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O imperativo da felicidade 51

processo civilizatório implica em uma perda de felicidade e um aumento de culpabilidade. O


mal-estar na civilização é justamente o mal-estar advindo dessa renúncia pulsional que
impede a vivência de alguns sentimentos intensos de prazer e impõe regras reguladoras da
relação do sujeito com os outros.
Outro ponto fundamental a ser destacado, ainda no texto de 1930, refere-se à questão da
agressividade, pois, com a introdução do conceito de pulsão de morte, o conflito passa a se
estabelecer na sua radicalidade, acabando de vez com a possibilidade de um equilíbrio. A
partir desta nova configuração, em que o ideal da modernidade desdobra-se na crítica de uma
ilusão, o estado de desamparo do sujeito constitui-se como um modo de existência, visto que
seu desejo fica remetido ao desejo do outro.
No tocante a essas considerações, Freud começou a dar relevo ao estatuto da felicidade,
mais especificamente falando, da busca da felicidade. De acordo com sua argumentação,
sempre buscamos ser felizes, mesmo que seja por um pequeno instante capaz de afastar-nos
das perturbações da vida; contudo, observa que o projeto de felicidade, tal como imposto por
nossa regulação psíquica sob o comando do princípio do prazer, está, de saída, fadado ao
fracasso, pois todas as normas do universo lhe são contrárias.

Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se acha
incluída no plano da ‘Criação’. O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito
provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau,
sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica (Freud, 1930
[1929]/2006, p.84).

Nestes termos, se levarmos em consideração o programa do princípio de prazer e a


própria constituição humana, nossas possibilidades de experimentar a felicidade são restritas.
Em relação à infelicidade, entretanto, o mesmo não pode ser dito. Ainda no texto de 1930,
Freud aponta três principais fontes de sofrimento que acometem o sujeito e que, por sua vez,
restringem o projeto de felicidade almejado: o próprio corpo, o mundo externo e o
relacionamento com seu semelhante. A busca pela felicidade torna-se, desse modo, um
esforço para afastar a infelicidade quando, por exemplo, se busca o isolamento no intuito de
evitar conflitos com os semelhantes, quando procuramos agir sobre a natureza para nos
proteger e, por último, quando agimos sobre nosso próprio organismo. Freud salienta que o
relacionamento com o semelhante, isto é, a fonte social do sofrimento, é o mais doloroso dos
três aspectos citados acima. Para lidar com este sofrimento, uma das alternativas do homem
tem sido servir-se do progresso científico, na busca de transpor os obstáculos impostos pela
própria civilização.

A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte
do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos
isolados. O poder dessa comunidade é então estabelecido como ‘direito’, em oposição ao
poder do indivíduo, condenado como ‘força bruta’. A substituição do poder do indivíduo
pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização. Sua essência
reside no fato de os membros da comunidade se restringirem em suas possibilidades de
satisfação, ao passo que o indivíduo desconhece tais restrições (Freud, 1930[1929]/2006,
p.101).

Como consequência, esse acréscimo de segurança, advindo do recalque da


agressividade e da busca de um bem comum, torna-se um obstáculo para a felicidade. Ao
mesmo tempo, a diminuição dessas exigências coletivas tampouco garante felicidade ao
homem, ou seja, para Freud, a balança entre satisfação e renúncia, a despeito de nossos
esforços, jamais será equilibrada. O melhor que a experiência psicanalítica poderia oferecer,

Trivium: Estudos Interdisciplinares, Ano X, Ed.1.

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