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Alcides r{
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SÂt 1*"*, t- 4^r,
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N&t lnxkrii mais a literafura
l,h,ltlítru rlritur tle incluir, no n.úmero **üo +t,+d-:-h T
,h, trul twtudttres que lurcam a
t('ilttttt!l.tl(), () tk)ntc de losé AlcilleS
l\ttttt, tlt( t,rilt tla poesia e guardou
§llulv
t ttilt., (,'ttinrdrUcs Ilos4 cl gttstO pelA
S^*k,." Lev\Cr,,^',/
ttrtt'trlúl( yrx,ulwlor que o tmto com
t' lk,t'tttt irtJittula.
() nttnrutt.r, 0 DRÁGÃO é aos )\ d- I
(l,tt, tr§sqltrant u José Álcides pinto
um
htyltr imlxtrtante na renovação
Itt't'iltnal út País E esse lugar
r't»ttlttisla-o ele sem imitar Guimardes
h' Lr-- L c, (,4,F)

lit»u, que é o meio mais comum de


st fugir da sintaxe rwnativa anterior.
Nuit. Iile"realiza uma mudançç sua
larttativa renovadom propia, e cJe tal
nwneira o faz que planta uma realidade
litcrária na ficção brasileira
r*,
A linguagem de O DRÀGÃO é
altamente significante. Ele sene à
narrotiva ao invês de se seryir da
nurativa paro aparecer apenas como
linguagem Dai a rapidez com que o
leitor possa por sobre as palavris do
livro. Elas existem, mas nõo existem,
estdo ali mas informarn todo um
processo rwnstivo. Com isso, atinge o
autor um níyel de ficçõo como temos
muito poucos no Brasil
Tumbém Guimarões Rosa
começou pela poesia, e o ritmo do
rwrrador poderoso ( Kazantzakis) por
\\
jr,u .)f,**u,
exemplo) é sempre prtícipeda
uW* u S*r tlt-1t L1)ú o
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llft,s l,lNl'o José AIcüüês Pinto
'r. , rr íiulrt rl,. ('111111r.;1
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l.rr.rrrlrrrlt. ( irsíckr Iiralco, 255
I rrr I rrL,rrr ( r.:tr:i llr:r"sil
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rilttl-t( ) tcfl'/\,rúuNlClPAL ..
lhhrrr B;trrcira 0' '' t '
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ItnPrr.:so rro llr;rsrl/l,r irrlt,tl irr llr:rzil


( :tlrtloll;r('lro rr;r l.rrrrlt. lll\;Ml,
romance

Pinto, Jose Alcides


O dragão/
l)65()d llinto, José Alcides
O
Dragâo: rornnce. 3? ed. F«rrtalelza, r ffi llil llilllu
I
ffi ffi llil
Secretaria de Cultura e Desporto, 19g7. l,rulu [[[lill

173 p" msLlffiTffi§& ffiuflü§#$pÀt"


Hmfukfl Ss*"r*ipa
Àv. da tllsjx..,er-.-r#*"*t, , fffã . §,rii:[i.
l. Literatura Brasileira
- R.omance
L T'ítulo 3a edição
CDD B 869.3 Fortaleza
SI,('RETAR.IA DE CULTI.IRA E DESFORTO
1987
'r Rlr.(x;lA lrA MAl.l)l('Áo

{t , l4ed. GRD, 196412?ed' Rio,0 Cruzeiro'


l()(,)i
( )r, Abutres cla Colina. 11 ed' Rio' Companhia
19"i1 2* ed. Fortaleza, l'{açâ'o

de Maria (BiograÍia. de um Louco), Rio'


Editora Americana, 1974'

Capa e ilustrações de
ATJDIFAX RIOS

ffte - Finâl de

EDSON DO VÁ,I.J

Revisiin de
MABIA DO CÉU
,\

.loitlv var NIa cedtr


nrert atrtigcl e tlscritor

I # A
Luis Sérgio Santos
- jornalista

Sô o fantástico tem a Pos-


de ser verdadeiro'
"ibilidade
Teilhard de Chardin

I
sobre sua poesia, intitulâdo O Universo Mí-
l: ) José Alcides Pinto, puliicado pela Imprensa
em 1979, e que se constitui a principal fonte
isa de sua obra poática.

A reediçâo desta obra tornou-se possível com o apoio


Oficial
da Secretaria de Cultura e Desporto e da Imprensa
do Ceará:

Governador do Estado do Ceará:


LIJIZDE GONZAGA FONSECA NÍOTA
Secretário de Cultura e DesPorto:
(JOARYVAR
JOAQUIM LOBO DE MACEDO
MACEDO)
Diretor-Presidente da Imprensa Oficial do
Ceará:

MURILO ROCHA AGUIAIT FILHO


I I

ru
ffi
la parte
I
BRUMA envírlvia o povoado. Chovera
a noite
A
Uma vaca levantou-se da malha.
Tornou a Sacudiu a cabeça derru-
toda r:omo uma mulher.
NÍijou dernorada-
o talo verde do rabo' Nlijorr "

toda a chuva
como se o corPo tivesse abson'ido
T no chão. llm
caíra naquela noite' Àbriu rrm lago
do
riacho foi represar suas aguas numâ depressão

(}rrurlts enorlnes empoleiravanl--re ao pé das paredes


.ierintrtn.. Eram tantos' que AS vacas os atro-
trrlhas de
duran te a noite. Amanheciam
estourados nos

vezes
Llm rasga-mortalha cruzou o povoado várias
ceu no rumo do cemi
seu terrível agouro' E desaPare

com o cabo
Amarante destravou a porta. Esmagou
nos
um morcego Pregado no portal. Cuspiu Pés.

a braguilha da ceroula e mijou


no meio do temPo.
ensurdecedor. Do outro lado do
ém gritou:
Amarante!
cada vez
a noite

15
- ii
'l

.. I
'

Flstourando como um novilho bravo. Derrubando barran-


r:os. Carregando cercas. Inundando plantações. Destruindo
os casebres da gente pobre.

- Enchente doida, Amarante!


- Quem é que vem aí?
- Sou eu. O rio não me deixou dormir. Aonde vai a
essahora, homem de Deus! não me diga que é para a ilha.
Vocô não ó doido. O rio está lambendo o Alto (l). E um
mar dágua. Nem de canoa eu o atravessaria. Cada ,,funil,,
de assombrar. Deixa a bruma espalhar. É uma cerraçâo
maluca. Você. está me vendo? Pois não está!
- É o Regino.
- Sou eu. lVlas você reconhor:eu pela voz. Nâo se
arrisgne. lil um munddo dirgua cheio de novelos. De cobras.
I)e paus. I)o aranrc falptdr:. Eatá rasganrJo tuclo que encon-
ta. À rll
rroitc ouvi o genrido ,i" u*, touro estrepaclo.
lrnr:u
Arnarante coQou os badalos com o cabo da foice
o()rno se eetivesse a remover duas cabeças de ferro velho.
- A Pia iâ feu o caÍé? - indagou do homem à frente,
cepflr&do pela bruma.
-
Café? Não sei. Aquela água-choca está te esperando.
Os homens se moümentaram numa só direçâo. Suas
cabeças se chocaram.
- Acende o cigarro, Regino.
O outro tirou do cós o cigarro de palha de milho.
Friccionou com o polegar a lixada caixa de fósforos. Ris-
cou o palito. A cara pregueada do negro Amarante apareceu
regeladá pelo frio, como uma máscara úmida. Apanhou o
cavalete escorado na parede externa da casa. Saiu. Protegida
por uma pedra enorine ao pé do tamarindeiro, a velha Pia
aüçava os gravetos. O abano não ajudava. Podia torcer-se.
Era um pano encharcado da umidade da noite. Os dois
homens se acocorararn ao calor das fuempes. Um vulto alto

(l) Nome pelo qual os primeiros habitantes designavam o poroado

16
à frente do cavalete' A
lrtrlt'tvtrr de uma mulher atravessou-se
r irrlr;r rrs",\'iitttrlo. I)evi6 ,t,, alt<l pei<i solrl (ltle vinha tle A línzua de fora' Os peitos inchados' O
lur,r,
.r.ir l'lllr o ll.itirrtttttrlo Neco. 'Icldo nrundo tl conltet:ia' ^,r,*r.lr. golpe forte
\,rrr, rr rl,,rrnirt. l'lslitva -settllrre a-*soviantlo. apaixc'nado ltor
;;;;;"-;"; nuvens. Estava grávida' Com-um Viu-o
;;; ; negro dewiou-se do corPo' Benzeu-se'
l, rrl:r: ;t: nrtlllt('r('s tltl povoado depois' soltando ágtra
mergulhar num remornho e emergir
l)r'1rois rlr' Iotttar o tafé. Amaraltte scgtliu para a ilha' beijando a cosjta
e pelo nariz' Benzeu-se de novo'
lr*tu'tro"a
I rr prtri:,r ( ()trr{'(tlr it t:tttprcita que fizera no dia anterior'
,lo. -ãos e encomendou-lhe a alma:
[ ,,,,, ,,',1,t,'ititrla arttlat:iosa. Ningtí:rn qllisera Iechar o negô-
- Deus te guarde'
,', N'I,t.,'lr' lrcgtttt. l[á rlrras sclllllllils ni-to dar':r rrm dia de
as primeiras vidas
, r\i( ()- l)()Í ('allsil (l('tttttit esltltllrlil tlttc lcvitrit ntr perna' A No povoado de Alto ilos Angicos
sem sentido' Vidas
rr,, , ssirl;rrlc itg()rit () r,lrrig:rr:t [\lto lrorliit rll'irirr pllssilr qllal- despertavam. Vidas apagadas, -inúteis',
as portas' se
r1u, r' pr.1t.sl;t I tlt lotttr', irttr'ltlrt rlt ltigtt:r t'tttt'iit ttlt llodega *"i,".. Algumas criaturas idiotas abriam até a beira da
esDresuiÇavam; davam dois passos
dormentes
,1,,.1,,-;r l'illr,, \,, lorlo. ltczrttlos l st lr'ltl;t rrril reis o espe-
r,r\,nn I lrrt ,lttt,l;t , ttollllt'. l'l st rtltrl litlrrirl;rsst'rlt'tttrc» tlo ;;í;;ã;;';,i";r* " fi"'vu* olhando o tempo' Espresuiça-
a cara' os homens coçavam
;,,.rr,, l,,,rl,,,ttt lto;tlp,,,,tt ,1,, 1,,,v,,lttlt, llrl colrlrltriir ttttf vin- ;;;--" novimente. Esfregavam forte e engas-
li'rrr \rtty'ttt ttt rllli.r'lil Ittlptt'il:tt o lt lrt lltt ttttttittl() rlc cast'a- os tadalos. Espirravam' Tossiam' (Tossiam
gado, como cachorros') Depois de
muito tempo apanhavam
\ r'r ,' , :tt:utgttr'.i,'ir':ts, '\,;ttcla lllrir <I' 5('rr()tÍ: dos tliabOS'
I rrrir solrlt rlr' lrlirrrlaçâo (l() itllo Pa§sa(lo' Llrna t aptrcira' as cabaÇâs e iamtropicatdo t'" pedras (como se não pudes-
rio'
,,rr,lr' , ,rlrrrs v('rl{'tlosits sc enroscavam nas totlceiras e esPrei- sem -;; o corpo) apanhar água no
""- com ,
poleiros'
tir\rnl:r r'ítirrra de soh os buracos entre as pedras' Nlas a pri*ài,á. galinhasiambém saltavam dos
o sobrecu' Soltavam
sitrrl('ão tlo rleflo Antarante não oler:ecia escolha' Abriam sofregamente o bico' Coçavam
E os galos co-
Agora csiava a carninho do trabalho' E para comeÇírr' uma cuspidal C""rreluv"m' Agachavam-se'
o rio botava uma das suas nraiores en(rhentí-'s' Quantas briam uma'a uma, sistematicamente'
de lundum' A
r,ítirnas não teria feito durante a noite? Quantos animais'l Também as mulhere§ levantavam-se
cós da saia' CoÇando
I
(]uant.as mulheres? Quantas crianças? Quantos lares destruí- cara enferrujada' Catando pulgas nos
como a§ vacas) no qurn-
,los'l Amarante teve uma ponta de soçobro Por dentro' A a bunda . ,. uirilhu.. Mijavam ile pé
o sungão e faziam o
l,nrma esgarçou um pouco, e ele pôde fazer trma idéia da ;i;;;" terreiro' E'*T g*'"*-'e com
tlcstruiçâo qlle as águas haviam causado' Uma enchente café.Asvezesiamatéabodeg"eingeriamumdobrãode
com
Calçavam o queixo
rlaquela-" era uma calamidade. Arvores enôrmes arrancadas cachaça' Cuspiam ao pó do balcão'
proietadâs no rio' Mesmo a masca de fumo e rePetiam
o trago'
5riir violentas trombas-dágua eram
â-§sim o negro Amarante atirou-se com seu cavalete' [J uru
rla hóia com o faoão, a enxada e a foice feito um feixe mon-
tado na cabeça, preso ao cinturão de cipó oom o nó de bar-
bir:acho. Caiu nágua remando com os pés, afastando com âs
mãos os batumes de paúes e vergônteas de espinheiro' O

18
onde tra-
r rlui'r'('rrr rlt, Ltrrlo. Não sei como não esquecem
,,',,, ,,,,,1,,,,,',,.'fambérn só comem carne de bodel
o vigário veio muittl cedo - gemeu com humil-
r l;t r L'.
Venho a hora que quero' Hoie acordei-me às drras
do
,lrr rrltdrugada. Não ao, p"g'içoso como essa gente
\1t,,. lJanão de morrinhas' Só são esPertos para mentir e

l,,l,rr ,la vida alheia. É isso que contam no confessionário'


Niio sabem dizer outra coisa' Sô isso! Ou que
roubam
Vão todos parâ o
gllinhas e bodes. Estão amaldiçoados'
avisto gente do
inf"rno. Terra de gente ladrona' Quando
roubem as
Alto, aperto logo o cinturão, com medo que me
AS (llN( lO rla rrritrr[ril, parlrc 'l'ibúrrrio e Jatrír, o sacris- ,,olçu.. iá me carregaram até um estribo'
l;ro, r'rrtntrltnt tto ltot't,:ttltt, alls galtlpcs' Os rlavallls afronta- cachorros tenham levado' padre' As
111;5. os ritsillros t'rrrl:ttlos tlt'tlsporas.
() pirrlrc só andava às - Talvez os
r:orreias estavam ensebadas'
,'irr.r.,'irir,-. Niro tirrlra lotttpaixão d«ls ilrutos''I'irava ern cachorro também andava
as (liIl('() lógrras que separam a cidade de
rrr,'n,,s rl,' ttttta hora
- Ahl E eu não sabia que como a sua caberia isso!
a cavalo. Só numa cabeça demente
Sirrrllrrrir rlrÀt:araír do povoado de Alto dos Angicos' Os Sevocênãofosseumtrastetãoimprestável,osladrões
rrrirrclurntt:s atrabavam de massacrar os prirneiros bodes, também já teriam lhe levado' E não fazia
falta'
grcrrrlrrranrlcos em carnbitos) nos galhos dos tamarindeiros, O sacristão não abria a boca' Cumpria servil e
religio-
pirla esfo[á-los. samente o que o Padre lhe ordenava'
- Gente idiota bufou o Padre' - Só comem
carne
Não foi, .lacô, não roubaram o estribo'i
-
rle bode, por isso são malrrcos.
-
É. D"sapo.t"eu'
Levantou a aba engomada do chapéu de feltro ao I)esapareceu, não' Roubaram' Isso é outra
coisa'
tlefrontar o cruzeiro e riscou o cavalo na porta da zeladora,
- Você
Então foi você quem o tirou, para trocar por
cachaça'
cotro :c fosse um r aqueiro' esguece até
,"a" pi". qr" ,* alambique' N" hota da missa'
Dormem como o Diabo. Gente podre de prezuiÇa'
a"rrrua*omissal.Etocaâcampainhaquandobementen-
Açoitoua porta com o cabo-de-veado da chibata' aí no bolso'
de. Garanto como está com um frasco cheio
no interior'
- Quem é? - gemeu uma voz apagada Vive caindo do cavalo' Um dia morre bêhado e
sem confis-
O vigátio. Bolas! Ainda pergunta quem é? mesmo' Não
- são. Eu não duvido até que tenha sido você
"Tia Chiquinha" envolveu às pressas a manta de lã quero um sacristão viciado' Está sempre se
atrasando no
sovada nas costas, calçou as chinelas ordinárias e destrancou o cavalo está
caminho' Por quê? Inventa que vai urinar' Que
a portâ. disso' É só para
cansado. Isso e aquilo' Mas não é nada
- Ah, seu vigário, me perdoe. Esqueci que hoie era
entornar o álcool no bucho'
!
domingo. - E curvou-se para beijar-lhe a mão'
Vocês
- Nao precisa. Estou com as mãos suadas'
21
20
I

Jacó limitava-se a funsar. A papada de porco cevado


sc repuxando no rosto congestionado:
- Nem tanto, nem tão pouco, seu vigário.
- Nem tanto, nem tão pouco, nem nada. O auxiliar
rlr: urn padre deve ser um homem correto. E você não é
itl)enas um auxiliar. Um acôlito. Mas o filho rnais velho.
J{,scortheço que sou pior que cigano para aceitar o que me
rlãr». ,Já criei bem uns trinta. Tanta gente que até esqueço o
nonre. A procedência. Uns ingratos! Você, apesar de tudo.
ó o rinico que me tem sido útil. O resto. . IJns estâo na
I'azcnda, r:oubando-me os r:abritos e os bezerros. Outros
ganharam o mundo. F oranr-sc oom crti diabos. E você agora
('onr elril lrebcrlt:ira doida e esse mistério do estribo. . . Não o
llro rkrrr rnarr excnrplo. Vot:ô nunca me viu bêbado, gague-
jitrrrl,r o lutinr na hora da missa, nem cair do cavalo. Seu pai
oril uÍn lrelrerrâo inveterado. Você puxou ao velho. A here-
rlitaricrlade é uma coisa fatal. Procure reagir contra o mal
de origem. Reze. O Diabo também é fruto do atavismo.
linquanto isso, "tia Chiquinha" preparava o café com
tapioca. Padre Tibúrcio escancarou as janelas. Escanchou-se
na rede de tucum. As esporas montadas nos reieitos. Entrou
a falar sozinho. Uma galinha apareceu na sala. Empolei
rou-se na batina estendida sobre a cadeira. Entortou a
cabeça. Olhou demoradamente o padre e cuspiu uma
gosma branca e fedorenta. Padre Tibúrcio empunhou a
chibata. Acertou a galinha em cheio. Um mundo de penas
encheu a casa. A galinha saltou pela janela como se tivesse
sido acossada pelo demônio.
- Um cafezinho com tapioca, padre - avisou a zela-
dora, depondo as xícaras na mesa.
O padre e o sacristâo sentaram-se nas cadeiras de pau,
ao pé do rnóvel desconjuntado. Jacó encheu-lhe a xícara. O
vigário mordeu uma tapioca:
- Sal puro. E chamam de tapioca um grude deste. E
22
l,) r'htrporr o café:
l'rrra nranierioba. Não sou feiticeiro nem passari
rrlr,r. pirra ingerir semente do campo. Nem as xícaras lavam.
'l'irrrla ugrra no Acaraú.0 rio só falta entrar nas casas. Ma.s
rr;io li,rn ( oragerrr de dar dois passos para apanhar água.
I'adre. a-. xít-aras estâo bem lavadas explicou a
-
ztlirrlora l') porque são velhas e a louça está encardida.
r\ti' lrotei na ágrra fenendo. E dizem que -cemente de man-
.jtriolra afina o ,qangue. por isso mi.qfurei no t,afé.
Ahl afina o sangue! ,{gora eu entcnrlo melhor. O
1,r,r,o rlo Alto não tralralha. li a prr,guilir t()rna o sangue
gr()ss(). E isso! N,lerr l)cu.! Ser;i possívtl ryrrc até o café eu
prtlise 1r;rzer rle cas:r'i Âr1iri.iá r,orrri rlrr lrrrlo.
A HOSPEDAGEM era precária. Não havia eÍn todo o
uma estadâ
Sr. o t:rí'r: rriio llrr. lrgrlrrl;t, Jlrrlrr', lcnlto rrrn t:opi- Irovoado quern. tivesse condições de o{erecer
ttlr,, rl,'sorri rlr',,,:rllr:rrlir. (lrrrt rt,.ricar ri rnuilri l,,,rtr. li um rnelhor ao vigário. A pokrreza Cos habitantes do lugar ela
,rlirrr,r rtlltsco. uma coisa impressionante. Nenhuma casâ possuía seÉtinâ'
S.ro rlt r.oallrarla e rrriio rle vaca para mim é uma l)esobrigavam-se homens e mulheres numa vsla cofi1uÍn no
, oisr .r'r. l,'r'lizrrrtrrle não sofro dc hemorróidas. Sr: sofre-qse. fundo do quintai, alrós o oue os porcos de'roravam os
dejetos coül grande voracidade. Mas, por causa do virário'
.jri tcria rrrorririo. todo dia campeando gado, escancl-rado na
sllir rro rneio do sol quente e visitando rnoribrrndo. Sâo na casa de "tià Chiquinha", no fundo do ouintal, havia duas
rloi. lrabalhos que faco ]iandas de uru pregades eill estacas protegendo uíIl cânto
a um só tempo.
da parede do muro, corno urn galinheiro irnprovisado'
- No Alto até para clefecar é difícil - resnlungou o
netro
padre. - Não têm coragem de',levantar um de ilsrede'
Cagarn no teÍnpo) corno os animsis, os pés atolados n'x lama'

.lúpu- a bunda com banburrêl' Gente iinoral e indecente'


.Qualguer dia deste abandono esta freguesia'
[lma maloca
rie índios. Se eu gostasse de natjvo, iria rnorar no l'4ato
Grosso. Goiás. Arnazonâs. México' Pelo rneno§ entre os
índios haüa rnais higiene. Se quero Cefecal, tetho que

chamar o Jacó oara botar sentido aos porcos' trsso é sitrração


para urn viqáriã? Isso é papel que uín acó^lito des':rnpenhe?
Mas, nadre, o que posso fazer? O rrol'o todo ssbe
que o vieário não tem um lugar onCe se Cesapertar' Mas
ninguém ajuda. Ninsuérn contribui co'n urn tostão'
"
I

-Ni"guém contribui? Cor;a de ladrões! Pois que o


I

24 25
o
o
l)i:rlr,r os ( ar'reSie! Eu eitudci! Para qur: {oique estudr:i'l
l':rlrr r1u,' l'oi rlue nte ordenei? \ão {oi para clefet ar 116;11lcio
rl. ltrrrpo. (iaranto que não foil Se não prtdr:m dar ttma
lr(,:l,('(l;rgi:Ill digna a um vigário durante algumas horas' para
,1rr,'rliulro 1icam a perlir missa? Como não prrdr: vir no
,l,,rrringtt pa."sado. I)orqtre fui r:eleltrar no Sapó' outra
rrri.i'r'iit {'orno esta, rccehi uma carta dn hispo de Soirral, «
irl,'girnrlo que tinha contra rtrim utna retllatnaqão do pessoal
rlo Âlto, qrie eu nuncâ rÍIais tinha apar:trt irlo Vlentirosos!
Sc cu arlivinhas-.e querrr foi o patile. lltrt rrsfr.garia agora
nrr:srno o focinho na iama. l'lm l'arla nílt'lco rlc pt'-*soas há
s(:rrtpro LIm Ju{las. rrnl Silvério r'l<is Iteis' l)ô-rttt: unr copo
,lagra- !)spero illle Ítão estcja cotn gosto rle rnijo tlc anirnal'
Niio -são ('a[)ltz('s tt,tttt tle botar urn t:trirão rla t:at:inrba' t)s
.itrrncntos sapatr:irtttt tlcntrt».'l'cnr tlia quc a
ápga fecle a
lrosta rle port o. !itr dissc:hotcrn tttlt cará na á5n-ra' Iiotaram?
Ilotei, parlre geÍncu a zelar'lora' - Já faz quinze
rlils que botei. 0 Marinheiro me deu dois bem vivinhos'
(llaro. Só podiarn ser vivos. Mortos, você já os teriâ
ltvarlo ao espeto. Urn cará! Sim. Mas fui etr que tive a idéia'
V.r'ôs, aqui do Alto, sào ocos oomo um cano. Eu dis'qe;
"llotcrn um trará-''. Um cará para comer o loclo da á5'tra c os ç
rrriclirlrios. NIas não duvido que já nâo o tenham comido'
lirr nâo Íaria isso, padre; eu não faria isso' Juro
,,,rno ttiit» faria.
Nrio digo você. Acho que você tem mais medo das
,,1,inlr;rs rl,r cará do que rtesmo da'jura. Mas seus netos.
I l, ,ir. ( irl)irzes de tudo. Capazes até de ilotar farinha no
I','l, pi.;r ,'rtg.rtlar o cará. O cará! 0 cará ou os carás? Tern
rrr.rt ,1, trrrr'l \irl r''l
-. lxrl.i rlois. Mas outro dia quando fui lavar o
1trrlt 1l t 1111 11

( rlr,,/ (.)rrr'lritplrde é esse? Quantos dias faz? Pois


jii rl,'v,, lrirr, r'rrrr:., irtrliirrttta. [lm batalhãol Um pote não é

26
1i;1 11r'\eriii'
unl ir.ri(li'l lt'ioue ciente dissol Nlanrlci oôr r:ará e nâo tinr tlt:l'ilIli{ ir'i' rva]t'
(.)ue lanru ordinária ó e,qta qlre yocês aqui do AIto
,rr,'l h i'iio:il ilrrP|iitia:.-' !d
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,''1,'.1 'tr'llvr':l a orocria(râo não scjr del'iJo à origeror dos gône:o' "icparc §nl ('oil"()
,,r-l: 1,r'riintitr:tia f olltrli[liçào t:it
lrrr':,s. 5r' lirr, é coisn rneslÍro ila natureza. Não há leito a cL-rÍlais' \ã'r Iarnos:-laIi.{ornltll
,,,,'t,,1 ,,.tio para p;tiarclar or
rlrrr'. l)r'rrs salre o que fez c o que ql;cr. Talvez a infestação depó:ito tie prcll'irnertos^ oior é
rr (,it:it do Sentroi truln
scirr rlr,vitio ao dcpó-qit() riágrra. [iomprant uns potes baés, i'nl tl'o('ll tia: palalra: tic
r',','r'lrer ullla nilllliiria ttt" """t]o
,:rrrrlrrrios, de irarro orr.linário c reveriores de áEra como um 'laLrtrnitculo"' olttit o i'ii rnetal reiirzia
N'l.stre, colIIo llos
rrrcitino nri.jão.'lrr"t.es t:io ruiitt slto irrtirrestáveis como tlterlená-
('nl:'(' ilr secitts prolaI-'as lta's lttãtl'' tie utucacit.lres
(Jur,rn ()s Iaz. Os ,lil,iu. rli, (lltont sulrrrnr frzci nada! Passam eieri]o: ireljão' arro2l' reriniuiis'
ri,,.. Isso ilqili u tlIrI te mplo
,, rli;r cltl:rrtlr, ,,r,o tlr' :tnunr. Os llt'scrtr',os rlc sot'ó-hoi como volurne' tit,a"g']-h:^::
l,,,t"tan, :cja o que fr.". tiuttutlt' Íizel
unrir \';r':r cslrcl;r:rrio r ( ()i)ir tirrs lin,orts. llltla dc glente o nlcrcàtio rie Saniana' La \ot't te;a
ltrtttcntos tl toqiie i')era
lrrilr ,'.lr' ,,r'rl;t,',, rl:r iilrti;-rr tl,r ,\r'lir:,ít ltir, t'iti drl (lrrrral- lxra proPosta, fará lrua venda'
( jr;rrrrl, ;r Il, l:r ( llrr;r ,\ilrrl:r lrtrl (ilr(' liz('rilrrr li!r'lâ louca ^ à porta'
Pá. t:.., altura, aiç;órn ira'-eu iri"irnâ'!
nl]ma scie-
;,]r';r o inlt r:rr: ll,,rr,1 ,lC ril,'s, l:r :lzttl. r'onto se o VarSO
- Quem é e'se ãoido'i
Se hatem paimas
l(,sir' rinr lr,( :ull. llr:r solrllrrl,r rlrso. Alrcsltr rlc ridículo, é rridade quando o orador inicia
o seu discurso ou te:rnina'
rrr,'1,'rivr'l i,,1rr,'i,','u,'o rlc,rnrto tr';rrnr.lo a nretade da boca" alocuç.ão l'eliz' interrom-
,,; ;;r"ã" o político profere Lrma
s{'nr (llr{' r'rillss,r ()s ('lrrlirus prrlarem irara dentro. L;m dia as ovaçõcs da platéial ou Ínesrto nÜnl
,,.r'tà*.", aErarrlando I'Ias não se baierrl
.lrcir Iroure ul:r bílitr deles na cinecâ. Não foi, Jacó? itniversÍlrio. ao par"lr o troio sinlbôXi'co'
\1inha lr:itcnclo o pepo -- conÍirrnorr o sacristão. palrnas simplesmente para avisar que be está do laio de fora'
qttc nrai se orlíe o
É. -§e vinhal E que lhe fiz eu? Esburrachei-o contra Nesse particular, irre{iro os n}atntos'
iugar à rrtesa
a nilrrrtle, hein. .Jacô? Vá cagar na caneca rio I)ialio! "ô-6e-casa" já e,stão nil cozinha ou iorlando
-- N4a.s. qailre. isso não rcontecerá nrsis. Agort r áp.ua
lretlildo llnl prato
tle comicla'
fnz gosto de se vcr. E uma pr:xta. Coada no pano de elgo- De ,,orlo o visitante bateu Paina-s'
entre' iaco'
<lÍozinho dc duas peças.
- E. N4as não quero uma famíliâ de bodos no pote. E - lliz a este corno que
Era o Gonzaga'
Í)roniis()tririrde! arlüilciar i)ar a enii'ar ne-ssa
urlrt Faça rrrn cozido dos pais. Dos tios. Dos
- Você precisa se fazel Passou por corno porque
solrlirihos. Faça c, cue ihe ordeno. Só quero um órfâo. nrapuca? - b,",lou o padre' -
()rrlr:r roise, vou exteírniniir com a Irr,ranCade dos Vicen- t1u is.
peganclo uin Üochilo'
tir:os. Ontcnr ierguntei ao Presidente, o Virgílio. Fensei que o vigário es:ivesse
-
(.)ruuri.o rendeu a cota ds últirna sessão dos vicenti-
Vi os trotes dos cavalos muito ceÍfo'
um baruih') não so ve'
tt,r-i
- Vr, não: ouvi' Gonzaga' d': luga'r'
I f r iiití'rrs. ( )rtvrr-se. Yocê, que é o chefe poiitico
o resto' Você precisa '"O"t-lf:l
toinar u:nas auras
ll r iirti'rrs'l Qrrantia três vezes superior a esta quâl- ,,r.u,,1i,""g,"á-*

1A
28
o ti" ltão
, r, nt. S,' ,, tttt'ttiÍlo nâo tivesse pr'lgretlidrl' de stlleqão''r
plra ril{.i;l{-itar o Portrt;rris. ltt otrrrt: o ltai a exallle
lriu lrl irliu'('s t, r lr l.r;trlrt, Pois ele vai sul)rrle[erse
\r'r'o oir a i,;r;-lninila r\itraranr.c.:e [lnt r,.:rgtrnira rie o levado direto para â (lapital'
11;r;J11l,r I ;,,'rrt rlttt lio
o não tenha
o deirara'
s.rrl;rr-sr'r'trni a ntelritta,.la lros lia:rros r]a esr:tria,ia iaiá. N'lassapê' ondc rne corlrta que
,,,,', ,; ,',1,"girt de Fe confie a edu-
(,r»'rl [>or- iií irnr irr,rato quÊ a {,afminha ,"tnrarante r,r'r t tstill)('ltcimentrl il" e"ti"o 'r que
r'.1Í rlrrcnte do peit-o. i,om rrrna tc-.se doir.la. tlng4linfl6 ,',,,,,,, U,'',,rl filho. (ionheço o IJiretor'
o 1'lrpá \{ilério'
ateu detllarado' f)s
g,',nlr Cle ov()ts, (|oÍncn(lrr casca de umhu co!'n rnâstruz e Ílei t,,r,ltir,,,',,' ('orllo o Diabo' NIas é um
tamtrém
,l,..i,rrrrllíra. i,ii,,,l ,r,, Antônio (larolin. e do Zemaranhão
- "{,orre por aí uril i,'oaíii''J i\il ,"lllo tltl;r'ia ()s h(,'il- .,ltttl;ttttlir.masessesnãovãorlarparanada.Sóe'ctâodcs
[.rs dcixariirn iit lortc; :rcln rilixa;io. i,iiiii irr-s()ii ria rtapital
a noit* na Itutz
p, ,r,,,.t,, o clinhciro tlt-'' 1'ai"' Passall.l
não podem ourit
rrlio cttlttntleria ncc;t" tilt trirn, itrt t ilr'.tir,;il rli" riizcr. \ãrl i1,,,r,,,,',,o, (2). Srio tloidàs por 'otnbu'
tri"te "'do,r:rr1:a do ircilrr' - { } rittc erisirt ó it I)i'(}:lq!lití). r{ o. que o trouxe aqul'
l,,rlr,r' urn pandeiro. Agora nte -dlg'
não
{rrlr.rctrlrr-*r.. Â ;lngilr.r (r (rlrlros rttalt.. 'i'ariti,órtt tril"o .e diz (,,rrzitga. Q.,"rrt é esse (raPalrga'l .trnt homenr religioso
"rttitstrltz^',,' sirli t,tastrur.tl.'l'o:;tl: ;lt,í-;1. i.,, ,1" ,:o1r",,gn' Você não é rrrligioso'f
1,,,', do Ba-'tiãtr
I'ois l,tlo tltr:ltiirt aqrri lai;t it*sll;,. Não í: rapanga, é nos'so eleitor' sohrinlro
\ão
dlrvi,l<,. {,o111 (',1,'1'ç;i11 (lrt t iili'o pit:s:.t,as. L) IIc- ,lrr ( lrrlina.
me vem com
riiclito. o llairuurrrlo Neco. a nluiata (lal'nrirrhlr Àlnarante, a Outro crimt-''i Já s':i Qrrando você
laiir r o "lnvettlor". Llste c malrito. ri!.is sahe r.rride tern as rrrrr "eleitor" í: para pedir
"auríiio'" esconder algrrrna
vrnta-s. ()uvi Í.alar qlre ufir parcnl-r-' rlco lÉlvou Lir;i i pe'r;r ,'r ,,,i.a-Nlastrirneeut'ãnpt"u""\pesardeserpa«lre'não
muito en-
, trlégio, ó verdarie? .slott isento tle ir para ir L'fe"lo' Yocê está
E uerdade. I,.ri c, c,.,:rhario. O idelfon-.o. Rcsidr.rnie girnado. O que fiz pelo Sebastião'
foi dentro da-t duas
ele se entre-
crn Í'itombeira-.. i,'i., ,.lu Igreja e a da Ju-rtiqa' Mandei que advogado
Dtpois hotei um
- ,§ei - sr:i. Na esÍrada de Ícrro de tlanrocirn. lião gasse à Justiça e ele se tntt"qou
grrslo de rÍIe lcrnt-,rar desse il:gar. Deu urit padre (' ( om menos de um mês àei-lhe a liberdade' mas sob a
rrrrrilo nrirn. E Íiiho de ttnta família tào hoai Âqtiele caso ,,rrrrliç:ão de não ntatar mais nenl
uma barata' N'lesmo
remorsos pelos quais
,lir lrrrça rl<t flÍart:rr. Êadres não foraÍn {eitc's para niiilheres" sob essa condição, você não sabe o-s

S,r,r rll oyrinilio de gue os piidres dttviam ser castraílos. ltnho Pas-sado.
balbuciou o rapaz'
l',,r rrrirrr, :r,:eitaria corn aleryia esse sacrifício. Até iá Íiie -- l\{as eu não matei ninguém -
matou' NIas garanto que colsa
l,'rrrlrr, i rlc ltr,-ior urn c[ír:io rlcsse sentido à Sua Santi'lade - Bem. Você não
. l);r1r;r, rrr:rs t crir(r pú\r iâirsa dos r:qut",'o,.:es" i'{ão }ror elo. l,.lavocênãofez.f)ocontrário,nãoperliriaapoioao
rlr. i unr ilrrrrrinarlo. q11a-r pelos seus auxillartts. As nrás (i onzaga.
Irr;,,r;r llí'rr, nrils deixenros tssti de lado. Vani,.rs âo que - El" f"' uma besteira aí' ' '
n,,: nrlí'r, s.:r. ( ) ''lttvtrtirlr" nâc teve ínÉld.J da doença rla - Já - sei - sei' "l-urou"
alguma moça'
pr,,lr'"r,,,r;q Ir'1;r r) rlir. (' l'liça tle volrlatle. Tirou ató lfiesnlo
,,s nr,',rrn," ,l:t ,'.,,r1:t ,la iaiá. p{}r'{!.rêr ar:horr o ensiníl defi- I ).1 '/.ona de mulheres liwes

31

30
I

t
() riipirz iia,xorr a t,aire,ç;1. Conzaga luiou por eie: .1,, nr)r,ri() r'Lritorado. Para que diabo matuto com idéias
., it:na prinrl. |,,1r111'115'/ Nao têm consciência
do que fazem. Yotam
blusa de algodâo-
tirila priii,ra'í ( ) qu:l t rrru i,rirna? Flutâo está 1,,rlr ;.lrrrrlrar um par de quinaipos, uma
corrrle;t.itio. i\ão ilá saivaçáo. irrlrrr, tlrll pefu.
0 rapaz eb;rt,'irioccir : l'rr:cisamos desta vez atranc:u da aba do Mucuripe
trsio é:a Íie:)os qrje ,, l','rllo Gualberto e sua ninhada. Ele terá que vir ao Alto
se case. !ocê. iá cio fuiucuripe
(.i), r'irupar:<iros rie rraju, sâo de ur,',, l.i;iência inr:1.ível. ',,ti' nn(), nem que seja escoltâdo pelo exército. Onde já
I- o ft'rro. ittpararrri,.r irelrr,6âe tônl i;i n*ritl t:ulpa. [,,n,a .rr v ilr urn homem com cinqüenta anosi metido nas brenha§,
ín, la át:ilia prtde unt:ui:;o iitirio oncil:1.ijn511jygr , .rrt(, lrm bicho?
s.*r rris.
Iu lre r:aso. si,,r. st,rr r..igiirio; cr: inc {ra,co. Só
qi,e ei"()ri út'st,.nril-eg.llj()
- E exislc aigr.,lrr r,;iri
1,,.i,r r.r:ri'l{irza rio Aitr.r
(il;(' -\ejê ernplegarioi'
Qrr;irr,io rLio unl riia dt,
sil:t! ilÁs clirci;lcs Sir ".;rr,i,,,(), ilas_
"iir,r,rrt iiizr:r íojo. il-iiÍiilcai caqtar
r,1,,,r. l:tl;iti,.ir,,. ,,rl;i.lr. iiir,; r,itlrilr rlr: r,,l,r.r ntutarli.ra.
*rirFi,r-;io, (.iriiiilliriiJ. l irrr,,iir_r.1.:rttar,iir.6 rr rcsiila de :ingiço.
.iri vi gr:rlr: rio Ali<» ale arr;jncarrrlo rrraLazetjo come r.
ilara
!'r'lr',, r.arrrilil,s síl erlr:.nLio geirte Íazenria
caietâ, chupanr.l. W
v.rgr';rs oe i-a rnarincio. Não fossc a natlrreza {ão
pr,iiligrr,
.já leriilr:; l-o, ie {one. Você vai," ,,rr,r. l,r,g,,
os rnr»'i-icio
.trnr:::ha. !ar-a o oa; ria ritoça rijcrü. iranqiiiio. E vou lte
rja;: nma foice e uilia cn)\ada pa;.a trairaihar. L.aço_ihc a
u;..ião ce g;eça. QL^írrn r,ota ilais clo siru pesmal.l Este
ano \/()u tirar o ,;ítuio ce íocia aqueia cabraihada da serra
rio À'iucuripe e acjacênr:ias. Frer_is<; de você para iimpar
âs vere{ie"c. E você, Conzaga. rerrr que aprritrier o portu-
guês irefa f'ar:ir e;n público. Votê será o che{e do
Comitê
(lenllai. ?e,rá qre coxvenccl os
ma:ui.os pors este âno,
coÍiro os acriais, lós os k[arre;r;s (4). vamos garihâr.
Que
r,, l-)iabo (-rariegüe as üefti(,cía;osl Este
ano só tàço batizatlo

(3) Sera situaia à rnajgem orientai io poroado e que serve <ie


Lrahza aos nal€Ban..es que deÍilaídarn o poÍlo cÍo Acaraú.
(4) irertiric político dominante.

í
33
J
I

O ACARAtI passou dez dias torrranrlo água nas


cabeceiras, sem parar. Parccia unr rual trrrbrrlento. Des-
hrriu as ilhas. As plantaq:ões adjaccntcs. (iarregou as va-
zantes. Os ranctros. Âfogou o.s rnoradores. Bichos e répteis
que habitavarn os buracos. Matou os animais refugiados
a
nas croas. E arneaçou engolir o povoado. As trombas-dãgua
t:ntraram nas casas. Chegaiam socorros de Sobral,
Santana, Marco, Morrinho, Santa Cruz, Bela Cruz e Aca-
raú. (lanoeiros sopravam na noite tumultuosa seus búzios
marinhos, orientando o pessoal. Subiam e desciam pela
correnteza. Umas vinte canoas transportaram, durante
a noite, toda a população do povoado e utensílios de uso
doméstico para a mata onde a furia das águas não che-
gava. "Era castigo" - bradava o vigário, de calçâo, sal- I'
tando como um macaco na proa das canoas. ,.Esta
-
gente do AIto nâo trabalha. "
, Quando as águas baixaram todos voltaram ao povoa_
do com os filhos e as trouxas a tiracolo. As ruas estavam
estragadas. Um lamaçal imurrdo onde boiavam grandes
piolhos e baratas mortas. Os fogões desmoronaàos, os
móveis: baús, mesas, cadeiras, balcões e outros objetos .a
a
que nâo puderam ser transportados jaziam sepultados
no lamaçal. Desencadeou-se uma epidemia violenta de o

34 í
Íebre tifóide. O gado, que escapou da enchente, foi ata-
r:ado de aftosa. As vacas esbugalhavam os olhos. Um tre-
nror violento sacudiaJhes todo o corpo e elas giravam sob
os cascos traseiros e caíam fulminadas numa atitude dra-
mática. Cachomos hidrófobos corriam pela rua afora
mordendo as patas.
Padre Tibúrcio providenciou a vinda do farmacêu-
tico de Santana, o Minervino, para aplacar a epidemia.
Foi aplicada imediatamente uma vacina em cada braço;
isolado o gado doente; mortos os cachorros a pedradas.
Os entulhos foram removidos para distante do po-
voado. O farmacêutico passou uma semana entre os enfer- A EPIDEMIA grassava por toda a ribeira do Acaraú'
Padre Ti-
mos, tomando banhos de álcool e lavando as casas com l)epois da febre up"."""u um surto de sezão'
lrrlrcio nâo sossegava. Achava que o povo do Alto
era
.."rlirr". Depois passou a tarefa ao Zémend,es, o oodr."
prático do lugar, pois tinha que atender aos chamados "rrns morrinhas", mas parecia amá-lo como â nenhum

de socorros que vinham do Sapó, Mutambeiras e Intans. outro. Nâo se cansava de auxiliá-lo' Parecia uma lança-
rlr:ira, trafegando em seu cavalo, transportando gêneros'
rrrcdicamentos, roupa, leite enlatado, tudo'
A sezão come-
Zê'mendes nâo acom-
lrru a fazer suas primeiras vítimas'
distribuía os remédios'
i"rfrru" o curso da moléstia, apenas A doença progredia'
l,orno o farmacêutico lhe prescrevera'
Não havia uma casa no povoado que não tivesse
duas

ou mais pessoâs acamadas.


Padre Tibúrcio mandou chamar em Campo Grande
o João da Mata, o cego curandeiro que diziam ter pauta
garan-
rrr:m o Diabo. Todo *rr,do súia disso' Mas o padre
rezem
tia que não fazía mal. 'oQuando ele entrar em casa'
,, Credo. E podem tomar o remédio' Eu acho que o cego
na
ó muito inteligente. Dizem que ele tem uma mosca
Vive
garrafa. Isso é"bruxaria barata' Coisa de cachaceiro'
bêbado. Mas no Perto não conheço doutor
melhor' Sô
faz suas gar-
não faz milagres. Conheço as raízes de que
na Medicina'
rafâdas. Sao as me§mas da flora empregada
droga até
Não usa alfazema como o Minervino' Receita
,t,r-".tr".g"iro. "Essa fórmula é alemã' Só é encontrada

37
36
onl São Paulo ou no Rio." E, na verdade, só aí se encontra. F
Ç
Usse mistério é que não entendo. Nem quero entender.
Tambérn é muito positivo. Quando nâo há remédio, diz
logo na cara do enfermo: "Nem o Dialo dá jeito,,. O
bom médico tem a noção da fatalidade. Vive com o nome a
do Demônio na boca. Mas o coração é puro. Onde esse
)
pó-de-pato adquiriu o dom de adivinhar? Um dia lhe per_
guntei: 'João da Mata, você tirou mesmo pauta com
o Diúo?'" - "Com o Diabo? Ora se tirei! É o único amigo
que tenho. Viajamos juntos. Moranros juntos. Dormimos \
juntos. Você não sente eln mim uma inhaca de bode? pois
este é o cheiro do Diabo".
"Você esrá hêhado, Joâo r,la Mata. Olhe que está
Íãlando com o vigário". "Bêbatlo nada! respondeu.
Estou lhe confessando os meus pecados. perdoe-me se ÊE

quiser. Mas aposto como tenho aqui no alforje uma gar_


rafa para a dor das costas que yocê está sentindo,,. Deu_
rne dois goles e a dor desapareceu. Mas ele não tem pauta
com o Diabo. Se tivesse. a primeira coisa seria ,"grr. Mm
o Antônio Marreco, aquele sim; aquele é protegiáo pelo
I)emônio. Já o avisei: "Quando for a Santana ou Sobral
não me passe pela estrada real, seu condenado,,.
"Na festa do ano passado, o surpreendi na bodega
do Maroca fazendo uma demonstraçâo do Capeta. Atirou
o baralho na parede e as caúas aderiram a ela como a um
ímâ. E o Demônio começou a chamá-las por uns nome-
zinhos esquisitos: e os reis, os valÊtes, as damas voavÍun 9,
para ele e entravamlhe pelos bolsos do paletó, como um
bando de diabinhos amestrados. E logo mais ninguém se
entendia. Aquele, sim, é o Diabo em figura de gente.
Já o botei três vezes na cadeia, mas não tenho elementos
para procesú-lo. "Sou apenas um mágico',. Como se pode
processar um mágico? Sai das grades à hora que bem en- súÍÍ
tende ".

38
I
ri

o l

2^ parte

I
DLARIAMENTE, às cinco da manhã, o vulto obscuro
do velho Miguel Lourenço atravessava o quadro
ruas arrastando, na grama orvalhada, o saco rendido,
dos tocos e das moitas de carrapicho - um
balão azulado e transparente, entremeado de linhas
as paralelas do Globo Terrestre.
Chegava na bodega, as pernas trêmulas, o suor pingan-
das pestanas, vencido pelo cansaço, respirando com
como se arrastando o mundo pelas
viesse
Arrumava o estranho planeta no fundo da rede de
e com o auxílio da bengala fazia-a executar uma
perigosa.
Dada a dificuldade que tinha de se movimentar, os
mergulhavam sob o balcão e escolhiam a m erca-
que -queriam, depositando o dinheiro numa carxa de
ao pé da rede,
Homens de calças furadas nos fundos, barba crescida,
a toa e abrindo a boca de preguiç4, estiravam
bruço no chão, fumando cigarros de palha de milho ou
mascando fumo, contando mentiras. Outros ficavam acoco-
rados, coçando a bunda, as virilhas, o saco) fazendo cócegas
barriga das porcas que transitavam pelo mercado, junta-
com cachorros e gatos, numa vrvencla comum,
farelos.

43
Com a blusa desabotoada, coçando o umbigo, os
sovacos, examinando a ourela da ceroula, matando pulgas,
os rapazes caminhavam alheados pelas ruas, espiando o céu,
contando os urubus, fazendo caretas para o sol, cuspindo
para cima e fechando os olhos, aparando a saliva na cara,
desenhando obcenidades nos tijolos das calçadas. Paravam
nas esquinas. Coçavam a sola dos pés. Caminhavam nova-
mente sem destino, perguntando, a quem encontravam, o
dia da semana) o mês, o ano, como se a todo momento
estivessem a fazer a estatística de sua inutilidade. Abotoa-
vam e desabotoavam continuamente a hraguilha. Gtavam
lagartas nas ervas. I)esenterravam minhotxs, acompanhavam
o vôo dos urubus pela sombra.
As galinhas catavam insetos na gr?ma, voavam para â§
janelas com eles presos no bico, engoliam corrr voracidade.
Os meninos agarravam-nas,. examinando-lhes o sobreou, f:tLrzoLÉ,
atrás de um ovo imaturo.
Os cegos do Gonzaga, de braços dados, a pele do
rosto e das mâos vermelha e fina como a das mulheres, pei-
tavam nas carnaubeiias, esmurravam-se, atirando um ao
outro a culpa do esbarrâo, praguejavam contra a sorte e,
finalmente, voltavam a procurar em torno de si, no ar vazio,
ae €
as mãos desamparadas pelo infortunio para novamente se
protegerem.
O aleijado Manuel Adonias assemelhava-se a um
macaco russo, com a espinha quebrada, arrastando os
quartos chochos no chão, as facas de cabo de chifre e os
cornibogues fazendo uma zoada doida dentro da mochila
atada às costas.
Josa Lourenço parecia um canapum maduro, as
orelhas brancas como velas, os pés de cururu. Estava sempre
ansiado, como se acabasse de chegar de uma longa viagem.
Pela manhã, às vezes durante o decorrer do dia, as
mulheres saíam das camarinhas escuras com seus urinôis
cobertos com abanos, Juntavam-se nas calçadas atagarelar,

44
Íalarrrio da vida alheia e merrtirrdo. Os porcos rodeavarn-nas i,r,,r ,,rlr,r I )t2,,'trr tlttt' tlocnça do rnundo deira o homem
irrrpalientes. fuÇando-llres a! saias. ,lr r r tl,lllltrt

- Olha o Dedô, bicho nojento. Está ernpestado dos l,j'r rr'irrr(). O l)cdô cstá assim' Se cata na frente
piolhos das mulheres. ,1, l,,rl,, lrttttrl,, lrt'rrott o grllpo comagessividade'
As "mulheres", a quem se referiam, eram as duas
putas que Íazam vida em Santana e que, vez por outra,
apareciam no povoado pâra uma visita à sua freguesia.
Dedô passava a manhã inteira na beira do rio ensa-
boando-se com raspa de juazeiro, catando chato. Cabeludo
e irnundo como um porco, as mulheres espiavam-no com
nojo:
- Descarado, emporcalhando a água - e jogavam
uma cusparada no rio, onde os piolhos imundos flutuavam,
resistindo à ação da química do sabâo vegetal.
Dedô vivia dando guerra aos bichos, engalicado de
doenças venéreas, com comichão no saco, engolindo doge-
nan como se fosse vitaminas. Enfiava as unhas nas virilhas,
arrancava os parasitas grudados à cabeça dos dedos, liqui-
dava-os entre as unhas dos polegares. Ouvia-se um "treque,,,
como o estalo de uma espoleta.
Os meninos nâo perdiam o espetáculo. E Dedô orgu-
lhava-se de exibir-se publicamente.
- Vamos dar-lhe uma fllrra - juraram um dia as
mães de família.
- Que falta de moral!
- A culpa não é do pobre, coitado, ![ue está aí para
morrer. A culpa é daguelas duas cachorras! Sem-vergonhas!
Tantos homens Iá em Santana, por que vêm mexer nos
daqui?
- E isso mesmo! A culpa é delas concordaram to-
-
das.
Uma opinou: - Meu marido anda mancando. Tem
ferida até nos olhos. A ceroula podre, coberta de uma
crosta amarela. Eu que vou lavar aquela imundice? Pode
cair-me as mãos. Não se deita mais comigo eu já avisei I
- Acaba ficando inutilizado como o Jledô lem-
-

46 47
( )e rrgrrrl içnrftrtr Íariam ju*iça com a8 prôprias mãos,
adiantava o
lia .1r.' !ilI.) lurvi:r aul.oridade no povoado- Que
rl,,l.HprLr? llrrr lxrlre velho de setenta e tantosanoe, magro
r orro unr ti;xi, ul arrimando na bengala, com uma "perna
*,*Iretrrln"- Qrralque-r zoada no m€rcado arrastava-o a88om-
lrrarftr ;rrrn tittra onde §e hancava a eete-chave§' Se lhe
Lllhrrr ri lxrrta, ntandava os filhos dizer que estava em San-
llrm r" rúo rvrbia quando voltava. Gente do lugar não podia
rlxrçnr a nutoridade' Era um cocho onde todos metiaÍn o
Írx'trrho, r:hupavam o mesmo caldo- Tinha que Ber gente de
NUM dia de sá.bado, pelo meio da tarde, as duas rapa- íorr, rk: boa natureza para não cirüsar Per§eguiçâo a nin-
rigas apareceram no povoado. Como sempre vinham de grrôrn. Unra pessoa digna, sem vaidade da profissão'
bom humor. Os vestidos de chita estampada, com grandes ()s dois soldados (à paisana) que vierarn destacadoe
rosas vermelhas. .Sempre se vestiam igual, como se fosse um rle lfuntana para ohrigar a "olho de gato", Arrtônio Pixuim,
sirul da profisúo. Calçaram os sapatos ao entrar na rua. a vrstir um calção, fracassaram, Porque aPregoâvam aos
Dirigiram-se à barbearia do Mingueira, onde passaram o dia rgrrnlrrr ventos que iriam caPar o rapaz, metnr-lhe oe badalos
a seduzir os homens. p,.ln grrela adentro.
Na manhã do dia seguinte, o grupo de mulheres se Loló e a nra equipe, ilue eram os "ltomens" do lugar,
reuniu. Quem encabeçava a volante era a Loló, mulherona lr;xrlmram-nos a pedradas e a chicotes de cansanção'
sanguínea, valente como uma galinha indiana. fumado de Sim, era preciso que Antônio Pixuim vestisse roupa,
facões, espingardas, pedaços de paus, e bandas de tijolos, o ,'r»no todo mundo. Que esüanho capricho aquele? Melhor
grupo caminhou silencioso para o Espalhado, lugar onde as Hr comproenderia o Antônio do Joao I-p"c que tinha
mulheres tomavam bando. As duas putas se encontravam ,,,,do dã gente, não cortava nunül o cabelo e as unhas eram
nuas, nas ribanceiras do rio, correndo urna atrás da outra rnriores que os próprios dedoe- Nas eleições, para tirar o
como duas éguas folgando. O grupo revolucionário as lítulo de eleitor, twe que ser escoltado pelo delegado, de
cercou e começou a chacina: apossaram-se da roupa, pea_ qucm era aparentado. Sim, este, embora Tk'g"ot' não era
ram-nas com corda de tucum e tocaram-nas despidas até a r,xxndaloso Gescera na âba da Sera do Mucuripe, tornan-
rua, sob uma infernal orquestra de gritos e pancadas. Foi do cabritos das garras das onças, chupando caju e com
o espeláculo mais deprimente jamais visto no povoado, e ouvido no Eonco das árvores, caçandoiandaíra ou catando
tudo isso sob o lema da moral, de que ignoravam, até ovo de paca, fazendo fojo, corendo atrás dostaürg atiran-
mesmo, o significado. do noa mocóq cantando nas noites de lua' Tinha uma voz
Contudo, a atitude hostil das mães de família serviu rk: ccreia. Tanto gue, depois que o trouxoram definitiva-
de alerta a outras irregularidades que feriam a .,moral,' nrcnte pa.ra o povoado, perdeu a cisrna-e aos Poncos foi-se
dos habitantes do lugar. r(:omodando no eeio da famílfo, e acabou comPrando um
vioho. As moças frcavam na calçada, pedindo que ele cân-

48
49

t
tasse urna rnodinha. Do fundo
da alcova escura ele largava
o canto, enfeitiçando as donzelas.

_ Nos primeiros dias, tlera mais trabalho que um índio


bravo. Dava patadas nos tios, espumava
e rosnava como um
porco acuado. Sô respeitava e só atendia
ao pai. Mesmo
assim, quando este anunciou
Í[ue era preciso cortar o
cabelo, ele recuou para o canto da
alcova à a
rar. Ufrava alto como certos animais "o*eço, ch.r-
mortalmente feridos.
Por fim, depois de alguns dias,
acedeu.
O pai mandou chamar o Mingueira,
que compareceu
.-"mbo.u'"*
a casa armado de faca na cinfura,
sua maleta
de barbeiro trouxesse tesouras,
navalhas, e um pedaço de
pedra-ume. de meio quilo, com
qrr" ..tur"rua a hemorragia
dos tal}os gue dava na eara dos
fregueses.
Acenderam uma lampariru".,u
O barbeiro
estava tremendo corno be estivesse "l"ova.
com sezão. Nâo quis
"r.h"...sem companhia.,Foi preciso gue o- pai
I do jovem
prirnitivo entrasse com ele.
- Hornem, tome um café quente.
você está tremendo
muito pilheriou o velho.
-
Mas o barbeiro nâo achava meio
de manejar
ul}. , figura estranha gue o fitava. Também, a tesoura,
olhando o
objeto, um pequeno instmmento
de folhas finas, apropria-
d1. corte comum, verificou qr.
_":
atirá-lo àquela ..mata virgem'1 "; ;;; grande tolice (-
(,
De cócoras, no meio da camarinha,
o Demiurgo cho-
rava e sorria ao mesmo tempo.
Arrepiava_se todo. O"s cabe-
los do levantavam-se em maçaroeas. Sentia
-cangote urna
côceg;a besta e ria como um
louco. E.fr.";";";. mãos e ria.
Coçava os escrotos e ria. Olhava
pur"-o p?, lr.*uru-ffr" u.
mâos e ria. Fitava os pés do barbeiro
.i". Nai guis aceitar
a espuma no rosto" Cobriu as faces "com r------1
as mãos. Ria às
gargalhadas, em grande alaridc,
como se ;;;" enlougue-
cido. Ria. Ria. Ria. Aguilo não era E-r
,""i. ,i*ã. Crrgalhada. -rl-l
Era me..,mo loucura.O acesso de
hilaridade, evadido dos pul_
E-I------=l
:- -

50

I
I

valera como
homens de doenças venóreas. Ah, aquilo lhes
mões gigantes (pois ele era um homem na luta contra qual-
corpulento, de mais um forte estirnulante, para pro§§eguir
de um metro e oitenta e forte como um touro)
reboou por ouer coisa que viesse ernpanar a boa moral'
todo o povoado. =-- -Al , àrtlrugada Làló reuniu o grupo' Sabia que "ollro
- Está morrendo de rir _ gritava a um só tempo a de gato" (Assim*apelidado, porque tinha as
pálpebras pre-
população.
erdãr, por uma Pequena abertura) dormia
A casa ficou enfupida de curiosos. Finalmente, i\{in_ "rr*..gandoilo i^do de foia da casâ' no alpendre da
gueira acabou por aparar-lhe as barbas, como
loir.'r* 5irL,
fizera ao cozinha. E*bora possuísse ouvido de tetéu' Lolô conee-
cabelo, com o auxílio de uma tesoura de folhas duplas, pé ante pé'
de guiu cercar a ár.a que o delimitava" Agachada-'
alfaiate. tucum' As
E agora ãiet.rrd"o sohre o corpo do Adão uma rede de
_ eÍa a vez de Antônio pixuim.
Como dizia *olh"r"s avançaram incontinenti' Conseguiram derrubá-lo
padre Tibúrcio, no ',Alto tinha coisa que
só u"r,ao.,. R.p"_ no chão. Embaraçaram-no na rede o mais que puderam'
rando bern, não lhe cabia a culpa. Aiulpa como se
era da me")
que o pai morrera muito moço, quando eie contava ia Fir"r"* o*" ,.fé"i" de "bolo", houvesgem

três anos. A mãe o criara .o.no ,-o jumenta


apenas ,p""ft"a" urn maáaco bravo' DeramJhe algumas chicotadas
cria o filho. ,r" para evitar as mordidas nos dedos' Por fim sonee'
Chupando os peitos até a idade dor rroi" ""." peáJo (era
anos. Nu como um
goirr* e§64das especialidades do gtop")'
uma
calango. Quando quis vestir-lhe roupa, o menino
estranhou. Ãntônio Pixuim, afinal metido num reforçado calção de
Era um animal. De repente virou rapaz. passava Não se ctlntinha de
o dia no meecla azul, caminhava pelas ruas'
rnato,,. comendo pau-derio, mutamba, remela-de-macaco,
;;;;;;h. A'cabeça plantada ao peito como-um co;rdenado'
carnaúba, catando ovõ-de anum, de papagaio,
de capotas, O;"gq" .m bicae do nariz, das bordoadas'
roubando melancias e batatas. Aos der'aãos, "rcoo"rrdo
os peitos da
mãe viraram uma mochila. Um saco decadentej
de pele
enrugada e sulcado como uma ferida" Fora
preciso p.o.r.".
a. vida no mato. Os parentes nâo podiam
detêJo, p"r" u"*
tirlhe uma roupa. Era uma fera, por duas vezes a volante
de Santana voltara sem êxito. De uma feita conseguira
cercá-lo, mas ele subiu num ingazeiro e atirou_se
precipita_
tlamente no rio. Nadava como um peixe.
- Desta ven ele não escapa _ anunciou Loló.
..0
g"q" se preveniu. Nâã das idéias dos
dois "praças" de Santana "o-o.rgavam
- forçar o f,o-.* a engolir os
badalos
- isso era malvadeza de soldado raso.-Não estavam
irnbuldas de sentimento de revolta. Ieso
não. Ainda esta-
vam, nafuralmente, sob o efcito do êxito conseguido
na
campanha moralizadora., iniciada com a
expulsâã do po-
voado das duas raparigaa que andavam enplicando
os

52

L.-
&
3a parte
I
o horizon&' O ar
A NIIVEIT{ ile poeira etcitzentava
owidos como fogo'
ouente. seco, edalante;;;;;;
os pulrnões-
;;h*; p"ú, retalhava --^ -:
"Nossa s'or'*"iiá' ano úo es.rrpa ninguóm'
Não
- ahrd.,ôúa'
Íica sement€ PaÍa contâr
* "h"l-1,E* iuúo
e
Em luúo " '"-'"';-;;
ncm roga, p"ra.cavar,ru::f ;lH:Ty"";.;: ffi"
tos tran§fornau* :ii*- *o,""t'ão' "o-o
As carnaúeirat

:"#,",ã*"#tr;*'ãtfr
suas agulhas no
'ãã*p"r'dos'osmanda-
ar de'brasas'
ã*t *rf"'iao cristão paÍa sement€'
- Ddavez'aol*p" "m - A b-oca de praga ila
tõ*"i:
Tinha siilo '*;;i;;^' a desgraça
Raimunda Amarante' *Por+*::oca'
isso qpe o povoado úo
dava Í.,ta.go* ,"td;;ádo'
ProspeÍx,a' - úrr ,,egano horizonte'
Umaaurora
estranho sinar' se
,, l"J"T;;;;ã-o 1-
"i,lilil
*; **'a: Il#:'rffi
mãte srfocarla tooo il"Ir',ffi
*"*
âtrfrffi#'mmx,#ffi+=
.,n
ffit# flfr ffi*t" *; somo uivo rouco'

alucinailo'

57

I
_ Meu Deus! É o fim do
que chegou!
mundo! 0 firn do mundo
. As portas bateram-se violentament,
guém as Or.r"rn*irri"'i.oi
o pó do"orprrrr....
châo. As telhas voavarn-1"*ã "dH:I J[rjTf
mulheres, crianças. u"lr.. Homem,
atirados uo ,olo, ;;;;"
olhos injetados de medo, as paredes; os
*_
bramido da venrania. .t, ,,ru._"ü-.àr'"or*am no meio do
o povoado como um bando de
ã"';;;í;_." de repenre
forte_loucura. pedaços
a"_a-". acometidos de
de paus, f"lh;,
de toda natu_
reza flutuavam como se "i;, imundo
o ar fosse um cocho
natureza acúasse d.e lavar. que a
Morreram ;;;r*u, e velhos.
Aves domésticas: gatinhas,
rtesabaram, o sino Ladata";
,ro;;;.:^ "ü.1 ,,*.nrs casas
Sarrtana, padre Tihírrcio
; á;:;tb;u,iil,ro.r"_"nre. De
pôde iur". ,-u riéia da
rlrrc i:r desgraça
Jrr:L» Âllo:
*rt,l.sou supcrstir:ioso, não
,.
.llrr() (luo arlriln saiu da_ boca da
creio em bruxaria, mas
Raimunda Amarante.
IVlontou n6 cavalo^e
parriu. A;;;;""nrrava
notícia da catástrofi pedia
nuvem de muitos nâo podia ser' uma
-,;;^*:''-"-T"inho
,h"' ;;;,;;: ;",::;""itfi:
ffifr ,ff .,.;Trffi:: "fi
31: .:l tangida por uma *"lt ã* d"môr,ios. Algumas
Bichos, ao_i.*icas __
H:[.;J:"lneocrianÇas. "u". expti-
Velhos e crianças! E os
pobres dos bichos e
aves! das
A .,assassina" continrrava incólume. Era justamente
essa falta de justiça que o fazia
à,
sas sagradas. Um Deus ";;-;;;nfiar das coi
injusto,
mente, tivera uma vr ""*o ";;";;;;? Mas, feliz_
edu cação .*"1'ü1,,".:'Ti'-.':h
em Roma
t:"ür";:
'1
-, aprende., mrrirro ^^,"^^--l^ ,91 +,mi
r,,'"
"""',u"'
açoitada por
ffi :;#:ü[T[T Hffi f,TH,fl:I;
deqgraças sucessivas, ain.if_unà .e conserva-

58

hr
t

à religiâo, §em que se rebelasse contra


I:.tlt"g"
Oh! âs vezel a lucidez extrema é como
o Criador.
uma doença _ pen-
sava ele. Mas ao mesÍno tempo
retificava: ..Mas á pr".i* de pode comer macambira, raiz de tucum, palrnito, folhas
nâo ignorar. Ver as coisae como elas de mocó. Mas as crianças não agüentam. Vornitarn pra se
realmente são, embora
Teologia! n. j" fgr.jr!
não ae possamos modificar"..T. acabar.
Deus. Xle gue fez o.1un!o à "_
*u -ur,"ir?, Ele que o des_ Solte o gato, Ainda vive? Minhas reses se acaharam
faça. Ele gue é a Viaa. O povo do
-
AIto precisava sofrer todas. Os porcos, as miunças, fudo. Mas lhe dou um ju-
muito. O so&imento redime.jbrele mento. Um animal sadio. E terá carne para comer alguns
corrigimos nossoe erros,
rnodificamoe nossa norma de vida. meses. Um gato dá um almoço. Mesrno o gato é como um
G"rri. i*o."t e pregui-
çosa, precisava de uma prov4çâo como aquela. Teria ente humano, criado entre as pernas da gente, limpando os
assun_
to,argumentos srficientes pira
no eermão de calangos (isso em épocas passadas) que nem vale a pena
"bordu
domingo. F, diria, açoit ndo ,"b"ç" memorar. Não há mais uma rês por essa redondeza, não é?
do loeho com o
cabo-de-veado da chibata, um "
pé no châo e o'outro trepado
no estribo da sela, contrariando embora
- A única que ainda vive o padre a verá. Os homens
eeu íntimo:
estâo acabando as forças com ela, na entrada do Buzil. É

.- Nl" foi prap da Rairnunda niio, isso ó devido


preguiça, À imoralidade, â mentira, â
a "Princesa Isabel", a zebu do coronel Eduardo.
ao roubo de bodes. - Seisei, ouvi falar.
Magote de morrinhas! Um dia irro
ui." §odoma. (Teria
"qri o
- Têm feito tudo para salvá-la. É aiticlt. A vaca
depois explicar, minuciosamentã, parece que perdeu a esperança de viver. Não se ergue da
-que 1". f*, Sodoma, terra. Os olhos perdidos no céu, como se tivesse também
:,:.id1q". maldita.) Ah, agora eetava entueiaemado com a
rdera. v aleriâ a pena a viagem, Esporeava
o cavalo com toda uma alma a entregar às mãos do Criador. A mente esgue-
a forca dos rejeitos, agiáva as'mãos ,ro ,, cida. Parece que enlouqueceu.
aozinho, sorria largo, levantava o chapéu "rru"rsando Nesse momento, padre Tibúrcio retirou o lenço da
de feltro,
a coroa suada. Riscou o cavalo debaixo de uma coçava algibeira e enxugou as lágrimas.
oiticica,
para urinar.
- Uma vaca é quase uma criatura - argumentou
- lacô, eate ano nãoescapa mosquito! pelo gue vejo, ele. - Na seca, é como uma mulher pobre, carregada de
o AIto ficou arraeado. Tenho filho, desamparada, que acaba de perder o marido: uma
dagueles! "igo*."'r; prr" ,* ,"r.ão viírva.
Atráe do enorme tronco da oiticica, E montou no cavalo.
na boca do bos
gue sê€o, um grunhido estranho No riacho do Buzil, sob a somb,ra rala de uma oiticica,
chamou-lhe a atençilo.
Padre Tibúrcio empunhou a
chibata; seis homens lutavam com a vaca. Estavam empapados de
- u-
Esfolando gáto vivo! O que é isso? suor e irritados. Chamavam pelo nome do Diabo. Blasfema-
A fome é grande,-padre vam contra Deus Quando avistaram o padre, retiraram os
, :
maie. Ontem
Tibúrcio, nãoagüentamoe
chapéus, submissos.
perdi uma filha, a bichinha ;;;,
rioe meug
Draçoe pedindo comida.
Que Deus *. p"rão", se for pe_ - Ouvi os gritos, magote de morrinhas! Estão fican-
cedo, maÊ não vou deixar que a outfa do malucos? O gue aconteceu ainda há pouco no Alto não
morrq. A gente gran-
foi praga da Raimunda Amarante não, foi castigo. Vocês,
coronéis, so uns cavalos! Abrem a hoca e vomitam a

60

61

h-- )-_
E

asneira que trazem na cachola. Coronéisl Mas coronéis de oh, como o Deus da França, da ftália, da Ílolanda, do
quêl Porque possuem cem reses (ou melhor, possuíam) Japão, mesmo o da Rússia, parece ser urn só. Ern todas as
ganham tamanha patente! Coronel é aquele gue derrota o paragens, em todo o mundo! Mas o do Ceará. . . o l)eus
rio
inimigo, salvando com o próprio sangue a dignidade da Ceará, francamente, eu não sei bem qual é.
Pátria. NÍelhor patente, empregam os matutos, designando Neste ínterim, a vaca soltou urrr profundo gemido.
André de "Inventor". Pois, em verdade, André inventou o Numa contraçâo brusca, as pernas estiraram_se, o rabo
compasso. Embora antes dele alguém o houvesse feito, retesou-se eriçando os calrelos, a língua esticou_se
pa.ra
ele desconhecia. Bem, mas isso ó outra história, o que fora, larnbendo o pó da terra, urinou e rlefecou simulta_
querem f,azer ao animal? O que vem a ser esta lenha arnon- neamente, ergueu e deixou cair, corn violência, a calreça
toada? sobre a pedra gue a apoiava.

- O padre entende, tâo bem quanto a gente, desse É o fim proclamou o padre, apertando o cruci_
-
rlxo nas mãos. Isso é o fim da vida. A
arranjo
- rosnou urn dos homens. - Só a fogueira a levan_ - vida que é uma só
tará. Ninguém agüenta mais, cada vez que a colocamos na em qualquer corpo. A vida que é única. A vida gue
é antes
rede torna a cair. Com o susto, pode ser que se sustente. e apósqualquer coisa a Vida.
-
Tirem-lhe a rede da barriga, esta não morderá mais
- Tocar fogo na vaca! kliotas! De quem foi a idéia? a
Os cabras vergaram a cabeça. Coronel Eduardo gague- grama do Buzil.
jou:
- Bem, seu vigário, a idé,ia foi minha, mas eu não
pretendia fazer o mal.
- Queimar uma vaca! Ah, se estivéssemos na Anti
güidade! Se estivéssemos no Fgito, onde a vaca era um
animal sagrado, a esta hora você já estaria caminhando para
o suplício. Osíris e Anron já o teriam condenado à morte. A
felicidade é gue estas coisas ó acontecem no Ceará.
onde
nâo existe a Justiça.
- Disseram-me que com o zusto talvez ela retesasse
os nervos e sustentasse as munhecas.

- Que zusto! O susto acaba com o soluço, mas não


recupera dois anos de seca, Yocês, coronéis, repito, são uns
cavalos! Atirern a lenha fora, limpem a estrada. f)eixem a
"Princesa Isabel" entregrre ao seu destino. Vamos todos à
capela, rezar. Em tempo de seca é preciso Íezat atoda hora.
Sô a oração pode sahar estâs paragens. Rezem pela ..Re-
dentora", os bichos também devem ter uma alma, senão,
corlo explicar a vida, os sofrimentos? Às vezes, eu penso:


62 63
i

L
I
I
I
gente tossindo, gente se lastimando, gontc atrelada de
pavor.
* Até agora oito mortos, paclre, - inÍorrnou o Rai-
mundo Neco, o delegado: Seis adultos e duas t,riarrças.
-
- Oito mortos! Não morreranr tarn [rí:rn insetos,
gatos, passarinhos? Não morreram bichos?
- Sim, de tudo morreu um bocado. Mas pensei gue
só lhe interessâsse as criaturas.

- Sô as criaturas? Por quê? Todos tinham a vida,


todos tiveram a moúe. Portanto, todos eram iguais. Mesmo
os que escaparam são iguais, porque depois terão a morte
a morte que é comum a todos: ricos e pohres, poderosos
-
A POEffi.A ainda fumegpva no poycrdo quando o e humildes, feios e helos. A morte - que a todos nivela
vigário penetrou rür rua Grande, tangendo o magote de como grãos de areia de uma mesma duna. Tudo marcha
cabras, com o coronel à frente. para um único fim: homens, mulheres, animais, bichos,
- O padre prendeu a todos - diseeram. - Querhm aves, insetos, árvores, . . Todos os seres. Tudo o que vive
leyantar a '?rinceea Isabel" a fogo. se acaba. Tudo que foi criado terá fim. Deus é eterno, por-
A poeira rodopiava. O ar quente, meúlico, mrfocante, gue é origem e tempo de si mesmo. Deus! - o Incriado, o
racharva as mãos. latcjava nas têmporas. Gente tossindo, Supremo, o Alfa e o Ô-ega. Quais foram os mortos?
engaqgada com a poelra, desentupindo as narinas, oe owi Preciso saber para rezar uma mrssa em intenção de suas
doe, espantada de teror! almas. Basta os adultos. As crianças, os insetos, os passa-
- É o fim do mundo, padre; ó o fim do mundo! - rinhos, não precisam àe reza, são puros como as águas;
bradavam de um lado e outro. com as pessoas grandes não acontece a mesma coisa, Têm
Os ciscos fermentavam sobre as cabeças- Os animais a alma suja de lama, negras pelo pecado, carcomidas como
sacudiam as orelhas, batiam as pestaÍras, agoniados; sapa- a pele dos leprosos.
teayam impacientes" A população edaheleceu um círculo - Caiu a tapera do coveiro - prosseguiu o dele-
onde os cayaleiros se encontravâm. gado -, matando ele e as três irmâs velhas; apâreceu a
Jacó, aproveitando a confusão, arr:tn@u do ós o cega Maria Donato, caída na esquina da casa do Virgílio
frasco de cachaça e entornor na goela- Lopez, com o pescoço quebrado; e o Josa, coitado, o vento
Pa&e Tibúrcio fungava, expelindo a poeira, beliscava rolou com ele até aY árzu, do Saco, largando-o em cima do
a ponta &s orelhas, escrrtando, wndizer palavra- A carran- lajedo de espinheiro. Até agora ninguérn pôde arrancá-lo
ca de morcego, conEaída, Íeroz, contendo o cavalo que de Iá.
sapateava. Ah! - suspirou o padre. - Nâo há quern alcance
Jacó esrraziavao lhasco, entornando a aguardente. A os desígnios de Deus. Não há quem o entenda, quem o
poeira excitava os animais. O ar virava po, atirando mas destrinche. O Yieira, que cavou tanta sepultura, já devia
pardculas ardentes. nos olhos do povo. Gente chaando,

65
64 \
estar cansado demais pârâ câvar a sua. Abriu muita cova
rasa, dizem que aparava os braços dos defuntos para fazer
pífano. Que Deus me perdoe, pois esta gente do Alto fala
até de Jesus Cristo. Mas que o urinol que tinha em casa e a
quengâ de tomar cachaça eram de casco da cabeça dos
defuntos, isso é verídico, pois uma vez fui com o Jacó na
tapera e arrebentei os utensílios macabros no chão. A pobre
da Maria Donato, em sua escuridão terrível, teria que fatal-
mente quebrar urn dia o pescoço. É dess, rnaneira que mor-
re a maioria dos cegos; o Josa, coitado, redondo e inchado
como um canapum. está visto que o vento o carregaria pelo
campo afora, como uma almofada, crucificando-o nas agu-
lhas dos mandacarus As crianças. . . As crianças úo como
as âves irnplurnes; fora do aconchego do ninho, qualguer
brisa as devora. Mas o Josr foi parar naYárzea do Saco? A
dois quilômetros tlo Alto? Mas que diabo de ventania foi
essa?f)e Santana a gente aüstava o mundo de pó. Parecia
um mar de cinza, enlaçando o horizonte, empretando o
céu. De início, im;rginei que os cabras do Riozinho hou-
vessem tocado fogo nos roçados, todos a um ú tempo.
Depois, lembreirne que estávamos na seca, e fiquei assom-
brado.Foi aí que chamei Jacó para arrear os cavalos.
- O Chelego já havia dito: nestes dois dias o Diabo
rebenta as cercas e correrá pelo Alto. O melhor seria todos
fugirem, enquanto é tempo. Arribar com fudo: filhos,
gatos, roupa, coÍnida, porque hldo será destruído a um
só tempo. Mas todo mundo pensou que ele estivesse de-
lirando. Há dias jejuava, sem provar bocado, e estava
tarnbóm com múta febre.
- Chelego, o beato? indagou o vigário.
-
- Sim. Aquele que botou o Pecaca doido
- con-
firmou o delegado. - Disse ao ir.rnão que ú conresse
inesto e ó bebesse a prôpria urina. E Pecaca fez o que
ele ordenou, pois queria, um dia, adivinhar corno o irmão.
Só comia lagarta, besouro, gafanhoto, cabra-cega.

66
- Ah,
o novo Isaías do AIto, o novo João Batista
(só que João Batisra não bebia
, aqui é mais
um manicômio que mesmo um povoado ".i"4-1r*
qualqu-er. Talvez
::",Tj: *.1r. mais pelo espírito de' anarquia, pelo
oeslelxo, 1.:,,
pela orgia. eue Deus me perdoe! Mas-que
turas bizarras! Estou virando, cria-
po. ,ssi* Jir"., .,_ lor.o,
um cínico. Não compreendo este poro.
tgno.*te que só
um cavalo, e que pretensaor
euerer até aãivinha.. outros
põem o nome dos filhos.pelo calendário,
,gno.rnao;;;;:
cedência, o valor histórico, ,o"ia. ptãi-'reu,
Zola, Bis-
marck, Sôlon, Galileu, Hércules. . .
"Ptolomeu, astrônomo do segundo
sráculo da era
cristâ, foi o criador do sistema
ptur""tario qre considerava
a Terra como cr:ntro do Univers.r. ---
'1'
LARGANDO os animais na calçada da zeladora.
Zola, advogado e romancista francês, padre Tibúrcio encaminhou-se de esporâs e chibata e#
^
Processo Dreyf{ui, autor do famoso
defensor do
.Jhccuse,,,
-*U"u,o punho para u greja. "Tia Chiquinha" e Jacó cobriam-lhe
as pegadas num chouto apressado. Jacó subiu ao útão
- -
Ootr disto ninguéri sabia, padre.
th, e tangeu o sino com toda força. Nâo era o sinal dos mortos,
Não sabem de ,"dr. Mr" .r,b"rn triste e asfixiante, mas o badalar sonoro e festiyo da cha-
roubar e mentir.
Nep;ses cos.tumes, nessas
profissões, sâo lentes, catedráti- mada da missa aos domingos. O povo se interrogava atur_
cos. Tempos atrás, o Euclàes
luu"rl_" ,*-"-"rorol, p*u o dido:
Ieilão de Sâo Francisco: urn borregu.hr"iu"udo,
brancos, meio sangue, de língua".o*;.
dos cascos - Será que o padre perdeu mesmo o juízo? euern
ü;'.*celente e* já viu missa àquelas horas às duas da tarde?
-
pecrme para reproduçâo. Irnaginei logo
que o animal Jacó foi até o patarnar. Trepou-se nn forte do cru-
havia sido roubado. Só-podia L. du íarriu zeiro e anunciou:
Olinda, das
propriedades de Joca Márgues
do J;;;Galvino,'úni- - Não ó missa nâo, podem ficar quietos. E o vigário
""destas bandas.
coe criadores de Cabras de .açu
disse-lhe eu
Volte _ que vai fazer o sermâo, explicar o que houve ainila há
-' o"§ santos não querem esmolas de ladrâo,
Puxei-lhe a laçada do pescoço:
pouco no Alto"
* Euclideg isso é profissão . O .povo lotou a igreja. Padre Tibúrcio estava impa-
-
sabem roúar.
de homem? . . Nem ciente. Arregaçava e desarregaçava as mangas ila batina.
euando vao a Santan" o, u-§obr"l vender Coçava a coroa. Careteava para os fiéis. As á.porm tiniam
um couro, já se sabe: se é de úiunça,.
faltam as o."lh*, po. montadas nas 'riúnas. Assoava-se Resrnungava. Grunhia.
sinal; se de gado, !W", J. **.u.
:rT::.,1:- I Agora Chelego, Passeava de um lado a outro das extremidades do altar.
o.,tlrnahco, vira profeta. eue faço eu neste"povoado de
üdentes e adivinhões? Vamos todos - Sahemo que aconteceu ainda há'pouco no Alto,
à tg."jo. e,r".o a"r- magote de morrinhas? Não foi praga da Raimunda Ama-
mascarflr este eshipido embueteiro.
rante não, gue Deus não dá ouvidos a uma deúocada
daquela! O que houve foi castrgo. Eu já disse: ,.Isto aqui
'8

t
um dia acaba virando Sorͫ;ma e Gofflorra,,.
Sô vivem
rnentindo, fajando da vida ;úireia, xouhanrio
he,des; ap6-
dnecendo de preguiça. ft4agote oÍu
rmorriuuhar! 0 que acon-
teceu, na verdade, Í'oi aperlas urn aviso"
Ou se ernemdarrr,
ou se recúnclilianr" coan Ilerm, o Tnahalho,
a Família, uma
vida de tetitÍtro, paertada nô amor a cristn
e na humildade,
ou o Diabo, quando íflelxos se esÍ)ere, levard
a todos. Nâo
laáoutra saída: nunca raa terra jíse viu
coisa igual, a não
ser eÍn Sodorna e Gorulo!:ra, as cidailes
matditas, t.rg"ar"
F,eJo. fe-ead1 e pelo víeio. Mas, unra aldeia comoesta. luma
aldeia do Ceará, é urn fenôrneno i"*rru*r.-;É*"*ã*il[11i
isto.ó: castígo. Nâo t+xiste fenômeno.
Nunca existiu.
Os homens subvertem^. a verdade. Arranjam
para tudo
uma explicaçâo científica, viável. T";;;;r,
abalo sís.
mico, vulcãu:, ioso e aquilo. Mas o ce*r,
é, que eles pró_
prios pr"ocuram se engenar com rnedo da
verdade! Mas
me emganal para que foi que estudei?
í"iT"ninguém
r\ao. ror para acreditar em reza de feiticeiro
nem na Ma_
temática de Pitágonas! Ele que ,.,
,*r" ,ábio, por
nâo arranjou uma eqr1,eá-oriúu q,r. prtrlongasse gue
nrais
um p@ueo a sua vida? Hein? Nem os profetru
escapar.rm
(apeoar- de eaher o gue diaiam)
nem c,s santos tampouco,
que não subvertiam a Verdade" Deus está
irado, e com
t*u,:;.Isso aqui ó um prostítulo. É necessrírio
I:1r1
todos rnodifiquem 6uê nonrra de vida, pois
se Ele ainda
os surpreender em pecado capital, Iiquidará a
que
f
todos de
um Eo golpe, como o raio.
Os fiéis estavanr transidos de terror.
. "A ira do Criador, com mais razão ainda, cairá
sobre estas paragens, porque uma coisa
é certa" euando
oB homens-quiserem eúer mais do
que Deus, ele acabará
o mundo. I§ão vêem o Chelego, o beato,
nhar? Dizem que ele anteviu a Cafástrofe,
q";;il;fu:
mas nâo aÍr_
tdüu que o irmito nrorreria louco! Ah,
isso é adivinhar?
Dizer ao acasor uma coiea e i* **"i*""i?
o ,"rro, ,

7fi
t

"Tenho sido sacudido Por ltttsatlclos ltrrívtris!"


coincidêncía... Vocês nâo sabem o que é issol Vocês continuou a côntâr-me o sart[o l'arllrr' "l'r:sarlelos''
sâo uns cavalos! Sr: Deus perceber que vocês andam acre- -
prefiro antes falar assiml parn nâo tlizr':rt:rtr rL:pois que
ditando em adivinhões, Ble acabará isso aqui com urn
eu erâ um údente, um santo. "l'tlsadclos". Mrllhor srrria
sopro.
contar a verdade: declarar por csttr l)eus invisívr:I, ntas
"Se seu braço esquerdo cair sobre o Alto, a terra
que São Thomó tocou cont os lrrirpri<ls dedos que nâo
se aÀrirá e um mar de fogo devorará a todos: homens e
eram visões, rnas imagens físicas, Íhrindo un pleno tlstado
tnulheres, animais, insetos, aves, bichos, tudo será atraído
ao imenso sorvedouro. Aliás, tenho muito medo disto de consciência, em plena vigília ao rttt'io-dia. Um mar
aqui, destas paragens. FIá uma lenda antiga. Não sei se de labaredas ardentes, inflarnadas, LrtIr rrlar de fogo, que
hem uma lenda ou uma história verídica. Deus queira ainda me arde os olhos, levantando-se da planura e en-
que seja apenas uma lenda. Mas os antigos súiam o que volvendo toda a cidade, tornartdo tudo: igrejas, colé-
gios, hospitais, usinas; o comércio inteiro ardendo, as
diziarn. Eles sabiam ouvir, meditar; sabiam, inclusive, que
criaturas, as casas, o seminário. . . Eu aspergia água benta
a Ciência, ern relaçâo as coisas sobrenaturais, é inócua.
mas a água feryia ao cair no ar. Tudo foi destruído num
Reza a lenda que o mundo vai se aca.bar pela Região Norte,
segundo: da Serra da Meruoca ao Frade de Pedra (5) era
isto é, pelo Ceará. [Jm dragâo monstruoso teria sua morada
um bra,seiro só. Nâo rne recordo se a ribeira do Acaraú
num vale, na planura de léguas e léguas de tabuleiro es-
fora atingida, pois na posiçâo em que me encontrava
pinhento. Sobre este vale, sobre seus recessos ásperos,
ela ficava às minhas costas, e nem que eu quisesse podia
edifioar-se-ia uma cidade, cujos húitantes seriam plas-
me voltar, pois estava petrificado ante o pavoroso incêndio.
mados sob o orgulho. Gente execrável, como ervas dani-
f)e repente, a terra entrou a tremer (tal qual Sodoma e
nhas. Mais tarde a cidade possuiria um bispado. Flores-
Gomorra) e emergindo das cinzas e «los destroços surgiu
ceria em progresso: bancos, colégios, faculdades, semi * o Dragâo, um monstro de guelras
uma espantosa figura
narios, hospitais, fábricas, etc., mas a maldiçâo estaria {ogo pelàs narinas' os olhos ,"fuo.,
u"r-"11i".,
sobre ela, como o ódio do Criador sobre Sodoma e Go- "*p"lúdo
injetados de sangue como a boca surda e câva dos duen-
morra, pois o dragâo dormia sob seu solo, as asas domi-
des; entrou a hramir, retorcendo-se com violência e' corno
nando toda a planura. Esta cidade, embora possuindo
um demônio furioso, ricocheteou na planície conturbada"
muitas igrejas, santos padres) mesmo assim estaria fadada
Depois um vento satânico o dissolveu e bestas magras,
à destruição, desapareceria da face da terra, como Sodoma
com eEueletos escanchados no dorso, berravam e cor-
e Gomorra. Esta cidade, já se vê - é Sobral, cuja mal- riam atirando os cascos secos no ar, empestado de enxo-
diçâo o falecido Dom Américo Tupinambá de Lemos fu bestas-feras, creio eu. . ."
fre.
já temia.
o'0 dragâo E o
santo Padre. Tremia. Entrou a flrar.
calou-se
vive mesmo em Sobral * declarou-me A agitar as mâos. Apanhou o crucifixo e caminhou sole-
ele, em Roma. na ocasião em que se realizava o Concílio
nemente com ele pelas alóias do Vaticano, deixando-me
Ecuménico.
- Ao contrário, corno se explicaria o orgulho
daquela gente? O calor infernal que se desprende daquele
(5) Rocha situada ao pé da cidade de Itapajd e quc se assemelha
pedaço de chao? a um, frade ajoelhado.

72 73
!

L
sozinho sentâdo diante da Basílica de Sâo pedro, sem
mais urna palavra. Tenho ceúeza de que as "visões,, vol- 'E quem ousa dizer que isso aqui é nrellror qtte So- u
doma e Gomorra? Qmern sabe o que ainda há pouco acon-
taram à sua mente. A cidade estava sendo destruída e só
teceu no Alto? O Pecado está enraizado aqui, corno a lepra
ele a via.
na pele do Lázaro".
"Ah, Sobrall Tenho pena desta gente; destas pa-
ragensl Bsta ribeira do Acaraú pode qualquer dia ser úa-
lada por um demônio terrível. Que Deus tenha ao menos
pena dos inocentes, dos animais,'das aves. De Sodoma e
Gomorra nada escapou. Nada: tuÍlo virou cinza, se ürou.
Tudo virou pó, se úrou. O ar, vejam só, até o ar desapa-
receu. Não havia mais o ar, onde o havia. Tudo ficou
dizimado pelo ódio do Criador, Tudo ficou queimado,
se é que se possa dizer ainda "queimado", já que nâo
restaram sequer pó nem cinza. Moúos sem cadáveres!
Sem o ar, sern partícula qualquer que identificasse a vida
de antes. Nem se podia dizer se "ânteso'alguém possuíra
a vida. Pois já nâo se sabia o que fora antes. Tudo do que
fora, nada restara senâo o símbolo, a história, u
"*"-plo
da ira de Deus. Ira fulminantel Do que existira, nada
restara, como se jamais firra. As paragensl . Ficaram
os nomes das cidades, por causa da memória dos homens.
Por causa das palawas que não têm sangue, nem vida,
mas sâo memória. Ficaram os nomes das cidades por causa
da memória. A memória! -- testemunha invisível, mas
verdadeira. Se é que existe a verdade fora de Deus. Fora
deste enigmal Fora deste enigma, se é que existe a ver-
dade. A verdade, se é que existe, se é que a mente hu-
mana não consiste numa anomalia. A menos que nâo seja
uma anomalia. Se é que existe a verdade. Fora desse
enigma - Deus!
"Sobrall - que Deus tenha ao menos pena da§
criancinhas. . De uma cidade, um povo, nâo restar se-
quer uma paúÍcula infinitesimall Terrívell Se ó que a
palavra terrível basta. Se é que hasta o Dia do Juízo,
quando todos terâo que prestar contas a Deus de seus
pecados capitaia

74 75
t

O PADRE ainda dois dias no povoado.


u*1r:r:, de qualquer jeito,
"passou eueria A
o corpo de Josa tlo lajeado de
espinheiros, onde a fiiria do vento
à haviJcmcificado.
_- -
Nâo podernos deixar os urubus comêJo.
furanjem i'
um jibâo e lrnas perneiras, que
vou lá. o
Jacó foi até a fazenda do Cel. Miglrel Dias, nas pedra.s
Brancas, e trouxe a vestimenta ao
orq"".f" que era mais ou
I
JI
menos da estatura do padre. A populaçeo do povoado
estava toda reunida. Homens,
_rlÀ"À., acompa-
".iurrçu.
o vigário trajado de vaqueiro. páar.-fil,:r.io,
:f.."r-l andava enhe o pessoal
oostante,
nâo
com desembaraço, atando
as correias.das algibeiras, acochando
o barbicacho sob
o
queixo, tentando ganhar firmeza, pois
o vaqueiro tinha
uma cabeça medonha.
Aquele cabra, o l\dundico, tem
uma cabeça de ele_
fante! -_ troçava o vigário. _ Não ."i a consqJue
desviar dos galhos das juremas. "o*o
.. J1o apodrecia no lajedo. O corpo já estava
sendo
disputado pelos urubus, flechando
.ofrJo íJcal, em piquê, rlr'-
como um bando de demônios negros
e esfomeados.
André desmontou o clavin"ote do
o*bro. Fez a mira,
ia detonar parâ€spantâr os abutres.
O padre o alertou:
. n:l"i
U
- Cuidado, nâo vá ferir o defunto. Apesar de_morto,
ainda, portanto, merece ser tratado
l-
peito e dignidade.
com res-

76
t
Armado com uma foice para afastar o hafume de do ele charnar, daqui mesmo eu ouço'
já a t;arn-
espinhos e conduzindo no ombro uma enorme corda de Mal o telegraf ista acabou de fechar a boca'
relho cru, o padre aventurou-se no lajedo, painha estnrgia.
iria para a
Moitas secas de carrapicho eram atiradas por cima da Todos correram para a Agência' O corpo
Passaria' no
cabeça, em novelos. Ao alcançar o cadáver, o padre sacudiu f)iocese de Sobral - u"o'cio' o telegrafista'
rede"
rnáxirno, até às quaho horas pelo Alto' carrcgado
crn
a cabeça, desolado. Regressou agitando as mãos, os olhos
ardentes" Diz o aviso (,r,us i'*' é um segredo) - fez' 'vcr
o tclegra-
Mullrer - silen-
-Para gue atáJo ao laço? Não adianta mais. Nâo fista. - A tnusa da morte foi assassinato' -
resta sequer um grama de carne. Só o esqueleto, ocado por ciou ele.
Por causa disso também - {alur de ética' falta
de
dentro, como um fóssil. - pedir
No povoado, Heráclito, o telegrafista, que não acom- tato na profissão eu, conl mais razão ainda' poderia
hufou o vi-
panhara a romaria, porque estava esperando o horário, deu o,u .t"lr.ão do Serviço Público Federal --
uma notícia fatal. Acabara de receber o aviso, para transmi-
"gario. Lembre-se de que um operador de linhas é' ao
- secreto' às
tir à agência de Santana, com urgência. A infausta notícia mesmo tempo que um ticnico, um funcionário
era endereçada a padre Tibúrcio" rru". a. qr"rr, " Nação deposita a confiança dos segredos
Herá-
- Aviso do Prefeito - disse ele ao vigário. - Acaba- á. O.tnao, causas cíveis, particular'es, etc' Aprenda'
ram com a vida do padreJosé Arteiro, no altar, na hora em clito, nesta terra você acúa ficando deteriorado!
O telegrafista pediu publicamente desculpas de
sua
que oficiava a missa.
- Mas cadê o telegrama? Isso nâo é notícia oficial - rlefie iertcia:
razão' Minha rnissão é árdua'
reclamou o padre. - O vigário tem toda Mas o que aconteceu ontem
- Sim, é oficial, âssegurou o telegrafista. A notícia iligo: altarnente responsável'
Alto me d"i*o" perturbado' Tive que controlar
os
veio dentro do horário, podia ter sido extra, mas foi corre- ffi-ro a menor
tamente transmitida. Apenas o lápis quebrou a ponta na
- ,iurelho., pois os fios sâo podres e nâo rnerecem
Por.um momento' o
hora do traslado e eu a guardei de memória! .àgrrrrrrçu. Nao *í daqui desta mesa'
poúasestivessenr fechadas a tranca'
- Excelente! Bravo! Tudo que acontece no mundo ;;;" ;"g"" embora ascausa da e§curidão' Mas tinha que
pode também acontecer no Alto, mas tudo o que acontece O lampiâo aceso por
permanecer no m€u posto, como o*-b":
soldado da Pá-
no Alto jamais poderá acontecer no mundo. Eis a diferença.
Tive medo de me
Urna notícia oficial transmitida de memória! Só por esta tria. Os tubos tiveram seu óleo alterado'
telhas
envenenar aqui dentro' Se rebentassem' ' '
Algumas
razão, ó com este argumento eu poderia lhe botar fora do
no chão' Feliz-
emprego, mas isso eu não farei. Acho que você, como acon- vüaram sobre minha cabeça e se espatifaram
tece a todos gue entram em contato com essa gente daqui, mente nâo me atingiram mortalmente'
um pequeno'raqo
eu protegia
acaba também ficando louco. no ombro, e dois-dedos edolados, Porque
a tormentâ
- Ainda vêm notícias? Quais são as etapas dos horá- igualmente os aparelhos e a cabeça' Quando
de restabelecer
rios? ú*r, digo, a uLviâo, cuidei, sem demora tx
Emendei-os
- Não devem demorar. O aparelho está ligado. euan- os fios externo§ que fumepvam na poeira'
11

79
7B
novarnente, sern perder tempo, pois eu súia que as agên-
cias de outras lor:alidades iriam pedir informações.
.* Muito bem, muito bem rosnou o vigário.
- -Mas
eu prefiro saber a verdade. Yocê nâo obrou por bem em ter
dito aquilo, mas também não constituiu nenhurn mal. A
verdade. Doa ern quem doer. Padres ou Bispos, não vem a<r
CâSO.

À ruOn.n prevista, a rede apontou, conduzida por


oito cahras forl;es que se revezavâm ao§ choutos' pois era
preciso chegar a Sobral antes do corpo entrar em putrefa'
ção.
* Estamos que nâo agüentamos mais - sopraram o§
cabras, arriando a rede à porta da igreja, onde se encontrava
o vigário.
Pecados pra burro! -- Íalou um do grupo, emhria-
-
gado.
- Calem-se - ordenou o vigário' - Se nío ltod+:ttt
conduzir um defunto sem beber, que nâo acciteltt o t'a-
balho. - Nâo vêem que Jose Arteiro era uÍn hornem gorckr'i
- Gordo? * insistiu o ébrio. * Não são seis arroba§,
mas sessenta! Farece feito de {erro. Tambép : proferiu
ainda, num estado de quase inconsciência -, o padre era
doido por mulher.
- Ahra a igeja, Jacó - proctramou o vigário. - Te-
nho que lhe encomendar a ahna.
E virando-se para os homens que conduziam o corpo:
-- Este cabra fica. Está éhrio. Vou entregáJo ao dele-
gado. É crime blagfemar contra um defunto. Um defunto
tem que ser respeitádo, sela ele quem for. Âinda há aguar-
dente por aí?
- Nâo senhor, não trouxemos cachaça. Quando o
Prefeito noe coútratou, elejá estâva tocado. Com o calor. . .

80 81

)
1

Depois da exortação ao nlorto, o padre resolveu faz er


o sermão, já que havia perdido a hora da missa:
- Parece que o fato é verdadeiro, mas nâo precisam rl/,
,_
propalar aos quatro ventos. tr'alavam também áo pr,lr"
Antônio Iomaz, o poeta. Conheci o fruto de seu amor, ou
melhor, de seu pecado. Uma moça alta, de olhos negros,
inteligente. Devia mesmo ser sua filha, pois se assemelhava
muito ao pai. O padre é um homem, eu bem sei;mas ho_
mem só na acepçâo do termo. Para,.outras coisas,,, é como
se fosse um objeto. Por isso nâo quero fêmea em minha
casa, digo, uma mulher. Necessito muito de quem me faça
o calé, as tapiocas; cozinhe â carne e o feijeo. Co*o o.uii_
nrentos crus) como os índios. Um peixe insosso, chamus-
rndo (porque nâo entendo de tempero). mel de engenho
corn thrinha afirarela, batata-doce assada. Não posso ter uma
empregâda. O povo de Santana, como o de toda a ribeira do
Acaraú, é muito ignorante. É, capaz até de me levantar um @»
falso, dizer que vivo amancebado.

§,

82

I
0

as ptl-
a sornbra e §e atiràva no mrrntlo, la[irrrlo, ttlortltltttl,t
rlo N4ttr:ttriptr
dras, cambaleante. A ventania ululnva' A Srrrra
nudez. o ciririo-rlrl rlrlí'ttnto, sobrr: tl
mostrava sua escabrosa
Ntlm;i
telhado da casa da zelatlora, sc trattsíot-tttavil rltrr pír'
()
noite uma rajada de vent! rc{loriir' lcilo rlt' Actaú
era

uma espinha que incandesc:ia a vist.a'


Ouvia-se falar do nrar' Brarlqtrc^iavl a costa' com
suas

otrdas verdes, espumantes' Nttltt'a strt"itvil cliziam' Qrre


grande mentira! Tr,lo *""'u' naqueliis Pârâgons'
As cria-
perlras' ('omo poderia
í-rrrr. o. espinheiros, as próprias
o ar sempre
haver lugar no mundo cujas águas conservasscÍr
A SBCA continuava inclemente, fazendo vítirnas. Os fresco, ímido? Então, se isso fosse verdade' Deus havia
rr:tlcnroinhos a I ilando cisc6s, 1;116s secos, terra grossa na lançado sua maldiçâo sobre aquelas paragens' tal qual
,'ura rlo povo. Os írrricos poços evapÍ)raram-se. Apanhal,a-se Sodoma e Gotnorra, como dissera padre Titrúrcio'
iigua no açrrrlc rlo Mirirn, há três lóguas do povoado. O sol t Três partes do mundo eram dágua! Que anedota!
um
belriq- a Ígua do açrrde, sem se {artar, como um animal Conro serialsso possível? A rnenos que o sol não fosse
mordido de cobra. Mais três meses sem chuva e nâo ficaria Por que o- olho ald3nte do sol só
só para a terra inteira.
l,cbia a água daquelas paragens? Por quê'l A rnenos qrre
no açude uma gota dágua para remédio. Nâo havia sequer o
urna folha verde nos bosques. Não se ouvia o pio de uma hr"ço ú C.iuá',r tivesse caído solrrtr o Alto' r:ornnr

ave. ,As andorinhas emigrararn pârâ o Maranhão "rqí"*do


- onde, não se cansava de rePetir o Padre'
diziam, havia muita água. As avoantes insistiam na beir.a do Se existia água no o mellror t:trtí<t scria t'rxlos
"'o',
açude, como uma prâga. Desciam em grande bando baru- úandonarem opovoado e caminhar para [irrtaltlza' Sr:
lhento sobre a câbeça do povo. Entravam nas latâs, nas ft""i" agu en, abrrn,lância, como diziam, embora salgarlr'
salobra' Nãt.'
r:uias, beliscavarn os olhos, as orelhas, rosnavam cofilo nâo fazla mal, rlepois de fervida talvez ficasse
cachorro§. Bicavam e firgiam.Quando derrubavam um bando no meio do tempo, a pele-do rosto resse-
se podia morrer
o outro atacava. 0 sol fervia no espaço. Alucinava tudo. os olhos incendiados pela luz'
qrridr, o, lábios rachados,
* Meu l)eus, isso é mesmo o fim do mundo. as criaturas. Mas comn fazer isso? Os olhos não
""g".rdo con-
Manadas de camaleões caminhavam pelo campo seco, diítinguiriam o caminho. Sem comida, sem força para
ou pelas estradas, ahicinados, úrindo a hoca, engolindo duzirás ancoretas dágua, os matolões, os filhos' ' '
vento. Os jurnentos mastigavam molambos, tampos .de E se fosse mentira? Se não ltouvesse água no mar?
A'penas teriarn atrreviado a morte' Padre Tihúrcio
dissera
couro dos tamancos; escarnavam o tronco dos tamarindei
ro§. J§o céu - o azul ferrete. Na terra q,i" u havia de chegar' Quando? Ele não súia' Mas
- um mundo de "hur" o menos §e
ciruas, calcinado. As criaturas * naturezas mortas. De vez um dia, afirmava, inverno chegaria' Quando
em quando um cachorro, desesperado de fome, abandonava esperasse ele chegaria, com seus ventos frescos amenüando
o calor. A poeirl levantar-se-ia da terra sm novelos' rna§

UÉ+

s$
logo cairia, ern grandes placas, como tapirrcas. Voltariam
as andorinhas a chilrear nos jacarés-da-igreja. O oiticical
reverdêceria. Os campos, as capoeiras, tudo voltaria ao que
fora antes. Embora parecesse incrivel, ainda aparecerúm
cururus, pássaros nos bosques, e osjurnentos, rnagros como
ascetas, escaramuçariam no quadro das ruas, escouceando
o.vento. Chelego, o adivinhão, passaria entre o povo, de
cabeça baixa, envergonhado.
Enquanto isso, Joâo Pinto, o usurário, caminhava na
mata. As alpercatas de couro cru reduzidas à metade, pro_
tegendo apenas o peito dos pés, mostrando os calcanhares
<ralejados como a couraça de um monstro pré-histórico. A
I
avareza rlele era tamanha que o havia transformatlo num
bir:ho, urn ohjeto insensível e inrliferente a tudo. No entan_
? §
to, havia nt:le urna indornável vontade de trabalhar.
calor inrpiedoso fustigava-lhe o corpo, perturban_
do-lhe os sentidos, e ele adentrava-se na màta asfixiante,
confurbada, a chamar pelo nome das vacas que a seca liqui-
dara. Tangia o dedo no ouvido e soltava o aboio, tinindo
nas chapadas ardentes, tangendo a maloca invisível. Coita- t
do, a loucura o vencera. O Diabo, corno yaticinava padre (a

Tibúrcio, um dia tomaria conta dele. Chegara o momento. )(.


A mata estava coalhada de ossos. Bsqueleàs identificáveis,
confundindo-se com os das áryores. Em que pedra, em que
tronco, escondera ele o dinheüo? Os troncos, descarnados,
eram iguais" As pedras, de uma ú família. Um inferno
comum igualara todos os olrjetos..Uma só forma, uma só
dimensâo, um_sô fim, aguardava a todos. Devezem quando
urn carnatreâo golpeavalhe o rosto, e sua cauda, cúvada de
esporões, abria uma chaga profunda de onde o sangue esgui
chava. Imediâtamente ele tirava uma pele de fumo e estan_
cava a hemorragia.
A mata era como um cemitério. As árvores caíam mal
se lhes tocava. ilo châo, cadáveres de gaviões mortos. As
penas ainda incnrstadas no corpo cinzento,

fJo
ri

Apalpando os esqueletos, o usurário delirava. Ria.


Açoitava as pernas, como se as mutucas as picassem. .,Essas
formigas, essas mutucas me põem louco,, ,"arrrrngoou.
-
Mas não havia formigas nem mutucas" Um ãu outro
camaleâo,-engolindo vento, alucinado. Uma fortuna perdida
na rnata! Vendera a alma ao Diabo! Onde teria enterrado o
dinheiro? I\os momentos de lucidez, gritava alto: ,,iVlinha
fortuna está enterrada nesta mata. Mas me esqueci o lugar.
cadê o marco de pedra, o juazeiro grande? Laàrões,.orbu-
ram meu dinheiro! Padre Tibúrcio, pelo amor de Deus.
onde está o meu dinheiro?" Depois, ria. O chapéu de palha
esfiapado na cabeça, as calças furadas no fundo, mascando DOIS anos de seca. O cóu brilhante e indiferente'
um furno ordinário; a farinha de mandioca azeda, da pior Gente erlouquecendo de fonre' 0 in;tinto de conservação
tlrrr: se vendia no povoado, «r pedaço de bofe assado, dentro gritando denho de cada ser entregue à luta' Homens) mu-
rlo mocó, amarrado na cintura, ele caminhava cumprindo íh"."., .riurrças, bichos e aves cavândo a terra, às margens
iiua arrrarga cxpiaç:ão, corno rie enl yerdade h«luvesse come- do açude, arrancando corn as unhas a mesma raiz, o mestno
tido o pior dos cilmes. p"ltnito. Um reino primitivo. Bnrto^ Natural' Todos nivela-
dos pela fome e pelo tnedo da rnorte'
- Meu Deus, se acaba tudo' lixlcllrl P{)l' qrrr)
- 0 governo estatlual, o govel'Ilo
c,:uzam os braços?
colsil s( t [r..rlirv. r,
- Gcivernos e rato'"§ são uma
vigário.
o fim do mês o govern() rkr l'lslir'
Esperava-se que até
do curnirisse com a palavra: enviasse no.trem de rlarga <r
vagao de farinha ârnarela e os fardos de
júá'
" O p",ir" fora à Capital, pediu urna audiência em palá-
cio, discutiu com o Governador a situação de rniséria em
que se encontrava o povo do Alto - um bando de morri-
vivendo de roubar bode e agora
,h", qr* nunca trabalhava,
não tinha um bocado para comer' A fome liquidaria a
todos, se as autoridade, ,,ão ut dispusessem a auxiliar'
Con-
um vagão de alimentos'-Trouxera consigo o
seÉíuira afinal
d".pr"ho e as guias tu .u'gu, a fim de que a mercadoriê
,,ão fosu* desviada ao chegar na estação cle Sobral' Os

88 89
agentes daquela cidade eram uns ratos. Cidade maldita. por
ela, pelo orgulho desmedido de seu povo, sofria toda a
região.
Sim, o provimento chegaria. Padre Tibúrcio amassava
a papelada entre os dedos, impaciente:
- Neo passa deste sáhado, não passa. Heráclito, insis-
ta telegrafando ao Governador.

Havia uma esperança de que a farinha amarela e a


carne tlo sul chegassem. Ah, nras a sede seria estupenda!
(lomo resolveriam o problema da água? O
açude virava uma
cat:imha. Talvez pudessem abrir um poço quando ele secas
sc. N,las o poço consumiria o resto da força dos homens. O
parlrr-' afirmava gue o mar existia. Camocim, Acaraú eram
p<lrl.os. NiÍo precisavam andar tanto, ir tão longe, para te_ I,
refll o máil'. Nâo precisavam ir a Fortaleza. O padre nâo
mentia. O mar existia. Mas tarnpouco
- advertia ele - a
água mataria a sede. Se matasse, por que o povo do Acaraú
e rle-Camocim abandonava o lugar? O sal comeria os intes.
tinos! Era uma loucura pensar tal coisa. O melhor seria
mesmo acreditar na inexistência do mar.
Na capital, a água também ameaçava desaparecer. Os
poços artesianos deram na pedra. A água era racionada. Os
imigrantes depositavam os seus canecos nâ porta das casas.
O que recolhiam mal dava para molhar a gargarta. Só no
Maranhâo, no Amazonas, em Sâo Paulo, havia água em
abundância. Os navios transportavam a carga humana:
Se chover a gente volta. A gente volta nem que seja
fugido. A gente está vendido. Alugado. Mas a gente volia
nem que tenha que matar um peste destes. .,Cassaco!,'_
-
"Cassaco é a puta que o pariu!"O marujo atirou na boca do
sergipano. Mas nós, do Ceará, teríamos comido ele de faca.

llt'i,, t L

90
-

FINALMENTE, um dia, pelo meio da tarde, as


águas voltaram.As águas voltaram quando havia desapare-
cido, por completo, a esperança dos homens de sobrevive-
renr à seca. Voltaram, quando a última gota evaporou-se do
açude. Voltaram quando o vigário, à última vez que apare-
ceu no Alto, foi para encomendar a Deus aquelas tristes
almas, entregues ao seu próprio destino.

- Senhor, se tem que ser, se assim o quer) assim seja.


Prevaleça, antes das criaturas, a Vossa vontade.
A prece Íoi ouvida por todos: contritos, ofegantes,
cônscios de seu próximo fim.
- Senhor, tende piedade de nós.
- Jesus Cristo, ouvi-nos.
- Jesus Cristo, atendei-nos.
Todos repetiam as palavras do padre, com grancre
fervor
Cabisbaixo, mudo, vencido, o vigário montou no
c-avalo arquejante. Viu Jacó entornar o frasco de aguar-
dente, mas nâo o reprovou. Dos olhos azuis, , p.l"
"o-o clia, ao
seca do céu, escorria um fio dágua, tristr:. Se algum
Alto ainda voltasse, talvez não encontrasse ma-Le ninguém
que lhe contasse a história
- a terrível história daquela
seca. LernbravaJhe a oito. Que numeração fatí-
seca dos
dica! Que data! Que época! Que sinal! Que estigma! A
-

s2
rlt,s. l't't'atlos capitais! Llrn século dc strrdr:zl
Ilrn sticrrlo rlt:
hurrranidade jamais esqueceria as três ci{ras rrredonhas!
o{enrlirlo, hrrtrtillradrl. "lssrr
Na escola, quando criança, jamais gostara de escrever intolrrânIias! Deus sentia-se
rrrrr tliu vira Sodoma e Golttorrit, rllagot(' tlc rrron'inhasl"
aquele número, embora fosse bastante fácil de imitar, co-
\las o povo fazia ouvido de tltcrcatlor:' Àgora' a
dtlsgrnça
piando o modelo da tabuada. Dos algarismos arábicos, pre-
vinha cobrar o seu tributo' Nutlt'a a goÍlte
feria o 4, que era como uma cadeirinha. Nela podia sentar- Latia às pot'tas,
se a mosca, o cascudo. Preferia qualquer número que nâo do ,\lto lizera jtrs ao Betn'
fosse o B. Esse, sempre lhe parecera urn desígnio: dois O vent.r ulrrlava violentr» soltrc ils citbc(:as' atirava
dois jumen-
infinitos formando nós inteiriços. Algernas. distuntt, o tt'to tlas casas. tlmas setcttta poss()âs,
tos, ttnt papagaio dt'rttetrte. cntrroitdo (iss«r) trrrlo
o que
Pelo meio da tarde , qrrando todos gemiam sob o calor
em torno do
asfixiante, andando à toa, pelas calçadas, lastimando a r:..,rt.o .àr,i ,iau tto povoadtt, e'qtabeleceu
sr»rl.e, como Jeremias, a nuvem de poeira, como da vez tl'onco do tanrarindtito u"r círculo uniforme' As mâos
toda a força
irntr:rior, levantorr-se rro horizonte escurecendo o céu. ÍIo- anrarratlas umas às outras, acocorados, davam
formada pela embira dos
rnrrrrs, nrulhcres, r:rianq:as, reuniram-se numa trouxa ao pé qu. po..uir- à etrorme corrente
titânico para não serem arastados pela
rlo tittitro tatnalildt:irg seco que havia no quadro das ruas, liruçá., num esforço
fugiu a luz do céu e cairt a escuridâo
orrrlt: sr: cnrrrnt.ravam dois jumentos. Ninguém ousâva atirar u".riurir. De súbito,
espada de fogo
runra cs;riadela ao horizonte. O braço esquerdo do Criador intempestiva. D".up"."J.' o câlor e uma
despencou com
havia descido sobre o Alto. isso acontecesse, .achou o firmamento ao meio' O aguaceiro
Quando
vaticinava padre Tibúrcio, seria o fim. Antes fora o aviso, tanta força, como se fosse o próprio céu a nrir de uma só
a volta seria para destruir tudo. Tudo. Tal Sodoma e Go- vez.
Nâo pode ser, não pode set' Ê um'visão'
[)rna
morra. Até o ar desapareceria. O que antes forâ é como -
mentira. Não havia um fiapo tl" "u'*'o no cspâ(:o
lrrada-
se jamais existira. Seu coração estaria preto de ódio. Sua
fúria qrreimaria as partículas do ar. Se "queimar" fosse bem vam os homens, alucinados'
Sim, éo inverno; Deus é bom - respondiarn as
o termo, pois, em verdade, não havia uma definição precisâ. -
Já se ouvia o ulular rouco da ventania. A ira do Cria- mulheres, em coro'
dor! Que terrível coraçâo Ele possuía! Que espírito vinga- - §ao artes do demônio - insistiam os homens'
tivo! fulminados de terror.
mulhere§'
A malta dos ventos malditos ladrava aos ouvidos - gritavam asjoelhos'
- Não, é mesmo o invernoem no
num alarido, erguendo as mãos prece' de
como cães famintos, lobos ferozes. O calor latejava nas
congestionadas'
têmporas. Os jumentos suavam. As enormes orelhas, caídas meio do tempo,Lb o aguaceiro; as feições
como abanos molhados, escoavâm em bicas na cúeça das os olhos incandescêntes' como loucas'
criaturas. Da terra subia uma onda de calor infernal. A terra
inter-
ia se abrir, tal qual Sodoma e Gomorra, as cidades maldi- Choveu três dias seguidos, estiando por curtos
como outrora, surgiu sereno' azulado'
tas. A gente daquele povoado, como não se cansava de valos'. Depois' o céu,
no infinito'
dizer o vigário, era indecente e imoral. Havia abusado da como u;a barca côncava, tranqüila' ancorada
bondade divina. Uma geração inteira. LIm seculo de peca-

95
g4
T

a:

"EU vi, eu vi
dâis siris jogando bola,
ou vi, eu vi
doie siris bola jogar. "
()s rrcgos sarrrdiarn os rnaracás. Os olhos de peixe
r:ozirlo t:strelados nas írrbitas.
0 inverno acochava. As águas corriam impetuosas
pelos gorgotões da Serra do Mucuripe. As várzeas alagadas.
O Acaú fora da caixa, esturrando.
- Enchente doida, Amarante!
Amarante esfregava a cara corn a oosta das mâos, afas-
tando a brurna" Com o cabo da foice liquidava os morcegos
grudados no portal. Desabotoava a braguilha tla ceroulà e
mijava no meio do tempo, espiando as estrelas; o cavalete
de mulungu escorado na parede.
A bruma alfinetava a ponta do naiz, das orelhas,
deixava as mãos dormentes.
Caía nágua, remando corn os pés. A roupa, o facâo,
o mocó da comida feito uma trouxa,lcom a enxada no
cocuruto da cabeça presâ ao nó de barlricacho.
Ás cascavéis, as cobras-de-veado, as salamandras sibi
lavam emaranhadas nos bauceiros, que giravam na corren-
teza, apanhados pelos "funis".

96
Gemiam os novilhos estrepados, berravam as raposas rlr'
Tocadas pelo álcool e pela hcrcditarirxlltlrt lritssttlil
ernpoleiradas nos galhos das gameleiras. Camaleões de papo filhoaneto,entravamamcntirtlitl.alitrrlirvirlltitlItt:ia.
amarelo, o fato de fora, perseguidospelaspiraúas, rico Apesar da seca, apesar da tentptlstadrr tlr^ pt'r'ir-l
(rr illrrviiÍo)'
cheteavam pela correntezaúaixo. up"a* doa pesar;s, elas nâo se ettttlrttlltrittlt' t,ttlittttltvattt
à b"b"rrdo cachaça, rn()ucils ii arlvr:rlôrrr:ia
Amarante erguia a proa do cavalete, defendendo-se llo
mentindo
das cercas de arame farpado que giravam na correnteza.
vigário.
Voltavam os tempos bons' ()s sal)()s
A água do Acaraú era morna como o corpo da mulher (:()axavanl na
s<;b os cobertores. Mulher velha, mas boa. Sadia. Forte beira do rio, debaixo d"t pcdrus, ao Jlé dos pottrs'
Sem saher
('omo uma vaca. Tinha-lhe dado vinte filhos. Paria como dos
como, âs andorinhas chilreavarn noviunento n()s canos
rrrna coelha, uma porca. Nunca per.dera urna cria. Como as jacarés. O gaviâo que apanhava morcegos na torre exibia
.uu. grrr", f"ror..; §ovelas pulavam no leito do rio;
var:as, concebia sernpr.e no começo do inverno. E Amarante o tama-
s;rlrir. ;rolo ciclo lunar -- experiência herdada dos avós rindJiro, no quadro das ruas, encrespava-se de flores; as
it rurturcza do sexo que a mulher gestâra. Nunca erravâ um
-, ilhas; a grama
carnaubeiras balançavam as suas palmas nas
lrrogrrristit:o: "nracho", porque fom gestado na fase da lua repontava, espessa; a mata escurecia e a Serra do Mucuripe'
('r'('s.r'nl("'íôrnrra", p()rque já descambava para o minguan- no povoado, como um mons-
.rJvamente, parecia avançar
lr:. I', isso íirr:ilitava, ern parte, nos utensílios domésticos tro verde, pré-histórico.
qtttt a r:ri3nçn iria rreggssitar. De onde vieram âqueles cegos, nâo se sabia' Festeja-
Em
Enquanto o cavalete desiizava na mole superfície do u"-.. à padroeiro do luga' - São Francisco tlas Chagas'
leito do rio, Amarante parecia ouvir o escachoar da mijada tempo àe festa, era as;m: apareciam aventurt:iros de toda
iriganos'
das yacas. As mulheres também se levantavam cedo. Mija- ..pé.i., mágicos, equilibristas, cantadores de viola'
uád"do.".ãe bugigngas, rufiões' ' Tarnlrrirrr t ir'''rs '
vam de pé, no terreiro, sobre os pés. Mijavam coçando a t: ar-
bunda, catando pulgas no cós da saia, tagarelando, numa rocéis.
zoada doida, como um bando de tetéus. Libertavam as De onde vieram aqueles cegos? Sacudiarrt os rrlâr'll(':ls
tranças dos cocris" Fareciam duendes, os cúelos pela cin- na porta da igreja. Os óculos amarelos, a rouPa encarrlitla'
.as muchilas ensebadas atravessadas entre o pescoço e
tura, voando ern torno do corpo, tangidos pelo vento matu- a

tino. Almas errantes, condenadas, sedentas, aspirando o omoplata. Sacudiam os maracás' A voz de taboca rachada'
sererro da maúã. o. oiho. remelentos, encroados, imóveis sob as pálpebras'
As galinhas também saltavam dos poleiros, cuspiam Malcriados. Inconvenientes' Um dia desentenderam-se'
nas plantas. Os galos as cobriam, sistematicamente. Um em punho'
Xingaram as mães. Pularam no adro, de muletas
horário comum para todos. As galinhas entravam a ciscar, Saltavam como gatos) valendo-se dos cotovelos' Um era
catando insetos, minhocas. As porcas fuçavam os estercos apenas duas asinhas
perneta, o outro não tinha pernas'
das vacas. As mulheres coçavam-se, §€ espreguiçavam, ridículas, como os membros superiores dos pingüins' balari-
abriam a hoca, depois se reuriiam em bandos, como capo-
çando nos lados do honco'
tes; bebiam cachaça ao pé dos balcões das bodegas. Umas, A luta escura recrudescia' Gritavam' regougando
em copos; outras, em Êascos, com sementes de gengibre, como macacos queimados'
pendões de manjericâo.

99
98
- Eh-eh, puto.
- Eh-eh, corno;ladrão.
O tacâo de ferro das muletas arrancava Iíngua de fogo
das pedras. Uma porca que se refugiara do calor, com sua
récua à sombra do forte do cruzeiro, foi massacrada com
uma chibatada. Os miolos saltaram, distante, com um tam-
po da cabeça e uma lasca do focinho.
- Rachei-te a cachola, puto.
- Eh-eh, matou a porca; corno, ladrâo.
As muletas encurtavam. Restavam tocos. De zubito
silenciaram. Um frente ao outro, ferozes, escumando como
p()rcos bravos, rilhando os dentes. Os espectadores contraí- O PADRE acabara de chegar' Como viera' ninguém
com
raÍn os punhos. O qrre estariam eles premeditando? eue sabia. A batina enrolada debaixo do braço, amarrada
pcnsamento ignóbil estariam engendrando aqueles céretrros? junta com os sâPatos' as botas
uma embira de pau-branco,
As tônrporas latejavarn, lavadas de suor. A respiração opres- ,* O chapéu de feltro atolado na cabeça' o cal-
sa. Aproxinravam-se. . . Aproximavam-se. . . Fatídicos. De " ".po.u..
çâo de mescla, encharcado:
um salto, se atracaram. Ouüu-se um grito desesperado. Estou gelado' Maroca' A alma entanguida por
Em seguida, um uivo. Simultaneamente ambos rolaram, dentro. Meio copo de genebra' Não, gencbra não;
o povo
é t:apaz de dizer que ando na
sangrados. As unhas enorrnes, vermelhas, escavando o chão. do Alto é muitolinguu*do,
tllr ttlt:
chuva, mergulhando no rio, c()[l o prop<isito
As gargantas estouradas, o sangue escurojorrando em bicas. tlnt-
Espinoteavam, rodopiavam sobre si mesmos como bichos para o "lnvr:rtl«rr"' r' Anrlrri' ll t'
Urirg". D"i"*" u genebra
de pescoço quebrado. s", ãrfé da manhâ. Eu prefiro rncsrn() ttrt «:<»rrltatltttt'
O bodesueiro, solícito, depôs o litro no balr'íio:
"Este'está
Nâo. aberto' Traga-me um litro intlt'o'
- Estnu berrr
nâo seja besta. Veja com quem está tratando'
informado da roulalheira de todos vocês aqui do A!9
aumentar'o vinho, a cachaça' No
Mijam nas garrafas para
Alio, não ninguém' Não con{io em mim mesmo'
"á.rfio "mem Sâo Francisco' Isto é: no seu trono'
No AIto, ú confio
o
lá no altar' Teúo até medo de que vocês nâo pervertam
de morri-
santo quando o levo à Procissão' Vocês' magote
.rtr., .uo incríveis. Quando sai a Procissâo' não abandono
do
o andor, vocês são capazes de cochichar"*. .to ouvido
tampa!.Não tem saca-
santo. A,h, vâmos, arranque Iogo esta
Dê-me a
rolha? Para que esta ponta dá fa"' enferrujada?

100 101

)
garrafa) ora bolas! Vocês, aqui do Alto, nâo têm forças,
também só comem carne de bode! Para que quero dentes?
Nao é só para mastigar. Nâo tenho um dente furado.
Cuspiu a tarnpa {ora:
- Ora, ora, rnole coÍno uma pastilha. Maroca, o rio é
um mar dágua. Opa, Deus de bondade! Nunca vi tanta
cobra. Nunca vi tanto animal junto. Nunca vi tanto bicho
sol'rendo, assombrado.
O padre veio pelo rio?
ll
Claro. Jacó é mole como um peru. Ficou do outro
lado do Buzil, com os animais, esperando que dê val. Tal.r,ez
sir r:hr:gue lá p:ra a noite. Talvez daqui a uma sernana, se
t'orrtinuar chovendo. Ora, ora, eu nâo me aperto. Para mim
rriio cxiste cht:ia. liiri pena que nâo encontrasse um cavalete.
'l'ivt: qur: rlcsccf no rabo de uma vâca. Estou com as munhe-
(ras cansadas dt. [azer força. A correnteza muito forte. De
vez em quando a vaca €ismorecia. Tive que açoitá-la. Muita
agua. Cortamos mais de um quilômetro. Quem anda aboian-
do na rua?
- É o João Pinto - gemeu o bodegueiro. - Enlou-
queceu com a seca.
- Estâo vendo? Cansei de dizer: um dia o Diabo
toma conta dele. O avarento nâo tem uma chance. Deus
fecha todas as poÉas do céu ao avarento. oNão troco meu
cavalo por ele", me chamaram de herege.pstá aí, um pobre
diabo, atirado ao léu da vida. Louco. Nâo dava um cabrito
a um afilhado, a um sobrinho. O André, coitado, morrendo
de fome, mas sonhando. Morrendo de fome, mas hoje, é o
que Be vê, nâo precisa mais andar pelas bodegas implorando
que lhe venda um litro de farinha fiado. O André terá uma
velhice tranqüila. O gue ele fez pelo sogro, o louco Fran-
cisco das Chagas Frota, o que ele fez pelas cunhadas, o
Idelfonso pagou com a mesmá moeda, levando Davi para o
colégio. Davi, por suâ vez, provou que tinha o sangue do
pai nas veias. Procedeu. Quis ser gente. Um aviador. Ducas,

102
André' querendo ser
empregado do cornércio, em &tassapê; numa firma rica. andando entre os anjos na igreja'
Deus encher.r a cabeça de Anastácio de inteligência. É um arqri*"4"*. Gorrrg"i "o*o toilo mundo no Alto' mentin-
jornalista. lloie. o André tern mais futuro que o coronel do.
xícara de
Antônio Carolino, o Zémaranhão, o major João Lourenço. Foi uma embriaguez passageira' Com uma
A {igura bizarra deixou a bodega e se encarninhou óafé amargo o padre recobrou as faculdades:
Tive um sonho - declarou ele - em-que fayil
para a casa da zeladora, assoviando. As pernas cuúas, cheias - o Acaraú no rabo de uma vaca' É verdade?
de nós. As veias quehradas. Roxas. O Pai de Chiqueiro, de atravessado
propriedade do coronel Fortuna, ergueu-se da malha para Onde está Ja"b? Os cavalos?
o chifrar. O padre saltou por cima dele, o bicho enterrou os
chifrr:s no châo, desorientatlo.
Estou acosturnado com a sua rflanha, Cheiroso.
Suspencieu-o pela ponta do rabo e deu-lhe com as
Irolirs rros rlrrartos. (bntinuou assoviando. O chapéu de fel-
lro trrlcrr:rlo nu calrr,ça. ['arecia rrrn espantalho.
"'l'ia ( ihiquirrlra" ia lechanrJo a poÉa quando o padre
srrbiu a rrlr,,acla:
Padre,oqueéisso?
- Se está com medo do Diabo, se benza primeiro.
Sou eu mesmo. Hoje voi celebrar assim. Acabei ficando
doido tarnbém, como todo mundo no Alto, como você.
- Eu não lhe quis magoar. Falei por falar. Foi isso.
- Nâo me magôo à toa, não sou feito de açúcar. Não
sou manteiga para andar rne derretendo. Diga se tem uma
toalha por aí. Estou encharcado, Chiguinha. Acho que
estou bêbado, tamhím. Acho que estou cômico, com este
calção. Atravessei o rio no rabo de uma vaca. Os urubus
cagaram na minha coroa. Merda de urubu d,á azar, não é a
mesma coisa çre os dejetos das andorinhas. Nâo ache graça.
Todos nós somos côrnicos. Todos nós somos palhaços na
vida. Todos nós, um dia, temos nosso dia. Totlos nós nos
excedemos. Nunca vi tanta água junta. Creio, essa a razão
de ter-me excedido. Tornei uns tragos na lrodega do Maroca.
Eu estava sentindo por dentro a alma gelada. Tcdos nós
somos passíveis de erros, fracassos. Veja o Joâo Pinto,
louco. Padre Arteiro, assassinado. Eu, ébrio, Você, patética,

105
104
A BOQUINHA da noite, Jacó apareceu conduzindo
-rf
os urrirnais. As pernas pretas de lama. Os olhos inchados, aos
lorrrlros. 'farntrérn estava erl seu dia. O {rasco de aguardente
vlrzio, colrro unr crnlrornal, balouçando na cintura.
.f ar:ír, quc r:ara ri esta? - bufou o vigário.

'l'ivc nredo de apanhar um resfriado. Excedi-me.


Tive que engrosur o couro. As nrutucas quase me acabam.
Mutucões vermelhos. Acho que estou com febre.
- Homem, nâo seja mofino. Veja com quem traba-
lha. Nao lhe dou este exemplo. Quantas vezes já nâo me
viu tirar en-xu? Não uso fogo. Pulverizo as ahelhas, como se
fossem pó. Mande botar os cavalos no cercado. "Molhado",
assim como está, não pode comer a coalhada da Chiquinha.
Veja se ainda tem paçoca no mocô. Sente-se primeiro aqui,
quero lhe contar como atravessei o Acaraú. Foi uma aven-
tura, Jacó. Juro como foi uma aventura.
Jacó escanchou-se sobre a janela para ouvir a façanha
do padre.
- You colocar-lhe umâ escora. Você está tão peri-
goso quanto urn oitâ'o velho, rachado, depois da chuva. Se
despencar daí, é morte certa. Amanhâ não tem quem me
ajude a oÊciar a missa. Também nâo engulo esta história
dos "mutucões vermelhos". Você achou-se sozinho e entor-
nou o álcool no bucho. A hereditariedade! E uma coisa
s+5ria, acredite.

106
I

ils
'Jacó, eu só queria que você visse o mundão dágua uma fogueira; o açude - um poço dtl larrra; [)('ss()ils as
t'tttrtlt:tttlo
rolando. Um dilúvio! Quando a vacâ esmorecia, eu a esmur- ,rrturerãs mortas. Os cães latindo nas trstratlits'
t'arttalr:õr's altrcittittLrs' t'llgr»-
patas, desatinados de fonre' Os
rava. Estou com as munhecas podres. Ah, mas que bico na por:ira' ()s
leve. Parecia uma canoa. Um quilômeho de correnteza. A iirrdo'o vento arrlente, dando t:alrthalltotas
jumentos escarnando o tronco dos tarttarirrrltriros'
A ntlvtrttt
cabeça flutuando, o queixo montado na linha dágua. Quan- 'J. po.irr, Chiquinha, escure<:etttl. ..r'trtt' l'éguas e ltiguas
do alcançamos a ribanceira, eu tinha o corpo tão dormente, cstrangulá-lo'
como se nâo me pertencesse. O coraçâo parado. A alma circulando o horizonte como se qllls(rsselll
qualquer' Nunca
inundada. Tomei meio litro de conhaque na bodega do àt iquirrf,u, "aquilo" não era um ttrnrporal
Sodonta e Gomorra'
Maroca. Alcatrão legítimo. Arranquei a tampa com os ." oruiu falrr àe tal coisa, a não ser etlt
e pelo pecado'
as cidades malditas, sucumbidas pelo vício
dentes. Depois, me retirei. No quadro, em frente ao forte crescendo
Nrrr"u se viu, Chiquinha, tanta poeira acumulada'
do cruzeiro, o Pai de Chiqueiro, o Cheiroso do Fortuna,
ameaçadoramente sobre o esPaço'
queria me derrubar. Saltei sobre ele. O bicho enterrou-se Parecia
"Não gosto de recordar aqueles dias fatídicos'
no châo que só uma bananeira. Foi um sacrifício para arran- como um
que era o fim do mundo que se aproximava'
r:á-lo, quase lhe esfolo o rabo." Parecia !pe era
.[acó sar:udia a papada de porco cevado, rindo. Os
dr"rd. enchendo de terror tudo o que toca'
cumpria' O Dragâo
olhos inchados" (lontraú as olheiras escuras, moles como o fim de tudo. Parecia que a lenda se
desapare-
borboletas.
dilatando as entranhas áa terra. Estas paragens
..r1"., tal qual Sodoma e Gomorra, quando o braço
"A gente tem um dia na vida, súe? A gente tem um da fattrr
dia para nascer e para morrer, poque também nâo pode esquerdo do Õriador caiu sobre elas' eliminando-as
da terra.
ter um dia para. Para se embriagar? hein, Jacô? Que t'ortíilttrlittrlo'
Os ossos dos animais e das criaturas sc
Deus me perdoe, mas a gente tem direito, a um dia." no lajr:«Ir rle rrspi
Chiquinha. O Josa, coitado, cnrcificado
"Tia Chiquinha" estava perplexa do "bom humor" do os rrstt:ir»s rllt
padre.
nheiro. O Yieira e as irmâs, sepultados sob
o (llr('
"Todo mundo tem direito a um dia, Chiquinha. Um própria casa. A cega Maria Donato, corn p(rs('()ço
baratas' A
brado. Crianças mortas, atiradas às sarjetas' como
"dia particular". Há o Dia de Juízo, quando todos têm que no céu'
prestar contas a Deus de seus pecados capitais. Há um dia "Princesa Isabel" agonizante, os olhos pregados
um gato
para todos. O nosso, o dia ideal. O dia de se embriagar. como uma criatura. O Antônio Rufino esfolando
vivo. Quem diria, Chiquinha, que as chuvas
um dia volta-
Aquela seca, Chiquinha, como a seca dos 3 oito, a maior
riam? Quem diria?
seca do mundo, nâo é coisa que se esqueça jamais. "Aquilo "
de outro dia, Chiquinha; "aquilo" que apareceu no Alto,
ioje é o dia do povo do Alto se embriagar' Deus me
a um dia'
perdoe. úas até o Diabà tem direito também
não era nada normal (a aluviao!), prefiro antes falar assim,
já que não sei a que atribuir. "Fenômeno": mas não existe Um dia fora do calendário'"
fenômeno! Todos nós sabemos que nâo existe fenômeno.
O Dragão. . . Sobral! Estas paragens!
"Nâo gosto de recordar aqueles dias passados. O sol -

109
108
I

0 â 0
o
t
ONDII é que você quer armar seu rancho, Elpídio?
N o lr t @
llllllllltlllllllllllll
Nã,r ri no paLarnar da igrcja, é? Ngo vai vcnder seu péde-mo-
lr-rgrrc los nrill.ut.os nâ hrlra cla elevaçâo. Todo ano tenho
rlrrc llrr' lirzr,r cssl lrrlvcrtônria, oomo se você sofresse de
;trrrtrlsiir! ll rnrr nr,,,,,,'nto sagraclo. O r,inho converte-se, em
sllrÍllrr, a
h<istia, Ír() (:()rÍ)o dc Cristo. Lembre-se: todos
tênr que se ajoellrar, contritos. Pedir a Deus para que no
Alto jamais aconteça outra desgraça daquela. Recue vinte
I,
metuos do adro e risque seu terreno. Matuto é como bicho,
não seja tolo. Se quer vender seu grude, seu refresco de
tamarindo, que erga sua barraca quanto mais distante. Veja
o que fez o Guabiraba. Carregou a táhua e os dados para a
heira do rio. Os matutos vão descendo das canoas e ele os
vai limpando. Jogo de bozó, jogo de caipira, jogo de azar,
não interessa! Para que diabo matuto quer dinheiro? Para
comprar terra? Brigar? Dizem que o Guabiraba põe chumbo
nos dados.
"Perguntou-lhe: Guabiraba, você põe chumbo nos
dados, diga? Isso ó rlesonesto. Você vira os dados.depois do
jogo feito'i Isso é desonesto também."
- Tibúrcio (nâo me chama de "vigário", como todo
mundo), vi quando você nâsceu. Vermelho como um rato.
Minha mãe deuihe de mamar nos peitos. Leite de negra
cativa, forte como leite de jumenta. Sua mâe morreu do

110

I
,.Utensíiios,,? (litv:rlol () t|rc
I
parto. Nós nos criamos juntos, somos quase irmãos. Você _ - rr,:plirlrei-lhr'.ílotlltrrllttos! l'l os
achou quem lhe levasse para o Seminário. Eu fiquei arman- acahei de citar nâo são uter'sílios' rttrts
I
ils lt:lttsllrirrs
do fojo, arapuca. Depois comprei esses dados para ganhar santos não precisaÍn de tl«lcttrttttttttl's ;titrit
a vida; mas meus dados não sâo feiticeiros; acho gue não comerciais, ir,li"iá'int, etc'
(lorrtr» o
lrorlt't'iil lrt'lttt'ttt tlt'
são. Não têm chumbo. Tem dia d.e azar, caborje. Você sabe. Povo, o magistrado,
o avarcnt<l' trstitlrtlt't t'l' i oll\'rt lsil{'il()
st'rttitlo':'
A soÉe tambérn tem seu dia. À.s vezes, volto para casa, Iim- o, suntÃ? Você não pcrt:eire tlttt'isso rtiio l'itz
"or,', trl'í'ttti'ros'
po. Um dia é da caça, outro do caçador. Assim é a vida. Os santos nâo são ao*'o "ó*, llassrglinrs' 1roltrtrs
Elcs sÍo t:rrigrrriitit:os' ittt'orptittros'
Acontece é que os matutos cismam de "amarrar" certo ;;;;it desampar:ados'
vrx:ê hrttttbótrt não
número. Matuto é bicho teimoso. "Cercam" o número a eternos. l'or ,tna questão dc lrigica, qutr
cttt possuir
tarde inteira.'O número, por sua vez, brinca de escontle-es- vê-se que São lirancisc'o cstá saLislrlito
"ri""a",
este estirão: as seis léguas que vão do
ltiozinho à lombada
<:onde (está no seu dia), não bota o focinho de fora, e o
dc trarnaubeiras
Iresta do matuto vai desatando os n<is do lenço, escorrendo í*i"rru do N{ucuripe."Este ierue"o, coberto
senão' r:omo podería-
os rríqrreis aqui para a mochila. e oiticicas, dá urna boa renda à igreja'
nichos não
"Quc posso fazer com ele? Os dados sâ'o os instru- mos Ínanter â conservaçâo das imagens? Quantos
deixar que os mol-
rnrrrlos rlr: sr:rr ofício. l'elo menosl nâo anda roubando foram frliLos antes da seca? Vamos então
lrorlc rros r:lrit;rreiros alhcios. É um velhaco honesto. Todo cegos càguem no manto dos santos'i
"Lutar com gente ignorante é o tliabo-' Tenho
enve-
firrr rlc an<-», é essa rnesma peitica. Isto é: a mesma arenga.
no Alto' Venh<'-nre

t
e
De tanto reprovar o Gonzaga, de tanto Ihe ouvir .a gíria, lhecido nesta terra' Digot "nt Sanlana
contrai o mesmo mal. A língua, como paga! Mesmo nas sentindo rloente. Depiupeoado' Ontenr t.ltlrlst: altitttlto tttn
irt:osltttttittlo :t
causas justas, como paga! "Peitica", repito, arenga. Quando resfriado. Meia hora no rirl' lirr rlrrl trst'ava
tiver que festejar o Padroeiro do Alto, nâo vou anunciar p"uaua ,*u tarde inteir:a tlt:ntro
rlligirir' l'lltrrl:rtttltr ;tt trtz ltlts
rrstit itl'"s r:ittttltilt's'
antecipadamente. Apanho todo mundo de surpresa. Mando ilhas. Creio que estou muit() PCrt() tltl
(lc (x)Íls(li(i'Ír(riir lrrrrltliiillr'
atirar as bombas nas paredes e soltar os foguetes. Os matu- ór", .a estoul Porém me enterrc' gtrtt{t'
capil'ais tltrssit
tos que julguem que é o fim do mundo que chegou. Pelo Éi, I qu. pude para Iimpar os pecarlos
Ná. úngot. d" *oiirrho', acostumaclos it. rrttlt'r tlt'
menos não tenho o trabalho de vistoriar a terrâ. do
"Ontem, o Zégrand,e teve a audácia de me dizer: 'Dei bode, à à indecência, ao vício e à nteltira'
"u.hJçu, B vejo qut'
ordem ao Juvenal para montar a engenhoca dele aqui atrás "Gastei minha mocidade neste lugarejo'
Amor'
foi um tempo perdido' ioguei as sementes do
cla
do muro, pois o meu terreno se estende até o Riozinho".
estas altnas'
"Cavalo" - disse-lhe eu -, quem tem terreno por Virtude, da Persevera'çu to["t estas paragens'
esforços' No
aqui? Todas as terras que vâo do Riozinho à lombada da de que um dia ol'tt'i' o fruto de meus
Serra do Mucuripe sâo de Sâo Francisco. Mostre-me os
"ár..io
tempo da colheita vejo. (corno naquela.par'íbola
de Jesus)
pude' Dei meu tempo'
papéis, as escrituras do terreno, o aforamento, os dízimos. o joio sr{ocando o trigo' Fiz o que
Mostre o preto no branco. Argumente. Dê provas. minha mocidade, minha esPerânçâ'
Enterro-me com mágoa'"
-'E o Santo tem esses utensílios?" indagou-me
-
ele.

113
112
l

BAIXINI'IO, gago, sustentando âs calças que a cana-


lha insistia crÍr amancar-lhe do corpo, xingando a mãe de
rrrrr e dc ()rrtlo, aos trambolhões, o nariz sangrando dos
lirpas c slÍarrões rpe a rnalta de vagabundos lhe aplicava, o
p,rlrrc lt,rrrrcrrr r'orlopiava e caía na poeira.
- Qrrc Iatra ti aque [a? - inquiriu o vigário.
- É o Doca - respondeu Jacó. Há uma semâna
que bebe sem pârar. Está ficando inchado. Acaba morren-
do.
- Veja, Jacó, que espetáculo degradante! Veja: é
como uma meretriz, atirada ao léu da vida, do destino.
Sem moral, sem personalidade, sem ação. Vencido pelo
vício e pelo pecado. Espelhe-se aí. O homem quando atin-
ge esse estado está irremediavelmente perdido. Irrecuperá-
vel. A alma deste pobre diabo eétá por um fio. Que vão
fazer com ele?
- Amarrálo ao galho do tamarindeiro, como fazem
ao Judas. Só que nâo é pelo pescoço. Dependuram-no pelas
pernâs. Depois, com os canivetes abertos, ameaçam tirarJhe
o couro, como {azem aos bodes. Em seguida, balançam-no
a toda corda, até o miserável vomitar a cachaça que traz na
barriga, e jogam-no ao poço d, Buzil e deixam de molho.
No dia seguinte, desfilam novamente com ele pelo quadro
das nras. E o pai quem dá ordens à canalha para fazer isso.

114
I

lr

l1

il llltl sr'r l.ttl1r" rl' l.tl'l't"1" " tlir'' il"


- Quern? O pai? O Cajazeiras? Vá charná-lo. Procttrc-o. trtalta rle vagallttntlos
DQa que venha já aqui. que lhtts Iocava'
;t" 1';t'lt''' r'('llrlllrto il
O velho (iajazeiras aparcceu, arrustando a perna torta. ' Rêllatirl' (ltl ttiio' t'tt ptotttt li
As pestanas agressivas, corno uln varau, espetando o ar. r'- lavra.
pa
Atarracado como um pilâo. Os olhos de gato, arrtarttlos. As "parlrirrl'' littllt'ttl"tt o gllllro'
-- Qu" pcna.
orelhas de arnnhas, peludas e asql)t'r()sils. À voz tlt' I)ol1'()1
grunhida.
Padrc, aqui cstotr.
- I
l

- Pois rlevia estar no inltrrtro, nâo aqrri, srríno. \ otô


nâ'o passa tle ttm port'o. Iirn porco irttttntkr. I)iollrt'nto. Nkrr-
l'ético. Com que autoridade r'ocê tttatrda ('spalr('àlr o [illroi
lintrega-o à escória cotIIo sc cle I'osse unta ttlerctriz'i lies- I

pontla-ure? Você rtão ó digntl rla luz do sol! \ocê ó pior tltre I
trttt tnor<rtrgtll []nt rttonstrol OIrdtt já se t'itl ttttt pai firzt'r isso
('()nl o I'ilho'l Sorrlrc, Lurnhélrt, tltrt: você sir o cltattta tle
r:ur:ttortrt. llor qtrôl !lntão vttcê trão é o pai'i Nesse citso. i

você é Oêchorro tambtim. Não pelcebe isso? O que [(]Itr lrestir


r
cabeça? Barro? Lama'l llstert:o? O pai é o lilho tr o íilho é o
pai. Não percebe isso'i Você nâo é tligno de sua idade' Enve-
lhece como um bruto. Um cavalo. Envelhet:e sern consciên-
cia de seus atos. Envelhece como um porco. Llrn nlorcego'
O pai é o filho e o filho é o pai. Veja bem isso. Não esqueça'
E não permita mais que a canalha da rua espanque seu filho'
O filho que Deus lhe deu. Nllesmo que ele seja um cretino.
Um oápula.
Cajazeiras nâo deu uma palavra. Suava como um
porco. O varau ruivo das pestanas espetando o ar. A cabeça
enorme, redonda e pesada, firme no pescoço, como o forte
do cruzeiro. Arrimando-se na bengala, arrancou-se da frente
do padre e caminhou em direção ao pé do tamarindeiro,
onde a canalha esbordoava o filho, pendurado de cabeça
para baixo - os canivetes abertos, ameaçadores.

- Basta, não toquem mais nele. Quem tocar, eu mato'a


- Oh, mas ele está bêbado, "padrim" - rosnou

111
116

-4
I

"I'UDO o que houver de ruim aqui no Alto tem que


str rcrnoviclo, t:xtirpado, para o lugar prosperar, não aconte-
ccr nrlis "lqrrilo". '['orlo rnr:ndo sabe que .,aquilo,, que
il('onlo('(,rl no Alto rrâo [oi r:oisa normal. Portanto, o que
horrvt:l' rlc ruirn tt:nr que ser elirrrinado, a Íim de que o braço
direito do criador desça sob estas paragens. O braço direito,
e nâo o esquerclo, como Ele {ez em Sodoma e Gomorra, as
cidades malditas.

_ "Outra coisa que não se concebe é este povo do Sapó.


Um povo rico, mas pior que mucurana) carrâpâto. Agroádo
à fortuna, de dentes e unhas. Tuberculosos. Pálidos. Amare-
los corno melão. Merda de galinha. O dinheiro amarrado na
ponta do lenl:o, no côs da ceroula. Para quô? para gastar no fr
outro rnundo? No outro mundo nâo há comida para gente
avara! Ilstá na Sagrada Escrituru. "Os avaros não verão o
reino tlos rtius." Todos os domingos, eu lembro isso nâ
missa, nras rrão adianta. Sâcl uns duendes. Ou melhor, uns
maníar:os. l\,lorrenr como os hichos, à rníngua, com pena de
gastar o dinhr:iro conr rcrnédio. Ora, com remédiol Se nâo
gastam nern corn a (:()Íni(la. Andarrr quasc nus, com a bunda
de fora. Faz até vr:rgorrhir! Qrrarulo Ínorrcrem, lor:cos como
o João Pinto, a riqur:2x í'ir.l purl o l)iabo. (iomeçam asvisa-
gens) como contanr lror uí,
Jx)rqltc oij patâcões de ouro I

estão enterrados debaixo rlo llrlrillro, no canto dos muros,

118
I

I
( lr( ( rlr'rríl{r lrllril
lebaixo das arvores, no pé da Serra do Nlucuripe,.quem as árvtlres tla ltlarrted;r tlttt' 'ltltlittlt:'ttr"-' t'
() Iirlr tlit' lrtt'riltt" '
r't iltt 'l',".
iabe lál Só o Demônio poderá saber. Pois foi quem tomou rl ttnla. t:tlrtt rlrllitlcz' ,"'ll(r-;llllil
(llrill
r) lllill ttl li'r'it. ilr'
conta. No Curral-Grande, são os Moles, apodrecendo de ,rr,, ,rr,ratul. qrrc rlli Í)illil ''
preguiça, o mâto comendo â roçâ. o cabelo cobrindo as n t()s.
tttittt l;rlcil'tttl" (.lll. lllrli'
orelhas, passâm o dia inteiro escanchados nos peitoris dos Sint0 tl t-ttitl rlcrttro rl'' t:tt
r'lll ll)r'll: l'ttlttt"' ' ili illrttrl'r
alpendres, mâscândo fumo, coçando as pernas, ouvindo os víbttra. Ele cstli ltlltttllrrl, lt'rrl'tto'
,aa.- ar,.a,,,l,"tt'. "'i"tttttlt'
Iltt' ltt lt'tt:tt' lllttllllttttltt
capotes cantando nas várzeas. Na festa de Sao Francisco; no
llll ('rl)ilrll;l (()lll() lltll tlllrgrtr
penriltirno dia, no leilâo, aparecem com um pato, um jeri- ãa,,a,ir*n,t,,,,,tt' l'atr'.iarlrt'
rnum. E pensam que deram uma Eande esmola ao santo, inllanrarl, r.
por isso se julgam capazes de alcançar uma graça. Antes eu L rlueittte-trt'
rrrrrrpreenclo o João da Mata, os olhos vazados, vendendo
"'
srlrs grrrruÍ'adas, embriagado, pabulando. dizendo que tem
l)irulir ('()rrr o I)ialro. 0 Minervino com sua barba profética,
rliirgrroslilrrnrlo its trtulhcres gr:ávidas, recomendando siras
rrrr.zrrrlr;rs, liritirs rltr pti rla t:asca do sabiazeiror gome de
Ittgir:o, ritiz tlt' rttoÍ't'rtttlt«l'
"'l1ojc eu estou por tudo, Jacó. Floje. eu acerto direi-
tinho esta cambada do Alto. Soube. tambérn, que a Tetê
ainda conserva aquele macaco, é verdade? Tenho horror aos
símios. O macaco é quase uma criatura, só que nâo é bati-
zado. Ou melhor, levando em consideração a cauda, o
macaco é mais parecido com o Dia-bo. Se levarmos em contâ
a astúcia, então, sâo mesmo similares. Não quero este Demo
no povoado. É um atraso de vida. Bicho indecente e imoral.
Dizem que assovia quanr-lo as moças passam. Que se caçn.
Que se expôe. Vou encarregar a I-oló e seu grupo de dar
cabo deie, deportá-lo para a Serra do Mucuripe. Que o
Pedro Gualbeúo tte-lhe o couro. A rua nâo é lugar de
lna(:a('os.
"Sei que estou perto de estirar os cambitos, ora se
estou, nãr.» nre engano. Não obtive êxito em meu trabalho,
mas nem por isso o abandono. Enquanto puder montar a
cavalo, enquanto tne restarern força,s. estarei em Santana e
no Alto administrarrrlo o Amor, o Bem e a Virtude. Per-
cebo, claro conto água, que meus dias estâo contados, como

121
x20
ffi

o
4a pafte
l',\SS,\lL\\l-Sl'l doze irllos' L rll t'âl)ilz tlr' ''orttpleir;ârr
lortt'. aIto e rtsitttilo rttttit t'atttisa dt. rltcia Ii'tratla e Ialq'a
cok.gial erltr()u llo povoiril(). tlirigintlo. corn granrle hirbili-
i
rlade-u nta rrlotocicle til.
Era Davi. Estar-a utn hotrtctlr feito' (lrest'era' nrodifi-
('ilra-s(' por' conrpleto. de si síi consen'ava o noll)e' Dir-se-ia
runt alt'ttrào. ulll ttlsso. unl honlern arrtrncado de outlas
l"er-

ras. l)esengon(ara a corcunda e aqtleltts péstlt patos, trltrcr-


gados parà dentro; o nâriz rlc t ii. brtlrl.grr'' itlilarit-'r' r' t.-
,rrr, ,,rro posiqâo reta ttl) rosto' O lrcito lirrtr'oli'rlril
corlfianqa. A musculatura lisa tl()" lrir',.Ps t' ils,rttt,rltlitlil.
largas er-ocavam o corpo de uIn jolt:trr lttlttit gltgo' llilr
coin facilidade. mostrando os dentes ftirtcs, t'lrro"^ ortrlr'
repontâ\ra, no canto clo primeiro molar e«1trr:rtltt' tttttit
taiisca de ouro brilhante' O cabelo impregnado de hrillran-
tina destilava uma luz amarela e perfumada' Andava c<-rtlt
grande elegância e falava com rnuito estilo' separando as

iogri., os tlitongos, com gestos medidos -e ponderados'


LÃquistotr, de início, a simpatia de todos' As moças
desenfurnaram seus vestidos de renda, saiotes e espaúilhos;
o mofo dos sapatos de camurça' poliam conl
esco;vam
"krol" os anéis de miçanga, as fivelas de metal dos cintos e
os grampos gigantes dos cabelos; empoaram-se, perfuma-
,u*ira d" ...erciu. ativas e entraram â passear de braços

125
-t

dados na frente da casa do colegial, mascando cravos parâ


abafar a catinga dos dentes pobres.
uiIEãÉ=a

Apesar de chamarem-no de "dr.", f)avi era dr. e não üffis1


era, não porque lhe faltasse o anel, poisjá concluíra o Curso
de Perito Contador, na Escola Padre Charnpagnat, em For-
=m
taleza. Era, em verdade, um Bacharel em Contabilidade.
Mas a culpa era do pai, que apregoava aos quatro ventos
que o filho era "dr. diplomado" (o que não deixava de ser
uma aberrante redundância) e exibia, com grande vaidade,
a foto de fornratura onde o rapaz aparecia cercado de
outros "doutores", usando a mesÍna touca de pluma hranca
na cabeça e camisolâo preto, corn rendas nos punhos e na
gola, como um padre ornamentado no altar e muito sério,
-
mN M% EI
c()rno se estivesse a assistir ao julgamento cle um réu.
O povo nunca pôde esquecer aquele quadro estático
c a() Ínrsrn() t.cnrpo lrinehre, colocado na parede de fi.rndo
i

=fiM
rla sala pr:incipal. mI=l É
Era perceptível o eslbrço qrre o ',dr.', {azia para liber-
tar-se da reforçada moldura de aroeira, na qual lhe aprisio- E @
naram como ao Crucificado. Emparedado entre as quâtro I
traves de rnadeira e a dupla lâmina de vidro de formidável wi
E
espessura, dir-se-ia que o o'dr." daria tudo para evadir_se @
daquela prisão inexorávei
- assim pensavam: os habitantes
do lugar, muito ao contrá-rio do pai, que achava não passar
"aquilo" de uma necessária disciplina, à qual se ajustava,
E
por demais, o seu caráter. Sempre idealizara possuir um
filho gue lhe proporcionasse um prazer tlaqueles, seme- r
MM
lhante ao que tivera, ao contemplar um quadro de Napo-
Ieão Bonaparte, aposto na Galeria rle Honra dos Generais
no Quartel Militar, em Fortaleza. F

T
DAVI pa-".ava ri dia no mato, como um índio. A
r'.pingarda no onrhro, o íarnel a tiracolo, carregado de rnu-
rrir;iio. .À" \'czei! le\'âva também o clavinote do pai, e arlerr-
l,lril-sr' pclir em t:ompanhia de Elpídio, que tinha um
"r:lva,
llio cur,'irtlor, r: corrhr,r'ia rnelhrlr a flriresta virgem, os behe-
rlol[r,s rlus par,as, rs rr:rerlris das cotias e dos mocírs, as ma-
llrlrlas das perdizcs, o pasto dcls tatus.
Voltava à tardinha, com uma trouxa de aves pendura-
Ma
da no cano da arrna, arrastando um gato maracajá ou um
guaxinim, anzolado de fome, os pés escaiâvrados, os braços
e a cara marcados de cortes e vergões, queimados pela
urtiga brava e o cansançâo, rnas ainda tinha ânimo de tomar
o banho, trocar a roupa, engraxar os sapatos, e dar uma
voltinha de rnotocicleta com Anne, a trapezista do circo,
de quem se enarnorara, causando escândalo à sociedade e
às próprias primas.
As vezes, à boquinha da noite, Davi saía para a pes- s
caria. O que para os velhos pescadores constituÍa penoso
oÍício, era para ele um agradável esporte. Munia-se de tar-
ffig @
rafas e landuás, e lá se ia ao lado do Marinheiro, Quinca
Afonso, Miguel Belarmino e outros, tarrafiar no leito do rio,
mergulhando sob as raízes dos ubazeiros, desenfurnando
as traíras, sorvendo a grandes haustos a brisa da noite que
removia as águas, enchendolhe de remotas recordações,
desenterrando os' dias de sua infância às margens do Aca-
raú.

128


Ele mudara, mas os costurnes continuavam os mes-
rnos, sempre antigos, inalteráveis. O bisavô, o avô, o pai, os
iios. . Todos foram pescadores. Depois se entregaram ao
ofício de curtidor, p r"ta ca.beça o pai ,surgiu (quando já
c.ontàya quffenta ânos) aqüelapanla de fdbricar alpprgàtas.
Primeirámente tirando o'molde. traçandp um risco no
châo em ,+&ir*bo. pés éô,ii à'ponta ffi r""lJ, uttiffito à*
buraco na abertura do dedâo grande, marcando a indicação
do "cabresto". Depois idealizou um compasso de pau,
com uma agulha de ferro na extremidade, o que lhe valeu
a fama de "Inventor". O freguês agora não corria mais o
risco de estrepar-se na ponta da faca, porque o pé era plan- O ALPARGATBIRO sentia uma alegria doida inva-
tado numa fôrma de mulungu, e a agulha móvel de ferro dir-lhe a alma quando, manhâ ceclo, Davi partia para o
era retirada, substituída por um toco de lápis vermelho, curral das vacas tocando uma marcha militar na boca da
que fazia a marcaçâo na sola molhada. canecâ de alumínio. Seus dedos tamborilavam no fundo
Fora dcssa arrumação, o o'dr." se preocupavâ com ila vasilha, enqu4nto o sorn ecoava-lhe da garganta' no
um esporte bastante excêntrico, e que deixou na mente toque da "aliorada", como no acampamento militar'
do povo uma ponta de desconfiança de que ele não fosse Os bezerros levantavam as orelhas, o rabo; as vacas
Lrem ceÉo do juízo. "Coitado! É mal de família. O André mugiam soltando coluna,s de {umaça pelo nariz' Larnbiarn-
tom aquela mania de "inventor" o filho vai puxando a lhe as mangas do "short" oficial verde-oliva'
mesma corda." O Aipargateiro apalpava as sttít:as, srttis[r'ito' Sorril'
Daü sonhava ser inventor. Seu fraco era pescar uru- tossia, coçava os ovos, voluptuosanrtlntlr' l'itrrltitvit tto 1ri'Lr
bu, com isca de carne podre, pois os queria bem vivos, do rabo da vaca a coriza do nariz, os(jarruv'l rh' lrlilr"r
|'itlittr
para submetê-los â severos exÍrmes. sarro do cigarro de palha de milho, sacudia rr trulrr:r"il
() r(lsÍtlrlrlgilvil
Às veres, perdia um domingo inteiro jogndo anzóis tlo sozinho, lixava constantemente as rnãrrs
nos telhados. De vez em quando, fisgava um e o arrastava para si mesmo:
' e ousatlo txrrno Na1'r'
até o alpendre da cozinha. DesenganchavaJhe o caniço da - É um homem macho' Forte
garganta, e após estancar a hemorragia com cinza do bor- leâo.
ralho, colocava-o num pellueno curral que mandara levantar O rapaz sentia-se estimulado' O copo de leite fume-
gando nas mãos, os enormes capulhos de espuma
lembra-
para tal fim. No dia seguinte, começava o sacrifício. Tre-
pava nas árvores, o unrbu rosnando debaixo do sovaco, Da ír- *. colunas de nuvens que o aüâo cortaria' reduzin-

galharia mais alta, despencava-se com ele de asas abertas' do-as a ndda.
Esborrachava-se no châo. Arrastava-se pga casa, careteando escorria-lhe pela garganta, com gosto estra-
O leite
de dor, enquanto a ave agonizava, vítimada esÚpida expe- nho de sangue e mel. Trêsfquatro copos' O pai' acocorado;
a bana-
riência científica. Confudo, Davi nâo desanimava. Apren- a enorme riâo acariciando o úbere pojado' sugando
na dos peitos macios. Àsi ve'"'' o contato dos seus dedos
dera na cacernâ que a vida é a prática de constantes perigos.
Competição. Competiçâo r,b todos os aspectos.

131
Í30
ásperos corn aquele colo sensLlal e morno, e a emanaçâ.o lei-
tosa que lhe escorria manga adentro, pela cana do braço,
despertava-lhe instintos úris. Ele enteiriçava-se todo, o
espigão voraz rebentando os botôes da cerouia, ameaçan_
do varar o tecido da fazenda. Discretamente, para nâo oau_
sar maiores vexames ao pai, Daü ia até os mourões da
por_
teira, atirava pedras as rolinhas, espiava o secadour; de
sementes, estralava ÍLr caixas de carrapatos sob os pés,
juntava centenas de caroços de umbu e atirava-os para
o
alto aparando na cabeça.
A volta do estudante excitava-lhe a volúpia do orgu-
lho paterno, pela esperança de um frtu.o ,,rspi-
_coroado
r:iox), uma vellrice estável. Entrava a divagar:
- 'l'enr que ser lbrte, Sobrevoar ai cordilheiras, cor_
liu' os vr:nlos, il.s tcrnpestades,,snflgntar os coriscos. Sim,
It:rrr tluc scr l'ortc. Oorajoxr. Invencível como Napoieão.
Nesses firomentos, Davi alimentava grande t"-*.u
pelo pai, igualmente à repulsa que lhe quando os
instintos atávicos acendiamJhe no sexo "rrúuu
desejos monstruo-
sos ao acariciar os peitos voluptuorcs das vacas.

132
I'tlITA a primeira refeição no curral, Davi sentava-se
ir rncsa para o que ele chamava mais propriamente o café-
rIir-rnarrIriÍ.
À t.igrrla rlrr r:rialhada, as tapiocas, a nata salgada (que
s,rrviu rlr: rrrarrtciga), (:r;1srt ,* bolachas de sal, fabricadas em
Santarta, r.rrltrr devoratlas r:orrt a mesma gulodice com que
o leite. Depois espreguiçava-se, pois ainda nâo per-
ingeria
dera de todo o hfiito atávico, passado de filho a neto' ,\c) t

Dos maus costumes, o estudante conseguira limpar-se, J;\ t


menos daquele, que parecia uma doença, a quâI, umâ vez
contraídajamais ahandona a sua vítima.
Era estranho) e ao mesmo tempo excepcional, como
o colégio e posteriormente a aeronáutica lhe deram cabo
dos maus habitos: o andar cangueiro, a cabeça toúa (como
se estivesse constanternente a escutar o bamlho das ondas),
as pernas cambadas, os pés envêrgados para dentro, como
papagaio; as cusparadas no ar, aparando a saliva na cara, a
mania de coçar os escrotos, cheirando a ponta dos dedos, a
comichâo na bunda, tão comum aos dois sexos, as escava-
ções com graveto no subsolo das unhas.
Daú, agora, sentia-se proscrito em seu ,,rirprio berço
natal. "Que gente estranha" pensava ele, esquecido de
-
seu passado. - "Sô andam se coçando, mijando n&e ruas'
desenhando pornografias nas paredes, cuspindo à toa, men-
tindo, úrindo a boca, se espreguiçando. . "

134
- E o estilo da terra - fun$ava o pai. -- [Im bandtt Cer'i OS tcrlrernils, a lrrrilisr, r.i('rrt ílrr'lr (.01n ()ji rtntl,tts, 1,,ltl,',,
de parasitas, esgulepados. caindo aos pcdaq:os de preguiça. concorrianr para I,rrr:lrlr srrir ri,lir irrltl itr l,lr':rrrr 1,r'rtl rllts
Veja o costume de seus púrrros. . .
ntâis aproDriarlas i\ lttrrttlr'. l\lt. l't't llttttt'ttlt' l)rtri x' n'ttli;t
Davi parecia envergonhado dos parentes: - "E tttna solitárià. s,'6.:rrt, tl. itl'ig. l.lttirtitt, l"t;t l"'rtt iss. Nr''is.
coisa imprópria, esquisita, fatal conlo unla doença" particrrlar, irs rilrrllrt"rt:s t.iI,ir,,'itl,rr,, ,.orrr rliliItrklrtrlr'. l') rlrtl'
suntenciava. Lnportava . t',ttt:t'it. rlt' l ) (i.rl rtrrl.r, it tttttllt.r'' rtn litt' .'
I)r:vido à "falta de estilo " de se us cortterrâneos, as prir[as'i os ll(rrrrr.rrs r.rrlt,nrlIrrr rrll.llr,,r os lrotrtItts, t'otlt<)
I )avi se entregava inteirarnente à caç,a, à prática dos espor- os anilnais tttat'lt<,s t'ttllt si, isstl t'rit ttttll L'i Ililtllrâl' [x)r-
lr.s, iis suas oxperiências científicas. tanto, irrtvog:ivt'1. Oh. t: srr lltt'tttitsst l)itra it irlarltl dcltr'i -
Volt.ava Jrelo meio-dia, os otnlrros queinrados, as 21 anos! tttlis razâo ainda.cttt'ontritria para tloixá-lo em
-
l:r.r,s r.nr Iogo- Urrra í<lrrrc rle t,«rtnt:r lrcdras. cavando urrt paz. Na t'apital havia "recttrnoos", porórn. lx) interior'
lrurir,'o prol'rtrrrlo rro csliltrtitgo, r<letttl<t tls it.ttcstittos t'otrttr à.u o qu. st' via, os rapazcs se ma.sturbâtltlo crn plena rua'
rrt|t r:llo \ot'itz. 'filrha horror à sua infância. lembrava-se da "per-
l,,rl,,.ll,, r'oilto llilr 1llll rti, o rapaz sentava-se à Inesa
seguição" aos irracionais, como se fossem seres da mesma
IrtrI o irlnto(,, l),,r,rIirvrr, (\)ilr os tlentes ferozes, bfillran- espécie. Em verdade' não lhe cabia a culpa, pois não pos-
llH, ir prlr\rriro l'rrrlir. l)r'1rois l('\,'urllitvit-s(f, satisfeito, espre-
suía a menor noção de moral ântes de atingir a puberdade'
( o ollrlr rkr pai o lrtt'sr:gttia nr:ssa rttaniftlstaçãtr
grrir;rrr ir sr'
Por l)eusl Tinha horror à sua infâncial Junua não criar
porrlo corrrlizcutt r:orrto sua civilitlatle). "llm dr., uIn atlc- os filhos aquelâ Inaneira selvagern'.frrrara, tr ctttlrpririer'
ta, urn quase aviatlor, nâo lhe ficaru bem tais gestos. Ii nenl nleslno que tivesse quc dír-los a otrhos lrara rldrrt'í-
preciso preveniio disso" - conjecturava consigo Inesnto. los. Perderia o direito aos fillros, trtas ttiio dcixarLt rlrrrr
Mas cadê coragem para fazê-lo. O rapaz era estilnado, ado-
eles se "perdessetn" ao lótr rle trttta virla plirrrilivilJ strll
rado corno um ídolo.
dignidade humana' As filhas também teriarn tlrtr: tsl trthrr'
Que ele abrisse a boera e se espreguiça-*se por alguns Quando Eavi possuísse um emprego estávol,
str ttttttlilrirt
dias, nâo fazia mal, forçosanrente teria que renunciar ao daquela aldeia de índios, o lugar mais porco tlo tntrrttlo'
mâu costume, quando estivesse a voar) pois não teria mais Davi era um espécime diferente, orgrrlhoso tlr sttit
tempo parâ pensar noutra coisa..As férias estavam por ter- condição humana' Altaneiro' indiferente ao diz-que'níÍo-
minar e, ademais, seus músculos precisavâm vez por outra diz das línguas ferinas, quando saia para o furrdo dos quin-
distender-se, sujigados que üviam sob a farda cosida ao
tais, abraçado com Anne' e daí desapareciam no rumo do
corpo.
cemitério. Talvez (quern sabe?) sondasse com o olhar ex-
Também nâo era oportuno mexer com o nâmoro dele
periente o terreno que pisava. Mulher de circo, rnulher
com Anne, fora rapaz e sabia bem avaliar a intençâo e a
qr" *r,du em bando de ciganos, não merece cotação' Ah,
gratuidade das amizades daquele teor. Estava prestes tam-
isso era quase ceúo. A bichinha andava apaixonada' as
bém a partida do circo, marcada para o fim do mês. a voz entrecortada'
crrr", do Pescoço se reprNando'
Daú nâo s€ adaptava mais aos costumes dos primos,
mole como uÍna gata.
dos antigos colegas, com que diúo entÍio havia de espaire-

x37
136

I
I

Quando entrava no circo descascava-se como uma


cobra. A platéia delirava. A boca vermelha, os peitos la-
tejando sob a blusa de meia, as costas nuas, as coxas, o
covil do umbigo contraindo-se, como se por dentro um
parafuso girasse em alta velocidade. O sexo espremido na
costura do biquíni, como uma massa fendida. As mulheres
tapavam os olhos com os lenços, horrorizadas; os rapazes
enfiavam as mãos nos bolsos das calças.

APROKN'IAVA-SE o dia da partida de Davi e a


caça aos urubus continuava. Afora o vôo precipitado do
cimo das árvores, o estudante também fazia pesquisas
científicas. Golpeava o crânio do abutre várias vezes,
com um pedaço de vidro até exaurir-lhe as últimas energras'
O pai obsen'ava o sacrifício da ave, satisfeitol porque
"aquilo" (segundo afirmava Davi) contribuía para o avan-
ço da ciência, E ele era, agora) todo ciência, arlava-a coÍno
um objeto sagrado. Estava, oorno tltltlca, irnbrrído do ideal,
dos sentimentos do filho. A análise cicntífica pir+nt<trtrr
(termo que o âluno classificava de "cstudo csptrt:ífico dc
segunda fase') era efehrada com o corpo da vítima tiepena-
do. O esqueleto, exposto ao tempo para a secagerrr' As
vértebras, meticulosamente dissecadas com estiletes âpro-
priados, que Davi trouxera da Capital, de sorte a facilitar
a investigação anatômica no rigor das medidas algébricas'
Sentado num cavalete de pau, sob o sol inclemente,
Davi media e anotava, num grosso caderno de rascunho,
às proporções da complexa estrutura em seus mínimos
detalhes.
Obstinado, pen§ava ele como tirar daquela cârcâssâ

oca dados concretos que lhe possibilitassem a láurea de urn


inventor. Santos Dumont tinha feito muito' Reconhecia
nele um inventor, mas era preciso ir mais além' Havia,

138 139

)
a

na Élistória Ca Ciência, homens ousados como Edsorr, @


Morse, Graham Beli que assomhraram a hurnanidade
com seus inventos. T'udo seria possível ao liomem. Uma
questão de talento, conhecirnento, ,.sopro,,. Sim, .,sopro,,.
O Criador certamente existia. A mente humana, a ordem
dos sistemas, a vida, a unidade que há em todas as coisas 't
do mundo, evocam sua mão poderosa.
Enquanto divagava, o lápis suspenso da rnão, seminu,
-
no fundo do quintal, um óleo fétido emanava do esqueleto
do urubu torr.ando ao sol abrasante.

140

ff
AGORA, que o filho partira, o Alpargateiro obser-
vrrv:r o quattto lhe fazia falta sua companhia. Tudo o recor-
rlirv;t: l)itvi, tlrrlanlc o curto período das férias, o enchera
rlr' ilrrir citp('r'iur(,'lr l,»rr,ta, modi{icando seus costumes, fazen-
rlo-o rr:l'lclit' solrrr, l'ut«rs rlc sua vida cotidiana, ajustando-o
a urnu litrha dtl t:onduta tla qual há anos se afastara'
Seu passado, embora nâo fosse aviltante, não era,
contudo, exemplar. Sempre tivera o cuidado de educar
os filhos, isso era uma verdade' Nunca, porém conseguira
uma norma de vida capaz de mantê-lo em permanente
equilíbrio. Era um temperamento sujeito a erros, por vezes
graves.
-
Às vezes, apoderava-se de seu ser uma melancolia
esquisita, crescendo em angústia, até o clímax' Nessas
ocasiões, sô uma coisa punha alíüo ao terrível mal -
a hebida. Enterrava-se na genebra. Nâo tinha organismo
para oálcool. Enlouquecia. Dava para delirar' Por vezes'
crescia em fúria e, como era forte; arrebentava a cara de
quem encontrava.
Essas extravagâncias abalaram a Pequena herança que
havia adquirido da moúe do pai - alguns hectares de terre-
no fértil, plantáveis, que lhe assegurava uma boa renda de
cera de carnaúba e semente de oiticica. As reses e as cria-
ções, que faziam parte da herança, estavam reduzidas a

142
t

nacla. F'ora aos poucos rctalhanclo


as dívidas, desfalcanrXo o gado,
âgora o necessário para viver, com o
Debruçado nos rnourões
espiava com melancolia os
Aves esquisitas, rnas sonoras.

) a parte rlti

144
il

I
t

lll,llt^( ll,l'l'O. o telegrafista, apareceu na calçada


enverganrlo () uniÍbrme oficial. Uma farda de cáqui ordiná-
rio, vcstirrrenta que recebia todos os anos, em duplicata,
do Departanrento dos Correios e Telégrafos, e que, uma vez
lavada, ficava-lhe as calças pelo meio das canelas e o paletó
acima tlas costelas. Era preciso que a mulher desmanchasse
os abainhados, juntasse a eles babailos dc ou[.ros tr:cirlos,
para que pu<.lcsse sair à nra sorn sc ox[)()r'ir() rirlír:rrlo rla
molecada e r:clnst:guir lrnurlr.r' irrrrrrrr. srur :rrrlolirlirrlt rlr. írrn
cionário público.
- Cheg,,u nol ír'iu.
Esta frase era pronunciada pcla r:xpcr:tal ivl c o ltlror
da presença da mortc. Jâ f azia três meses qurr o [r:L:gralis-
ta nâo taxava um telegrama. Tamanho era () §olr orgullro,
quando isso se dava, que só comparecia à agirrcia uniíbr-
mizado. A "agência" - um quarto anexo a casa, onde se
úam tubos de üdros com líquidos azuis, fios enterrados no
pé das paredes e um aparelho de manivela que quando ele
manejava soltava na mesa uma fita de papel garatujada.
Geralmente a notícia era de um caso de morte.
Alguém que se atirava ao-mundo, ausentava-se a existência
inteira, sem dar sinal de üda, e quando a notícia chegava,
lt
era numa situação irremediável. A nâo ser em época de
eleição, o telegrafista só aparecia na agência para registrar
I
os horários.

147
I

I
n

Naquela tarde todo mundo o seguiu ao deixar a agên-


cia, na ânsia da revelaçâo da "notícia fatal". Mas, desta vez,
abrindo uma exceçâo, a notícia fora alüssareira: o telegra-
ma era de Davi, aüsando ao pai que tinha sido aprovado
nos exames, e que recebera, igualrnente, licença para
"exercícios no ar".
Com mais entusiasmo, o pai passara agora a olhar
a farândola dos urubus, planando sobre os telhados. E com
que destreza o faziam. Às vezes fechando as asas em piquê,
atirando-se para baixo como uma {lecha, urn caça mo-
demo num vôo de reconhecimento. Irnpossível planar
sem acidentes. Bntretanto, o milagre acontecia" As asas
rlcsatavarn-se velozmente no momento preciso, quase ao
lor:ar rrs telhatlos. André esfn:gava as mãos, nervoso. Daü 9ooo o
l:rrrrlrrirrr insistiril narlucles piques perigosos quando avis-
tasse o inirnigo (porque l)avi havia de ser urn verdadeiro
deferrsor da Pátria, corno Napoleáo). Ah, não se enganara!
Um soldado do ar! Urn bravo! Era o que o filho era. D.en

:_=:

rll o
o

r48

I
I

Wi

I
r

I)AVI nascera sob um signo estranho. Que destinol


( ilrrz;rr ()s cspaÇos. Voar! Lutar pela Pátria! Morrer talvez
rií'rr urrir s,,prrltrrra! Isso era realmente destino. Quem,
r',,rrlrltrrrlo ,, lrrg:rr', () I)í)vo - magote de morrinhas, ato-
L.irrr;rloH, ir ( (x-;rr' () s{r('() r' :r lrunrla, a mentir e a molTer de
prtguir;rt, rliril rlrrr: rliu-ia urn lrorrr,.rrr tão ilustre! Sim, Davi
surgira do pó, corno Abraâo Lirrcoln! O Libertador! Aquele
que dormia no châo, sobre uma esteira, sapecando os cabe-
los, esfudando com uma vela de cera. Certâmente, era mais
por isso seu orgulho. Os Heróis, os Santos, sempre surgiram
do nada. Do Nada que é Tudo!
Sentia, agora, uma ponta de remorso perfurandoo
por dentro. Davi não nascera para tanger burros, quebrar
tamboeiras de milho, carregar água nas costâs. Davi era um
I
predestinado!. E, como âgora, isso lhe doia. Nunca o
compreendera. Muitas vezes o abraçara com o chicote,
como fazia aos animais, dava-lhe com o cabo da foice na
cabeça. Oh, mas o menino não andava, nâo ouvia o que
se falava, enlevado para o céu, prestando atenção aos uru-
bue. Muitas vezes, pensava: "É um desnorteado. Esta é a
minha cruz!" - Mas qual! Daü era um gênio e ele nâo o
Bábia. Ah, gó um sábio seria capaz de compreender a charna
inicial. Sentia-ee culpado, mag não tinha arg;umentos para
6
@ t)
degtruir oB remorsos. Era um impotente, um ignorante,
I

r50

l
t,

nâo possuía, estudos, ná'o alisara bancos de escolas. Nâo


possuía, tampouco, intuição desses fenômenos. Enfim,
erâ um cavalol Todos, daquele lugar porco, nâo passavam
de anirnais. Felizmente tinha uma esperânça: a nova geraçâo
- a que viesse após a criação dos filhos - os netos, por
exemplo, nâo levariam mais vida de animais Seriam seres
como Davi, dignos de sua condição humana, dignos da
Pátria. Desde que lera a histôria de Abraâo Lincoln, a vida
de Napoleão, esse sentimento de civilismo nâo o abandona-
va. Também guardava respeito e grande admiraçâ'o pelos
Santos. Ah, mas os Santos - acreditava ele - eram inatin- ES(lAN(:llAlX) na meia-parede da cozinha que dava
gíveis. !'ugiam a todos os valores materiais. E no seu limita- para o c,urrirl rlas vacas, o Npargateiro espiava, com grande
d«r lrorizonte, sô podia sonhar com coisas terrenas, ligado emoçâo, a lornbada azul da Serra do Mucuripe, voluptuosa
(lu(' s(:nrprc csl.ivera à terra por longa herança. Já era muito como urna enorrne baleia. Tudo, na vida, era Histôria. Des-
rr.rr',lil:u (llr(, uÍn lrorrrtrn lrtrdesse cvadir-se dela, por meio tino. l-abtrla. fu gerações passavam. O tempo apagâva o
rlc rrlr:rltllr,,s rrrttrrrricos, r'orrro l)lvi. Sirn, ele estava vivendo rastro dos seres, os costumes, os nomes. Aquelas terras,
unr $onll() irrrPrssivr:|. []rrrl rrova era se abria para a humani- aquelas paragens, aquela própria Serra que viu na.scer urn
darlr:- () qur: viria depois'i Depois, r:ertamente, seria o fim. grande homem Davi -, como a Terra da l'rornisuio, o
Talvez I)aü fosse o limite da era do homem. Nâo propria- Vale do Egito, lugares de prolirtits r: virlcrrtcs, liurrlri'rtt
mente Davi mas seu ideal de pássaro. passariam. Ernlxrra s:nrlo urrt rrrirrco rlit ( lirinci;r, l)irvi
-
seria relegad<l ao tstlttr'r'ittt,,ttto. Alt, ('()rn() ir vitl;t crit cslr:r
nha. Desejou quc o fillr,» Í'ossr: ttttt rrrilitrrr, c . t.tts.guint;
um soldado da l'át-ria, c l)avi o cra; (! ag()r{l o lrirlio o r'«rrr
sumia! O tédio, talvez tlo lelrlpo. Mas era trirlio o t;tt,'v'rrlirt.
Um tédio que o crucificava. Certamente estava fir:uttrlo
muito velho. Na mocidade nunca sentira "aquikr". '['órlio.
aborrecimento de tudo. . Melancolia. Ná'o sabia bem de-
finir. Mas perdera o entuúsmo de viver. A velhice! Que
coisa abominável. Ridícula e obsedante como as doenças!
Deu, por acaso, com os olhos no calendário, depen-
durado na parede da cozinha, negro de fuligem. Nunca
ahtes se lembrara dele, nunca lhe ocorrera à memória con-
tar os dias. Neo lhe preocupavam as semanas, o8 meseg
os anos. Tinha tempo de sobra para viver. Jamais pensou
em suportar, sem enfado, tantos anos, como os que já
I

152 r53

I
a

possuía - 79 completos. Ah, como isso parecia uma eterni-


dade. Um inesgotável inferno de lutas seguidas! Corno tudo
isso se gastará? Em que segundo? Gostaria que alguém o
explicasse. Alguém, assim como um sfiio, talvez o füesse.
Estava convicto de que, o que agora sentia (o tédio), era
a indagação que o oprirnia. E, pela primeira vez, teve a á
intuição de que nem mesmo um sábio saberia responder-
lhe. (Ah, talvez por causa disso, ele nunca pudera fazer
uma idéia exata da vida dos santos.)
Voltou a olhar o calendário: "Isso é o próprio tem-
po" - pensou. "O tempo irrecuperável, nâo ohstalte fixo
e tocável. Empedernido como a parede, a Serra do Mucuri-
ix:. Empedernido como a morte. "
l)etestou o calendário. Felizmente o relôgiodepare-

t
rlc lui:rrros engrriçara, senão seria capaz de quebráJo.

k
l'lrrlirrr, r() lr()vr);r(l() rrirrgrr,irrr rrntendia de seu mecanismo.
"(.)rrcrrr lrlirsír'rrrorr torrlra o lr:rrrpo'i (lontra a vida?
Quem? 69
Alr, r:ssrr cstripir.kr papagaio, (Ilrc nrrncà fala, mas, w o faz,
T
é sempre de um modo macabro. " a
"Ele está angustiado, assim inverso, de cabeça para
baixo, enforcado pela corrente como o tempo." 'l g

"Quem falou no louro angustiado, de cabeça para @lr )61

lll
baixo, inverso, enforçado pela corrente como o tempo?
Vamos, quem falou?" @ I
Cuspiu por entre as pernas, mudou de posiçâo, Iiber- É I )
I
tando os badalos da costura de barbante do cuecão.
Davi não se incomodava como o tempo. Era forte 30
e sadio. Tinha ideal de águia. Voar, voar, voar, até se a
a
@
a
embriagar do puro azul, tontear-se, morrer.
o oo
Essa idéia o deixou horrorizado. Voltou novamente
à posiçâo de antes. Uma perna empoleirada na sapata do
alpendre, a outra caída.
A Serra do Mucuripe era uma baleia encalhada
na linha do horizonte. Uma enorme baleia dorminhoca,
equecida do tempo e da vida. Imobilizada. Inconsciente I

154

,,1
\

como um fóssil. A üda era uma transformação. Aquele do de piolhos, era unl 1t,,,,,,'t', llll i'\l)lt'rrr(l(, ttt'ti" rtl"'l',t'it
povoado iria desaparecer. Talvez mudassem-lhe o nome, ou da palavra.
desapareceria de uma vez) ou futuramente se hansformaria Sim, tudtl trttttlitrit ! l)itvi , r,'* ,'l'il ( 1)lll, ttltt ttttttttitl
em vila, cidade, capital. Ele também desapareceria. Estava bem criado, trtna Í'rtrlit vilrgttllt t'ltt lr,,ttt lr'll.ll., p()l11 .r1
prestes. André Avelino Miguel Nunes de Freitas, o Alpar- Nunes, como diziatrr, ltlrrrr'iitttt li,,s,1. l,lrrtttrt.iut
gateiro, filho de um refugiado político. Um nome que as Enquanl.tl t:spiavit tl v;i, tl,, l;i l,rrlr. ,,tr ,rlll,,x,'rr irrrrrgl
gerações futuras não reconheceriam. Equeceriam até mes- naçâo perdid()s (:)ttt (livitA;t('(x'H, ltttt vtrllrI crtl,iHl,rtit,,' lt,ttlrtt
mo o "inventor", de algodãozittlto,t'tlirr:rrio, r'ttlçttl lt,, lll,'io tlas t'itttt:las,
caminhava agitartrlo rs tttiTor+ rlrrltttt oxpressão dc terrívei
Refletinâo bern, nâo tinha do de si, mas de Davi,
angústia estamlnrla no rosto. [t)ra o Joâ'o, o irmâo usuário,
morto prernaturamente, na primavera da vida. Já agora o
que enlouqurrera.
üa quando menino, as pernas cambadas, resmungão, carre-
como Ducas, apanhando algodeo nas ilhas com Juntara uma foúuna imensa no Amazonâs. Compra-
64ando agua
Arras{ ácio.
ra quase todas as terras daquela redondeza. O preto no
l,r'rnl)rirvir-sc do primeiro presente que lhe dera - branco. Possuía os documentos. Trouxera testemunhas de
,rr',r Santana e de Sobral. As escrituras registradas nos tabeliâes
r,r, l,,,rr,l rl,,
, v,,rrtttllttl, rlomprado em Sobral, com
rrrr lr,rlit,,rrrrl rr,, r'r'ttlto, r'ttltt "lritt<l de pato" na diantei- de Fortaleza. Matuto esperto. Nâo cochilava no ponto.
rr rl,' r'rrllrirrtlnlo tlr' ptt1rclfii,- Uma riqueza que se desperdiçava ao léu do tempo.
I)lvi Íra,+sura urna porçÃo tlr: rlias sem uú-lo, porque Nâo possuía filhos. Nâo comia, nâo vestia. Não dava um
os rrrenirros apelidaram-no de "chofer". Foi obrigado a cabrito a um §obrinho. Neo perrnitia qrtt.' t:t»rtas*:tn utna
castigá-lo pois não ia botar o dinheiro fora, mesmo era vara de marmeleiro dc sttits Lr:rras. Atlrlt:ltr vt:rttlt:rl cttt vitla,
preciso acabar com a praga de piolhos adquiridos do con- ainda, a alma ao l)iulro (:r'u () (llto rlizirr Parlrr: 'l'ilrúrr,io.
tato com camaradas de brinquedos. De onde vinham tantos Com quem iria ele edrravr.jantlo (r«rzilrlro) tto tlttrio tlo tt:ttt-
piolhos? Embora D. Gertnrdes, a mulher, não esquecesse
po? Intrigara-sc corn todos os irtnãos, [r:rncrrrlo qrre llrc
de cortar os cúelos dos filhos rentes ao casco, de quinze pedissem um quadro de terra para roçar. Vivia a tttorrt:r tlt:
em quinze dias, ensaboando-lhes a cabeça com raqpa de {ome, nâo eÍa capaz de tirar um copo de leite para lorrtar. 1
,,

juazeiro, passando o pente firro de chifre, executando as Os bezerros que virassem barbatões, que se alttr:rripassern
lêndeas nas unhas, mesmo assim os meninos viviam comi- ao tempo - novilhos prematuros, que ganhasscm bom peso
dos de piolhos. e corpo para a reproduçâo ou vendê-losia em manadas
Davi foi o filho a quem mais castigo impusera (sentia para os açougueiros na Capital.
agora um grande arrependimento disso). Os irmãos o ape- Mas, naquele momento, André nâo guardou o ódio
lidaram de "pisunha"i porque Davi nâo levantava os pés, as que sernpre alimentara. Até gostaria de ajudáJo, tirarJhe
uúas arrebentadas de topadae, espiando os urubus. da cabeça aquela mania doentia de ambição. Como flazê-lo?
Num fechar e abrir de olhos, via como tudo mudara! Ele nâo o compreenderia.
Davi, um simples tangedor de burros. um
o'pizunha",
comi A eeca acabara com tudo. Estava amalucado. Falava
com o vento. Havia muitog cagog na família. Ae irmís I

156 157

I
\

Mimosa e Nlaria das Dores também falavam sozinhas e culti


vavam a mesma indiferença pelos irmâos.Anclavam com o
pouco dinheiro que possuíam no côs dâ saia ou enterra-
vam no mato, em Iugares obscuros. Francisco, o curtidor,
tinha também suas "veias". Às vezes, passava meses sem
cumprimentáJo. De repente, o fazia, sem qualquer expli-
caçâo, como se tudo não passasse de um esquecimento do
qual nâo precisava se justificar.
Davi tinha que voltar ao que era. Se havia o destino,
r:ssr: nâo podia se modificar. Nâo morreria moço. Não mor-
rr:ria t:m Srerra. A cigana uma velha e sábia cigana do Egi-
lo. rlrrc al)Írrecera no povoado no ano em gue Davi nascera,
L'r;r scrr rlr:stirro. Oh, como nâo se lembrara disso antes?
llrrr rli;r ,, l,rrrrrlo clrog()ll pelo meio da tarde, com seus
p/rprrl,,/uor, pr(.r(,f, lxr" r'orrr'nlr.s, dcpendurados no cós das
rrrirrn, rrH r.n()r'nrth rrrgol;rs rL' rrrr:litl pr:rrdentes das orelhas,
lrrrllrrçurrrlo nos onll»'os, os 1lr:itos das mulheres velhas como
rrlÍirrjcs vazios caídos no ventre , os oúelos atrelados de fitas
vermelhas, cuqpinhando nos saiões, rogando praga à toa,
coçando a bunda e mijand.o nas calçadas.
- Ganjona, deixa eu ler a tua mâo? Tu tens um
grande destino! Só te peço uma galinhâ e duas colheres de
cafí:.
D. Gertnrdes tinha medo da revelaçâo de sua sorte.
i
Estendeu a mão de Davi. I

A
cigana acocorou-se ao pé da parede, levantou as
saias imundas atá o fim das coxas decadentes, deixando
aparecer, ao pé da barnga, uma enorme aranha de pluma-
gem rala e cinzenta. As pelancas das coxas tremiam como
babados.
- A linha da vida! Que existência longa. Passarás por
um grande perigo, mas nÍio morrerás. Hás de ser muito rico.
o
Yiajarás muito, mas terás o fim da vida sossegado.
Agora era preciso esperar. 6a parte
I

.158

i
\

O ALFERIaIS Antônio José i\un«:s t:hcgalu uo (irará


em 1860. Era um refugiado político, evadido dt: l\rrtugal.
Aqui plantou famrlia e gerou muitos filhos. Uma geraçâo
enorme. Altos como fios de bananeira. Cresciarn da noite
para o dia. As mulheres e os homens. Cresciam rápidos
como os animais. A terra era nova. Forte. Yirgern. Naclueles
tempos, o Ceará ainda nâo conhecia as gtandes secas. A
terra erâ barbara. Yiolenta. Não havia urna clareiia na mata.
As onças câmpeavam ferozes. l,utavarn corn os hr:nrens.
O Acaraú nunca secavâ" Os Poixes onohiírrn as "caralnan-
gaa".
A Histórial O qur: cra a llistôriu'f lJrna licçáo. tJnr
conto de fadas. Uma pilhéria. A História erâ urna gnantlo
mentira. Tudo passava. O rastro das criaturas desaparecia
com o Tempo. O rastro: seu sonho, suas façanhas, seu cles-
tino.
O que era a História? Uma miragem. (} fogo-{átuo.
A ficçâo. A História nâo existia. Os Flomens nâo existiarn.
Nada existia. A vida era um nâ'o que a hunrarridade queria
transformar num sim. Nada. Nada. Nada. Por que padre
Tüúrcio insistia em ministrar o Amor, o Bem e a Yirtude,
se a existência era zero à esquerda e à direita? Estava claro:
a vida nâo existia. A morte tampouco. O que era a morte?
Se alguém justificasse a moúe, está claro, logicamentc se
compreenderia a Vida. Mas, já que esta justi{icativa nâ:o se
I

161

I
i

fazia, estava claro, tambéú, ilue a vida nâo existia. Um


sonho! Uma miragem! Para que tanta inquiriçâ'o com coisas
tão simples, de soluÇões tâo fáceis? Como os homens
complicavam tudo ! Talvez nâo lhes couhesse a culpa.
A quem entâo caberia? Ao padre Tibrircio, que incutia
essâs coisas na cabeça dos matutos? Ao Criador dos seres?
r
Mas se os seres e as criaturas nâo existiam? O melhor seria
nâo pensar em tais problemas. Ignorar-se, ignorando o
nrundo. Completa escuridão, inacessível -- o vácuo. Dizer-
se: "Eu sou o Vácuo". Ou: "Eu nâo sou eu, mas - o Vá-
tr
cn<1. "

I)avi chegaria ao fim? Chegar ao fim, para André, era


,,lrrgirr i'r volhice, à decrepitude, ao tédio, à morte. À moúe,
r() run()r', i lrrortr:, rut alr:gia;à morte na morte.
l)rtvi lr,'H,,'rir ('()ln() os lnimais, nâ'o encontrava defi
nir.'iúr rrrr:llrrr. l"ir:uru lrotrtcrtt rlit noite para o dia. Um futuro
enorrle o aguardava. Sobrcvoar os Andes' Quem diria que
do Alto saísse um homem. Um homem na exPressâo
mais rigorosa da palavra. Um soldado, como Napoleão.
Urn líder. Um revolucionário. Um defensor da Pátria.
Conseguira todos os seus sonhos' e a vida era um não
que os htlmens insistiam em transformar num sim. Zero
à esquerda e à direita. A vida era o Nada, se o era! Por que
os homens nâo se convenciam disso?Talvez existisse a alma' I

Mas o que seria a ahna sern o corpo? Nâ'o seria a mesma I


coisa que o cor?o sern a alma, acaso existisse o corpo.
André parecia rnergulhado num poço' Um Poço
I

sem fundo, aberto no centro da noite. Um poço s€m o


limite dn poço. Um poço cavado em si mesmo' sem o corPo
e B€m a alma. O vácuo, sem dimensâ'o. O úcuo sem o
vácuo.
Acúaria enlouquecendo como o irmão, o «iedo
atolado no ouüdo, tangendo a maloca de reses invieíveiE.
Era preciso confeesar ao padre Tibúrcio o que 8e Paseava.
Estava frcando louco. A sêca mexer& com o juízo de muita

162
!

gente. Tivera que arrancar, com as unhas, raív,es tle tnacarn-


bira para sobreviver com a família. A rnorte diária do aq:ude ['atlre '['ihrlrcio altrl:rr':r tttttil, tl"''ttl' " trtrl" I ttt;t
1

o alucinava. A agua fugindo num aLrrir e fechar de olhos. vez por outra aparecia tr,, Âllo, 1l' 1" lirrr tl" rtt' \'r irr'1"'
O açude virando um poço, uma cacimba. Esqueletos por a voz por rrm fio. Oliciava a tttisslt r'lr'í'rr'r:rv;r \'rír l;r7iil
toda parte. As avoantes picando os olhos da multidâo, fero- o sermâo, nâo lrallva ril: lrol ílir':r. tl:1" r'' itt' "ttt"'l:tr;t ltt;ti'
zes como lobos. fu criaturas naturezas mortas, fluindo' (
com a vida da tl<ltlttlrti,littlt , tt,t" rli:;r'rtlilr tttttlrtt't lll'.t.r;l
O SOL - fagulhando corno espelhos. mentc tl qll(l pl'()lll('l1lil 'l',rtrlrtlrrrl" 1'tltlt"t lll('lll;tl lril
O SOL - urn gato ruivo, faminto. cavalo, enqualtt() lltt' tt'rlltr,rn ttt lolt':trr, lt;trt tlt ir:rIi:t tlt tt r;tl'
O SOL - um torrâo de enxofre, fervendo. a missa no Allo." Strlrilt t;t1, ,, Iittt rl'r \lIlrtg;ll''itt' t' tt't lt
0 SOL uma verruga cancerosa. loucura, ooln() â rLrs irrttiios.' A lr,:rcrlil:rri''tl:rtl''! N:r" lirrlr;r
O SOL - urn inchaço" unt tumor rubro,, prestes a
dúvidas. l'obrtt André, sempre sortl,utl.r, ttltt ltt'tttt'ttt 'l''
cxplodir as suas brasas dc sangue e enxofre no firmamento. vergonha.,lntegro. Prcparara o futuro da lalrrílirr, trlils lll.r'
O SOL o Diabo transfigurado numa bola gangre- reria louco, cste o firn que o aguardava. L)csta otl rllttlrrcla
rrirrl:r, rlrrr-'irrrurtlo turlo, torrando a ÍIlente das criaturas, as maneira, o {irn do homern era um só' l'ara todos'
lrrir;rri:rs ;r,',1 nts.
( ) S( ll, l,rilili'r l strr lnfcrno, único Rei, único
1!l,rrr;trr'it, irtrlxrritntl,r lr(xl(tr'()s() v,rrt qualquer interferência
st »lrretrirtrrral.
O SOL -'Feiticeiro, Anátema, o Gênio da Morte, des-
truinrlo os seres, os objetos, o mundo, a vida.
Se pudesse, arrancaria com a fâmília para o Amazo-
nas, Sâo Paulo, Minas Gerais. Se Davi nâo fosse um aviador
militar, se nâo estivesse submisso às ordens de seus superio-
res, baixaúa o aviâo no quadro das ruas e o levaria com a
família daquele inferno. Mas Davi era um soldado da Pátria.
Um militar. Um predestinado. Era preciso falar com padre
Tibúrcio, sem demora, a fim de que ele lhe tirasse aquele
mundo escuro da cabeça.
o'lnventor" obseryava a enor-
Acabado o delíúo, o
midade tlas unhas, pretas e tortas, com grandes rachaduras
enodoadas.
O tempo encascorava as uúas, a pele, delimitava o
crescirnento dos ossos, dissolvia as medulas, enlanguescia a
carne, roía a menina dos olhos, deteriorava o olfato, plan-
tava a solidâo no peito e o medo da morte nas extremida'
I
des.

164
165
I

J
i

lll,l[,O meio tla tardc de ttm dia de domingo, o tele-


grirÍ'isl:r, abanrlonanrlo a Agência, com grande agitaçâo,
rlirigirr'*r a ra*r rla zelxlora" "Tia Chiquinha" estava à beira
rl,, I'r,g<,, urrt;t Í'ogtttirir (rrortrle) com uÍIa vara comprida
irnt*t rrrlo lttrlttttlutn-
( llrir;rrirrlrrr, ttrttíl ttolír:i:t Iristtr: padre Tüúrcio
ar:aba dc ÍIrorÍ0r.
A velhinha emborcou-se dcntro do fogo, fulmi-
nada pelo choque. O azette das castanhas, inflamado, atira-
va línguas de chamas em seu redor. As lúaredas, sem que
desse tempo de alguém apagáJas, derreteram-lhe a gordura I

do rosto, queimaram'lhe os cabelos brancos, torraram-lhe I

os olhos. O povo juntou-se nas rua§, num clamor terrível, fi


como Bo houveese chegado o dia do Juízo Final. Sem a
orientaçlo do padre, Bem sua ajuda espiritual, a populaçâo
do Alto desapareceria, tal um harco furado que as águas I
já comoçassem a invadir. ,,

No dia segainte, a populaçâo ainda em completo alvo- a


I

roço, o telegrafista úandonou úovamente a agência. A


farda oficial acochada, como Be ele fosse um matolão prepa-
rado para uma longa viagem' Suava por todos os poros'
Heráclito dirigiu-se à casa do Alpargateiro. Andre
ocupava-se em dar os últimos nóe num rúicho de sela, cos'
turando a sola com uma agulha enorrne de ferro.
- Davi esmagou uma perna. O aviâo caiu nos arra- I
baldee do Recife.

166
I

(Js urubus voavam sobre o povoado. André, agora,


espiava-os com terror. Aves feias, a emitir estranha rnúsica
no ar. Aves macúras, voando sobre o cernitério em grande
aiarido" i
Pobre Davi! Eles o errfeitiÇaram. "Cobaias da Ciên-
cia!" Nâo eram mais que feiticeiros. Demônios disfarçados
enr corvos. Como náo tivera a lernbrança disso antes? Teria
fcito Davi desistir. Embora Davi fosse teimoso como Napo-
krâo Bonaparte.
Com a morte do padre, irouve profunda modiÍicaçâo l

no povoado. As cois.ls conlcçaram a ruir. As pessoas perde- i

rirrrr o ânimo de viver. Entn:gavam-se inteiramente à modor- A VIDA começava a ruir, rnas Arrrlrri irrrrlava Í'r,liz.
rir, i preguir;a, r nrorte do espírito. A igreja abandonada. Ria, presunçoso.
l'llr,rrr;rrrrt,rlr. íi'r'lr:ulir ('(Imo um túrnulo. Por fora, caiada - Vocês, tlo Alto, rrragote de rnorrinhas, são umas I

rll l,xl,, r'lrosl ;r rl,'ilrrlorirrlrirs. I'or dentro, húitada por éguas. Não têm coragem de lutar. Sâo uns bois. Uns perus.
ltt()r('r:g()s [,illirrrlr's, r;r1' s,'rl,'v61tvu1I] aos guinchos. O carra- Por qrrc Àndré andava rindo à toa, ninguém sabia. Es-
Pi,:lro, as nloitlrs rlr, rrrr»l'urrrlro, as agulhas de juçara voltaram taria corneçando a ficar louco? Ceúamente era isso. A i
l

il (:roscer nas ruas. Era uma matâ virgem. As capotas voavam hereditariedadp! Padre Tibúrcio dizia que era uma coisa
pâra o telhado, perseguidas pelas raposas e guaxinins. séria. Nâo se cansava de repetir. l'or rlrre Arrrlró yrarccia l"ão
Foi retirada a agência telegráfica do povoado. E correu um feliz? Logo agora qlro nr()l'r'(ira pirdro 'l'ilrrirr:io, "[ia Chi-
boato que até o Padroeiro - Sâo Francisco das Chagas quinha", seusi rnelhorcs irrrrigos, c tlrlrrtlo I)avi prlrdenr a l

- havia fusido do altar. perna? O que r:stariu arrontt:r:cnd«r r:on A nrlrti'i l)olrrc l

homem!, dissera uma vez o vigário:


- "Preparou o Íirturo
da família, mas morrerá louco, como os irmâos". Bra iss<r
o que estâva acontecendo.
Mas André conünuava saudável. Orgulhoso. Rindo I
t
sobranceiro. I

- Por que será essa arrogância? - interrogavam-se


i
uns aos outros.
Cada louco com sua mania.
-
As opiniões divergiam. Mas um ó pensarncnto i
punha tudo em ordem: André estava começando a enlou-
quecer.
Apesar de velho, é perigoso. Ainda possui bas-
tante força. Lembrem-se que quando bebia, ninguém o I
continha. Era preciso que viesse um destacamento de

168
169
I
\

Sobral. Não será um doido manso. Esse orgulho hern o


demonstra. Aquela mania de Napoleão nunca o abandonou.
Transferiu-a para o filho, mas dento dele é que ela germi-
nava.
O povo agora esmiuçava, corno um psicólogo, o mun-
do interior do Alpargateiro. Como nâo tinha o que fazer,
desenvolvia a imaginaçâo, e aPregoâva aos quatro ventos
que André estaria engendrando um invento para destuí-
los. - Ele, único soberano, dominando aquelas paragens,
como Napoleão.
A notícia entrou de casa em casa como uma onda de
terror. A aluvião. André era um gigante. Um Ferrabrás. Se
voltasse a tomar genebra, o mundo viria abaixo, agora que
<» padre nâo exisüa. O homem estava ficando violento, mau.
Agora qu,: os arnigos haviam desaparecido, o filho perdido
urnu pornlr n,iio *r jrrsli[i,,uva. Alguma coisa estranha estava
acontecerr«lo, pois suas atittrdcs benr o indicavam. André
era um homem cordato, dadn aos arnigos, à família. Agora
ria a todo instante. Um riso irônico, maligno. Um riso ende-
moninhado.
Mas so André sabia o que lhe ia no íntimo, por isso
ria de si mesmo. Conseguira em vida o que sonhana. Ideali-
zara Davi um soldado, e Davi o era. Destemido como Napo
leão. Só lhe restava uma perna. E isso era uma glória, Quan-
do lhe perguntassem sobre o aleijão do filho, responderia
orgulhoso: 'Davi é um soldado da Pátria. Deixou cortar
a perna. Nâo é um covarde. Nâo poupou o corpo. Em
primeiro lugar o ideal. A vida da comunidade. A Pátria".
Padre Tüúrcio tinha morrido' Uma grande alma.
Perdera seu melhor amigo. Em compensaçâo, ganhara o
filho, evadido das garras da morte. A vida era estranha. Se
niÍo podia ressuscitar o padre, 'tia Chiguinha", Josa. o
Vieia e as irmâs, a cega Maria Donato, que adiantava estar
a se lastimar? A morte era comum a todos, lhe ensinara o
vigário. Esperaria o seu dia, resignado. Agora estava sozi-
I
nho. Precisava lutar contra a imensa escuridão do cérebro. ()
A loucura. A hereditariedade. O mal de origem.

170
I

I
I

I-NDICE

C) BAGÀO
'13
i9 par lÊl

O D RAGÃO
29 partc 41

O DRAGÃO
39 parte lrlr
I
O DRAGÃO
4? parte 123

O DRAGÃO
59 parte. . . 145

O DRAGÃO
69parte.., 159

173
t,

trurrdção p()tili(yt. l,,it dirio tlu(, (:it(,


o plwut dt Jttstt llciú,s l,iittu. lilL,
I
naffa cork) ü)(tl«, Hus não la,is11,
por isso, de n1nur «)mo ilarrd(l()r
puro, como Ji«:ionislu, ( tt {,s:sc
r-e§!eit-o, seu livro 0 L\ttÁDOl<
Dli
DEMONIOS, pode ser (:o,tsider0do
como dos Wntos mais altos da
atual frcçAo brasileira Ali estão a
poesia e a prosa, a linguagem da
emoção e da razão, a do ihno
sem sentido e a dos significaclos
que s,e impõem com as palavms,
mas livres delas O CRIADOR Dl:
DEMONhOS é, assim, umo
ampliaçdo do que estqvo contido
em O DRAGÃO. Nõo há tigaçdo
maior entre os dois livros, peio
menos não ocone entre elãs
identidade alguma de tetra ou
de têcnica Mas um se apresenta
como elevação, a nivel mais intenso
dy
3lima do outro. O que, em
O DRAGÃO, era curstiiidade,
exigida
pelo historio, necessário a urírunío
ao
rwrrativa - sendo mesmo o parte
essenciol desso estrufitra - em
O CRIADOR DE DEMONIOS é
avançada, escalada, intensilicação
de
sentidos e de unidades nanacionais (este
n^eloStsrlo tem mais
força para explicar
o_fipo de narrattvas de José Atcidàs
Ptnto d9 que o simples emprego
da
expre ssõo "unidades nana tiv
as;, ).

ANTONIO OLINTO
I

,, Romance, poesia, novela,'contos, teatro, orítica


ljterária e jornalismo sâo os componentes da'obra de
José Al"oides Pinto, cearense de Sâo Franciscodo
!s!reip, distríto, de Santana do Acaraú, que após 32 I

anos de atividades no Rio dedaneiro . para onde foi


com 12 anos de idade-abandonou diploinas de cursd
superior, cargos públicos, funçoes em jornais, para
vrver numa tazenda no lnterior de sua terra, e ali
dedicar.se à sua obrà literária,
Trinta títulos compôem sua obra dioa.se, em temoo,
altamente significativa, descrita
-por 'ele
coind
apanhados sobre "0 sonho, a poesia, o'erótico, 0 amor, Ce
o social, tudo por dentro da vida, túdo por Oántro dol F

mundo",- i

Bib.2

ft----

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