Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
GRADUAÇÃO EM PEDAGOGIA
AMARGOSA – BA
2018
1
AMARGOSA – BA
2018
2
BANCA EXAMINADORA
(ORIENTADORA)
___________________________________________________________________
Tempo, tempo, tempo, tempo. Por seres tão inventivo e pareceres contínuo
(Caetano Veloso).
5
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
sempre. Kai, Paullette, Yan, Junior Almeida, Ivan, Jessica, Mamau, Vanessão,
Erikinha, guardo de vocês cada momento vivenciado nas farras no período da
graduação. Quero agradecer ao meu cordão umbilical, Caliane Costa pela amizade
construída na academia e que prevalecerá para sempre.
Aos irmxs do TUVA mais uma família que os guias resolveram me presentear,
sou ainda mais feliz, tendo vocês enquanto coletivo. Porém não posso esquecer-me
do meu alicerce e apoio que é a minha orientadora, além de mãe de santo
Matambalê/ Kiki, só tenho a agradecer aos ventos que nos uniu para caminharmos
juntas, gerando essa lindeza de fruto que é esta cartografia, te amo! Não poderia
deixar de agradecer a Fran e Ben pelos momentos de jogos, comidinhas e risos nos
momentos mais doloroso da minha escrita. Obrigada por tudo! A Liamor, amiga/irmã
que com seu jeito tímido mostra sua preocupação e amor sempre mesmo distante e
sendo esquecida lembrava-se da irmãzinha, apoiava e dizia que tudo daria certo te
amo, irmã universal! A minha irmã Pri (Kaiaminhão), para os íntimos, rsrs amiga/
parceira de desabafos, alegrias e cumplicidades, o tempo só me ensinou o quanto
nossa amizade é verdadeira, te amo!. A Salvador Muniz, geminilouco que quero
sempre ter por perto, irmão de barco que me fez perceber que só aprende fazendo,
obrigada presepeiro que amo. A Ellenzinha que com seu jeito meigo sempre me
alegrou. A Juli que mesmo distante esteve presente, amo vocês!
Agradeço também a Laís, Nanda (boquinha), a minha cunha Carol pelo amor
que foi crescendo ao longo do tempo. A minha irmã Lane Lima, pelos chás que me
deixavam mais relaxada. A minha irmã Letícia que mesmo desaparecida,
demonstrava seu amor nos momentos corridos, rsrs. Amo vocês!
Não poderia deixar de agradecer ao meu Cacto Paraibano (Renato), obrigada
pelo afeto e risos, te adoro. Ao professor Elias Santiago por sempre lembrar de mim,
você um anjo de candura. Xs professorxs que no inicio da graduação me ensinaram
a dar os primeiros passos - Silvana, Rosangela, Ana Rita, Luiz Paulo, Dyane, David,
kiki, Terciana, Karina, Marcelo, Gleide -, não posso esquecer dxs professorxs da
coligação - Maira, Pacheco, Cozzani, Débora, Tina, Cintia, Fatima, Karina, David,
Tarcisio, Zé Raimundo, Dyane e Ana Luisa. Levarei cada um de vocês
principalmente no apoio das ações que realizávamos. Aos funcionários da UFRB em
especial Belmiro meu gatinho, Virgílio, Dani, Gilmara e Lu.
Com isso não poderia deixar de agradecer ao Capitu, em especial as Camilas
Oliveira e Carmo (Lua), que com a força e coragem sempre me contagiaram, vocês
8
ABSTRACT: The objective of this research was to "map" the indigenous ancestor
bantu practices of a Nzo in the city of Amargosa-BA and its relation with other
epistemologies and non-colonial knowledge that translate into pedagogical practices
that can help in the political construction of law 11.645 / 08. The cartography used
observation, the field diary and the semi-structured interview to talk with the children
of Nzo de Matamba and understand how they are educated there. In order to do so,
he traveled from the T (t) empo to the educational practices built in this candomblé
terreiro of Angola, the Nzo Ventos de Angola / Caxuté, whose foundation lies in the
ancestral knowledges of the Bantu people. In doing so he narrates the construction
of the terreiro, the changes of water - from umbanda to candomblé - that led to the
insertion of the collective in the struggles of the black and indigenous people and led
to (re) memorandum of the experiences of the black people. The terreiro is thus a
space for decolonization of knowledge, the search for long-lasting memory,
knowledge tied to experience, the new relationship between living beings of the
earth, since the pedagogies lived there insinuate themselves to Western reason and
intend to point out that religious racism prevents the school from learning from this
educational space. In observing the school's fear of 'dressing in black', cartography
points to the difficulty of education in raising new epistemological flights and
educating from the concrete life of the communities.
SUMÁRIO
6. CONCLUSÃO ................................................................................................ 81
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 84
13
Comecemos nosso caminho já tão pisado, andado e firmado por pé, ora
negros, ora nativos brasileiros, mas sempre pés de cor tinta e avermelhada.
Andemos por velhos caminhos como se fosse novidade, como se não soubéssemos
dos barulhos de pés velozes que se dirigiam à terra prometida nas serras. De longe
ouvimos o tilintar das correntes, mas muito mais forte o piso firme da chegada na
comunidade aquilombada onde inventávamos histórias paralelas, ao mesmo tempo
em que os nossos versos iam sendo apagados no amargo doce dos canaviais. É
desta velha história que vamos falar ao cartografar o que acontece em nossos
‘quilombos modernos’ e de como os discursos contemporâneos podem nos forçar a
uma história ainda paralela.
A elaboração desta cartografia partiu da tentativa de investigar, conhecer e
acompanhar processos de produção de saberes e práticas ancestrais e sua relação
com a educação, especialmente em uma região onde as vivencias são atravessadas
e constituídas por modos de viver do povo campesino negro e indígena. Faremos
isso num lugar de educação do povo negro indígena da roça: o Nzo. Já diremos que
lugar é esse.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística-IBGE (2010),
considera-se como campesina toda área que está posicionada fora dos limites
urbanos, critério utilizado também para classificar os domicílios, bem como a
população residente nos mesmos. Por sua vez, considera-se como urbana “as áreas
correspondentes às cidades (sedes municipais), às vilas (sedes distritais) ou às
áreas urbanas isoladas” (IBGE, 2010). Esta concepção aponta para uma distinção
entre rural e urbano.
Ao ser tomado como classificatória, hierarquiza os territórios e praticas
constitutivas destes, marcado pelo pensamento binário e construído por oposição
entre conceitos. Deste modo, as classificações geram segregações e revelam a
história sócio cultural da ocupação do Brasil e o funcionamento da economia
brasileira.
O Vale é composto por vinte e um municípios, sendo que nenhum deles se configura
como uma cidade média, ou seja, tem mais de 100.000 habitantes. Porém, irei me
ater ao município de Amargosa. Sua caracterização é dada da seguinte forma: com
435. 932km², possui 34.351 habitantes sendo 24.891 pessoas da zona urbana e
9.460 da zona rural (IBGE, 2010). A composição racial segundo o IBGE é assim
delineada: preta (6.954), indígena (35), Branca (6.806) Parda (20.365). Ou seja, a
maioria da população se declara parda. Dentre esse quantitativo, destacam-se como
membros de comunidades de terreiros apenas vinte e seis (26). Sabe-se que estes
dados podem ser questionados, uma vez que muitas outras comunidades foram
identificadas pelo Mapeamento feito pelo Estado (MAPEANDO O AXÉ, 2009). Esta
ausência de auto declaração pode integrar as politicas colonialistas de apagamento
e de desligamento da população da sua própria história, já tão discutida pelas
análises contemporâneas sobre racismo religioso, do qual falaremos adiante.
Segundo um estudo realizado na década de 60 por Milton Santos (1963), a
cidade é um ponto de conexão entre duas zonas fisiográficas distintas: a ‘zona da
mata fina’(zona de terra alta e de chuvas orográficas) – que foi no passado o espaço
de cultura de café e fumo e a caatinga – onde além do café, instalou-se a pecuária.
Nas duas regiões também se desenvolvia a cana e mandioca, além de cereais. Mas,
já nas primeiras décadas do século XX as grandes fazendas de café entravam em
decadência. Paralelo a isso, o milho, feijão, mandioca e cana eram cultivadas por
pequenos agricultores para a subsistência. A posição privilegiada de Amargosa
dava-se por estar “na ‘boca do sertão’ e ponta de trilho da estrada de ferro Nazaré,
que a ligava a Santo Antônio de Jesus, Nazaré e com o Recôncavo, tendo a função
de entreposto comercial de uma vasta área sertaneja” (SOUZA, p.10).
A desarticulação da importância de Amargosa se deu com a crise do café -
não poupou o pequeno produtor que não possuía maquinário para beneficiamento -,
o que provocou intensa concentração de terras a partir da década de 40 e expansão
da pecuária. As pequenas vilas como Itachama, Corta Mão sofreram deslocamentos
enormes – mais da metade da população – e ou viviam de pequenas culturas de
subsistência, destacando a colheita de Ouricuri, na caatinga, e plantações de sisal e
mamona, e também plantios renovados de mandioca. Do mesmo modo, a ausência
de educação formal impossibilitava à população alçar lugares nas economias locais
– em 1950, 83% da população de Amargosa era rural e 73.54% da população total
não sabia ler e escrever.
15
1
Estas questões estão desenvolvidas em GIVIGI, Ana Cristina N. Ateliê de Mapas da
Diversidade: Cartografia das intersecções culturais e construção de políticas de conhecimento no
Vale do Jiquiriça, Projeto de Pesquisa e Extensão apresentado ai Projeto Baia de Todos os Santos.
Amargosa, 2011.
17
não estar à parte. Ser parte é gestar ritmos, intensidades, é viver o terreiro a partir
do resgate de memória do meu povo, é cultivar e cuidar.
Para que esta cartografia atingisse seu objetivo, tomou como espaço político
de investigação o Nzo Ventos de Angola, primeiramente Terreiro de Umbanda
Ventos de Angola (TUVA), que até o fim desta carta de mapas provisória deixou de
ser de “umbanda” para desembocar-se nas águas de Candomblé de Angola.
Assim, esta também é uma cartografia da mudança e seus efeitos e afetos,
seus choros e afirmações para o povo de nkisi. É lá, no terreiro que eu e meus
irmãos batemos o kubetamakó, é lá que entramos em sintonia com os ancestrais, é
lá, que arriamos as mesas para Mikisi e juntxs cultuarmos nossos ancestrais. É lá
que giramos para os caboclos, é lá que realizamos as sakulumpemba, é lá que
caminho com meus pés no chão de uma comunidade de terreiro, onde aprendi as
primeiras palavras que me transmitem a ligação com os meus ancestrais. Foi no
terreiro que eu aprendi o poder das nsabas (folhas) sagradas, em que construí o elo
com os Mikisi e com minha família de nkisi.
Aprendi a resistir às demandas diárias das águas de angola e do culto aos
caboclos observando meus mais velhxs, que são, na sua maioria, mulheres. São
estas mulheres que se posicionam dentro do espaço terreiro para a defesa e
manutenção deste elo religioso. Neste espaço sagrado fui entendendo-me como
parte desta caminhada que se cruza e se hierarquiza a partir dos mais velhxs. A
minha vivência dentro dos espaços religiosos fortaleceu minha formação humana e
profissional e foi neste espaço que aprendi a me impor e lutar pelxs meus.
Posso dizer então que a cartografia me fez, na medida em que fazia esta
escrita de força, de cuidado e da compreensão da não existência de uma autoria
que não seja a coletiva. É um exercício de despersonalização que em nada se
relaciona ao individuo – esta ficção liberal – mas aos processos e conexões, a
compreender o que se faz por entre. Trata-se de acompanhar as erosões,
geologicamente, e operar geograficamente (DELEUZE, GUATTARI, 1995).
Seguindo o rastro de água, persigo forças que se desviam por entre as
sedimentações e ressonâncias para captar o movimento na sua feitura e dizer o que
eles dizem quando me afetam. Sou parte disso, e para compreender o processo,
nomeio o poder que arregimenta as forças para explicar a quem ouve a minha
escrita de que me nutri, em que me transformei e quais as forças minoritárias eu
persegui.
22
A cartografia nos permite optar por abordagens que nos leve a formação de
dispositivos de pesquisa (aqui educação e ancestralidade) que indicarão categorias
analíticas (terreiro do campo-Nzo, práticas pedagogias decoloniais, educação do
campo, lei 11.645/08) e estas servirão como descritores da pesquisa. Do ponto de
vista da abordagem, fiz a opção pela pesquisa qualitativa- uma vez que a cartografia
é sempre qualitativa - por ser uma perspectiva que privilegia a problematização dos
sujeitos envolvidos. Para essa abordagem consideraremos, portanto, os descritores
que as visitas cartográficas nos indicam e faremos relação entre discursos, contexto
e texto.
Contudo, mais do que procedimento metodológico a cartografia é um modo
de conceber a pesquisa e o encontro do pesquisador com seu campo, uma vez que
parte ainda de outra leitura da realidade, pois não quer só buscar o qualitativo, mas
também romper com a separação sujeito e objeto. Nessa perspectiva, supomos que
a cartografia aponta para a construção de saída e inspiração para quem se propõe a
estudar a realidade. Com base em autores que discutem ancestralidade, tais como
Oliveira (2007 p, 259) que destaca a ancestralidade converte-se no principio máximo
da educação, pois o educar é partilhar a partir dos traços culturais.
Todos os procedimentos de pesquisa e formas de análise ancoram-se no
desenvolvimento da cartografia. Foi em uma aula de pesquisa que eu percebi a voz
da ancestralidade ecoar em meus ouvidos, quando exatamente há quatro anos a
professora Valdeci Nascimento, ao trazer relatos, dizia assim: - Não pesquise o que
não é a da sua conta, você tem que pesquisar o que lhe incomoda, o que você
23
vivência, pois ali será seu ponto de partida! Voltei para casa e essa frase não saia
dos meus pensamentos, embora tivesse um pequeno projeto do meu trabalho
pronto. Fiquei pensativa e comecei a refletir sobre aquele momento e decidi que
aquela era a hora de escrever sobre a minha história entrelaçada à de meus
ancestrais, silenciadas em alguns espaços.
Os sujeitos da minha pesquisa são xs filhxs do Nzo Ventos de Angola, hoje é
um terreiro-casa bantu angola, no município de Amargosa, que nasceu nas águas
da umbanda em 2011 e desembocou em águas de Angola em 05 de maio de 2017,
com as andanças e caminhadas juntamente com o povo preto e vermelho que luta e
resiste em memória dos ancestrais. Um Nzo de Mametu Matamba, dona da chuva
forte e do vento, que com sua força nos conduziu para que estivéssemos juntxs
nesta familia. Hoje, temos 33 filhxs, que juntxs movimentam-se no coletivo, na luta
política para reviver e resistir, juntamente com os seus e pelos seus. Somos um
Terreiro-Casa porque nos vinculamos ao Terreiro Caxuté, liderado por Maria Balbina
dos Santos, a Mametu Kafurenga, durante o período que nossa Mãe Matambale
recebe as obrigações necessárias ao Candomblé para nos liderar de forma
independente. Pela tradição os filhos estão sempre vinculados às suas mães, no
entanto para funcionar de forma independente há a necessidade de completar sete
anos nas águas de Angola.
Realizei esta cartografia 2015 a 2017, entre uma gira e outra, uma quizomba
e outra, em uma andança e outra, para o que lancei mão dos seguintes
procedimentos: observações, diário de campo – o caderno de anotações sempre em
punho em alguns momentos da gira, durante algumas consultas permitidas,-e as
entrevistas semi estruturadas , voltadas para às práticas vivenciadas.
O diário é a peça fundamental na vida do cartógrafo, pois além do seu olhar, é
quem descreve as trilhas feitas por cada olhar, para que assim ele possa construir
mapas cujas mudanças vão cartografando mapas abertos que acompanham as
paisagens e suas erosões (Rolnik , 2014).
A entrevista semiestruturada, baseada na minha vivencia como ouvinte/
participante no momento. Corrobora com isso Pimentel (2009), quando diz que x
pesquisadxr tem que “olhar ouvir e conversar associado aos registros dos diários de
campo e nos textos sínteses da experiência vivida remete ao desafio ético de
inscrever nas narrativas escritas os significados produzidos nas experiências de
trocas ao longo da investigação” (PIMENTEL, 2009, p. 150). Entrevistei três
24
membros do sexo feminino, duas negras e uma branca, idade 36, 37 e 28 anos de
idade, cujo tempo de terreiro é seis anos, as duas primeiras e quatro anos, a última.
A classificação aqui será feita por meio de nomes de origens indígenas, que são:
Açucena, Potira e Iara. A escolha dos nomes das entrevistadas se deu por conta da
minha relação com os povos indígenas, através dos caboclos do nosso terreiro,
além das vivencias nas rodas de conversas. Além disso, por muito respeito e amor à
minha mãe e cabocla Bartira, que sempre representou muito em minha vida, além
do cuidado espiritual, o acalanto de mãe nos momentos de desespero e alegrias, de
danças, giras e de todo esse meu viver terreiro.
Essa cartografia traz a historia, de um povo que foi dizimado, colonizado, e
que hoje tem sua memória revivida nos espaços de terreiro. Por isso, nomeei
minhas entrevistadas, por serem filhas desse espaço que revive a memória, que luta
e se alicerça no coletivo.
− Cada saber lida com assuntos que não são nada estanques, paradas, e que se
caracterizam tão somente por serem relacionais, por constituírem relações entre si e
com o seu meio.
- Esses assuntos seriam como?
- Trata-se da vida, da subjetividade, de algo que é ao mesmo tempo singular e
coletivo, que se faz entre o que é mais íntimo e aquilo que está fora, algo que está
sempre em agitação, que nunca é exatamente uma coisa porque está sempre entre.
− Acho que estou entendendo, embora esteja intrigadx!.
− Manifeste-se, qual seria sua intriga, então?
− A questão que ficou para mim, o que não consegui ainda entender, é como
cartografar ou mapear algo que não para?
− Conte mais...
- Como é que posso fazer mapa de algo que está entre, que outra é um processo e
não uma coisa? Que está sempre em modificação?
- Veja bem... É preciso que o próprio cartógrafo esteja em movimento, afetando e
sendo afetado por aquilo que cartografa. O cartógrafo acompanha o processo e suas
alianças, transformações, declives e forças. Não há fim, até porque o fim nunca é na
realidade o acabamento. O que chamamos de fim é sempre uma conclusão para
algo que continua de outra forma. Se não conseguimos enxergar movimento é
porque alguma coisa está impedindo, e lançar o olhar para isto é também função do
cartógrafo. A cartografia é, desde o começo, puro movimento e variação contínua.
Mairesse (2002) nos mostra que, o contar/escutar vai tecendo uma nova rede,
entrelaçando pedacinhos de tempo perdidos a uma cadeia temporal estabelecida,
fixada em datas, horas e lugares, compondo uma história onde se ressuscitam
fantasmas, tornando presentes as ausências. A repetição deste ato permite compor
e recompor a imagem que cada geração tem das anteriores. Aciona-se a
reversibilidade do tempo e com este a produção de práticas e afetos. De repente
pensei que uma imagem é sempre produtiva e que é exatamente o movimento que
apaga fantasmas e recompõe ausências, restando sempre a esperança da
insurreição e de que uma história bonita brote de uma pedra qualquer.
-Hum... Estou começando a entender, a cartografia. Para cartografar, é preciso,
tecer ideias, contar e escutar?
-Isso, você está entendendo o que é a cartografia. Para cartografar é preciso estar
em um território que é feito pela própria cartografia.
26
Para finalizar nosso bate papo, farei uma síntese do que conversamos. Para
pensar a cartografia enquanto metodologia de conhecer/fazer um território é preciso
pensar nas perguntas que ela pode nos oferecer e daí brote uma composição bonita,
sempre dirigida a fazer viver. Sim! O único comprometimento da cartografia é com a
vida e suas intensidades, trata-se de um comprometimento ético politico! (ROLNIK,
2011). O cartógrafo aciona composições de forças que apontem à multiplicidade e à
liberdade de alianças para a vida, que abre mão da neutralidade, do cientificismo e
reconhece o jogo de poderes. Ao invés de perguntar pela essência das coisas, o
cartógrafo pergunta pelo seu encontro com as coisas durante sua pesquisa. No lugar
de o que é isto que vejo? (pergunta que remete ao mundo das essências), um como
eu estou compondo com isto que vejo? Este segundo tipo de pergunta nos direciona
ao processo, entendendo o cartógrafo enquanto criador de realidade, um
compositor, aquele que com/põe na medida em que cartografa (Pucheu, 2007).
27
Construímos nosso espaço físico, de mão a mão e ainda não o acabamos até
a escrita desta monografia. Fruto de trabalho coletivo de capina, ajudante de
pedreiro, instalador de telhado, pintor, nós o fizemos coletivamente. Seguimos o
modelo da tradição de Angola e juntos estamos utilizando o terreno que compramos
para morada de Mikisi, caboclos e nossa prática pedagógica de luta religiosa.
28
Balbina dos Santos (Mametu kafurengá), juntamente com mãe Mira 2, na Rua das
Flores, e depois mudou para Maricoabo/Cajaiba onde permanece até hoje. O terreiro
Caxuté é um espaço onde funciona uma escola – a primeira Escola de Matriz
Africana do Baixo Sul da Bahia - que desenvolve ações pautadas nas práticas
culturais e sociais das raízes bantu.
Nosso espaço de pesquisa – o Nzo Ventos de Angola – está vinculado
atualmente, por meio da tradição e princípios do Candomblé de Angola, ao Kunzo
Nkisi Caxuté Kitembo Mvilla Senzala Dendê (Terreiro Caxuté).
Assim, em nossa viagem, o Caxuté se entrelaça ao Nzo Ventos de Angola,
conhecido como TUVA3, porque caminhos desembocam um no outro, sem, contudo,
deixar nítida a porta de entrada e/ou sobrepor-se. São forças que se diferem e se
fortalecem como águas que conhecem o segredo de seu curso e os mistérios de
suas diferenças. As marcações diferentes do Caxuté falaram-me sobre as
continuidades e descontinuidades do TUVA. Percebi que o terreiro é um espaço
intimo que agrega o coletivo de pessoas, é um quintal enorme, de caráter estético
politico, em que acontecem as intensas explorações e descobertas infantis ou do
nosso eu de forma imersa no coletivo.
Nos quintais, vive-se o mistério e o encantamento com a força de transcender
o tempo e espaço. Ali o corpo desloca-se para viver estados de liberdade, longe das
vistas e catalogadas formas de controles. O corpo em movimento canta, dança e
busca em devoção alguma divindade ou simplesmente a experiência de sentir o
corpo por meios estranhos à política ocidental.
Estes movimentos dançantes e despreocupados semelhantes aos das
crianças são sons de Tateto Vunji nos dizendo que isso é ancestralidade. Acontece
quando sentamos na areia e nos sujamos sem nos preocuparmos com as praticas
higienistas, experimentando o que é ser criança novamente. Ou então, quando você
caminha a observar os cachos de dendê e eles tão quietinhos e a gente retira um
2
Mãe Mira, foi uma sacerdotisa na cidade de Valença, entre os anos 1986, representa o poder das
mulheres do Candomblé . Foi uma mulher à frente do seu tempo transformando-se em uma entidade
negra não só para os filhos do seu terreiro, mas simbolicamente para o Candomblé no Baixo Sul da
Bahia.
3
Como já mencionei, mas éramos até 2017 um Terreiro de Umbanda ligados à uma matriz
umbandista em São Paulo. A partir deste ano nos (re)ligamos à tradição Angola-Congo vivenciada
pelo Candomblé de Angola do Terreiro Caxuté.
30
para comer, e por ali segue o caminho a procura de uma sombra. No final da estrada
você percebe o que a natureza e o que os Mikisi te oferecem, nos dando forças para
sentar e escutar a contação de história, sem preocupar-se com o vento, com o
barulho do canto dos pássaros, com as formigas carregando pedaços de folhas
andando pela sua roupa sem te picar e fazendo das saias brancas o caminho para
chegar até sua casa.
Este contexto que vivenciei indo até o Caxuté, durante o período da III
Vivencia Internacional no Caxuté, no mês de agosto de 2016, no período da kizomba
Maionga, mostra-me o quanto o terreiro é a nossa escola. O poder e a força do
ngorossi são evidenciados na palavra, que nunca vem só, já que estabelece,
enquanto poesia, a interlocução entre as gerações. Explica-se e explicita outro
tempo. Eram por eles (ngorossi) que eram evocados os lugares, os objetos. A partir
deste espaço, exercemos um diálogo direto com os Mikisi. Ali se construía a
permanência e a manutenção da memória do grupo, ao passo em que eram também
reproduzidas e questionadas as figuras de pensamento que teimam em gerar uma
história homogênea. É na memória, espaço também de batalha, que guardo cada
momento vivenciado.
A transmissão dos rituais religiosos e a vivencia da religião é um processo
que passa pela memória de cada um, vivenciada por diversos sujeitos envolvidos no
mesmo processo. Porém, o conteúdo a ser transmitido depende do que cada
indivíduo transmite de sua memória, seja ela individual ou coletiva. Desse modo, os
saberes que são gestados e perpetuados em uma comunidade de terreiro são frutos
da memória que os indivíduos têm acerca das interações sociais que vivenciaram ao
longo da vida entre as pessoas com as quais conviveu e aprendeu, no caso do
terreiro, também se trata de vivencia com outras dimensões da vida e com seres
vivos de toda espécie. Segundo Halbwachs (2004, p. 55), a memória individual,
construída a partir das referências e lembranças próprias do grupo, refere- se,
portanto, a ‘um ponto de vista sobre a memória coletiva’. Olhar este, que deve
sempre ser analisado considerando-se o lugar ocupado pelo sujeito no interior do
grupo e das relações mantidas com outros meios. Neste caso, há uma relativa
individualidade que é imersa na produção coletiva da vida, mas também que diz
respeito a lugares de exercício de poder, uma vez que o olhar só alcança o que se
pode ver de onde se está localizado.
31
4
la memoria colectiva lleva los recuerdos de las y los ancestrxs —andrógenos, hombres y mujeres,
líderes, lideresas, sabios, sabias, guías— que con sus enseñanzas, palabras y acciones, dieron
rumbo al menester pedagógico de existencia digna, complementaria y relacional de seres —vivos y
muertos, humanos y otros— con y como parte de la Madre Tierra. La memoria colectiva, en este
sentido, es la que articula la continuidad de una apuesta decolonial, la que se puede entender como
este vivir de luz y libertad en medio de las tinieblas. Por tanto, no es de sorprender la afición de los
agentes coloniales de apagar la luz y, a la vez, de imponer y moldear una racionalidad fundada en
binarismos dicotómicos —hombre/naturaleza, mente/cuerpo, civilizados/bárbaros, etc.— y en las
ideas de “raza” y “género” como instrumentos de clasificación jerárquica y patrones de poder (WASH,
2012, p 25) original
32
5
Las pedagogías, en este sentido, son las prácticas, estrategias y metodologías que se entretejen con y se
construyen tanto en la resistencia y la oposición, como en la insurgencia, el cimarronaje, la afirmación, la re-
existencia y la re-humanización (WASH, 2012, p 19)
6
Sou filha das águas doces de Dandalunda nkisi da cachoeira, das corredeiras doces que com sua
força só me faz mergulhar sem destino certo, contornar os desafios pelo caminho e seguir o fluxo da
correnteza.
33
candomblé cuja tradição rege os rituais e a educação no terreiro Caxuté. Foi lá que
ela deitou, aprendeu e foi lá que ela bebeu com seus.
Lembro-me como fosse hoje, quando ela pediu para que estudássemos a língua e
costumes bantu, ainda quando constituíamos um terreiro de umbanda, em meados
de 2015. Nosso percurso coletivo iniciado na Umbanda foi onde aprendemos a
reverenciar os caboclos e guias, bater a cabeça, saudar o dono da mata, macerar a
aroeira com os pretos velhos.
Potira e Açucena relatam o que a umbanda representou para elas:
Pra mim a experiência mais válida foi o coletivo, essa coisa de você
vivenciar uma religião, essa coisa de você construir coletivamente,
porque desde aquela época até os dias de hoje, tudo que a gente
construiu foi com aquele grupo e assim na gente não encontrou nada
lá pronto (Potira 2017)
É disso que falo, desse “quilombo” que está dentro da gente, que nos
acompanha dia-a-dia, seja dia, seja noite e se externa nas lutas cotidianas do povo
preto indígena. Falamos de ancestralidade! Desse modo, essa cartografia se faz na
teia oriunda do reconhecimento da minha ancestralidade afro-indígena, da sua
potencialização, por meio do encantamento.
Ancestralidade é também encantamento, uma maneira de compreender o
próprio ser/fazer. As ações constituídas por este ngunzu coletivo não seguem
36
na maioria das vezes, voltado para o bem estar da pessoa que precisava de ajuda
em determinado momento.
Nos rituais do TUVA, os s filhxs /irmxs do atual TVA, eram ensinados sobre o
amor e a necessidade de rompimento com aquilo que individualiza. Para alguns o
TUVA funcionou de 2011- desde o momento de estudos - até 2016, para outros de
2012 até 2016, quando se realizava giras de umbanda mais precisamente, mas há
consenso de que o grupo ia agregando lentamente pessoas que procuravam ajuda e
sentiam-se movidos a constituir coletivo.
Potira mostra os primeiros passos como o TUVA se formou:
especificamente em 2014, aos estudos da origem das palavras em bantu, bem como
práticas do povo bantu. Os estudos foram organizados em grupos de quatro a
cincos filhxs e cada grupo foi responsável por uma temática, sendo as seguintes:
nsaba, povo bantu, ciganos, história da umbanda e os povos tupinambás. Cada
sábado era dedicado à apresentação de um grupo, juntamente com a chefia da
casa, pois ela ia tirando as dúvidas, quando surgiam. Antes de apresentarem seus
estudos ao grupo inteiro os filhxs se reuniam para fazer o estudo e as discussões
para no dia da apresentação já serem levantados pontos de inquietação melhor
formulados. Se alguém precisasse de cuidados espirituais nestes dias, a entidade
realizava os passes e/ou fazia o trabalho necessário. Também eram realizadas giras
externas em pontos importantes para a ‘energização do grupo’ desde 2013,
seguindo todos os anos, enquanto não houve um espaço fixo.
Membrxs do TUVA na Gira da Praia, Berlinque, Itaparica, 2013, seguida da Gira da Praia,
em 2014 onde Iemanjá está com o bebe Benjamim, hoje Tata Poco do Terreiro
cuidados espirituais, cada estudo era realizado em um espaço: o primeiro deles foi
na casa de Mãe kiki, no Bairro Catiara, em Amargosa, onde os filhxs passaram por
um banho energizante, feito de frutas. Após esse estudo já ficavam marcados os
outros espaços para realizar as apresentações e debates das outras temáticas.
Para realização de giras de mata, de cachoeira, de mar, de pedra e fogo e de
eres- entendidas como fundamento de Umbanda, procurávamos espaços na cidade,
especialmente em espaços naturais, de propriedade privada (pedíamos autorização
ao dono) e/ou nos aventurávamos nas matas, cachoeiras e praias para realização
do culto. Das serras, cachoeiras, rios, fazendas, praias e arvores é que o TUVA se
constituía, entre giras da mata, do rio, da cachoeira, de praia, de exus e pombogiras.
Gira do rio em maio de 2015 e Gira de Vunji/erês em set. de 2015, em São Felipe, propriedade privada
colocarmos os pés na terra. Bartira dizia que era preciso colocar os pés no chão
para que as energias negativas fossem dissipadas. Entre folhas e lagartas de fogo,
que eram costumeiras nas árvores, recebíamos as pessoas e filhxs para conversas
nas tardinhas e manhãs. Nestas andanças que o Terreiro se consolidou.
Durante este período a cabocla Bartira foi nos ensinando que éramos parte da terra
e a ela devíamos honrar com a vida e a luta. Fomos aprendendo o nosso lugar na
relação com outros seres vivos e, especialmente, ela dizia da necessidade de
sempre estarmos ligados aos fundamentos dos ancestrais.
Uma das experiências marcantes em nosso coletivo foi, quando decidimos realizar
nossa gira “itinerante” nas matas, nome dado por alguns irmxs.
8
O motorista Aurelino que sempre nos conduzia também faz parte de nossa história
41
9
Os caboclos do terreiro dançam o tore à sua forma.
42
umbanda. Podemos dizer que é uma religião baseada nos orixás africanos trazidos
pelos nossos irmãos/as negros/as, assim como nos rituais praticados pelos
indígenas.
Segundo Rubens Saraceni (2008) a palavra “umbanda” deriva de “m´banda”
que em kibundo significa sacerdote ou curador. Por isso que quando questionamos
qual a origem da Umbanda, de acordo o autor, é uma religião nova, é a herança
religiosa africana, que nos legaram os nossos/as irmãos/as negros/as trazidos de
além-mar durante o período escravagista. No entanto a Umbanda nos religa às
nossas afinidades ancestrais. È uma agregação de todos os espíritos, que
harmoniza o ser com seu grau de consciência na medida em que não exige a
unificação da forma de pensar.
Ao trazer um pouco da história da umbanda, percebemos a relação da
mesma com candomblé de angola bantu, por meio da valorização do caboclo.
Contudo, há de se destacar que os processos de formação da umbanda e
candomblé se diferenciam de modo bastante severo. O candomblé de Angola é
praticado por uma Nação de candomblé e constitui-se por uma maior linearidade
doutrinária e identidade de rituais entre os terreiros, bem como a defesa de um
legado que unifica os terreiros e suas práticas, vinculados à história dos povos
bantus.
A constituição do TUVA estava assim ligada à umbanda, mas eis que a
Cabocla Bartira diz, por volta de meados de 2015, que a casa precisava voltar-se
aos seus fundamentos e que estes eram os de Angola, ainda antes de conhecermos
o Terreiro Caxuté. Ainda dizia que precisaríamos de um chão. A cada dia
percebíamos a necessidade de termos um espaço fixo para nos reunirmos, o nosso
barracão e nos firmarmos na cidade. Juntamos-nos em ações coletivas para a
construção. Essas ações consistiam-se em rifas, bingos, venda de sopas,
organização de bazar, dentre outras coisas. Constituímos um grupo de filhos do
terreiro chamado de M´uamba e que realizava (realiza) as vendas em eventos e
espaços que podíamos.
43
Passa um tempo, não muito distante, melhor dizendo alguns dias, eis que a
minha orientadora convida alguns estudantes que pesquisam ancestralidade para
10
Pessoa que acompanha a entidade em consultas e zela pela entidade sendo seu principal
instrutor e confidente
46
Gameleira do Caxuté
Casa de caboclo
Variação de Membros do
Nzo Ventos de Angola
2011
Quatro membros
2012
Seis membros
2013
onze membros
2014
vinte membros
2015
Trinta e um membros
2018
Foi no percorrer do tempo, no bailar das folhas com a força do vento que as
matas e cipós se entrelaçam. Nos quintais que estão os segredos, o assoviar dos
ancestrais. Produzindo pedagogias que visam outros modos de aprender vamos nos
constituindo enquanto Terreiro.
As práticas pedagógicas no Caxute se entrecruzam com as práticas do TVA/
Caxuté para valorização do saber do povo preto e indígena, uma vez que muito foi
apagado e invisibilizado.
56
pretas. Essa é uma das diferenças desse atual contexto do nosso nzo. Essa
confirmação é dada na fala de Açucena (2017).
Como disse o Nzo Terreiro Ventos de Angola está em formação desde 2011,
sendo que esta caminhada coincide com o aprendizado e amadurecimento coletivo.
Para muitos de nós, o Nzo é a primeira experiência de formação de coletivo e de
eleição de pautas prioritárias para o exercício da vida pública. Chegamos aqui, de
vivências distintas, para construirmos juntos a nossa relação com a terra, com a
religião, mas sabíamos que tratava-se de aprender com o mais velho e de manter os
ouvidos atentos à terra. Potira assim diz:
Para mim a experiência mais válida foi o coletivo, essa coisa de você
vivenciar uma religião, essa coisa de você construir coletivamente,
porque desde aquela época até os dias de hoje, tudo que a gente
construiu foi com aquele grupo e assim na gente não encontrou nada
lá pronto.
Ao constituir-se num lugar político que precisa ser inventado para resistir, o
terreiro cinde a hegemonia colonial e cria negociações e resistência, ao mesmo
tempo em que fissura a lógica (BHABHA, 2003). Não podemos esquecer que o
processo de funcionamento de um terreiro gera repetições de rituais e práticas que
pedagogizam o corpo para inserção naquela comunidade. Este aprendizado está
fortemente ligado àquilo que chamamos de ancestralidade, mobilizadora de signos,
memórias e fabricação de significados para a relação do ser com o mundo.
Desde cedo, quando os Mikisi definem que determinado sujeito será o Tata
kambondo ou uma Mam’etu ndengue, uma Mametu ou Tata Kinsaba11, etc, isto
implica na construção de uma relação distinta com o próprio corpo que definirá
possibilidades para cada um.
No espaço do terreiro as funções dizem respeito a um aprendizado. Quando
se aprende o que é ser um Tata kambondo, por exemplo, se faz por meio da
observação silenciosa, e da experiência corporal singular. O que é vivenciado no
seio da família de santo/nkisi, constitui tradicionalmente a unidade social da cultura
de um terreiro, cujas relações podem se sobrepor, ou não, aos laços sanguíneos.
O aprendizado nos terreiros relaciona-se com o tempo que é o senhor dos
caminhos e da autoridade. Nada e nem ninguém vence o tempo, que delega a cada
um que se propõe a caminhar àquilo que é próprio de cada tempo. Nos terreiros uns
aprendem com os outros, do mais velho ao mais novo, de acordo com o processo
iniciático na comunidade. As Mametus e Tatas ensinam e aprendem na convivência
de um com os outros.
Valeria Amim (2011), mostra que as relações vão sendo aprendidas no
seu tempo e são aportadas na tradição oral e nas genealogias memorizadas, isto é,
referem-se à memória dos mais velhos e de praticantes do culto. Observa-se que
essa forma de comunicação, a oralidade, se constitui como instrumento de
motivação entre o grupo, estabelecendo uma ligação com os antepassados e sua
cultura.
É através desse elo que aprendemos, que nos fortalecemos e que nos
tornamos parte da rememoração dos nossos ancestrais. È nesse chão de Kitembo -
Nkisi central para a constituição do Terreiro Caxute - que nos movimentamos. É
nesse elo que entramos em sintonia com o sagrado da terra, da cachoeira, do vento,
11
Cargos de um Terreiro de Angola
60
das nsabas( folhas), da lama, do trovão e da kalunga grande ( mar). Segundo Givigi,
Santos e Brandão (2017), a ancestralidade nos providencia caminhos de misturá-los,
construindo significações sobre a vida; organiza memórias, objetos, patrimônios,
histórias, contos e cantos que resistem a um modo único que se impõe a outros.
Essas memórias são caminhos que nos permite identificação com os
antepassados e nos permite também acessar histórias e vivencias que são
apagadas da educação cotidiana. Além do contato com a natureza, temos um
encontro ancestral afro-indigena que nos permite transitar por alguns rituais como as
quizombas, as mesas de nkisi, o culto de caboclo, o samba de caboclo e consultas.
A figura do caboclo- o indígena brasileiro- nos terreiros é de muita
importância, talvez por apresentar uma característica rebelde que não tem medo,
além de desenvolver o papel de mensageiro, anunciador para quem respeita seu
valor. Embora não seja cultuado em todas as nações, os caboclos são entidades
fundamentais nos terreiros de angola, pois nos ensinam como desenvolver certas
astucias e são líderes de trabalhos ligados às nsabas, aos banhos e remédios.
Bartira que é uma cabocla, que é a guia, a chefe, que sempre nos
conduzem no utilizar as ervas. Ainda mais agora que a gente ta
vivendo o angola, o bantu e a gente contempla os nkisi, antes a
gente contempla os caboclos e isso é o importante. Potira ( 2017)
Aprender com a terra é alcançar uma cosmologia que foi dilacerada pelo
poder colonial e inferiorizada em nome da civilização européia- que submete os
povos colonizados-, mas que se restitui com a luta e movimentação dos povos
tradicionais pela legalização de suas terras, pela defesa da água e pela defesa do
uso comum da terra. Obviamente, estas cosmologias afrontam o modo capitalista de
produção que encontram na terra produção de commodities agrícolas (SAUER,
2013) de modo que a racionalidade de povos negros e indígenas opõe-se à
propriedade:
comum da terra, mas também por conta da sacralização das matas, das águas, de
seu uso ritual e pela contrária posição ao uso de agrotóxicos e envenenamento da
terra. Trata-se de enxergar-se como terreiros do campo. Assim, utilizando Jussara
Rego (2009), os autores GIVIGI, BRANDÃO e SANTOS (2017, p 3) dizem:
ancestralidade significa construir respeito à todxs aquelxs que antes de nós abriram
os caminhos e nos deram oportunidade de ficarmos aqui, e isso é, reverenciar a
própria vida.
Uma forma efetiva de agir sobre esta realidade engendrando novos efeitos de
poder é pensar de que modo as vivencias cotidianas do povo de terreiro pode alterar
cenários de exclusão racial. As ações podem ser propostas pelas modificações na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/96), incluindo a lei
10.639/2003 instituindo no currículo oficial de escolas públicas e privadas de ensino
básico o ensino de História e Cultura Afro – brasileira. Posteriormente essa lei é
novamente modificada e acrescenta a temática à questão Indígena (Lei
11.645/2008) - são ações afirmativas que enfocam a promoção da educação como
meio de combate às desigualdades provocadas pela exclusão.
Deste modo, reorganizando subsídios, acrescentando conhecimentos que se
mantiveram escondidos, provocando reflexões que desbancam a centralidade da
cultura hegemônica e europeia, da superioridade de povos e culturas pretende-se
inicialmente ampliar os espaços e garantir os direitos constitucionais de igualdade de
direitos, oportunidades e possibilidades de concorrer pelos mesmos espaços. Falar
da lei 10.639/03 é refletir sobre a cultura afro-brasileira, é perceber que em toda a
nossa trajetória de formação de nação, o Brasil foi um dos países que mais recebeu
escravizados africanos, apesar de ter sido um dos últimos a abolir a escravidão e,
após a abolição, a luta do negro pelo reconhecimento na sociedade tem sido
incessante. Fruto das constantes reivindicações do movimento negro no Brasil, a Lei
nº 10.639/2003, promulgada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, onde
estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos
estabelecimentos educacionais do país (BRASIL, 2003).
Sendo assim, o papel destinado à educação está no debate sobre tudo que
sempre foi transmitido pela escola, sobre a centralidade de uma cultura em
detrimento das demais, de um povo sobre o outro, sobre os processos de exclusão
provocados pelo preconceito e pela exploração, sobre as relações de poder,
históricas, que manteve sempre uma linha divisória entre o negro e o branco, entre o
rico e o pobre, a cidade e o campo, o centro e a periferia.
Não é possível falar de educação sem falar dos povos de terreiros, dos povos
indígenas que tem suas praticas e suas crenças silenciadas nos espaços escolares.
O fruto dessa colonização demonstrada por Quijano (2005), o desenvolvimento nas
67
Américas, das relações sociais ancoradas na ideia de raça, formou identidades que,
até então, não existiam. O colonialismo instaurou as categorias índio, negro,
mestiço, branco, redefiniu outras como português, espanhol e, posteriormente,
europeu, termo que até então somente indicava a procedência geográfica, ou o país
de origem. Com o advento da colonização, esses termos ganharam uma conotação
racial entre as novas identidades.
O autor diz que:
escola como práticas pedagógicas? o que um terreiro do campo tem a nos ensinar
sobre educação? a escola aciona as práticas ancestrais? Buscamos perceber como
a escola aciona as práticas ancestrais indagar as tecnologias de controle e negação
das práticas ancestrais.
70
muito mais. No entanto, esse espaço é negado e silenciado mesmo com sua vasta
diversidade até mesmo nas escolas. As religiões afro-indígenas brasileiras sempre
foram marcadas por preconceitos, o que suscitou um desconhecimento do propósito
da religião, que é a formação integral do sujeito. Podem contribuir para a formação
de um modelo educacional formal e não formal baseado no resgate identitário
necessário à população brasileira.
Diante disso a compulsória falta de conhecimento relacionado às questões
raciais resulta, sobretudo, no despreparo dos profissionais da educação diante dos
conflitos étnicos presentes no cotidiano de alunxs submetidxs a uma estrutura social
racista, onde muitas vezes são esses profissionais xs reprodutorxs de práticas
discriminatórias onde se reafirma as atrocidades direcionadas à população afro-
indígena e o sofrimento a elas imposto. Desse modo Botelho (2005) nos diz que:
para assim demarcar nosso espaço e reafirmar o que foi invisibilizado e esquecido,
mas também o que foi revivido e reconstituído e criado na diáspora.
Ainda que a Lei 10.639/2003 tenha sido grande vitória dos movimentos
ligados às questões étnicas raciais, e tenha estabelecido a obrigatoriedade da
inclusão dos estudos da história e cultura afro-brasileira e africana na educação
básica e que esta lei tenha sido ampliada pela Lei 11.645/2008 que, além das
indicações acima mencionadas estabelece também a valorização da história e
cultura indígena, onde e a partir do que podemos sistematizar saberes que nos
foram tomados? Como podemos construir pedagogias que tomem estes sujeitos
como produtores de conhecimentos que nos lançam a novas epistemologias e se
chocam com a hegemonia do pensamento ocidental?
Podemos pensar que se a escola também é um espaço de negociações e tem
uma lei que nos ampara porque não usar de nossas praticas e experiências para
construir alianças?.
Mesmo após a promulgação da Lei 10.639/2003 e Lei 11.645/08 ainda não
foram acionadas as estratégias necessárias à sua efetivação. A escola parece ainda
reticente a aprender com os espaços de produção da cultura negra, deste modo não
parece estranho que não enxergue os terreiros como lugar onde funcionam
pedagogias fabricadas pelo povo negro.
Para Clifford Geertz (2008) a religião se configura como sistema cultural e,
portanto, é um dos elementos fundamentais de qualquer cultura. Assim, falar de
religião afro-brasileira é falar de cultura afro-brasileira. Portanto, ao analisarmos os
terreiros estamos, consequentemente, nos inclinando sobre a mesma cultura que
hoje, por força de lei, tem que ser incluída no currículo e trabalhada no contexto da
educação básica.
A negação dos terreiros como espaços educativos é parte constitutiva do
racismo religioso, uma vez que se motiva pela forma também violenta como se
constituíram as relações raciais no Brasil, Se a raça foi utilizada para estabelecer
hierarquias sociais e viabilizar uma forma de exercício de poder sobre as ex-
colônias, que pressupõe a colonialidade e a hegemonia do ocidente, tudo aquilo que
diz respeito às produções negras também é valorado por meio dessas relações. O
racismo é exatamente o substrato da naturalização e hierarquização das diferenças
que toma (e inventa) a raça como classificação social que se ancora na atitude
negativa frente a certos grupos sociais (GUIMARÃES, 1999).
76
Assim, pensar sobre estas relações requer uma postura diante das próprias
políticas de exclusão racial, bem como uma postura mais incisiva que não nos
permita tergiversar diante da violência religiosa, cujas motivações relacionam-se
com o racismo brasileiro. Diz-nos Nascimento:
pode ser feito através de uma pedagogia de terreiro que configura, a partir das
referencias desses sujeitos, adotando a experiência com a terra e com as sementes;
uma demarcação contada por meio dos saberes e das historias orais uma
construção social das palavras, a partir do fazer negro campesino. Do mesmo modo,
o grupo sistematiza seus saberes, e experiências abarcando não só os sujeitos da
comunidade, mas também ampliando para aqueles de outras vivências religiosas,
que dialoguem e queiram formar o elo à construção social do povo afro-indígena, de
campesinos, de quilombolas dentre outros.
Açucena (2017) contribuiu dizendo que:
6. CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad.: Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima
Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
.
Bonnici, Thomas. Avanços e ambiguidades do pós-colonialismo no limiar do século
21. Geledés. Disponível em: < https://www.geledes.org.br/avancos-e-ambiguidades-
do-pos-colonialismo-no-limiar-do-seculo-21. > Acesso em 10/06/2018.
CASTRO. Yeda. O que tem de Angola no Brasil e vise- versa. In: Revista de
História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Sociedade de Amigos da
Biblioteca Nacional, ano 4, n.39, p.33, Dez 2008.
HALL, Stuart. Que “negro” é esse na cultura negra? In: HALL, Stuart. Da Diáspora:
identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
ILÊ ASÈ OPÔ OMIDEÁ. Você sabe o que é contra egum?. Disponível em: <
http://omidewa.com.br/public_html/arquivos/707> . Acesso em: 13 de agosto de
2018.