Você está na página 1de 6

*

O SURRACIONALISMO
Gaston Bachelard

Quase sempre se confunde a ação decisiva da razão com o


monótono recurso às certezas da memória. O que sabemos bem, o que
experimentamos várias vezes, o que repetimos fielmente, facilmente,
calorosamente, dá uma impressão de coerência objetiva e racional. O
racionalismo tem então um gostinho escolar. Torna-se elementar e
penoso, alegre como uma porta de prisão, acolhedor como uma
tradição. Vivendo no “subterrâneo” como dentro de uma prisão
espiritual é que Dostoiewski pôde escrever, desconhecendo o
verdadeiro sentido da razão viva: “A razão conhece apenas o que ela
conseguiu aprender”. E, no entanto, para pensar, quanta coisa há
primeiro que desaprender!

E então, virar o racionalismo do passado do espírito para o futuro


do espírito, da lembrança para a tentativa, do elementar para o
complexo, do lógico para o surlógico, eis algumas tarefas
indispensáveis para uma revolução espiritual.

Para isto, é necessário, por tentativas sutis, levar a razão não só a


duvidar de seu trabalho, mas ainda a se dividir sistematicamente em
cada uma de suas atividades. Em suma, é preciso devolver à razão
humana sua função de turbulência e de agressividade.
Contribuiremos assim para fundar um surracionalismo que
multiplicará as ocasiões de pensar. Quando este surracionalismo tiver
encontrado a sua doutrina, ele poderá ser posto em relação com o
surrealismo, pois a sensibilidade e a razão serão devolvidas, uma e
outra, juntamente, à sua fluidez. O mundo físico será experimentado
em novos caminhos. Compreenderemos de outro modo e sentiremos
de outro modo. Estabeleceremos uma razão experimental suscetível
de organizar surracionalmente o real, como o sonho experimental de
Tristan Tzara organiza surrealisticamente a liberdade poética.
*
“Inquisitions”. Paris, Editions Sociales Internationales, juin 1936. Reproduzido in “L’Engagement
Rationaliste”. PUF, Paris, 1972. Edição póstuma organizada por George Canguilhem.
Podemos, portanto, prever duas ordens de tarefas espirituais, aliás já
visíveis, em estado de esboço, no desenvolvimento científico de uma
época: a razão se dividirá a si-mesma, por uma dialética interna – a
razão se dividirá sobre o obstáculo experimental, por uma dialética
externa. A interferência destas duas dialéticas determinará, em terceiro
lugar, surempirismos de uma estranha mobilidade, de uma estranha
força inovadora.

Tracemos rapidamente o plano destas três construções


surracionalistas.

A dialética, toda interna, do pensamento racional só aparece


verdadeiramente no século XIX. Aparece ao mesmo tempo na
filosofia e na ciência, sem que haja, aliás, nenhuma influência entre os
dois movimentos: Lobatchewsky, dialetizando o pensamento
geométrico, ignora Hegel. Hegel, dialetizando o pensamento
metafísico, ignora naturalmente Lobatchewsky. Ele ignora mesmo as
matemáticas. Por maior que seja a tentação de ligar o racionalismo
dialético aos temas hegelianos, é preciso indubitavelmente recusá-la.
A dialética hegeliana nos coloca, com efeito, diante de uma dialética a
priori, diante de uma dialética onde a liberdade de espírito é
demasiado incondicionada, desértica demais. Corresponde a essas
sociedades sem vida onde se é livre de fazer de tudo, mas onde não
se tem nada para fazer. Então, somos livres de pensar, mas não te-
mos nada para pensar.

Bem superior é a dialética instituída ao nível das noções


particulares, a posteriori, depois que o acaso ou a história tenham
trazido uma noção que fica, porisso mesmo, contingente. A partir do
dia em que Lobatchewsky dialetizou a noção de paralela, ele convidou
o espírito humano a completar dialeticamente as noções fundamentais.
Uma mobilidade essencial, uma efervescência psíquica, uma alegria
espiritual se encontravam associadas à atividade da razão.
Lobatchewsky criou o humor geométrico ao aplicar o “esprit de
finesse” ao “esprit de géometrie”; ele promoveu a razão polêmica à
categoria de razão constituinte; fundou a liberdade da razão em
relação a si mesma, ao abrandar a aplicação do princípio de
2
contradição.

Dessa liberdade que poderia renovar todas as noções esgotando-as


dialeticamente, infelizmente não fizemos uso positivo, real,
surrealista. Apareceram os lógicos e os formalistas. E em vez de
realizar, de surrealizar, a liberdade racional que o espírito
experimentava em tais dialéticas precisas e fragmentárias, o que os
lógicos e os formalistas, muito ao contrário, fizeram foi desrealizar,
despsicologizar a nova conquista espiritual. Ai de nós! Depois desse
trabalho de vazar em formas bem vazias todo pensamento, depois
dessa tarefa de encarniçado sub-realismo, o espírito não se tornou
mais alerta e mais vivo, e sim mais frouxo e desencantado.

Qual é então o dever do surracionalismo? E retomar essas formas,


tal como foram bem depuradas e economicamente manipuladas pelos
lógicos e preenchê-las psicologicamente, recolocá-las no movimento e
na vida. Para isto, o modo mais rápido seria ensinar essas geometrias
múltiplas deixadas na sombra pelo ensino oficial e pragmático.
Ensinando uma revolução da razão, multiplicaríamos as razões de uma
revolução espiritual. Contribuiríamos assim para singularizar as
diversas filosofias racionalistas, para reindividualizar a razão. Aqui
está diante de nós um espírito para o racionalismo enrigecido que
repete o eterno exemplo dado em todos os livros de filosofia escolar
por todos os filósofos que bloqueiam o racionalismo na cultura
científica elementar: a soma dos ângulos de um triângulo é igual a
dois ângulos retos. Vocês lhes responderão tranqüilamente: “Isso
depende”. Com efeito, isso depende da escolha dos axiomas. Com só
um sorriso, vocês desconcertarão essa razão apenas elementar que se
arroga o direito de propriedade absoluta sobre seus elementos. Vocês
abrandarão essa razão dogmática mostrando saber o papel de
axiomática que ela está representando. Vocês lhe ensinarão a
desaprender para melhor compreender. Quanta variedade nessa
desorganização do racionalismo esclerosado! E, reciprocamente,
quantas variações sobre os temas surracionais; quantas mutações
bruscas para os espíritos repentinamente dialetizados!

No que toca à experiência física, o racionalismo vem tomando


3
igualmente uma atitude claramente e felizmente ambígua. Deixou a
rigidez do a priori e tomou como função essencial a de acolher o a
posteriori. Podemos agora colocar, como principio geral do
racionalismo experimental, a necessidade de reformar a experiência
primeira: todas as formas surracionais devem ser produzidas por meio
de reformas intelectuais.

Com efeito, tínhamos tomado muito depressa nossas primeiras


experiências como experiências fundamentais. Tínhamos organizado
um espírito científico sobre bases históricas, esquecendo que a história
científica é, como toda a história, a narrativa das infelicidades da
razão, ilusórias lutas contra ilusões. Para avançar, foi preciso
abandonar as experiências adquiridas, mover-se contra as idéias
reinantes. Partindo desta concepção de um desenvolvimento histórico
contínuo, apresentava-se a cultura científica individual como
essencialmente capitalizante: muito jovens, recebíamos quadros gerais
e indestrutíveis, um patrimônio intelectual a ser enriquecido. O
restante dos estudos se passava a encher esses quadros, a enriquecer
coleções e herbários, a deduzir de vez em quando teoremas anexos. O
pluralismo experimental respeitava a unidade dos princípios de razão.
A razão era uma tradição.

O tempo desse enriquecimento monótono parece que acabou.


Temos agora menos necessidade de descobrir coisas do que de
descobrir idéias. A experiência se divide. A simplicidade muda de
campo. O que é simples é o maciço, o uniforme. O que é composto é o
elemento. A forma elementar se revela polimorfa e cambiante no
momento mesmo em que a forma maciça tende para o amorfo. E de
repente a unidade cintila.

O que é preciso sacrificar? Nossas grosseiras seguranças


pragmáticas, ou bem os novos conhecimentos aleatórios e inúteis?
Nada de hesitações: é preciso passar para o lado em que se pensa a
mais, em que se experimenta o mais artificialmente, em que as idéias
são o menos viscosas, em que a razão gosta de estar em perigo. Se,
numa experiência, não pomos em jogo nossa razão, essa
experiência não vale a pena de ser tentada.
4
Além disso, o risco da razão tem que ser total. É seu caráter
específico ser total. Tudo ou nada. Se a experiência é bem sucedida,
sei que ela mudará de cabo a rabo o meu espírito. Faço uma
experiência de física para mudar meu espírito. Aliás, que poderia eu
fazer com uma experiência a mais que só viesse confirmar o que eu sei
e, conseqüentemente, o que eu sou? Toda descoberta real determina
um método novo – e deve arruinar um método anterior. Dito de outro
modo, no reino do pensamento, a imprudência é um método; nada há,
senão a imprudência, que possa ter sucesso. É preciso partir o mais
depressa possível para as regiões da imprudência intelectual.
Nietzsche reconheceu ao mesmo tempo o caráter tardo e o caráter
metodológico das sãs transmutações: “As visões mais preciosas se
encontram por último; mas as visões mais preciosas são os métodos.”
(O Anticristo, § 13.)

Os conhecimentos longamente acumulados, pacientemente


justapostos, avarentamente conservados, são suspeitos. Carregam o
mau signo da prudência, do conformismo, da constância, da lentidão.

Estamos agora diante de uma ambigüidade redobrada. As


dialéticas iniciais das noções a priori se defrontam com as dialéticas
finais das noções experimentais. O real, desacorrentado, faz eco à
nossa liberdade de espírito. Nada mais pode nos oprimir. Em
particular, a realidade não mais está encarregada de nos induzir em
erro. Seu irracionalismo só permanece maciço se a abordamos com
uma razão mal ritmada.

Entretanto, não devemos triunfar depressa demais. O pluralismo


racional toca em domínios tão diferentes metafisicamente que não
podemos esperar dar-lhe coerência por meio de meras sínteses de
contrários. Mas, será que é necessário procurar por essa coerência
estática que corresponda a um sistema metafísico fechado sobre si
mesmo? Não haverá lugar, dentro de uma razão em evolução, para
uma coerência de algum modo dinâmica que regule a mobilidade
mesma do psiquismo? Uma revolução psíquica está se produzindo,
seguramente, neste século: a razão humana se desancorou, a viagem
5
espiritual começou e o conhecimento abandonou as margens do real
imediato. Não é então anacronismo cultivar o gosto pelo porto, pela
certeza, pelo sistema? Devemos continuar a julgar todas as coisas por
sua origem, por sua fonte, por sua base, por sua causa, por sua razão,
em suma, por seus antecedentes? Basta amontoarmos estas questões
para nos darmos conta de que, apesar da diversidade das aplicações,
elas são tiradas de uma vontade de monotonia intelectual. Basta, ao
contrário, nos desembaraçarmos desse ideal de identificação para que
as dialéticas racionais sejam imediatamente apoderadas pelo
movimento. Então, ao racionalismo fechado se substitui o
racionalismo aberto. A razão felizmente inacabada não pode mais
sonejar numa tradição; ela não pode mais contar com a memória para
recitar suas tautologias. Torna-se para ela necessário, incessantemente,
provar e por-se à prova.

Está em luta com as outras, mas, antes de mais nada, está em luta
consigo mesma. Desta vez, a razão tem alguma garantia de ser incisiva
e jovem.

Tradução de M.D. MAGNO**

**
Publicado na revista LUGAR 1. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1972. p. 6-9.

Você também pode gostar