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CENTRO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES – CFP

GRADUAÇÃO EM PEDAGOGIA

JAQUELINE DE SOUZA BARRETO SANTOS

O NZO DE MATAMBA E O FIO DE(O) T(t)EMPO: cartografia da educação com


os Mikisi

AMARGOSA – BA
2018
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JAQUELINE DE SOUZA BARRETO SANTOS

O NZO DE MATAMBA E O FIO DE(O) T(t)EMPO: cartografia da educação com


os Mikisi

Monografia do curso de graduação em


Pedagogia do Centro de Formação de
Professores na Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia, sob orientação do
Profª Doutora, Ana Cristina Nascimento
Givigi.

AMARGOSA – BA
2018
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JAQUELINE DE SOUZA BARRETO SANTOS

O NZO DE MATAMBA E O FIO DE(O) T(t)EMPO: cartografia da educação com


os Mikisi

BANCA EXAMINADORA

ANA CRISTINA NASCIMENTO GIVIGI

(ORIENTADORA)

___________________________________________________________________

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO APROVADO EM ____ / ____/ ____.


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Gameleira, ancestral do povo bantu, no Nzo Ventos de Angola, agosto de 2018

Quando o Tempo virar...


Quando o Tempo virar...
Eu não sei o que será
Zara Tempo!
4

És um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho.

Tempo, tempo, tempo, tempo, vou te fazer um pedido.

Tempo, tempo, tempo, tempo.

Compositor de destinos, tambor de todos os ritmos.

Tempo, tempo, tempo, tempo... entro num acordo contigo.

Tempo, tempo, tempo, tempo. Por seres tão inventivo e pareceres contínuo

Tempo, tempo, tempo, tempo...

És um dos deuses mais lindos

Tempo, tempo, tempo, tempo.

Que sejas ainda mais vivo no som do meu estribilho

Tempo, tempo, tempo, tempo...

Ouve bem o que te digo

Tempo, tempo, tempo, tempo...

Peço-te o prazer legítimo e o movimento preciso

Tempo, tempo, tempo, tempo...

Quando o tempo for propício

Tempo, tempo, tempo, tempo

De modo que o meu espírito ganhe um brilho definido

Tempo, tempo, tempo, tempo.

(Caetano Veloso).
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DEDICATÓRIA

À minha família, em especial aos meus


pais, pelas preocupações que passaram
por minha causa, pelo amor, carinho e
estímulo que me ofereceram, dedico-lhes
esta conquista com gratidão.
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AGRADECIMENTOS

É com a permissão do Tempo, que eu saúdo a todxs os ancestrais,


principalmente a Matamba, Bartira, Maria Flor, Serra Negra Potira, Vó Conga, por
me permitir trilhar pelo caminho da ancestralidade, sem essa força não conseguiria
chegar até aqui. Agradeço a minha guerreira mainha Inês Barreto, pelo amor,
companheirismo incondicional e por acreditar que eu seria capaz, mesmo eu sendo
a primeira dxs filhxs a cursar uma Universidade e a senhora nunca desistiu, sempre
motivando e, até nos momentos em que eu pensei em desisti, te ligava e ouvia a
sua voz de incentivo e desejo. Essa conquista é sua, meu amor. Ao meu papi
soberano José Alberto, pelo amor e pelas felicitações de felicidades, aos mexs irmxs
Jocilene Barreto, Jailton Barreto, Stephanie Barreto e a minha Tutu (Sofia Barreto),
essa conquista também é de vocês amores de minha vida. Aos Meus pimpolhos,
Dan e Miguel sobrinhos amados que alegravam minhas noites com os vídeos
enviados. Aos meus avós, pelo carinho de sempre, Benedita e Ranulfo mesmo em
outro plano, sei do orgulho que sentiria de mim. Vó Zefa, com sua voz tremula ao
telefone, sempre me desejando sorte, vó Pedro com seu jeito de ser sempre me tira
o riso. Aos meus tixs e primxs obrigada, pelo carinho, apoio de sempre. Sei que
vocês sempre vibraram por mim. Não poderia deixar de agradecer a minha segunda
família, Rita, Ana. Lella, Rafinha, Vó Maria Antonia e meu avô Gouveia, pelo
incentivo e por acreditarem que eu seria capaz. Eu estou chegando lá!
Ao meu amor Greiciane, pelos laços de afetos, companheirismo por me
apoiar e ser paciente comigo, te amo.
Bruno meu ( Bê), nossa ligação vem de outras vidas, te amo também, salve
os nossos guias. Manu e Lis Maria, presentes que ganhei em Amargosa, sempre me
alegrando e me distraindo em diversos momentos, mas os melhores são nossas
guloseimas, e o aquele bordão “kital”, amo vocês! Ebinho meu portal da sinceridade
meu carinho só aumenta por ti,mesmo tendo se afastado ( rs)! Dani minha amiga/
irmã que esteve comigo desde o inicio e para todos os momentos, essa conquista
também é sua. Naiade, minha irmã/voveta sempre sentimos quando uma não vai
bem, a você todo meu carinho, amor e apoio, mas não podemos deixar de
descarregar aos pés da aroeira...rsrs. Valdimar meu amarelinho, mesmo distante
sempre se fez presente,te amo! Erika, Ari e Vivi nosso quarteto de sempre para
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sempre. Kai, Paullette, Yan, Junior Almeida, Ivan, Jessica, Mamau, Vanessão,
Erikinha, guardo de vocês cada momento vivenciado nas farras no período da
graduação. Quero agradecer ao meu cordão umbilical, Caliane Costa pela amizade
construída na academia e que prevalecerá para sempre.
Aos irmxs do TUVA mais uma família que os guias resolveram me presentear,
sou ainda mais feliz, tendo vocês enquanto coletivo. Porém não posso esquecer-me
do meu alicerce e apoio que é a minha orientadora, além de mãe de santo
Matambalê/ Kiki, só tenho a agradecer aos ventos que nos uniu para caminharmos
juntas, gerando essa lindeza de fruto que é esta cartografia, te amo! Não poderia
deixar de agradecer a Fran e Ben pelos momentos de jogos, comidinhas e risos nos
momentos mais doloroso da minha escrita. Obrigada por tudo! A Liamor, amiga/irmã
que com seu jeito tímido mostra sua preocupação e amor sempre mesmo distante e
sendo esquecida lembrava-se da irmãzinha, apoiava e dizia que tudo daria certo te
amo, irmã universal! A minha irmã Pri (Kaiaminhão), para os íntimos, rsrs amiga/
parceira de desabafos, alegrias e cumplicidades, o tempo só me ensinou o quanto
nossa amizade é verdadeira, te amo!. A Salvador Muniz, geminilouco que quero
sempre ter por perto, irmão de barco que me fez perceber que só aprende fazendo,
obrigada presepeiro que amo. A Ellenzinha que com seu jeito meigo sempre me
alegrou. A Juli que mesmo distante esteve presente, amo vocês!
Agradeço também a Laís, Nanda (boquinha), a minha cunha Carol pelo amor
que foi crescendo ao longo do tempo. A minha irmã Lane Lima, pelos chás que me
deixavam mais relaxada. A minha irmã Letícia que mesmo desaparecida,
demonstrava seu amor nos momentos corridos, rsrs. Amo vocês!
Não poderia deixar de agradecer ao meu Cacto Paraibano (Renato), obrigada
pelo afeto e risos, te adoro. Ao professor Elias Santiago por sempre lembrar de mim,
você um anjo de candura. Xs professorxs que no inicio da graduação me ensinaram
a dar os primeiros passos - Silvana, Rosangela, Ana Rita, Luiz Paulo, Dyane, David,
kiki, Terciana, Karina, Marcelo, Gleide -, não posso esquecer dxs professorxs da
coligação - Maira, Pacheco, Cozzani, Débora, Tina, Cintia, Fatima, Karina, David,
Tarcisio, Zé Raimundo, Dyane e Ana Luisa. Levarei cada um de vocês
principalmente no apoio das ações que realizávamos. Aos funcionários da UFRB em
especial Belmiro meu gatinho, Virgílio, Dani, Gilmara e Lu.
Com isso não poderia deixar de agradecer ao Capitu, em especial as Camilas
Oliveira e Carmo (Lua), que com a força e coragem sempre me contagiaram, vocês
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foram minha fonte de inspiração. A todxs que participaram do CAPITU


obrigada!Quero agradecer também aos projetos da qual pude perpassar durante
minha trajetória acadêmica, onde me proporcionaram e possibilitam diversos
rizomas como nos diz Deleuze e Guattari que, os conceitos não são dados prontos,
eles não preexistem: é preciso inventar criar os conceitos, e há aí tanta invenção e
criação quanto na arte ou na ciência. E todos os projetos que participei (PIBIC,
PIBID e Grupos de pesquisas) fizeram de mim uma excelente profissional. Agradeço
a PROPAAE pela permanecia nesse tempo de graduação, sem ela não seria
possível continuar na graduação!Agradeço ao colegiado de Pedagogia em nome da
professora Maria Euracia, meu carinho e admiração pelo seu trabalho!
Agradeço também as minhas entrevistadas, pois vocês contribuíram e muito.
Agradeço ao Terreiro Caxuté por ser a ponte que permeia o entrelace do Tempo e
do Vento, na pessoa de Mame´tu Kafurengá, ser iluminado que carrega consigo a
memória e a força do povo ancestral.
Enfim agradeço a todxs que de forma direta ou indireta contribuiu para essa
finalização.
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Quem amassou o barro com os pés, conhece sua densidade.


Juarez Xavier
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O NZO DE MATAMBA E O FIO DE(O) T(t)EMPO: cartografia da educação com


os Mikisi

RESUMO: Esta pesquisa teve como objetivo “cartografar” as práticas bantu


indígenas ancestrais de um Nzo na cidade de Amargosa-BA e sua relação com
outras epistemologias e saberes não coloniais que se traduzam em práticas
pedagógicas que podem auxiliar na construção política da lei 11.645/08. A
cartografia utilizou-se da observação, do diário de campo e da entrevista semi-
estruturada para conversar com os filhos do Nzo de Matamba e entender como ali
se educam. Para isso percorreu o fio de (o) T(t)empo até as práticas educativas
construídas neste terreiro de candomblé de Angola, o Nzo Ventos de Angola/Caxuté,
cuja fundamentação está nos saberes ancestrais do povo bantu. Ao fazer isso narra
a construção do terreiro, as mudanças de águas – de umbanda ao candomblé- que
ensejaram a inserção do coletivo nas lutas do povo negro e indígena e o levou à
(re)memoração das vivencias do povo negro. O terreiro é assim um espaço de
decolonização de saberes, da busca da memória de longa duração, do
conhecimento atado à experiência, da nova relação entre seres vivos da terra, uma
vez que as pedagogias ali vivenciadas se insurgem à razão ocidental e pretendem
apontar que o racismo religioso impede a escola de aprender com este espaço
educativo. Ao observar o receio da escola em ‘vestir-se de negro’, a cartografia
aponta para a dificuldade da educação em alçar novos voos epistemológicos e
educar a partir da vida concreta das comunidades.

Palavras Chaves: ancestralidade, terreiro do campo, candomblé de angola,


decolonização,educação.
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O NZO DE MATAMBA E O FIO DE(O) T(t)EMPO: cartografia da educação com


os Mikisi

ABSTRACT: The objective of this research was to "map" the indigenous ancestor
bantu practices of a Nzo in the city of Amargosa-BA and its relation with other
epistemologies and non-colonial knowledge that translate into pedagogical practices
that can help in the political construction of law 11.645 / 08. The cartography used
observation, the field diary and the semi-structured interview to talk with the children
of Nzo de Matamba and understand how they are educated there. In order to do so,
he traveled from the T (t) empo to the educational practices built in this candomblé
terreiro of Angola, the Nzo Ventos de Angola / Caxuté, whose foundation lies in the
ancestral knowledges of the Bantu people. In doing so he narrates the construction
of the terreiro, the changes of water - from umbanda to candomblé - that led to the
insertion of the collective in the struggles of the black and indigenous people and led
to (re) memorandum of the experiences of the black people. The terreiro is thus a
space for decolonization of knowledge, the search for long-lasting memory,
knowledge tied to experience, the new relationship between living beings of the
earth, since the pedagogies lived there insinuate themselves to Western reason and
intend to point out that religious racism prevents the school from learning from this
educational space. In observing the school's fear of 'dressing in black', cartography
points to the difficulty of education in raising new epistemological flights and
educating from the concrete life of the communities.

Key words: ancestry, terreiro do campo, candomblé de angola, decolonization,


education.
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SUMÁRIO

1. O QUE UM NZO NOS DIZ SOBRE PRÁTICAS PEDAGÓGICAS? OU


INTRODUÇÃO A CARTOGRAFIA SOBRE EDUCAR-SE COM MIKISI .................. 13

1.1 CARTOGRAFIA: ESCRITA SOBRE AS FORÇAS, SOBRE O QUE SE


CONSTRÓI E SOBRE O CULTIVO .......................................................................... 19
1.1.1 “ARREDONDANDO A CONVERSA” .............................................................. 24

2. O CAMINHO DE ANGOLA: DAS ÀGUAS DE LEMBÁ E KITEMBO AO NZO


DE MATAMBA E DE BARTIRA ............................................................................... 27

2.1 A MUDANÇA DAS ÁGUAS ................................................................................. 33

2.2 BANHANDO-SE DE AGUAS DE ANGOLA ......................................................... 48

2.3 AS MATAS E CIPÓS ENTRELAÇADOS DE REI DAS NEVES E BARTIRA:


UNIÃO DE PEDAGOGIAS ........................................................................................ 55

3. APRENDER COM ANCESTRAIS, VIVER NO COLETIVO ............................ 58

4. O QUE PODE A ESCOLA APRENDER COM O TERREIRO: A EDUCAÇÃO


VESTE NEGRO ........................................................................................................ 70

5. EDUCAÇÃO DO CAMPO: O DIÁLOGO POSSÍVEL COM OS TERREIROS


DO CAMPO............................................................................................................... 78

6. CONCLUSÃO ................................................................................................ 81

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 84
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1. O QUE UM NZO NOS DIZ SOBRE PRÁTICAS PEDAGÓGICAS? OU


INTRODUÇÃO A CARTOGRAFIA SOBRE EDUCAR-SE COM MIKISI

Comecemos nosso caminho já tão pisado, andado e firmado por pé, ora
negros, ora nativos brasileiros, mas sempre pés de cor tinta e avermelhada.
Andemos por velhos caminhos como se fosse novidade, como se não soubéssemos
dos barulhos de pés velozes que se dirigiam à terra prometida nas serras. De longe
ouvimos o tilintar das correntes, mas muito mais forte o piso firme da chegada na
comunidade aquilombada onde inventávamos histórias paralelas, ao mesmo tempo
em que os nossos versos iam sendo apagados no amargo doce dos canaviais. É
desta velha história que vamos falar ao cartografar o que acontece em nossos
‘quilombos modernos’ e de como os discursos contemporâneos podem nos forçar a
uma história ainda paralela.
A elaboração desta cartografia partiu da tentativa de investigar, conhecer e
acompanhar processos de produção de saberes e práticas ancestrais e sua relação
com a educação, especialmente em uma região onde as vivencias são atravessadas
e constituídas por modos de viver do povo campesino negro e indígena. Faremos
isso num lugar de educação do povo negro indígena da roça: o Nzo. Já diremos que
lugar é esse.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística-IBGE (2010),
considera-se como campesina toda área que está posicionada fora dos limites
urbanos, critério utilizado também para classificar os domicílios, bem como a
população residente nos mesmos. Por sua vez, considera-se como urbana “as áreas
correspondentes às cidades (sedes municipais), às vilas (sedes distritais) ou às
áreas urbanas isoladas” (IBGE, 2010). Esta concepção aponta para uma distinção
entre rural e urbano.
Ao ser tomado como classificatória, hierarquiza os territórios e praticas
constitutivas destes, marcado pelo pensamento binário e construído por oposição
entre conceitos. Deste modo, as classificações geram segregações e revelam a
história sócio cultural da ocupação do Brasil e o funcionamento da economia
brasileira.

Minha pesquisa se debruça na cidade de Amargosa, um município localizado


no Vale do Jiquiriçá, classificado como Território de Identidade do estado da Bahia.
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O Vale é composto por vinte e um municípios, sendo que nenhum deles se configura
como uma cidade média, ou seja, tem mais de 100.000 habitantes. Porém, irei me
ater ao município de Amargosa. Sua caracterização é dada da seguinte forma: com
435. 932km², possui 34.351 habitantes sendo 24.891 pessoas da zona urbana e
9.460 da zona rural (IBGE, 2010). A composição racial segundo o IBGE é assim
delineada: preta (6.954), indígena (35), Branca (6.806) Parda (20.365). Ou seja, a
maioria da população se declara parda. Dentre esse quantitativo, destacam-se como
membros de comunidades de terreiros apenas vinte e seis (26). Sabe-se que estes
dados podem ser questionados, uma vez que muitas outras comunidades foram
identificadas pelo Mapeamento feito pelo Estado (MAPEANDO O AXÉ, 2009). Esta
ausência de auto declaração pode integrar as politicas colonialistas de apagamento
e de desligamento da população da sua própria história, já tão discutida pelas
análises contemporâneas sobre racismo religioso, do qual falaremos adiante.
Segundo um estudo realizado na década de 60 por Milton Santos (1963), a
cidade é um ponto de conexão entre duas zonas fisiográficas distintas: a ‘zona da
mata fina’(zona de terra alta e de chuvas orográficas) – que foi no passado o espaço
de cultura de café e fumo e a caatinga – onde além do café, instalou-se a pecuária.
Nas duas regiões também se desenvolvia a cana e mandioca, além de cereais. Mas,
já nas primeiras décadas do século XX as grandes fazendas de café entravam em
decadência. Paralelo a isso, o milho, feijão, mandioca e cana eram cultivadas por
pequenos agricultores para a subsistência. A posição privilegiada de Amargosa
dava-se por estar “na ‘boca do sertão’ e ponta de trilho da estrada de ferro Nazaré,
que a ligava a Santo Antônio de Jesus, Nazaré e com o Recôncavo, tendo a função
de entreposto comercial de uma vasta área sertaneja” (SOUZA, p.10).
A desarticulação da importância de Amargosa se deu com a crise do café -
não poupou o pequeno produtor que não possuía maquinário para beneficiamento -,
o que provocou intensa concentração de terras a partir da década de 40 e expansão
da pecuária. As pequenas vilas como Itachama, Corta Mão sofreram deslocamentos
enormes – mais da metade da população – e ou viviam de pequenas culturas de
subsistência, destacando a colheita de Ouricuri, na caatinga, e plantações de sisal e
mamona, e também plantios renovados de mandioca. Do mesmo modo, a ausência
de educação formal impossibilitava à população alçar lugares nas economias locais
– em 1950, 83% da população de Amargosa era rural e 73.54% da população total
não sabia ler e escrever.
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È deste local geográfico, definido pelas disputas e silenciamentos das práticas


e saberes ancestrais onde situamos nosso estudo. Assim, ao buscar encontrar as
experiências campesinas, negras e indígenas ai engendradas, poderemos
descortinar pistas sobre a educação e/ou veremos o quanto estas experiências
estão presentes nas praticas cotidianas educativas.
Esta curiosidade inicial se constrói a partir de silêncios, mas também por meio
de histórias contadas por mais velhos sobre as presenças indígenas em nosso Vale,
sobre as rezas e práticas de benzedeiras negras, sobre viagens e esquecimentos e,
a relação destes fragmentos escondidos pela hegemonia histórica e pela
supremacia racial branca com o cotidiano e a realidade do povo desta região. O que
será que aprendemos? O que deixamos de aprender, mas o corpo teima em
lembrar-se através dos gestos, da musicalidade, do jeito de acocorar, de andar e de
viver? O que disso mostra força ancestral para os processos educacionais vividos
por nós?
No entanto, sabe-se que em Amargosa camponeses são agricultores
familiares, meeiros, contratados da agricultura, bóias frias, produtores de cacau,
mandioca, banana, hortaliças, criadores de gado. Considerando a cor da pele são
afro-descendentes que habitam as encostas das serras ou ribeirinhos dos rios
Jiquiriçá, Ribeirão, Corta-mão. Apesar das poucas pesquisas acadêmicas na área, é
sabido que na região habitaram indígenas da nação Kariris Sapuás. Há uma
comunidade chamada Pedra Branca, que fica no município de Santa Terezinha,
integrante do Território de Identidade Piemonte do Paraguaçu, nas proximidades do
Recôncavo, de onde ecoam histórias que se fundem à presença de indígenas em
nossa região. Embora Santa Terezinha integre outro território, historicamente ligava-
se ao que veio se tornar Elisio Medrado, município próximo a Amargosa.
Curiosamente o povoado de Pedra Branca é a intersecção entre estes territórios
(Recôncavo, Vale do Jiquiriçá e Piemonte do Paraguaçu), situa-se na Serra da
Jibóia, em um vale, de povoação de índios cariris desde o século XVII, vitimados
pela ocupação de terras em busca de metais e pela monocultura da cana. Assim, há
fontes que acenam para uma série de conflitos armados e não armados entre
indígenas, bandeirantes e governo e de aliança entre cariris, escravizados e a
população mais pobre (GIVIGI, 2011, p. 12) . Tanto a emancipação política de Elísio
Medrado, quanto o desmembramento de Santa Terezinha (que pertencia a Elisio)
teve a força politica demarcada pela ordem de expulsão e/ou confinamento de
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índios. Essa relação de indígenas e negros teria reverberado no Vale do Jiquiriçá e


gerado processos inúmeros de higienização das regiões por meio da política colonial
e depois industrial.1
Assim é justificada a importância de entender alguns aspectos da situação
vivencial do sujeito e suas intersecções/constituições/produções ancestrais.
Pensando nos elementos da cultura local existente é que buscamos refletir as
práticas ancestrais que se constituem na cultura regional, através das tradições e
saberes dos antepassados que, de algum modo, se fazem presentes no cotidiano e
suas atividades - a culinária, as vestimentas, as músicas, os movimentos corporais,
dentre outras coisas, sendo construções importantes para a formação do sujeito. As
problematizações acerca da formação não devem excluir as relações com a
ancestralidade, uma vez que as marcações culturais estão eivadas por estes
saberes, assim entendidos ou não.
O objetivo desta pesquisa é cartografar as praticas bantu indígenas
ancestrais de um Nzo na cidade de Amargosa e sua relação com outras
epistemologias e saberes não coloniais que se traduzam em práticas pedagógicas
que podem auxiliar na construção política da lei 11.645/08. Queremos mostrar como
essas práticas desenvolvidas num terreiro perpassam nossas vidas e que tem um
papel fundamental na educação e, deste modo podem ser importantes para a
afirmação do povo desta região.
As práticas ancestrais são nossas referências culturais. Isto não significa que
eu vá desconsiderar a força hegemônica da colonização, mas olhar para isso a partir
das nossas próprias lentes. Essas escolhas são, portanto, política de demarcação,
de resistência e de produção de saberes.
Pensando assim Eduardo Oliveira (2007) traz que:

Ancestralidade é uma categoria de relação, ligação, inclusão,


diversidade, unidade e encantamento. Ela, ao mesmo tempo é
enigma-mistério e revelação profecia. Indica e esconde caminhos. A
ancestralidade é um modo de interpretar e produzir a realidade. Por
isso a ancestralidade é uma arma política. Ela é um instrumento

1
Estas questões estão desenvolvidas em GIVIGI, Ana Cristina N. Ateliê de Mapas da
Diversidade: Cartografia das intersecções culturais e construção de políticas de conhecimento no
Vale do Jiquiriça, Projeto de Pesquisa e Extensão apresentado ai Projeto Baia de Todos os Santos.
Amargosa, 2011.
17

ideológico (conjunto de representações) que serve para construções


políticas e sociais. (OLIVEIRA, 2007, p.257)

Percebo esse conjunto de significações construídas pela vivencia com os


saberes e legados dos mais velhos na experiência com a terra, com as nsabas nas
estratégias de luta de nosso povo e no viver- terreiro, onde se educa ao mesmo
tempo em que se pratica religiões afro brasileiras e/ou indígenas. É no viver terreiro
que nos fortalecemos, pois lá se produzem os saberes, as memórias, as crenças e
valores, dos que lutaram e resistiram. Neste sentido, o terreiro é um espaço
pedagógico decolonial, uma vez que aciona a memória coletiva de povos
colonizados, radicalizando a crítica ao colonialismo e suas razões, inscritas na
modernidade colonial.
O meu interesse por práticas que, posso dizer, preliminarmente, marcam a
expressão do nosso corpo, através de brincadeiras da infância e adolescência
remonta a duas dimensões da minha trajetória de formação: uma religiosa/espiritual
e outra /profissional. A minha trajetória religiosa vem da relação com ancestralidade,
uma vez que desde criança, com minha família, rezávamos, fazíamos caruru de sete
crianças, defumávamos a casa, fazíamos banhos de folhas, etc. Por isso, eu era
rotulada na escola como macumbeira. Até então acreditava que era brincadeira por
parte dxs amigxs, nunca atentei-me que isso fosse preconceito. Mas, ao adentrar a
universidade comecei a compreender o que sofria, em alguns casos. Também
conheci minha companheira, que vivia me dizendo que não podia ficar comigo em
alguns finais de semana por conta do compromisso com terreiro. Nunca perguntei
sobre o que ela fazia lá, até receber um convite de uma entidade que mandou
recado por minha companheira. O medo falou mais alto, mas a curiosidade em
saber o que a entidade queria fez-me criar coragem. Eu fui a uma gira - assim
chamada a roda de culto - mas, o frio na barriga era intenso, os arrepios, as
tremedeiras constantes, os formigamentos e a dormência, até que a entidade
colocou um fio de conta em meu pescoço e depois conversamos coisas pessoais. A
partir do mês de março de 2014, comecei a fazer parte do terreiro.
Foi caminhando e reverenciando os espíritos ancestrais que eu aprendia
dentro do meu espaço de terreiro e, daí, a outra dimensão de minha trajetória:
comecei a inquietar-me em como as práticas pedagógicas dentro do terreiro são
silenciadas no espaço escolar. Certa vez, cheguei à escola e ouvi um aluno
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chamando a colega de pombagira, por falas repetidas, e a professora com


semblante de riso, apenas o pediu que parasse e prestasse atenção na atividade, e
o silencio tomou conta da sala. Sai do espaço inquieta pensando como as práticas
educativas e saberes afro-indígenas não são discutidos na escola. E, por ser
professora, mesmo que no local de coadjuvante naquele momento, senti-me
impotente por não poder interferir, embora uma força gritasse dentro do meu peito.
A minha escolha religiosa e a prática profissional se entrecruzam, por
atravessamentos da cultura afro indígena em minha vida. Conectam-se em enlaces
múltiplos e profundos, trazendo como perspectiva de pesquisa para este trabalho de
conclusão de curso uma viagem fantástica dentro de um terreiro do campo que se
debruça na demarcação e na afirmação da nação Angola-Congo, de matriz Bantu,
onde me inseri já na juventude.
Entender a problemática do corpo e da cultura, como ele se constrói em uma
historicidade específica é fundamental para o conhecimento do nosso mundo, nosso
meio social, além de proporcionar entendimentos acerca da nossa relação individual
com nossa cultura e sociedade, o que me parece tem sido silenciado na educação
escolar e nas praticas formativas hegemônicas. Essa incomodação levou-me até a
construção desta pesquisa e seu espaço político de produção. Encontro num terreiro
um espaço de rememoração e de (re)conhecimento de outros modos de educar,
falar e viver, com relações novas com o tempo e a vida.
Minha problemática é construída num espaço político social e cultural onde a
complexidade arregimenta relações de poder e conceitos que resultam em práticas
educativas: o Nzo. Este é o território aonde chego e sento aos pés da gameleira e
olho para cima, sinto meu corpo dissipar as energias na terra. É lá que posso pisar
descalça e sentir o chão. È nessa terra que entro em sintonia com o espaço e com
os ancestrais. É ali que começo a compreender como meu corpo é constituído. Lá
vou aprender com os Mikisi e Caboclos sobre os segredos de uma cosmologia que
relaciona os seres viventes à terra: vou educar-me com os Mikisi.
Porém, para que possamos fazer as problematizações necessárias,
precisamos pensar de que modo faremos nossa viagem. Vamos seguir o caminho.
19

1.1 CARTOGRAFIA: ESCRITA SOBRE AS FORÇAS, SOBRE O QUE SE


CONSTRÓI E SOBRE O CULTIVO

Como toda viagem-pesquisa requer a escolha de um caminho, o meu foi a


cartografia. Esta me coloca como parte de um coletivo de forças que constitui o
espaço de terreiro, que me movimenta e intensifica outras forças minimizadas pela
sedimentação e pela caixa de ressonância – que repete imagens cristalizadas
(KIRST in FONSECA e KIRST, 2003). Esta forma de ver a pesquisa, que assume
força metodológica, coloca-me como parte dos fluxos que se atualizam no mundo e
me conduz à constituição do campo onde o contato com sujeitos e as suas práticas
culturais afro-indigenas movem-me, ao mesmo tempo em que constitui o mundo-
pesquisa-força. Ecoa uma escrita implicada nos modos de criação e produção de
saberes partilhados entre sujeitos, no território da pesquisa.
A cartografia afronta o silêncio criando vida nas marcas, portanto, a escrita
nesta pesquisa é também uma marca de vida. Foi uma escolha a partir das
inquietações políticas vividas diante do silenciamento e/ou da repetição negativa
sobre ancestralidade e negritude. Os movimentos fazem surgir o desejo da abertura
das caixas de ressonância que nos atravessam.
A cartógrafa, na qual vou me constituindo, acompanha um processo e não se
restringe à representação de um objeto. Neste processo consideramos desde o
início, que a pesquisa tratou de uma produção de conhecimentos preexistentes,
símbolos e forças circulantes, detectadas num processo de combinações e
funcionamentos cognitivos. Os funcionamentos cognitivos atuaram mediante
atitudes investigativas imersas no plano existencial. As atitudes investigativas
impactaram atenções aos movimentos da pesquisa, com sobrevoos, mergulhos,
imersões e submersões atencionais, gerando fluxos de pensamento e diferentes
formas de atenção no processo da pesquisa produzida. Atenção ao território, à inter-
relação com os sujeitos, às práticas culturais e ao tempo de combinação entre a
imersão e a escrita da monografia (KASTRUP in PASSOS, ESCOSSIA e KASTRUP,
2009) e os processos de produção de negritudes. Foi uma escolha política, diante do
silenciamento nas escolas e os processos de produção de negritudes. Neste
sentido, cartografar uma experiência vivenciada por sujeitos e práticas culturais
20

negras, foi também habitar um território existencial (PASSOS in PASSOS,


ESCOSSIA e KASTRUP, 2009).
Esta cartografia é produção de minhas andanças e vivência religiosa que se
entrecruzaram. Foi através da das rezas; dos carurus de sete meninxs; das balinhas
distribuídas nas quais eu estava inserida, entre os meses de setembro e outubro; do
preconceito sofrido pelxs mexs colegas e, por presenciar a mesma ação na escola,
que me coloquei e me fiz pesquisadora. Essas são as forças que movem esta
escrita.
Foi no Nzo, ao chegar e bater cabeça, saudar ao ngoma que emite aquele
som tangível aos nossos ouvidos, evoca os nossos ancestrais e faz com que o corpo
tenha um bailado - seja no ritmo da cobra, no balanço das folhas, no soprar do vento
e no correr das águas - que me encontrei investigadora de um modo coletivo de
viver. Este mesmo ngoma faz o corpo tecer esse ritmo que passa por um processo
que desfaz e refaz. Este ngoma é construção ancestral: primeiro garimpa a
madeira, corta-se o aro e molda-se, mas antes de emitir o som ele precisa de um
couro, precisa do dendê e do mel e passa por toda lapidação. O ngoma se entrega
ao seu artesão, que realiza todo processo até se tornar o instrumento de total
importância dentro nzo. O mesmo é tocado por um designado pelo Nkisi, que é o
Tatá kambondo. Mas, sem coletividade não tem ngoma, não há ngoma sozinho.
Isso não serve só para ngoma, mas para todo o fazer terreiro. Desde a saudação
dos Mikisi, caboclos e muitos outrxs.
A cartografia é também uma política de criação, do resgate dessas memórias
que já estavam lá, denominadas por Kastrup de política construtivista (in PASSOS,
ESCOSSIA e KASTRUP, 2009). Uma política construtivista coordena atitudes
investigativas de cultivo e criação ou de pesquisa que segue métodos e intervém no
plano da experiência. Como método, não estanca etapas, as coloca em fluxo de
pensamento. É como o balé dos pássaros que com seu vôo desenha o céu, mas em
algum momento faz um pouso. Só que este pouso não é a parada do seu balé, e sim
o momento da atenção sensível, questionando-se onde pousar atenção, dentre
tantos campos e elementos de descobertas.
Foram nas vivências e no silenciamento dentro do espaço escolar que
construí traços dos caminhos que me levaram a vielas e dutos. Foi no viver terreiro,
nas lutas, nas alianças políticas que partilhei desse processo de cultivo. Esta é uma
pesquisa da experiência e não sobre a experiência apenas, no sentido de ser parte e
21

não estar à parte. Ser parte é gestar ritmos, intensidades, é viver o terreiro a partir
do resgate de memória do meu povo, é cultivar e cuidar.
Para que esta cartografia atingisse seu objetivo, tomou como espaço político
de investigação o Nzo Ventos de Angola, primeiramente Terreiro de Umbanda
Ventos de Angola (TUVA), que até o fim desta carta de mapas provisória deixou de
ser de “umbanda” para desembocar-se nas águas de Candomblé de Angola.
Assim, esta também é uma cartografia da mudança e seus efeitos e afetos,
seus choros e afirmações para o povo de nkisi. É lá, no terreiro que eu e meus
irmãos batemos o kubetamakó, é lá que entramos em sintonia com os ancestrais, é
lá, que arriamos as mesas para Mikisi e juntxs cultuarmos nossos ancestrais. É lá
que giramos para os caboclos, é lá que realizamos as sakulumpemba, é lá que
caminho com meus pés no chão de uma comunidade de terreiro, onde aprendi as
primeiras palavras que me transmitem a ligação com os meus ancestrais. Foi no
terreiro que eu aprendi o poder das nsabas (folhas) sagradas, em que construí o elo
com os Mikisi e com minha família de nkisi.
Aprendi a resistir às demandas diárias das águas de angola e do culto aos
caboclos observando meus mais velhxs, que são, na sua maioria, mulheres. São
estas mulheres que se posicionam dentro do espaço terreiro para a defesa e
manutenção deste elo religioso. Neste espaço sagrado fui entendendo-me como
parte desta caminhada que se cruza e se hierarquiza a partir dos mais velhxs. A
minha vivência dentro dos espaços religiosos fortaleceu minha formação humana e
profissional e foi neste espaço que aprendi a me impor e lutar pelxs meus.
Posso dizer então que a cartografia me fez, na medida em que fazia esta
escrita de força, de cuidado e da compreensão da não existência de uma autoria
que não seja a coletiva. É um exercício de despersonalização que em nada se
relaciona ao individuo – esta ficção liberal – mas aos processos e conexões, a
compreender o que se faz por entre. Trata-se de acompanhar as erosões,
geologicamente, e operar geograficamente (DELEUZE, GUATTARI, 1995).
Seguindo o rastro de água, persigo forças que se desviam por entre as
sedimentações e ressonâncias para captar o movimento na sua feitura e dizer o que
eles dizem quando me afetam. Sou parte disso, e para compreender o processo,
nomeio o poder que arregimenta as forças para explicar a quem ouve a minha
escrita de que me nutri, em que me transformei e quais as forças minoritárias eu
persegui.
22

Não me interessa repetir estereótipos sobre terreiro, mas toma-los em sua


repetição para encontrar o que afirmar sobre educação, sobre negritude e sobre
aldeias. Cartografar é acompanhar as relações de forças que a pesquisa nos sugere
e anota-las, afirma-las e não delas fugir. Assim, para o cartógrafo pesquisador:

O que importa é que, para ele, teoria é sempre cartografia - e, sendo


assim, ela se faz juntamente com as paisagens cuja formação ele
acompanha (inclusive a teoria aqui apresentada, naturalmente). Para
isso, o cartógrafo absorve matérias de qualquer procedência, não
tem o menor racismo de frequência, linguagem ou estilo. Tudo o que
der língua para os movimentos do desejo, tudo o que servir para
cunhar matéria de expressão e criar sentido para ele é bem-vindo.
Todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas
(ROLNIK, 1989, p.17, grifo da autora).

A cartografia nos permite optar por abordagens que nos leve a formação de
dispositivos de pesquisa (aqui educação e ancestralidade) que indicarão categorias
analíticas (terreiro do campo-Nzo, práticas pedagogias decoloniais, educação do
campo, lei 11.645/08) e estas servirão como descritores da pesquisa. Do ponto de
vista da abordagem, fiz a opção pela pesquisa qualitativa- uma vez que a cartografia
é sempre qualitativa - por ser uma perspectiva que privilegia a problematização dos
sujeitos envolvidos. Para essa abordagem consideraremos, portanto, os descritores
que as visitas cartográficas nos indicam e faremos relação entre discursos, contexto
e texto.
Contudo, mais do que procedimento metodológico a cartografia é um modo
de conceber a pesquisa e o encontro do pesquisador com seu campo, uma vez que
parte ainda de outra leitura da realidade, pois não quer só buscar o qualitativo, mas
também romper com a separação sujeito e objeto. Nessa perspectiva, supomos que
a cartografia aponta para a construção de saída e inspiração para quem se propõe a
estudar a realidade. Com base em autores que discutem ancestralidade, tais como
Oliveira (2007 p, 259) que destaca a ancestralidade converte-se no principio máximo
da educação, pois o educar é partilhar a partir dos traços culturais.
Todos os procedimentos de pesquisa e formas de análise ancoram-se no
desenvolvimento da cartografia. Foi em uma aula de pesquisa que eu percebi a voz
da ancestralidade ecoar em meus ouvidos, quando exatamente há quatro anos a
professora Valdeci Nascimento, ao trazer relatos, dizia assim: - Não pesquise o que
não é a da sua conta, você tem que pesquisar o que lhe incomoda, o que você
23

vivência, pois ali será seu ponto de partida! Voltei para casa e essa frase não saia
dos meus pensamentos, embora tivesse um pequeno projeto do meu trabalho
pronto. Fiquei pensativa e comecei a refletir sobre aquele momento e decidi que
aquela era a hora de escrever sobre a minha história entrelaçada à de meus
ancestrais, silenciadas em alguns espaços.
Os sujeitos da minha pesquisa são xs filhxs do Nzo Ventos de Angola, hoje é
um terreiro-casa bantu angola, no município de Amargosa, que nasceu nas águas
da umbanda em 2011 e desembocou em águas de Angola em 05 de maio de 2017,
com as andanças e caminhadas juntamente com o povo preto e vermelho que luta e
resiste em memória dos ancestrais. Um Nzo de Mametu Matamba, dona da chuva
forte e do vento, que com sua força nos conduziu para que estivéssemos juntxs
nesta familia. Hoje, temos 33 filhxs, que juntxs movimentam-se no coletivo, na luta
política para reviver e resistir, juntamente com os seus e pelos seus. Somos um
Terreiro-Casa porque nos vinculamos ao Terreiro Caxuté, liderado por Maria Balbina
dos Santos, a Mametu Kafurenga, durante o período que nossa Mãe Matambale
recebe as obrigações necessárias ao Candomblé para nos liderar de forma
independente. Pela tradição os filhos estão sempre vinculados às suas mães, no
entanto para funcionar de forma independente há a necessidade de completar sete
anos nas águas de Angola.
Realizei esta cartografia 2015 a 2017, entre uma gira e outra, uma quizomba
e outra, em uma andança e outra, para o que lancei mão dos seguintes
procedimentos: observações, diário de campo – o caderno de anotações sempre em
punho em alguns momentos da gira, durante algumas consultas permitidas,-e as
entrevistas semi estruturadas , voltadas para às práticas vivenciadas.
O diário é a peça fundamental na vida do cartógrafo, pois além do seu olhar, é
quem descreve as trilhas feitas por cada olhar, para que assim ele possa construir
mapas cujas mudanças vão cartografando mapas abertos que acompanham as
paisagens e suas erosões (Rolnik , 2014).
A entrevista semiestruturada, baseada na minha vivencia como ouvinte/
participante no momento. Corrobora com isso Pimentel (2009), quando diz que x
pesquisadxr tem que “olhar ouvir e conversar associado aos registros dos diários de
campo e nos textos sínteses da experiência vivida remete ao desafio ético de
inscrever nas narrativas escritas os significados produzidos nas experiências de
trocas ao longo da investigação” (PIMENTEL, 2009, p. 150). Entrevistei três
24

membros do sexo feminino, duas negras e uma branca, idade 36, 37 e 28 anos de
idade, cujo tempo de terreiro é seis anos, as duas primeiras e quatro anos, a última.
A classificação aqui será feita por meio de nomes de origens indígenas, que são:
Açucena, Potira e Iara. A escolha dos nomes das entrevistadas se deu por conta da
minha relação com os povos indígenas, através dos caboclos do nosso terreiro,
além das vivencias nas rodas de conversas. Além disso, por muito respeito e amor à
minha mãe e cabocla Bartira, que sempre representou muito em minha vida, além
do cuidado espiritual, o acalanto de mãe nos momentos de desespero e alegrias, de
danças, giras e de todo esse meu viver terreiro.
Essa cartografia traz a historia, de um povo que foi dizimado, colonizado, e
que hoje tem sua memória revivida nos espaços de terreiro. Por isso, nomeei
minhas entrevistadas, por serem filhas desse espaço que revive a memória, que luta
e se alicerça no coletivo.

1.1.1 “ARREDONDANDO A CONVERSA”

Ao tecer essa cartografia, causo espanto em alguns, curiosidades em outros,


ofereço provocações para que possamos continuar a tecer os fios que percorrerão
este trabalho.
Vamos bater um papo.
O que é a cartografia?
É uma ciência geográfica que produz e estuda mapas.
− Mas, mapas de quê?
− De territórios, oras.
− De territórios?
− Sim. De continentes, países, cidades, regiões e estados...
− O que esse papo de geografia tem a ver com o a sua pesquisa?
− Ora, até onde eu saiba toda pesquisa trabalha com territórios!!!!
− Territórios? Hum, não entendi...
- Sim, territórios. Podemos falar em territórios campesinos, territórios afetivos,
territórios estéticos, territórios políticos, territórios existenciais, territórios sociais,
territórios históricos, territórios éticos e assim por diante.
25

− Cada saber lida com assuntos que não são nada estanques, paradas, e que se
caracterizam tão somente por serem relacionais, por constituírem relações entre si e
com o seu meio.
- Esses assuntos seriam como?
- Trata-se da vida, da subjetividade, de algo que é ao mesmo tempo singular e
coletivo, que se faz entre o que é mais íntimo e aquilo que está fora, algo que está
sempre em agitação, que nunca é exatamente uma coisa porque está sempre entre.
− Acho que estou entendendo, embora esteja intrigadx!.
− Manifeste-se, qual seria sua intriga, então?
− A questão que ficou para mim, o que não consegui ainda entender, é como
cartografar ou mapear algo que não para?
− Conte mais...
- Como é que posso fazer mapa de algo que está entre, que outra é um processo e
não uma coisa? Que está sempre em modificação?
- Veja bem... É preciso que o próprio cartógrafo esteja em movimento, afetando e
sendo afetado por aquilo que cartografa. O cartógrafo acompanha o processo e suas
alianças, transformações, declives e forças. Não há fim, até porque o fim nunca é na
realidade o acabamento. O que chamamos de fim é sempre uma conclusão para
algo que continua de outra forma. Se não conseguimos enxergar movimento é
porque alguma coisa está impedindo, e lançar o olhar para isto é também função do
cartógrafo. A cartografia é, desde o começo, puro movimento e variação contínua.
Mairesse (2002) nos mostra que, o contar/escutar vai tecendo uma nova rede,
entrelaçando pedacinhos de tempo perdidos a uma cadeia temporal estabelecida,
fixada em datas, horas e lugares, compondo uma história onde se ressuscitam
fantasmas, tornando presentes as ausências. A repetição deste ato permite compor
e recompor a imagem que cada geração tem das anteriores. Aciona-se a
reversibilidade do tempo e com este a produção de práticas e afetos. De repente
pensei que uma imagem é sempre produtiva e que é exatamente o movimento que
apaga fantasmas e recompõe ausências, restando sempre a esperança da
insurreição e de que uma história bonita brote de uma pedra qualquer.
-Hum... Estou começando a entender, a cartografia. Para cartografar, é preciso,
tecer ideias, contar e escutar?
-Isso, você está entendendo o que é a cartografia. Para cartografar é preciso estar
em um território que é feito pela própria cartografia.
26

Para finalizar nosso bate papo, farei uma síntese do que conversamos. Para
pensar a cartografia enquanto metodologia de conhecer/fazer um território é preciso
pensar nas perguntas que ela pode nos oferecer e daí brote uma composição bonita,
sempre dirigida a fazer viver. Sim! O único comprometimento da cartografia é com a
vida e suas intensidades, trata-se de um comprometimento ético politico! (ROLNIK,
2011). O cartógrafo aciona composições de forças que apontem à multiplicidade e à
liberdade de alianças para a vida, que abre mão da neutralidade, do cientificismo e
reconhece o jogo de poderes. Ao invés de perguntar pela essência das coisas, o
cartógrafo pergunta pelo seu encontro com as coisas durante sua pesquisa. No lugar
de o que é isto que vejo? (pergunta que remete ao mundo das essências), um como
eu estou compondo com isto que vejo? Este segundo tipo de pergunta nos direciona
ao processo, entendendo o cartógrafo enquanto criador de realidade, um
compositor, aquele que com/põe na medida em que cartografa (Pucheu, 2007).
27

2. O CAMINHO DE ANGOLA: DAS ÀGUAS DE LEMBÁ E KITEMBO AO NZO DE


MATAMBA E DE BARTIRA

Templo em construção iniciada em 2015 e oTerreno do Nzo Ventos de Angola,


comprado em 2014 .

Depois da primeira etapa construída em 2016

Construímos nosso espaço físico, de mão a mão e ainda não o acabamos até
a escrita desta monografia. Fruto de trabalho coletivo de capina, ajudante de
pedreiro, instalador de telhado, pintor, nós o fizemos coletivamente. Seguimos o
modelo da tradição de Angola e juntos estamos utilizando o terreno que compramos
para morada de Mikisi, caboclos e nossa prática pedagógica de luta religiosa.
28

Muitos estudos pautam a existência de terreiros de matriz afro-indígena a


partir de uma noção cristalizada de tradição, não levando em consideração esses
espaços como complexos híbridos, do campo e em diálogo com novos processos de
construção, característico da contemporaneidade e das novas discussões raciais e
culturais emergentes nas ex-colônias é o que nos diz Bonnici (2017). Nestes
processos complexos também são atualizadas as relações de poder e instauradas
novas compreensões destas relações, com novas diametralidades e fluxos. É nesse
sentido que Foucault (1989) vai trazer que os corpos surgem e se realizam neste
embate, neste confronto de forças, de velocidades, de composições, neste
movimento incessante. “Os corpos são, pois, estados dos seus movimentos - modos
de estar – superfície de inscrição dos acontecimentos, volume em perpétua
pulverização, cujos fluxos estão sempre em insuperável conflito” (FOUCAULT 1989,
p.22).
Terreiros são espaços que surgiram a partir da desterritorialização sofrida
pelos negros escravizados trazidos para o Brasil, e como estratégias de
sobrevivências, eles começam a se territorializar. Existia uma necessidade de
manter a sua identidade e o seu culto. E, é nesse processo que iremos perceber
determinadas localizações dos elementos religiosos dentro do terreiro. Quando eles
começam a se distribuir pela cidade, e isso se dava através de terreiros e
assentamentos demarcados por uma relação social e uma segregação. Deste modo,
Jussara Rego (2006) traz que as condições de territórios contínuos é indicar a
existência e a necessidade, para a manutenção do culto, dos territórios
descontínuos - matas, lagoas, manguezais e áreas naturais, de uma forma geral,
que se apresentam cada dia mais escassos nas cidades. A produção urbana de
terreiros denuncia a desapropriação da terra dos povos negros e indígenas, ao
mesmo tempo em que insiste nesta continuidade de tradição.
Muito do que é produzido cotidianamente dentro dos espaços de terreiros é
silenciado em uns ambientes, invalidado em outros. O nzo é um espaço sagrado da
(con)vivência, onde cotidianamente se revigora formas de vida contemporâneas, re-
atualizando tradições. É um lugar para brincar, é a busca das tessituras de relações
de uma comunidade, onde todxs se reúnem em fazeres múltiplos que se unificam
em coletivos. Agora como nos nutrimos dessa força que habita no coletivo?
No momento em que escrevia este texto viajava até o Caxuté, terreiro
localizado na cidade Valença. O terreiro foi fundado em 1994 pela sacerdotisa Maria
29

Balbina dos Santos (Mametu kafurengá), juntamente com mãe Mira 2, na Rua das
Flores, e depois mudou para Maricoabo/Cajaiba onde permanece até hoje. O terreiro
Caxuté é um espaço onde funciona uma escola – a primeira Escola de Matriz
Africana do Baixo Sul da Bahia - que desenvolve ações pautadas nas práticas
culturais e sociais das raízes bantu.
Nosso espaço de pesquisa – o Nzo Ventos de Angola – está vinculado
atualmente, por meio da tradição e princípios do Candomblé de Angola, ao Kunzo
Nkisi Caxuté Kitembo Mvilla Senzala Dendê (Terreiro Caxuté).
Assim, em nossa viagem, o Caxuté se entrelaça ao Nzo Ventos de Angola,
conhecido como TUVA3, porque caminhos desembocam um no outro, sem, contudo,
deixar nítida a porta de entrada e/ou sobrepor-se. São forças que se diferem e se
fortalecem como águas que conhecem o segredo de seu curso e os mistérios de
suas diferenças. As marcações diferentes do Caxuté falaram-me sobre as
continuidades e descontinuidades do TUVA. Percebi que o terreiro é um espaço
intimo que agrega o coletivo de pessoas, é um quintal enorme, de caráter estético
politico, em que acontecem as intensas explorações e descobertas infantis ou do
nosso eu de forma imersa no coletivo.
Nos quintais, vive-se o mistério e o encantamento com a força de transcender
o tempo e espaço. Ali o corpo desloca-se para viver estados de liberdade, longe das
vistas e catalogadas formas de controles. O corpo em movimento canta, dança e
busca em devoção alguma divindade ou simplesmente a experiência de sentir o
corpo por meios estranhos à política ocidental.
Estes movimentos dançantes e despreocupados semelhantes aos das
crianças são sons de Tateto Vunji nos dizendo que isso é ancestralidade. Acontece
quando sentamos na areia e nos sujamos sem nos preocuparmos com as praticas
higienistas, experimentando o que é ser criança novamente. Ou então, quando você
caminha a observar os cachos de dendê e eles tão quietinhos e a gente retira um

2
Mãe Mira, foi uma sacerdotisa na cidade de Valença, entre os anos 1986, representa o poder das
mulheres do Candomblé . Foi uma mulher à frente do seu tempo transformando-se em uma entidade
negra não só para os filhos do seu terreiro, mas simbolicamente para o Candomblé no Baixo Sul da
Bahia.
3
Como já mencionei, mas éramos até 2017 um Terreiro de Umbanda ligados à uma matriz
umbandista em São Paulo. A partir deste ano nos (re)ligamos à tradição Angola-Congo vivenciada
pelo Candomblé de Angola do Terreiro Caxuté.
30

para comer, e por ali segue o caminho a procura de uma sombra. No final da estrada
você percebe o que a natureza e o que os Mikisi te oferecem, nos dando forças para
sentar e escutar a contação de história, sem preocupar-se com o vento, com o
barulho do canto dos pássaros, com as formigas carregando pedaços de folhas
andando pela sua roupa sem te picar e fazendo das saias brancas o caminho para
chegar até sua casa.
Este contexto que vivenciei indo até o Caxuté, durante o período da III
Vivencia Internacional no Caxuté, no mês de agosto de 2016, no período da kizomba
Maionga, mostra-me o quanto o terreiro é a nossa escola. O poder e a força do
ngorossi são evidenciados na palavra, que nunca vem só, já que estabelece,
enquanto poesia, a interlocução entre as gerações. Explica-se e explicita outro
tempo. Eram por eles (ngorossi) que eram evocados os lugares, os objetos. A partir
deste espaço, exercemos um diálogo direto com os Mikisi. Ali se construía a
permanência e a manutenção da memória do grupo, ao passo em que eram também
reproduzidas e questionadas as figuras de pensamento que teimam em gerar uma
história homogênea. É na memória, espaço também de batalha, que guardo cada
momento vivenciado.
A transmissão dos rituais religiosos e a vivencia da religião é um processo
que passa pela memória de cada um, vivenciada por diversos sujeitos envolvidos no
mesmo processo. Porém, o conteúdo a ser transmitido depende do que cada
indivíduo transmite de sua memória, seja ela individual ou coletiva. Desse modo, os
saberes que são gestados e perpetuados em uma comunidade de terreiro são frutos
da memória que os indivíduos têm acerca das interações sociais que vivenciaram ao
longo da vida entre as pessoas com as quais conviveu e aprendeu, no caso do
terreiro, também se trata de vivencia com outras dimensões da vida e com seres
vivos de toda espécie. Segundo Halbwachs (2004, p. 55), a memória individual,
construída a partir das referências e lembranças próprias do grupo, refere- se,
portanto, a ‘um ponto de vista sobre a memória coletiva’. Olhar este, que deve
sempre ser analisado considerando-se o lugar ocupado pelo sujeito no interior do
grupo e das relações mantidas com outros meios. Neste caso, há uma relativa
individualidade que é imersa na produção coletiva da vida, mas também que diz
respeito a lugares de exercício de poder, uma vez que o olhar só alcança o que se
pode ver de onde se está localizado.
31

A memória, para o povo de nkisi tem orientado as práticas pedagógicas


decoloniais, uma vez que, pauta-se numa outra duração que não se mede por
relógio, mas respeita a interação com outros seres vivos. Nossa memória é
expressão de luta decolonial. Neste sentido, a memória é força política decolonial e
que traz uma outra duração de tempo, em cuja organização os processos
diferenciais se estendem sem se contrapor dicotomicamente. A força decolonial está
em vivenciar positivamente a multiplicidade e acionar politicamente elementos
relacionais que não estão colocados como ‘positivos’ para a política ocidental.
O terreiro aciona a memória coletiva entendida assim:

A memória coletiva carrega as memórias dos antepassados -


andrógenos, homens e mulheres, líderes, líderes, sábios, sábios,
guias - que com seus ensinamentos, palavras e ações, deram
direção à necessidade pedagógica de existência digna,
complementar e relacional de seres - vivos e mortos, humanos e
outros - com e como parte da Mãe Terra. A memória coletiva, nesse
sentido, é o que articula a continuidade de uma aposta decolonial,
que pode ser entendida como essa vivência de luz e liberdade em
meio às trevas. Portanto, o entusiasmo dos agentes coloniais em
desligar a luz e, ao mesmo tempo, em impor e moldar uma
racionalidade baseada em binarismos dicotômicos - homem /
natureza, mente / corpo, civilizados / bárbaros etc. - não é
surpreendente. nas idéias de "raça" e "gênero" como instrumentos de
classificação hierárquica e padrões de poder (WASH, 2012, p 25)
(tradução livre)4

Daí podem se conformar praticas decoloniais que reinscrevem uma história


aquilombada que resistem aos modelos epistemológicos e ontológicos que
organizam os signos no ocidente. O terreiro nos ensina uma vida que se liga ao
legado dos mais velhos, para os quais qualquer universalidade ocidental é
duramente genocídio e subsunção das práticas cotidianas de povos indígenas e
negros. As pedagogias são decoloniais na medida em que:

4
la memoria colectiva lleva los recuerdos de las y los ancestrxs —andrógenos, hombres y mujeres,
líderes, lideresas, sabios, sabias, guías— que con sus enseñanzas, palabras y acciones, dieron
rumbo al menester pedagógico de existencia digna, complementaria y relacional de seres —vivos y
muertos, humanos y otros— con y como parte de la Madre Tierra. La memoria colectiva, en este
sentido, es la que articula la continuidad de una apuesta decolonial, la que se puede entender como
este vivir de luz y libertad en medio de las tinieblas. Por tanto, no es de sorprender la afición de los
agentes coloniales de apagar la luz y, a la vez, de imponer y moldear una racionalidad fundada en
binarismos dicotómicos —hombre/naturaleza, mente/cuerpo, civilizados/bárbaros, etc.— y en las
ideas de “raza” y “género” como instrumentos de clasificación jerárquica y patrones de poder (WASH,
2012, p 25) original
32

Pedagogias, nesse sentido, são as práticas, estratégias e


metodologias que se entrelaçam e se constroem sobre resistência e
oposição, bem como sobre a insurgência, afirmação, re-existência e
re-humanização (WALSH, 2012, p 19) (tradução livre)5

Hoje entendo, a partir de meus escritos e dos ensinamentos vivenciados, que


ngorossi na língua de nosso ancestral se caracterizou como uma forma de
resistência e de clamor pela liberdade dos nossos povos, negros e indígenas.
Persistentemente esses povos nunca deixaram de cultuar os seus ancestrais,
recriando formas de, nas rachaduras do tempo e do espaço, romper com as
imposições da modernidade colonial (DUSSEL, 2008). E que hoje ainda lutamos
por isso, contra a violência religiosa, contra o preconceito sofrido, com os constantes
ataques que os terreiros vêm sofrendo.
Segui o vento e as tempestades, a pisada firme no barro e foi através dessas forças
que me deixei levar. È a queda da cachoeira que cai forte em meu kamutuê e
desenrola meu caminhar6. Foi seguindo os passos de Ndandalunda que compreendi
o tecer misterioso dos fios e a beleza do amor.
Por Ndandalunda cheguei ao Nzo de Matamba, hoje um terreiro bantu no campo
que surge na força do vento e do correr das águas de Nlembá/Kitembo, ancestrais
do Terreiro Caxuté, até as tempestades de Matamba, ancestral do antigo Terreiro de
Umbanda, hoje Terreiro de candomblé de Angola, sob a guarda de Mametu
Kafurenga e sua filha Matambale Nzaze de Angolaci. O Nzo Ventos de Angola tem
como ancestral central, a Nkisi Matamba e a chefia da Cabocla Bartira, também
considerada Mãe do Terreiro.
Bartira é uma ancestral, índia velha, que se manifesta na matéria da Mãe
Matambale e que traz consigo uma sabedoria fenomenal, um acalento de mãe, que
com o seu cajado e maracá consegue nos mostrar como pisar firme. Ensina-nos a
lutar pelo povo vermelho e preto.
Foi o caminho firme de Bartira que, aos poucos, foi nos mostrando que as águas
necessárias para caminharmos eram de as de Angola, como é chamada a nação de

5
Las pedagogías, en este sentido, son las prácticas, estrategias y metodologías que se entretejen con y se
construyen tanto en la resistencia y la oposición, como en la insurgencia, el cimarronaje, la afirmación, la re-
existencia y la re-humanización (WASH, 2012, p 19)
6
Sou filha das águas doces de Dandalunda nkisi da cachoeira, das corredeiras doces que com sua
força só me faz mergulhar sem destino certo, contornar os desafios pelo caminho e seguir o fluxo da
correnteza.
33

candomblé cuja tradição rege os rituais e a educação no terreiro Caxuté. Foi lá que
ela deitou, aprendeu e foi lá que ela bebeu com seus.
Lembro-me como fosse hoje, quando ela pediu para que estudássemos a língua e
costumes bantu, ainda quando constituíamos um terreiro de umbanda, em meados
de 2015. Nosso percurso coletivo iniciado na Umbanda foi onde aprendemos a
reverenciar os caboclos e guias, bater a cabeça, saudar o dono da mata, macerar a
aroeira com os pretos velhos.
Potira e Açucena relatam o que a umbanda representou para elas:

Pra mim a experiência mais válida foi o coletivo, essa coisa de você
vivenciar uma religião, essa coisa de você construir coletivamente,
porque desde aquela época até os dias de hoje, tudo que a gente
construiu foi com aquele grupo e assim na gente não encontrou nada
lá pronto (Potira 2017)

Numa base que trata duma linha de descarrego, de purificação, onde


as pessoas podiam se descarregar e serem reenergizadas, além da
união em desenvolver os trabalhos (Açucena 2017).

O sentimento de coletivo desenvolvido na Umbanda era uma preparação de


uma família que permaneceria junta. Não percebíamos que o pedido de conhecer o
mundo bantu era um aviso. Não nos atentamos nos minuciosos detalhes que ela nos
mostrava através das falas, através das explicações nos estudos que, assim como a
água que percorre seu trecho e desemboca em outras terras, em outras pedras e
em outras matas, seria o caminho das águas de Matamba.
O Terreiro Ventos de Angola surge neste contexto, e em 2017 conhecido
como TVA/Caxuté, está localizado na comunidade da fazenda Baitinga, no município
de Amargosa, em um terreno de 720 m2, construído coletivamente.
Interessa-nos que essa cartografia atravesse rios e mostre a força da
correnteza quando as águas precisam desembocar em outras veredas. Seguiremos
todo percurso utilizado pelas mudanças de águas.

2.1 A MUDANÇA DAS ÁGUAS

O TUVA (Terreiro de Umbanda Ventos de Angola) como era nominado,


nasceu em 2011 da necessidade de se ter um ponto de ligação entre o Espírito
Santo e a Bahia, estado para onde mudaram-se dois membrxs do Templo Espírita
34

Umbandista Estrela dos Obreiros de Oxalá (TEUEOO), localizado em Vila Velha-ES.


Foi a entidade nominada Marino (entidade da linha de marujo), que conduzia
TEUEOO, que ordenou trabalhos espirituais que marcassem o ponto de ligação.
Inicialmente, funcionava em reuniões quinzenais na casa de Ana Cristina
Nascimento Givigi, Kiki,- que conduzia os trabalhos de estudo e incorporações - em
Amargosa, no Bairro Santa Rita e, logo depois, no ano de 2012, no Bairro Cajueiro,
em Amargosa, Bahia. De inicio, havia leituras de livros religiosos e depois
manifestação de caboclos, pretos velhos, boiadeiros, eres e exus, entidades de
umbanda.
Quem narra é Acuçena. No momento de nossa conversa ela me contou que
tudo começa quando ela vem, junto a Kiki, também morar na Bahia.

Ao deixar o estado do Espírito Santo, viu-se a necessidade de


continuar cuidando da espiritualidade Marino nos deu a firmeza e
pediu para que a gente iniciasse estudos, com algumas literaturas
cardecistas, uma mesa branca. A partir desses estudos que se foi
acontecendo à necessidade de abrir para outras pessoas. (Açucena,
2017)

De acordo Açucena, as pessoas vão procurando o grupo que fazia estudos


para conhecer um pouco dessa umbanda e quais práticas eram conduzidas: “Antes
eram sós estudos, mas quando começa aparecer mais pessoas, o quadro muda”
(Açucena 2017).
Também nos diz Potira:

No início nós tínhamos apenas uma mesa, praticamente uma mesa


cardecista, onde nós abríamos uma mesa por semana, tínhamos um
encontro uma vez por semana. A princípio a gente começou
estudando os princípios da umbanda, depois nós fazíamos uma
mesa com o Evangelho Segundo o Espiritismo e daí em diante, com
o passar do tempo, se viu a necessidade de chamar mais pessoas.
(Potira 2017).

Percebemos que a ancestralidade percorre caminhos difusos. São nas


narrativas de Açucena, e mais adiante nas falas de Potira, que iremos perceber
como tudo começou e o contorno desses fios que desencadeiam no o Tuva/ e o Nzo
Matamba.
O TUVA (Terreiro de Umbanda Ventos de Angola) já é o começo da
caminhada ancestral ao Nzo de Matamba, o que não indica linearidade e nem
35

evolução, mas apenas narro passos percorridos pelos mistérios da ancestralidade.


Não entendemos que a Umbanda é um estágio anterior à entrada em outra religião.
Este caminho percorrido por nosso grupo é marcado pela direção da ancestralidade
aos propósitos de luta do povo negro e indígena. As corredeiras se fazem num
processo, onde nenhuma desembocadura é igual à outra e continuamente se faz,
refaz, desfaz, entretanto, sempre está lá, em um ato contínuo de rupturas e
costuras, sem evoluções, mas sempre caminhos diferenciais. Pedagogicamente
aceitamos o curso do tempo, ao passo em que nos inserimos em outra
compreensão que não se demarca pelo certo e errado, pelo ‘um’, contra ‘outro’. Os
caminhos diferenciam-se no tempo levando o coletivo a experimentar propósitos
coletivos, marcado por aprender em meio a quedas e subidas, tão necessárias à
educação.
Caminhando e diferenciando-se sem indicar nenhuma missão única, esta
essa cartografia pretende ser um acontecimento, um rebuliço ainda que pequeno em
cada leitor. Pode ser um evento singelo de lua cheia, de lua minguante, de lua nova,
de lua crescente, de sol meio-dia, matutino, vespertino! O importante é que seja!
Desejo imensamente que seja, pois ela não é construída sozinha são muitas mãos
que a tecem! Mãos que também são ouvidos, pés, mar, cachoeiras, ventos, chuvas,
mãos que são vivências, experiências, por isso, é também encantada, posto que
cria, re-cria e constitui-se de ancestralidade partilhada.

“Pra Tupã, eu fiz minha jura,


ngoma tocou, Quilombo chamou..
Nem um branco me tortura
Sou Bartira, sou guerreira,
cabocla de pena eu sou.”

É disso que falo, desse “quilombo” que está dentro da gente, que nos
acompanha dia-a-dia, seja dia, seja noite e se externa nas lutas cotidianas do povo
preto indígena. Falamos de ancestralidade! Desse modo, essa cartografia se faz na
teia oriunda do reconhecimento da minha ancestralidade afro-indígena, da sua
potencialização, por meio do encantamento.
Ancestralidade é também encantamento, uma maneira de compreender o
próprio ser/fazer. As ações constituídas por este ngunzu coletivo não seguem
36

modelos impostos, são ritos de um povo, de cuidado consigo e com o outro.


Compreender o coletivo e os modos de produção de conhecimento, de valorização
dos saberes é potencializar a ancestralidade. Ela sempre esteve ali construindo um
povo e trouxe encantamento para a vida, posto que “ler o mundo é um modo de criá-
lo” (OLIVEIRA, 2007, p 191).
Este modo coletivo de viver e aprender, constituído pela complexa relação
com a ancestralidade incita jeitos de educar e de partilhar saberes próprios das
vivencias em coletivos de terreiro (BORGES, 2016) do que iremos falar adiante.
A partir do ano de 2014, o terreiro já contava com vinte (20) membros, a
chefia da Cabocla Bartira e se organizava através das giras- cultos de umbanda -
abertas às pessoas que procuravam e outras fechadas aos membros. Ou seja,
recebia alguns visitantes, parentes de filhxs da casa, para realização de algum
trabalho de descarrego – limpeza espiritual - ou consultas com caboclos e
funcionava numa garagem de 25 m2, numa rua do Bairro Cajueiro, em Amargosa,
onde residia a médium que incorporava a cabocla Bartira e a médium que
incorporava o Caboclo Serra Negra.

Gira de Matamba, no espaço da garagem, dezembro de 2014

Um terreiro de umbanda é chefiado por ‘entidades’ que organizam os rituais a


partir de uma variedade de formas, uma vez que a umbanda não possui centralidade
doutrinária. Segundo a literatura religiosa, a umbanda trabalha na linha do
descarrego e da prática da caridade, auxiliando as pessoas a manter o equilíbrio de
suas forças negativas e positivas. Dedica-se a ajudar o outro, ao trabalho coletivo,
37

na maioria das vezes, voltado para o bem estar da pessoa que precisava de ajuda
em determinado momento.
Nos rituais do TUVA, os s filhxs /irmxs do atual TVA, eram ensinados sobre o
amor e a necessidade de rompimento com aquilo que individualiza. Para alguns o
TUVA funcionou de 2011- desde o momento de estudos - até 2016, para outros de
2012 até 2016, quando se realizava giras de umbanda mais precisamente, mas há
consenso de que o grupo ia agregando lentamente pessoas que procuravam ajuda e
sentiam-se movidos a constituir coletivo.
Potira mostra os primeiros passos como o TUVA se formou:

Assim, a pessoas foram chegando voluntariamente devagarzinho,


havia algumas pessoas que procuravam Kiki pra tomar
aconselhamentos, outros era só amizade e daí via a necessidade de
um amparo espiritual, e aí como naquele tempo, a gente dizia que o
portal já estava aberto, então as coisas iam acontecendo (Potira,
2017).

Açucena, uma das primeiras irmãs/filha do TUVA relata que:

Eu considero o TUVA, na verdade, desde a primeira reunião que


foram com duas pessoas. Há contradições, tem gente que não
considera o TUVA a partir daí, eu acredito que seja uma construção,
para chegar aonde chegou, eu acredito que tenha que sair de algum
ponto, pra mim esse é o ponto. Eu acredito que faço parte disso daí
há 6 anos e meio. (Açucena 2017).

O terreiro não tinha um espaço fixo, deste modo as reuniões, as giras e as


consultas aconteciam na garagem da casa da chefia de terreiro, como já dissemos.
Com o tempo os estudos cardecistas foram abandonados, motivados também pela
vinculação do terreiro do marujo Marino (TEUEOO) ao Terreiro de Umbanda de João
Boaideiro de Araújo, em São Paulo, cuja linha privilegiava o culto aos caboclos e
uma maior aproximação ao candomblé.
Os ritos da casa de João Boiadeiro de Araujo seguiam ao que popularmente
chama-se de umbanda traçada e mistura princípios do candomblé aos já variados
princípios de umbanda. Tal hibridação é possível exatamente devido à diversidade
de ritos de umbanda no Brasil.
Já em 20137, com a presença mais constante da Cabocla Bartira na chefia
dos trabalhos de umbanda em Amargosa, o grupo inclinou-se, a pedido dela, mais
7
Tais procedimentos seguiram os anos de 2014 e 2015.
38

especificamente em 2014, aos estudos da origem das palavras em bantu, bem como
práticas do povo bantu. Os estudos foram organizados em grupos de quatro a
cincos filhxs e cada grupo foi responsável por uma temática, sendo as seguintes:
nsaba, povo bantu, ciganos, história da umbanda e os povos tupinambás. Cada
sábado era dedicado à apresentação de um grupo, juntamente com a chefia da
casa, pois ela ia tirando as dúvidas, quando surgiam. Antes de apresentarem seus
estudos ao grupo inteiro os filhxs se reuniam para fazer o estudo e as discussões
para no dia da apresentação já serem levantados pontos de inquietação melhor
formulados. Se alguém precisasse de cuidados espirituais nestes dias, a entidade
realizava os passes e/ou fazia o trabalho necessário. Também eram realizadas giras
externas em pontos importantes para a ‘energização do grupo’ desde 2013,
seguindo todos os anos, enquanto não houve um espaço fixo.

Membrxs do TUVA na Gira da Praia, Berlinque, Itaparica, 2013, seguida da Gira da Praia,
em 2014 onde Iemanjá está com o bebe Benjamim, hoje Tata Poco do Terreiro

Finalização da Gira da Praia, 2014, que também encerrava o ano de trabalhos.

Já estávamos no ano 2015 quando não tínhamos mais o espaço da garagem


- pois Mãe Kiki mudou-se - para o desenrolar das nossas giras, consultas, banhos e
39

cuidados espirituais, cada estudo era realizado em um espaço: o primeiro deles foi
na casa de Mãe kiki, no Bairro Catiara, em Amargosa, onde os filhxs passaram por
um banho energizante, feito de frutas. Após esse estudo já ficavam marcados os
outros espaços para realizar as apresentações e debates das outras temáticas.
Para realização de giras de mata, de cachoeira, de mar, de pedra e fogo e de
eres- entendidas como fundamento de Umbanda, procurávamos espaços na cidade,
especialmente em espaços naturais, de propriedade privada (pedíamos autorização
ao dono) e/ou nos aventurávamos nas matas, cachoeiras e praias para realização
do culto. Das serras, cachoeiras, rios, fazendas, praias e arvores é que o TUVA se
constituía, entre giras da mata, do rio, da cachoeira, de praia, de exus e pombogiras.

Gira do rio em maio de 2015 e Gira de Vunji/erês em set. de 2015, em São Felipe, propriedade privada

Preparação da Gira de Cachoeira, abril de 2015

Utilizávamos também um espaço ao ar livre de um terreno não cercado no Bairro


Rodão, em Amargosa, embaixo de uma jaqueira frondosa para realizar consultas e
40

colocarmos os pés na terra. Bartira dizia que era preciso colocar os pés no chão
para que as energias negativas fossem dissipadas. Entre folhas e lagartas de fogo,
que eram costumeiras nas árvores, recebíamos as pessoas e filhxs para conversas
nas tardinhas e manhãs. Nestas andanças que o Terreiro se consolidou.
Durante este período a cabocla Bartira foi nos ensinando que éramos parte da terra
e a ela devíamos honrar com a vida e a luta. Fomos aprendendo o nosso lugar na
relação com outros seres vivos e, especialmente, ela dizia da necessidade de
sempre estarmos ligados aos fundamentos dos ancestrais.
Uma das experiências marcantes em nosso coletivo foi, quando decidimos realizar
nossa gira “itinerante” nas matas, nome dado por alguns irmxs.

Área da primeira gira da mata. Fevereiro de 2015


Foi nas matas, cultuando caboclos que pedíamos forças para seguir, ali,
juntamente com o cantar dos pássaros, o soar do atabaque, foi pelo encantamento
que subimos serra, para chegar até esse espaço. Acordávamos cedo, pegávamos a
condução alugada na cidade8, mas em alguns pontos o carro não podia passar por
conta da estrada. Ali íamos caminhando, cantando e pedindo.

Caminho do Ribeirão, Amargosa, Gira do rio, abril 2015

8
O motorista Aurelino que sempre nos conduzia também faz parte de nossa história
41

Seguindo os espíritos ancestrais percorríamos esse caminho. É como nos diz


Eduardo Oliveira:

Os ancestrais, por conseguinte é a referencia cultural para orientar


as ações no grupo. Quando a ancestralidade atravessa dimensões,
significa dizer que o ancestral detém a memória do grupo e é sua
principal invenção na construção de vida comunitária saudável. Os
ancestrais e a natureza estão para a comunidade assim como o leito
para as águas do rio. “São “seus “guias” sua” visão”; sua sabedoria e
direção. (Eduardo Oliveira, 2007, p.266).

O direcionamento do TUVA sempre foi a força ancestral, o fio condutor da


caminhada do nosso terreiro sempre foi Matamba, Bartira e os caboclos da sua
linhagem que, com a força do vento, da chuva, da pisada do tore9, nos mostraram
com quem e por quem caminhar.
Os rituais até início de 2016 seguiam princípios da umbanda, orientando-se
pela valorização do caboclo brasileiro, de princípios cristãos e orientação da religião
dos orixás e/ou Mikisi. Havia uma mistura entre a devoção aos Orixás, entidades e
ancestrais. Não é simples, deste modo, falar de forma linear desta religião brasileira
do século XX, cuja dinâmica e exercício litúrgico não se define por uma só doutrina.
Podemos dizer que a umbanda tem proximidade com o candomblé, principalmente
dos ritos de angola e caboclo, mas que cultua também orixás, além de incorporar
elementos espíritas cardecistas e católicos.
É uma religião que nasce em um período de mudanças importantes em
nosso país, após a abolição da escravatura e proclamação da República. No século
XX é que tais práticas dispersas se firmam com nome próprio e práticas específicas,
dando origem à Umbanda como conhecemos hoje. Santos (2014) traz que o
surgimento da Umbanda coincide justamente com a consolidação da sociedade
urbano-industrial, ou seja, um momento de mudança cultural que se deu a partir
integração do mundo religioso afro-brasileiro com a moderna sociedade atual, que
resultaram numa nova religião através da hibridação cultural. Tais práticas religiosas
já existiam em diversos pontos do Brasil, como no Rio de Janeiro, São Paulo e Rio
Grande do Sul, quando teria sido anunciada em 15 de novembro de 1908 pelo
Caboclo das Sete Encruzilhadas incorporado no médium. Em sumo teria nascido a

9
Os caboclos do terreiro dançam o tore à sua forma.
42

umbanda. Podemos dizer que é uma religião baseada nos orixás africanos trazidos
pelos nossos irmãos/as negros/as, assim como nos rituais praticados pelos
indígenas.
Segundo Rubens Saraceni (2008) a palavra “umbanda” deriva de “m´banda”
que em kibundo significa sacerdote ou curador. Por isso que quando questionamos
qual a origem da Umbanda, de acordo o autor, é uma religião nova, é a herança
religiosa africana, que nos legaram os nossos/as irmãos/as negros/as trazidos de
além-mar durante o período escravagista. No entanto a Umbanda nos religa às
nossas afinidades ancestrais. È uma agregação de todos os espíritos, que
harmoniza o ser com seu grau de consciência na medida em que não exige a
unificação da forma de pensar.
Ao trazer um pouco da história da umbanda, percebemos a relação da
mesma com candomblé de angola bantu, por meio da valorização do caboclo.
Contudo, há de se destacar que os processos de formação da umbanda e
candomblé se diferenciam de modo bastante severo. O candomblé de Angola é
praticado por uma Nação de candomblé e constitui-se por uma maior linearidade
doutrinária e identidade de rituais entre os terreiros, bem como a defesa de um
legado que unifica os terreiros e suas práticas, vinculados à história dos povos
bantus.
A constituição do TUVA estava assim ligada à umbanda, mas eis que a
Cabocla Bartira diz, por volta de meados de 2015, que a casa precisava voltar-se
aos seus fundamentos e que estes eram os de Angola, ainda antes de conhecermos
o Terreiro Caxuté. Ainda dizia que precisaríamos de um chão. A cada dia
percebíamos a necessidade de termos um espaço fixo para nos reunirmos, o nosso
barracão e nos firmarmos na cidade. Juntamos-nos em ações coletivas para a
construção. Essas ações consistiam-se em rifas, bingos, venda de sopas,
organização de bazar, dentre outras coisas. Constituímos um grupo de filhos do
terreiro chamado de M´uamba e que realizava (realiza) as vendas em eventos e
espaços que podíamos.
43

Grupo M’uamba na Conferencia da Negritude,


em 2015, no Centro de Formação de Professores
na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)

Feijoada em 2017, no bar da Luza

E toda essa organização se dava pelo coletivo: construir de forma coletiva é


gerar movimentos, e o movimentar é sair da zona de conforto. Potira (2017) contribui
com isso quando diz que a prática que representa o coletivo e seu povo ocorre nas
ações que a gente faz pra arrecadar os fundos da construção: “(...) eu vejo que tudo
ali é importante, não vejo uma coisa menos ou mais”.
Açucena (2017): “(...) hoje a minha relação com o TUVA é de construção, eu
gosto só de construir o TUVA”.
O TUVA foi ganhando forma, fomos levantando dinheiro, começamos a
construir e ajudar em alguns momentos da construção, para pudéssemos ter um
espaço para desenvolvermos nossas atividades. Enquanto construímos
realizávamos giras “itinerantes”. Seguíamos a cada desejo e sinais de Bartira.
44

Capinamos, cultivamos o chão, colocamos telhados, carregamos areia, estávamos


fazendo nosso caminho com nossas próprias mãos.

Construindo terreiro, 2016

Dia de trabalho em 2016. Fossa séptica biodigestor construída por nós

Construindo assentamentos de nkisi e telhado, em 2017


45

Mametu Kinsaba plantando ervas – práticas agroecológicas

Certo dia apresentando esse meu projeto e discutindo alguns textos,


juntamente com outrxs estudantes, a minha mãe e orientadora me diz o seguinte:
Bartira quer conversar com você, e será hoje à noite. Saí preocupada, tentando
pensar no que seria essa conversa, até que chega a noite. Fui para casa da mãe.
Chegando lá, Bartira contou-me das inquietações e dos questionamentos da minha
mãe, relacionados a fundamentos religiosos e que ela só conseguiria dormir no dia
em que tomasse a decisão, e que eu a ajudaria naquele momento. Pensei variadas
maneiras, mas não sabia o que dizer, respondi que estaria ali para ajuda-la em
qualquer decisão, enquanto filha e cambone10. Ela olhou para mim e diz:

Minha decisão eu já tomei, basta só minha filha toma-la também!


(referindo-se à mãe Kiki). “Filha, guarde isso com você, um dia você
me perguntará porque estou lhe dando isso?! Curiosa, perguntei isso
é folha de quê, mãe? Ela riu, com seu charuto sobrou fumaça que
encobriu a folha e respondeu: isso é folha de gameleira!”Recebi, e
guardei comigo, até hoje!

Passa um tempo, não muito distante, melhor dizendo alguns dias, eis que a
minha orientadora convida alguns estudantes que pesquisam ancestralidade para

10
Pessoa que acompanha a entidade em consultas e zela pela entidade sendo seu principal
instrutor e confidente
46

irem à primeira reunião da III Vivencia Internacional na Comunidade Caxuté. Lá


estava eu e mais uma orientanda, chegando ao espaço, fomos bem recebidas, ainda
sem jeito por não conhecer as pessoas que se faziam presentes, mas bem
receptivos e atenciosos conosco.
Começando a reunião nos apresentamos, falamos de nossas pesquisas, de
que terreiro éramos e seguimos com as pautas que seriam pensadas para o evento
em agosto. Ao findar a reunião, fomos convidadas a bater kubetamakó na morada
de kitembo. De repente o Tata da casa fala assim: “é aqui que a gente pede força e
nguzu, é tocando nas suas raízes que entramos em sintonia”. Ele pediu que
olhássemos para cima, e tentássemos contemplar a beleza da gameleira. , Fiquei
pensando... essa é a arvore da folha que Bartira me deu, que arvore bonita!
Permaneci quieta e pensando no quão imensa era aquela árvore: causa tontura ao
ficar olhando para o topo, que era infinito, pois eu não conseguia ver o fim.
Finalizamos a reunião. Eis que o pessoal resolve tirar uma foto nossa sobre a
proteção de kitembo e fazer um pedido logo após.

Aos pés da gameleira do Terreiro Caxuté

Tudo começa finalmente a desenrolar, a curiosidade, o relato e a experiência


desperta o desejo em outrxs irmxs a irem à segunda reunião. Nessa segunda
reunião a dinâmica já foi outra. Lembro-me da Mametu dizendo que ia conversar
com a nossa mãe, não sabíamos nem do que se tratava (e nem ela!). Terminamos a
reunião e ficamos aguardando por ela. Retornamos para nossa cidade e dias depois
foi convocada uma reunião, com todxs xs filhxs do terreiro. A reunião foi conduzida
por Bartira e seu Serra Negra que falavam que nossos fundamentos eram de
angola, que logo entenderíamos.
47

Começou o rebuliço, alguns se angustiaram, por já compreender toda a


dinâmica existente na umbanda. Outrxs ficaram felizes, mas todos, por amor e
confiança nos guias decidiram caminhar. E é nesse desenrolar dos fios que estamos
nós, seguindo nos fundamentos de angola. Potira (2017) relata que:

A gente mudou, eu acho que foi na verdade um encontro, eu acho


que quando Bartira trouxe a nossa mãe de santo de tão longe, que
veio de outro estado, para Bahia, eu acho que ela sabia o que tava
fazendo, e nesse percurso e nessa caminhada, ela passou pela
umbanda, porque ela precisava aprender e resgatar alguma coisa lá
e agora a gente tá nesse segmento de angola, que no meu ponto de
vista foi um encontro, não só de kiki, como do povo que acompanha
ela, principalmente de Mametu Bartira. Eu sinto uma nova era, uma
nova fase do TUVA, mas uma fase com mais fundamento, eu sentia
falta do que eu vejo agora, sentia falta na época que a gente era
apenas Umbanda.

A mudança das águas entre Umbanda e Candomblé de Angola, acontece em


meio a III Vivencia Internacional no Caxuté, onde pisamos pela primeira vez em um
terreiro bantu indígena. Lá sentamos debaixo da gameleira e o sacerdote da casa
pediu que fizéssemos um pedido ao tempo. O Tempo que, segundo Caetano
Veloso, na música "Oração ao Tempo", é "compositor de destinos" e "tambor de
todos os ritmos". É segundo o ritmo do tempo que percorro a construção dessa
cartografia. É com a força da cachoeira, com o soprar do vento e com o girar do
Tempo que vou compondo o meu destino e o do TVA/Caxuté, nesse desdobrar que
vou a seguindo as batidas tocadas pelo ritmo da vida.
E com o ritmo, e contando com a ajuda das observações, das entrevistadas,
filhas do terreiro que acompanharam desde o inicio dos estudos cardecistas até o
atual momento, por estar falando de um terreiro com fundamentos de angola. Hoje,
nosso terreiro é extensão do Caxuté, nossa mãe foi iniciada no Candomblé em
2017, mesmo tendo uma feitura de umbanda, cumpre seu período de muzenza e
nessa passagem de água é notória a diferença e força dos ancestrais na vida dela e
de nosso Nzo.
Açucena (2017) conclui que existem algumas diferenças sim, não só
estéticas, mas também energéticas. Talvez a Umbanda seja mais pesada no trato
físico dos médiuns do que o que nasce hoje no TVA. Eu não sei o porquê que se dá
isso, mas energeticamente parece que as coisas são mais brandas também e não
era antes.
48

2.2 BANHANDO-SE DE AGUAS DE ANGOLA

Gameleira, ancestral do Nzo Ventos de Angola, 2016, ao ser plantada

Gameleira do Caxuté

Banhar-se nas águas de Angola, é percorrer o fio do tempo. E foi tecendo


esse fio que nosso coletivo se fortaleceu. Foi caminhando na força do vento que
desembocamos no Caxuté. E lá Mãe kiki entrou, dançou com o tempo, recebeu a
força necessária. Pois, fundamento é força para lutar pelo povo negro e indígena,
pelos que não tem terra.
49

Matambale nas águas de Angola


Na umbanda nasceu o coletivo, nas águas de angola ele se fortaleceu. Nkisi e
caboclo é força, luta, resistência. Lutamos para nos apropriar da terra que era nossa
e nos foi tirada pela colonização. Sem luta não temos terra, não temos tradição. Se
não lutarmos não teremos memória.
Quando nos banhamos nas águas de Angola recebemos memórias, e essa
memória é a coleção das experiências no Tempo. O tempo de Mãe kiki chegou! Ao
banhar-se nas águas do Tempo nasce Matambalê, ao deitar na dixisa a memória do
seu povo é resgatada e lá que se têm os segredos de luta.

Matamba maio de 2017


50

Nesse processo de fortalecimento dos fios de Tempo é que aprendemos os


ngorossi. Em ritual, nos sentamos na dixisa, acendemos a muila e arriamos a mesa
de alimentos ofertada ao nkisi. Esse é o momento de sintonia, de proteção e
fortalecimento que realizamos a cada mês em nosso terreiro. Lá aprendemos com o
nkisi sobre o tempo e sobre fazer-conhecer. Ao cantarmos e alimentar o nkisi nos
nutrimos de suas memórias que, por encantamento, chegam até nós.

Mesa de Vunji, setembro de 2017

Mesa de Matamba, julho de 2017

Do mesmo modo acontece com as kizombas de caboclos, ritual que é feito


por filhxs e caboclos. Ali todxs se reúnem e sambam, partilham do seu ngudia com
xs filhxs e visitantes. A kizomba é festa, é alegria do resgate do seu povo. A festa é
oferecida para comemoração de ‘aniversário’ de caboclo’ em tempos de colheita.
Comemora-se o pé firme no chão pisado pelo caboclo brasileiro.
51

Preparação para festa da cabocla Bartira, em 2017

Casa de caboclo

Acontecem também os atendimentos realizados pela cabocla Bartira e Pedra


Negra, que são chefias da casa. Ali, eles realizam trabalhos de cura, de força e
energia. Banhos são feitos com ervas que são colhidas conforme a lua, o horário e
que são permitidas para aquele ritual. Geralmente quem prepara os banhos é a
Mametu kinsaba ou a cabocla. Matambalê, com a permissão de sua Mame’tu cuida
de seus filhxs quando preciso.

Ervas maceradas pela cabocla Bartira para banho de tratamento de filhxs


52

Por ordem da Cabocla Bartira também realizamos mensalmente o


“Conversador”, atividade de gira de saberes motivada por temas de diálogo com a
Comunidade de Amargosa, aberta ao público e que pretende mostrar outras formas
de conhecer o mundo e fortalecer a luta do povo negro. As conversas que aí
acontecem dizem respeito à inserção do terreiro em temas importantes para a
comunidade. Nos “Conversador” todxs podem falar e contar sobre sua experiência
com o mundo, certos estamos de que todxs tem o que aprender e o que ensinar.

Além das atividades rituais que realizamos, o Terreiro Ventos de Angola


recebeu o convite para representar povos de terreiros no Plano Plurianual (PPA) do
município de Amargosa, onde participamos de audiências nos bairros onde xs filhxs
53

moram. Ali, juntamente com outrxs representantes, construímos propostas e


alianças voltadas para nosso povo negro e de terreiros. Participamos da abertura
que aconteceu na Câmara de Vereadores da cidade. Estiveram presentes alguns
filhxs da casa e nossa mãe Matambalê.

O Nzo Ventos de Angola no PPA

O terreiro também tem representação no Conselho Municipal de Educação,


na pessoa de Mãe Matambalê. A inclusão se deu por meio de sorteio de
representantes de grupos religiosos. A atuação do terreiro se dá na dimensão do
enfrentamento ao racismo religioso que constitui também as práticas educativas.
Desse modo, vamos nos afirmando como coletivo negro indígena e dando
continuidade à construção física do terreiro: construímos a casa de caboclo,
assentamentos de nkisi, ndemburó, bakise de Matamba.
Vamos seguindo os passos do tempo, vamos caminhando. Nesse percurso
estamos nos constituindo como terreiro de Angola. Um ano depois da iniciação de
nossa Mãe, da Makota de Matamba, Nroxibelaci (dijina) Greiciane dos Prazeres, e
da muzenza de Nkosi, Hoxicongo lembasi(dijina), Liamara Cararo; Mametu
kafurenga iniciou outros filhos Caxuté/Ventos de Angola para constituir fundamentos
do terreiro, que se prepara para servir à tradição. Deste modo, o Nzo Ventos de
Angola prepara-se para ser um terreiro de candomblé de Angola na cidade de
Amargosa. São eles:

Matambale N´zaze Angolaci – Ana Cristina Nascimento Givigi (Mametu Maionga/


Mametu Ndengue de todos os feitos)
Hoxi Congo Lembasi - Liamara Cararo Pires
Nroxibelaci -Greiciane dos Prazeres (Makota)
54

Ivula kavungueci Hongolossimbi Dya Nzambi - Fernanda Eduarda de Araújo Nobre


(Mãe Criadeira)
Lumbando Zarassangi- Robervaldo Neri dos Santos Passos (Tata Kambondo)
DandaKatu kongógirô - Manuela Mercês dos Santos (Makota)
Kafunge Kafulajo – Benjamim Ferretti Givigi (Tata Pocó)
Kokuleroxi Amazi Kalunga Dya Nzambi - Priscila Gomes Dornelles (Mametu de
Dandalunda)
Luinda Katabalamazi D’ua N’zambi – Francelle Ferretti Salvador (Mametu de
Luango)
Kaiango lebissibi Sitámba D'ya N'zambi – Vania Vitória Moreira (Mametu Amazi)
Lubuko Marvillassange Dya Nzambi – Manoel Osvanio Carneiro Jr.
Zumbalassange N zambi - Roquelina de Oliveira Santos (Mametu Mpemba)

Variação de Membros do
Nzo Ventos de Angola
2011
Quatro membros
2012

Seis membros
2013

onze membros
2014

vinte membros
2015

Vinte e sete membros


2016

Vinte e cinco membros


2017
55

Trinta e um membros
2018

Trinta e sete membros (onze


filhos iniciados no candomblé de
angola)

Hoje o Nzo Ventos de Angola, juntamente com o Terreiro Caxuté, se unem no


caminho tempo para lutar contra o racismo religioso.

2.3 AS MATAS E CIPÓS ENTRELAÇADOS DE REI DAS NEVES E BARTIRA:


UNIÃO DE PEDAGOGIAS

Kafurenga e suas filhas: Matambale e Hoxi Congo Lembasi

Foi no percorrer do tempo, no bailar das folhas com a força do vento que as
matas e cipós se entrelaçam. Nos quintais que estão os segredos, o assoviar dos
ancestrais. Produzindo pedagogias que visam outros modos de aprender vamos nos
constituindo enquanto Terreiro.
As práticas pedagógicas no Caxute se entrecruzam com as práticas do TVA/
Caxuté para valorização do saber do povo preto e indígena, uma vez que muito foi
apagado e invisibilizado.
56

Num terreiro quando acontece a pesca o marisco, a produção de artesanato,


colheita do dendê, preparação da pipoca para nkisi, plantio das nsabas, fabricação
da rede, pinturas, realização de conversas de um tempo cuja duração é outra
conversador, danças e brincadeiras estamos educando e afirmando saberes que
são percebidos e reafirmados como praticas educativas. Ou seja, o terreiro não nega
a multiplicidade de seu povo, pelo contrário pauta-se nisso para ensinar e aprender.
Nos quintais que tecemos nossas histórias, como mulheres negras e
indígenas. Ao realizarmos o Conversador, reafirmamos nossa autoria sobre nossa
própria história e busca de nossas memórias. Pensamos juntxs sobre a
discriminação e a desigualdade racial e racismo com o intuito de reviver em nossa
memória àquilo que nos traz um novo caminho ontológico.
Ao escutar o barulho das nsabas e o entrelaçar do cipó no tronco da árvore
que percebi que as praticas campesinas e agroecológicas se cruzam para que o
povo campesino possa produzir seu próprio alimento, uma vez que o
envenenamento da agricultura atrapalha a relação vital com a terra.
A prática campesina e agroecológica indicam os cuidados de nossa
ancestralidade com o mundo. É nossa maneira dinâmica e coerente de ser parte da
natureza, respeitando a biodiversidade, seus ciclos e seu equilíbrio. É uma de
nossas formas de luta contra o avanço do capitalismo que causa a concentração de
terras e o uso desenfreado de venenos produtivos para o lucro. Desta forma vamos
nos inserindo na defesa das águas, da terra e nos posicionando contra as formas
capitalistas de se relacionar no mundo. A construção ancestral é também política,
social, cultural, popular, econômica, estratégica e de classe, uma vez que para que
existam os terreiros enquanto espaço de vivencia das tradições e de alimentação
das famílias torna-se necessário reviver modos de cultivo e de vida que instaurem
lutas sociais. Por isso, a pedagogia desenvolvida no terreiro é decolonial.
Essa relação junto ao coletivo, nos permite fazer alianças com a comunidade
no intuito de fortalecimento, resistência e demarcação da história dos povos
minoritários. Atualmente, o TVA tem realizado O Conversador (nome dado pela
cabocla Bartira), como dissemos, pensando no partilhar e na força ancestral que se
faz presente em nossas vidas e que se traduz como força educativa. Neste espaço
vivenciamos saberes trazido pela comunidade local e compreendemos que sem
folha, água, terra não tem candomblé. É lá que escutamos a voz dos nossos
ancestrais quando realizamos um samba e partilhamos as trajetórias das mulheres
57

pretas. Essa é uma das diferenças desse atual contexto do nosso nzo. Essa
confirmação é dada na fala de Açucena (2017).

Eu acho que a pratica é de fazer alianças com as comunidades


quilombolas, indígenas, de matriz africana, mesmo que não sejam
candomblé, mesmo que não sejam umbanda, mas até mesmo daqui
de dentro de Amargosa a gente sabe que tem muitas rezadeiras. Eu
acho que essa aproximação, ela acaba fortalecendo o conjunto (
Acuçena 2017).

É na tessitura de fortalecimento com a comunidade, e com as alianças entre


povos de terreiros, campesinos, indígenas e quilombolas que irei demonstrando
como a trajetória bantu indígena e suas formas de transmissão dos conhecimentos
nos terreiros de Candomblé, tem contribuído para o crescimento educacional,
cultural e espiritual das pessoas.
58

3. APRENDER COM ANCESTRAIS, VIVER NO COLETIVO

Como disse o Nzo Terreiro Ventos de Angola está em formação desde 2011,
sendo que esta caminhada coincide com o aprendizado e amadurecimento coletivo.
Para muitos de nós, o Nzo é a primeira experiência de formação de coletivo e de
eleição de pautas prioritárias para o exercício da vida pública. Chegamos aqui, de
vivências distintas, para construirmos juntos a nossa relação com a terra, com a
religião, mas sabíamos que tratava-se de aprender com o mais velho e de manter os
ouvidos atentos à terra. Potira assim diz:

Para mim a experiência mais válida foi o coletivo, essa coisa de você
vivenciar uma religião, essa coisa de você construir coletivamente,
porque desde aquela época até os dias de hoje, tudo que a gente
construiu foi com aquele grupo e assim na gente não encontrou nada
lá pronto.

Um terreiro é lugar de povos para quem os direitos foram negados,


deserdados da terra e excluídos de muitos espaços sociais. Assim sendo, o Nzo é
constituído de diversos povos que foram esquecidos, negados, apagados pelas
práticas de invisibilização da modernidade e, torna-se um espaço que resiste e que
socializa sujeitos.
É no nzo que me constituo, é no nzo que aprendo as astucias da cobra, é no
correr da água que vejo meu corpo bailar. São estes elementos constituidores da
ancestralidade que nos levam a pensar de outro modo e geram um funcionamento
político que se difere do cotidiano. Práticas pedagógicas funcionam num terreiro
ancorado na vida ancestral. Fabricam-se vidas a partir de cosmologias que diferem-
se da lógica que ancora a sociedade capitalista:

“A fabricação é cara ao que vamos chamar de ancestralidade”. Trata-


se de um fazer transversal à temporalidade ocidental que (re)
organiza os signos e temporalidades a partir da realidade construída
dos povos sobre seu lugar e seu território. As escolhas estão imersas
nas relações de poder e suas contingências, lembranças e
possibilidades, mas nem por isso mitificadoras, contudo
complexamente atentas a um combate nem sempre vitorioso. A
educação é produto desta luta ancestral na fissura colonial (GIVIGI,
BRANDÃO, SANTOS, 2016, p.2)
59

Ao constituir-se num lugar político que precisa ser inventado para resistir, o
terreiro cinde a hegemonia colonial e cria negociações e resistência, ao mesmo
tempo em que fissura a lógica (BHABHA, 2003). Não podemos esquecer que o
processo de funcionamento de um terreiro gera repetições de rituais e práticas que
pedagogizam o corpo para inserção naquela comunidade. Este aprendizado está
fortemente ligado àquilo que chamamos de ancestralidade, mobilizadora de signos,
memórias e fabricação de significados para a relação do ser com o mundo.
Desde cedo, quando os Mikisi definem que determinado sujeito será o Tata
kambondo ou uma Mam’etu ndengue, uma Mametu ou Tata Kinsaba11, etc, isto
implica na construção de uma relação distinta com o próprio corpo que definirá
possibilidades para cada um.
No espaço do terreiro as funções dizem respeito a um aprendizado. Quando
se aprende o que é ser um Tata kambondo, por exemplo, se faz por meio da
observação silenciosa, e da experiência corporal singular. O que é vivenciado no
seio da família de santo/nkisi, constitui tradicionalmente a unidade social da cultura
de um terreiro, cujas relações podem se sobrepor, ou não, aos laços sanguíneos.
O aprendizado nos terreiros relaciona-se com o tempo que é o senhor dos
caminhos e da autoridade. Nada e nem ninguém vence o tempo, que delega a cada
um que se propõe a caminhar àquilo que é próprio de cada tempo. Nos terreiros uns
aprendem com os outros, do mais velho ao mais novo, de acordo com o processo
iniciático na comunidade. As Mametus e Tatas ensinam e aprendem na convivência
de um com os outros.
Valeria Amim (2011), mostra que as relações vão sendo aprendidas no
seu tempo e são aportadas na tradição oral e nas genealogias memorizadas, isto é,
referem-se à memória dos mais velhos e de praticantes do culto. Observa-se que
essa forma de comunicação, a oralidade, se constitui como instrumento de
motivação entre o grupo, estabelecendo uma ligação com os antepassados e sua
cultura.
É através desse elo que aprendemos, que nos fortalecemos e que nos
tornamos parte da rememoração dos nossos ancestrais. È nesse chão de Kitembo -
Nkisi central para a constituição do Terreiro Caxute - que nos movimentamos. É
nesse elo que entramos em sintonia com o sagrado da terra, da cachoeira, do vento,

11
Cargos de um Terreiro de Angola
60

das nsabas( folhas), da lama, do trovão e da kalunga grande ( mar). Segundo Givigi,
Santos e Brandão (2017), a ancestralidade nos providencia caminhos de misturá-los,
construindo significações sobre a vida; organiza memórias, objetos, patrimônios,
histórias, contos e cantos que resistem a um modo único que se impõe a outros.
Essas memórias são caminhos que nos permite identificação com os
antepassados e nos permite também acessar histórias e vivencias que são
apagadas da educação cotidiana. Além do contato com a natureza, temos um
encontro ancestral afro-indigena que nos permite transitar por alguns rituais como as
quizombas, as mesas de nkisi, o culto de caboclo, o samba de caboclo e consultas.
A figura do caboclo- o indígena brasileiro- nos terreiros é de muita
importância, talvez por apresentar uma característica rebelde que não tem medo,
além de desenvolver o papel de mensageiro, anunciador para quem respeita seu
valor. Embora não seja cultuado em todas as nações, os caboclos são entidades
fundamentais nos terreiros de angola, pois nos ensinam como desenvolver certas
astucias e são líderes de trabalhos ligados às nsabas, aos banhos e remédios.

Os caboclos sempre aconselhavam antes da quizomba, as ervas os


pontos energéticos através do uso de ervas e de banhos. Desse
terreiro de onde nós viemos, a gente tomava banho todas as giras,
antes da gira, nós tomávamos banhos de algumas plantas, alguns
tomavam banho de espada de São Jorge, outros tomavam banho de
rosas brancas, outros tomavam banho de aroeira. Açucena (2017)

Bartira que é uma cabocla, que é a guia, a chefe, que sempre nos
conduzem no utilizar as ervas. Ainda mais agora que a gente ta
vivendo o angola, o bantu e a gente contempla os nkisi, antes a
gente contempla os caboclos e isso é o importante. Potira ( 2017)

Essas narrativas são percebidas a partir dos rituais que compõem


essas histórias e os papéis que são desempenhados. Esse culto tem característica
de reconhecimento pelos elementos das suas práticas, como traz Lody (2006) o
caboclo assimilou valores pertinentes às divindades africanas, estabelecendo
intercâmbio de influências quando as divindades dos terreiros também foram
transformadas em função da imagem do Caboclo e sua forte penetração.
Portanto, a ancestralidade afro-brasileira se faz presente nos rituais do
terreiro de modo que se aprende com o jeito que estes povos cuidam, criam e
relacionam-se com a terra.
61

Aprender com a terra é alcançar uma cosmologia que foi dilacerada pelo
poder colonial e inferiorizada em nome da civilização européia- que submete os
povos colonizados-, mas que se restitui com a luta e movimentação dos povos
tradicionais pela legalização de suas terras, pela defesa da água e pela defesa do
uso comum da terra. Obviamente, estas cosmologias afrontam o modo capitalista de
produção que encontram na terra produção de commodities agrícolas (SAUER,
2013) de modo que a racionalidade de povos negros e indígenas opõe-se à
propriedade:

Embora a agroestratégia capitalista seja construir a imagem de que


povos tradicionais são obstáculos à modernidade, trata-se de
apropriar-se de volumes maiores de terra sem quaisquer barreiras, o
que leva ao desmonte de marcos legais de suas terras. Para
enfrentar estas estratégias do capital necessitamos de retomar e
legitimar discursos destes povos campesinos e de suas cosmologias
que tem na terra um espaço de vida e não de propriedade. A
desvinculação da ideia de propriedade e o fortalecimento do uso
comum da terra é cada vez mais premente para pensarmos a
questão agrária.(GIVIGI, OLIVEIRA, 2018, p.3)

Assim, os terreiros assumem um papel importante na luta dos povos


tradicionais e no entendimento da relação com a terra, tornando-se territórios
visados pelo modo capitalista de produção e ocupando também importante papel na
problematização da questão agrária brasileira. Se a estrutura agrária assegura uma
hierarquização dos povos, garantida pelo poder dado aos proprietários da terra,
nada mais obvio do que inferiorizar povos que dela fazem uso comum e para os
quais o valor da terra é ritual e necessário para manutenção das tradições, como o é
para o terreiro.
Lendo Santana Filho (2018) que nos diz ser necessário manter a
invisibilidades de povos tradicionais , GIVIGI, PEREIRA (2018, p.3) dizem ainda:

Tornar os povos indígenas e negros invisíveis ao processo de


ocupação e uso da terra faz parte da estratégia de naturalizar a
propriedade privada da terra, uma vez que suas formas de ocupação
e territorialização se interpõem e se contrapõem ao uso privado e
encerram cosmologias que tem a terra como princípio ancestral de
constituição da vida política e social de suas comunidades.

Desta forma, temos caracterizado os povos de terreiro vinculados ao Caxuté e


ao Ventos de Angola como campesinos, não só pela aliança e concepção do uso
62

comum da terra, mas também por conta da sacralização das matas, das águas, de
seu uso ritual e pela contrária posição ao uso de agrotóxicos e envenenamento da
terra. Trata-se de enxergar-se como terreiros do campo. Assim, utilizando Jussara
Rego (2009), os autores GIVIGI, BRANDÃO e SANTOS (2017, p 3) dizem:

Num terreiro do campo, no espaço “mato” estão os monumentos não


edificados que compõem a mata ritual. Encontram-se desde as ervas
que são colhidas para utilização no culto, com fins de composição de
ambientes, rituais iniciáticos, banhos, entre outros usos, até os
arbustos e árvores consagrados aos orixás, sendo até identificados
como tais (JUSSARA REGO, 2006).

No Terreiro Ventos de Angola este espaço vem sendo construído através de


mutirões de capina, plantio, e pretende-se formar um território de defesa dos povos
tradicionais e de preservação de ervas rituais, bem como espaço de luta permanente
dos povos negros e indígenas.
Os terreiros também são espaços político ontológicos uma vez que o sujeito
que é negado/invisibilizado socialmente aqui pode se reconhecer como ser e como
autoridade. Vivencia-se a ancestralidade como condutora e inspiração para a
formação do ser. O processo de compreender a formação no próprio ser / fazer, não
é uma ação exterior ou que segue modelos impostos, são perspectivas de
mudanças concretas baseadas no legado dos povos. No terreiro cada um encontra
a sua ancestralidade (ela sempre esteve ali) que traz encantamento para a vida,
posto que “ler o mundo é um modo de criá-lo” (OLIVEIRA, 2007, p. 189).
Iara contribui quando diz que:

Penso muito na ancestralidade, penso mais ainda no meu caminho e


o que eu vim fazer aqui na terra. Ou, como eu devo seguir, se não
estou atrasada, diante do tempo que não para nunca, ou se devo
fazer algo mais, sempre penso, penso penso, e como não consigo
parar de pensar não consigo dormir. Sei que muito dos meus
questionamentos, nunca serão respondidos. E então sinto as dúvidas
com muita força dentro do meu coração, o desconforto, a
desconfiança, o medo. Esse último vive a me perseguir o tempo todo.
Tenho medo de envelhecer, tenho medo de estar devagar demais,
tenho medo de dormir, de chorar, tenho medo de não conseguir
cumprir o combinado antes de reencarnar, também tenho medo de
magoar as pessoas, de decepcionar os meus guias, e nunca
conseguir chegar ao fim com êxito.
Em muitas vezes o medo me impede de seguir em frente, é isso é
involuntário. Hoje a expectativa que criei sobre o meu caminhar, e o
nascimento do Nkisi na minha cabeça, se tornou tão grande que já
63

consigo contar o tempo, bem como uma mãe espera a chegada de


um filho, porém neste caso, é o meu coração que aguarda pra bater
acelerado sobre tamanha responsabilidade, não sei se comportarei
tanto amor sendo tão imperfeita. Iara (2017).

De algum modo a ancestralidade dá a Iara uma perspectiva diante de seus


medos e, ao mesmo tempo responsabilidade com sua própria vida ‘encantada’ pelo
amor ao ancestral.
O legado deixado pelos nossos ancestrais nos remete a uma maneira de
viver as coisas do cotidiano: à maneira de como ocorre uma kizomba, a maneira
como é constituída a roda, o posicionar dos filhos, os cânticos, tudo isso são formas
que foram deixadas por nossos antepassados. A comunicação que se tem através
dos espíritos, o manusear das ervas, sendo que nem todos podem fazer este
manuseio, é designado a uma pessoa, justamente por trazer consigo essa herança
ancestral, ou seja, tudo remete a aprendizado e funcionamentos que instauram
lógicas complexas do tempo.
A ancestralidade é fundamental para a o processo de formação identitária e
libertação do ser, é também a relação entre ser e cultura como uma experiência
social de produção do conhecimento que passa de geração a geração. Somé apud
OLIVEIRA (2007) os ancestrais, também são chamados de espíritos.

[...] o espírito de ancestral tem a capacidade de ver não só o mundo


invisível do espírito, mas também este mundo. Assim, serve como
nossos olhos dos dois lados. É esse poder dos ancestrais que nos
ajuda a direcionar nossa vida e evitar os abismos. Espíritos
ancestrais podem ver o futuro, o passado e o presente. Eles veem
dentro e fora de nós. Sua visão cruza dimensões (Eduardo Oliveira,
2007, p. 257).

E são esses espíritos ancestrais que nos dão um direcionamento de que


caminho seguir é na realidade os “olhos” de determinados grupos que se
comunicam por essas dimensões. Ainda de acordo com Oliveira (2007):

Os ancestrais, por conseguinte é a referencia cultural para orientar


as ações no grupo. Quando a ancestralidade atravessa dimensões,
significa dizer que o ancestral detém a memória do grupo e é sua
principal invenção na construção de vida comunitária saudável. Os
ancestrais e a natureza estão para a comunidade assim como o leito
para as águas do rio. “São “seus “guias” sua” visão”; sua sabedoria e
direção. (Eduardo Oliveira, 2007, p.266).
64

Essas concepções nos remetem a questão de que a ancestralidade se faz


presente em nosso cotidiano, é um circulo que não sabemos onde começou e tão
pouco onde termina, são vivências na cultura oral através dos contos de historia,
lendas etc.
A ancestralidade é uma categoria que está fortemente atrelada ao
território africano, cuja sabedoria brota do solo onde a vida se faz e decompõe e se
embebece da seiva que corre nos modos de viver da cultura africana. Isso nos
remete ao baobá e à gameleira, árvores sagradas onde até as folhas representam o
belo e muito respeitada pelos nossos ancestrais e que foi trazida para o Brasil na
época da diáspora.
A escravização do povo negro gerou inúmeras perseguições aos
modos de vida africanos. O comercio de escravos, além de conduzir-los
violentamente e aprisiona-los, intervia na personalidade, na maneira de ser e
principalmente em suas crenças. Suas práticas religiosas foram perseguidas de
todas as formas, humilhados e castigados como forma de "salvar" suas almas, pois
seus cultos eram colocados como práticas diabólicas.
Nesse sentido faz se necessário entender que esses mundos sociais
sejam percebidos não apenas como um mero "reflexo de forças estruturais da
sociedade, mas como um sistema de significados mediadores entre as estruturas
sociais e a ação humana" (GEERTZ, 2001, p.01). Mais ainda, GEERTZ (1989)
afirma que os símbolos sagrados funcionam de modo a sintetizar o ethos de um
povo que se constitui do tom, o caráter, a qualidade da sua vida, seu estilo e
disposições morais e estéticas, nesse caso seria a ancestralidade.
Para que a educação seja receptiva aos modos de ensinar e viver africanos
será preciso educar o olhar, como aponta Oliveira (2007, p 259), pois através do
olhar compreendemos códigos, aumentamos à percepção da maneira de como ver o
outro, e percebemos que vivemos em mundo que predomina a alteridade. Nesse
contexto a educação pode contribuir para que haja a valorização dos ancestrais
como afirma Sara Pain apud OLIVEIRA (2007) “educar é construir sujeitos
semelhantes aos seus ancestrais”.
Existem varias práticas num terreiro que são pedagogias culturais que podem
ser acionadas na escola valorizando a vivencia da comunidade, essas práticas são
construções significadas na paramenta, na dança, na música, na natureza, na
culinária, nos princípios gerontocráticos, sendo que tudo isso é vivenciado num
65

terreiro e que podem ser usados como dispositivos para desconstruir o


silenciamento sobre a cultura de nossos povos. Estas práticas trazem marcações
campesinas (mesmo quando acontecem num espaço urbano) ao lidarem com a
terra, as nsabas, os alimentos como sagrados e fundamentais à socialização e deste
modo, evidenciando a questão agrária brasileira. Marcações que estão na sombra,
consideradas como menores e que só podemos ver seus efeitos quando outro feixe
de poder os traz para reconstituir lapsos que a história ocidental causou na memória.
Refletindo, nas negociações desses dispositivos, Stuart hall (2003) leva-nos a
pensar sobre os pecados e percalços do essencialismo frente à necessidade de não
fixar as categorias identitárias, mas, ao mesmo tempo, tendo em conta que elas são
necessárias, em algumas situações conjunturais, para certos tipos de movimentos e
afirmações políticas e teóricas e, para pensarmos certas questões no âmbito da
teoria social, encontramo-nos em meio à uma problemática paradoxal ainda não
plenamente resolvida, se é que necessita realmente ser resolvida. Deste modo, a
algumas das elaborações de Stuart Hall em Que “negro” é esse na Cultura Negra?
(2003), nos faz notar como o autor constrói toda a sua argumentação de modo a
problematizar como as recriações identitárias do movimento negro onde, segundo
Hall, se localiza de maneira um tanto essencialista “o negro” no próprio movimento
negro, de modo a legitimar movimentos unitários de reconhecimento e aceitação
destas categorias identitárias, de maneira a impulsionar mobilizações que pudessem
modificar a vida da população negra em geral.
É nessa circunstância que Stuart vai mostrar que:

O momento essencializante é vulnerável porque naturaliza e


desistoriciza a diferença, confunde o que é histórico e cultural com o
que é natural biológico e genético. No momento em que o siginificado
'negro' é arrancado de seu encaixe histórico, cultural e político, e é
alojado em uma categoria racial biologicamente constituída, nós
valorizamos, pela inversão, a própria base do racismo que estamos
tentando desconstruir". (HALL, 2003)

Na escola estes ensinamentos e as práticas podem não ser valorizados, nem


serem vistas positivamente. Discutir sobre ancestralidade é, em última instancia,
colocar em discussões as nossas raízes, sejam elas de índios e pretos, reverenciá-la
como modo de acesso a uma história silenciada, apagada por dominações
colonizadoras. Assim, acessá-la é realizar os registros de vidas e caminhadas nessa
roda incessante de aprendizado e crescimento. Esse debate em torno da
66

ancestralidade significa construir respeito à todxs aquelxs que antes de nós abriram
os caminhos e nos deram oportunidade de ficarmos aqui, e isso é, reverenciar a
própria vida.
Uma forma efetiva de agir sobre esta realidade engendrando novos efeitos de
poder é pensar de que modo as vivencias cotidianas do povo de terreiro pode alterar
cenários de exclusão racial. As ações podem ser propostas pelas modificações na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/96), incluindo a lei
10.639/2003 instituindo no currículo oficial de escolas públicas e privadas de ensino
básico o ensino de História e Cultura Afro – brasileira. Posteriormente essa lei é
novamente modificada e acrescenta a temática à questão Indígena (Lei
11.645/2008) - são ações afirmativas que enfocam a promoção da educação como
meio de combate às desigualdades provocadas pela exclusão.
Deste modo, reorganizando subsídios, acrescentando conhecimentos que se
mantiveram escondidos, provocando reflexões que desbancam a centralidade da
cultura hegemônica e europeia, da superioridade de povos e culturas pretende-se
inicialmente ampliar os espaços e garantir os direitos constitucionais de igualdade de
direitos, oportunidades e possibilidades de concorrer pelos mesmos espaços. Falar
da lei 10.639/03 é refletir sobre a cultura afro-brasileira, é perceber que em toda a
nossa trajetória de formação de nação, o Brasil foi um dos países que mais recebeu
escravizados africanos, apesar de ter sido um dos últimos a abolir a escravidão e,
após a abolição, a luta do negro pelo reconhecimento na sociedade tem sido
incessante. Fruto das constantes reivindicações do movimento negro no Brasil, a Lei
nº 10.639/2003, promulgada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, onde
estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos
estabelecimentos educacionais do país (BRASIL, 2003).
Sendo assim, o papel destinado à educação está no debate sobre tudo que
sempre foi transmitido pela escola, sobre a centralidade de uma cultura em
detrimento das demais, de um povo sobre o outro, sobre os processos de exclusão
provocados pelo preconceito e pela exploração, sobre as relações de poder,
históricas, que manteve sempre uma linha divisória entre o negro e o branco, entre o
rico e o pobre, a cidade e o campo, o centro e a periferia.
Não é possível falar de educação sem falar dos povos de terreiros, dos povos
indígenas que tem suas praticas e suas crenças silenciadas nos espaços escolares.
O fruto dessa colonização demonstrada por Quijano (2005), o desenvolvimento nas
67

Américas, das relações sociais ancoradas na ideia de raça, formou identidades que,
até então, não existiam. O colonialismo instaurou as categorias índio, negro,
mestiço, branco, redefiniu outras como português, espanhol e, posteriormente,
europeu, termo que até então somente indicava a procedência geográfica, ou o país
de origem. Com o advento da colonização, esses termos ganharam uma conotação
racial entre as novas identidades.
O autor diz que:

E na medida em que as relações sociais que se estavam


configurando eram relações de dominação, tais identidades foram
associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes,
com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de
dominação que se impunha. Em outras palavras, raça e identidade
racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social
básica da população (QUIJANO, 2005, p. 117).

Outra contribuição importante é do autor Bhabha(2003), quando ele analisa o


estereotipo pensando no efeito causado pela repetição da identificação do sujeito.
Para ele, o discurso colonial negativa e admite, sendo uma forma ambígua de
(re)conhecimento: o que parece imutável provoca efeitos de identificação. O que é
repetido é incompleto, mas enseja a busca de estratégias de afirmação. Da mesma
forma a demonização dos terreiros, a invalidação do conhecimento ali produzido
pela inversão dos elementos intrínsecos ao candomblé provoca a construção de
estereótipos que, de tão repetidos, provocam a ambiguidade da representação, mas
nunca a completa inexistência das práticas culturais religiosas na vida e na história
do Brasil.
Desta negatividade nos valemos para ambiguamente nos fazermos vivos e
provocarmos as afirmações de vida e de cultura. Mas, isso não acontece
voluntariamente, assim, a cultura é um espaço do exercício politico das existências
não colonizadas. A nós cabem as estratégias, que se dão através das linhas de
fugas principalmente nas articulações de lutas dos povos de terreiros. Essas táticas
são alicerçadas nos terreiros a partir da aprendizagem por meio da prática diária
com os conhecimentos que são passados de geração a geração pelos mais velhos e
pelas mais velhas. Prática agregada pelo convívio e experiências acumuladas
durante anos de participação na dinâmica e vivência do ambiente religioso. O tempo
de permanência se configura como meio preponderante para a sustentação dos
68

laços de confiança na transmissão de saberes, cuja importância é relevante na


participação.
Ao pensar nessas estratégias de afirmação, recordo de um dialogo com uma
mametu ria nkisi, que ao olhar para mim, me curvei para tomar a benção, ao me
abençoar, pediu que eu olhasse para aquela estrada, olhei ainda com a cabeça
baixa, logo em seguida ela disse: olhe para mim, minha filha! Levante a cabeça,
meio sem jeito, afinal ela é uma hierarquia, apertou minhas mãos e disse: continue
assim, quem reverencia é reverenciado, eu não sou de faculdade, não tenho o
domínio da leitura e escrita, mais criei muitxs e tudo do que elxs fazem foram
ensinadas por mim. Com a cabeça baixa, agradeci e não duvidei, pois tenho muito
que aprender. Aquela mametu é tradição viva, é preservação da tradição oral. O
saber se aprende, olhando e fazendo com os mais velhos.
As estratégias dos saberes afro-indígenas são feitas através da oralidade.
Como diz Yêda Castro que falando a mesma língua ou língua muito semelhante,
situação que facilitava revoltas e fugas (PESSOA DE CASTRO, 2015). Isso ocorria
por conta do período de colonização, os escravizados que ficavam no mesmo local
de plantações, se comunicavam através da oralidade.
Pensando numa lógica hegemônica que enxerga o outro, fora dos
padrões burgueses, como objeto de discriminação Hall (2009, p.43) “diz que a
cultura é produção”. O debate acerca da compreensão de cultura na esfera desse
sistema-mundo com padrões ocidentais, etnocêntricos e europeus é possível
interrogar como voltar atenção para aniquilar as construções hierarquizadas por
vários instrumentos disciplinares de conhecimento para dominação. Como
desconstruir, ressignificar, reconstruir e construir lógicas opostas à hierarquização de
uma cultura para outra? O ser negro e os cultos afro-indígena brasileiro em vários
lugares ainda o são, vistos como coisa ruim. É provável que a inicial ausência de
ferramentas tenha os induzidos a se valerem do próprio corpo, de seus modos de
ser e de se comportar como depositários de significados. Neste movimento eles
estruturam símbolos, os quais irão configurar uma linguagem. Esta linguagem
simbólica será fundada a partir da cultura da qual são herdeiros e vai servir de base
para estruturar sua religião.
É através destas percepções e primeiras balizações teóricas que meu
trabalho tem como problema os seguintes aspectos. As práticas e saberes
ancestrais demarcadas pelo povo campesino negro e indígena se constituem na
69

escola como práticas pedagógicas? o que um terreiro do campo tem a nos ensinar
sobre educação? a escola aciona as práticas ancestrais? Buscamos perceber como
a escola aciona as práticas ancestrais indagar as tecnologias de controle e negação
das práticas ancestrais.
70

4. O QUE PODE A ESCOLA APRENDER COM O TERREIRO: A EDUCAÇÃO


VESTE NEGRO

O avanço de maior visibilidade socialmente foi a aprovação da Lei 10.639/03,


conquistada através de muitas lutas do movimento negro, que permite e obriga que
os docentes tratem da cultura africana e a história da África com respeito e
reconhecimento. È comum que as religiões de matrizes africanas sejam
estigmatizadas e discriminadas, fruto da falta de conhecimento ou da disseminação
de leituras racistas sobre as mesmas. A Lei 10.639/03, respeitando a laicidade do
Estado, também inclui abordagens sobre as religiões de matrizes africanas, como
importante legado da cultura afro-brasileira, pois não podemos ignorar que os
espaços de terreiro eram/são reservatórios e preservação de práticas que poderiam
ter sido apagadas pela formação elitista e branca do estado brasileiro. Segundo
Borges (2013, p.2) os negros “(...) reafirmaram nos terreiros suas dinâmicas de
conhecimento e posicionamento existencial frente ao mundo, pois foi essa uma das
formas que dispuseram de manter sua humanidade alijada de seu território e
símbolos originais”.
Nos terreiros podemos observar formas de educar e práticas que, dificilmente,
podemos ver nas escolas, mesmo quando a comunidade escolar é majoritariamente
negra. A escola que queremos não é algo fácil de alcançar. A abordagem de alguns
temas, referentes à cultura africana e afro-indígena brasileira – garantidas pela Lei
11.645/08 não é algo que os professores considerem adequado para as discussões
em sala de aula. Abordagens sobre religiões de matrizes africanas são, para muitos,
algo impossível, seja por limitações na formação , seja por limitações políticas e
preconceitos. Botelho (2005) traz que os saberes e conhecimentos de tradição
africana devem ser ampliados e fazê-los migrar do lugar de folclore, do fetichismo,
para o lugar de conhecimento entre as demais disciplinas do sistema educacional de
ensino. A meta e luta é rumo à valorização das questões da negritude, para a
construção de uma prática antirracista nas escolas. Por se tratar de um espaço
democrático, a escola não pode se eximir do debate sobre estas questões,
reconhecendo as diferentes religiões a que pertencem os sujeitos. Não só aos
sujeitos de diferentes religiões, mas os sujeitos de matrizes africanas e campesinos.
71

Percebo isso ao trazer os dados da Bahia onde a sua população é de


14.01.906, dentre essa população o percentual de sujeitos do campo é de 28,53%,
da cidade é da 71,39%, percebemos a discrepância que existe. No nzo as praticas
educam, constituem vínculos, incorporam valores e princípios, reptem-se com rigor e
sistemática, fundamentando o conhecimento neste lugar. Estas práticas produzidas
pelas pessoas do Terreiro, embora não estejam sistematizadas nos mesmos moldes
pedagógicos como conhecemos na escola, educa e orienta. Enfrenta-se por meio
delas todos os entraves de uma formação ocidentalizada, que recusa, folcloriza,
quando não distorce, o conhecimento oriundo de culturas não ocidentais, sobretudo
aqueles tocantes à valorização da população negra, indígena e campesina.
Os terreiros de candomblé ou umbanda são espaços de formação/construção
diferentes daqueles da educação escolar. Fala-se de e de resistência porque agrega
coletivos marginalizados socialmente, para além dos filhxs de santos. No caso do
candomblé sabemos que viajou na diáspora africana e foi recriado em terras
brasileiras. Sua tradição é mantida e ressignificada no cotidiano dos terreiros, seus
saberes são transmitidos no convívio diário assumindo um papel importante na
construção da identidade de seus praticantes e também na sua formação integral.
Objetos, sons e praticas tem sentidos diferentes daqueles cotidianamente
vivenciados nas sociedades ocidentalizadas.
Pensando no candomblé de angola congo, percebermos que são poucas as
fontes que abordam Candomblés Congo-Angola na Bahia, ainda que sejam, nos
dias de hoje, os mais numerosos, conforme nos fala Lucilene Reginaldo (2010) que
nestes espaços cultivou-se uma memória centro-africana, apesar de toda
invisibilidade oportunizada pelos estudiosos do tema, desde o início do século XX.
Tal situação põe em relevância a seguinte questão: a história desta memória ainda
está para ser contada? Sendo assim, cartografar essas histórias a partir do meu
lugar de fala, é dar visibilidade à tradição na formação dos cultos afro-brasileiros,
para que colabore para uma melhor compreensão da história do Candomblé em
suas diferentes vertentes e, ao mesmo tempo, que lance novas questões, tornando-
as visíveis. .
A forma de praticar o candomblé varia de acordo com as chamadas nações,
essas são vertentes que caracterizam determina casa, que procura preservar
memórias africanas. Pode-se considerar a nação angola (congo angola) não apenas
como um dispositivo que sedia tradições angolanas cuja origem sua denominação
72

indica, como também um campo simbólico onde se preserva, através de ritos, um


acervo de valores e saberes, transmitidos por antepassados africanos, fundamentais
na construção da história cultural, religiosa e identitaria do nosso País.
Valeria Amim traz que:

O termo nação, utilizado como um demarcador de fronteiras


religiosas entre os grupos, não deve ser pensado de forma
dissociada de outros valores da vida social, tais quais: étnico,
territorial, linguístico e político, uma vez que a religiosidade se
relaciona permanentemente com a vida cotidiana. Isto posto, é
preciso que se perceba a mobilidade deste termo diante dos diversos
significados atribuídos a ele desde o século XVII. (2009, p.61).

Entre os séculos XVI e XIX ocorreu, no território brasileiro, a dispersão de


africanos dos mais diversos grupos étnicos e culturais, capturados e trazidos para o
Brasil na condição de escravizados. Dentre eles chegaram os Bantos, que vieram de
regiões atualmente conhecidas como Angola, Congo, Guiné, Moçambique e Zair
Esses diversos povos, com suas múltiplas culturas, incluindo a dimensão religiosa,
se reorganizaram continuamente no Brasil, formando o Candomblé. Nos estudos
realizados por Valéria Amim, a autora identifica que, de acordo com o historiador
João Reis, “a documentação escrita existente informa que em 1807, um escravo
angolano, conhecido por Antônio, foi autuado como “presidente de um terreiro de
“Candomblés” na região canavieira de São Francisco do Conde”. Parece, portanto,
que é o indício do primeiro registro conhecido da palavra Candomblé, um termo de
origem banto. (2009, p.36).
A tradição é preservada pela oralidade que é a modalidade de uso da língua
utilizada na educação dos adeptos e nos ritos de fé que também é utilizada para
proteção dos terreiros, conservando a tradição.

O terreiro se constitui como espaço social, nele há festas, rituais,


problemas, conflitos, lutas e escola que abarca a sociabilidade
humana nas mais variadas composições, sem negar o sagrado, a
vivência e a experiência humana num espaço provedor de identidade
e alteridade, além de um campo fecundo de conhecimentos
particulares que podem subsidiar práticas educacionais. Natividade
(2014 p. 3).

A utilização dos elementos existentes no nzo pode ensinar a matemática, as


ciências, a língua portuguesa (e seus matizes e influencia afro indígena), cultura e
73

muito mais. No entanto, esse espaço é negado e silenciado mesmo com sua vasta
diversidade até mesmo nas escolas. As religiões afro-indígenas brasileiras sempre
foram marcadas por preconceitos, o que suscitou um desconhecimento do propósito
da religião, que é a formação integral do sujeito. Podem contribuir para a formação
de um modelo educacional formal e não formal baseado no resgate identitário
necessário à população brasileira.
Diante disso a compulsória falta de conhecimento relacionado às questões
raciais resulta, sobretudo, no despreparo dos profissionais da educação diante dos
conflitos étnicos presentes no cotidiano de alunxs submetidxs a uma estrutura social
racista, onde muitas vezes são esses profissionais xs reprodutorxs de práticas
discriminatórias onde se reafirma as atrocidades direcionadas à população afro-
indígena e o sofrimento a elas imposto. Desse modo Botelho (2005) nos diz que:

A escola enquanto instituição burocrática está empobrecida de


símbolos e ritos, pesquisar um terreiro de candomblé, rico de mitos e
ritos, pode ser um meio interessante de mostrar como práticas
simbólicas, portanto educativas, ainda desconhecidas e /ou
segregadas podem nos indicar novos caminhos para uma educação
inclusiva (BOTELHO, 2005:6).

Refletindo as ideias de Botelho sabemos que a envergadura simbólica das


tradições africanas e especificamente o candomblé bantu pode sugerir novas
dinâmicas de aprendizado e estímulos para xs alunxs das instituições educacionais.
Expressar o conhecimento sobre religião de matriz africana é uma maneira de
ampliar a compreensão da diversidade cultural no nosso país, pois sabemos da
dificuldade de aceitação que existe com relação aos cultos de Candomblé em
virtude da sistemática racista na sociedade brasileira. Pensar a diversidade na
educação é possibilitar inclusões, solidariedade e respeito.
A escola como base dessa prática educativa pautada por um discurso no qual
se afirma a inserção de todxs independente de cor, sexo e condição social. Já que
esse é um dos caminhos através do conhecimento sobre os costumes educativos
praticados nos Candomblés é possível ter novos subsídios para o ensino de história
e da cultura afro- brasileira. E os terreiros de candomblés bantu são símbolos de
memória desses povos que foram alijados do seu território. É no nzo que a memória
africana é reproduzida em seus espaços. Atitude que prevaleceu durante todo o
processo escravocrata no qual foi imposta a desumanização aos africanos
74

escravizados que nesta circunstância, para manter o espaço perdido tanto


geográfico, como a dimensão subjetiva, reafirmaram nos terreiros suas dinâmicas de
conhecimento e posicionamento existencial frente ao mundo.
Esse é o espaço que além de ser educacional é um espaço de resgate de
memória, Sodré (1988 apud, Borges, 2016) diz que: Lugar para onde está voltada a
memória, onde aqueles que viveram a condição- limites de escravo podiam pensar-
se como seres humanos, exercer essa humanidade, e encontrar os elementos que
lhes conferiam e garantiam uma identidade religiosa diferenciada, com
características próprias, que constitui um patrimônio simbólico do negro brasileiro (a
memória cultural da África), afirmou-se aqui como território político-mítico-religioso,
para sua transmissão e preservação. É disso que estou falando, quando eu chego
ao Tva e no Caxuté e percebo que nosso chão, em nosso nzo construímos praticas
pedagógicas.
Como todos nós estarmos indo, todos ali, todos pisando naquele
chão, todo mundo ali vivenciando aquelas experiências e assim, eu
vejo um saber que um saber que não é uma moeda de troca, eu vejo
uma forma de aprendizado quando plantamos as ervas, maceramos
as ervas para fazer os banhos, o seu horário de colheita e isso a
gente leva adiante, ou seja, quem e aprende só soma mais como um
agente multiplicador, o irmão que não pode ir de uma certa forma
tem conhecimento, se ele se interessar ele pode sim aprendendo
com o mais velho. Potira (2010)

Viver terreiro- uma expressão conhecida entre nós -, está na construção de


alianças políticas com a comunidade. Trata-se de comunidades quilombolas, do
campo, aldeias indígenas, comunidades de populações tradicionais – marisqueiros,
pequenos produtores, acampados, etc. Através dessas alianças encontramos
pedaços, lembranças, vivências, objetos, que são comuns e também que se diferem,
modificam-se, mas que são continuamente reconstituídos e se sedimentam em
tradições que são transmitidos de uma geração para outra, a uma rede de povos.
Os princípios de uma educação de matriz africana são adquiridos pela
vivencia e partilham de práticas, eventos e acontecimentos nos espaços de terreiro.
O intuito da nossa raiz candomblé angola-congo é de fazer o resgate da memória do
seu povo, de modo que isto nos suscite capacidade afirmativa e autoria de nossa
história. Tendo em vista os longos caminhos percorridos temos muito a falar e fazer
75

para assim demarcar nosso espaço e reafirmar o que foi invisibilizado e esquecido,
mas também o que foi revivido e reconstituído e criado na diáspora.
Ainda que a Lei 10.639/2003 tenha sido grande vitória dos movimentos
ligados às questões étnicas raciais, e tenha estabelecido a obrigatoriedade da
inclusão dos estudos da história e cultura afro-brasileira e africana na educação
básica e que esta lei tenha sido ampliada pela Lei 11.645/2008 que, além das
indicações acima mencionadas estabelece também a valorização da história e
cultura indígena, onde e a partir do que podemos sistematizar saberes que nos
foram tomados? Como podemos construir pedagogias que tomem estes sujeitos
como produtores de conhecimentos que nos lançam a novas epistemologias e se
chocam com a hegemonia do pensamento ocidental?
Podemos pensar que se a escola também é um espaço de negociações e tem
uma lei que nos ampara porque não usar de nossas praticas e experiências para
construir alianças?.
Mesmo após a promulgação da Lei 10.639/2003 e Lei 11.645/08 ainda não
foram acionadas as estratégias necessárias à sua efetivação. A escola parece ainda
reticente a aprender com os espaços de produção da cultura negra, deste modo não
parece estranho que não enxergue os terreiros como lugar onde funcionam
pedagogias fabricadas pelo povo negro.
Para Clifford Geertz (2008) a religião se configura como sistema cultural e,
portanto, é um dos elementos fundamentais de qualquer cultura. Assim, falar de
religião afro-brasileira é falar de cultura afro-brasileira. Portanto, ao analisarmos os
terreiros estamos, consequentemente, nos inclinando sobre a mesma cultura que
hoje, por força de lei, tem que ser incluída no currículo e trabalhada no contexto da
educação básica.
A negação dos terreiros como espaços educativos é parte constitutiva do
racismo religioso, uma vez que se motiva pela forma também violenta como se
constituíram as relações raciais no Brasil, Se a raça foi utilizada para estabelecer
hierarquias sociais e viabilizar uma forma de exercício de poder sobre as ex-
colônias, que pressupõe a colonialidade e a hegemonia do ocidente, tudo aquilo que
diz respeito às produções negras também é valorado por meio dessas relações. O
racismo é exatamente o substrato da naturalização e hierarquização das diferenças
que toma (e inventa) a raça como classificação social que se ancora na atitude
negativa frente a certos grupos sociais (GUIMARÃES, 1999).
76

Assim, pensar sobre estas relações requer uma postura diante das próprias
políticas de exclusão racial, bem como uma postura mais incisiva que não nos
permita tergiversar diante da violência religiosa, cujas motivações relacionam-se
com o racismo brasileiro. Diz-nos Nascimento:

O que se ataca é precisamente a origem negra africana destas


religiões. Por isso, vejo uma estratégia racista em demonizar as
‘religiões’ de matrizes africanas, fazendo com que elas apareçam
como o grande inimigo a ser combatido, não apenas com o
proselitismo nas palavras, mas também com ataques aos templos e,
mesmo, à integridade física e à vida dos participantes destas
‘religiões’. Portanto, isso que visualizamos sob a forma da
intolerância religiosa nada mais é que uma faceta do pensamento e
prática racistas que podemos chamar de racismo religioso.
(NASCIMENTO, 2016, p.168).

Quando a escola nega a experiência da comunidade de terreiro alia-se ao


racismo religioso. Não se trata apenas de ignorância epistemológica e/ou
intolerância religiosa, cujos limites conceituais são tênues: trata-se de não
posicionar-se diante do caráter das relações raciais no Brasil, eliminando a
possibilidade de aprender com a experiência pedagógica do povo de terreiro.
Notadamente esta resistência não é vista quando se diz respeito às religiões cristãs.
Refletir sobre essa negação requer então o reconhecimento do estado
brasileiro como um espaço de poder racista e, deste modo, entender as disputas
que se estabelecem na escola para desnudar tais relações.
Minha preocupação se liga a uma dupla condição que compartilho: a de
adepta do candomblé e a de professora de educação básica. Isso faz com que meu
olhar seja assumidamente preocupado, uma vez que já senti na pele esse
silenciamento, por já ter sido chamada de ¨¨macumbeira, dentre outras coisas.
Certa vez, observando uma aula quando era bolsista do Pibid escutei um
aluno chamando o outro de pombagira, e a professora simplesmente silenciou-se,
fingiu que nada tinha acontecido. Sai reflexiva daquele espaço, por ser fruto do
ambiente que reverencia as pombagiras e as admira. A inadmissibilidade daquele
momento de preconceito com um símbolo religioso do candomblé e da umbanda
mostra como a escola viola/nega e silencia a discussão quando se trata de religiões
de matriz africana.
O silêncio é uma constante nas relações sociais da escola quando o assunto
é a discussão sobre religiosidade afro-indígena brasileira. Desse modo, torna-se
77

compreensível tratar a história religiosa apenas na perspectiva de folclore ou das


lendas contadas nos livros didáticos. Neste ínterim, as representações religiosas da
população negra são esquecidas na vida escolar.
78

5. EDUCAÇÃO DO CAMPO: O DIÁLOGO POSSÍVEL COM OS TERREIROS


DO CAMPO

Se estamos falando de terreiro do campo, pensamos que, a educação do


campo não só é um espaço de reconhecimento dos terreiros como espaços
campesinos, como indica que o sujeito do campo deve ser pensado a partir do
diálogo com a diversidade de povos do campo. Deste modo, a Educação do Campo
tem produzido pedagogias de luta pela terra que evidenciam o processo de
formação de sujeitos de direito a partir das lutas concretas pela reforma agrária, pelo
uso comum da terra, pelas práticas agroecológicas e comunitárias.
O momento inicial de constituição de uma educação voltada para o campo
produziu articulações políticas dos movimentos sociais da terra e de organizações e
entidades populares com vistas a outro projeto de desenvolvimento, como também,
tratou-se de um movimento de pressão coletiva por políticas públicas de educação
no e do campo e de confronto à lógica de formulação e implementação da política
educacional brasileira. Desse modo, a Educação do Campo associa a luta pela
educação com a luta por outros direitos: o direito à terra, o direito ao trabalho, à
cultura, ao território, o direito dos povos de terreiro e quilombolas.
Em que pese a vitória dos movimentos sociais quando da organização das
Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo CNE/CEB
nº 01/2002, que também trata de fissurar saberes e modos colonizadores,
reconhecendo as populações de comunidades tradicionais como povos campesinos
e, portanto, produtor de outra educação engendrada em experiências do campo
ainda está longe de ter uma educação que retrará a composição do povo brasileiro.
Sobre as diretrizes voltadas à Educação do Campo, Fernandes ressalta:

A aprovação das Diretrizes representa um importante avanço na


construção do Brasil rural, de um campo de vida, onde a escola é
espaço essencial para o desenvolvimento humano. É um novo passo
dessa caminhada de quem acredita que o campo e a cidade se
complementam e, por isso mesmo, precisam ser compreendidos
como espaços geográficos singulares e plurais, autônomos e
interativos, com suas identidades culturais e modos de organização
diferenciados, que não podem ser pensados como relação de
dependência eterna ou pela visão urbanóide e totalitária que prevê a
intensificação da urbanização como modelo de país moderno.
(FERNANDES, in KOLLING Et Al, 2002, p.91).
79

Pensando na historicidade da educação do campo, devemos que a Educação


do Campo tem sua origem nos movimentos sociais do campo, que lutaram (e lutam)
por uma política agrária e educacional vinculada a um projeto societário que defende
“às questões de trabalho, da cultura, do conhecimento e das lutas sociais dos
camponeses e ao combate (de classe) entre projetos de campo e entre lógicas de
agricultura que têm implicações no projeto de país e de sociedade e nas concepções
de política pública, de educação e formação humana” (CALDART, 2012, p. 257).
Deste modo, uma proposta educativa para as comunidades baianas que não
leve em conta esta composição identitária negra e campesina certamente desvia-se
das experiências dos sujeitos. Portanto, o que me incomoda é justamente a não
valorização dessa cultura ancestral afro-indígena campesina brasileira e a
dificuldade encontrada em pensa-la como experiência educativa que também
golpeia a educação do povo campesino e aprofunda a dicotomia campo e cidade.
A educação do campo vem ganhando maior popularidade nos planos
políticos, isso é devido à força que os movimentos sociais têm dispensado para que
a Educação do campo seja entendida como um todo, deixando de lado uma
concepção arcaica do homem do campo, do camponês e do trabalhador rural que
embasava a educação rural, braço domesticador da elite agrária brasileira.
Portanto, se tem a necessidade de uma educação especifica para o campo,
que tenha metodologias e conteúdos próprios que contemple a história dos povos do
campo que tenha claramente a valorização por sua cultura e que vise à formação de
sujeitos transformadores de suas realidades e que se vejam como sujeitos
construtores de histórias e que estão situados em um tempo e um espaço. E, é essa
educação que vai valorizar e fortalecer para que se possam criar estratégias que
possibilitem estes sujeitos na luta pela valorização da educação quilombola,
indígenas, de povos de terreiros. Diante disso Rodrigues vai contribuir que:

Os conflitos no campo se tornam cada vez mais complexos,


necessitando de estratégias fomentadas em bases sólidas do
conhecimento histórico, que possibilitem aos indivíduos oprimidos a
apreensão crítica de sua realidade e a organização política para a
superação e transformação desta para si e para as demais
gerações. (RODRIGUES e RODRIGUES, 2009, p. 45).

A necessidade da educação do campo em dialogar com diversos sujeitos é


que faz com que estes vão compreendendo o seu direito e lugar de fala. O dialogo
80

pode ser feito através de uma pedagogia de terreiro que configura, a partir das
referencias desses sujeitos, adotando a experiência com a terra e com as sementes;
uma demarcação contada por meio dos saberes e das historias orais uma
construção social das palavras, a partir do fazer negro campesino. Do mesmo modo,
o grupo sistematiza seus saberes, e experiências abarcando não só os sujeitos da
comunidade, mas também ampliando para aqueles de outras vivências religiosas,
que dialoguem e queiram formar o elo à construção social do povo afro-indígena, de
campesinos, de quilombolas dentre outros.
Açucena (2017) contribuiu dizendo que:

Eu acho que a pratica é de fazer alianças com as comunidades


quilombolas, indígenas, de matriz africana, mesmo que não seja
candomblé, mesmo que não seja umbanda, mas até mesmo daqui
de dentro de Amargosa a gente sabe que tem muitas rezadeiras. Eu
acho que essa aproximação, ela acaba fortalecendo o conjunto, não
só o TUVA em si, mas as outras comunidades, a troca de
conhecimentos e saberes pode favorecer a todos. No período que
aconteciam as mesas eles usavam algumas folhas. Antes
comprávamos hoje já se tem algumas folhas plantadas Açucena
(2017).
81

6. CONCLUSÃO

As minhas inquietações iniciam-se quando aquilo que é cotidiano para mim


passa a ser considerado perigoso. Ficava inquieta com o estranhamento às minhas
práticas, aquelas que meu corpo trazia de uma vida em família. Mas, tudo isto se
tornou mais relevante quando do meu ingresso em uma religião de matriz afro
indígena brasileira, quando escuto de uma cabocla a seguinte fala: não devemos
silenciar a nossa ancestralidade, que não devemos deixar o colonizador falar por
nós. Logo mais, atuando no PIBID ao realizar observações na escola, percebi que
as religiões de matrizes africanas são podadas/invisibilizadas pelos docentes, pela
escola.
Quando aprendi com/no terreiro formas singulares de educar e entendi a força
decolonial que há em relacionar-se com a terra e com a vida com base nas
cosmologias de nossos povos ancestrais entendi que era necessário decolonizar a
escola e de dialogar com a educação do campo formas de luta e de aliança com os
povos do campo.
Como a escola trata nossos símbolos e forças que conotam um aprendizado
de antepassados? A força cultural das religiões e os espaços históricos são
excluídos, mesmo sendo reconhecidamente elementos importantes da cultura e da
história?
Debater essas questões passou a ser uma bandeira levantada por mim, como
futura pedagoga e, ao me deparar com esse tema, vejo nele um grande desafio,
pois, o que me angustia é o preconceito e/ou as práticas de invisibilização e
silenciamento. Se a ancestralidade se faz presente em nossas vidas de diversas
maneiras, seja na música, na roda no momento da gira, no movimento do corpo,
dentre outros a escola não pode se livrar disso a não ser que anule os sujeitos por
meio de práticas de controle.
Esta cartografia foi deste modo, um efeito da escola em mim, de minha
história no nzo, das minhas reminiscências infantis, de minha construção como
pedagoga. Toda cartografia também problematiza os efeitos do poder que modela
os corpos, diz o que os faz nascer, viver e morrer. Trata-se de chamar à luz o que
era cinza.
82

O objetivo desta pesquisa era cartografar as praticas bantu indígenas


ancestrais de um Nzo na cidade de Amargosa e sua relação com outras
epistemologias e saberes não coloniais que se traduzam em práticas pedagógicas
que podem auxiliar na construção política da lei 11.645/08.
Demonstramos como as práticas desenvolvidas num terreiro desenvolvem
outra relação com o tempo, de modo que aprender é observar e exercitar a memória
ancestral, aprendendo com seu legado. Mostramos também como o ser está
intrinsecamente relacionado com a terra, numa cosmologia que inspira relações
diferenciais com seres vivos, organizados pela lógica da relação vital com a terra.
Neste viver terreiro quedar e levantar integram um sistema de valores que
não se contrapõe, mas que enxerga como necessário experimentar para saber. A
experiência coletiva é fonte do saber.
A memória é fonte de aprendizado (a ancestralidade incita jeitos de educar
relacionando povos diversos a partir de suas significações), isso é aprendido através
dos saberes escutados e vivenciados pelos mais velhos, através das tradições, na
constituição social da memoria. Nosso terreiro é um terreiro do campo pela relação
necessária com a terra que abole a propriedade de exploração. Mas, que pensa os
modos de produzimos a partir do cuidado com a terra, pensando na lógica do povo
do campo.
A educação do campo precisa abrigar povos tradicionais para enfrentamento
à questão agrária brasileira e, isso só se torna possível com o fortalecimento das
alianças alicerçadas entre comunidades de terreiro, quilombolas, indígenas,
movimentos sócias, movimento negro. Compreendendo que histórias de vida, de
memórias, de construção coletiva e de lutas por reconhecimento identitário só se
efetiva se nos fortalecermos, pois as experiências de luta por educação do campo
vinculadas a essas alianças nos permitem ser sujeitos de nossa própria historia.
É por isso que a pedagogia do terreiro é decolonial e afirma a vida positiva
dos povos negros e indígenas, essa de decolonialidade é pensada a partir do
anticolonial, não eurocêntrica, antirracista, antipatriarcal, anticapitalista, em seus
devidos desdobramentos, e assume um enfrentamento crítico contra toda e qualquer
forma de exclusão e negação que tenha origem na situação colonial e nas suas
consequências históricas do nosso povo.
83

O candomblé é o espaço de preservar, guardar e construir modos de viver


negados e invisibilizados dos povos bantu e indigena, e isso se deu por conta de
muita resistência e luta para que a memória do nosso povo estivesse viva.
Essa cartografia foi construída para reviver e guardar a memória do nosso
povo. Hoje, tenho a plena certeza que Matamba foi a ponte que com a força dos
ventos nos levou até a sombra do tempo.
84

REFERÊNCIAS

AMIM , Valeria. Águas de Angola em Ilhéus: configurações identitárias no


candomblé do sul da Bahia Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH,
Ano IV, n. 10, Maio 2011 - ISSN 1983-2850. Disponível em: <
http://www.dhi.uem.br/gtreligiao /index.html>. Acesso em 23 de janeiro de 2018.

BAGLI, Priscila. Rural e urbano nos municípios de Presidente Prudente, Álvares


Machado e Mirante do Paranapanema: dos mitos pretéritos às recentes
transformações. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Ciências e
Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente. 207 f. 2006.

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