia pensar no interior
de um estojo de compasso, onde o instrumento se encontra depositado com todas
as suas peças em profundas cavidades de veludo, geralmente de cor violeta. Não
existiria um só objeto para o qual o século XIX não tenha inventado um estojo. Para
relógios de bolso, chinelos, porta-ovos, termômetros, baralhos – e, na falta de
estojos: capas protetoras, passadeiras, cobertas e guarda-pós (BENJAMIN, 2009, p.
255).
Sinteticamente, então, pode-se dizer que, enquanto os espaços privados dos lares
burgueses, no século XIX, recebiam os rastros de seus moradores e os conservavam em
tecidos, objetos e estojos, a administração do espaço público transformava as existências e as
passagens dos corpos pelo mundo em números a serem contabilizados e documentados.
Todavia, se, conforme Benjamin (2009, p. 255) acrescenta, pelo menos na dimensão privada,
a “porosidade e transparência” do século XX abriu as moradas-casulo de outrora e
transformou os modos de viver, incentivando o “gosto pela vida em plena luz e ao ar livre”, o
interesse pelos rastros continuou pelo século passado, ainda que em outros âmbitos e de
outros modos.
24
Quem contribui para expandir a teoria dos rastros de Benjamin (2009) a partir desse
ponto é o historiador italiano, já citado, Carlo Ginzburg (1989). Conforme será visto, o autor
tece um diálogo astuto entre o historiador de arte italiano Giovanni Morelli (1816-1891), o
psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) e o escritor escocês Arthur Conan Doyle
(1859-1930), criador do detetive Sherlock Holmes. Contemporâneos, todos estes se
interessavam, a seu modo, por um “método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre
os dados marginais” (GINZBURG, 1989, p. 149).
Morelli propôs um método para autenticação de quadros que, em vez de procurar
características reiteradas de seus supostos autores, popularmente conhecidas e explícitas,
portanto, facilmente imitáveis, deveria “examinar os pormenores mais negligenciáveis, e
menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das
orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés” (GINZBURG, 1989, p. 144). O
interesse de Ginzburg (1989) pelo método morelliano é menos por sua controversa
participação na história da arte – ele foi aclamado, rechaçado e, posteriormente, resgatado –
, e sim por fazer parte do “paradigma indiciário”, espraiado pelas ciências humanas nas
décadas de 1870-80 e “baseado na ideia de que rastros por vezes infinitesimais permitem
apreender uma realidade mais profunda” (BRUNO, 2012, p. 2).
Seguindo com Fernanda Bruno (2012, p. 2), o interesse pelos “detalhes sem glória” era
compartilhado por Freud e Doyle:
[Uma paisagem] das pegadas que deixamos nas redes de comunicação distribuídas,
especialmente na internet, onde toda ação deixa um rastro potencialmente
recuperável, constituindo um vasto, dinâmico e polifônico arquivo de nossas ações,
escolhas, interesses, hábitos, opiniões etc.
Toda ação humana deixa atrás de si diferentes tipos de rastros, difíceis de serem
descritos enquanto categorias universais, pois cada rastro é único e “situa-se num limiar entre
presença e ausência; visível e invisível; duração e transitoriedade; memória e esquecimento;
voluntário e involuntário; identidade e anonimato etc.” (BRUNO, 2012, p. 4). Todavia, mesmo
compartilhando características com outros tipos de rastros, Bruno (2012) caracteriza os
“rastros digitais” como vestígios de ações realizadas em espaços digitais (sites, redes sociais
digitais, plataformas de vídeos etc.), podendo ou não serem produzidos por humanos, uma
vez que há rastros deixados por processos automatizados de “agentes maquínicos e não
humanos”. Nesta pesquisa-viagem, contudo, interessam os rastros digitais produzidos pela
ação humana, os quais são caracterizados por Bruno (2012) em cinco postulados:
“Não se pode não deixar rastro. Comunicar é deixar rastro” (BRUNO, 2012, p. 5):
qualquer ação na internet deixa um vestígio, a menos que se tome medidas deliberadas para
que isso não ocorra. Tais vestígios não se restringem às informações e conteúdo produzidos e
compartilhados, voluntariamente, em posts nas redes sociais digitais. Como diz a autora, toda
ação deixa um rastro possível de ser capturado e/ou recuperado, tais como buscas, cliques
em links, consumo de vídeos, músicas, entre tantas outras ações que envolvem o simples
navegar pela internet. Nesse sentido, ela atualiza a máxima “não podemos não comunicar”
para “não podemos não deixar rastros” (BRUNO, 2012, p. 6).
26
“Arquivo por padrão” (BRUNO, 2012, p. 6): a comunicação, fora dos espaços digitais,
exige um movimento adicional caso se queira registrá-la, inscrevê-la em alguma material. Nos
espaços digitais, por sua vez, a inscrição é simultânea ao ato de se comunicar, logo, a internet
é uma “máquina avessa ao esquecimento, a um só tempo comunicacional e mnemônica”
(BRUNO, 2012, p. 6). Por isso, o arquivamento se torna um padrão, não arquivar é que passa
a exigir um ato deliberado de tomar as medidas necessárias para que isso não ocorra.
“Rastros digitais são persistentes e facilmente recuperáveis” (BRUNO, 2012, p. 6): a
durabilidade de rastros, em geral, é distinta. Uma pegada na areia e a gravação de uma voz
são rastros de registros diferentes e, portanto, durabilidade e possibilidade de captura
distintos. Nos espaços digitais, entretanto, os rastros são, de acordo com Bruno (2012, p. 6),
“relativamente mais persistentes e facilmente recuperáveis”, podendo, inclusive, serem
monitorados e capturados durante a ação de produção do rastro.
“A topologia e a visibilidade dos rastros digitais são multiformes” (BRUNO, 2012, p. 6):
por fim, um rastro digital possui uma topologia complexa, que envolve uma “cascata de
inscrições” (BRUNO, 2012, p. 7). Além das informações explícitas produzidas ao navegar na
internet, como o conteúdo do que é publicado em redes sociais digitais, por exemplo, há ainda
outros estratos nos quais agimos, sem necessariamente saber, produzindo rastros outros. A
autora serve-se como exemplo do uso de um aplicativo de jogo, com o qual o usuário deseja
apenas se divertir, mas, ao mesmo tempo, cria um rastro de hábitos de consumo que pode vir
a alimentar um banco de dados publicitários. Emite-se, nesse sentido, “pacotes de
informação” em diferentes estratos: quanto mais presente na rede, “mais rastros
involuntários são deixados” (BRUNO, 2012, p. 7).
Uma vez caracterizados os rastros digitais, reflitamos sobre seus usos múltiplos e
controversos. De que modo é possível usá-los para outros fins que não o da “polícia dos
rastros”? Esse é o modo como Bruno (2012, p. 15) se refere ao uso da internet enquanto
espaço de vigilância e captura de evidências que identificam a autoria de crimes e de dados
brutos a serem minerados por empresas que fazem fortunas extraindo de rastros pessoais um
conhecimento sobre os hábitos de consumo de quem os deixou. Entende-se, nesses casos, o
rastro como evidência de ato e característica do usuário – um uso, segundo a autora, policial,
securitário, comercial e ignorante das ambiguidades e polissemias envolvidas.
27
Rolnik (1993; 2006) sobre a potencialidade do que chama de corpos físicos e vibráteis. Estes
são duas dimensões indissociáveis da experiência de habitar o mundo. Trata-se, contudo, de
uma distinção (corpo físico/corpo vibrátil) encontrada pela autora para demarcar a
“potencialidade da percepção” do corpo físico, passível de aferimento pelos sentidos de visão,
audição, tato, olfato e paladar, e a “potencialidade sensível” do corpo vibrátil, capaz de captar
as vibrações e intensidades (afetos) originadas nos encontros entre os corpos (ROLNIK, 2006).
Admitir a dimensão vibrátil dos corpos implica conceber o mundo “na forma de
vibração e contágio” e, sobretudo, reconhecer uma “vulnerabilidade ao mundo” (SANDER,
2009, p. 403). Uma vulnerabilidade ao contágio e exposição à afetação semelhante à “atração
recíproca” a qual Canevacci (2008, p. 18) se refere entre corpo e metrópole. Ambos pontos de
vista, tanto de Rolnik (2006) quanto de Canevacci (2008), expõem um caminhar em direção a
concepções de corpos expandidos, dilatados, que se cruzam e se encontram, interagindo
entre si ao provocar experiências afetuais e sensoriais. Esses encontros se dão
independentemente das constituições dos corpos, uma vez que, além do corpo-metrópole do
autor, Rolnik (2006, p. 39) nos lembra que, pela vida, encontramos “corpos humanos, animais,
sonoros... corpo de uma idéia [sic], de uma língua, de uma coletividade...”.
Retomando, então, a pergunta que me trouxe até aqui – de qual corpo estou falando,
quando falo do corpo Hija de Perra? –, compreendo que os rastros digitais de Hija de Perra
nos espaços digitais constituem um corpo – dilatado, expandido, vibrátil, descentralizado,
estilhaçado. Seus registros são rastros de sua passagem pelo mundo e, enquanto corpo
vibrátil, possuem uma potência que contamina perceptivamente, atingindo os sentidos de
visão e audição, mas também afetualmente, despertando intensidades diversas com as quais
temos que lidar para comportar suas provocações.
Uma vez que ambas as dimensões – da percepção e dos afetos – desse corpo
constituído por rastros digitais interessam à pesquisa-viagem proposta, faz-se necessário um
método que reconheça tais dimensões constitutivas da experiência de estar no mundo e a
implicação dos corpos na pesquisa científica tal como desenhada. É assim que chego à
cartografia enquanto método possível de auxiliar no caminho.
30
discussão sobre o tema, coadunam com uma perspectiva na qual a proficuidade do campo se
deve justamente pelos seus aspectos híbridos e transdisciplinares, responsáveis por torná-lo
tão rico e complexo:
2009, p. 169). É um produzir conhecimento que não se norteia pelos valores cartesianos de
verdade, universalidade e objetividade/neutralidade (GROSFOGUEL, 2016).
Nesse sentido, trata-se de um método sinérgico aos conhecimentos encarnado e
incorporado dos quais falam, respectivamente, bell hooks (2013) e Santiago Castro-Gómez e
Ramon Grosfoguel (2007). A indissociabilidade entre corpo e mente é afirmada pelos autores
como responsável pelo conhecimento carregar em si marcas interseccionais de raça, gênero,
classe, sexualidade, nacionais, espirituais (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007;
GROSFOGUEL, 2016), entre outras, do pesquisador que o produz: “todo conhecimento
possível se encontra in-corporado, encarnado em sujeitos atravessados por contradições
sociais, vinculados a lutas concretas, enraizados em pontos específicos de observação (ponto
1, ponto 2, ponto n...)” (CASTRÓ-GOMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 21, tradução e grifos
meus15). Tentar produzir um conhecimento des-incorporado, a partir de um ponto zero
epistêmico16, além de impossível, é parte de uma estratégia epistemicida, racista e sexista17
utilizada pelo projeto-colonial moderno18 desde o século XVI para manter privilégios
15
No original, “Todo conocimiento posible se encuentra in-corporado, encarnado en sujetos atravesados por
contradicciones sociales, vinculados a luchas concretas, enraizados en puntos específicos de observación
(punto 1, punto 2, punto n…).”.
16
O ponto zero de produção do conhecimento é trabalhado por Santiago Castró-Gomez como o lugar em que
supostamente o “[...] sujeito de enunciação fica borrado, escondido, camuflado [...]. O sujeito epistêmico não
tem sexualidade, gênero, etnicidade, raça, classe, espiritualidade, língua, nem localização epistêmica em
nenhuma relação de poder, e produz a verdade a partir de um monólogo interior consigo mesmo, sem relação
com nada fora de si. É dizer, [o ponto zero] se trata de uma filosofia surda, sem rosto e sem gravidade. O
sujeito sem rosto flutua pelos céus sem ser determinado por nada nem por ninguém” (GROSFOGUEL, 2007, p.
64, tradução minha). No original, “[...] el sujeto de enunciación queda borrado, escondido, camuflado [...].
sujeto epistémico no tiene sexualidad, género, etnicidad, raza, clase, espiritualidad,
lengua, ni localización epistémica en ninguna relación de poder, y produce la verdad desde un monólogo
interior consigo mismo, sin relación con nadie fuera de sí. Es decir, se trata de una filosofía sorda, sin rostro y
sin fuerza de gravedad. El sujeto sin rostro flota por los cielos sin ser determinado por nada ni por nadie.”.
17
Grosfoguel (2016) denuncia quatro epistemicídios nos quais conhecimentos, epistemologias e cosmovisões
foram aniquilados junto aos genocídios dos corpos durante o projeto de expansão colonial europeu do “longo
século XVI” (período de 200 anos, entre 1450 e 1650). São eles: o do povo muçulmano e judeu, na conquista
de Al-Andaluz, que foram desapropriados de suas crenças e conhecimentos, sendo obrigados a se converter
ao cristianismo e, como forma de garantir que haviam aderido ao pensamento cristão de verdade e não
estavam apenas fingindo, tiveram seus livros queimados. O dos índios das Américas e, posteriormente, dos
aborígenes, cujos códices foram queimados. O dos africanos escravizados e impedidos de praticarem suas
religiões nas Américas. E o das mulheres na Europa que praticavam e transmitiam conhecimento indo-europeu
sobre astrologia, botânica etc. e foram consideradas bruxas para justificar a queima de seus corpos, que
tinham a característica de servirem de corpos-livros, uma vez que seus conhecimentos não eram registrados,
mas transmitidos oralmente (GROSFOGUEL, 2016).
18
O projeto colonial moderno, ou matriz colonial do poder, é a lógica, assim chamada por Anibal Quijano, da
dominação política e econômica imbricada no sistema colonial, mas que não findou com a independência das
colônias (PEREIRA, 2015). A lógica de tal matriz, ensina Pereira (2015), usa diferenças culturais como valores
para hierarquizar populações e regiões do mundo, criando zonas inferiores e sujeitos menores, abjetos,
subalternos. Marcadores geopolíticos, de raça e de gênero, outrora indicadores de diferenças culturais,
passam a ser usados para classificações epistêmicas e ontológicas (SANTOS, 2018).
33
19
Grosfoguel (2016, p. 26, tradução minha) fala em autoridade do conhecimento Norte-cêntrica “que se impõe
por meio de mecanismos institucionais universitários, militares, internacionais (ONU, FMI, Bancro Mundial),
estatais etc.” através da “superioridade do conhecimento imposta pela dominação capitalista do mundo”.
34
14, tradução minha20). Noto, então, a potencialidade de criar durante uma pesquisa, seja ela
qual for, sendo acolhida e incentivada pelo método cartográfico. Sugere-se criar caminhos,
rotas, desvios, paradas, pontes, instrumentos, ferramentas. Criam-se mundos e desfazem-se
outros. Em uma pesquisa-viagem, modos de pesquisar são inventados, conceitos tensionados.
Faz-se o que for preciso para entender o fenômeno investigado. E entender “não tem nada a
ver com explicar e muito menos com revelar”, salienta Rolnik (2006, p. 66), pois, para o
cartógrafo,
As pontes de linguagem são os usos da língua feitos pelo cartógrafo – cujas marcas no
conhecimento produzido já foram notadas por Grosfoguel (2006) – a fim de dar passagem
àquilo que, devido a sua singularidade, ainda não tem nome. E, uma vez que todos os
encontros entre corpos, independentemente de que matéria e origem sejam, são sempre
inéditos e responsáveis por produzir marcas que pedem passagem (ROLNIK, 1993; 2006), há
muitas pontes a se criar pela geografia de Hija de Perra. Esta pesquisa-viagem se propõe a
construir algumas delas, pois, junto a autora, entendo a linguagem como “tapete voador” e,
em si mesma, “criação de mundos” (ROLNIK, 2006, p. 66), capaz de construir pontes sensíveis
entre ciência e arte ao operar por analogias21.
Nesse processo de criação e destruição de mundos através da linguagem, também
chamado teorização, as referências utilizadas são múltiplas e de origens diversas. Ao
cartógrafo, não cabe discriminar. Enquanto Romagnoli (2009) aponta para o espaço fértil do
“entre” teorias de campos diversos, possibilitado pela transdisciplinaridade, Rolnik (2006, p.
65) avança ao afirmar: “pouco importam as referências teóricas do cartógrafo”. A autora não
está fazendo apologia à leviandade teórica, como essa citação pode soar se tirada de seu
20
No original: “la construcción de categorías y nuevos conceptos a medida que el trabajo en terreno lo requiere,
al mismo tiempo que habilita la indagación de procesos heterogéneos en su especificidad.”.
21
“Enquanto conhecimento que se molda no seu incessante fazer empírico, a analogia é combinação de imagens,
de variar para fazer coexistir o singular e o plural, a parte e o todo como um fluxo contínuo que substitui a
contiguidade da argumentação linear e causal. [...] [E]ntra em cena o pensamento contínuo que, em fluxos
relacionais, leva à comparação e às analogias entre elementos distantes enquanto origem ou destino. A
analogia nos aproxima da imagem e da possibilidade de pensar através da imagem, a partir dela e com ela”
(FERRARA, 2013, p. 63, grifos meus).
35
contexto original. Passos, Kastrup e Escóssia (2015) evidenciam isso ao apontar a cartografia
como um modo de pesquisar que não abdica, em momento algum, do rigor científico, mas
que o ressignifica para comportar os movimentos da vida. “A precisão não é tomada como
exatidão, mas como compromisso e interesse, como implicação na realidade [...] um método
não para ser aplicado, mas para ser experimentado e assumido como atitude” (PASSOS;
KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015, p. 10-11, grifos meus), ao que Rolnik (2006) demarca como único
“princípio antiprincípio” do cartógrafo: o compromisso com a vida.
Ele, o cartógrafo, cria mundos – teoriza – a partir de filmes, livros, músicas, conversas,
sonhos, delírios, medos, amores, brigas, dores, alegrias. Porque cartografar não envolve uma
preocupação com “falso-ou-verdadeiro”, “teórico-ou-empírico”. O interesse do cartógrafo é
com o que é “vitalizante-ou-destrutivo”, “ativo-ou-reativo”: sua bússola é a vida (ROLNIK,
2006). E para permitir que ela vibre em sua potência máxima, ele fará o que for, pois não se
guia por uma moral, nem mesmo científica, desde que não fira a vida. Aceitar a contribuição
apenas daquilo que fora legitimado pelo pensamento acadêmico racista, sexista e
epistemicida denunciado por Grosfoguel (2016) seria, por essa perspectiva, antiético, pois, ao
selecionar apenas um determinado tipo de material na construção do mundo, as pontes de
linguagem criadas se tornam limitadas e podem obstruir a passagem de afetos, obstruindo a
própria vida em si.
O que importa é que, para ele [o cartógrafo], teoria é sempre cartografia – e, sendo
assim, ela se faz juntamente com as paisagens cuja formação ele acompanha [...].
Para isso, o cartógrafo absorve matérias de qualquer procedência. Não tem o menor
racismo de freqüência [sic], linguagem ou estilo. Tudo o que der língua para os
movimentos do desejo, tudo o que servir para cunhar matéria de expressão e criar
sentido, para ele é bem-vindo. Todas as entradas são boas, desde que as saídas
sejam múltiplas. Por isso o cartógrafo serve-se de fontes as mais variadas, incluindo
fontes não só escritas e nem só teóricas. Seus operadores conceituais podem surgir
tanto de um filme quando de uma conversa ou de um tratado de filosofia. O
cartógrafo é um verdadeiro antropófago: vive de expropriar, se apropriar, devorar
e desovar, transvalorado. Está sempre buscando elementos/alimentos para compor
suas cartografias. Este é o critério de suas escolhas: descobrir que matérias de
expressão, misturadas a quais outras, que composições de linguagem favorecem a
passagem das intensidades que percorrem seu corpo no encontro com os corpos
que pretende entender (ROLNIK, 2006, p. 65-66, grifos no original).
Entre os “estrangeiros devorados” por Rolnik (2006), como ela se refere a suas
referências, está o francês Gilles Deleuze, com o qual pode-se traçar um paralelo entre a
proposta de um cartógrafo-antropófago, que devora “matérias de qualquer procedência”, e a
36
“espécie de enrabada” da qual ele fala ao descrever o modo como concebia a escrita de seus
livros sobre história da filosofia e alguns de seus autores:
a própria palavra “afetar” designa o efeito da ação de um corpo sobre outro, em seu
encontro. Os afetos, portanto, não só [surgem] entre os corpos – vibráteis, é claro –
como, exatamente por isso, [são] fluxos que [arrastam] cada um desses corpos para
outros lugares, inéditos: um devir (ROLNIK, 2006, p. 57).
Afetos são, nessa perspectiva, efeitos dos encontros entre corpos diversos, sejam eles
quais forem, humanos, animais, sonoros, corpos de ideias etc. (ROLNIK, 2006). Nesse sentido,
então, o corpo dilatado e vibrátil de Hija de Perra, composto por rastros digitais, é
compreendido como capaz de afetar e ser afetado. De fato, afetar um corpo morto é
impossível, pois trata-se de um processo no qual a vida é elemento primordial. Contudo, ao
22
Cf. seção Afetos abjetos em narrativas impuras, no capítulo 2.
37
Ver é uma experiência distinta de olhar. Para além de sutilezas semânticas, há uma
gramática própria a cada uma dessas experiências. Se ver é uma passividade inerente aos
dotados da percepção da visão, olhar é atividade apenas dos que questionam o que veem.
Não por acaso, Sérgio Cardoso (1988) pontua o “olho dócil” do vidente, que desliza sobre as
coisas, sem apreendê-las, interessado apenas na membrana superficial daquilo que vê. Já
“com o olhar, é diferente”, salienta o autor. Ele busca a interioridade do que é visto, age de
modo a ver e ver de novo, “direcionado e atento”, “tenso e alerta” para as dobras escondidas
do que é visto:
23
A mais recente é a Living in Foul, “a primeira apresentação institucional do trabalho de Hija de Perra na América
do Norte”, conforme descrito pela curadora Julia Eilers Smith, no site oficial do Hessel Museum of Art, um
museu que faz parte da Bard College, na cidade de Annandale-on-Hudson, em Nova York, onde aconteceu a
mostra de 7 de abril a 26 maio de 2019. Disponível em: https://ccs.bard.edu/museum/exhibitions/522-living-
in-foul. Acesso em: 6 maio 2019.
24
O olhar tem posição de destaque nesta pesquisa-viagem, não apenas em sua função de bússola cartográfica,
mas também dado seu protagonismo na sociedade contemporânea obcecada por imagens e seu desempenho
na configuração pulsional da subjetividade, ambos pontos que serão discutidos no terceiro capítulo, Devorar
e ser devorado, do consumo à consumação.
38
Para sintetizar, o olhar, segundo Cardoso (1988), é composto por uma visão ativa,
interrogativa, interessada pelos interstícios do quebrado do mundo, desejosa de mergulhar
na interioridade das coisas, perscrutadora do entrelaçamento entre vidente e visível no tecido
da vida. Propondo um diálogo com Rolnik (2006), acrescento que o salto do ver para o olhar
se dá através de um “fator de a(fe)tivação”, capaz de articular um “composto híbrido”, no qual
olho molar ou olho-da-retina – ambos termos para se referir ao olho nu – e olho molecular ou
olho vibrátil se unem a fim de capacitar o cartógrafo-vidente a capturar não apenas o visível
do mundo através do olho molar em sua dimensão da percepção, mas também, com o olho
39
molecular, a dimensão invisível dos afetos, realizando o salto ao qual Cardoso (1988) se refere.
O fator de a(fe)tivação “pode ser um passeio solitário, um poema, uma música, um filme, um
cheiro ou um gosto... Pode ser a escrita, a dança, um alucinógeno, um encontro amoroso –
ou, ao contrário, um desencontro” (ROLNIK, 2006, p. 39). Quem determina o que é preciso
para saltar do ver para o olhar é o próprio vidente, pois é ele quem sabe o que aguça a sua
sensibilidade de cartógrafo-vidente. Nesta pesquisa-viagem, são os contatos-contágios com
os rastros de Hija de Perra os fatores de a(fe)tivação que me fazem, enquanto pesquisador-
viajante-cartógrafo-vidente, “habitar o ilocalizável” (ROLNIK, 2006, p. 39).
Uma proposta como essa de Cardoso (1988) e Rolnik (2006), de ter o olhar a(fe)tivado
como instrumento de conhecimento, se aproxima do “olhar comunicacional” que Fabrício
Lopes da Silveira (2002) busca em Walter Benjamin, com o qual este investigava as imagens
de seu tempo. Em uma costura entre Antropologia e Comunicação, Silveira (2002, p. 7)
procura nos textos de Benjamin um modo de compor uma “etnografia das culturas
comunicacionais”, a fim de navegar antropológica e afetivamente pela “cultura midiática
contemporânea”. Uma navegação que acontece nesta pesquisa-viagem – tal como Benjamin
ao flanar, olhar e narrar a metrópole de dentro dela (SILVEIRA, 2002) – guiada por um olhar
a(fe)tivado que deriva pelos espaços digitais narrando de dentro do digital.
Aproprio-me dos usos de deriva que Rose de Melo Rocha (2009b), Simone Luci Pereira
e Martín de la Cruz López Moya (2018, p. 8) fazem para “produzir conhecimento sobre as
cidades através de cartografias afetivas e mapeamentos cognoscitivos”:
pela paisagem-Hija de Perra envolvem “caminhar, derivar e errar” (PEREIRA; LÓPEZ MOYA,
2018, p. 8) por geografias digitais. Plataformas do Google (Acadêmico, YouTube, buscador),
do Facebook (Facebook, Instagram) e Twitter funcionam como sítios arqueológicos
preservando os rastros da passagem monstruosa da performer pelo “mundo sensível”
(RANCIÈRE, 1996). É por esses espaços digitais constituintes de uma nova urbanidade que
caminho com o olhar a(fe)tivado, expondo-me aos rastros digitais encontrados ao se
pesquisar o nome de Hija de Perra nessas plataformas.
Todavia, uma arqueologia em geografias digitais exige certos cuidados. O excesso de
fragmentos que compõem o corpo dilatado da performer, característicos de um contexto
comunicacional pós-massivo (LEMOS, 2007), evoca uma perigosa vertigem hipermoderna.
Rocha (2009b, p. 494; 495) já alertara que,
25
Audiovisualidade é um conceito operacionalizado por Rose de Melo Rocha (2009a) para exprimir as dimensões
sonoras e visuais das imagens em circulação no contexto comunicacional pós-massivo atual, além de demarcar
uma distinção das audiovisibilidades. Toda audiovisibilidade é uma audiovisualidade, mas o contrário não
procede. Audiovisibilidades são audiovisualidades dotadas de legitimidade e legibilidade (ROCHA, 2009a), ou
seja, são autorizadas a circular livremente, reconhecidas como legítimas e passíveis de leitura. As segundas,
por sua vez, existem independentemente disso. “Creio que, ao falarmos em visível, pressupomos não apenas
uma qualidade daquilo que se dá a ver, que se constrói enquanto materialidade sígnica e efetividade simbólica.
Penso, complementarmente, que visibilidade refere-se a uma ‘visualidade portadora de legibilidade’ e,
igualmente, de um estatuto hierarquicamente estabelecido e socialmente acordado de credibilidade.
Visibilidade associa-se, portanto, a mecanismos sócio-culturais partilhados que conferem, a determinadas
imagens visuais, a qualidade de partícipes de sistemas de crenças e de leitura visual reconhecíveis e
reconhecidos como rastros e/ou registros de fatos dotados de relevância societal. O que é visível remete, pois
menos ao que se tornou imagem visual, e mais àquela visualidade que, via jogo societal e estratégias
comunicacionais, é reconhecida como dotada de valor de troca simbólico e de relevância comunicativa.
Visibilidade, finalmente, apenas se realiza e se consuma no momento do consumo, da recepção, da
codificação, da interpretação e da tradução” (ROCHA, 2009a, p. 273).
41
Rizoma é uma imagem emprestada da botânica por Gilles Deleuze e Félix Guattari
(1995) ao proporem um modo de pensar o mundo alternativo ao pensamento arborescente
do Ocidente. A árvore, árvore-mundo ou, ainda, árvore-raiz são imagens que, segundo os
autores, operam por lógicas binárias, relações biunívocas, pressupõem unidades principais
onde se passa para chegar a qualquer lugar, e possuem pontos fixos e ordenação. Esse é o
modo como o pensamento ocidental se estruturou. O problema, continuam os autores, é que
nem na natureza, de onde se extraiu a imagem da árvore, existe a dicotomia que se tenta
alcançar no pensamento arborescente: as raízes das árvores são ramificadas, numerosas, se
expandem lateralmente, circularmente e em todas as direções. É na botânica que encontrarão
a imagem que melhor se adequa à visão de mundo que propõem em oposição à da árvore: o
rizoma. Trata-se de um conceito forjado para pensar as multiplicidades, o caos, os
deslocamentos, as dispersões, o mundo em sua complexidade.
Um rizoma é uma multiplicidade; não possui uma raiz principal; é constituído por linhas
que se entrelaçam independentemente de suas naturezas; transformam-se por constantes
movimentações chamadas agenciamentos; não possuem começo nem fim, apenas meio; tem
26
Chamo de derivas exploratórias porque o objetivo não era terminar nelas, como ocorre no método da deriva
realizado por Rocha (2009b) e Pereira e López Moya (2018), e sim que fossem uma fase da cartografia, um
modo de ter os primeiros contatos-contágios com o material, de explorá-lo.
42
procedem por decalques: elas podem, no entanto, começar a brotar, a lançar hastes
de rizoma, como num romance de Kafka. Um traço intensivo começa a trabalhar por
sua conta, uma percepção alucinatória, uma sinestesia, uma mutação perversa, um
jogo de imagens se destacam e a hegemonia do significante é recolocada em questão
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 23-24).
27
Os rastros digitais de Hija de Perra continuam proliferando nos espaços digitais, conforme vimos
acompanhando. Exibições de seus filmes com discussões têm sido organizadas, fotos e vídeos são
constantemente inseridos em plataformas como Instagram e YouTube. Contudo, devido ao tempo de duração
de um mestrado e a impossibilidade de se esgotar um rizoma, foi necessário definir um ponto para “fotografá-
lo” tal como ele se apresentou naquele momento e, a partir disso, seguir a pesquisa-viagem.
28
“Google Acadêmico possibilita uma maneira simples de pesquisar amplamente pela literature acadêmica. Em
um único lugar, você pode pesquisar por muitas disciplinas e fontes: artigos, teses, livros, resumos e decisões
judiciais, de editores acadêmicos, sociedades de profissionais, repositórios on-line, universidades e outros
sites”. Tradução minha. Disponível em: https://scholar.google.com/intl/en/scholar/about.html. Acesso em: 12
jun. 2019. No original: “Google Scholar provides a simple way to broadly search for scholarly literature. From
one place, you can search across many disciplines and sources: articles, theses, books, abstracts and court
opinions, from academic publishers, professional societies, online repositories, universities and other web
sites”.
44
ocorreu do mesmo modo. Pois bem: em um espaço digital, o YouTube, no caso, pesquisei pelo
nome da performer. A busca retornou com várias páginas de links para acessar, de fato, os
vídeos. Nesse momento, na primeira página com os resultados da busca, abri cada resultado
em uma janela paralela, a fim de não perder a janela na qual havia ocorrido a busca29. Depois,
entrei em cada uma das janelas abertas, que continha um vídeo, e observei: a qualidade do
vídeo, a estética, a duração, o número de visualizações, a quantidade de comentários, o teor
de alguns deles, o conteúdo, entre outras características que, em um primeiro momento,
permitia com que me familiarizasse com o vídeo. Alguns, assisti inteiro; outros apenas alguns
trechos; e tantos outros, nem isso – coletei apenas as informações que interessavam e
continuei o mapeamento, pois seria inviável, no tempo de duração do mestrado, assistir, ainda
que parcialmente, a todos os vídeos.
O modo mais organizado, naquele momento, de registrar e, futuramente, compartilhar
aquela fase da cartografia foi criar uma planilha para cada espaço digital por onde naveguei:
uma para os resultados encontrados no Google Acadêmico, uma para o buscador do Google,
e uma para os resultados do YouTube. Conforme começava a inserir os primeiros registros de
determinado espaço, surgiam as informações possíveis de serem coletadas naquela fase, de
acordo com as possibilidades de cada material. No caso dos vídeos, por exemplo, tentei utilizar
o máximo possível as informações que a própria plataforma oferece ao usuário. Quantas
visualizações esse vídeo tem? Qual o tempo de duração? Quantos comentários? Qual o nome
do canal que o disponibilizou? Qual a descrição do vídeo? E a data de upload? As perguntas
surgiam conforme o material começava a ser manipulado.
Cada espaço disponibiliza ao usuário informações diferentes, assim como a própria
natureza do material provoca questionamentos diversos. Assim, quando registrei os
resultados encontrados no Google Acadêmico, interessou saber não a quantidade de
visualizações de um determinado artigo científico, por exemplo, até porque essa informação
não era disponibilizada, mas de quem era a autoria? A pessoa estava vinculada a alguma
universidade? Qual era o teor do material? E o nome do periódico onde foi publicado?
Conforme identificava as informações a serem inseridas na planilha, cujas categorias
eram criadas durante a inserção das informações em resposta às necessidades e curiosidades
29
Isso se tornou muito importante, pois cada vez que se atualiza uma página de busca, os resultados
apresentados mudam: a ordem dos links se altera, por vezes aparece algo novo, o que torna fundamental
“congelar” o máximo possível a tela para capturar um instante do rizoma, por isso não atualizá-la durante o
mapeamento.
45
30
Entendo como textos diversos por não poder caracterizar todos os resultados retornados no buscador Google
como jornalísticos, pois alguns deles eram postagens de blog, textos fragmentados, entre outros.
46
seu rosto; ilustrações; cartazes. Todavia, optei por não incluir tais registros visuais na pesquisa-
viagem, nem na fase do mapeamento herético do rizoma, devido à complexidade de rastrear
informações sobre a origem dos registros e sistematizá-los tal como proposto nesta fase da
cartografia. Assim, reconheço a potencialidade das imagens estáticas de Hija de Perra em suas
diversas expressões (fotos amadoras e profissionais; cartazes; ilustrações), mas não as
discutirei na atual pesquisa-viagem.
Outro apontamento relevante: durante o mapeamento, outra “hija de perra”
continuava aparecendo: o livro Hija de Perra31, publicado pela primeira vez em 1998, da poeta
chilena Malú Urriola32. Com o mesmo nome da performer, conteúdos relacionados ao livro de
Urriola retornavam junto aos de HDP, misturando, embaralhando e ressaltando as
contaminações de uma pesquisa-viagem conduzida por Hija de Perra. Contudo, uma vez ele
não se relacionando à performer, exigiu-se incluir no mapeamento um exercício de mineração
de rastros, excluindo tais resultados.
De volta aos rastros digitais – da nossa Perra, não a de Urriola – retornados nas buscas
e tendo em mente que se trata de uma figura do underground chileno, há uma impressionante
profusão de registros, assim discriminados: no âmbito da produção acadêmica,
compreendendo os resultados oriundos da busca no Google Acadêmico, contabilizei 35
rastros acadêmicos, ou seja, menções distintas para textos acadêmicos indexados pela
plataforma; no âmbito textual do buscador Google, foram 38 rastros textuais, compreendidos
como os textos que, frequentemente acompanhados por fotos e, por vezes, vídeos,
mencionavam Hija de Perra; e, por fim, no âmbito da produção audiovisual, entendida
31
“Hija de perra es un largo monólogo precedido por epígrafes de Roland Barthes, Las Blancanblues y Los
Redonditos de Ricota. El crítico peruano Julio Ortega ha señalado: ‘Hija de Perra lleva las pulsiones de lo real
(evidencias) de muerte a su extremo recusatorio, al inventario de la carencia y el desamparo (evidencias de
que lo real retoma incólume y aún más grotesco). El paisaje urbano, ‘Santiago muerto’, escenifica aquí el
paisaje interior desolado por la ruptura del diálogo. Entre ambos, discurre la soledad de la escritura, esa
obsesión de entender y de protestar, ese puente roto sobre un mundo arruinado. Sólo la violencia del poema
responde por el lenguaje de las articulaciones, por la lectura del sentido, por la reafirmación de ser en contra
de este estar desasido. Confesión de una otra confesión, estas letanías son una ceremonia de exorcismo y
patetismo: el poema es el producto desollado de las disputas de la realidad antagónica y el deseo insumiso,
del eros de empatía y la muerte de avidez. La poesía transforma el mundo de las evidencias en una figura
radical del desamparo, y clama y reclama por el diálogo que albergue el tributo y el sacrificio de esta sangre
vertida, de este discurso purificador’ (Ortega, Julio (1998).”. Disponível em:
http://www.memoriachilena.gob.cl/602/w3-article-95819.html. Acesso em: 12 jun. 2019.
32
Informações sobre a autora e sua produção bibliográfica, no site da Biblioteca Nacional do Chile. Disponível
em: http://www.memoriachilena.gob.cl/602/w3-article-3586.html#presentacion. Acesso em: 20 maio 2019.
47
Quanto aos rastros acadêmicos, percorri 18 páginas com resultados que retornaram à
busca do nome “Hija de Perra” no Google Acadêmico, sendo que detalhei deles, no
mapeamento, título, autoria, publicação, local de publicação, link (disponibilizados no próprio
material encontrado), formato e descrição (informações definidas por mim). Especificarei cada
um desses detalhes a seguir:
33
“O projeto Wikipédia foi iniciado em 15 de janeiro de 2001, na versão em língua inglesa. Em apenas um ano
de existência, esta versão já possuía quase 10 mil artigos. Até hoje já foram criados mais de 14 milhões de
artigos em centenas de línguas e dialetos (1.007.782 artigos na versão em português). Todos os dias, centenas
de colaboradores de todas as partes do mundo editam milhares de artigos e criam muitos verbetes
inteiramente novos. Todo o conteúdo do site é coberto pela licença de documentação livre GNU (GNU Free
Documentation License) ou pela Creative Commons Attribution ShareAlike 3.0. Os contributos são
devidamente creditados a seus autores, enquanto que os direitos de cópia inclusos na licença garantem que
o conteúdo da enciclopédia poderá sempre ser reproduzido e distribuído livremente, desde que sejam
seguidas algumas regras simples”. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Wikip%C3%A9dia:Sobre_a_Wikip%C3%A9dia. Acesso em: 12 jun. 2019.
34
Por vezes, um site apresenta a data original de publicação e datas posteriores de alteração do texto. Para este
mapeamento, considerou-se apenas a data original.
50
mapeamento preenchido com uma breve descrição, feita por mim, sobre o conteúdo do texto
acadêmico; observação se reserva a alguma informação complementar e importante para
contextualizar determinado rastro, sempre em relação à autoria; e link referente ao endereço
eletrônico de acesso ao material.
Em mãos desse mapeamento herético do rizoma, em uma categorização necessária
dos rastros digitais que compõem a paisagem rizomática Hija de Perra, tal como descrito
acima, finalmente, avança-se na pesquisa-viagem em direção à construção do corpus. Toda
construção de um corpus envolve a desconstrução de um corpo. Nesse sentido, é preciso
primeiro quebrar o corpo de HDP para, então, formar outro. Mas como fazer isso? Quais os
critérios para selecionar as hastes desse rizoma, os rastros dos quais se valer para construir
esse novo corpo?
Uma vez que “todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas”
(ROLNIK, 2006, p. 66), que “um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer” e
qualquer linha se relaciona com qualquer outra, independentemente de suas naturezas
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 17), decido, então, quebrar o corpo dilatado e rizomático de
HDP na altura das hastes audiovisuais35. É por elas que passarei, a partir de agora, a me
orientar pela geografia de Hija de Perra, de acordo com outro crivo metodológico que surge
no caminho – os encontros traumáticos.
“Eu gosto que as pessoas se divirtam e se traumatizem”, diz Hija de Perra (apud GRAU,
2012, p. 189, tradução minha36), “divertir e traumatizar são minhas palavras favoritas. Além
35
Chamo de hastes audiovisuais os vídeos de Hija de Perra quando em sua dimensão de imbricamento e
emaranhamento na composição junto às hastes acadêmicas e textuais do corpo dilatado e rizomático da
performer, em referência ao uso que Deleuze e Guattari (1995, p. 24) fazem ao narrarem rizomas como
emaranhados de hastes conectáveis: “Ser rizomorfo é produzir hastes e filamentos que parecem raízes, ou,
melhor ainda, que se conectam com elas penetrando no tronco, podendo fazê-las servir a novos e estranhos
usos. [...] Amsterdã, cidade não enraizada, cidade rizoma com seus canais em hastes, onde a utilidade se
conecta à maior loucura, em sua relação com uma máquina de guerra comercial”. “Lançar hastes de rizoma”
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 23) e “Chamamos ‘platô’ toda multiplicidade conectável com outras hastes
subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 32) são
outras passagens dos autores sobre as hastes na formação dos rizomas das quais me valho para pensar os
rastros audiovisuais, textuais e acadêmicos enquanto hastes, quando em sua tensão de composição do corpo-
dilatado-rizoma Hija de Perra.
36
No original: “‘A mí me gusta que la gente se divierta y se traume’ [...] ‘Divertir’ y ‘traumar’, dice, son mis
palabras favoritas. Aparte, la gente aprende, ya que si se trauma es porque tiene una mente débil, no logra
entender y le choca lo que ve”.
52
disso, a gente aprende que se traumatiza é porque se tem uma mente débil, não se consegue
entender e te choca o que vê”. É essa fala impactante que guia a pesquisa-viagem neste
momento. O choque e o trauma se revelam como chaves, oferecidas pela própria HDP, para
pensar suas audiovisualidades. Mas o que ela quer dizer especificamente com traumatizar?
Qual é o sentido do trauma para a performer? Como artista contemporânea, contudo, ela não
responde. Atira sua fala e atinge agressivamente. Nesse exercício de se expor
deliberadamente ao impacto de seus traumas, começarei pelo choque para, posteriormente,
chegar ao trauma, pois eles são distintos, porém articulados entre si.
A máquina que fragmenta o trabalho. Os transeuntes que se esbarram. O clique surdo
da máquina do fotógrafo. A montagem como estética do cinema. Os jogos de azar que
esquecem o passado de vitórias e derrotas do jogador a cada nova partida. O tiro dadaísta a
cada vez que escandalizava o público com as saladas de palavras que eram seus poemas e os
botões e bilhetes de trânsito colados a seus quadros. Essas imagens tão modernas e cotidianas
da vida urbana são utilizadas por Walter Benjamin (1987; 1989) para compor sua teoria do
choque37.
Segundo o autor, o processo urbano e industrial da modernidade desencadeou uma
série de fenômenos que alterou a experiência de estar no mundo. Um deles é o excesso de
estímulos externos com os quais passamos a ser bombardeados na vida moderna, exigindo do
nosso corpo um novo modo de lidar com tantos disparos. Um simples andar em público
envolve um estado de alerta constante aos sinais de trânsito, à conduta esperada de um
transeunte (andar de determinado lado da calçada para não impedir o fluxo, por exemplo), à
publicidade que salta aos olhos, às mercadorias sedutoras nas vitrines e, entre outras
tentações, aos intempestivos esbarrões entre os corpos na multidão. Ou seja, uma sucessão
de choques impossíveis de serem experienciados em sua plenitude, pois gerariam um
aumento de atividades psíquicas intolerável, cujo amortecimento é função do “consciente
desperto”, uma parte do cérebro supostamente tão “queimada” por estímulos externos que
se tornara propícia a ampará-los (BENJAMIN, 1989, p. 110). Desse modo, a consciência não
retém a infinidade de choques da modernidade e não é por eles modificada
permanentemente: os estímulos se “esfumaçam” no “fenômeno da conscientização”
37
Teoria do choque é como alguns autores se referem à discussão do choque em Walter Benjamin. Cf.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Quando a teoria reencontra o campo visual – Passagens de Walter Benjamin.
Concinnitas, v. 2, n. 11, p. 102-115, dez. 2007. TOMAIM, Cássio dos Santos. Cinema e Walter Benjamin: para
uma vivência da descontinuidade. Estudos de Sociologia, n. 16, p. 101-122, 2004.
53
(BENJAMIN, 1989, p. 108). Quanto mais frequente são os choques, mais inoculado se está
deles, incólume a seus efeitos.
Debrucemo-nos um pouco mais sobre a imagem da multidão para pensarmos sobre os
choques:
O mover-se através do tráfego implicava uma série de choques e colisões para cada
indivíduo. Nos cruzamentos perigosos, inervações fazem-no estremecer em rápidas
seqüências [sic], como descargas de uma bateria. [Charles] Baudelaire fala do
homem que mergulha na multidão como em um tanque de energia elétrica. E, logo
depois, descrevendo a experiência do choque, ele chama esse homem de “um
caleidoscópio dotado de consciência”. Se, em [Edgar Allan] Poe, os passantes lançam
olhares ainda aparentemente despropositados em todas as direções, os pedestres
modernos são obrigados a fazê-lo para se orientar pelos sinais de trânsito
(BENJAMIN, 1989, p.124-125).
Trata-se de uma cena de amor na cidade grande, esta que reverbera dentro dos seus
habitantes e das relações que eles (não) constituem entre si. “Uma despedida para sempre”,
54
segundo Benjamin (1989, p. 118), “que coincide, no poema, com o momento do fascínio.
Assim, o soneto apresenta a imagem de um choque, quase mesmo a de uma catástrofe [...],
capturando o sujeito [...]”.
Outra imagem do choque tátil38 proposta por Benjamin (1989) que interessa explorar
é a da mecanização do trabalho, pois, para ele, a técnica condicionou até mesmo o nosso
sistema sensorial. Quando das atividades artesanais, o processo de trabalho era contínuo e o
artesão tinha contato com todas as etapas da feitura, ao passo que, na indústria, as atividades
na linha de montagem são fragmentadas e o ritmo é o da máquina: “A peça entra no raio de
ação do operário, independentemente da sua vontade. E escapa dele da mesma forma
arbitrária” (BENJAMIN, 1989, p. 125). Trabalhar na linha de montagem da fábrica é mais uma
exposição aos choques da modernidade, cujos efeitos se espraiam para além do espaço de
trabalho, contaminando a indumentária, o comportamento e os gestos. Condicionamo-nos a
dar respostas automáticas, como quando nos chocamos com um transeunte e pedimos
desculpas imediatamente e na frase familiar “keep smiling”, pinçada por Benjamin (1989, p.
125) por atuar no comportamento como um “amortecedor gestual”.
A fragmentação, característica indissociável do choque, conforme se depreende do
autor, pode ser observada também nos jogos de azar, nos quais cada jogo não depende do
anterior, ignorando o passado de vitórias e derrotas daquele que joga. Jogador, operário e
transeunte se comportam, nesse sentido, sob a mesma lógica automática condicionada pela
exposição aos choques. Nas palavras de Benjamin (1989, p. 127):
O arranque está para a máquina, como o lance para o jogo de azar. Cada operação
com a máquina não tem qualquer relação com a precedente, exatamente porque
constitui a sua repetição rigorosa. Estando cada operação com a máquina isolada de
sua precedente, da mesma forma que um lance na partida do jogo de seu precedente
imediato, a jornada do operário assalariado representa, a seu modo, um
correspondente à féria do jogador. Ambas ocupações estão isentas de conteúdo.
A dinâmica dos choques está, ainda, na fotografia, na qual os cliques com os dedos
na máquina congelam e fragmentam momentos diversos e sem, necessariamente, conexão
38
Benjamin (1989, p. 124) usa choques óticos para se referir aos provocados pela fotografia e pelo cinema, e
choque táteis para os da circulação na metrópole: “Entre os inúmeros gestos de comutar, inserir, acionar etc.,
especialmente o ‘click’ do fotógrafo trouxe consigo muitas conseqüências [sic]. Uma pressão do dedo bastava
para fixar um acontecimento por tempo ilimitado. O aparelho como que aplicava ao instante um choque
póstumo. Paralelamente às experiências ópticas desta espécie, surgiam outras táteis, como as ocasionadas
pela folha de anúncio dos jornais, e mesmo pela circulação na cidade grande”.
55
(BENJAMIN, 1989), e no cinema, que tem o choque como “princípio formal” (BENJAMIN, 1989,
p. 125) com sua constante sucessão de imagens, interrompendo a todo instante possíveis
associações de ideias do espectador, privando-o da possibilidade de contemplação, expondo-
o a uma fragmentação imagética contínua e provocando “metamorfoses profundas do
aparelho perceptivo”: “o cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais
mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo” (BENJAMIN, 1987, p. 192,
grifos no original).
A consciência desperta, conforme aprendemos, é a responsável por amortecer essa
diversidade de choques aos quais a vida moderna nos expõe e bombardeia. Fragmentos
atirados como tiros certeiros. Como o esgrimista Baudelaire (BENJAMIN, 1989), resta-nos
duelar, golpear os choques, desferindo e recebendo golpes. No que concerne esta pesquisa-
viagem, interessa, mais especificamente, a esgrima com as imagens, para ser mais preciso,
com as audiovisualidades de Hija de Perra. “Educadora traumática que golpeia as mentes
débeis, indispostas a pensar o infamiliar”, tal como descreve Olga Grau (2012, p. 189, tradução
minha39), a performer está inserida na dinâmica moderna do choque, tanto por causa do
excesso e da fragmentação dos rastros digitais como pelas características de suas
performances, conforme exploraremos nos próximos momentos-capítulos.
De modo geral, na sociedade, os bombardeios de audiovisualidades talvez
provoquem uma queda de potência. Enfraquecemo-nos expostos aos sucessivos golpes na
retina. Deixamos de nos surpreender com o excesso e a fragmentação de choques da
modernidade, pois paramos de olhá-los. Nossas consciências despertas os amortecem com
relativo sucesso. Estamos vacinados, acostumados, fatigados, enfraquecidos pelas imagens,
como a Albertine de Marcel Proust (1871-1922), em Em Busca do Tempo Perdido, cujo excerto
pinçado por Benjamin (1989, p. 118) expõe o esgotamento parisiense pela multidão:
Quando Albertine voltou ao meu quarto, usava um vestido negro de cetim que a
empalidecia; e assim se assemelhava ao tipo ardente e, no entanto, pálido da
parisiense, da mulher que, desafeita ao livre, enfraquecida por seu modo de vida em
meio às massas e, talvez, até por influência do vício, pode ser reconhecida por um
certo olhar nas faces sem pintura que causa uma sensação de inquietação.
39
No original: “[…] educadora traumática que golpea las mentes débiles, no disponibles para pensar lo
infamiliar”.
56
A imagem invocada por Proust é de uma mulher cuja energia vital é drenada pela
multidão e tem sua queda de potência manifestada no próprio corpo. Pode-se pensar, em
uma costura com Rolnik (2006), em um corpo que não vibra mais. Um corpo drenado. As
imagens, ou audiovisualidades, em sua dimensão do excesso e da fragmentação, podem ter
essa potencialidade de nos devorar como as massas devoram a mulher de Proust? Essa
indagação será retomada mais a frente, no capítulo 3, mas, por ora, visualizemos uma linha
de fuga.
Márcio Seligmann-Silva (2009), leitor de Walter Benjamin, em sua preocupação com
as “imagens técnicas eletrônicas” – da fotografia digital, mas também de qualquer dispositivo
técnico contemporâneo de produção de imagens –, aponta para o efeito terapêutico possível
de ser depreendido no pensamento do autor. De acordo com ele,
Desse modo, então, quanto mais expostos aos choques, mais imunes a eles nos
tornaríamos, supostamente. Poderíamos encontrar no veneno o remédio? Pois, resgatando o
intento de traumatizar, declarado por HDP, sem esquecer o cenário de choque desenhado até
aqui, vislumbro no trauma a capacidade de nos tirar justamente do torpor que o excesso nos
vacinou. Poderia o trauma ser o veneno inoculado, o veneno tornado bálsamo que, em vez de
aliviar, consegue fazer voltar a arder nossos olhos fatigados?
Trauma, sintetizam Jean-Bertrand Pontalis e Jean Laplanche (2014, p. 522):
É na própria fala de Hija de Perra que encontro a saída para pesquisar-viajar por entre
o labirinto de sua geografia. São os encontros traumáticos entre o cartógrafo-viajante e seu
corpo que servem de crivo metodológico para construir o corpus. São os traumatismos
provocados por ela em meu aparelho psíquico que me guiam, as fraturas que atravessam a
consciência para se instalar na memória e provocar desconfortos que se espera poderem ser
elaborados nesta pesquisa-viagem.
Esse corpus, contudo, é tão monstruoso quanto a dona do corpo de onde ele se origina,
pois seu processo de construção foi tortuoso e cheio de reviravoltas. Em um primeiro
momento, selecionei cinco rastros audiovisuais de HDP (sete, se considerarmos que um dos
registros está fragmentado em três partes). Uma característica identificada entre eles,
posteriormente, é que foram os primeiros contatos-contágios que tive com seu material,
antes mesmo de entrar no mestrado. Tamanho o potencial traumático deles que ainda me
58
inquietavam, mesmo após três anos. Eram eles, conforme os títulos originais no YouTube, os
vídeos Discurso de Hija de perra en marcha por la diversidad sexual 2013 en Arica (2013)
(categoria Discurso público, no mapeamento herético do rizoma); Entrevista Hija de Perra &
Wincy (2013) (categoria Entrevista); Cortometraje Documental Perdida Hija de Perra (2012)
(categoria curta-metragem); Hija de Perra y Perdida – Reggaetón Venero (2012) (categoria
Show/Casa noturna); e Clase de Venéreas por Hija de Perra (partes 1 (2013a), 2 (2013b) e 4
(2013c)) (categoria Palestra). Cada um deles foi categorizado de um modo na fase do
mapeamento herético do rizoma, o que me fez pensar que seriam propícios para observar
como se dão as movimentações de Hija de Perra em diferentes espaços e como sua
performance acompanha esses deslocamentos.
Não foi tão simples assim e, durante o caminho da pesquisa-viagem, o corpus logo se
despedaçou, desestabilizando meu caminhar e se revelando arredio a tentativas de
unificações. Acontece que, durante o processo de produzir os rastros desta pesquisa-viagem
(a escrita da dissertação), outras imagens traumáticas de Hija de Perra vieram à tona. Como
ervas daninhas, associações diversas se agarraram às pernas, tirando o equilíbrio. Imagens de
HDP que, durante as derivas exploratórias, transpuseram-se sub-repticiamente da tela do
computador para minha mente, fizeram dela morada. E, conforme se davam as orgias teóricas
na escrita, impunham suas presenças. À semelhança da dinâmica sedutora e diabólica do
gênio maligno dos objetos da qual fala Jean Baudrillard (ROCHA, 2018b), quando estes
seduzem e invertem a relação sujeito-objeto dando as regras do jogo, Hija de Perra não
respeita crivos metodológicos e atordoa o pesquisador-viajante. Toma em suas mãos a
bússola e determina como se dará o caminhar.
É bem verdade que a própria descrição de trauma de Laplanche e Pontalis (2014)
aponta que o trauma não se instala quando da ação pela primeira vez, e sim em um segundo
momento, quando algum detalhe no presente remete a pessoa traumatizada a um
acontecimento no passado, quando uma descarga emocional provocada por um objeto
externo foi tão grande que seu aparelho psíquico não foi capaz de processar, obliterando o
acontecimento para preservar sua constituição. Assim, faz sentido pensar que escolher
encontros traumáticos como crivo metodológico torna impossível definir um corpus a priori,
como tentei, contraditoriamente, fazer ao selecionar as cinco audiovisualidades mencionadas.
Uma fez feita tal aposta metodológica, o corpus apenas se permitirá ser contemplado ao final
59
da jornada, pois é durante o processo que ele se revelará através de lampejos detonados face
às orgias teóricas promovidas.
Isso significa dizer que, embora tenha tentado selecionar os vídeos a priori em um
primeiro momento, o corpus final desta pesquisa-viagem acabou se tornando monstruoso. Ele
é fragmentado, despedaço, constituído por flashes que surgiram conforme se deu a escrita e
os materializei nesta dissertação através da captura de tela (prints) dos vídeos no YouTube. A
única costura desse corpus esquizofrênico é sua característica audiovisual. Vali-me apenas dos
vídeos de HDP disponibilizados no YouTube e arrolados no mapeamento herético do rizoma,
ainda que rastros de outras materialidades tenham tentado se impor. Mesmo quando suas
músicas são invocadas, isso acontece a partir dos vídeos que as disponibilizam.
A característica quase de revelia e imposição autômato desse corpus construído a
posteriori sugere algumas pistas sobre a performance de Hija de Perra. É como se sua
existência digital fosse uma presença e conservasse um fragmento de autonomia, um fiapo de
vi(a)da. Como se Hija de Perra seguisse viva e geniosa mesmo após a morte, recusando-se a
se sujeitar a um silêncio final. Segue fazendo barulho, provocando, embaralhando, impondo
forças sobre aqueles que são atravessados por suas audiovisualidades. É com essas
inquietações que avanço na pesquisa-viagem: como sua existência desencarnada segue com
tanta força de afetação? Quais são os afetos provocados? Qual a dinâmica dessa performance
que foi Hija de Perra e parece continuar mesmo após a morte? E suas especificidades? Qual o
papel dos espaços digitais na viabilização dessa “sobrevivência”?
60
Como segurar um sopro de ar, capturar o efêmero, o que está em processo de devir?
O corpo de carne e osso de Hija de Perra não está mais no plano da percepção (ROLNIK, 2006),
esse no qual se pode ver, ouvir, sentir e cheirar – compartilhar tempo e espaço
simultaneamente. Ainda assim, ela continua a fazer sentir. Sua(s) presença(s) segue(m)
depositando “ovos de serpente” (ROLNIK, 1993) prestes a chocar e a forçar confrontos com
os afetos abjetos que o projeto de Modernidade e a matriz colonial do poder tanto tenta(ra)m
soterrar nas Américas. Seu corpo vibrátil serpenteia pelo plano dos afetos (ROLNIK, 2006),
transitando entre os fluxos dos encontros, perpetuando o fazer sentir provocado pelas suas
performances em vida, ainda que, após sua morte física, com outras camadas de
complexidade. Pois são pelas especificidades dessa performance continuada que a pesquisa-
viagem embrenhará. De que modo Hija de Perra continua a performar? O que essa
performance continuada pelos seus rastros digitais faz sentir?
É pelos meandros da vida e da morte que seguiremos, tentando acompanhar os
movimentos do que a tradição indígena ameríndia (nauatle, quéchua e aimara) chama de
“olin”, “a linha limítrofe entre a vida e a morte, aquilo que mantém os seres vivos, ou, de
maneira metafísica, a linha de transição entre o reino terreno e o divino” (TAYLOR, 2013, p.
43 apud AMARAL; SOARES; POLIVANOV, 2018, p. 69). E a bússola que orienta são os estudos
da performance, um campo aberto (SCHECHNER, 2013), sem fronteiras (TAYLOR, 2012) e
contaminado (DIÉGUEZ CABALLERO, 2011), impuro e que esgarça as disciplinas (SCHECHNER,
2013), tão indisciplinado quanto a própria Hija de Perra.
As origens da performance são tão polifônicas quanto suas práticas, o que exige
discutir a experiência da performance sempre no plural. Uma das possibilidades de
reconstituição de sua genealogia é a leitura de Richard Schechner (2013), um dos precursores
61
40
No original: “No one knows if these paleolithic performers were acting out stories, representing past events,
experiences, memories, dreams, or fantasies. I would like to think they were; that making what we would call
theatre–dance–music is coexistent with the human condition. That this kind of activity is an important marker
of what it means to be human”.
62
verdadeiro. Já Aristóteles pensou o real verdadeiro como intrínseco às ações humanas, uma
potencialidade em todos os atos.
Contemporâneos dos gregos antigos, pensadores indianos também deixaram registros
de seus questionamentos sobre realidade e ilusão, interpretados por Schechner (2013) como
indícios de uma filosofia da performance. Em uma tradição indiana, o universo dos homens e
dos deuses é uma grande ilusão em incessante transformação chamada maya. Para alguns
pensadores do período, por trás do véu de maya não haveria nada; para outros, uma
maravilha tão grande que os humanos não seriam capazes de experienciar41. Outros, ainda,
defendiam ioga, meditação e práticas de uma “vida perfeita” segundo determinados preceitos
como um caminho para que seu atman, o interior absoluto, se libertasse do ciclo de
nascimento-morte-reencarnação (moksha) para, finalmente, se unir a brahman, o todo
absoluto, a versão indiana do real verdadeiro grego.
Essas indagações sobre real e ilusão são adaptadas ao contexto do período e se tornam
reflexões sobre vida e teatro na Europa da Renascença, conforme se pode observar nos
poemas do espanhol Francisco de Quevedo (1580-1645) e nas peças do inglês William
Shakespeare (1564-1616), entre outros autores contemporâneos a eles. Na literatura do
século XVII, era comum a invocação ao theatrum mundi, uma concepção na qual a vida
humana em sociedade é associada a um grande teatro. Em uma passagem da peça
shakespeariana Do jeito que você gosta, nota-se a referência quando o personagem Duque
aponta que os espetáculos do “teatro universal” são mais trágicos que os dos palcos, ao que
Jaques responde com a célebre frase “O mundo é um palco”, e continua, “todos os homens e
mulheres são na verdade atores: têm suas saídas e suas entradas e no decorrer da vida atuam
em vários papéis [...]”42. Na perspectiva renascentista do theatrum mundi, Schechner (2013)
observa que a vida cotidiana seria uma grande encenação na qual somos meros personagens
de uma força maior. Uma concepção que dialoga, de certo modo, com a “dramaturgia do
cotidiano” que o sociólogo Erving Goffman viria a apresentar no século XX, um caminho de
interpretação do cotidiano no qual a distinção entre ficção e realidade, originalidade e
falsidade é, senão apagada, ao menos desbotada (AMARAL; SOARES; POLIVANOV, 2018).
41
No épico indiano Mahabharata, quando Krishna se revela em sua verdadeira forma para o guerreiro Arjuna, a
experiência é aterradora (SCHECHNER, 2013).
42
Cf. SHAKESPEARE, W. Do jeito que você gosta. Trad. Rafael Raffaeli. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2011. p. 54.
63
Do francês para o inglês e, ainda, para uma transposição intraduzível (TAYLOR, 2012)
das línguas hispânica e lusófona, nota-se a polissemia da palavra “performance”, que carrega
em seus trajetos certa irredutibilidade a traduções, preferindo torções linguísticas e
devorações locais que a dotam de especificidades idiossincráticas. A intraduzibilidade faz
Diana Taylor (2012) lembrar de que não nos entendemos de maneira simples nem
transparente. Um obstáculo não só aos falantes hispânicos e lusófonos, mas também próprio
dos anglófonos, pois permanecem sem compreender a complexa miríade de sentidos
carregada pela performance.
43
A hidra de Lerna é um monstro da mitologia grega de nove cabeças, sendo que a cada cabeça decapitada,
outras duas surgiam. Matá-la foi um dos doze trabalhos de Hércules. Tomo as cabeças da hidra como metáfora
para me referir aos sentidos em circulação provenientes dos usos diversos do termo performance. Para cada
um deles, outros tantos surgem em espaços, temporalidades e contextos socioculturais diferentes. Por isso, a
64
Ainda que performances sejam tão antigas quanto a própria existência da humanidade
(SCHECHNER, 2013), o uso do termo começa a ser empregado com ênfase na primeira metade
do século XX, quando antropólogos, sociólogos e artistas de vanguarda o utilizam para se
referir, em síntese, às práticas ritualísticas de determinados povos, às teatralidades do
cotidiano e às ações de ruptura de determinados artistas que se recusavam a serem lidos pelas
categorias taxonômicas das belas artes.
Ao mesmo tempo que performance designa práticas artísticas de vanguarda,
também é empregada pelo próprio status quo contra o qual, por vezes, tais práticas afrontam.
Algumas das acepções contemporâneas coladas à performance a associam a desempenho e
rendimento. A eficácia em proteger os olhos dos óculos de sol, o estilo e a posição social de
quem os porta; a rentabilidade de negócios corporativos, o desempenho dos executivos
envolvidos em tais transações econômicas; os números acima da média de atletas
profissionais: são todos designados performances. Gestos e carisma de políticos são
convertidos em performances bem-sucedidas ou não, a depender do número de votos em
uma eleição; a performance de trabalhadores é medida com indicadores similares à avaliação
de automóveis, computadores e da bolsa de valores (TAYLOR, 2012). No sistema neoliberal,
são todas performances passíveis de aferição, constituindo um estágio avançado da situação
descrita por Walter Benjamin (2009) quando, no romance de Joseph Conrad, marinheiros
eram reduzidos a números desencarnados nos portos que atracavam44. É o triunfo da
mensuração propagada pela administração pública na Modernidade e espraiada para o
privado das empresas e da vida cotidiana. Taylor (2012) explica que a performance não está
alheia ao sistema no qual está inserida. Logo, pode apoiar ou subverter sistemas de poder, a
depender de quem a articule e como.
Tantas indefinições, contudo, não minam a performance, sendo, pelo contrário, vistas
por Taylor (2012, p. 55, tradução minha45) como pedra de toque de sua potencialidade,
excedendo disciplinas e operando simultaneamente como “processo, prática, episteme,
modo de transmissão, realização e meio de intervenção no mundo”. Amaral, Soares e
Polivanov (2018), leitores de Diana Taylor, apontam a porosidade, a maleabilidade e as
imagem da performance como uma hidra de cabeças polissêmicas. Cf. BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da
mitologia: histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
44
Sobre essa discussão, retomar a seção Rastros de uma passagem monstruosa, no capítulo 1.
45
No original: “[...] un proceso, una práctica, una episteme, un modo de transmisión, una realización y un médio
de intervenir en el mundo [...]”.
65
contradições como índices da complexidade das camadas que compõem aquilo analisado
enquanto performance.
Nos termos do pesquisador mexicano Antonio Prieto Stambaugh, por baixo da máscara
da performance não há rosto, apenas um algo impossível de ser descrito, uma substância
esponjosa e molhada, um corpo amorfo.
“Performance”, como termo, cria complicações práticas e teóricas tanto por sua
ubiquidade como por sua ambiguidade. A palavra multidimensional aponta as
conexões profundas entre atos estéticos, políticos, econômicos, lúdicos, sexuais,
religiosos etc. [...] Performance é uma “esponja mutante” – nas palavras de Antonio
Prieto Stambaugh – que absorve ideias e metodologias de várias disciplinas para se
aproximar de novas formas de conceituar o mundo (TAYLOR, 2012, p. 54, tradução
minha46).
Visão sincrônica tem a performer também mexicana Jesusa Rodríguez, para quem a
potencialidade da performance está, justamente, em expor a capacidade do humano se
transformar:
46
No original: “‘Performance’, como término, crea complicaciones prácticas y teóricas tanto por su ubicuidad
como por su ambigüedad. La palabra multidimensional apunta a las conexiones profundas entre actos
estéticos, políticos, econômicos, lúdicos, sexuales, religiosos, etcétera. [...] Performance es una ‘esponja
mutante – en las palabras de Antonio Prieto Stambaugh – que absorbe ideas y metodologías de varias
disciplinas para aproximarse a nuevas formas de conceptualizar el mundo”.
47
No original: “[...] ponga al espectador de frente ante su propria capacidad de transformación en hombre,
mujer, pájaro, bruja, zapato o lo que sea. Lo mejor del ser humano es que puede asumir, como los camaleones,
las inifinitas posibilidades del ser y transformarse en todos y em todo [...]”.
66
48
No original: “Si la norma del performance es romper las normas, la norma de los estudios de performances es
romper con las barreras disciplinarias”.
49
No original: “If performance studies were an art, it would be avant-garde”.
67
“medida” é impossível, exigindo uma movimentação teórica plural, uma orgia teórica da qual
nascem filhos (considerações) monstruosos.
Schechner (2013) aponta o campo como resposta às ações radicais de intelectuais e
artistas do século XX, tendo se configurado como um campo aberto, impossível de ser definido
em sua totalidade, carregado de tensões e contradições. Por esgarçar os limites das
disciplinas, é mais fluído e interativo do que a maior parte das disciplinas acadêmicas,
recusando-se à pureza e a constituir um campo unificado. Engendra uma “densa rede de
conexões” (SCHECHNER, 2013, p. 24), aberta, multivocal, incerta, indeterminada, que
confunde as distinções de aparência e realidade, fatos e faz-de-conta, superfícies e
profundezas. “Como campo, os estudos da performance são afins das vanguardas, da
marginalidade, do não convencional, das minorias, do subversivo, do bizarro, do queer, dos
negros e dos outrora colonizados” (SCHECHNER, 2013, p. 4, tradução minha50).
Desse modo, não é preciso adentrar o campo da performance como em uma luta na
qual se exige tomar partido e escolher uma única significação, abdicando de todas as outras
(TAYLOR, 2012). É possível avançar tateando, vagando, esbarrando, contaminando,
devorando, enrabando e sendo enrabado. Assim, o movimento desta pesquisa-viagem se
desenha como o da mariposa atraída pelo feixe de luz, circunscrevendo-o em linhas
rizomáticas e enfeitiçada pelo brilho, sem nunca dar conta de capturá-lo51. Enveredar por esse
caminho é apontar camadas polissêmicas, epistêmicas, metodológicas, sem nunca esgotar.
Rodeemos (sujeitos) objetos.
50
No original: “As a field, performance studies is sympathetic to the avant-garde, the marginal, the offbeat, the
minoritarian, the subversive, the twisted, the queer, people of color, and the formerly colonized”.
51
Faço referência aqui a uma passagem do físico e filósofo Luiz Alberto Oliveira (2014), quando este diz, na
palestra O silêncio de antes: “Vou seguir a metodologia sugerida pelo grande epistemólogo Adoniran Barbosa,
que é ‘as mariposa [sic] que dá vorta em vorta da lâmpida’. Vou dar várias ‘vorta em vorta da lâmpida’ para
com isso ver se a gente consegue decantar o problema que quero me dirigir”. Cf. OLIVEIRA, Luiz Alberto. Luiz
Alberto Oliveira O Silêncio. [S. l.: s. n.], 2014. 1 vídeo (1h32m44s). Publicado pelo canal Monocromo. Disponível
em: https://vimeo.com/93608472. Acesso em: 20 dez. 2019.
68
52
No original: “[...] whatever is being studied is regarded as practices, events, and behaviors, not as ‘objects’ or
‘things.’ This quality of ‘liveness’ – even when dealing with media or archival materials – is at the heart of
performance studies”.
69
[...] no século XXI, distinções claras entre “é” performance e “como” performance
estão desaparecendo. Isso faz parte de uma tendência geral em direção à dissolução
das fronteiras. Internet, globalização e a cada vez mais onipresente mídia estão
saturando o comportamento humano em todos os níveis. Mais e mais pessoas
experienciam suas vidas como uma sequência de performances em série que,
frequentemente, se sobrepõem [...](SCHECHNER, 2013, p. 49, tradução minha53).
53
No original: “[…] in the twenty-first century, clear distinctions between “as” performance and “is” performance
are vanishing. This is part of a general trend toward the dissolution of boundaries. The internet, globalization,
and the everincreasing presence of media is saturating human behavior at all levels. More and more people
experience their lives as a connected series of performances that often overlap […]”.
70
Há mais de 25 anos, a dupla alemã EVA & ADELE54 (Fig. 2) tem circulado pelos principais
eventos de arte da Europa, como a Bienal de Veneza (Itália), a Documenta de Kassel
(Alemanha) e a Feira de Arte de Basel (Suíça), entre outros. Nessas ocasiões, elas dão pistas
do que querem dizer quando afirmam: “Museu é onde quer que estejamos” (Wherever we
are is museum, no inglês original). Essas duas figuras se tornam o “evento dentro do evento”
por se apresentarem publicamente de cabeças raspadas, identicamente vestidas em roupas
excentricamente “ultrafemininas”, simpaticamente conversando com os presentes e
compartilhando sorrisos (MUSÉE D’ART MODERNE, 2016).
54
Segundo a imprensa britânica, a dupla insiste em ser referenciada com o & e em letras maiúsculas. Cf. PIDD,
Helen. EVA & ADELE: “We invented our own sex”. The Guardian, 1 nov. 2011. Disponível em:
https://www.theguardian.com/artanddesign/2011/nov/01/eva-and-adele-interview. Acesso em: 20 dez.
2019.
55
Disponível em: https://www.iheartberlin.de/eva-adele-the-story-of-an-iconic-berlin-artist-couple/. Acesso
em: 20 dez. 2019.
71
mundanas, como ir ao dentista, com [essas] nossas roupas”, conta EVA (2016, s.p., tradução
minha) em uma entrevista usando um brilhante tailleur vermelho com babados. A imprensa
alemã chegou a considerar a dupla a “performance em execução mais longa do mundo” e que
elas “incorporam a forma de arte mais radical: a renúncia à própria identidade” (EVA & ADELE
[...], 2016, s.p., tradução minha). Todas suas aparições públicas são desse modo esteticamente
excêntrico e idêntico entre si, inclusive com a constante simpatia no tratamento com aqueles
com quem interagem. “Cada detalhe tem sido meticulosamente preparado e ensaiado” ao
longo de toda a trajetória do duo (MUSÉE D’ART MODERNE, 2016, s.p., tradução minha).
A indissociação entre arte e vida se revela na narrativa que EVA & ADELE fazem de si.
Embora se saiba pela imprensa que são os corpos biológicos de uma mulher e de um homem
(legalmente reconhecido como mulher sem nenhuma intervenção cirúrgica), elas não revelam
suas identidades, suas datas de nascimento, os lugares onde estudaram nem informações
sobre suas vidas antes de se conhecerem em 1989, ainda que, ironicamente em contraste ao
anonimato biográfico, divulguem as medidas de seus corpos no site oficial (altura, busto,
cintura e quadril). Alegam terem vindo do futuro, para “iniciar novos estilos de vida e
apropriações de gênero” (MUSÉE D’ART MODERNE, 2016, s.p., tradução minha).
Noto que isso que estou chamando de performance vitalícia para me referir ao
trabalho de EVA & ADELE é o como de Hija de Perra, no sentido empregado por Schechner
(2013). O anonimato biográfico deliberado, que faz com que não se saiba dados de seus
passados nem de suas identidades a não ser aqueles que decidem compartilhar publicamente;
o borramento entre ficção e realidade; e um certo paradoxo, pois ao mesmo tempo que estão
sempre repetindo EVA & ADELE, cada aparição pública é única, são também compartilhados
em Hija de Perra.
Serão apontadas, então, algumas especificidades da performance-vida Hija de Perra,
ou seja, HDP como uma performance reiterada que fez da vida uma performance deliberada,
nos âmbitos da narrativa, da estética e da política, assim categorizados apenas para fins de
compreensão, pois, na prática, entendo que tais divisões não existem.
72
56
Qualquer referência às informações de HDP exigem um pensar minucioso. Víctor Hugo Wally Pérez Peñaloza
é um nome associado à performer em alguns rastros textuais. Contudo, o que é esse nome? Era seu nome de
batismo? Não sei se ela foi batizada. Nome civil? Não tenho como saber se era esse o nome em seus
documentos civis. Nome verdadeiro? Terrível seria trazer a noção de “verdade” ao discutir Hija de Perra, pois
ela opera em outra dimensão que não uma de “verdade-mentira”, “real-falso”. Por isso, a necessidade de
sinalizar que Victor era supostamente seu nome civil, a partir de uma inferência pelo modo com que esse nome
é associado à performer.
73
viam. As pessoas se surpreendiam muito, mas servia para gerar uma mudança de
mentalidade, para educar”, narra a mãe ao site (PEÑALOZA, 2019, s.p., tradução minha57).
Essas duas falas, de mãe e filha – filho, na fala da mãe, que emprega o masculino ao
se referir a HDP na matéria do site –, expõem uma tensão recorrente não apenas no âmbito
das narrativas performadas por HDP, mas em suas performances como um todo: o
borramento das fronteiras entre ficção e realidade. A narrativa da performer no curta-
metragem documental (CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012) faz parte da
biografia de Victor Hugo Pérez Peñaloza ou de uma biografia fictícia de Hija de Perra, citada
na narrativa da mãe como um “personagem criado”? O que(m), de fato, foi Hija de Perra? Esse
era o nome adotado pela performer quando não estava performando publicamente ou
compunha apenas a diegese biográfica dessa “personagem”?
57
No original: “Me gustaba mucho fijarme en las reacciones de las personas cuando lo veían. La gente se
sorprendía mucho, pero servía para generar un cambio de mentalidad, para educar. Yo nunca juzgué lo que él
hacía”.
58
Disponível em: https://www.eldesconcierto.cl/2019/08/24/la-memoria-viva-de-hija-de-perra-en-el-activismo-
de-su-madre-rosa-penaloza/. Acesso em: 20 dez. 2019.
74
Passo a pensar Hija de Perra como uma performer que faz de si a própria
performance, tecendo sua biografia pública com fios de ficção. O protagonismo do corpo e a
presença do artista no âmbito da performance não é novidade, como já salientaram Taylor
(2012), Schechner (2013) e a “performer pop”59 Marina Abramovic na performance A artista
está presente, comentada por Taylor (2012) em suas investigações. Contudo, observo em HDP
um esgarçamento nos usos do corpo em público ao se apresentar reiteradamente seguindo
uma lógica interna do universo Hija de Perra, uma diegese. No curta-metragem documental
(CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012), tal universo é explicitado. Vejamos.
O vídeo começa com uma sequência de registros amadores de performances
díspares, editados em uma sequência muito rápida e ao som de um punk rock latino-
americano. A sensação provocada é de estar sendo bombardeado visual e sonoramente.
Cortes secos nas imagens, alguns efeitos de flashes fotográficos e a movimentação
tremeluzente da câmera contribuem para intensificar a impressão de estar sendo
eletrocutado. O bombardeio é interrompido. Segue-se um quase silêncio, quebrado pelo
assobio de pássaros ao amanhecer, e imagens do que parece ser algo como um jardim
volumoso ou um campo, compondo no todo um alvorecer quase bucólico. Corte. Do lado de
fora, a câmera apresenta uma moradia carregada de signos do imaginário de uma pobreza
latino-americana: uma cerca irregular, improvisada, faltando ripas de madeira; uma varanda
coberta por uma estrutura se fazendo telhado. Corte. Dentro da morada do monstro, uma
decoração desarmoniosa, disparatada, que mistura uma grande quantidade de bonecas do
tipo Barbie seminuas, fotografias de uma pornografia de outrora, plantas e dildos no peitoril
da janela. O despertador começa a tocar e a câmera a lamber um corpo fragmentado que vai
se compondo: um pé, uma perna, cobertos por uma meia fina preta que, conforme se
acompanha junto à câmera, sobe à altura da coxa. Uma vagina protética, rosada e peluda. Um
torso coberto por uma camiseta e escorado em um corpo anônimo, de bruços, masculino e
nu. O monstro acorda de seu sono de ressaca, o cabelo desgrenhado (Fig. 4).
59
A mídia, frequentemente, ressalta o caráter “pop” e a relação da artista com outros nomes da cena pop.
Disponível em: https://guia.folha.uol.com.br/exposicoes/2015/03/1598524-marina-abramovic-
megaexposicao-da-performer-chega-a-sp-saiba-detalhes.shtml. http://www.virgula.com.br/famosos/os-
motivos-que-fazem-marina-abramovic-mais-pop-que-a-sua-diva-coracao/. Acesso em: 20 dez. 2019.
75
Fonte: YouTube.
60
No original: “Devela un día en la vida de la conocida performista trash Chilena, Hija de Perra, durante los
preparativo [sic] para una de sus presentaciones”.
61
No original: “Durante ese día nos situaremos tanto en su espacio privado como en la ciudad, en la que irrumpe
con su travestismo bizarro e indecente”.
77
calçadas, as cabeças se viram quando passa. Um homem velho, com poucos dentes, voz
embargada e debochada, chama “que linda, que preciosa, meu amor”.
Chupando sorvete em um parque, HDP olha novamente para a câmera, sempre
tremulante, e encara a lente:
Quando veem um documentário sobre travesti, o que querem ver? Querem ver
como o pobre menino, menino com “lita”, decidiu se maquiar e operar os seios. É
como se travesti não tivesse vida. É óbvio que tem, óbvio que tem amores, óbvio que
tem família, óbvio que come frango com batatas fritas. Óbvio que almoça, que lava
o rosto com sabonete de manhã, que tem uma vida pessoal, que pode desenvolver
uma carreira. Podemos ter carreira em um banco. [...] Se a “lolita” gosta de se
maquiar como mulher, ótimo, problema dele. O que você faz em casa? Faz ondas no
cabelo, encrespa antes de ir a uma festa? É o mesmo, são intimidades. Se o
homenzinho gosta de se maquiar como a tia, problema dele (PERRA, 2012, s.p.,
tradução minha).
Uma cena como essa, que toca às narrativas de outros corpos inconformes, é logo
sucedida por HDP se encontrando com Irina La Loca e Perdida – “personagens como eu, muito
bizarros”, em suas palavras –, presenças frequentes em suas performances, para assistir
pornografia em uma sala residencial e se tocarem parodicamente. Vestidas, se acariciam por
cima das roupas e seus gemidos histriônicos compõem uma cacofonia quando somados aos
originais do vídeo pornô que assistem. Trazem um dildo de duas cabeças, ao qual masturbam,
esfregam umas às outras, trocam tapas que se convertem em carícias. O celular toca, HDP
atende. “Estamos vendo pornografia”, responde sorrindo em voz inocente.
Cenas como as exibidas no curta-metragem documental são combinadas a outras
cenas arquivadas nos rastros audiovisuais das performances de HDP, tecendo, assim,
teatralidades difusas, confusas, borradas, sobretudo liminares. Fundamento-me para
defender essa borrosidade, tanto na diegese biográfica da performance quanto na orgia de
formatos e linguagens artísticas (música, cinema, videoclipe, fotografia, performing arts etc.),
no estudo da cubana radicada no México, Ileana Diéguez Caballero (2011). Ao investigar
práticas latino-americanas do que considerou de “natureza híbrida”, a autora identificou uma
“condição liminar” atravessando intervenções urbanas promovidas por pessoas de diversas
searas, como atores, músicos, dançarinos, artistas visuais e especialistas da imagem por toda
América Latina. Concordando com seu ponto de vista, entendo as teatralidades não como
uma exclusividade do teatro, muito menos como a materialidade do texto, mas uma textura
contaminada e performada por artistas de diversos campos, uma textura que traz em sua
78
62
A matriz colonial do poder será explorada na seção Exorcismo simbólico da colonialidade e a dimensão da
(des)possessão, ainda no capítulo 2.
79
Esses “entes liminares” são portadores de estados contagiantes próprios das anti-
estruturas, uma espécie de dionisismo cidadão ao qual me referi como “pathos
liminar”. A partir da visão nietzschiana o termo dionisismo expressa a colocação em
ação de estados orgiásticos. Vinculado a situações de possessão, de festividade
transbordante e contagiante, de liberação das regras e procura de um espírito
utópico, entendo sua colocação em ação no espaço público, em circunstâncias
excepcionais (DIÉGUEZ CABALLERO, 2011, p. 38, grifos no original).
Entendo os entes liminares como habitantes das soleiras, esse espaço intersticial da
porta sempre aberta, interessados mais no girar a chave do que no para onde vão ou de onde
vêm. O jogo que eles jogam é o do mascaramento, não em um sentido binário ocidental de
revela-esconde, tal como em certas práticas mascaradas da commedia dell’arte, clown, bufão,
topeng e nogaku. Mas do entre o “não mais” do passado e o “ainda não” do futuro, descrito
por Felisberto Sabino da Costa (2015) ao analisar “mascaramentos contemporâneos” – modos
de existência inacabados e de identidades tensionadas, fronteiras atravessadas. O
mascaramento, ensina o autor, não é exclusividade dos artistas nem está no âmbito das
“identidades-vestes”, prontas a serem vestidas. Sob a guarda de Genius, o deus latino protetor
dos nascimentos e rompedor do se bastar em si mesmo, o mascaramento está no território
das incertezas, tão familiar à prática das performances.
Utilizado por Costa (2015, p. 16) para pensar corpos transviados e desviantes, em
seus termos, o mascaramento surge pertinente como condição dos entes liminares –
entidades ficcionais como Hija de Perra – por ser um modo de existência de experimentações
e de estranhar a vida através de uma “arte-vida”, que, na performance de Hija de Perra,
mobiliza afetos abjetos, atacando diretamente o projeto de Modernidade ocidental fundado
no trinômio beleza, pureza e ordem, descrito por Zygmunt Bauman (1998, p. 7-8):
[...] modernidade é mais ou menos beleza (“essa coisa inútil que esperamos ser
valorizada pela civilização”), limpeza (“a sujeira de qualquer espécie parece-nos
80
Vejamos a seguir de que modo Hija de Perra suja suas narrativas com os afetos
abjetos acionados e como essa imundície por ela reivindicada – lembremos que essa é uma
palavra frequentemente usada em suas narrativas autorais e nas de outros sobre ela – pode
adquirir força de uma estratégia estético-política ao inverter o uso da abjeção social que lhe
é imposta para criar a “poética abjeta e monstruosa” com a qual Juan Pablo Sutherland (2014)
descreveu seu trabalho.
Fonte: YouTube.
63
No original: “For Kristeva the abject is an intermediary position, neither subject nor object, a disruptive force
of the ‘in-between, the ambiguous, the composite’.”
82
estratégia de ordem e coesão para tentar que os inconformes fossem assimilados pelos
centros através de uma normatização dos corpos e da participação civil através de códigos
estéticos hegemônicos. Como efeito colateral, acabou-se reforçando a marginalização dos
corpos que não quiseram/puderam/conseguiram se submeter às normas cisgêneras
assimilacionistas. Alvarado (2018) ensina que a completude identitária galgada por esses
grupos para a construção de suas subjetividades só é possível através da expulsão dos que
não performatizam as normas. Um processo de expulsão que não é senão a abjeção.
A abjeção é uma parte do processo de formação do sujeito, de acordo com Julia
Kristeva (ALVARADO, 2018). O abjeto, por essa perspectiva, não é o sujeito nem o objeto,
ainda que compartilhe com este – o objeto – a oposição em relação ao “Eu” do sujeito. Abjeto
é aquilo considerado repugnante e, como tal, não faz parte do “Eu”. É o “entre”, um espaço
de “não humanidade”, uma “entidade intermediária”, aquilo que forma a coerência do sujeito
ao se posicionar como fora. A abjeção é um processo inconcluso e exigente de reafirmação
daquilo que é abjeto, pois, constantemente, ameaça esfacelar a suposta completude do
sujeito. Dito de outro modo, o sujeito precisa, a todo momento, se diferenciar daquilo que
“ainda-não-é-sujeito”, o abjeto. É, portanto, uma posição conferida àquilo que perturba o
sistema com suas fronteiras, regras, identidades coesas, ordem, beleza e pureza. A filósofa
dos estudos de gênero Judith Butler segue na mesma direção ao pensar o abjeto como aquele
que não é sujeito, mas constrói o fora que constitui os limites do sujeito, sendo necessário
repudiá-lo reiteradamente através de “repetições performativas” (ALVARADO, 2018, p. 29).
Ao investigar latinos queer portadores de HIV, Alberto Sandoval-Sánchez (apud
ALVARADO, 2018, p. 40, tradução e grifos meus64), ele também soropositivo, define: “Corpos
abjetos são repulsivos porque manifestam e infligem uma confusão de fronteiras que perfura,
fratura e fragmenta as supostas unidade, estabilidade e limites da identidade do sujeito
hegemônico e do corpo político da nação”.
Paradoxalmente, as forças de atração e repulsão do sujeito pelo abjeto são igualmente
proporcionais. Quanto mais repulsa o abjeto causa, maior é a atração que se tem por ele
(ALVARADO, 2018). E, nesse ponto, uma relação explícita entre a abjeção e a monstruosidade
– lembremos sempre de Hija de Perra se reivindicando enquanto monstro – é desenhada.
64
No original: “Abject bodies are repulsive because they manifest and inflict a confusion of boundaries which
punctures, fractures, and fragments the assumed unity, stability, and closure of the identity of the hegemonic
subject and the body politic of the nation’”.
83
A aproximação entre Alvarado (2018) e Cohen (2000) não é por acaso, pois ambos
buscam na abjeção de Julia Kristeva a dinâmica que seus interesses – abjeção e
monstruosidade, respectivamente – articulam. Logo, faz-se necessário invocar a própria
psicanalista para compartilhar, em seus termos, o que pensa do tema. No primeiro parágrafo
de seu livro Powers of Horror: an essay on abjection, ela diz:
Há, na abjeção, uma dessas violentas e obscuras revoltas do ser contra aquilo que o
ameaça e que lhe parece vir de um fora ou de um dentro exorbitante, jogado ao lado
do possível, do tolerável, do pensável. Está lá, bem perto, mas inassimilável. Isso
solicita, inquieta, fascina o desejo que, no entanto, não se deixa seduzir. Assustado,
ele se desvia. Enojado, ele rejeita. Um absoluto o protege do opróbrio, com orgulho
a ele se fia e o guarda. Mas, ao mesmo tempo, mesmo assim, esse elã, esse espasmo,
esse salto é lançado em direção de um outro lugar tão tentador quanto condenado.
Incansavelmente, como um bumerangue indomável, um polo de atração e de
repulsão coloca aquele no qual habita literalmente fora de si (KRISTEVA, 1982, p. 1,
tradução minha65).
Desse modo, estão Alvarado (2018) e Cohen (2000) descrevendo processos similares:
abjeção e monstruosidade funcionam como válvulas de escape para expurgar aquilo que
ameaça as fronteiras de constituição do Eu. Provocam, simultaneamente, um “prazer
escapista” ao servir de alter ego, um Outro Eu no qual posso expiar minhas monstruosidades,
65
No original: “There looms, within abjection, one of those violent, dark revolts of being, directed against a threat
that seems to emanate from an exorbitant outside or inside, ejected beyond the scope of the possible, the
tolerable, the thinkable. It lies there, quite close, but it cannot be assimilated. It beseeches, worries, and
fascinates desire, which, nevertheless, does not let itself be seduced. Apprehensive, desire turns aside;
sickened, it rejects. A certainty protects it from the shameful—a certainty of which it is proud holds on to it.
But simultaneously, just the same, that impetus, that spasm, that leap is drawn toward an elsewhere as
tempting as it is condemned. Unflaggingly, like an inescapable boomerang, a vortex of summons and repulsion
places the one haunted by it literally beside himself”.
84
66
No original: “For Kant, the ideal spectator, or judge of taste, therefore, must be disinterested. Pure aesthetic
judgment cannot be tainted by empirical delight”.
85
corpo que o produz. No julgamento estético kantiano, seria preciso suprimir todas as
vicissitudes do intérprete para que haja rigor crítico: questões de sexo, gênero, raça, classe,
não apenas não deveriam interferir como, supostamente, seriam possíveis de serem
ignoradas na experiência estética.
Ao mesmo tempo, Kant elaborou outra reação afetiva possível, o sublime: “um
acionamento estético acionado mais pelo desprazer do que pelo prazer, que capturaria os
limites do imaginável” e é descrito como uma “experiência negativa dos limites” (ALVARADO,
2019, p. 14, tradução minha67). Trata-se de uma categoria útil para pensar a arte
contemporânea que, ao romper com os formalismos e tentar separar a arte da beleza, estaria
mais condizente com o sublime do que com o belo kantiano.
67
No original: “[...] an aesthetic judgment, triggered more by displeasure than pleasure, which captures precisely
the limits of the imaginable. Described as about ‘negative experiences of limits […]”.
68
No original: “Kant describes sublimity as directly connected to emotion, as opposed to the specifically
articulated um-emotion-like pleasure of beauty. In distinction to the form-boundedness of beauty, a judgment
of the sublime can be triggered by objects without form, producing what Kant describes as ‘negative
pleasure’”.
86
69
No original: “To be clear, I am not centering here on a dynamic of ontological desire – a desire to be abject –
but one of recognition of a social location and strategies to propel this recognition into a destabilizing force.”.
70
No original: “Abject performances offer us a terrifyingly moving glimpse of a dynamism worth the risk of
unfurling the polyester iridescence that cloaks respectability politics so that we might engage with the
difficulty and promise of Latinidad’s abject otherness.”.
87
Nesse sentido, entendo que Hija de Perra articula essa estética da abjeção descrita
pela autora ao se valer de elementos contraditórios aos ideais do projeto de Modernidade.
HDP invoca o grotesco, a imundície e a desordem no modo como se veste e desenha o próprio
rosto, em suas narrativas escatológicas-venéreas-profanas, na heterogeneidade de suas
produções e no modo histriônico com que se apresenta publicamente.
Além disso, a normatividade e a respeitabilidade citadas por Alvarado (2019), e
provocadas pelos afetos negativos (ou afetos abjetos, como prefiro chamar) suscitados pelas
performances que se valem de uma estética da abjeção, não são senão a normatividade
trazida no convés dos navios colonizadores, a própria “matriz colonial do poder” denunciada,
entre outros, por Pedro Paulo Gomes Pereira (2015) e indissociável da Modernidade. Tornar
visível a abjeção simbólica e vomitar afetos negativos, tal como HDP faz, é um expurgo
simbólico dessa matriz e uma via possível para retomar a posse de si.
de raça e de gênero, outrora indicadores de diferenças culturais, passam a ser usados para
classificações epistêmicas e ontológicas.
Walter Mignolo (2007) defende que não é possível haver Modernidade sem
colonialidade, pois esta é intrínseca à primeira. A Modernidade como formação do capitalismo
mundial no século XVI foi justamente forjada na matriz colonial do poder, que utiliza faltas ou
excessos – assim considerados por seus moldes – como marcadores de diferenças coloniais e,
portanto, legitimadores da exploração/domínio/conflito de raça, gênero e trabalho
(BALLESTRIN, 2013).
O que, então, teria mudado com a independência das colônias? De acordo com Castro-
Gómez e Grosfoguel (2007), as formas de dominação, não a estrutura das relações entre os
centros e as periferias.
Eles defendem:
71
No original: “Las nuevas instituciones del capital global, tales como el Fondo Monetario Internacional (FMI) y
el Banco Mundial (BM), así como organizaciones militares como la OTAN, las agencias de inteligencia y el
Pentágono, todas conformadas después de la Segunda Guerra Mundial y del supuesto fin del colonialismo,
mantienen a la periferia en una posición subordinada.”.
89
possessão desse amor e em um liminar de transe e sonho, negocia com Zapanala a posse da
vida de seu amante. Para ressuscitá-lo, o demônio cobra a maior quantidade de empanadas
de carne humana que ela já fez. O canibalismo não é uma novidade para ela, famosa pelo
sabor de suas produções cujo ingrediente é secreto a seus clientes – e aqueles que insistem
em saber se tornam recheio. O dispêndio solicitado por Zapanala é outro: o recheio das
empanadas deve ser da carne humana das pessoas mais queridas, próximas e conhecidas de
Hija, ao que ela cede e promove uma chacina na própria casa. Mas Zapanala expõe, então, a
ardilosidade conhecida dos demônios e exige uma última vida, a de sua melhor amiga e
parceira, Perdida. Sucumbindo ao pedido72 e munida de mil empanadas, no último momento,
quando do ritual de ressurreição de Caballo, Perra decide que a vida que lhe faz falta não é a
do amante, e, assim, Perdida é quem ressuscita (Fig. 6).
72
A cena da morte de Perdida é particularmente impactante: após tentar matar a melhor amiga com uma barra
de ferro, Perra a persegue por vielas até encurralá-la. Então, coloca uma camisinha (um detalhe curioso) no
cano de um revólver e violenta Perdida, para finalmente atirar nela com a arma ainda dentro da melhor amiga.
Não bastasse, lambe o cano da arma antes de se desesperar e começar a gritar com o que acabara de fazer.
92
93
Fonte: YouTube.
O diabo surge, então, como figura de mediação nessa narrativa sobre as negociações
entre capitalismo e tradições locais dos produtores rurais, que exaurem a própria terra e seus
corpos no processo de transfiguração de um fetichismo pré-capitalista, no qual pessoas e
objetos se unem, para um fetichismo capitalista, de subordinação das pessoas às coisas
(ROCHA, 2018b).
94
73
Uma das amigas-devassas, Irina ou Perdida, não dá para identificar na escuridão das imagens, comemora no
microfone e pede para o público abrir espaço para que HDP dê seu “leite imundo” e de “cadela”.
95
matriz colonial do poder acionados a cada visualização, a cada momento que sua presença é
invocada e seu corpo – não de carne e osso, mas de luz e de pixel – é conjurado em uma tela,
esse portal de acesso aos deuses que Ana Taís Martins Portanova Barros e Michel de Oliveira
Silva (2018, p. 7; p. 12) descrevem como um espaço “limiar entre o mundo dessacralizado e
profano e a existência sagrada, exemplar e imortal das imagens”, lugar das existências perenes
“in imago”.
Dobras performáticas
74
Consumir, produzir e compartilhar são “três particularidades intrínsecas às tecnologias digitais que, pelo baixo
custo envolvido na experiência e a contínua expansão da base de usuários, rompem a necessidade de uma
infraestrutura tecnológica e humana financeiramente dispendiosa, absolvendo o usuário/produtor de
investimentos vertiginosos e do aval de terceiros para ter seu conteúdo compartilhado” (SANTOS, 2018, p.
61).
75
“Estamos vivendo no meio do maior aumento da capacidade expressiva na história da raça humana. Mais
pessoas podem comunicar mais coisas para mais pessoas do que jamais foi possível no passado, e o tamanho
e a velocidade desse aumento, que foi de menos de 1 milhão para mais de 1 bilhão de participantes no
decorrer de uma geração, fazem da mudança algo sem precedentes” (SHIRKY, 2012, p. 57).
96
2.8 O monstro defeca seus filhos: rastros como performance post mortem
76
Contemporâneo de Paracelsus, Leonardo da Vinci seria um Homúnculo, sabidas que são suas diversas
acusações de sodomia na Florença da época (SÁEZ; CARRASCOSA, 2016).
77
Quando publicou o livro citado, Manifesto Contrassexual, Preciado assinava como Beatriz Preciado.
Atualmente, após suas experimentações com autoaplicações de testosterona em gel, passou a assinar como
Paul B. Preciado.
98
Nalgas
Nalgas
Siéntate en mi cara
con tu olor a caca
Aún tengo tu caca
en mi uña
Me encanta tu olor a caca [2x]
dos usos que se fazem do órgão. Mas é também onde Hija de Perra encontra material (fecal?)
para suas criações e de onde fala, do Cone Sul, esse “cu de mundo” (PELÚCIO, 201478). Não à
toa, narra-se monstro. Ousou roubar o fogo da vida e conceber a si mesma. Em uma
(auto)gestação profana, pois abdicando de pai e de mãe, criou Hija de Perra, uma
performance-vida (ou vida-performance, o que viria primeiro?), nos termos discutidos
anteriormente. Todavia, seu corpo encarnado e incorporado (por essa performance que foi
Hija de Perra) morreu em 25 de outubro de 2014 – não sem antes materializar o delírio de
Paracelsus e defecar no mundo rastros digitais que, como rebentos profanos, excedem a
morte da criadora e dão continuidade ao seu legado de sacrilégio e imundície.
Richard Schechner (2013, p. 30, tradução e grifo meus) faz uma pergunta à qual ele
mesmo responde: se a pintura está no objeto físico do quadro e o romance nas palavras
escritas, onde está a performance? “[N]ão está em nada, e sim no entre”. Uma vez, então, que
a performance não existe enquanto coisa, apenas como ato, movimento, seria ela impossível
de materialização? Avessa, talvez, a ser salva, guardada, arquivada, transmitida?
Pois a preservação e arquivamento da performance é ponto nevrálgico e de conflito
no campo, relacionando-se diretamente com esta pesquisa-viagem: se o caminho não se dá
pelas performances em vida de Hija de Perra, mas pelos rastros digitais que elas deixaram no
mundo, não se está investigando a performance da artista no sentido das performing arts, do
acontecimento único e efêmero. Contudo, a característica performática de vida autômato que
os rastros digitais de HDP ganham no contexto pós-massivo não pode ser ignorada. Eles se
proliferam na velocidade da internet; desaparecem e ressurgem; dão continuidade às
provocações, sensações e movimentações das performances em vida de HDP. Taylor (2012, p.
78
“Na geografia anatomizada do mundo, nós nos referimos muitas vezes ao nosso lugar de origem como sendo
‘cu do mundo’, ou fomos sistematicamente sendo localizados nesses confins periféricos e, de certa forma,
acabamos reconhecendo essa geografia como legítima. E se o mundo tem cu é porque tem também uma
cabeça. Uma cabeça pensante, que fica acima, ao norte, como convêm às cabeças. Essa metáfora morfológica
desenha uma ordem política que assinala onde se produz conhecimento e onde se produz os espaços de
experimentação daquelas teorias. Esta mesma geopolítica do conhecimento nos informa também em quais
línguas se pode produzir ciência e, em silêncio potente, marca aquelas que são exclusivamente ‘produtoras de
folclore ou cultura, mas não de conhecimento/teoria’ (Mignolo, 2000 apud Grosfoguel, 2008, p. 24)” (PELÚCIO,
2014, p. 10).
100
166, tradução minha79) segue se(nos) perguntando: “Quantas vidas tem a performance: a de
aqui e agora [...], as do passado que podemos imaginar por meio de fotos, descrições e
documentações de arquivo?”.
Conforme escrito anteriormente, entre os sentidos do termo performance a circular
no início do século XX, estava o de associá-lo a práticas de artistas que queriam romper com
as tradições das belas artes. Nesse sentido, Taylor (2013) encontra germens da performance
no trabalho de uma miríade de artistas: nos futuristas, dadaístas e surrealistas europeus,
interessados mais no processo do que no produto final; na arte não-objetual mexicana; além
de traços de performance nos trabalhos dos brasileiros Flavio de Carvalho, Helio Oiticica e
Ligia Clark. Havia no campo das artes, de modo geral, um posicionamento questionador em
relação à ausência, até então, do corpo dos artistas em suas obras, o que resultou diretamente
no desenho do que viria a ser chamado de performing arts, nos anos 1960 e 1970 (TAYLOR,
2012). A arte materializada em um objeto era atacada, privilegiando-se os processos e as
práticas. Com isso, surgiram alguns impasses, como o do arquivamento e da memória das
performances. Como coloca Schechner (2013), qualquer que seja a performance, uma hora
ela acaba: a cortina fecha, o público se levanta, os dançarinos vão se trocar no camarim, o
performer vai para casa. Isso significa que a performance acabou?
Como tudo no que tange aos estudos da performance, essa resposta não é simples e o
mais apropriado seria pensá-la como um sonoro “depende”. Depende das lentes que o
investigador decide adotar e da prática investigada. Alguns autores, como Peggy Phelan (1993
apud TAYLOR, 2012), entendem a performance como impossível de ser capturada, pois
nenhuma forma de registro documental é capaz de capturar o ato ao vivo. A vida da
performance é a do presente:
A performance não pode ser guardada, gravada, documentada, sem que passe a
participar [do sistema] da circulação da representação [...]. O ser da performance,
como a ontologia da subjetividade [que proponho aqui] [...], torna-se performance
através do desaparecimento (PHELAN, 1993 apud TAYLOR, 2012, p. 143, grifo no
original, tradução minha80).
79
No original: “¿Cuántas vidas tiene el performance: el de aquí y ahora [...], las del pasado que podemos
imaginarnos por medio de fotos, descripciones y documentación de archivo?”.
80
No original: “El performance no puede ser guardado, grabado, documentado, sin que participe em la
circulación de la representación [...] El ser del performance, como la ontologia de la subjetividad propuesta
aqui, deviene performance a través de la desaparición.”.
101
Para autores como Peggy Phelan, performance é um ato efêmero, uma desaparição e
o desaparecimento é condição inalienável de sua constituição. Por essa perspectiva, Taylor
(2012) reconhece que, de fato, uma performance não pode ser guardada. Uma foto ou um
vídeo de uma performance não são a performance. Mesmo que um espetáculo, um evento,
uma cerimônia se repita, nunca será igual, pois o artista, o público, o contexto histórico e o
momento não serão os mesmos (TAYLOR, 2012). Por esse caminho, a performance resistiria à
fetichização do original. Uma vez que Preciado (2014) já ensinara que para haver original é
preciso haver cópia – sendo que primeiro nasce a cópia, depois o original –, não existe uma
performance original, pois ela não pode ser copiada. A efemeridade e incapturabilidade geram
impasses não apenas à documentação e arquivamento, como também à transmissão e
circulação.
Quando a coreógrafa estadunidense Martha Graham morreu, em 1991, seu herdeiro
declarou que a dança da artista era sua propriedade (como se fosse um objeto) e não poderia
ser ensinada nem encenada. De modo semelhante, ainda que com outros propósitos, a
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) tenta
salvaguardar, através de suas políticas de conservação de patrimônio imaterial, a
intangibilidade de danças, rituais, costumes e músicas (TAYLOR, 2012).
Todavia, conforme aprendemos, nem a performance nem os estudos sobre ela são
estáveis e disciplinados. Emaranhada aos contextos nos quais é tecida, a tapeçaria da
performance ganha novas tramas no pós-massivo da contemporaneidade. Se, pela
perspectiva exposta até aqui, a performance é desaparição, do que se constitui o legado de
um performer? É possível haver um legado artístico de efemeridades, desaparições,
intangibilidades? Como preservar e dar continuidade ao efêmero? Pois de Março a Maio de
2010, houve um grande experimento sintomático dessa questão, que passou a atravessar a
carreira daqueles que ajudaram a colocar em curso as performing arts: a retrospectiva The
Artist is Present, da performer sérvia Marina Abramovic (1946-). Se outrora a artista declarara
que performance não se repete, na retrospectiva de sua carreira no Museu de Arte Moderna
de Nova York (MoMA), nos Estados Unidos, ela acabou por introduzir um termo
ferrenhamente criticado por Taylor (2012), “reperformance”. Além de um modo de pensar
sobre preservação e continuidade da performance, a ocasião apontou para a reativação e a
proteção de um legado artístico nos moldes daquilo que havia sido diretamente atacado
quando os performers tiraram a arte dos museus, reintroduzindo-a no lugar de onde fugiu: “a
102
performance regressou ao museu, já não mais como intervenção radical, e sim como uma
forma de arte totalmente integrada e legitimada pelas instituições culturais” (TAYLOR, 2012,
p. 147, tradução minha81).
A crítica de Taylor (2012) não é à reflexão sobre preservação e continuidade, mas ao
modo como isso ocorreu. De acordo com a autora, houve mais do que uma “mumificação” da
performance, houve uma “MoMAficação”. A tentativa de “reperformances” é execrada pela
autora, uma vez que, segundo ela, trata-se de um contrassenso. O problema não seria realizar
uma performance do mesmo modo que já ocorrera, pois, conforme já exposto, cada uma é
única por si só. Mas o prefixo “re” é uma heresia: indica repetição, uma dimensão mimética
(que acompanha o prefixo em outras situações, como na reprodução e na representação) e a
restauração de um suposto original. “Esta retrospectiva de Abramovic, como todas, é
conservadora, é olhar para trás, conservar o que foi, não o que virá”, critica Taylor (2013, p.
147, tradução minha82).
Mas, atenção: preservar uma performance não é o mesmo que a reproduzir. Algumas,
realmente, são efêmeras e desaparecem, como em alguns casos das performing arts, todavia,
mesmo esse rótulo – performing arts – não é sólido, sendo composto por diversas práticas.
Algumas “performances híbridas” (TAYLOR, 2012) combinam materiais como fotografias e
vídeos em sua execução; performers resgatam registros de performances pregressas para
comporem uma nova. Essas situações diferem-se da MoMAficação por serem continuações,
novas ativações, não reproduções. Há, ainda, performances que só são conhecidas pelos
registros de fotos e vídeos, como os trabalhos da cubana Ana Mendieta; outras constituídas
por materiais digitais que nunca tiveram originais em outros meios; e, ainda, as que
promovem interações entre os corpos de artistas e de hologramas. (TAYLOR, 2012).
Soma-se à discussão sobre o arquivamento um vetor contemporâneo impossível de
ignorar, a virada digital. Sendo a performance uma esponja viva, pulsante, devoradora do seu
entorno, ela não permaneceria alheia às transformações do contexto sociocultural pós-
massivo. Peggy Phelan (apud SCHECHNER, 2013) ressalta o que chama de “paradigma
eletrônico” como um evento epistêmico de tensão, pois os estudos da performance tratam-
se de um campo, segundo ela, erigido sobre aquilo que desaparece, o que não pode ser
81
No original: “El performance ha regresado al museo, ya no como intervención radical sino como una forma de
arte totalmente integrada y legitimizada por las instituciones culturales.”.
82
No original: “Esta retrospectiva de Abramovic, como todas, es conservadora, es decir, el propósito es ver hacia
atrás, conservar lo que há sido, no loque vendrá.”.
103
arquivado, mas que não está alheio à potencialidade do digital. No “mundo híbrido” da virada
digital, no qual é difícil distinguir o orgânico do eletrônico, há novos obstáculos, mas também
novos modos de performatizar subjetividades e consumir outras performances (TAYLOR,
2012; AMARAL; SOARES; POLIVANOV, 2018).
A fricção entre a efemeridade e as possibilidades de registro explicitam ainda que,
“embora o corpo ao vivo tenha sido o elemento central na performance desde que surge como
ato estético e político nos anos 60, não se pode fetichizá-lo ao ponto de fazer a performance
depender dele para sua existência e definição” (TAYLOR, 2012, p. 152, tradução minha83). Por
esse caminho, “performances digitais” (TAYLOR, 2012, p. 152), como as acionadas pelos
rastros digitais de HDP, não são menos performances por surgirem “nulodimensionais”84
(BAITELLO JUNIOR, 2010), desprovidas das dimensões espaciais da carne (altura, largura e
profundidade). E, uma vez que não são as performances ao vivo de HDP, mas que entendo
serem mais do que frios registros técnicos, tais rastros digitais produzem novas afetações e
transgressões, dando continuidade à performance Hija de Perra e, ao mesmo tempo,
desdobrando-se em novas performances, cujas especificidades serão exploradas à frente.
Performances digitais, como as constituídas pelos rastros de HDP e os exemplos
anteriores, sugerem que, diferentemente das primeiras performing arts do século passado, o
corpo de carne e osso do performer não precisa compartilhar do mesmo tempo e espaço dos
corpos da audiência para que se deem ativações e afetações político-estéticas. “A força e
presença do artista se faz sentir, ainda que a distância. O público tem que completar a
performance” (TAYLOR, 2012, p. 79, tradução minha85). As tecnologias pós-massivas
atravessam o circuito das performances e diversos sentidos de presença transgridem a
exigência de outrora do corpo encarnado. Como é próprio do campo, reconhecer isso é
adicionar novas camadas de complexidade aos estudos da performance.
De acordo com Amaral, Soares e Polivanov (2018, p. 70), essa perspectiva da
performance digital e das possibilidades de estudar qualquer performance a partir do arquivo
de registros midiáticos sugere duas naturezas de investigação:
83
No original: “Aunque el curpo en vivo ha sido el elemento central en el performance desde que surge como
acto estético y politico en los años ’60, no hay que fetichizarlo a tal grado que el performance depende de él
para su existência y definición.”.
84
A passagem da tridimensionalidade do mundo para a nulodimensinalidade será discutida no capítulo 3,
Devorar e ser devorado, do consumo à consumação.
85
No original: “La fuerza y presencia del artista se hace sentir, aun a distancia. El público tiene que completar el
performance.”.
104
O arquivo é cercado por mitos, entre os quais o de que ele não seria mediado, como
se seus objetos fossem neutros e possuíssem um significado inegável a ser revelado por
qualquer um que o analise; que ele não muda; e que não pode ser corrompido nem
manipulado. Todavia, apenas o fato de fazer parte de um arquivo já significa que o objeto
selecionado para tal foi manipulado, assim como interesses diversos podem fazer com que,
convenientemente, partes ou arquivos inteiros desapareçam ou (re)apareçam. O
conhecimento e a memória transmitidos pelo arquivo se dão pela documentação, composta
por registros diversos, físicos ou digitais, como fotografias, áudios, textos inteiros ou
fragmentados, resíduos, restos arqueológicos etc. Trata-se de uma memória que distingue o
conhecimento daquele que o conhece, pois pode ser acessada em diferentes distâncias
temporais e geográficas, desde que se tenha acesso ao material. Nesse sentido, o arquivo
excede o ao vivo (TAYLOR, 2012).
105
O repertório, por sua vez, é tão mediado quanto o arquivo, mas por outras dinâmicas.
Gestos, narrativas orais, movimentos e todos os atos supostamente impassíveis de serem
capturados e efêmeros compõem a “memória corporal” do repertório, pois é armazenada no
corpo dos envolvidos naquele ato, sejam participações ativas de execução ou passivas de
contemplação. Mas o armazenamento se dá pela mediação do corpo através de processos de
seleção, memorização, internalização e transmissão, o que faz com que o conhecimento e a
memória transmitidos entre os grupos e gerações passem por constantes reatualizações. Esse
arquivo exige a presença física, um estar no momento e fazer parte da produção e reprodução
do conhecimento sendo transmitido através da performance. Divergindo da suposta
estabilidade do arquivo, os atos de repertório são alterados pelos caminhos percorridos em
suas viagens. E se o arquivo excede o repertório em temporalidade e geografia, o repertório
excede o arquivo em sua incapturabilidade. O ao vivo é impassível ao armazenamento e à
transmissão senão pelo corpo, o que não significa dizer que o repertório desaparece 86
(TAYLOR, 2012).
Um pensamento complexo e avesso a dicotomias, na linha do que se encontra em
autores como Preciado (2014) e Rolnik (2006), Taylor (2012) sinaliza que a relação entre
arquivo e repertório não é de verdade versus falso, mediado em oposição a não mediado,
primitivo ou moderno, muito menos sequencial, como se o repertório pertencesse a
sociedades não alfabetizadas e o arquivo a sociedades letradas. Não se trata também de o
repertório pertencer a uma ordem contra-hegemônica, pois confronta a imposição do arquivo
pela escrita das sociedades modernas ocidentais, e o arquivo uma dominação hegemônica,
afinal, há práticas corporais que reforçam sistemas opressivos. Logo, repertório (memória
corporal, como chama a autora) e arquivo (memória documental, como poderíamos chamar)
86
Para Diana Taylor (2012), ignorar a transmissão de conhecimento por outras vias que não a de sistemas de
arquivamento, como a escrita, faz parte de um pensamento colonizador. Frades dos séculos XV e XVI
atestavam o desaparecimento dos povos indígenas das Américas por estes não possuírem sistemas de escrita.
Contudo, conforme a autora advoga, a organização por outro sistema que não o da escrita não significou o
desaparecimento dos povos, pois há outras possibilidades de transmissão de conhecimento e memória
negligenciadas e inferiorizadas pelo pensamento ocidental europeu. De acordo com ela, danças, músicas,
festas e rituais são possibilidades outras. “Nós no Ocidente, temos privilegiado a escrita a tal grau que somente
a palavra escrita teria, supostamente, poder legitimizante. Todo o resto ‘desaparece’ [segundo esse
pensamento ocidental colonizador].” (TAYLOR, 2012, p. 153, tradução minha). O controle social, ela
acrescenta, dá-se não apenas pelo controle dos corpos humanos, mas também pelo controle das artes de
representação, daquilo que pode ser visível. Destarte, para além da força militar, sistemas hegemônicos
também fazem uso de uma força persuasiva, performática e simbólica, tão importante quanto o poderio
militar. O cuidado com uma defesa cega à efemeridade de todo e qualquer tipo de performance, por essa
perspectiva, é passível de ser interpretada como uma contaminação colonial.
106
87
Em inglês, aftermath é um substantivo para se referir ao período e aos efeitos de um evento, geralmente
desagradável. O Cambridge Dictionary usa o seguinte exemplo: “Many more people died in the aftermath of
the explosion”. O dicionário on-line brasileiro Michaelis, por sua vez, traduz a palavra para “resultado”,
“consequências”. Por considerar que se tratam de termos que não dão conta de abarcar os sentidos
empregados por Schechner (2013) no âmbito da performance, decidi manter o uso original em inglês. Cf.
AFTERMATH. In: Cambridge Dictionary. [S. l]: Cambridge University Press, 2020. Disponível em:
https://dictionary.cambridge.org/dictionary/english/aftermath. Acesso em: 20 dez. 2019. AFTERMATH. In:
Michaelis. [S. l.]: Editora Melhoramentos, 2020. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-
ingles/busca/ingles-portugues-moderno/aftermath/. Acesso em: 20 dez. 2019.
88
No original: “The continuing life of a performing is its aftermath”.
89
No original: “Proto-performance: training, workshop, rehearsal; performance: warm-up, public performance,
eventos/contexts sustaining the public performance, cooldown; critical responses, archives, memories”.
107
90
No original: “[…] ‘archive’, an umbrella term that means what can be accessed by various performance-forensic
means. Archival materials may include videotapes, films, digital, and sound recordings, printed matter, props
or other artifacts – anything at all from or concerning the performance.”.
108
envolvidos em situações vivenciadas, como cartas, fotografias, desenhos ou o que quer que
ative uma memória e invoque uma performance de outrora.
Tal como Taylor (2012) já pontuara, o arquivo pode gerar novas performances e, como
acrescenta Schechner (2013, p. 249), fazer com que certos “eventos míticos” existam apenas
enquanto efeitos do aftermath. O autor pergunta como imaginamos a cidade de Atlanta, nos
EUA, durante a Guerra Civil de 1864 e como foi a última ceia de Jesus Cristo. As imagens
invocadas, provavelmente das chamas do filme E o Vento Levou (1940) e d’A Última Ceia, de
Leonardo da Vinci, não são os eventos em si nem os registros documentais deles, mas ícones
visuais que constituem a memória coletiva de tal modo que outras produções os utilizam
como fontes enquanto performances estabelecidas e reconhecidas. Por esse caminho, inclui-
se como efeitos de aftermath de uma performance a documentação autogerada (fotografias,
vídeos, gravações de áudios, anotações, folhetos etc.), o impacto que a performance tem no
trabalho e na vida de outras pessoas e as produções geradas a partir disso, como novas
performances, críticas, artigos acadêmicos, entre outras materialidades que discorram sobre
o que já foi.
Concordando com essa linha de pensamento traçada entre a performance em arquivo
de Taylor (2012) e o aftermath de Schechner (2013), Amaral, Soares e Polivanov (2018, p. 71,
grifo meu) alinhavam a costura defendendo que o motor da vida da performance – olin – está
sempre em atividade:
Ainda que certos atos performáticos e seus registros – como shows de música e
apresentações teatrais – possam trazer uma ideia de término ou conclusão dos
mesmos, eles não se encerram em si mesmos, causando afetações, reverberações e
reelaborações mesmo após seu suposto fim e que certamente se iniciam antes de
seu começo. O motor da vida, da performance, não cessa.
Esse posicionamento é afim aos interesses de investigação dos autores, afeitos aos
“atos performáticos arquivados”, ou seja, registros oficiais ou amadores em circulação nos
espaços digitais. Pesquisando de dentro do campo da Comunicação, eles sinalizam a
importância do digital nessa interface Performance-Comunicação, pois não só a cultura digital
viabiliza o acesso ao material em circulação tal como “a própria mediação tecnológica vai
causar afetações nos modos como certos sujeitos, inscritos em territórios geográficos
distintos e espaços online comuns, vão performatizar seus modos de fruição [...]” (AMARAL;
SOARES; POLIVANOV, 2018, p. 73).
109
contexto digital, não por acaso um vírus no computador é um ataque à máquina; por ser
contaminada por pedaços de performances anteriores que continuam infectando
performances vindouras e aqueles que as consomem em um processo de aftermath; e
também por se configurar, simbolicamente, como uma ameaça de infectar quem a consome
com a morte.
Em uma vertiginosa discussão sobre o interdito ligado à morte, o francês George
Bataille (1987) defende que o cadáver é um objeto angustiante e de ojeriza por ser uma
ameaça explícita ao ser humano, como se fosse capaz de contaminá-lo com a morte. Por isso,
a prática do sepultamento datada das primeiras coletividades humanas.
Isso poderia explicar algumas reações observadas em comentários nos vídeos – “Me
da miedo :v”91 (Usuário Gonzalo Cubillos) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013), “Gracias a Dios se
murió que asco” (Usuário María Vargas) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013), “Y al final muere de
SIDA que bien eso es selección natural” (Usuário TENAMAXTLI Peralta) (DISCURSO DE HIJA [...],
2013) –, pelos quais os autores expressam uma aversão à performance, querendo eles
mesmos sepultá-las, tirá-las do seu campo de visão.
Obviamente, esta é uma hipótese que opera na dimensão do pensamento simbólico,
pois poderíamos inferir pelo pensamento racional que tais comentários estão, em um
primeiro momento, relacionados aos efeitos de sentido da estética da abjeção acionada.
Contudo, Bataille (1987, p. 30) sinaliza “o horror do cadáver enquanto signo da violência e
ameaça de contágio”, o que não pode ser ignorado. Se a inumação, ele conta, desde os
primeiros tempos, tinha o objetivo de proteger o morto da voracidade dos animais, ao mesmo
tempo, ela protegia simbolicamente os que sepultavam do perigo de serem contaminados
pela violência à qual o morto sucumbiu – em última instância, a violência da morte como
devoração da vida. Assim, o sepultamento, nas sociedades domesticadas, é menos para
abrigar o morto do que para salvaguardar os que ficam do “perigo mágico” de serem
contaminados pela violência do morrer. A decomposição do cadáver expõe essa força temível
e agressiva, capaz de aniquilar a materialidade da carne, fazendo do cadáver em putrefação a
“imagem do destino” (BATAILLE, 1987, p. 31). Podemos não acreditar mais nessa “magia
91
Os comentários dos usuários serão transcritos tal como estão publicados, incluindo símbolos e possíveis erros
ortográficos e gramaticais.
111
contagiosa”, mas Bataille (1987, p. 31) pergunta provocativamente: “quem dentre nós poderia
dizer que, diante de um cadáver cheio de vermes, não empalideceria?”.
Conforme será discutido no próximo capítulo, as imagens também possuem essa
capacidade de confrontar o humano com o medo ontológico da finitude, logo, a performance
post mortem de Hija de Perra invoca a morte duplamente: ao ser constituída por
audiovisualidades (um duplo imortal de quem as cria) e por ela mesma acabar por se tornar
uma espécie de cadáver da performer. Não no sentido estático de corpo morto, mas de um
corpo dilatado, autônomo e em eterno processo de proliferação e putrefação digital que
acaba por fazê-la transgredir a morte.
Tal como os vermes comendo o cadáver, responsáveis por impingir a dimensão de vida
à morte, e sendo as audiovisualidades as materialidades que formam o corpo da performance
post mortem, seriam as reações afetuais a esse corpo, manifestadas através de likes, dislikes
e comentários nos vídeos, os vermes responsáveis por mantê-lo vivo? Nas audiovisualidades
de HDP, há comentários dos mais antigos, à data de upload dos vídeos, a alguns tão recentes
que datam dos momentos em que este texto toma forma. Ou seja, seis anos após sua morte
física, continua-se interagindo com tais audiovisualidades, sendo elas consumidas e motivos
de vinculações afetivas. Não apenas isso, também são feitos uploads contínuos (os últimos em
2019) de vídeos em sua homenagem e registros de apresentações.
Trataria-se, portanto, de uma vida que não se encerrou na morte, transgredindo-a? As
afetações provocadas pelas audiovisualidades de HDP são materializadas em likes, dislikes e
comentários92 de usuários que choram ou se regozijam com a morte do monstro, alimentando
a performance post mortem e impedindo-a de minguar e evanescer – “PERRA TE
AMOOOOOOOO AAAAAAAH!” (Usuário Ner0) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013); “Gracias a
Dios se murió que asco” (Usuário María Vargas) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013); “Por el pico
a las lacras que se alegran de que éste gran ser humano se haya muerto en esas condiciones.
BASTARDOS ASQUEROSOS... LOS QUEMARÍA VIVOS” (Usuário Tony Montana) (ENTREVISTA
HIJA DE [...], 2013). Não esqueçamos que os consumidores de uma performance são
fundamentais para que ela exista como tal (SCHECHNER, 2013).
Mantém-se, então, ativa a memória de Hija de Perra, sugerindo uma morte que não se
deixa ser morta, mas também não pode ser considerada viva. Uma ausência-viva? Uma
presença-morta? Uma proliferação-putrefação após a morte pela via da “dispersão viral das
redes” (BAUDRILLARD, 1998, p. 10). “Nada mais (nem mesmo Deus) desaparece pelo fim ou
pela morte mas por proliferação, contaminação, saturação e transparência, exaustão e
exterminação, por epidemia de simulação, transferência na existência segunda da simulação”,
descreve Baudrillard (1998, p. 10). Concordo com o “modo fractal de dispersão” que ele
diagnostica, mas o que as reações afetuais e os modos remixados e videoclipicizados de
elaborá-las sugerem, como descreverei na próxima seção da pesquisa-viagem, é uma linha de
fuga, uma possibilidade-outra de proliferação. Sim, ainda é fractal, de dispersão, mas,
paradoxalmente, os estilhaços não subtraem. O corpo da performance post mortem não
92
As informações sobre quantidades de likes, dislikes e comentários de cada uma das audiovisualidades que
compõem os rastros audiovisuais estão no mapeamento herético do rizoma, anexado a esta dissertação.
113
encrue, pelo contrário, se fortalece e segue se propagando em uma metástase digital, essa é
sua dinâmica de transgressão.
93
RIP Hija de Perra ha muerto! [S.l.: s.n], 2014. 1 vídeo (1m15s). Publicado pelo canal Christian Ortiz. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=IuCCSbV-7Qo. Acesso em: 12 set. 2019.
94
Hija de Perra – Asesina por naturaleza (video tributo). [S.l.: s.n.], 2013. 1 vídeo (1m56s). Publicado pelo canal
Adraviel Bada Boom. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OMLoxN4BvwU. Acesso em: 12 set.
2019. Intento Tributo Hija de Perra. [S.l.: s.n.], 2014. 1 vídeo (22m35s). Publicado pelo canal baito kurage.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3d39Jfmy2Vo. Acesso em: 12 set. 2019. Hija de Perra 18+
(Tributo). [S.l.: s.n.], 2015. 1 vídeo (4m49s). Publicado pelo canal ENAMORADO TV. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=SKiWxeq5C3o. Acesso em: 12 set. 2019.
95
Homenajeamos a Hija de Perra en el estúdio de Roxy Foxy. [S.l.: s.n.], 2018. 1 vídeo (49m09s). Publicado pelo
canal VIA X. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ud55HusWa-I. Acesso em: 12 set. 2019.
96
Hija de Perra in memoriam. [S.l.: s.n.], 2016. 1 vídeo (2m27s). Publicado pelo canal OFAN. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=EEssrusBCpM. Acesso em: 12 set. 2019.
97
Conmemoración “Hija de Perra” en Y Qué Pasó? [S.l.: s.n.], 2017. 1 vídeo (6m58s). Publicado pelo canal VIA X.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rDFAdjCvDsM. Acesso em: 12 set. 2019.
98
Odessa “Me desnudo” (Cover de Hija de Perra). [S.l.: s.n.], 2015. 1 vídeo (2m55s). Publicado pelo canal Lau
Molina. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=T0ZBgHm2PSA. Acesso em: 12 set. 2019. Ellas no
– Asesina por naturaleza [cover hija de perra] [FemFest 2016]. [S.l.: s.n.], 2016. 1 vídeo (2m25s). Publicado
pelo canal Sudamerican Rockers. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PaWd2E4NWgk. Acesso
em: 12 set. 2019. RICHARDBAKER. Nalgas con olor a caca (Hija de Perra cover). [S.l.: s.n.], 2018. 1 vídeo
(1m45s). Publicado pelo canal DiablaBarker. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=QEL4c0KuslE. Acesso em: 12 set. 2019.
99
HIJA DE PERRA | Makeup tutorial. [S.l.: s.n.], 2018. 1 vídeo (1m16s). Publicado pelo canal Erika con K. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=q1Oo8-iYbLk. Acesso em: 12 set. 2019.
114
que parece ser um episódio de um programa de uma emissora chilena dedicado a celebrá-
la100.
O que essas audiovisualidades autorais materializadas em resposta às afetações
provocadas pelas performances de HDP indicam é um modo de reagir audiovisualmente, no
qual performances em arquivo da artista são fragmentadas, destrinchadas e sobrepostas em
um processo de remixagem característico da cultura pós-massiva em que os usuários estão
inseridos. Sobre esse modo específico de produzir materialidades, André Lemos (2005, p. 3;
2) diz:
100
Homenajeamos a Hija de Perra en el estúdio de Roxy Foxy. [S.l.: s.n.], 2018. 1 vídeo (49m09s). Publicado pelo
canal VIA X. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ud55HusWa-I. Acesso em: 12 set. 2019.
101
Para uma discussão sobre práticas remixes, cf. SCUDELLER, Pedro de Assis Pereira. Curadoria remix: reflexões
sobre circulação e consumo de arte na 33ª Bienal de São Paulo. 2020. 213 f. Dissertação (Mestrado em
Comunicação e Práticas de Consumo) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo,
Escola Superior de Propaganda e Marketing, São Paulo, 2020.
115
Como é possível que a performance post mortem de Hija de Perra seja capaz de
despertar tantos afetos diversos, mesmo circunscrita ao digital? Seriam as telas realmente
portais, como sugerem Ana Taís Martins Portanova Barros e Michel de Oliveira Silva (2018)?
As reações audiovisuais discutidas anteriormente são apenas um desses modos de elaborar
os afetos abjetos por ela mobilizados. Outros usuários se contentam em externar a afetação
no espaço para comentários dos vídeos. Em uma deriva por eles, observo reações das mais
díspares entre si, de amor à sua existência e reverência a suas “críticas encarnadas” ao ódio
pelo seu existir (ainda que digitalmente, neste caso). Felicitações por sua morte pelo vírus do
HIV (“Y al final muere de SIDA que bien eso es selección natural”) orbitam entre lamentos por
sua desencarnação. Alguns se emocionam, sentem-se órfãos dessa mãe-monstra (“Estoy
impactada, acabo de conocerla y supe de su muerte... es impresionante el vacío que me dejó
saber que su esencia no sigue en esta sociedad que necesita su espíritu revolucionário [...]”),
querem revivê-la, trazê-la novamente à carne (“Si pudiese la reviveria”), continuam a sentir
falta de sua presença encarnada mesmo após anos de sua morte física (“Mañana ya son 5
años, Haces mucha falta”). Ainda que virtual, sua presença continua a assustar, provocar
“medo” (“Me da miedo”,) “asco” (“Gracias a Dios se murió que asco”), um ódio pelas
116
diferenças sexuais canalizado e direcionado a sua figura (“Yo no creo que los homosexuales se
amén de verdade... tal vez sea pasión sexual”).
Mais alguns comentários atestam as intensidades da reverberação ao ter contato
com a performance post mortem de Hija de Perra, para o bem e para o mal:
Soy de Guadalajara Mexico tengo 16 les puedo decir que a pesar de no haber
conocido a esta mujer fue un gran apoyo y lo seguirá siendo en mi vida... Gracias a
que se atrevió a romper con muchos tabus y originalidad, siempre estarás y ocuparas
espacio en mi vida y alma hija de Perra, gracias por ayudarme a defender mis ideales
y mandar al carajo a todos los que no les guste o rechacen. Te amo (Usuário DHP)
(CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012).
No en todas las dinastias conocemos a un ser como hija de perra que estes bien en
el cosmos porque ahora eres libre, vives en el corazon de mucha gente (Usuário
Tempered Soul) (CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012).
Nunca me sentí tan identificada con nadie como lo sentí con hija de perra uu (Usuário
Mei San) (CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012).
No sé si sea inteligencia extrema lo que la define, sino que piensa distinto, nada mas
(Usuário Sebastián Moya) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).
De modo muito próximo à crítica de Susan Sontag (1987), que escreve um livro
chamado Contra a interpretação, Gumbrecht (2010) também critica o método da
interpretação. Enquanto a autora aponta a prática na fruição da arte, o alemão expande a
crítica aos estudos ocidentais das Humanidades de modo geral, nos quais, segundo ele,
identificar e atribuir sentidos – ou seja, interpretar – é uma prática nuclear e protagonista. Ele
tem uma explicação interessante para o motivo dessa obsessão: “Se atribuirmos um sentido
a alguma coisa presente, isto é, se formarmos uma ideia do que essa coisa pode ser em relação
a nós mesmos, parece que atenuamos inevitavelmente o impacto dessa coisa sobre o nosso
corpo e os nossos sentidos” (GUMBRECHT, 2010, p. 14). Assim, ao interpretar, caminha-se
sempre em direção a um além-mundo, um lugar que está para além da fisicalidade da vida,
como se os sentidos metafísicos de um fenômeno fossem superiores à sua presença material.
Não é surpresa alguma a essa altura da pesquisa-viagem que esse modo de construir
conhecimento tenha se originado no cogito cartesiano imbricado no projeto da Modernidade,
quando se propaga uma vocação hermenêutica de escavar sentidos e de criar dicotomias
hierárquicas, como espírito e matéria, mente e corpo, profundidade e superfície, significado
e significante – um sendo sempre mais valorado do que o outro (GUMBRECHT, 2010).
É neste além-mundo metafísico que estariam os sentidos acessados apenas pelos que
detêm o poder da hermenêutica, capazes de ultrapassar a camada sedutora das formas das
materialidades e acessar os enigmas do conteúdo, um modo de se posicionar muito próximo
ao defendido por Immanuel Kant para realizar o julgamento estético, conforme visto
anteriormente com Leticia Alvarado (2018). No âmbito da arte, Sontag (1987) deixa nítido em
sua escrita afiada a ironia do crítico de arte que se julga capaz de acessar os “céus da
transcendência” e as “brumas da essência” (ROLNIK, 2006, p. 66): “A tarefa da interpretação
é praticamente uma tarefa de tradução. O intérprete diz: ‘Olhe, você não percebe que X em
realidade é – ou significa em realidade – A? Que Y é em realidade B? Que Z é de fato C?’”
(SONTAG, 1987, p. 14).
Gumbrecht (2010) não é tão contrário à interpretação quanto a autora, para quem
interpretar é empobrecer o mundo e hipertrofiá-lo fantasmagoricamente de significados102.
Pelo contrário, ele atesta que interpretar, dar sentido às coisas, é parte fundamental da
102
“Interpretar é empobrecer, esvaziar o mundo – para erguer, edificar um mundo fantasmagórico de
‘significados’. [...] O mundo, nosso mundo, já está suficientemente exaurido, empobrecido.” (SONTAG, 1987,
p. 16).
118
Presença refere-se, em primeiro lugar, às coisas [res extensae] que, estando à nossa
frente, ocupam espaço, são tangíveis aos nossos corpos e não são apreensíveis,
exclusiva e necessariamente, por uma relação de sentido. Uma ária de Mozart, o
golpe do boxeador, um quadro de Edward Hopper, o passe do quarterback, a
“pedalada” de Robinho são, não à toa, fenômenos privilegiados para uma análise da
presença, daquilo que podemos experimentar, primordialmente, fora da linguagem.
balizadas pela arquitetura do YouTube com seus botões de like, dislike e espaço para
comentários, seja através de um dispêndio de energia maior, na construção de outras
materialidades que venham a expandir a própria performance post mortem – os vídeos
autorais de homenagens.
Outros, como eu, tentam elaborar sua afetação em uma pesquisa de mestrado,
materializar os efeitos de sua presença post mortem em uma dissertação. Nesta seção, vali-
me das reações de outros para cartografar tais efeitos. Pois peço tanto ainda de fôlego da(o)
leitora para nos determos um pouco mais neste ponto da pesquisa-viagem, a fim de
compartilhar os efeitos da presença de HDP em mim e as associações feitas para nomear o
que me faz sentir o consumo da experiência estética que ela oferece.
103
Detalhes sobre os efeitos de sentido da estética de Hija de Perra são apontados no capítulo 3, Devorar e ser
devorado, do consumo à consumação.
121
104
“[A] pombagira gargalha, canta, xinga, usa vocabulário chulo, às vezes vulgar, quebra todas as barreiras, os
tabus, expressa aquilo que não se ousa expressar, dança e gira para tirar o corpo da imobilidade, incita ao
movimento e à ação. Nesse sentido, ela pode ser considerada como um tipo dionisíaco do feminino. Gosta de
zombar, debochar, rir de tudo aquilo que as civilidades impõem como limitação aos homens e às mulheres.”
(DRAVET; OLIVEIRA, 2015, p. 55).
105
Expressão utilizadas em algumas práticas religiosas de matriz africana para se referir ao momento do cantar
para desincorporar. Cf. AMARAL, Rita; SILVA, Vagner Gonçalves da. Cantar para subir: um estudo antropológico
da música ritual do candomblé paulista. NAU - Núcleo de Antropologia Urbana da USP, [S.l: s.n.], 2009.
Disponível em:
http://www.espiritualidades.com.br/Artigos/A_autores/AMARAL_Rita_et_SILVA_Vagner_Gon%E7alves_tit_
Cantar_para_subir.pdf. Acesso em: 20 dez. 2019.
106
Referência à música Rito de Passá, de MC Tha. MC Tha – Rito de Passagem. [S.l.: s.n.], 2019. 1 vídeo (4m02s).
Publicado pelo canal MCTha. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PRAx8dgvPAo. Acesso em:
20 dez. 2019.
122
Como escreveu Rose de Melo Rocha (2009a, p. 268), “é a partir das imagens que
falamos de consumo”. Ou seja, o consumo a ser discutido aqui não é o de bens materiais, mas
o consumo em sua dimensão audiovisual e simbólica, ainda que materialidades e simbolismos
compartilhem de uma relação simbiótica (ROCHA, 2012). Essa perspectiva já foi trabalhada
por outros autores e não é uma novidade em si. A antropóloga Mary Douglas e o economista
Baron Isherwood (2006) foram pioneiros ao apresentar a dimensão simbólica do consumo.
Uma imagem eloquente disso é a etnografia de Abner Cohen, compartilhada pelos autores,
na qual se comenta as práticas de consumo das mulheres hauça107, em Ibadan, na Nigéria.
Mantidas em reclusão pelos homens hauça, elas possuíam restritas possibilidades de
participação no mercado de trabalho: poderiam ser prostitutas ou matronas respeitáveis. A
diferença era que as primeiras não conseguiam acumular tanta riqueza quanto as segundas.
Como o quarteirão hauça, nos anos 1960, era um centro comercial em ascensão com muitos
homens solteiros trabalhando, “a mulher casada podia abrir uma lucrativa indústria de
alimentos, cozinhando e vendendo comida. [...] Ela conduziria um negócio praticamente sem
despesas correntes, pois o marido pagava seu aluguel, a alimentava e a vestia” (DOUGLAS;
ISHERWOOD, 2006, p. 204).
Com uma clientela regular, elas conseguiam acumular bastante riqueza. Todavia,
eram proibidas de investir o dinheiro em qualquer outro negócio que não fosse o
fornecimento de comida, a fim de impedir que competissem com as atividades dos homens.
A despeito da quantidade de casas, joias e dinheiro, desenvolveu-se entre essas mulheres um
“padrão especial de consumo” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2006): investir em panelas
esmaltadas e coloridas da Checoslováquia. As peças eram símbolo da posição social e do
107
Os hauça são um grupo étnico, localizado na África. Para mais informações sobre esse povo, cf. SMITH,
Abdullahy. Considerações concernentes à formação dos Estados Huaçás. Afro-Asia, n. 13, 1980, p. 119-142.
123
sucesso, sendo medidas de hierarquização. Quanto maior o número de panelas, mais bem-
sucedida ela seria. Alvo de admiração na sociedade, essa mulher era procurada por jovens –
conhecidas ou estranhas – interessadas em trabalhar para a matrona, na esperança de serem
ajudadas e conseguirem bons casamentos. O tesouro construído era parcialmente dilapidado
quando uma dessas jovens casava e herdava parte da coleção.
Douglas e Isherwood (2006, p. 205) concluem:
Isso tudo soa maníaco, irracional, consumo títere. Mas o etnógrafo [Cohen] não cai
na armadilha de tratar a utilidade como inteiramente independente da capacidade
de ganhos. “Uma dona-de-casa atrairá e reterá mais jovens casadoiras entre suas
parentes quanto mais panelas acumular. Quanto mais velha for, mais estabelecida
como dona-de-casa e mais meninas atrai para seu serviço.”.
O excesso é esta força que supera o que quer que seja, venha de onde vier, de fora
ou de dentro do homem. O excesso é perpétuo devir. Nenhum discurso o contém,
nenhum saber o detém. Tal movimento responde por si e só se rende a si mesmo,
numa relação de forças em que a mais forte sempre supera a mais fraca. Se há um
limite para o excesso, existe sempre a possibilidade de um excesso ainda maior
poder suplantá-lo, e assim por diante. A cada ato excessivo supera-se um limite e ao
mesmo tempo se assinala outro, que via de regra é excedido depois (BORGES, 2014,
p. 12).
Sob o princípio do excesso, o indivíduo gera violência levando a razão a agir contra a
razão, mas fundando com isto todo o campo das experiências heterogêneas que se
caracterizam por um movimento de dispêndio de energia, desviada da atividade
produtiva. [...] O homem passa então a consumir, gastar, dilapidar suas reservas ao
invés de produzir e acumular. Do ponto de vista econômico, o gasto ou despesa,
déspense, é o efeito último que a potência do excesso provoca na esfera das relações
humanas por meio das quais se consomem seres e coisas num âmbito de morte e
ruína (BORGES, 2014, p. 15).
108
Cabe traçar um paralelo entre o “mundo homogêneo” de Bataille (1975) e o “campo do visível” de Rancière
(1996), do qual já nos valemos anteriormente. Em ambos, há uma tentativa de regular as práticas dos corpos
a fim de estabelecer atividades admissíveis e não-admissíveis.
127
improdutiva”. As palavras são estratégicas, ensina Suely Rolnik (2019), logo, cada um desses
termos ressaltam uma característica do mesmo movimento. Quando “transgressão”, aciona-
se automaticamente os interditos e sua superação. Já quando Borges (2014), explicando
Bataille, vale-se de “experiência heterogênea”, é a característica de oposição às práticas
reguladas do mundo homogêneo que se evidencia. E, quando “atividade improdutiva”, é sua
dimensão de inutilidade ao sistema produtivo que se destaca.
Ciente da importância de tais experiências na vida, chega-se até aqui sem, no entanto,
explicitá-las. O que, de fato, são tais atividades improdutivas, experiências heterogêneas ou,
ainda, transgressões? Ciro Marcondes Filho (2008, p. 209) as entende como “estados de
extremo possível”, “situações de êxtase, arrebatamento, delírio, encantamento”, mais
especificamente, as festas, orgias, sacrifícios, sexo não reprodutivo (erotismo, para Bataille),
guerras. Conforme sintetiza Borges (2012, p. 10), “tais ‘condutas soberanas’, na expressão do
autor [Bataille], dizem respeito a atividades que se caracterizam por um grande dispêndio de
energia, por isso mesmo denominadas ‘improdutivas’”.
As performances protagonizadas por Hija de Perra são fragmentos dessas atividades
soberanas de dispêndio. Elas não são funcionais ao capitalismo/modernidade, pois divergem
de seus valores e propõem o gozar em comunhão, com ela e com os demais presentes em
seus atos. Em seus rastros audiovisuais, o excesso é performado.
De volta a Bataille e à potência ontológica do excesso: ele é incontrolável porque
justamente o que o caracteriza é nossa subjugação ao seu poder, por isso, o caráter
“soberano” do excesso, do dispêndio. Como o vento midiático de Vilém Flusser, que invade a
tudo e a todos e do qual não podemos nos proteger na contemporaneidade (BAITELLO
JUNIOR, 2010), o excesso transgride qualquer interdito. E quando o faz, a lógica racional de
produzir e acumular é substituída pela do gastar e dilacerar, consumir até destruir.
A violência do excesso é tão grande a ponto de tentarmos controlá-lo com a razão, o
trabalho, as interdições, porque todas as atividades improdutivas acionadas por ele
direcionam o homem ao gasto mais luxuoso de todos, “no qual destruição, supressão e
sacrifício constituem uma despesa tão irreversível e radical [...] que já não podem ser
determinados como negatividade” – a morte, “o próprio princípio do excesso”, na qual gasta-
se a própria vida (MBEMBE, 2016, p. 126). Em última instância, pela ótica batailliana seguida,
o que o excesso quer é a exaustão até o ponto da consumação de si: “o indivíduo se consuma
em gozo íntimo e pura perda” (BORGES, 2014, p. 22). Tomo então “consumar” como a ação
128
Muito antes dos registros nas cavernas rochosas, as imagens nasceram nas cavernas
densas e obscuras dos sonhos, dos devaneios e da imaginação. Depois, foram paridas pelas
palavras que contavam da origem do mundo, das coisas e da vida, conforme a imaginação se
desenhava ao som das histórias. É na mente de quem imagina que está a nascente das
imagens endógenas: aquelas dos sonhos noturnos (imagens oníricas), diurnos (devaneios), a
imaginação, o pensamento. São imagens interiores, por vezes involuntárias, enigmáticas e
cifradas, portadoras de mensagens intrapessoais, que provocam o sonhador-pensador a
construir sistemas interpretativos com base em suas histórias pessoais, a encontrar
correspondências no mundo externo e a criar modos de compartilhá-las, comunicá-las
(BAITELLO JUNIOR, 2010; CONTRERA; BAITELLO JUNIOR, 2006).
109
O autor entende imagens em um sentido dilatado, independentemente da natureza da linguagem – acústica,
olfativa, gustativa, tátil, proprioceptiva, visual (BAITELLO JUNIOR, 2014) –, o que permite considerar os vídeos,
ou audiovisualidades, de HDP também como imagens.
130
110
Norval Baitello Junior (2010; 2014), compartilhando do pensamento de Hans Belting, também utiliza “imagens
mentais” para se referir às imagens produzidas na mente, mas os autores não são os únicos. Jacques Aumont
(1993, p. 118) define imagens mentais como “aquilo que, em nossos processos mentais, não pode ser imitado
por um computador que utiliza informação binária. A imagem mental não é portanto uma espécie de
‘fotografia’ interior da realidade, mas uma representação ‘codificada’ da realidade (mesmo que esse códigos
não sejam os do verbal).”.
131
elaborar e prosperar para nos tornarmos insaciáveis em nossa gula flusseriana pelas imagens.
Nosso mundo interno embolora, sem que consigamos encontrar a saída para o labirinto de
espelhos no qual entramos.
Essa saturação exógena e subnutrição endógena faz o homem do século XXI perder o
contato com o próprio mundo interior, carente de vínculos internos, pois sem tempo de
processar os choques externos outrora já denunciados por Benjamin (1987; 1989).
Diagnóstico semelhante tem Gustavo Castro e Silva (2007). Interessado pelo consumo
da linguagem e pela habilidade de contar histórias, ele entende que o excesso de imagens
exógenas – midiáticas, para permanecer em seus termos – ameaça a capacidade humana de
imaginar, criar e entrelaçar visões, uma pane em nosso “cinema mental”.
A esses efeitos colaterais, em outra reflexão, Baitello Junior (2014), desta vez sozinho,
se pergunta se ainda somos capazes de enxergar algo nesse ofuscamento das imagens, como
se nossos olhos estivessem inflamados por tanta poluição visual. Seu diagnóstico:
“Padecimento dos olhos”, doença provocada pela infecção do excesso de imagens.
Atrofiamento do olhar. Patologia do visível. Manifesta-se pelo ver sem enxergar. De acordo
com ele, o prognóstico não é otimista, já que países economicamente ricos estariam tendo
um aumento nas taxas de analfabetismo. Esse “neoanalfabetismo”, como chama, seria
resultado da primazia da visão no tempo acelerado da imagem técnica. Ele utiliza o jornal
132
alemão Bild como exemplo, no qual textos não ultrapassam dez linhas e as imagens
fotográficas e verbais construídas por manchetes sensacionalistas dão o tom. No Brasil, não
faltariam exemplos de similares, assim como o famigerado fenômeno das fake news também
aponta a incapacidade da pausa para a reflexão.
A infecção não ocorre pelo consumir imagens, pois isso é uma necessidade humana
(SILVA, 2007) e as imagens são condição para a sobrevivência psíquica: elas escoam e
alimentam o fluxo da produção imaginária, além de possibilitar sobrevivermos à nossa
insignificância humana (ROCHA, 2009a). O contágio se dá pelo excesso e o antídoto para a
doença dos olhos está na boca do oráculo de Delfos: “Nada em excesso. Tudo em sua justa
medida”111.
A sociedade gulosa por imagens está muito mais próxima dos romanos antigos do que
dos gregos e egípcios. Enquanto estes possuíam princípios moralistas que serviam de esteio
às práticas de consumir, medindo o homem pelo conhecimento, Augusto (27 a.C – 14 d.C)
criou uma lei para tentar controlar a quantidade de dinheiro gasta pelos romanos em jogos,
festas, bibliotecas, termas, funerais e até de joias autorizadas a serem usadas – atividades
improdutivas e de dispêndio pela ótica batailliana. Em contraste aos gregos e egípcios, posses
e bens eram as unidades de medida para os romanos. As sociedades medievais da Europa
Ocidental também tentaram frear o consumir associando-o ao demônio: “na luxúria o
consumo era o que saciava a carne; na preguiça era o que saciava o corpo; na gula era o que
alimentava os prazeres do estômago; na cobiça, o que saciava o desejo de mais e mais” (SILVA,
2007, p. 59).
A proposta de Silva (2007) não é demonizar o consumo, impor decretos oficiais como
tentou Augusto nem desenhar os interditos dos quais fala Bataille (1987). Está mais próxima
da bússola ética guiada pela vida de Rolnik (2006), vista no primeiro momento-capítulo desta
pesquisa-viagem, ao considerar a “justa medida” grega como unidade de mensuração do
comportamento do homem para com o grupo e para consigo.
Por isso, acredito que, em vez dos zumbis contemporâneos que falam Contrera e
Baitello Junior (2006), nos tornamos adictos. A fome pelas imagens se transformou em gula,
e o consumo se tornou adicção. Enquanto zumbis não podem mais voltar à vida, porque já
cruzaram o interdito da morte, a condição de adictos abre brechas para uma recuperação.
111
A frase estaria escrita no frontão do templo de Apolo, em Delfos (SILVA, 2007).
133
Pedro Luiz Ribeiro de Santi (2011), aproximando os estudos sociológicos do consumo aos da
psicanálise, aponta que o consumir gera satisfação de um desejo, enquanto a adicção provoca
alívio. Na era da reprodutibilidade técnica – pensemos com Benjamin (1987) –, consumir
imagens se tornou uma obsessão, palavra esta do latim obsessus, que indica “importunado,
atormentado” (CUNHA, 2010). Imagem, do latim imago (BAITELLO JUNIOR, 2014). A adicção
contemporânea é esta: obsessus imago.
Embora, particularmente, concorde com a proposta de Silva (2007) da “justa medida”
grega e com a importância de encontrarmos meios de trazermos de volta à vida nossa
produção endógena como possibilidades de aliviar a obsessus imago contemporânea, Hija de
Perra, entidade de força presente, gargalha das sugestões de comedimento. A monstra é a
“encarnação do excesso”, psicografa Daniela Cápona (2014). Não quer resistir à reificação
visual e abre mão de suas dimensões tridimensionais voluntariamente para habitar a
nulodimensionalidade das imagens técnicas. Escolhe ser filmada, gravada, arquivada. Ora
ciente de estar sendo devorada pela goela flusseriana, quando está em videoclipes, longa-
metragem, sendo entrevistada ou entrevistando, ou seja, consciente de que está sendo
filmada ou tendo sua fala transformada em escrita para um texto; ora independentemente de
sua vontade, quando suas performances são registradas amadoramente e escritos são
produzidos sobre os efeitos de sua presença. Escolhe ser embalsamada em vida. Uma vida
que, como sugere a ontologia das imagens, se desdobra após a morte. Sua performance post
mortem acontece, então, pela reificação visual, ao ser arquivada e transformada em imagem.
Ela sabe que uma vez imortalizada em imago, sua existência in effigie continuará explodindo
em excessos e, mais do que isso, seguirá em um eterno gozar junto.
Ela olha para a câmera, respira dramaticamente fundo, desliza para a ponta do
assento e responde, encarando a câmera, em um tom de voz pausado como quem explica
algo a uma criança: “O que sou é mais do que cotidiano”, responde Hija de Perra à inútil
pergunta do repórter sobre “o que significa Hija de Perra” já que “foge da cotidianidade dos
vídeos acessados no YouTube”. A câmera-olho se aproxima, lambe, cresce o rosto do monstro
na tela e torna o vidente mais próximo. HDP responde à pergunta do repórter à câmera, com
pausas dramáticas e olhares teatrais para fora do quadro. Seu rosto de ossatura grande,
134
dilatado pelas sobrancelhas negras reluzentes, está tão próximo daquele que a assiste que sua
boca lasciva, pintada de um vermelho queimado, está pronta para o beijo que W. J. T. Mitchell
(2009) diz as imagens desejarem. Um ósculo imagético consentido, tão perigoso, violento e
agressivo quanto afetuoso, no qual se engole sem matar (MITCHELL, 2009). Humanos e
imagens se cruzam em um sexo antropofágico em que o gozo se dá quando incorporam uns
aos outros pelo olhar. “Comer pelos olhos” adquire sentido tão antropofágico quanto sexual.
As pálpebras são semelhantes aos lábios, lábios abertos sobre uma boca pela qual
sai a pupila umedecida. Por isso também as lágrimas são semelhantes ao esperma:
porque ambos saem do olho. Quando as pálpebras se fecham, dispara a imaginação
(CANEVACCI, 2008, p. 264).
Não por acaso, Massimo Canevacci (2008, p. 264) descreve as imagens como
portadoras de uma erótica própria, “eróptica”, e os olhos como órgãos receptivos aos seus
“fetichismos visuais”. Sua escrita é tão libidinosa quanto as imagens que analisa, em uma orgia
semântica que remete a Bataille (2003) em História do Olho, referenciado em diversas
passagens do texto luxurioso.
A eróptica busca ultrapassar este dualismo orgânico e o fetiche é a coisa para odorar
com os olhos tanto quanto para olhar com a boca ou para tatear com o nariz. O
fetiche é polissensorial. Por estas promessas, a mutação visual do fetichismo impele
o olho – junto com os outros múltiplos sentidos – a refinar-se em eróptica. [...]
Eróptica: abre novamente o olho – o dilata semelhantemente à boca – cujos lábios-
pálpebras se abrem sobre uma língua-íris. A sua pupila é língua. Tateia e saboreia
visões, as deglute corroendo-as com a saliva. Saliva de lágrimas que dissolvem
imagens (CANEVACCI, 2008, p. 263).
Ora Hija de Perra performa o sexo em frente à câmera, que a captura “transando”
com seu público em shows e com outros performers com quem compartilha a cena112,
sugerindo quase um registro de pornô amador, ora transa com a própria câmera e,
consequentemente, com o vidente que se entrega a essa cópula imagética. Mas, cuidado,
vidente-leitor: o pecado das bruxas e feiticeiras era copular com o demônio (BESSA, 2016).
112
O uso das aspas é porque todos os rastros com os quais tive contato indicam que Hija de Perra performava
cenas de sexo e masturbação de modo paródico, escrachado, e não explícito, como é o caso de outros artistas
que trabalham com questões de sexo, sexualidade e gênero. Também penso as apresentações musicais de
HDP, quando ela apresentava suas músicas de conteúdo sexual, como um ato sexual com o público presente.
Seus movimentos simulatórios nos palcos sugerem um contrato contrassexual, nos moldes de Preciado (2014),
entre artista e público, quando do consentimento de compartilharem do mesmo tempo-espaço, coproduzirem
a performance e gozarem juntos.
135
Nos vídeos de suas apresentações em casas noturnas, são frequentes as simulações de sexo e
masturbação. O convite da besta está feito.
Com uniforme de enfermeira, canta Me desnudo (HIJA DE PERRA [...], 2009), na casa
noturna Pagano, em Valparaíso, em 31 de janeiro de 2009113 (Fig. 7). Aponta incisivamente
para o público, rebola até o chão, esfrega seus peitos de silicone que escapam pelo decote do
uniforme e masturba a vagina protética, igualmente escondida-exposta pelo cumprimento da
roupa. Gritos do público são ouvidos quando ela tira o uniforme em um strip-tease
escrachado, rodando a peça sobre a cabeça e revelando um figurino com recortes estratégicos
no tecido para expor as próteses. O microfone fálico segue tão próximo da boca cantante e
escancarada que aciona a imagem de um pênis eletrônico, um tecnopênis.
113
De acordo consta nas informações do rastro audiovisual.
136
Fonte: YouTube.
Fonte: YouTube.
Quando perguntei o que lhe lembrava a palavra urinar, ela me respondeu burilar, os
olhos, com uma navalha, algo vermelho, o sol. E o ovo? Um olho de vaca, devido à
cor da cabeça, aliás, a clara do ovo era o branco do olho, e a gema, a pupila. A forma
do olho na sua opinião, era a do ovo. Pediu-me que, quando saísse, fossemos
quebrar ovos no ar, sob o sol, com tiros de revólver. Parecia-me impossível, mas ela
insistiu com argumentos divertidos. Jogava alegremente com as palavras, ora
dizendo quebrar um olho, ora furar um ovo, desenvolvendo raciocínios
insustentáveis (BATAILLE, 2003, p. 56).
Nunca tinha visto testículos de touro sem pele. [...] Nada me levava a associar, até
então, esses testículos [de touro sem pele] com o olho e o ovo. Meu amigo mostrou-
me que estava errado. Abrimos um tratado de anatomia, onde verifiquei que os
testículos dos animais e dos homens são de forma ovoide e que têm o aspecto e a
cor do globo ocular (BATAILLE, 2003, p. 96-97).
criando vínculos com as imagens endógenas; e passiva quando as imagens nos olham ou,
parafraseando Mitchell (2009), retribuem nosso beijo.
O poético beijo do autor, contudo, não é a única coisa que as imagens querem de
nós. “São elas, as imagens, com sua alma irônica, que estão a nos olhar”, pensa Rocha (2010),
e, se padecemos de obsessus imago, também elas estão adictas: “Nós somos seu vício e elas
o nosso destino fatal”.
3.5 Da consumação
Portais sedutores, convites para outro mundo, abrigos para uma morada eterna.
Fazem gozar pelos olhos, um último orgasmo antes de te transformarem em imago. O colorido
sedutor excita o olhar, intumesce as pálpebras, acaricia a íris. Famintas, querem gozar junto.
Mas quando da petite mort do orgasmo das imagens, nem sempre se retorna à vida. O beijo
molhado de tinta começa pelos pés. Sobe sem que se perceba pelas pernas quentes de um
corpo vivo. A princípio, com delicadeza, sem que a pele perceba estar sendo beijada. Mas,
como no sexo, a excitação das imagens também cresce. Depois de passada pela altura do sexo,
não conseguem mais se controlar e a velocidade aumenta. Tentar impedir a consumação, a
essa altura, é inevitável, e o tesão icônico consome a carne do corpo e o artifício da máquina.
Qualquer suporte – carnal ou tecnológico – é passagem para a descompressão. O último lugar
a ser beijado é onde tudo começou. Pelos olhos, o êxtase acontece, a consumação se
concretiza (Fig. 9).
A narrativa é uma descrição delirante de uma cena do eróptico filme Velvet Buzzsaw
(2019), do estadunidense Dan Gilroy. Ambientado em um sexy e competitivo universo das
galerias e museus de arte, o roteiro é sobre a apropriação por um crítico e duas galeristas das
obras um pintor falecido que, antes de morrer, deixou instruções para que todo seu acervo
fosse destruído. Acionando uma discussão sobre o duplo das imagens, a imortalidade através
delas, sua dimensão mágica e o consumo que se transforma em consumação, assistimos ao
magnetismo das imagens do pintor falecido sobre aqueles que as miram.
139
Fonte: Netflix.
Magnetizados pela força expressiva e pelos olhares retratados nas pinturas, eles fazem
conluios para valorizar as peças, que são rapidamente aclamadas no circuito de arte. Olhares
representados em fotos ou em pinturas estão espalhados por diversas cenas do filme, que se
passa em Los Angeles, uma metrópole como a de Canevacci (2008), que devolve o olhar de
141
quem a mira. Os personagens estão sendo observados a todo o tempo, como na teoria
lacaniana que defende um olhar onividente exterior ao sujeito e, por isso mesmo, contribui
na sua constituição enquanto um.
Diversas mortes acontecem na história, com personagens que se aproximam demais
da mirada sedutora e lasciva das imagens do pintor que criava as sombras e os tons de
vermelho escuro com sangue. As imagens de Velvet Buzzsaw estão mais próximas da icônica
cena de Poltergeist (1982) do que da boca na tela da televisão citada por Mitchell (2009) em
Videodrome (1983). No clímax do filme, de onde se extraiu a descrição que abre esta seção,
Josephina, a galerista que se apropria inadvertidamente das pinturas do pintor morto, é
consumida pelo grafite em um muro da cidade, uma metrópole que, tal como as imagens, não
satisfaz mais seu apetite em apenas devolver o olhar e passa a incorporar aqueles que a
miram.
“Queremos assimilar a imagem a nossos corpos, e elas querem assimilar-nos aos
delas”, diz Mitchell (2009, p. 4). Se, concordando com Baitello Junior (2010), as imagens da
contemporaneidade fugiram do espaço e são caracterizadas pela imaterialidade, tornando-se
espíritos errantes e nômades sem corpos, penso que, talvez, elas precisem dos corpos
humanos para animá-las, trazê-las à vida e, em uma visada xamânica, possuir nossos corpos
para circularem pelo mundo. Rocha (2010) já denunciou a adicção das imagens pelo nosso
olhar. É possível, então, compreender a transposição da imagem do suporte midiático para a
mente como uma possessão? Em Velvet Buzzsaw, as imagens estão desenfreadas em sua gula.
Beijar não lhes satisfaz, é preciso possuir, in-corporar a humanidade.
A despeito do surrealismo do filme e dos delírios teóricos que ele suscita, é inegável
que as imagens constituem um universo autômato na contemporaneidade, cuja força e
sedução ecoam a profecia de Mary Shelley da criatura que se volta contra seu criador. Há
muito tempo as imagens se tornaram independentes do mundo da vida e das coisas e
impuseram seu domínio (BAITELLO JUNIOR, 2014; ROCHA, 2010), fundando seu mundo
próprio e convidando-nos incisivamente a nos transferirmos para lá e cultuá-las em seus
simbolismos e luminosidades. Portadores de uma “cegueira para o apocalipse” (BAITELLO
JUNIOR, 2014, p. 33), somos seduzidos por promessas de bem-estar, otimismo, heroísmo,
invencibilidade e imortalidade das imagens. Mas para adentrar pelos portões de Hades114, é
114
Na mitologia grega, Hades é o deus dos mundos subterrâneos e o nome do lugar para onde as almas vão após
a morte para serem julgadas por esse deus. “O deus Hades inspirava medo e era considerado austero,
142
preciso abandonar o próprio corpo. Precisamos deixá-lo para trás em prol de uma existência
em imagem, in effigie.
Paula Sibilia (2004) materializa a discussão ao investigar o “pavor da carne” na
contemporaneidade, quando técnicas e estratégias de estilização corporal são empregadas
para expurgar tudo aquilo que denuncie a humanidade do corpo – suor, gordura, viscosidades.
O objetivo final das “práticas bio-ascéticas” dos regimes alimentares, cirurgias plásticas e
exercícios físicos – que têm como unidades de medida e valoração dor, tempo e dinheiro – é
a construção de um “corpo-imagem”, disponibilizado para o consumo exclusivamente visual.
Consumo escópico, eu diria. Nessa cosmologia descrita pela autora, cozinhamos a nós
mesmos para o banquete final: quando as imagens, como Dan Gilroy delira em seu filme,
devoram a (nossa) humanidade (BATEILLO JUNIOR, 2014). Tal como a consumação pelo
excesso, quando em seu extremo mortífero, as imagens são capazes de devorar a nós mesmos
e o beijo delas se torna o beijo da morte.
Esse processo é a iconofagia de Baitello Junior (2010; 2014), quando as imagens
passam a orientar nossos sentimentos e percepções, ou seja, devorar nossa humanidade. Na
era digital, trata-se de uma condição inexorável, da qual não se pode escapar. Assim, devorar
ou ser devorado por imagens não são opções a serem escolhidas, mas condição simultânea
do habitar o mundo contemporâneo (ARRIAGA FLÓREZ, 2014), no qual o excesso se tornou
cotidiano e avançou para todos os espaços (BAITELLO JUNIOR, 2014).
Tal perspectiva pode soar delirante, visto que estamos acostumados “ao excesso de
imagens e à visualidade exuberante que caracterizou progressivamente o desenrolar do
século XX, moldado que foi pelas máquinas de reprodução, de conservação, de projeção e de
transmissão [...]” (BAITELLO JUNIOR, 2010, p. 81). Não obstante, o autor entende que os
modos de habitar e se relacionar, consigo e com o mundo, são muito diferentes entre a
sociedade que produzia manualmente suas imagens – entalhadas, esculpidas, pigmentadas
lentamente – e a que pariu as máquinas reprodutoras de imagem. Essa proliferação disputa
impiedoso, insensível, intimidativo e distante. O Hades, lugar dos mortos, era o local para onde todos os
mortos, bons ou maus, eram guiados por Hermes a fim de serem julgados pelo deus Hades. Era dividido em
dois espaços: o Tártaro, personificado por um dos deuses primordiais, nascidos de Caos e de Gaia, que geraram
as mais terríveis imagens da mitologia grega, e era uma região de nevoeiros e de árvores sombrias, repleto de
cavernas e grutas profundas onde as almas condenadas, ficavam aprisionadas; e, os Campos Elíseos (Ilha dos
Bem Aventurados) rodeado por paisagens verdes e floridas, onde iam os heróis e homens virtuosos.”
(QUINTILIANO, 2009, p. 3). Cf. QUINTILIANO, Angela Maria Lucas. De Hades ao Diabo: uma reflexão sobre os
significados das imagens no imaginário pós-moderno da figura do Diabo. Revista Brasileira de História das
Religiões, ano 1, n. 3, 2009.
143
espaço no mundo assim como o olhar e o tempo de vida dedicado a consumir e se transformar
em imagens, conforme exemplifica a análise crítica de Sibilia (2004).
A iconofagia serve tanto para quando os humanos devoram as imagens, como para
quando as imagens devoram os humanos e surge de uma leitura de Baitello Junior (2010;
2014) sobre Vilém Flusser e Oswald de Andrade. Deste último, ele se apropria do conceito de
antropofagia, uma proposta de devorar a cultura europeia em vez de imitá-la, com um sentido
construtivo e criativo. E, de Flusser, ele se vale da “escada da abstração”, onde a cada degrau
que se desce, perde-se uma dimensão do mundo, como em direção a uma “goela que faz
sumir tudo em suas entranhas” (BAITELLO JUNIOR, 2010, p. 22).
Esse descenso descrito não é uma imagem de devoração, e sim de ser devorado. Uma
queda no vazio vertiginosa muito semelhante ao efeito dos movimentos errantes das
audiovisualidades de HDP. Atraído por sua eróptica, tem sido sufocante o caminho desta
pesquisa-viagem. O mapeamento herético do rizoma, realizado ainda no primeiro ano do
mestrado, já expusera a quantidade exasperante de materialidades comunicacionais
orbitando o universo nulodimensional da internet. Não importa o tamanho da gula por
imagens, não é possível abocanhar todas as suas audiovisualidades. Lembremos: são 68
rastros audiovisuais. Um excesso que não é só numérico. Para além do bombardeio
audiovisual, o excesso se manifesta no interior das audiovisualidades. Elas carregam uma
profusão que satura os olhos e faz padecer115. E dado que é uma característica do ambiente
115
Sobre eles, os excessos internos, discorrerei na próxima seção, Estilhaços do excesso: elementos para
construção de uma poética audiovisual.
144
116
O vídeo HIJA DE PERRA – Makeup tutorial, categorizado como Homenagem, no mapeamento herético do
rizoma, é um desses vídeos. O link para acessar o vídeo retorna com uma mensagem de vídeo indisponível.
Mas há outros também na mesma situação de desaparição. (in)Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=q1Oo8-iYbLk. Acesso em: 20 dez. 2019.
145
audiovisuais, sente-se uma presença que se constrói na órbita dos “imaginários do excesso e
da sedução do artifício” dos quais fala Rose de Melo Rocha (2018a). Leitora de Jean Baudrillard
e refletindo sobre os corpos das mulheres frutas da mídia – “hipermulheres” –, ela desenha
um cenário, já apontado pelo autor francês, no qual se perde o norte na espiral delirante do
consumo contemporâneo e se entrega à sedução dos artifícios. Todavia, ela é precisa ao
pontuar que se trata de um cenário de tensões e paradoxos. Enquanto há “decréscimo de
potência de subjetivação” (ROCHA, 2018a, p. 233) de um lado, como no caso das
hipermulheres observadas pela autora, há brechas pelas quais outros se valem dos mesmos
códigos para, em um rearranjo, resistirem. A bricolagem na performance de Hija de Perra é
um desses rearranjos que torna frívolo o sério e desorganiza as supostas fronteiras entre
natureza e artifício.
Vejamos alguns desses elementos considerados por mim como estilhaços da poética
audiovisual que Hija de Perra constrói em sua performance. Penso os estilhaços tensionando
essa característica fragmentária da pós-modernidade apontada por Baudrillard (1998) e as
mônadas benjaminianas. Estas são explicadas por Maria Inês Petrucci Rosa et al. (2011, p. 203-
204) como “centelhas de sentidos” experienciáveis não como partes de um todo, mas como
“partes-todo”: “as mônadas podem ser entendidas como pequenos fragmentos de histórias
que juntas exibem a capacidade de contar sobre um todo, muito embora esse todo possa
também ser contado por um de seus fragmentos”. Organizo essas “miniaturas de sentidos”
em uma constelação de imagens cujos efeitos ajudam a contar sobre o imundo mundo de Hija
de Perra.
117
Mountain Men era o nome dos caçadores de peles das Montanhas Rochosas, nos Estados Unidos, no século
XIX.
146
tentamos roubar a força e usar suas peles como mantos em um movimento como o do canibal
que também devora o inimigo buscando incorporar sua força. Em Hija de Perra, a estampa
animal adquire alguns sentidos próprios. Sendo ela mesma uma monstra, a estampa é sua
pele, reforçando a animalidade de sua abjeção e, talvez por isso, tão frequentemente
utilizada. No circuito da moda, ora evoca poder, sensualidade e extroversão, ora é sinal de
breguice, a depender da posição de quem usa no sistema de distinção. Como tudo em HDP,
não é um nem outro, mas os dois. A um só passo se conecta à hipersexualidade que ela
performa publicamente e a um certo aspecto de roupa barata, artificial. O cobertor de zebra
e o que parece ser um travesseiro de onça sobre o qual dorme, no início do curta-metragem
documental Perdida Hija de Perra (2012), tem efeito sinestésico. É quase possível sentir o
material barato pinicando a pele. Talvez porque pinique o olhar. Às vezes, a estampa está
mais discreta, como na blusa justa que usa como segunda pele, no discurso em Arica, ou nos
sapatos altos e refletivos funcionando como atratores estranhos em sua composição
sofisticada para dar palestra na universidade. Em outros momentos, mais frequentemente
quando está em situações de ápice de sua hipersexualidade, a estampa cresce no corpo. É o
que acontece no videoclipe de Indecencia Trance (HIJA DE PERRA [...], 2012c) e, mais
intensamente, quando a estampa lhe cobre quase todo o corpo na apresentação musical que
faz cantando Me desnudo (HIJA DE PERRA [...], 2009), no que parece ser uma casa noturna.
Neste rastro audiovisual, canta que se despirá para o interlocutor, porque é “caliente porque
si”. E quando o faz, sob o uniforme de enfermeira, não há nada, senão sua pele felina e seus
órgãos protéticos à mostra (Fig. 10).
Fonte: YouTube.
PERRA [...], 2012e; HIJA DE PERRA [...], 2009). No corpo das hipermulheres, a “opulência
corpórea” (ROCHA, 2018a, p. 249) é conquistada por próteses de silicone sob a pele, no de
HDP estão sobre. Hija de Perra está do avesso. No discurso das músicas, traz a viscosidade do
corpo para fora e canta os fluídos das doenças sexualmente transmissíveis e os odores da
matéria fecal. No discurso do corpo, inverte a lógica das roupas e as usa não para camuflar,
mas para expor. As narrativas do consumo e as representações midiáticas convocam à
hipertrofia dos corpos a ponto de que eles escapem das roupas e, ao mesmo tempo,
delimitam uma geografia ilhar, na qual mamilos e órgãos reprodutivos devem ser ocultados
em ilhas minúsculas de tecido e cercados por um oceano de pele a ser consumida pelo olhar.
A transgressão é uma característica da performance e HDP ignora os interditos, redesenhando
a geografia do seu corpo. Cobre o que se espera estar de fora e expõe o que deveria
permanecer privado. “Podemos ter um plástico que nos deleita como um genital real, que
maravilha. As pessoas amam plásticos. Podemos nos masturbar com plástico e sermos muito
felizes”, comemora no curta-metragem (CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012).
Nos paraísos artificiais da contemporaneidade, o embonecamento, fazer-se boneca
(calada ou, se falar, que se faça risível e disponível para consumo), é um imperativo às
hipermulheres (ROCHA, 2018a). Embora chilena, notemos que “boneca”, na cultura brasileira,
mais especificamente do circuito queer, se refere às travestis. Em sua etnografia com jovens
entre 15 e 21 anos que estão no início de processos de se tornar travesti, Marília dos Santos
Amaral (2012) aponta que “boneca” é um termo utilizado há décadas no Brasil para se referir
tanto a travestis experientes quanto iniciantes e tem sido empregado de modo afetuoso entre
elas, principalmente nas narrativas de si e entre si nas redes digitais. Há uma relação entre as
bonecas, a plasticidade dos corpos que “borram as margens de um esquema binarista e
heterocentrado” e a “construção plástica, quase irreal, pouco natural” de alguns deles
(AMARAL, 2012). O que pode ser mais “boneca” do que Hija de Perra com sua hipervagina e
hiper-seios? Não se narra mulher para ser hipermulher. Que seja, então, hipermonstra.
149
Fonte: YouTube.
150
Fonte: YouTube.
O dildo é o espelho de Alice pelo qual [Paul] Beatriz Preciado (2014) nos convida a
entrar. É também a categoria de análise a partir da qual propõe investigar a sexualidade, tal
como Karl Marx propôs ler a sociedade industrial a partir da mais-valia. O dildo, fisicamente
ou na forma de objetos fálicos, tem uma presença nas audiovisualidades de HDP, que faz dele,
deliberadamente, atrator estranho (Figs. 13 e 14). Trata-se de objeto universal, pois passível
de utilização em práticas sexuais independentemente de orientações sexuais e sem superfície
ou orifício predeterminado para uso. HDP mostra isso quando, ao escrutinar
voyeuristicamente sua casa, a câmera lambe um dildo quase kitsch decorando o parapeito de
sua janela (CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012). Para Preciado (2014), o dildo
não é um substituto artificial para o pênis, mas uma tecnologia criada para acessar o prazer
tanto quanto o pênis. Este passou de “órgão reprodutor” para “órgão sexual” por um processo
heterocentrado tecnológico que recorta e determina quais partes do corpo são admissíveis
para sentir prazer e transar. O mesmo processo também é responsável por definir
arbitrariamente que um órgão específico – no caso, o pênis – é o determinante da diferença
sexual e de gênero. Todavia, as tecnologias que criaram o dildo não previram sua traição. Ele
151
companheiras de cena, estão sempre restritas a toques e uso dos dildos ou objetos fálicos na
sua vagina protética ou na boca.
Fonte: YouTube.
Fonte: YouTube.
153
Fonte: YouTube.
Nossos já familiares Gilles Deleuze e Félix Guattari (1996) possuem uma complexa
discussão sobre Rosto e rostidade, na qual pensam sobre os processos de subjetivação e como
estes se dão em relação às possibilidades de um sistema que baliza os modos de existência no
mundo. Jorge Luiz Viesenteiner (2006) auxilia na compreensão ao explicar que o Rosto, para
os autores, é entendido como uma “máquina abstrata” que cria códigos e modos de existir
para, depois, inscrevê-los nos homens, dando-lhes um Rosto. Este Rosto não é o rosto
concreto, individual, até porque primeiro vem o Rosto, depois o rosto e, novamente, o Rosto.
Somos introduzidos em categorias que existem antes de nossa própria existência, de modo
que apenas nos encaixamos ao que já existe e, assim, em conjunto, continuamos a alimentar
unidades comuns que vão se somando até desembocarem no Rosto – um processo de
retroalimentação.
[...] é importante dizer que a produção social do Rosto não significa individualizar
cada rosto concreto em particular, ou seja, produzir o Rosto concreto de João, Maria,
José, etc. Ao contrário, segundo Deleuze os rostos concretos individuados se
produzem e se transformam numa grande unidade comum, construído através das
codificações que a cultura produz, até desembocar no grande Rosto. Assim, ao invés
de construirmos um rosto próprio somos metidos e gravados em um Rosto
produzido culturalmente (VIESENTEINER, 2006, p. 4).
rostidade. “Que horror!”, escreve um vidente que, aparentemente, se viu interpelado pela
monstra, “nem homem, nem mulher, nem mesmo cadela. Parece o diabo”118.
Em uma leitura empírica das audiovisualidades de HDP, observa-se a força de seu
rosto nas imagens. Há um preenchimento da tela em enquadramentos que dão protagonismo
ao seu rosto monstruoso, exagerado, em excesso. Aos traços fisionômicos que poderiam ser
considerados “excessivamente grandes” se comparados ao Rosto de Cristo de Deleuze e
Guattari (1996) – como os olhos, o nariz, a boca e as maçãs do rosto, além da “dureza” do
formato geométrico retangular – se sobrepõe uma “máscara-maquiagem” (COSTA, 2015) que
só faz exagerar o excesso da carne. Os lábios são pintados em tons de vermelho forte e, em
alguns closes, observa-se que a tinta excede as fronteiras da boca, tornando-a ainda maior. Os
olhos enegrecidos aprofundam o olhar da performer, tornando-os “buracos negros”
(DELEUZE; GUATTARI, 1996) nos quais se rasga a imposição das subjetividades impostas pela
rostidade, pela matriz colonial do poder e pelo binarismo ocidental – sistemas interligados e
que descrevem a mesma coisa, a formatação prêt-à-porter dos modos de existir no mundo.
Suas presilhas, quase sempre presentes, são como chifres. Mas nada é tão icônico quanto as
sobrancelhas bestiais. Exageradas, grossas, negras, transgridem a humanidade do rosto para
aproximá-lo da recorrente imagem do demônio no imaginário das representações visuais.
João Victor de Sousa Cavalcante (2019, p. 3) aponta que as vanguardas do século XX já haviam
se interessado pela dilaceração do corpo e, sob o operador conceitual “informe” de Bataille,
provoca: “quanto podemos decompor a figura humana para que esta permaneça ainda
humana?”. HDP pode não se dilacerar nos moldes do surrealismo, do expressionismo alemão,
do dadaísmo ou das imagens de rostos informes analisadas por Cavalcante (2019), mas
lembremos que a Bíblia atesta que Deus fez o homem à sua imagem e semelhança e, para
Deleuze e Guattari (1996), o Rosto é o de Cristo. Logo, profanar a imagem sacra do rosto é um
sacrilégio e as sobrancelhas de besta de HDP são elementos iconoclastas na estética que
constrói. Iconoclasta vem do latim, iconoclastes, derivado do grego eikonoklastes, e significa
“destruidor de imagens” (CUNHA, 2010). O que poderia ser mais iconoclasta do que destruir
a “mais perfeita imagem” de Deus, o corpo humano?
118
Comentário no vídeo da entrevista à revista Fill (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).
157
Há rostos por todos os lados, nos convidando, nos convocando, nos espionando e
calculadamente fingindo nos ignorar. [...] Nosso consumo desenfreado por feições
novas e frescas faz crescer de forma galopante uma constelação de faces que (num
movimento de uma ordinária prosopagnosia), rapidamente esqueceremos e
confundiremos com tantas outras.
e Marina Caminha (2019, p. 10) entendem que olhar diretamente para a câmera é um “recurso
narrativo que pressupõe um espectador que se deseja seja implicado tanto na provocação
[quanto] na conclamação existencial”.
HDP não se permite ser consumida passivamente e encara a câmera incisiva, falando
diretamente com o vidente. “Os rostos [...] quando nos encaram, nos convidam, mas também
nos flagram. Quando se voltam a objetiva que os capta, violam a natureza (que se presume)
oculta do voyeur. Mostram-se conscientes de sua exposição e essa transgressão ressignifica a
imagem” (REINALDO, 2012, p. 118).
O vidente dos vídeos, ainda que à sua revelia, é convocado pelo olhar a uma vinculação
eróptica, na qual HDP se expõe para consumo visual e satisfação da pulsão escópica ao mesmo
tempo em que demarca, figurativamente através do olhar para a câmera, a sua própria
vontade de gozar através da imagem. Um gozo que, dada a sua monstruosidade, é igualmente
profano e será consumado em meio à viscosidade dos fluídos que circulam pelo imaginário
que cria para si, alimentado pelas suas músicas sobre DST’s e escatologias (Fig. 16).
Fonte: YouTube.
Modos de presença
noturnas ou em videoclipes, conforme observa-se nos rastros audiovisuais Nalgas con olor a
caca e Indecencia Transe.
No cerne da subcultura punk está a bricolagem estética, artística e cultural (GUERRA,
2013), o que também está presente nas performances de Perra: na polifonia estética de suas
roupas e maquiagens, nas produções artísticas combinatórias de diferentes linguagens
(vídeos, fotos, performances, músicas etc.) e na pluralidade de temas que articula, conectando
escatologias e decolonialidades.
Alguns signos estereotipados da estética punk são identificados nos rastros
audiovisuais citados: peças de couro, rasgadas, acessórios com correntes e perucas com
penteados que expõem as laterais raspadas. Porém, Guerra (2013, p. 121) aponta que o punk
é mais do que signos visuais e gênero musical, “é uma atitude, uma ética, uma forma de estar
que ultrapassa fronteiras [...]”. A configuração punk comporta a lógica do-it-yourself (DIY); a
revolta e o protesto contra as lógicas de poder vigentes; o sentimento de pertença a um grupo
com valores compartilhados; o incentivo à produção cultural; o emprego de “saberes da rua”
(GUERRA, 2013).
O modo como Hija de Perra performa em seus shows articula os elementos
configuracionais punk. Ela se vale de signos visuais da subcultura punk, grita suas músicas –
literalmente, na apresentação de Nalgas con olor a caca (HIJA DE PERRA [...], 2012a) –,
mobiliza outros sujeitos com os quais compartilha desejos semelhantes – em Indecencia
Trance (HIJA DE PERRA [...], 2012c), goza a vida na companhia de outras figuras extravagantes
–, produz e faz circular sua própria arte se valendo das facilidades pós-massivas, e se mune de
saberes e afetos abjetos desconsiderados pelas correntes do mainstream, configurando um
modo de presença punk (Fig. 17), cuja força está na “capacidade de chocar, de desobedecer a
normas estabelecidas” (GUERRA, 2013, p. 123).
Fonte: YouTube.
161
se autoexorcizam com seus poderes mágicos para eliminar a estupidez e ignorância de suas
mentes inumanas?”. Logo à frente, ainda no mesmo discurso, conta ter passado por um
tratamento psicológico público de cinco anos de duração para curar sua “trágica doença da
homossexualidade”, quando, 14 anos antes a esse episódio, em 1973, a homossexualidade já
havia sido despatologizada pela comunidade científica internacional. “Esta terapia, como
podem ver, teve excelentes resultados em minha fantástica e divertida vida”, debocha.
Fonte: YouTube.
“Sou encantadora, sou tão amorosa”, reage HDP quando é descrita por um repórter
como “personagem superchocante” (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013). Ela o faz performando
uma inocência debochada: fala suave, olha para os lados perguntando a alguém que
acompanha a gravação, “sou encantadora, não?”, olha para a câmera com um sorriso
cúmplice com o vidente, mexe-se no assento, ajeitando os cabelos delicadamente. Essa
atitude comedida, ou encantadora para usar a maneira como narra a si, está presente nos
rastros audiovisuais que a registram sendo entrevistada, como na entrevista à revista Fill
(ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013), ou entrevistando, como em Sonidos Ardientes (HIJA DE
PERRA [...], 2012d) (Fig. 19). Uma diferença precisa ser pontuada entre os dois registros,
contudo. No primeiro, HDP se apresenta de modo contido e seus toques, quando existem,
estão direcionados ao próprio corpo. Já no segundo, ainda compartilhando certa delicadeza
como no primeiro registro, se coloca mais calorosa, talvez em virtude da natureza da gravação.
Antes era entrevistada em um espaço que parece uma livraria, por um veículo de comunicação
(Revista Fill) e, dadas as características da qualidade da gravação (enquadramentos, qualidade
163
los dialogos que tiene ... son como de un villano de comics hablando con un super
heroe tirado moribundo en el suelo :O! (Usuário M3lldryck) (CORTOMETRAJE
PERDIDA HIJA [...], 2012).
me encanta su voz jaja (Usuário asdfpink) (CORTOMETRAJE PERDIDA HIJA [...], 2012).
Genial ,,, no sabia de esto,, muy en la onda española post feminista ,rollo puti latex,,al
fin algo no en ese plan gay genérico ,super super, me encanta su tono neutro de
voz,,deo parao .Wena perra.Perra que va de moderna perra kiltra,besos (Usuário
Clemente Chúkaro) (CORTOMETRAJE PERDIDA HIJA [...], 2012).
lo que mas me gustaba de ella era su voz y su manera de vivir el dia y expresarlo y
taparle la voca a todos (Usuário francisca bustos) (CORTOMETRAJE PERDIDA HIJA
[...], 2012).
No sé por qué pero me gusta la forma en que habla la hija de perra (Usuário Hector
Santiago) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).
Me encanta su voz parece la voz de willy wonka en español latino (Usuário fabio
gustoso) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).
La Mujer de las 5 mil voces (Usuário Alex Gomez) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).
119
Sobre o comedimento do corpo intensificado no projeto de modernidade ocidental, Gabriela Reinaldo (2012,
p. 121) diz: “A partir do momento em que começa a se dissolver a hierarquia de sangue ligada à aristocracia
medieval, começa a se legitimar um novo tipo de linguagem corporal que está subjugada ao aprendizado de
boas maneiras (cf. Courtine e Haroche, 2007, p. 20, 21, 22 e 23). Bons modos e civilidade classificam os homens
e essa antropologia corporal o aparta da bestialidade. São selvagens aqueles que não seguem as regras dos
códigos de contenção corporal largamente difundidas pelas monarquias absolutistas.”.
164
Muy icónica y todo perfecto no me gusta como habla... Cómo enojada, retadora
(Usuário VIC VAC) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).
Uma vez que a reação dos usuários às performances de HDP ressaltam a voz como
mônada para os efeitos de presença da performer, a discussão de Jacques Rancière (1996)
sobre a distinção entre voz e palavra se mostra pertinente. O autor francês retoma Aristóteles,
no livro I da Política, quando este diz que logos, a palavra, é o signo distintivo político do
homem e dos outros animais. A voz (phone) é comum a todos, homens e animais, mas só os
primeiros são capazes de discursar, de elaborar e manifestar o útil e o prejudicial, o justo e o
injusto. O reconhecimento do som produzido pelo outro como discurso, contudo, não é
natural. Trata-se de uma operação arbitrária que reconhece a palavra de alguns e ignora a de
outros (RANCIÈRE, 1996). Quem não fala a linguagem do mundo homogêneo não é nem
reconhecido como ser falante, portador da habilidade de discursar. Suas demandas e
propostas – “Hoje preparei um discurso para abrir suas mentes, em especial aos que estão
longe desse grupo a minha volta” – não são ouvidas. Quando sua boca abre, ouve-se apenas
ruídos:
habla como una persona de 15 años, intenta ser intelectual (Usuário Andres
Maurenzi) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).
Lo unico que veo es a una persona hablando sobre cosas que cree que sabe pero no
sabe con un proposito sin sentido que no la lleva a ninguna parte. Entiendo que lo
que hace es una critica social, pero hay mejores formas de hacerlo que ser un esclavo
de la nueva izquierda. Buenas ideas aplicadas de formas absurdas. (Usuário kevyn
falconi zapata) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).
Muitos débeis calam e acatam as normas e obrigações [...], mas rejeitam os que não
se unem a ideologias antiquadas e perversas. Perdem seu pensamento próprio e
descansam sobre os pensamentos dos outros, deixando-se levar, sem se
conscientizar, que estes ideais só servem para fomentar a descriminação (DISCURSO
DE HIJA [...], 2013).
165
Fonte: YouTube.
Com acesso apenas a uma de suas aulas em universidades através dos rastros
audiovisuais (dividida em três vídeos, CLASE DE VENEREAS [...], 2013a; CLASE DE VENEREAS
[...], 2013b; CLASE DE VENEREAS [...], 2013c), as considerações que se faz sobre elas não
podem ser generalizadas, uma vez que não se tem acesso aos modos como ela apresentou
sua performance-vida em outras ocasiões nesses espaços acadêmicos. Entretanto, algumas
observações podem ser feitas.
Seu tom de voz e ritmo compartilham da suavidade e delicadeza sedutora encontrada
nos rastros das entrevistas. Ela fala olhando para os seus interlocutores, provocando-os,
166
fazendo perguntas, exigindo respostas, incitando risos. Nesse ambiente, é necessário pontuar
a combinação de elementos estéticos que resultam em um efeito “professoral” ou
debochadamente professoral. Sendo o deboche uma constante em suas performances
públicas, sua moda “comportada” nessa palestra permite refletir sobre uma suposta ironia. A
monstra entra na universidade vestindo tailleur branco, com blazer ajustado à cintura e
cobrindo o volume dos seios protéticos, frequentemente à mostra nas apresentações em
casas noturnas, mas não aqui; volume nos ombros; saia à altura dos joelhos, em contraste aos
vestidos e minissaias que usa em shows e expõem sua peluda vagina protética; óculos de grau;
e maquiagem discreta em comparação aos excessos coloridos de outros modos de presença.
Um detalhe chama a atenção: o contraste entre o excesso da estampa animal nos sapatos e a
sofisticação artificial das joias. HDP combina salto alto vermelho e com estampa de zebra com
colar e pulseiras de pérolas visivelmente falsas (pelo tamanho e brilho artificial), e um terço
usado como pulseira. O uso de um terço em uma palestra sobre, entre outras coisas, doenças
sexualmente transmissíveis, associado a um figuro imaculadamente branco denotam uma
ironia ímpar (Fig. 20).
Fonte: YouTube.
167
Fonte: YouTube.
Associar Hija de Perra à figura excêntrica da drag queen Divine (1945-1988), circulante
nas correntes midiáticas, principalmente em um circuito underground, desde os anos 1970, é
tentador. Principalmente, se tomarmos a análise do sociólogo chileno Alejandro Donaire
Palma (2015) sobre Pink Flamingos, filme protagonizado por Divine e pelo qual ganhou
notoriedade. O excesso e a abjeção são elementos constituintes da performance colocada em
andamento no filme. Diz ele:
120
No original: “A través del exceso de cuerpo, la femineidad obscena de ella/él invoca una materialización
excesiva de la norma, estableciendo una concreción imposible de la posición subjetiva verdadeira, una copia
fallida. Aquello que debería ser verdadeiro, al ser intervenido por rasgos abyectos, se presenta como sua
parodia.”.
170
Isso é ignorância, porque [quem faz essa comparação] não sabe quem é Nina Hagen,
nem Cindy Sherman, nem Orlan, porque olho para tudo isso. [...] Eu nasci na
periferia, como qualquer segregada social, onde abunda a prostituição, o crime
organizado. Então, desde pequena me encantava ver as garotas com suas roupas
excêntricas, que levavam suas vidas pela noite para dar prazer ao macho. Isso me
encantava e deleitava minha alma. E é daí que vem tudo (PERRA, 2013, s.p.).
121
“A marca registrada de Nina Hagen tornou-se o seu jeito punk, os seus textos diretos e agressivos, bem como
a sua voz marcante. Às vezes, ela canta com voz rouca, grunhe ao microfone e, então, emite tons suaves num
registro de contralto da ópera clássica. [...] Nina Hagen provoca, choca e adora a confrontação. [...] A
apresentação pública mais espetacular de Nina Hagen foi em 1979, na televisão austríaca. Sem pudor, ela
demonstrou diante das câmeras o que as mulheres tinham de fazer para atingir o orgasmo.”. Cf. GEISSLER,
Ralf. 1955: Nascia a cantora Nina Hagen. DW. 2020 [data de consulta]. Disponível em:
https://p.dw.com/p/1y0A. Acesso em: 20 jan. 2020.
122
“Trabalhando como sua própria modelo há mais de 30 anos, Sherman registra ela mesma em diferentes
disfarces e personas, que são igualmente encantadoras e perturbadoras, desconfortantes e passionais. Para
criar suas fotografias, ela assume múltiplos papéis de fotógrafa, modelo, maquiadora, cabeleireira, estilista e
camareira. Com um arsenal de perucas, figurinos, maquiagem, próteses e objetos de cena, Sherman altera
habilmente sua aparência e o ambiente para criar uma miríade de intrigantes cenas e personagens, de estrelas
do cinema antigo a palhaços e socialites envelhecidas.”. Cf. CINDY Sherman. MoMA. 2020 [data de acesso].
Disponível em: https://www.moma.org/calendar/exhibitions/1154?. Acesso em: 20 jan. 2020.
171
anos 1960, tendo provocado afetação mundial quando, entre 1990 e 1993, passou por um
processo de nove cirurgias plásticas para mimetizar características das cinco maiores
representações imagéticas de beleza na história da arte123.
HDP soma a suas referências internacionais a estética local das prostitutas e do crime
das sarjetas de onde vêm e que saciavam sua pulsão escópica quando criança. Alguns flashes
do videoclipe Papito rico (INDECENCIA TRANSGÉNICA PAPITO [...], 2012) sugerem o que pode
ser esse imaginário rueiro chileno (Fig. 22). Estampas animais e casacos de pele compreendem
a estética do que poderia ser a das prostitutas citadas e se combinam a homens de roupas
largas, gorros e facas. “Como me excita sua falta de educação e que seja um ladrão / [...] Que
sua mentalidade seja livre de moral e pecado / [...] Que roube, que mate, que seja
delinquente”, canta junto a sua companheira de calçada.
123
O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli; Mona Lisa, de Leonardo da Vinci; Jupiter e Europa, de Gustave
Moreau; Cupido e Psiquê, de Françoias Gérard; e Diana, a caçadora, autoria desconhecida. “Ela transformou
a sala de cirurgia em um palco para seu teatro burlesco de cirurgiões extravagantemente vestidos, dançarinos
de fundo, e transformou sua carne em sua mídia artística. Com a ajuda de epidurais, a artista, consciente e em
figurino extravagante, foi a diretora de uma performance altamente coreografada”. Cf. TESSIN, Stephanie.
Visions of Excess: Orlan’s Operational Theater. 2007. 75 f. Dissertação (Masters of Art) – Department of Art
History, Florida State University, Tallahassee, Florida, USA. Disponível em:
http://purl.flvc.org/fsu/fd/FSU_migr_etd-1613. Acesso em: 20 jan. 2020.
172
Fonte: YouTube.
uma língua unitária, que se faz compreendida, mas uma língua bifurcada, esquiva, que
chicoteia repelindo tentativas de leituras unívocas ou dicotômicas.
A ambiguidade dessa língua malandra e maliciosa pode ser conferida nos comentários
de alguns vídeos de HDP. Enquanto alguns veneram sua poética audiovisual abjeta e marginal,
outros se sentem horrorizados. A um só tempo, a língua bifurcada provoca fascinação e
encantamento tanto quanto asco e medo, a depender da tradução que se faz na escuta
daquele que a ouve/vê.
Impresionante escuchar a esta artista, lastima que apenas en este 2019 saber de su
existencia. Escuche algunas canciones tecno punk cyber flan trasvestido
asexualizado que forma parte de su propuesta y quedé fascinado. Saludos desde
México. (Usuário Fidel Algonecio) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).
Que rico como se corta las tetas <3 (Usuário RenTheHumanCat) (CORTOMETRAJE
DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012).
Que porquería está ignorancia de esta cosa, por qué a ese travesti no se le llama
como una persona sino como una imperfección del mundo (Usuário Sergio Garcia)
(ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).
Há, ainda, mais duas atribuições ao prefixo trans que me é caro para dizer que HDP
mobiliza uma trans-estética, além da origem etimológica de transcendência e tradução
apontadas: aquela que forma os sujeitos que atravessam as fronteiras de gênero –
transexuais, travestis, transgêneros, transvestigêneres – e a trans-estética de Jean Baudrillard
(1998).
Por causa da origem etimológica do prefixo trans, ele é utilizado na formação dos
vocábulos que indicam uma transgressão das fronteiras de gênero. Sujeitos que estão em
trânsito (esta também formada pelo prefixo trans), “nômades pós-modernos”, não se
conformam com os trajetos preestabelecidos pelas normativas de gênero, sexo e sexualidade
estabelecidos antes mesmo de seus nascimentos (LOURO, 2015).
Na análise do que chama de fenômenos extremos da pós-modernidade, Baudrillard
(1998) utiliza o trans para apontar o que ocorre após a explosão da modernidade. Ao viabilizar
a descompressão em todos os setores da vida social (liberação política, sexual, das forças
produtivas e destrutiva, liberação da mulher, da criança, das pulsões inconscientes, da arte),
ele se pergunta “o que fazer após a orgia?”. Resta apenas à pós-modernidade um estado
contínuo de pós-orgia. Um anestesiamento absoluto caracterizado pela indiferença
provocada pela espiral delirante do “tudo já pôde”, não resta nada mais além de reproduzir o
174
O sexual tem por objetivo o gozo [...], o transexual tem por objetivo o artifício, seja
ele o de mudar de sexo ou o jogo dos signos vestimentares, morfológicos, gestuais,
característicos dos travestis. Seja como for, operação cirúrgica ou semi-úrgica, signo
ou órgão, trata-se de próteses e, hoje, em que o destino do corpo é tornar-se
prótese, é lógico que o modelo da sexualidade se torne a transexualidade, e que esta
se torne em toda a parte o espaço da sedução. [...] Assim como somos mutantes
biológicos em potência, somos transexuais em potência. E não é questão de biologia.
Somos todos simbolicamente transexuais (BAUDRILLARD, 1998, p. 27, grifo do
autor).
124
“[...][O]s corpos se reconhecem a si mesmos não como homens ou mulheres, e sim como corpos falantes, e
reconhecem os outros corpos como falantes. Reconhecem em si mesmos a possibilidade de aceder a todas as
práticas significantes, assim como a todas as posições de enunciação, enquanto sujeitos, que a história
determinou como masculinas, femininas ou perversas. Por conseguinte, renunciam não só a uma identidade
sexual fechada e determinada naturalmente, como também aos benefícios que poderiam obter de uma
naturalização dos efeitos sociais, econômicos e jurídicos de suas práticas significantes” (PRECIADO, 2014, p.
21).
175
potência: a sedução não é mais pelo belo e o feio, mas pelo mais belo que o belo e o mais feio
que o feio. Sobre a pintura da época em que escreveu, ele diz que ela “cultiva não exatamente
a feiura (que ainda é um valor estético) mas o mais (o bad, o worse, o kitsch), uma feiura
elevada à segunda potência porque liberada da relação com seu oposto” (BAUDRILLARD,
1998, p. 25).
No caminho da segunda potência pela transestética de Hija de Perra, dois elementos
se adicionam, intensificando a orgia teórica que, a essa altura, já excedeu qualquer barreira
de contenção, materializando na escrita o excesso da monstra que nos guia, dada a
quantidade de combinações que vimos feito nesta pesquisa-viagem. Baudrillard (1998) fala
no kitsch da pintura como a segunda potência do feio. Penso que na estética das performances
de Hija de Perra, as ideias de camp e grotesco podem ser úteis como segunda potência do
belo e do feito, respectivamente. Essa relação, é claro, embora aparentemente oposta, não
deve ser compreendida como tal, uma vez que já vimos que o arreio que interligava os opostos
é extraviado na transestética.
A “sensibilidade camp” é descrita por Susan Sontag (1987, p. 332) como “experiência
do mundo consistentemente estética. Ela representa a vitória do ‘estilo’ sobre o ‘conteúdo’,
da ‘estética’ sobre a ‘moralidade’, da ironia sobre a tragédia”. Uma sensibilidade afeita ao
exagero e ao artificial, só possível de emergir em uma sociedade sob a “psicopatologia da
afluência”, na qual os excessos se tornaram cotidianos e a predileção pelo inatural prosperou
(SONTAG, 1987). Posto isso, façamos um exercício empírico.
Relatório global da Organização Mundial da Saúde: mais de um milhão de novos casos
de doenças sexualmente transmissíveis ocorrem diariamente125, sendo a população de 15 a
49 anos a mais afetada126. Hija de Perra cantando com sua amiga Perdida em um clube
noturno: “Dame tu gonorrea/Pegame el papilomas/Quiero tener un herpes/La ladilla de
moda” (HIJA DE PERRA [...], 2012e).
125
Informação do Report on global sexually transmitted infection surveillance 2018, da Organização Mundial da
Saúde. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/277258/9789241565691-
eng.pdf?ua=1. Acesso em: 10 fev. 2020.
126
Informação da Organização Pan-Americana de Saúde. Disponível em: https://www.paho.org/salud-en-las-
americas-2017/?tag=sexually-transmitted-infections. Acesso em: 10 fev. 2020.
176
127
Posicionar o camp enquanto sensibilidade, ou seja, na ordem do sensível, é fundamental, pois ele é quase
impossível de ser exprimido em palavras, podendo ser, no máximo, exibido, mas não analisado (SONTAG,
1987).
177
Ao mesmo tempo em que HDP joga com o camp, considerado uma segunda potência
do belo – mais belo que o belo –, ela também se vale do que considero mais feio que o feio, o
grotesco. Sua predileção por aquilo que o corpo humano expele e sua interioridade traz para
suas performances, nos elementos de cena ou no discurso, sangue, fezes, saliva, secreções
venéreas, flatulências, vísceras, como expõem os videoclipes de Indecencia Trance (HIJA DE
PERRA [...], 2012c) e Papito Rico (INDECENCIA TRANSGENICA PAPITO [...], 2012) (Fig. 23).
Trata-se de uma explícita inversão na topografia do corpo, expondo seu avesso e rompendo
com a tentativa moderna de torná-lo um invólucro fechado.
Fonte: YouTube.
A teoria do grotesco de Mikhail Bakhtin (1987) é precisa para compreender esse mais
feio que o feio, além de apontar o fato de não se tratar de uma novidade contemporânea nas
artes. Ele estuda o grotesco no contexto medievo de François Rabelais, autor do século XVI. A
nós, mais do que as considerações sobre a obra rabelaisiana, interessa o que Bakhtin (1987)
extrai dela concernente ao grotesco.
Em uma primeira definição, o autor explica que o grotesco é caracterizado pelo
hiperbolismo, profusão, excesso, ambivalência – um exagero levado ao extremo que toca na
monstruosidade. Ora, estes termos são os com que Hija de Perra tece sua própria
monstruosidade, sendo, portanto, já muito familiares a nós. Há excessos em suas
audiovisualidades, em sua estética, na forma como transgride interditos da morte e do sexo,
ambivalência nas escutas de sua língua bifurcada, hipérboles nas sexualidades, feminilidades
178
Hija de Perra ataca ferozmente esse projeto, como a “fera raivosa” que canta ser em
Asesina por naturaleza (INDECENCIA TRANSGÉNICA ASESINA [...], 2018). Rasga o próprio corpo
e expõe seus orifícios, suas entranhas, oferece para consumo escopofílico as secreções
interditadas. Em Indecencia Transgénica (Hija de Perra + Perdida) – Megamix inmundo
(INDECENCIA TRANSGÉNICA HIJA [...], 2019), vemos uma HDP se deleitando sob um líquido
branco que “cai dos céus”, no que parece ser um banheiro, enquanto canta sobre sêmen. Em
uma cena do videoclipe Indecencia Trance (HIJA DE PERRA [...], 2012c), vomita com um grupo
de amigas para depois se beijarem com muita saliva, além da cena já exibida anteriormente
de sangue menstrual (Fig. 24).
Fonte: YouTube.
Oferece para consumo tudo aquilo que Bakhtin (1987) diz ser rechaçado pela
modernidade e o corpo-imagem das hipermulheres expurga. Sua boca constantemente
escancarada mantém seu corpo aberto para o mundo, em um entra e sai de forças, ora
devorando o que recebe, simbolicamente ou na prática, como quando beija, lambe, chupa,
come – todas essas ações deslocadas para a intimidade pela modernidade e trazidas a público
por ela –, ora vomitando, literalmente nas cenas em que troca saliva e vomita, e
simbolicamente, cantando, falando, fazendo da sua voz palavra (RANCIÈRE, 1996). Seu outro
orifício é tão escancarado quanto a boca. Uma cena em Papito Rico (INDECENCIA
TRANSGÉNICA PAPITO [...], 2012) a mostra fazendo pose em um banheiro químico para, logo
depois, cortar para imagem de fezes no assento de uma privada (Fig. 25).
Fonte: YouTube.
Nalgas con olor a caca (HIJA DE PERRA [...], 2012a) é uma grande ode ao cheiro de
merda – “sente em minha cara com seu cheiro de cocô / agora tenho seu cocô na minha unha
/ me encanta seu cheiro de cocô” –, enquanto em Violencia intrafamiliar (VIOLENCIA
INTRAFAMILIAR HIJA [...], 2011) propaga o desejo de ter a merda do outro – “vem, mamãe,
180
abre as pernas que vou te fazer cagar / vem, mamãe, bem molhadinha, que vou dar de costas
/ [...] ponha vaselina no olho, que vou te fazer cagar / deixe aberta a virilha, que vou te fazer
cagar” –. Onde outros se sentem ofendidos, HDP se deleita.
Sontag (1987, p. 334) pontua os cheiros da metrópole moderna, quando lembra que o
“dândi levava um lenço perfumado às narinas e costumava desmaiar”. HDP, por sua vez, aspira
o mau cheiro e o comemora (Fig. 26). Percebo, inclusive, deboche da obsessão à higienização
do corpo em momentos como em uma passagem da música Amor patético (INDECENCIA
TRANSGENICA AMOR [...], 2018): “Desinfetarei meu hímen com álcool / Deixarei meu hímen
com cheiro de flor”.
Fonte: YouTube.
Faz tudo isso de modo debochado. Até mesmo porque o grotesco é inverossímil. Como
o “real encenado” apontado por Rocha e Caminha (2019) em videoclipes de figuras da música
queer, não é para ser levado a sério. São os “contrabandos de sentidos”, na terminologia das
autoras, que constroem as intrincadas camadas de complexidade de audiovisualidades
debochadas. Como acreditar em uma música em que se grita “Sou assassina por natureza /
Indecente e transgênica / Amo pornografia e cropofagia / Sou uma fera raivosa” (INDECENCIA
181
A paródia passou a ser uma estratégia muito popular e eficiente dos outros ex-
cêntricos – dos artistas negros ou de outras minorias étnicas, dos artistas gays e
feministas – que tenham um acerto de contas e uma reação, de uma maneira crítica
e criativa, em relação à cultura predominantemente branco, heterossexual e
masculina na qual se encontram.
128
Sobre a discussão de Bataille e das experiências extremas, conferir a seção Anamnese do excesso, aqui no
capítulo 3.
182
por fluxos de energia inomináveis, impossíveis de serem descritos, que fogem às palavras, às
imagens e à razão.
Soy de Guadalajara Mexico tengo 16 les puedo decir que a pesar de no haber
conocido a esta mujer fue un gran apoyo y lo seguirá siendo en mi vida... Gracias a
que se atrevió a romper con muchos tabus y originalidad, siempre estarás y ocuparas
espacio en mi vida y alma hija de Perra, gracias por ayudarme a defender mis ideales
y mandar al carajo a todos los que no les guste o rechacen. Te amo. (Usuário DHP)
(CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012).
Que cosSa masS fea 😑 graciias a ija de perra muchasS personas del jenero gay ,trans
etc sonN discrimiNados a causa de este tipo de vocabulario, expresión etc. (Usuário
Ray Cendejas) (ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).
Nunca me sentí tan identificada con nadie como lo sentí con hija de perra (Usuário
Mei San) (CORTOMETRAJE DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012).
Que rico como se corta las tetas <3 (Usuário RenTheHumanCat) (CORTOMETRAJE
DOCUMENTAL PERDIDA [...], 2012).
Um turbilhão, que é você, entra em choque com outros turbilhões semelhantes [...]
Assim, viver, para cada um de nós, são os fluxos e os jogos de luz que se unificam em
você, adicionados das passagens de calor e luz que trocamos, nós dois. Palavras,
livros, monumentos, símbolos, risos, diz Bataille, são os caminhos desse contágio,
dessas passagens (MARCONDES FILHO, 2008, p. 211).
¿Cómo es que está canción me ah hecho bailar, cantar y emocionar tanto al mismo
tiempo? La amo jajaja 😍 (Usuário Maggie Álvarez) (HIJA DE PERRA [...], 2012a).
Que porquería está ignorancia de esta cosa, por qué a ese travesti no se le llama
como una persona sino como una imperfección del mundo (Usuário Sergio Garcia)
(ENTREVISTA HIJA DE [...], 2013).
184
Gente que se vino a meter acá por un weon que dijo que esto era cancerígeno,
patético.... Esta wea es performismo bizarro, juicios negativos de valor son usados
de complemento, digo, los weones que se colan (Usuário Matias Santander) (HIJA DE
PERRA [...], 2012a).
129
Inspiro-me e distorço a reflexão da filósofa sobre o sofrimento: “É o sofrimento que nos move. Não temos
que buscar o sofrimento… Uma das razões do sofrimento é o rompimento da alma para se tornar maior. E
quando uma alma se torna maior, ela cabe mais mundo. Ela permite mais contradição”. Cf. MOSÉ, Viviane.
Viviane Mosé em Anamnese. [S. l.: s. n.], 2012. 1 vídeo (29m23s). Publicado pelo canal Anamnese Entrevistas.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=thJxZl0C24Q. Acesso em: 20 dez. 2019.
185
experiência extrema. Todavia, nem todos se permitem entregar ao êxtase de Santa Teresa,
quando se morre sem morrer. Lançar-se ao abismo é entrar em contato com os medos de
morrer, fracassar e enlouquecer.
A petite mort do gozo escopofílico consumado na vinculação eróptica das
audiovisualidades, carregada das ambiguidades que vimos nos comentários, retoma a
discussão do duplo nas imagens. Se estas carregam em si uma lasca de quem as criou e, no
momento de consumação da vinculação, quando vidente e imagem se estilhaçam,
dissolvendo-se um no outro, e a exoimagem é transposta para a mente de quem vê, não seria
a comunicação eróptica das audiovisualidades, quando consumada, um processo de
possessão? Se sim, quais seriam as características dessa possessão?
Definitivamente, não se trata de “perda total ou parcial da consciência, renúncia do
comando sobre o próprio corpo e vontade e sujeição a poderes enraizados no passado”, como
pontua a socióloga Miriam Rabelo (2008, p. 88) sobre algumas teorias a respeito do
fenômeno. Alinho-me ao pensamento de Rocha e Caminha (2019) sobre práticas de
subjetivação negociadoras, de contrabando de sentidos. Portanto, o possível caminho que
começa a se revelar no horizonte não abarca um agenciamento entre humanos e imagens no
sentido de outrora dos estudos de comunicação funcionalistas, mas uma agência negociadora
mais próxima da compreensão de Deleuze e Guattari, de movimentação entre as forças.
Florence Dravet (2016), em uma extensa discussão sobre o fenômeno da
incorporação e suas negociações com o imaginário, adianta alguns elementos circundantes da
possessão que dialogam com o caminho avistado. Um dos sentidos de incorporação, advindo
do francês, é o da incorporação pelos olhos: “O olho penetra o mundo exterior ao mesmo
tempo que é por ele penetrado. Incorpora aquilo que recebe e o distribui ao espírito que o
carrega” (DRAVET, 2016, p. 290). Bem se sabe sobre o protagonismo do olhar na sociedade
iconofágica e sua potencialidade pulsional.
Seguimos, então, com interesse em uma comunicação que se constitui enquanto
processo de afetação e vinculação entre corpos, não necessariamente humanos, articulando
dimensões mágicas, imaginárias e psicanalíticas. E, ainda que não carregue características dos
“transes selvagens” (DRAVET, 2016) atribuídos às possessões em determinadas práticas
religiosas, a hipótese em construção de uma possessão pelas imagens não se encaixa
completamente na concepção de “transe domesticado” (DRAVET, 2016), pois não é de todo
controlada. Aponta ser uma possessão sub-reptícia, que se dá à revelia. O fragmento da
186
imagem permanece a habitar o mundo interno do vidente ainda que não se tenha consciência
disso, pois, uma vez transposto para a mente, perde-se a ingerência sobre.
Elucubrações para uma próxima pesquisa-viagem.
187
CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS
Viajar. Para mudar o que está fora e o que está dentro. Quem vem de fora e o que sai
de dentro? Virar ao avesso, e nele seguir. Fazer do caminho, morada. Dos passos, revoada.
Engolir desagrados, encontrar afagos. Quebrar o tempo, dobrar o espaço. Parar. Ficar. Para,
só depois, continuar. Pôr o corpo em ação, fazer de si desconstrução. Desforme. Devir-
informe. Deixar-se ser monstro. Ação! Mas também teoria. Tentar se curar pela escrita,
rasgando a pele e o papel com a palavra encarnada. Fazer as pazes com o silêncio. Desafiar os
centros. Esgueirar-se pelas bordas. Cruzar fronteiras. Depois, cruzá-las de novo. Trans-itar. Ir
e voltar. Às vezes, para o mesmo lugar. Saiu, em primeiro lugar? O caminho se faz caminhando,
a labirintite se cura girando. A vertigem? Penhasco. O problema não é olhar para o abismo, e
sim que ele olha de volta. Encarar, encarnar. Os demônios se vence olhando-os nos olhos e
perguntando-lhes o nome. Perlaborar encontros. Perfurar a própria pele para escoar o que
ainda não tem nome. Vazar a si. Viajar para fazer as pazes com os fenômenos do -in.
Incomunicável. Invisível. Inominável. Inenarrável. A(fe)tivar. Deixar pegadas. Aprender a
coletar rastros, cheirar memórias, provar imagens. Expandir o corpo, dilatar as veias.
Continuar a viajar. Criando duplos. Transgredindo a morte. Padecendo da imortalidade.
Dobrando-se uma, duas, três vezes sobre si mesmo. Continuar a afetar. Entornar sentidos.
Beber presenças. Se fazer presente. Do mundo, um espetáculo. Protagonizar o próprio show.
Teatralizar a abjeção. Brincar de criador e criatura. Habitar a passagem do que já foi e o que
virá a ser. Terceiro de dois, o entre. Exorcizar mundos. Possuir outros. Manter os orifícios
abertos para não se fechar às penetrações de outros mundos. Gargalhar, debochar, cagar e
vomitar. Tomar cuidado para não se afogar na própria saliva. Quer saber? Não resta tempo
para tomar cuidado. Tentar abocanhar para não ser abocanhado. Não adianta lutar, a bocarra
do monstro será sempre maior. Uma mordida daqui, duas de lá. Será que tem como ganhar?
Melhor se entregar e gozar. Deixar-se ser consumado e explodir no êxtase da morte.
Dependendo do que se acredita, outra viagem pode vir a começar.
provisória. Hija de Perra segue, sem paciência para esperar. Fico um pouco para trás tentando
ler o desenho que o fio de Ariadne formou por esse caminho tortuoso que vimos percorrendo.
Foi preciso jogar migalhas de pão para não se perder e mesmo assim não sei se obtive sucesso.
A prosa acima foi um exercício de experimentação de tentar recolher essas migalhas. E, agora,
tentarei nas próximas linhas extrair sentidos desses fragmentos de sentir. É um tipo de
inventário de guerra para desenhar considerações provisórias. Trago essa ideia de Hans Belting
(2015, s.p., tradução minha), para quem “tudo que fizermos deve ser preliminar, se quisermos
ser honestos”.
Saímos para esta pesquisa-viagem com algumas perguntas-problema e objetivos em
uma bolsinha de mão. Nela, algumas ferramentas para criar a versão do método cartográfico
adequada a uma investigação no escuro, procurando pelos rastros que a performer bizarra
Hija de Perra deixou no mundo sensível. Rastros têm sido utilizados pela humanidade desde
a pré-História, quando utilizávamos pegadas e outros sinais de animais para caçar e
sobreviver. A simples existência no mundo já é capaz de marcar, deixar rastros de nossa
passagem. Na Modernidade, essa produção se intensificou com as casas burguesas e seus
tecidos-memória, caixas de veludo, tapetes felpudos e cortinas pesadas. Um contexto
sociocultural perfeito para a emergência de histórias de detetives que resolvem casos de
assassinatos através dos rastros deixados pelos assassinos e para um homem parir um método
de investigação a partir dos resíduos inconscientes manifestos em sonhos e livres associações,
no que viria a ser conhecida como a psicanálise. A produção de rastros no século XX se
intensificou e se transformou, culminando na nulodimensionalidade dos rastros digitais. São
eles que funcionam como materialidades comunicacionais para se ter contato com Hija de
Perra, quase que uma tábua ouija para invocar a presença dessa entidade.
Primeiramente, fiz um mapeamento herético do rizoma, que consistiu em mapear o
máximo possível dessas materialidades e categorizá-las: separei-as em audiovisuais (vídeos no
YouTube), textuais (resultados de pesquisa originados no buscador do Google, em sua maioria
notícias jornalísticas) e acadêmicos (artigos, monografias, dissertações e teses listadas no
Google Acadêmico). A essas materialidades comunicacionais (vídeos e textos jornalísticos e
acadêmicos), dei o nome de rastros digitais, clivando-os em 68 rastros audiovisuais, 38 rastros
textuais e 35 rastros acadêmicos. O corpus é composto apenas pelos rastros audiovisuais,
porque eles concedem acesso ao corpo em movimento da artista, o que permite cartografar
o que ela diz (conteúdos das músicas, das entrevistas, das palestras, das aulas), como diz
189
(roupas que veste, maquiagem que usa, como se movimenta, gestos, tom de voz, como
interage com seus interlocutores) e onde diz (espaços em que está). Assim, interessei-me
pelas dimensões da forma e do conteúdo das performances de Hija de Perra,
simultaneamente. O modo pelo qual essas considerações sobre cada uma das dimensões
apareceram no texto não é dicotômico, pois, embora seja possível eleger uma ou outra para
analisar, preferi me valer de ambas as dimensões sinergicamente e sem dissociá-las.
Esse corpus, todavia, é tão monstruoso quanto a entidade que o origina. A cartografia
usada é guiada pelo (meu) olhar e por (meus) encontros traumáticos com as audiovisualidades
da artista. Depois de derivar por entre os rastros audiovisuais, comecei a escrita da dissertação
e, conforme ela ocorria, algumas audiovisualidades me interpelaram face à teoria sobre a qual
eu estava escrevendo. Apropriei-me desses flashes de modos diversos: ora pinçando o
conteúdo de uma fala de Hija de Perra, ora dando atenção a um atrator estranho na imagem,
ora ressaltando a forma, ora o conteúdo, às vezes os dois juntos. Nunca, contudo, na análise
exaustiva de uma única audiovisualidade. Interessei-me pelas mônadas, fragmentos que
carregam sentido nas audiovisualidades e pelo que elas invocam quando combinadas.
Sinteticamente, em uma tentativa de linearizar cronologicamente um processo que foi
rizomático, cheio de idas e vindas, a dinâmica se deu assim: deriva pelo material, mapeamento
herético do rizoma, pesquisa bibliográfica sobre alguns eixos possíveis de experimentação a
partir do que as audiovisualidades me despertavam, escrita, flashes mnemônicos de
audiovisualidades que me interpelavam face o tema que estava escrevendo, retorno à
audiovisualidade para analisá-la novamente sob a guia do olhar, escrita novamente, e assim
sucessivamente.
A partir desses encontros com as audiovisualidades, percebi que a força delas era
muito intensa. Elas irrompiam em minha mente, às vezes quando eu estava pensando sobre
a pesquisa, às vezes, não. Por vezes, algumas delas me fizeram voltar a elas sem saber
exatamente o porquê, apenas com uma inquietação, uma necessidade de observá-las
novamente. Em outras situações, não se tratava de uma audiovisualidade específica, mas uma
característica, como a voz, que abordei no terceiro capítulo. Sempre percebi como as
modulações da voz da performer me afetavam, quase me hipnotizando: em uma
audiovisualidade, é suave e delicada; em outra, agressiva e cortante. A potência das
audiovisualidades e o efeito que elas provocavam em mim fizeram com que eu
190
compreendesse que elas não são apenas registros técnicos das performances de Hija de Perra,
rastros de sua passagem pelo mundo sensível.
Comecei, então, a me questionar sobre os significados e sentidos da performance,
em geral, e do que as performances de Hija de Perra despertam. Uma vez que não tive contato
com as performances ao vivo, compartilhando espaço e tempo com a performer, o acesso a
elas foi via rastros digitais. Mas, como dito, eles não são apenas arquivo, pois são dotados da
capacidade de afetar. Seccionei a performance de Hija de Perra em duas dimensões chamadas
performance-vida e performance post mortem.
A performance-vida se refere ao modo de existência de Hija de Perra quando de seu
tempo encarnada no mundo. Como o acesso às performances foi apenas pelos rastros digitais,
o que é possível conhecer delas são as informações que eles carregam e são frequentemente
contraditórias. Primeiramente, observa-se que Hija de Perra fez de sua vida uma performance.
A despeito da discussão de que toda vida é teatralizada e vivida como um conjunto de ações
reiteradas – performatividades –, a artista fez do seu tempo no mundo uma performance
deliberada. Muito lúcida da configuração sociocultural moderno-colonial, fez de suas
aparições públicas, pelo menos das que se têm acesso via rastros digitais, oportunidades para
questionar as lógicas de poder colonizadoras. O conjunto de rastros audiovisuais de Hija de
Perra aponta que a reiteração de suas performances compõe a grande performance que foi
sua vida, por isso chamar de performance-vida. Trata-se de um processo semelhante ao do
duo berlinense EVA & ADELE130, de quem não se tem nenhuma informação que não seja
deliberadamente publicizada pela dupla. A imprensa e o público sabem apenas o que esses
dois corpos falantes permitem saber. E, mais do que isso, inserem-se no espaço público
sempre com o corpo em máscara, há mais de 20 anos.
Hija de Perra compartilha das mesmas características que o duo: faz-se ver
publicamente apenas com o corpo mascarado, implicado em performances deliberadas; narra
a si com informações que convêm para uma diegese biográfica; e executa essa proposta há
anos. A isso, chamo performance-vida. A performance-vida de Hija de Perra possui suas
particularidades: a liminaridade da narrativa, os afetos abjetos mobilizados e o exorcismo
simbólico da colonialidade.
130
Foto de EVA & ADELE pode ser conferida na seção A performance-vida Hija de Perra ou “o museu é onde eu
estiver”, no capítulo 2.
191
performance ao vivo é arquivada através de algum registro técnico (fotografia ou vídeo, por
exemplo). O registro, amador ou profissional, autorizado pelo performer ou não, arquiva a
performance de modo a impedir que ela morra na efemeridade do ato performático. Esse
registro invoca uma “vida após a morte da performance”, porque ele transgride a morte da
performance ao vivo. A segunda transgressão, a da morte do corpo encarnado de Hija de
Perra, acontece porque toda morte é uma interdição à vida e uma superação. Os vermes de
um cadáver em putrefação indicam a superação da morte pela vida. Logo, há vida na morte.
A performance post mortem de Hija de Perra é composta, entre outras coisas (os textos
jornalísticos e acadêmicos, apenas para me ater ao mapeamento herético), por
audiovisualidades. Considero que as reações a elas (likes, dislikes, comentários,
compartilhamentos etc.) são os vermes proliferando para criar vida após a morte do corpo
encarnado.
É isso que me conduz à ideia de videoclipicização das reações. Clicar nos botões de
like e dislike dos vídeos no YouTube, escrever um comentário ou compartilhar um vídeo são
modos de processar a afetação da audiovisualidade, possibilidades de perlaborar o que surge
desse encontro. Esta dissertação é outro modo. Entre os muitos outros viáveis, identifiquei
nas audiovisualidades com as quais tive contato, o de reagir à afetação provocada por Hija de
Perra através da produção de vídeos em sua homenagem. Eles comemoram e prestam sua
reverência à performer. É isso que estou chamando de reações videoclipicizadas, esse modo
de reagir às afetações através de produção audiovisual. No mapeamento herético, encontrei
12 audiovisualidades desse tipo. Todas elas têm como característica uma prática de
remixagem. São vídeos editados a partir de outros da performer em um processo remix tão
característico da pós-modernidade quanto a videoclipicização da vida. Como Hitler fez do
mundo seu “cinema macabro”, tais usuários estão, para permanecer nos termos de Perra,
criando seu cinema i-mundo.
A capacidade de continuar provocando afetações mesmo após morrer, a partir da
materialidade comunicacional dos rastros audiovisuais, faz pensar na produção de presença
de Hija de Perra e nas características do que essa presença causa. Os efeitos que suas
audiovisualidades provocam remete a uma figura popular no imaginário sincrético brasileiro,
a pombagira.
As telas digitais por onde se tem contato com as audiovisualidades de Hija de Perra
servem como portais para acessar o i-mundo que ela criou em vida e continua a ser
195
alimentado após sua morte. São como tábuas ouija para invocar uma presença de outra
dimensão. A discussão da presença post mortem e dos efeitos dela são possíveis por uma
lógica alternativa à da interpretação. Nesta, atribui-se sentidos às coisas do mundo. A lógica
de presença está mais interessada no que tais coisas fazem sentir. Atribuir sentidos e
presenças são igualmente relevantes no processo de estar no mundo. O único problema é que
o projeto de modernidade-colonialidade – ele de novo – privilegiou a atribuição de sentidos,
infiltrando-se nevralgicamente no modo de produzir conhecimento no ocidente.
De toda maneira, é pela perspectiva do fazer sentir, mais do que a do sentido, que se
relaciona a presença produzida pela performance post mortem de Hija de Perra à presença de
outra figura igualmente controversa e que manipula, deliberadamente, a abjeção que lhe é
atribuída, a pombagira. Perscrutando o imaginário da pombagira, que cruza com o da putaria
brasileira, encontram-se termos que são facilmente aplicáveis ao i-mundo de Hija de Perra,
como deboche, putaria, paixões, espalhafatosa, inominável, escória, luxo, desordem,
inversão, demônio. Tanto a figura brasileira quanto a chilena compartilham da repulsa que
acomete os sujeitos abjetos por suas práticas comportamentais serem contrárias aos valores
vigentes. Todavia, em vez de encruar, elas se valem da mesma putaria pela qual são
condenadas para configurarem suas presenças no mundo. Gargalham, debocham e fazem
girar até causar vertigem o médium que incorpora e o usuário que a invoca. Estão ainda na
esteira de outras presenças repudiadas pelas barras de contenção do projeto de civilização
ocidental. Orbitam as margens junto com as prostitutas, as bruxas, as feiticeiras, as histéricas,
as loucas, as diabas, as travestis, as bichas e as viadas. São todas presenças portadoras de uma
erótica selvagem, sem medo de gritar, gozar e fazer arder. Invertem a topografia do corpo e
cagam pela boca enquanto falam pelo cu. Não à toa, este último é um território
frequentemente acessado através das letras das músicas de Hija de Perra. São presenças do
excesso.
Por essa entrada, inicia-se o terceiro capítulo, no qual há a discussão sobre o consumo
em sua dimensão simbólica e audiovisual pela via do excesso. Este está na própria constituição
do ser humano, cujo único destino é consumir até destruir, o mundo e a si. Para além dessa
perspectiva ontológica, a própria fisiologia humana guarda sua dimensão do excesso.
Enquanto a fome é passível de ser saciada, a gula é o que nos lembra da nossa voracidade. A
ânsia por devorar o mundo com a boca pode ser equiparada à gula de comer o mundo com os
olhos, chamada pela psicanálise de pulsão escópica.
196
gozar com e pelas imagens. Não por acaso, são comuns as cenas em que simula orgasmos e
orgias.
A combinação em diferentes proporções desses estilhaços de excesso configura
modos de presença diferentes, dependendo de onde a performance em vida ocorreu.
Pontuam-se os modos de presença punk, sensual debochado, encantador, acadêmico e
policial. O punk aciona tanto elementos estéticos (peças de couro, rasgadas, acessórios com
correntes e perucas com penteados que expõem as laterais raspadas) quanto significados
culturais, sociais e simbólicos das expressões estéticas da subcultura punk: as práticas de faça-
você-mesmo punk são manifestas no contexto da performer pelas produções audiovisuais
independentes e alternativas às correntes mainstream, na estética deliberadamente amadora
utilizada na gravação e edição de seus videoclipes e nos registros técnicos amadores daqueles
que presenciaram sua performance-vida; a revolta e os protestos contra as normatividades
vigentes características da atitude punk estão no modo da performer habitar o mundo
(quando encarnada e mesmo agora desencarnada) divergente das imposições normativas
moderno-coloniais de beleza, pureza, ordem e de coerência gênero-sexual; e o emprego de
saberes da rua, valorizados pelo punk, pelas ressignificações do corpo, das escatologias, das
sexualidades, dos sexos e dos gêneros realizadas por Perra. Seu modo de presença punk choca
e desobedece normas.
Debochar das interdições e valores sociais debochando também de si faz parte do
processo de subjetivação da performer. Destaca-se a característica do deboche, do escracho,
nas performances em que ela simula cenas extravagantemente sensuais. Não um sensual que
excita, mas que zomba do que é legitimado socialmente a excitar. Faz rir enquanto ri junto
nesse modo de presença sensual debochado, característico dos videoclipes e apresentações
em casas noturnas. Vale-se de movimentos sexuais histriônicos, afetados, exagerados;
transforma objetos fálicos em alvo de felações públicas, lambendo e chupando microfones,
sorvetes, sanduíches. Esfrega-se parodicamente no que estiver pelo seu caminho, uma
companheira de performance ou uma caixa de som. O deboche vaza por todos seus orifícios:
zomba da religião, da patologização das práticas sexuais, da colonização.
O modo de presença encantador é devido às audiovisualidades nas quais se
apresenta delicada, falando suavemente, com uma voz que é reconhecidamente marcante em
suas performances, conforme usuários atestam em comentários nos seus vídeos no YouTube.
Um diz que sua fala ritmada o lembra dos vilões de histórias em quadrinho. Quando alguém a
200
pescoço e dança com eles e prostitutas por ruas periféricas. Sua trans-estética atravessa as
experiências estéticas que o projeto moderno-colonial tenta, há séculos, regular, desde os
ideais de beleza kantianos e burgueses com suas valorizações do conteúdo em detrimento da
forma. Na descompressão e saturação da pós-modernidade, quando o que era possível de ser
feito já foi, as fronteiras foram borradas e as aparências triunfaram, não resta mais nada a não
ser simular o que já foi simulado – simulacro – e elevar tudo a uma segunda potência: tornar
hiper-real o real, hiperfeio o feio, hiperbelo o belo. Na transestética do excesso de Hija de
Perro, a segunda potência do belo e do feio são o camp e o grotesco.
Do conceito de camp, apropriei-me de algumas notas para ressaltar que as
performance-vida e a performance post mortem da artista valorizam o estilo e as aparências,
embora não em detrimento do conteúdo, como definia o camp clássico; tornam sério o frívolo
e frívolo o sério; comemoram o inatural, aquilo que é artificial; exageram todos os elementos
(roupas, maquiagem, cenário, gestos, tom de voz); e fazem do sexo hiperssexo, do artificial e
dos simulacros a regra.
O mais feio que feio da trans-estética do excesso é a dimensão grotesca das
performances da artista. Nelas, ela mantém seu corpo aberto, com os orifícios vazando
interioridade e sendo penetrados pelo exterior. Uma clara afronta ao projeto moderno-
colonial de fechar o corpo humano e tirar as secreções, as viscosidades e os maus odores do
campo do visível. Perra fala sobre e faz usos de sangue, fezes, saliva, secreções venéreas,
flatulências, vísceras – tudo com as características debochada e artificial que lhe são
familiares. Seus usos desses elementos são tão intensos, evocam uma profusão, um excesso,
uma tensão entre atração-rejeição tão grandes que, como é próprio do grotesco, levam o
exagero ao extremo da monstruosidade. Com a boca e em público beija, lambe, chupa, come
– ações privatizadas pelo projeto moderno-colonial e deslocadas para o espaço privado – e,
com o cu, expõe ao campo do visível sua merda e clama pela dos outros. Vomita, literalmente
em algumas audiovisualidades e simbolicamente quando canta, fala e faz da sua voz palavra.
Faz tudo isso debochadamente, porque o grotesco é inverossímil em um real encenado,
contrabandeando sentidos em suas audiovisualidades debochadas.
Por fim, por manter seus orifícios escancarados e passíveis de penetração, o corpo
encarnado da performance-vida e o corpo audiovisual da performance post mortem realizam
uma comunicação própria chamada comunicação eróptica. Isso porque os encontros com as
audiovisualidades da performance post mortem de Hija de Perra provocam afetações,
202
Um último fôlego
Sinto que não guiei esta jornada, mas fui por ela guiado. Sei menos ainda o quanto
há de mim e o quanto há de Perra, afinal, quando os orifícios estão abertos, não existe dentro
nem fora, eu nem o outro. Somos todos turbilhões. De afetos, saliva, desejo. Desfazemo-nos
uns nos outros como as ondas do mar se quebrando entre elas. Entre nós. Entre mundos i-
mundos. Mundos que estão dentro de outros mundos, porque a cada vez que nos rasgamos,
permitimos caber mais. Entre: a pele está exposta, os orifícios estão abertos, para entrar é só
cuspir.
Tenta-se dar língua aos afetos mobilizados, criando palavras, imagens, vídeos,
dissertações – o que estiver ao alcance para perlaborar o trauma. Senti-me impelido a criar
passagens, pontes de linguagem, para o que a presença de Hija de Perra manifesta em sua
performance post mortem me fez e faz sentir. Talvez, apenas talvez, algumas dessas pontes
construídas a partir de orgias teóricas tenham ajudado a(o) leitora a processar o próprio
encontro com as audiovisualidades de Hija de Perra.
A pesquisa-viagem desacelera, vai parando por ora. Em um último fôlego, ressalto
que o caminho da investigação do consumo do excesso, como se espera ter exposto, tratou-
se de um consumo do excesso em sua dimensão audiovisual e simbólica, por isso dizer que é
um consumo escopofílico, que se dá pelo olhar, essa atividade tão protagonista na ontologia
humana. Com os olhos, beijamos as audiovisualidades de Hija de Perra; pelos olhos, gozamos
com ela. E reconhecendo que não falei abertamente de comunicação a não ser mais
recentemente no trajeto, quero fazer como Gustavo de Castro (2016) em um de seus artigos
e dizer que estive, contudo, falando de comunicação este tempo todo. Uma comunicação
inominável, inenarrável, incomunicável e invisível. Como tal, ela esteve aqui antes, durante e
continuará depois do último ponto final. Este, o último ponto, a última palavra, tinha de ser
dela. Como diz ao finalizar seus próprios discursos, Hija de Perra encerra esta parte da viagem:
“Tenho dito. Caso encerrado!”.
203
REFERÊNCIAS
AFTERMATH. In: Cambridge Dictionary. [S. l]: Cambridge University Press, 2020. Disponível
em: https://dictionary.cambridge.org/dictionary/english/aftermath. Acesso em: 20 dez. 2019.
AFTERMATH. In: Michaelis. [S. l.]: Editora Melhoramentos, 2020. Disponível em:
https://michaelis.uol.com.br/moderno-ingles/busca/ingles-portugues-moderno/aftermath/.
Acesso em: 20 dez. 2019.
AMARAL, Adriana; SOARES, Thiago; POLIVANOV, Beatriz. Disputas sobre performance nos
estudos de Comunicação: desafios teóricos, derivas metodológicas. Intercom – RBCC. São
Paulo, v. 41, n. 1, p. 63-79, jan./abr. 2018.
AMARAL, Marília dos Santos. Essa boneca tem manual: práticas de si, discursos e
legitimidades na experiência de travestis iniciantes. 2012, 163 f. Dissertação (Mestrado em
Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 2012.
AMARAL, Rita; SILVA, Vagner Gonçalves da. Cantar para subir: um estudo antropológico da
música ritual do candomblé paulista. NAU - Núcleo de Antropologia Urbana da USP, [S.l: s.n.],
2009. Disponível em:
http://www.espiritualidades.com.br/Artigos/A_autores/AMARAL_Rita_et_SILVA_Vagner_Go
n%E7alves_tit_Cantar_para_subir.pdf. Acesso em: 20 dez. 2019.
ARRIAGA FLÓREZ, Mercedes. Apresentação. In: BAITELLO JUNIOR, Norval. A era da iconofagia:
reflexões sobre imagem, comunicação, mídia e cultura. São Paulo: Paulus, 2014.
BAITELLO JUNIOR, Norval. A era da iconofagia: reflexões sobre imagem, comunicação, mídia
e cultura. São Paulo: Paulus, 2014.
BAITELLO JUNIOR, NORVAL. A serpente, a maçã e o holograma: esboços para uma teoria da
mídia. São Paulo: Paulus, 2010.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A imagem grotesca do corpo em Rabelais e suas fontes. In:
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de Françoias Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de
Brasília, 1987. p. 265-322.
BALLESTRIN, Luciana. América Latino e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política,
Brasília, n. 11, p. 89-117, maio/ago. 2013.
204
BARROS, Ana Taís Martins Portanova; SILVA, Michel de Oliveira. Telas, portais para
profanações e sacralidades. In: Encontro Anual COMPÓS, 27., 2018, Belo Horizonte. Anais [...].
Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2018.
BATAILLE, Georges. A noção de despesa. In: BATAILLE, Georges. A parte maldita. Rio de
Janeiro: Imago, 1975. p. 25-45.
BAUDELAIRE, Charles. A uma passante. In: BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2012, p. 63.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
BELTING, Hans. Prof. Hans Belting. An Anthropology of Images or Iconology -- Part 1. [S. l.: s.
n.], 2015. 1 vídeo (41m54s). Publicado pelo canal vapp2010. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=f7LWGKQXOxM. Acesso em: 20 dez. 2019.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN,
Walter. Obras escolhidas, volume 1: Magia e técnica, Arte e política. 3. ed. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1987, p. 165-196.
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, volume
1: Magia e técnica, Arte e política. 3. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 114-119.
BENJAMIN, Walter. O intérieur, o rastro. In: BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte:
Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009, p. 247-262.
BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN,
Walter. Obras escolhidas, volume 1: Magia e técnica, Arte e política. 3. ed. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1987, p. 197-221.
BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: BENJAMIN, Walter. Obras
escolhidas, volume 3: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1989, p. 103-149.
BESSA, Leandro. Do imaginário da puta à pombagira. In: DRAVET, Florence et al. (orgs.).
Pombagira: encantamentos e abjeções. Brasília: Casa das Musas, 2016. p. 63-80.
BRUNO, Fernanda. Rastros digitais: o que eles se tornam quando vistos sob a perspectiva da
teoria ator-rede?. In: Encontro Anual COMPÓS, 21., 2012, Juiz de Fora. Anais [...]. Juiz de Fora:
Universidade Federal de Juiz de Fora, 2012.
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2006.
CARDOSO, Sérgio. O olhar viajante (do etnólogo). In: NOVAES, Adauto (org.). O olhar. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988.
CASTRO, Gustavo. Sabedoria de pombagira. In: DRAVET, Florence et al. (orgs.). Pombagira:
encantamentos e abjeções. Brasília: Casa das Musas, 2016. p. 33-42.
CAVALCANTE, João Victor de Sousa. A imagem informe: reflexões sobre a alteridade dos
corpos sem rosto. In: Encontro Anual COMPÓS, 28., 2019, Porto Alegre. Anais [...]. Porto
Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2019.
COHEN, Jeffrey Jerome. A cultura dos monstros: sete teses. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (org.).
Pedagogia dos monstros – os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000. p. 23-60.
CONTRERA, Malena; BAITELLO JUNIOR, Norval. Na selva das imagens: Algumas contribuições
para uma teoria da imagem na esfera das ciências da comunicação. Significação: Revista De
Cultura Audiovisual, v. 33, n. 25, p. 113-126, 2006.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4. ed. Rio de
Janeiro: Lexicon, 2010.
DELEUZE, Gilles. Carta a um crítico severo. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo:
Editora 34, 1992, p. 11-22.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Ano zero – rostidade. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix.
Mil platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. p. 28-57.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Introdução: rizoma. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix.
Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. São Paulo: Editora 34, 1995. p. 10-36.
DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do
consumo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.
DRAVET, Florence; CASTRO, Gustavo de. O imaginário do mal no cinema brasileiro: as figuras
abjetas da sociedade e seu modo de circulação. E-Compós, Brasília, v. 17, n. 1, jan./abr. 2014,
p. 1-16.
DRAVET, Florence; OLIVEIRA, Leandro Bessa. Novas imagens da pombagira na cultura pop:
símbolos, mitos e estereótipos em circulação. Comunicação, mídia e consumo, São Paulo, v.
12, n. 35, p. 49-70, set./dez. 2015.
EVA. Eva & Adele: Life as a performance | Euromaxx. [S. l.: s. n.], 2016. 1 vídeo (4m17s).
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=E5LQOFg2mpQ. Acesso em: 19 dez.
2019.
207
FERNÁNDEZ, Ana María. Los cuerpos del deseo: potencias y acciones colectivas. Nómadas, n.
38, p. 12-29, abr. 2013. Disponível em:
http://nomadas.ucentral.edu.co/nomadas/pdf/nomadas_38/38_1F_Loscuerposdeldeseo.pd
f. Acesso em: 12 nov. 2019.
GEISSLER, Ralf. 1955: Nascia a cantora Nina Hagen. DW. 2020 [data de consulta]. Disponível
em: https://p.dw.com/p/1y0A. Acesso em: 20 jan. 2020.
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, Carlo. Mitos,
emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 143-180.
GRAU, Olga. Las implicancias de la figura andrógina para pensar la diferencia sexual.
Nomadías, n. 16, p. 187-196, nov. 2012. Disponível em:
https://nomadias.uchile.cl/index.php/NO/article/view/25009. Acesso em: 12 nov. 2019.
GUERRA, Paula. Punk, ação e contradição em Portugal – uma aproximação às culturas juvenis
contemporâneas. Crítica de Ciências Sociais, n. 102, p. 111-134, dez. 2013.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir.
Rio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-RIO, 2010.
HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo:
Editora WMF Marins Fontes, 2013.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago,
1991.
JASMIN, Marcelo. Apresentação. In: GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que
o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-RIO, 2010. p. 7-12.
KRISTEVA, Julia. Approaching abjection. In: KRISTEVA, Julia. Powers of Horror: an essay on
abjection. New York: Columbia University Press, 1982. p. 1-31.
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho – ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 2. ed.
Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, p. 122-151, dez. 2016.
deversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores,
2007, p. 25-46.
MITCHELL, William John Thomas. Como caçar (e ser caçado por) imagens: Entrevista com W.
J. T. Mitchell. [Entrevista concedida a] Daniel B. Portugal e Rose de Melo Rocha. E-Compós,
Brasília, v. 12, n. 1, jan./abr. 2009, p. 1-17.
MOMBAÇA, Jota. [Parte 4] Língua Bifurcada. [S. l.: s. n.], 2018. 1 vídeo [3m19s). Publicado pelo
canal África nas Artes. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=j_EwTemsK8Q.
Acesso em: 07 jan. 2020.
MOSÉ, Viviane. Viviane Mosé em Anamnese. [S. l.: s. n.], 2012. 1 vídeo (29m23s). Publicado
pelo canal Anamnese Entrevistas. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=thJxZl0C24Q. Acesso em: 20 dez. 2019.
MUSÉE D’ART MODERNE. Eva & Adele: You are my biggest inspiration. [press release]. Paris,
2016. Disponível em:
http://www.mam.paris.fr/sites/default/files/documents/press_release_evaadele_0.pdf.
Acesso em: 18 nov. 2019.
NAZÁRIO, Luiz. Da Natureza dos monstros. São Paulo: Arte & Ciência, 1998.
NEJAR, Fabricio Carpi. Teologia do traste: a poesia do excesso de Manoel de Barros. 2001. 117
f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Programa de Pós-Graduação em Letras,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2001.
OLIVEIRA, Luiz Alberto. Luiz Alberto Oliveira O Silêncio. [S. l.: s. n.], 2014. 1 vídeo (1h32m44s).
Publicado pelo canal Monocromo. Disponível em: https://vimeo.com/93608472. Acesso em:
20 dez. 2019.
PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da. Apresentação. In: PASSOS,
Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da (orgs.). Pistas do método da cartografia:
pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 7-16.
PELBART, Peter Pál. A vertigem por um fio: políticas de subjetividade contemporânea. São
Paulo: Iluminuras, 200
PELÚCIO, Larissa. Traduções e torções ou o que se quer dizer quando dizemos queer no Brasil?
Periódicus, v. 1, n. 1, 1-24, maio/out. 2014. Disponível em:
https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/10150/7254. Acesso
em: 07 dez. 2019.
210
PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Queer decolonial: quando as teorias viajam. Contemporânea –
Revista de Sociologia da UFSCar, v. 5, n. 2, p. 411-437, jul./dez. 2015.
PEREIRA, Simone Luci; LÓPEZ MOYA, Martín de la Cruz. De músicas, sons e dissonâncias:
experiências de pesquisa nas ruas de duas cidades. In: Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação, 41., 2018, Joinville. Anais [...] Disponível em:
http://portalintercom.org.br/anais/nacional2018/resumos/R13-1228-1.pdf. Acesso em: 12
dez. 2019.
PERRA, Hija de. Entrevista Hija de Perra & Wincy. [S. l.: s. n.], 2013. 1 vídeo (13m38s). Publicado
pelo canal Revista Fill. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=IkmKJey7ZXI&t=2s. Acesso em: 20 dez. 2019.
PERRA, Hija de. Cortometraje Documental Perdida Hija de Perra. [S. l.: s. n.], 2012. 1 vídeo
(21m40s). Publicado pelo canal xxbonex. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=rWFY8X8bJig&lc=UghD0rtxjmNuSngCoAEC>. Acesso
em 15 fev. 2019.
PIDD, Helen. EVA & ADELE: “We invented our own sex”. The Guardian, 1 nov. 2011. Disponível
em: https://www.theguardian.com/artanddesign/2011/nov/01/eva-and-adele-interview.
Acesso em: 20 dez. 2019.
PIEL, Jean. Introdução. In: BATAILLE, Georges. A parte maldita. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
p. 13-24.
PRECIADO, [Paul] Beatriz. Manifesto contrassexual. São Paulo: n-1 edições, 2014.
QUINET, Antonio. O olhar como um objeto. In: FELDSTEIN, Richard; FINK, Bruce; JAANUS,
Maire (orgs.). Para ler o seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. p. 155-163.
QUINTILIANO, Angela Maria Lucas. De Hades ao Diabo: uma reflexão sobre os significados das
imagens no imaginário pós-moderno da figura do Diabo. Revista Brasileira de História das
Religiões, ano 1, n. 3, 2009.
RABELO, Miriam. A possessão como prática: esboço de uma reflexão fenomenológica. Mana
– Estudos da Antropologia Social, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 87-117, 2008.
211
RANCIÈRE, Jacques. O dissenso. In: ADAUTO, Novaes (org.). A crise da razão. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996. p. 367-382.
REINALDO, Gabriela. Caras em profusão – o que nos dizem as imagens do rosto? In: GERBASE,
Carlos; PELLANDA, Eduardo Campos; TONIN, Juliana. Meios e mensagens na aldeia virtual.
Porto Alegre: Sulina, 2012. p. 109-124.
ROCHA, Rose de Melo. A pureza impossível: consumindo imagens, imaginando o consumo. In:
ROCHA, Rose de Melo; CASAQUI, Vander (orgs.). Estéticas midiáticas e narrativas do
consumo. São Paulo: Sulinas, 2012. p. 21-48.
ROCHA, Rose de Melo. É a partir das imagens que falamos de consumo: reflexões sobre fluxos
visuais e comunicação midiática. In: CASTRO, Gisela Granjeiro da Silva; BACCEGA, Maria
Aparecida (orgs.). Comunicação e consumo nas culturas locais e global. São Paulo: ESPM,
2009a. p. 268-293.
ROCHA, Rose de Melo. Políticas de visibilidade como fatos de afecção: Que ética para as
visualidades? Famecos, v. 17, n. 3, p. 199-206, set./dez. 2010. Disponível em
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/8187/5876.
Acesso em: 12 jun. 2019.
ROCHA, Rose de Melo. Por uma arqueologia urbana: escavando sentidos na cidade-mídia. In:
CARAMELLA, Elaine et al. (orgs.). Mídias: multiplicação e convergência. São Paulo: Editora
Senac São Paulo, 2009b. p. 491-504.
ROCHA, Rose de Melo; FERRAZ, Cláudia. Ciborgue de dreadlocks: o corpo falante Triz Rutzats.
In: Encontro Anual Compós, 28., 2019, Porto Alegre. Anais [...]. Porto Alegre: Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul
ROLNIK, Suely. Guilhotina #40 – Suely Rolnik. [Entrevista concedida a] Bianca Pyl e Luís
Brasilino. Le Monde Diplomatique, 2019. Disponível em:
https://diplomatique.org.br/guilhotina-40-suely-rolnik/. Acesso em: 20 dez. 2019.
ROSA, Maria Inês Petrucci et al. Narrativas e mônadas: potencialidades para uma outra
compreensão de currículo. Currículo sem Fronteiras, v. 11, n. 1, p. 198-217, jan./jun. 2011.
SAEZ, Javier; CARRASCOSA, Sejo. Pelo cu: políticas anais. Belo Horizonte: Letramento, 2016.
SANTI, Pedro Luiz Ribeiro de. Desejo e adição nas relações de consumo. São Paulo: Zagodoni,
2011.
SANTOS, Érica Ramos Samet dos. “Sin porno no hay porporno”: Corpo, excesso e
ambivalência na América Latina. 2015. 135 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social)
– Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2015.
SANTOS, Joseylson Fagner dos. Femininos de montar - uma etnografia sobre experiências de
gênero entre drag queens. 2012. 237 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) –
Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal, 2012.
SANTOS, Thiago Henrique Ribeiro dos Santos. Escuta post mortem: o corpo falante Hije de
Perra como mascaramento para resistir à máquina abstrata da rostidade. In: Encontro de
Pesquisadores em Comunicação e Cultura, 13., 2019, Sorocaba. Anais [...] Sorocaba:
Universidade de Sorocaba. Disponível em:
http://comunicacaoecultura.uniso.br/programa/anais/2019/Epecom%202019(2).pdf. Acesso
em 20 jan. 2020.
SANTOS, Thiago Henrique Ribeiro dos Santos. Uma resistência monstruosa: primeiras
considerações sobre política, decolonialidade e queer em Hija de Perra. In: Congresso
Internacional de Comunicação e Cultura, 6., 2018, São Paulo. Anais [...] São Paulo:
Universidade Paulista. Disponível em: http://www.comcult.cisc.org.br/wp-
content/uploads/2019/05/GT9_Thiago-Henrique-Ribeiro-dos-Santos-ESPM.pdf. Acesso em:
12 jun. 2019.
213
SANTOS, Thiago Henrique Ribeiro dos. As donas da porra toda: uma leitura política da
produção de conteúdo autoral nas mídias alternativas das drag queens Lorelay Fox, Gloria
Groove, Pabllo Vittar e Rita Von Hunty. 2017. Monografia (Especialização em Jornalismo
Cultural) - Programa de Pós-Graduação em Jornalismo Especializado, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.
SCHECHNER, Richard. Performance studies: an introduction. 3rd ed. New York: Routledge,
2013.
SCUDELLER, Pedro de Assis Pereira. Curadoria remix: reflexões sobre circulação e consumo de
arte na 33ª Bienal de São Paulo. 2020, 213 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e
Práticas de Consumo) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo,
Escola Superior de Propaganda e Marketing, São Paulo, 2020.
SHAKESPEARE, W. Do jeito que você gosta. Trad. Rafael Raffaeli. Florianópolis: Ed. Da UFSC,
2011. p. 54.
SHIRKY, Clay. Lá vem todo mundo: o poder de organizar sem organizações. Rio de
Janeiro: Zahar, 2012
SILVEIRA, Fabrício Lopes da. O olhar etnográfico de Walter Benjamin. In: Congresso Brasileiro
de Ciências da Comunicação, 25., 2002, Salvador. Anais [...] Disponível em:
http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/131467036819540624755434523387115016002
.pdf. Acesso em: 12 dez. 2019.
TOMAIM, Cássio dos Santos. Cinema e Walter Benjamin: para uma vivência da
descontinuidade. Estudos de Sociologia, n. 16, p. 101-122, 2004.
v., Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma
análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. 244 f. Dissertação
(Mestrado) - Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.
VIDEOGRAFIA
CLASE de venéreas por hija de perra (parte 1). [S. l.: s. n.], 2013a. 1 vídeo (4m46s). Publicado
pelo canal Romano Barbini. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=t5uQs_N0JYg&t=109s. Acesso em: 20 jan. 2020.
CLASE de venéreas por hija de perra (parte 2). [S. l.: s. n.], 2013b. 1 vídeo (7m56s). Publicado
pelo canal Romano Barbini. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=wA9939AI26U&t=180s. Acesso em: 20 jan. 2020.
CLASE de venéreas por hija de perra (parte 4 y última). [S. l.: s. n.], 2013c. 1 vídeo (30m16s).
Publicado pelo canal Romano Barbini. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=f3MqknS3NEQ&t=3s. Acesso em: 20 jan. 2020.
CONMEMORACIÓN “Hija de Perra” en Y Qué Pasó? [S.l.: s.n.], 2017. 1 vídeo (6m58s).
Publicado pelo canal VIA X. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=rDFAdjCvDsM. Acesso em: 12 set. 2019.
CORTOMETRAJE Documental Perdida Hija de Perra. [s. l: s. n.], 2012. 1 vídeo (21m40s).
Publicado pelo canal xxbonex. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=rWFY8X8bJig&t=2s. Acesso em: 12 jun. 2019.
215
DISCURSO de Hija de perra en marcha por la diversidad sexual 2013 en Arica. [S. l.: s. n.], 2013.
Publicado pelo canal Gustavo Canales. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=0XY009QcQSA. Acesso em: 20 dez. 2019.
EMPANÁ de Pino – Película completa. [s. l.: s. n.], 2013. 1 vídeo (1h28m47s). Publicado pelo
canal VideoFilms Distribuición. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=v3HYLQt1ySw&t=2871s. Acesso em: 12 jun. 2019.
ENTREVISTA Hija de Perra & Wincy. [S. l.: s. n.], 2013. 1 vídeo (13m38s). Publicado pelo canal
Revista Fill. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IkmKJey7ZXI&t=2s. Acesso
em: 20 dez. 2019.
EVA & Adele: Life as a performance | Euromaxx. [S. l.: s. n.], 2016. 1 vídeo (4m17s). Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=E5LQOFg2mpQ. Acesso em: 19 dez. 2019.
HIJA de Perra – Asesina por naturaleza (video tributo). [S.l.: s.n.], 2013. 1 vídeo (1m56s).
Publicado pelo canal Adraviel Bada Boom. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=OMLoxN4BvwU. Acesso em: 12 set. 2019.
HIJA de Perra – Nalgas con olor a caca. [S.l.: s.n.], 2012a. 1 vídeo (4m35s). Publicado pelo canal
Luis Figueroa Contreras. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=H-32vQFqWg8.
Acesso em: 20 dez. 2019.
HIJA de Perra – Reggaeton Venero. [s. l.: s. n.], 2012b. 1 vídeo. (2m35s). Publicado pelo canal
xxbonex. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fA_aVqa7KSk. Acesso em: 12
jun. 2019.
HIJA DE PERRA | Makeup tutorial. [S.l.: s.n.], 2018. 1 vídeo (1m16s). Publicado pelo canal Erika
con K. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=q1Oo8-iYbLk. Acesso em: 12 set.
2019.
HIJA de Perra + Perdida – Indecencia Transgenica – Indecencia Trance. [S.l.: s.n.], 2012c. 1
vídeo (5m12s). Publicado pelo canal Wincy Oyarce. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=mkGJHUkBLgQ. Acesso em: 20 dez. 2019.
HIJA de Perra 18+ (Tributo). [S.l.: s.n.], 2015. 1 vídeo (4m49s). Publicado pelo canal
ENAMORADO TV. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SKiWxeq5C3o. Acesso
em: 12 set. 2019.
HIJA de Perra en cumpleaños de Lontano – 2008. [s.l.: s. n.], 2017. 1 vídeo (12m36s). Publicado
pelo canal Lontano. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RvfZfZ-UTjE. Acesso
em: 12 dez. 2019.
HIJA de Perra en encuentro “Ciudadanías del Cuerpo”. [s.l.: s.n], 2011. 1 vídeo (23m37s).
Publicado pelo canal Oftanova. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=I6xx3RK8sXU&list=LLMeCzrxLb5v7nBeUURJtlEw&index
=530. Acesso em: 12 dez. 2019.
216
HIJA de Perra in memoriam. [S.l.: s.n.], 2016. 1 vídeo (2m27s). Publicado pelo canal OFAN.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EEssrusBCpM. Acesso em: 12 set. 2019.
HIJA de Perra Ofensivo Margen Sexual en una raza sospechosa. [S.l.: s.n.], 2016. 1 vídeo
(26m16s). Publicado pelo canal Ruth Diranovitz. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Q0gBqKd7iyY. Acesso em: 20 dez. 2019.
HIJA de Perra y La Prohibida – Sonidos Ardientes (cap 3). [S.l.: s.n.], 2012d. 1 vídeo (17m17s).
Publicado pelo canal xxbonex. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=MD7nd2jgWIc. Acesso em: 20 dez. 2019.
HIJA de Perra y Perdida – Reggaetón Venereo. [S. l.: s. n.], 2012e. 1 vídeo (2m14s). Publicado
pelo canal xxbonex. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RLjNqZpfHPM.
Acesso em: 20 dez. 2019.
HIJA de Perra, Me desnudo (Pagano 31 de Enero 2009). [S.l: s.n.], 2009. 1 vídeo (2m18s).
Publicado pelo canal Remaro Music. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=4wj3v8vtprg. Acesso em: 20 dez. 2019.
HOMENAJEAMOS a Hija de Perra en el estúdio de Roxy Foxy. [S.l.: s.n.], 2018. 1 vídeo
(49m09s). Publicado pelo canal VIA X. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Ud55HusWa-I. Acesso em: 12 set. 2019.
INDECENCIA Transgénica – Amor Patetiko (Hija de Perra + Perdida). [S.l.: s.n.], 2018. 1 vídeo
(1m54s). Publicado pelo canal Olga Sana. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=RqdR4ODUMnc. Acesso em: 02 fev. 2020.
INDECENCIA Transgénica – Asesina por naturaleza (Hija de Perra + Perdida). [S.l.: s.n.], 2018.
1 vídeo (2m28s). Publicado por Olga Sana. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Si5dNW1QIQw. Acesso em: 20 dez. 2019.
INDECENCIA Transgénica (Hija de Perra + Perdida) – Megamix Inmundo. [S.l.: s.n.], 2019. 1
vídeo (5m40s). Publicado por Wincy Oyarce. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=5RfovH4Gmas. Acesso em: 20 dez. 2019.
INDENCENCIA Transgénica – Papito Rico. [S.l.: s.n.], 2012. 1 vídeo (2m17s). Publicado pelo
canal xxbonex. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NXKwyyKakSQ. Acesso
em: 20 dez. 2019.
INTENTO Tributo Hija de Perra. [S.l.: s.n.], 2014. 1 vídeo (22m35s). Publicado pelo canal baito
kurage. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3d39Jfmy2Vo. Acesso em: 12
set. 2019.
LINN da Quebrada – Submissa do 7º Dia (Áudio-Vídeo Oficial). [S.l.: s. n.], 2010. 1 vídeo
(3m55s). Publicado pelo canal Linn da Quebrada. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Kfjhie6Y5Qc. Acesso em: 20 dez. 2019
217
MC Tha – Rito de Passagem. [S.l.: s.n.], 2019. 1 vídeo (4m02s). Publicado pelo canal MCTha.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PRAx8dgvPAo. Acesso em: 20 dez. 2019.
MOSÉ, Viviane. Viviane Mosé em Anamnese. [S. l.: s. n.], 2012. 1 vídeo (29m23s). Publicado
pelo canal Anamnese Entrevistas. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=thJxZl0C24Q. Acesso em: 20 dez. 2019.
ODESSA “Me desnudo” (Cover de Hija de Perra). [S.l.: s.n.], 2015. 1 vídeo (2m55s). Publicado
pelo canal Lau Molina. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=T0ZBgHm2PSA.
Acesso em: 12 set. 2019.
RICHARDBAKER. Nalgas con olor a caca (Hija de Perra cover). [S.l.: s.n.], 2018. 1 vídeo (1m45s).
Publicado pelo canal DiablaBarker. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=QEL4c0KuslE. Acesso em: 12 set. 2019.
RIP Hija de Perra ha muerto! [S.l.: s.n], 2014. 1 vídeo (1m15s). Publicado pelo canal Christian
Ortiz. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IuCCSbV-7Qo. Acesso em: 12 set.
2019.
VIOLENCIA intrafamiliar – hija de perra. [S.l.: s.n.], 2011. 1 vídeo (3m08s). Publicado pelo canal
Carlos Mena. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jfPDWESqFQU. Acesso em:
20 dez. 2019.
218
FORMATO NOME DESCRIÇÃO TIME VIEWS LIKES DISLIKES COMMENTS DATA CANAL LINK
Guión y Dirección: Wincy Oyarce
Producción: Adriana Silva Dirección de
Arte: Ponny Lee Fotografía: Wincy
Oyarce Sonido Directo: Rodrigo
Troncoso Maquillaje: Claudia Acuña
NIÑO BIEN - GOOD BOY https://www.youtube.com/
Curta-metragem Vestuario: Ponny Lee, Irina Gallardo, 09:23 10.224 186 9 16 17/03/2016 Wincy Oyarce
(English subtitles, 2013) watch?v=oH2vGklTt08
Hija de Perra Música: Márgaro
Edición/Post-Producción: Wincy Oyarce
INTÉRPRETES: Irina Gallardo Hija de
Perra Caleb Gutiérrez Josecarlo
Henriquez
video que hicimos junto a Hija de Perra
en el año 2006 para el lanzamiento del
YO LA PEOR DE TODAS - Hija https://www.youtube.com/
Curta-metragem libro de poemas de Estela Lamat. Qué 07:02 4.412 166 6 14 29/04/2016 Wincy Oyarce
de Perra & Wincy presentan watch?v=IVieHRhPFZc
sirvió de inspiración estética también
para Empaná de Pino luego...
Discurso de Hija de perra en
https://www.youtube.com/
Discurso público marcha por la diversidad sexual - 17:48 35.146 705 11 65 04/06/2013 Gustavo Canales
watch?v=0XY009QcQSA
2013 en Arica
Devela un día en la vida de la conocida
performista trash Chilena, Hija de Perra,
durante los preparativo para una de sus
presentaciones. Durante ese día nos
situaremos tanto en su espacio privado https://www.youtube.com/
Cortometraje Documental
Documentário como en la ciudad, en la que irrumpe 21:40 92.809 1.1k 72 197 05/09/2012 xxbonex watch?v=rWFY8X8bJig&t=
Perdida Hija de Perra
con su travestismo bizarro e indecente. 2s
Su cotidianidad, sus intensiones como
artista y los devenires sexuales de un
personaje que nos habla desde los
márgenes de la sociedad.
https://www.youtube.com/
Show/Evento Hija de Perra - Me desnudo Cine Arte Alameda 2:20 8.877 18 3 4 10/09/2009 TheMisterfactory
watch?v=0HDQDmwDvQE
223
http://www.upsocl.com/cultura-y-entretencion/el-legado-de-
El legado de Hija de Perra: El travesti y activista que
Comemoração do legado UPSOCL 03/10/2017 hija-de-perra-el-travesti-y-activista-que-cambio-los-
cambió los paradigmas a través de lo extraño
paradigmas-a-traves-de-lo-extrano/
La "Hija de Perra" será homenageada en Centro Arte http://www.radiozero.cl/agenda/2016/08/la-hija-de-perra-sera-
Divulgação de evento Radio Zero 18/08/2016
Alameda homenajeada-en-centro-arte-alameda/
http://www.revistabellopublico.cl/index.php/rbp-
Irina La Loca, performer: "Se murió Hija de Perra y yo
Entrevista Irina La Loca Revista Bello Público 13/10/2017 interviu/entrevistas/86-irina-la-loca-se-murio-hija-de-perra-y-
quedé a poto pelao"
yo-quede-a-poto-pelao
Murió "Hija de Perra", Drag Queen y exponente chilena https://www.eldinamo.cl/cultpop/2014/08/26/hija-de-perra-
Notícia da morte El Dínamo 26/08/2014
del "Marginal Style" muerte-drag-queen-marginal-style/
Calientes Transnacionales, el homenaje a la activista http://burdas.cl/calientes-transnacionales-homenaje-la-
Divulgação de evento Burdas 24/08/2017
"Hija de Perra" activista-hija-perra/
Estuvimos en el lanzamiento de la exposición http://vistelacalle.com/143306/estuvimos-en-el-lanzamiento-
Divulgação de evento Viste la calle 20/08/2015
homenage a "Hija de Perra" de-la-exposicion-homenaje-a-hija-de-perra/
http://www.elobservatodo.cl/noticia/sociedad/fallece-hija-de-
Notícia da morte El Observatodo 26/08/2014 Fallece Hija de Perra
perra
http://www.clarinet.cl/nuevo/index.php/miselanea/espectaculo
Performista, feminista, drag queen y artista
Comemoração do legado Clarinetet s/515-la-muerte-de-hija-de-perra-y-el-arte-politico-desde-la-
transgresora
marginalidad-real
Biográfico Aim 21/07/2018 Hija de perra, grotesca disidente http://www.aimdigital.com.ar/hija-de-perra-grotesca-disidente/
Cuántas Hijas de Perra son necesarias para hacer https://hysteria.mx/cuantas-hijas-de-perra-son-necesarias-
Artigo opinativo Revista Hysteria estallar el mundo? Escrituras transgénicas em para-hacer-estallar-el-mundo-escrituras-transgenicas-en-
homenage a Hija de Perra homenaje-a-hija-de-perra/#_ftn1
http://www.disorder.cl/2014/02/17/recibi-lecciones-de-amor-
Perfil jornalístico Disorder Magazine 17/02/2017 Recebí lecciones de amor de Hija de Perra
de-hija-de-perra/
Biográfico Post Dictadura 08/06/2009 Hija de Perra http://postdictadura.blogspot.com/2009/06/hija-de-perra.html
Reconocido drag queen "Hija de Perra" falleció este https://www.publimetro.cl/cl/entretenimiento/2014/08/26/recon
Notícia da morte Publimetro 26/08/2014
domingo ocido-drag-queen-hija-perra-fallecio-este-domingo.html
Divulgação de evento Portal Saci UFOP 17/11/2016 II Semana de Diversidade de Ouro Preto - UFOP https://www.saci2.ufop.br/servico_clipping?id=3092
https://revistahibrida.com.br/2017/10/17/alma-negrot-
Nome citado Híbrida 17/10/2017 A moda manifesto de Alma Negrot
entrevista/
Divulgação de https://anarcopunk.org/v1/2017/07/rio-de-janeiro-cine-clube-
Anarcopunk jul/17 [Rio de Janeiro] Cine Clube pósporno + debate
evento/cineclube posporno-debate/
226
https://dspace.unila.edu.br/bitstream
Corpo-espetáculo: o audiovisual Trabalho de conclusão de curso /handle/123456789/3640/Corpo-
Citação/Monografia como ferramenta de expansão que usa Hija de Perra na epígrafe e Espet%C3%A1culo_FINALREAL%2
Adri Alves de Sousa UNILA
de graduação corporal das potências a cita no texto Interpretaciones 0-
gênerodissidentes Inmundas %20Documentos%20Google.pdf?se
quence=1&isAllowed=y
Artigo que tem uma nota de rodapé
que indica, para o queer em uma http://www.scielo.br/scielo.php?pid=
Civitas - Revista de
Gênero como categoria de análise Camilla de perspectiva decolonial, Larissa S1519-
Referência Ciências Sociais, v. 18, PUC-RS
decolonial Magalhães Gomes Pelúcio, Pedro Paulo Pereira, 60892018000100065&script=sci_artt
n. 1, jan./abr. 2018
viviane v. e Hija de Perra com seu ext
Interpretações Imundas
Discute o cinema e menciona o
filme Empana de Pino, descrevendo
https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?pi
Nuevas Tendencias del Cine brevemente a sinopse e propondo o
Carolina Larraín Aisthesis, n. 47, jul. d=S0718-
Menção/Artigo Chileno tras la llegada del Cine PUC Chile longra-metragem como um dos
Pulido 2010 71812010000100011&script=sci_artt
Digital primeiros a abrodar a temática
ext&tlng=en
queer e ter como protagonista uma
"travesti"
https://www.e-
Concinnitas, ano 17, v. Manifesto que cita o texto
Citação/Artigo Manifesto Traveco-Terrorista Tertuliana Lustosa UERJ publicacoes.uerj.br/index.php/concin
1., n. 28, set. 2016 Interpretações Imundas
nitas/article/viewFile/25929/18560
Uma tabela que parece ser uma
sequência para filmagens tem uma
Documental Cinematográfico menção à Hija de Perra, na qual lê-
sobre cómo los grupos de la se o que parecem ser
http://157.100.241.244/bitstream/470
Menção/Monografia diversidad sexo-genérica en la Mélida Margarita apontamentos para filmagens,
Universidad Tecnológica Israel 00/1594/1/UISRAEL-EC-P.TM-
de graduação ciudad de Quito utilizan el Coello Vítores indicando locação, tipo de gravação
378.242-2018-004.pdf
performance como una expresión de áudio e atividade. "Int. Discoteca
cultural, artística y social Queens/Noche | Presentación de
tributo a la "Hija de Perra" |
Ambiental"
Abordando um festival chamado
FemFest, diz-se que a animação do
festival ficava a cargo de Hija de https://repositorio.uc.cl/bitstream/han
La Performance Femenina como Estudios Resonancias,
Menção/Artigo Guadalupe Becker PUC Chile Perra todos os anos, uma dle/11534/4566/000568338.pdf?seq
evocación del Tabú 28
transformista equivalente à uence=1
Coordenadora, junto a Barbie
Chilena
Propõe uma discussão entre queer
e estudos subalternos, a partir de
Spivak, e utiliza como exemplos de
Estética queer: experiência, https://riuni.unisul.br/bitstream/handl
Juliano Guimarães Universidade do Sul de Santa "práticas subversivas" Hija de
Exemplo/Dissertação subversão, multiplicidade e devir e/12345/490/110772_Juliano.pdf?se
Felizardo Catarina Perra, o filme Tatuagem, Ney
na contemporaneidade quence=1&isAllowed=y
Matogrosso e Divine. É usada mais
como exemplo para ilustrar a
proposta do que uma análise
Estudo autoetnográfico sobre o
projeto Freeda, um "negócio social"
sobre diversidade, e como a
Políticas de respeito à diversidade
promoção da diversidade se
sexual e à igualdade de gênero na http://repositorio.unb.br/bitstream/10
Patrícia Vilanova relaciona com lógicas capitalistas.
Citação/Dissertação iniciativa privada: uma análise a Universidade de Brasília 482/31406/1/2017_PatriciaVilanova
Becker Articula queer e subalternidade.
partir do projeto Freeda: espaços Becker.pdf
Cita Hija de Perra, no texto
de diversidade
Interpretaciones Inmundas, para
pontuar as limitações geopolíticas
do queer
229