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SEGREGAÇÃO/INSTITUIÇÃO

A obra de Michel Foucault nos fornece uma densa pesquisa em torno do modo de
funcionamento das instituições ligadas ao campo psi, desde a idade clássica até a
modernidade. Ele demonstra o quanto essas instituições estiveram, ao longo dos séculos,
a serviço de práticas segregativas. O hospital (psiquiátrico), as prisões, o sistema
judiciário, os asilos etc, sempre operaram a partir da lógica da exclusão, pautada em
critérios de discriminação que beneficiavam a supremacia das elites sociais (branca, de
origem burguesa, que compunham a classe política dominante).

Para a psicanálise, a questão da segregação é inerente à civilização como tal. Em o mal


estar na civilização Freud explora por diversos ângulos os esforços civilizatórios de
contenção, tratamento e simbolização dos estragos produzidos pela presença inesgotável
da pulsão de morte na base de todas as relações humanas. E ao fim da leitura desse texto
magistral constatamos que a civilização fracassa em seu propósito de abolir os efeitos da
chamada pulsão de morte, que sempre retorna sob a forma de agressividade, dominação,
injustiça, racismo, guerra, conflitos religiosos, exploração, subjugações.

Não seria mesmo exagero dizer que a própria entrada na ordem simbólica implica uma
dose de segregação, na medida em que o choque da linguagem sobre o corpo impõe uma
perda de gozo, um veto consubstancial ao ingresso na vida civilizada. Lacan: O gozo é
vetado àquele que fala enquanto tal.

Freud em “A negativa” nos recorda que o movimento afirmativo que está na base do
consentimento à ordem simbólica (Bejahung) acontece sob um fundo de
eliminação/expulsão. Nos primórdios de sua constituição o eu adota apenas os parâmetros
primários do princípio do prazer (Eu prazer primordial) e expulsa (Ausstossung) de si
toda experiência que implica em um desprazer. Tudo que é bom é assimilado e tudo que
é mal é posto fora. → num segundo momento apenas é que o desprazer é conectado às
representações internalizadas ao domínio do Eu – uma parcela do mal é localizada dentro.

O grande avanço promovido por Lacan na abordagem da questão da segregação,


sobretudo a partir de suas reflexões sobre o racismo e sua escalada no mundo globalizado,
foi pensá-la não apenas a partir da estrutura do significante que veicula uma segregação
própria ao Simbólico (dentro/ fora, presença/ ausência), mas a partir do gozo como tal.
Essa parcela de goza que foi expulsa do domínio do símbolo e que subsiste como
impossível de negativizar retorna sob a forma de um modo de satisfação in (familiar)-
íntimo e ao mesmo tempo estrangeiro. Esta seria a marca da loucura de cada um, a matéria
prima do sintoma, daquilo que nem sempre se deseja reconhecer como próprio e que, com
frequência, se manifesta sob a forma do ódio ao outro e da fobia generalizada que o
veicula. Lacan destaca o modo como a identificação que rege os grupos humanos se
alimenta do rechaço desse gozo Outro, estranho, “desatinado” (Televisão), do qual nada
se sabe ou se quer saber: “No desatino de nosso gozo só há o Outro para situá-lo, mas na
medida em que estamos separados dele (...) Deixar esse Outro entregue a seu modo de
gozo, eis o que só seria possível não lhe impondo o nosso, não o tomando por
subdesenvolvido”. Esse rechaço produz a linha divisória entre o “nós” e o “eles” e toda
a história da civilização colonial que deu origem ao racismo facista, à mais recente
exclusão dos imigrantes e ao desprezo e descaso pelos povos originários no Ocidente
mostra que se trata de impor ao Outro o gozo supremacista dos iguais, eliminando ao
máximo toda a diferença.

A psicanálise lacaniana permite-nos dar ainda um passo a mais nessa discussão, uma vez
que localiza esse gozo mau, opaco e “inassimilável” (Laurent) como pertencente àquele
que quer expulsá-lo, de modo que não há como pensar a alteridade a não ser como um
ponto de exterioridade que está dentro, um estranho que é também familiar. Quando essa
lógica da extimidade é ignorada, tendemos ao pior, ou seja, a acreditar que podemos
eliminar o mal no exterior → o que significa eleger um inimigo como aquele que
condensa substancialmente/ que encarna esse mal: misoginia, feminicídio, racismo,
fobias diversas...

A instituição, o discurso do mestre e o capitalismo

Jacques Allain-Miller em “Psicanálise e ordem pública”, situa o campo da saúde mental


como contíguo ao da Ordem Pública – que prevê que os sujeitos sigam nos trilhos do
social (trilhos da escola, da família, do convívio social, da moral civilizada etc). Os
sujeitos que nos procuram são os que se encontram, ao contrário, e por motivos vários,
fora dos trilhos.

“O homem, como tal, é enfermo e, se ele sofre em função dessa enfermidade ele
também se inscreve por meio dela.” (JAM - Psicanálise e Ordem Pública).
Estamos numa lógica totalmente diversa (a essa que preconiza uma adaptação à norma),
se considerarmos que não há, apriori, um saber todo, capaz de reverter, curar, sanar ou
abolir um sofrimento em prol (da norma padrão / indicadores de saúde, protocolos de
avaliação), sobretudo quando levamos em conta que o sofrimento do qual os indivíduos
se queixam é também seu meio de inscrição.

A Ordem Pública sempre operou como um S1 capaz de demarcar a linha divisória


(claramente imaginária) entre o normal e o patológico, o que está dentro e fora da lei, o
que deve ser criminalizado ou normalizado. A ordem pública está sempre muito bem
representada por poderes aparentemente estranhos ao campo psi – a polícia, o sistema
judiciário, a religião, a moral, os costumes etc – mas que sempre se enodaram a ele. Há,
portanto, uma aliança, mais ou menos velada, de todo modo histórica, como mostrou
Foucault e também Miller, entre a saúde mental e ato segregador, não apenas da loucura,
mas de um modo muito mais contundente hoje, das toxicomanias. O elemento exótico do
uso de drogas serve para embasar a segregação que separa esse gozo como insuportável
– é um ato comparável ao racismo (Laurent – p.25)

Vale a pena seguir o texto de Beneti: “A toxicomania não é mais o que era” em que ele
narra a maneira como a psicanálise pôde, em MG, provocar o deslocamento da questão
do uso de drogas do campo policial para o domínio médico e então torná-lo permeável ao
discurso da psicanálise que toma o elemento heterogêneo (objeto a) como causa do gozo
do Um → discurso do analista (a → S/) que se apresenta de modo oposto ao discurso do
mestre. Em outras palavras, segundo Beneti, foi possível introduzir uma torção entre as
soluções universais: abstinência e a reclusão (tentativa de segregar o objeto suposto
encarnar todo o mal) e o caminho da inclusão do sujeito em seu próprio sofrimento, o que
significa dar ao objeto droga um lugar e uma função no campo da subjetividade → ou
seja fazer com que esse objeto seja apreendido a partir de um modo de gozar singular,
funcionando como objeto a. Esse objeto, próprio ao falasser, não serve, segundo Miller,
para dominar e não pode designar um Universal, pois ele representa o que há de mais
variável e indeterminado no campo da pulsão, seu caráter polimorfo, sem sentido e sem
medida. (Miller, Todo mundo é louco, p. 12)

Enquanto prevalecer a ideia de que a droga faz o toxicômano e não o contrário, como
propôs há anos Hugo Freda (O toxicômano faz a droga), encontraremos sempre um saber
pronto sobre o objeto, o consumo, as técnicas e abordagens de abolição ou mesmo de
redução de danos, sobre a medicação etc. Mas nada disso interroga o sujeito e o resgata,
sobretudo nos tempos atuais, da posição de ser ele próprio o objeto consumido pelo Outro
(do capitalismo e da ciência).
Sabemos que a vida contemporânea está regida pelas cifras, pela lógica do capital, pela
biopolítica que decodifica o laço social a partir de procedimentos tecnocientíficos
(protocolos, questionários, etc). Essa mudança de perspectiva que nos desloca da era do
mestre para a era do gozo contábil tem por base uma supervalorização do consumo que
se eleva ao zênit da civilização. Desse modo, somos todos adictos e, até um certo ponto,
submetidos ao discurso do capitalismo que produz um curto circuito na relação com o
gozo, buscando sequestrar o objeto a de sua relação estrutural de causa do desejo, ou seja,
que se articula ao vazio, com à falta do Outro e, também, com o real sem sentido. Nesse
contexto, só nos resta reconhecer que vem sendo cada vez mais difícil interrogar o sujeito
a partir do lugar da causa. Eles se tornam surdos aos apelos transferenciais que passam
pelo sentido. E também mudos ou alheios ao campo discursivo – todos a -dictos? Ou seja,
banidos do campo do dizer?

Ler um sinthoma na contra mão do sentido e da segregação

Ainda que nosso instrumento, a palavra, tenha caído em desuso – que não seja prioritário
no universo das compulsões e da passagem ao ato – ou que tenha se tornado escasso e
empobrecido, não temos como prescindir dele. Não seria preciso saber usá-lo de uma
nova maneira, sem uma preocupação imediata com a interpretação numa perspectiva
tradicional? (Uma vez que lidamos com esses sujeitos imersos num gozo autista, decaído
da palavra)

Sabemos o quanto o campo do consumo de substâncias psicoativas, pelo menos aquele


que se dá de modo destrutivo e abusivo, se sobrepõe e se confunde com o amplo, diverso
e cada vez mais fluido domínio clínico das psicoses. A psicanálise nos dá uma direção
clínica quando nos convida a ler, para além do sentido, o lugar ocupado pelo objeto droga:
vem no lugar do delírio? Impede um desencadeamento abrupto? Contém um excesso de
gozo? Denuncia a ruptura com o falo? Denota um ponto forclusivo? (Laurent/...)

Podemos dizer que há um avanço na condução clínica de um caso quando o ato


compulsivo e concreto de se drogar dá lugar a uma interpretação própria ao sujeito. Eric
Laurent nos dá exemplos interessantes:

O primeiro, o de um sujeito viciado em éter e que estava às voltas com a herança do pai:
“sont les terres” e isso pode ampliar algo relativo à sua posição de gozo. Outro sujeito,
um paranoico que vivia fugindo da polícia e se colocando em risco de detenção, evoca a
memória do pai que em sua profissão vivia cercado de um pó branco...São casos que nos
mostram que o uso não é aleatório e que é passível de ser sinthomatizado (ou seja, que se
desloquem do estatuto de pura compulsão para se tornarem um enigma para o sujeito...).

Recentemente escutei um caso em uma supervisão da rede PBH em que uma jovem de
21 anos, que se drogava desde os 14 (quando tem uma ruptura radical com a vida), passou
ao uso de crack quando a mãe morreu e chegou a dizer que o pai, ao traí-la, a teria matado
(de desgosto e abandono). Nunca conversa ou fala de si, vai aos serviços a procura de
uma pausa, banho, comida. Comunica-se a partir de desenhos que deixa guardados, que
gosta de exibir, cria personagens de história em quadrinhos...Criou uma estória sobre um
personagem antes de realizar um tratamento para sífilis.

Esse convite a que se possa dar voz ao sujeito que faz um uso de substâncias amplia a
clínica das toxicomanias, retirando-a do seu fundo de impossibilidade e muitas vezes
reforçando a proximidade desse campo com a clínica das psicoses que, por sua vez, vem
se ramificando e diversificando a partir da segunda clínica de Lacan. (Clínica da
pluralização do NP e das suplências sinthomáticas)

Por uma clínica antisegregativa


Ler Miller p.40
Poder ter colocado o NP em questão e dado a ele um valor de artifício que não vale mais
que suas suplências ou mesmo tê-lo considerado, ele próprio, como um artifício constitui-
se um verdadeiro giro operado na clínica. Esse giro teórico permitiu ao psicanalista tomar
certa distância em relação a certos preceitos fundamentais de seu campo, que não
deixavam de fomentar tendências segregadoras. O declínio do NP nos permite renunciar
a adotar como bússula uma linha estreita de demarcação entre o Sim e o Não (NP/NP0)
que servia de esteio para a lógica da descontinuidade entre Neurose (S)/ Psicose (N).
Pôde-se ainda renunciar a uma perspectiva binária do déficit que considera a psicose
como deficitária do NP, o que promoveria o estabelecimento imaginário de uma
hierarquia (movimento mencionado por Miller que segrega os psicóticos).

Quando essa fronteira sólida entre as classes diagnósticas se dilui/ esfuma como diz Miller
no texto “Efeito de retorno à PO”, é possível trabalhar a clínica de um modo mais
“democrático”, não no sentido do todos iguais, mas no sentido do que é transmitido pelo
último ensino de Lacan: “Todo mundo é louco, isto é delirante”. O Nome do pai é também
uma espécie de delírio ao qual se recorre para tratar o núcleo duro do real inassimilável e
opaco para todos os seres falantes.
Digamos que esse foi um passo fundamental rumo a uma clínica do gozo e das soluções
sinthomáticas singulares para lidar com ele. Um passo rumo ao que vem sendo chamado
de despatologização lacaniana (Elisa Correio 87) que não é uma negação da clínica em
proveito das reivindicações do sujeito de direito a partir do cultivo ilusório de uma pseudo
normalização do direito ao gozo: o autismo passa a ser um estilo de vida, os modos de
viver a sexualidade uma escolha que se pleiteia como livre em busca de um corpo que
convém...Para sustentar uma clínica não segregativa será preciso recorrer a essa
despatologização lacaniana “onde o gozo pode suplantar a estrutura, mas mantém as
arestas do real na clínica” (p.157)

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