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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”


INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS - RIO CLARO

Ciências Biológicas Integral

Elise Mazon Albejante

Wari’: Corpos Iguais, Culturas Diferentes

Rio Claro
2009
Elise Mazon Albejante

Wari’: Corpos Iguais, Culturas Diferentes

Orientadora: Célia Regina Rossi

Co-orientadora: Bernadete de Castro Oliveira

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Instituto de Biociências da Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” -
Campus de Rio Claro, para obtenção do título de
Bacharel e Licenciado em Ciências Biológicas.

Rio Claro
2009
572.7c Albejante, Elise Mazon
A328w Wari’ : corpo iguais, culturas diferentes / Elise Mazon Albejante. -
Rio Claro : [s.n.], 2009
99 f. : il., figs., tabs., fots., mapas

Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura e Bacharelado -


Ciências Biológicasl) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de
Biociências de Rio Claro
Orientador: Célia Regina Rossi
Co-Orientador: Bernadete Aparecida de Castro Oliveira

1. Etnologia. 2. Indígena. 3. Sexualidade. 4. Gênero. 5. Transformação


cultural. 6. Wari’. I. Título.

Ficha Catalográfica elaborada pela STATI - Biblioteca da UNESP


Campus de Rio Claro/SP
Agradecimentos

São tantas pessoas à agradecer que me perco em meus pensamentos...


Primeiramente agradeço às pessoas de Sagarana, pela hospitalidade... Por
terem aberto o meio social à alguém que mal tinham ouvido falar. Por todo
crescimento que me proporcionaram, por tantas risadas... Por sempre rirem e
expressarem seus sentimentos com tamanha sinceridade.
Agradeço as inesquecíveis noites ao luar recheadas de histórias, curiosidades
de todos os lados. As visitas que me enturmavam nos momentos de solidão. Os
diversos presentes, as conversas e tantas trocas que realizamos. Agradeço também
a abertura da escola e aos momentos que passei com os jovens, ensinando e
aprendendo.
Também sou grata aos passeios na serra, as pescarias, os banhos de rio, os
alagamentos de canoas, as comidas, as chichas, os artesanatos, o jogo de futebol,
as colheitas, entre outros mutirões que tive a oportunidade de participar e de rir de
mim mesma juntamente com vocês. Sou eternamente grata a toda oportunidade por
tantas oportunidades.
Agradeço especialmente os Wari’ que me deram a oportunidade de conhecer
um pouco mais sobre a visão de mundo que têm e que trazem de seus ancestrais.
Sou profundamente grata a Ariram, por estar sempre ali, para me convidar a algum
passeio ou para me dar algumas dicas, sempre disponível. Também agradeço o
Candido, marido da Ariram, que era o administrador na primeira vez que fui à
Sagarana, uma pessoa quieta, porém com um coração muito bom. Agradeço o
Co’um e a Helena, por se disponibilizarem a me ajudar em meu trabalho, sempre
tirando minhas dúvidas.
Agradeço muito os jovens, sempre disponíveis as idéias desta waijam, seja
em aulas, seja em oficinas de dobradura ou de macramê. De forma especial, meus
agradecimentos vão para Rogério Tempranam, Tocorom, Amarildo OroWao’ Tata,
Cristiane Piyim, Wem Prawan, Francilina Tocohet Wayo; pela paciência e
disponibilidade que tiveram comigo.
Agradeço a Jéssica e a Vânia, por estarem sempre presentes. O Mijain, por
toda hospitalidade e disposição para me levar aos diferentes programas, sempre me
apresentando as pessoas da comunidade. A Letícia e o João, por toda a atenção. A
Marines, que, com sua delicadeza e sensibilidade, consegue transformar o dia das
pessoas. A Angelina e ao Pixot, pela constante simpatia.
Meus profundos agradecimentos a Genailde e Fabiana, que apesar de termos
convivido em momentos curtos, serão guardados eternamente, pois foram
momentos de mudanças para nós três e depois tivemos gostosos reencontros.
Agradeço também aos amigos dos meus pais que se tornaram meus
amigos... Agradeço o Juarez, à Orowao, seus filhos e filhas. O Daniel e a Cristina,
que, juntamente com seus filhos, estiveram sempre ali, para o que eu precisasse,
obrigada pelo acolhimento. A Pacao e o Harem, cujo sorriso dado no dia em que nos
conhecemos, eu jamais esquecerei e por todo o apoio que me deram. Os seus filhos
Com’um, Tooji, Top’Arai, Maxun Hat e suas respectivas esposas Helena, Neide,
Luzia, Sandra e seus filhos, sempre abertos para conversas e se mostrando muito
amigáveis. Além do filho mais velho, o Piau e a Eva, pessoas que admiro e agradeço
a receptividade desde o princípio. Agradeço também aos filhos de Piau e Eva, por
toda simpatia. Em especial o OroWao, que tive a oportunidade de conhecer há
bastante tempo e que admiro cada vez mais.
Meus profundos agradecimentos também vão para o Tem Xico e Pacao,
muito abertos a conversas e com os quais me simpatizei desde o princípio. Também
agradeço os seus filhos Wem e Edimilson, pela abertura que tiveram desde o início.
A Luiza, cujo abraço jamais esquecerei, mulher forte, de muita garra... Tenho certeza
que vai se sair bem deste momento difícil... Te desejo muito amor, para que você
possa passar por este momento com o coração fortalecido. O mesmo desejo para os
seus filhos Genilson, Genildo, Edna e Regina. Também a seus respectivos
companheiros, companheira, filhos e filhas. O mesmo vale para o Tem Xico.
Agradeço a paciência de todos que participaram na revisão dos dados, como
a Ariram, a Genailde, o Miranda, a Morotim, o Harem, o Piau, a Eva, o OroWao, a
Hatem, o Cacami, a Quimoi, a Fabíola, dentre outros que participaram daquele e de
outros momentos, tirando minhas dúvidas.
Minhas eternas gratidões para o Gil, pela força dada desde o princípio, por
estar sempre disponível a conversas e discussões para aprimorar meu entendimento
com relação ao olhar dos Wari’. Obrigada Iva, Pê, Vera e Ir. Fátima, sempre me
acolhendo, me mostrando a realidade indígena de Guajará...
Agradeço o Dom Geraldo que, apesar de vários desencontros, pudemos
desfrutar de ótimos momentos... Assim como Ir. Isabel, que me mimou com suas
comidinhas ou frutinhas nos meus momentos de carência em Sagarana. Meus
profundos e eternos agradecimentos a Alexandrina, sempre muito hospitaleira, me
ensinando seus quitutes, me contando as histórias de sua vida no Guaporé, jamais
te esquecerei. Não posso deixar de agradecer seu irmão, Isauro, por tanta
disponibilidade em me ajudar. Neste mesmo viés, agradeço a Elisia e toda sua
família, por me acolher em sua casa, mesmo com minha chegada surpresa... Muito
obrigada pelo apoio!!!
Enfim, agradeço todas as pessoas de Rondônia que, de uma forma ou de
outra, me apoiaram neste momento tão importante de minha vida.
Obrigada Célia, por ter me mostrado caminhos e me ajudado nas minhas
desconstruções, abrindo meu olhar perante a sociedade. A Bernadete, por me
acudindo nas minhas dúvidas sobre antropologia, sempre com uma leitura a indicar.
Aparecida, por sempre responder meus emails de dúvidas e por ter se
disponibilizado e me recebido na minha ida ao Rio de Janeiro. Nesta mesma
ocasião, tive a honra de conhecer o Paletó e o Abraão, obrigada pela simpatia e pela
paciência em tirar minhas dúvidas...
Agora, não posso deixar de agradecer a minha família. Sem ela, talvez eu não
tivesse nem o anseio de buscar conhecer a cultura Wari’. Agradeço meus pais, não
só pelo apoio e pai/mãetrocinio de toda vida... mas por serem as pessoas que são,
não consigo me ver filha de outro pai e de outra mãe. Obrigada por serem abertos
ao diálogo e, pode ter certeza, que isto nos estruturou e nos fez enxergar as
diversas possibilidades do mundo... Vocês foram e sempre serão importantíssimos
em minha vida, amo muito vocês!!!
Amo também meus segundo, terceiro, quarto e quinto “pais e mães”, meus
irmãos, que sempre quiseram cuidar da caçulinha aqui. O Dani, que em nossos
longos debates, pudemos construir e crescer juntos! A Rafa, por ser prestativa
sempre que necessário. A Lia, sempre dando um jeitinho de me mimar... A
Carlotinha, que basta a sua presença para me alegrar, obrigada por sua sensatez. O
Wem, pelo ótimo humor, sempre animando o ambiente! A Amanda, por completar o
grande humor do Wem, e com estilo! A Madalena, pessoa muito importante na
minha vida, me disciplinou e me ensinou muitas coisas... O Bruno, pelo seu jeito
serelepe!!! A Master, por sua doçura...
Os irmãos que conheci na faculdade... Azeite, Atum, Naninha, Aline, Tatá,
Pingüim, Buda, Rubia, Ana Menina, Luis, Diogo, Curió, Spock e Meta-Zooa em geral:
construímos nossa trajetória pela faculdade... Quando entramos, éramos um bando
de “moleques” e “molecas” curtimos, fomos nas baladas, bebemos, nos
conhecemos, filosofamos e fomos descobrindo várias coisas da vida juntos!!! Apesar
de cada um tomar um rumo, levo vocês em meu coração...
Mas não posso deixar de evidenciar a FORMIGUEIRO!!! Minha família
rioclarense... QUANTAS SAUDADES!!! Amo muito vocês, minha irmãzinhas de
coração... A Tatá, que apesar de ter seus momentos insanos, é uma das pessoas
mais abertas a diversidade que já conheci e, por isso, admiro muito!!! A Aline, que
conheço desde pequenininha, mas que precisei morar junta pra poder conhecer,
estreitar os laços e ver que é uma pessoa linda, engraçada e cheia de criatividade!!!!
A Nanoca, pessoa que me fez abrir os olhos pra muita coisa, com você pude
desconstruir vários conceitos. Foi engraçado Naninha, precisou eu ir pra Rondônia
pra gente perceber o quanto éramos parecidas... Meus amores, tenho certeza que
seremos amigas SEMPRE!!! Amo e sinto muita falta de vocês...
Existem pessoas que surgem e, só de olhar, já sabemos que pode dar uma
bela amizade... Engraçado que são pessoas com quem eu quase não convivi na
faculdade, mas os poucos momentos foram suficientes e intensos a ponto de deixar
gostinho de quero mais, mas sem pressa... Foi assim que aconteceu com a Maira,
Aline Campos, Daniel ENRI, Regina e Arianne... Espero que possamos estreitar
nossos laços!!! (Com a Aline isso já ta acontecendo, né?!)
A todo o pessoal da Éxciton, por momentos artísticos que compartilhamos.
Em especial a Cátia, por sua doçura e energia de paz... e a Maria, amigona,
SEMPRE!!! Os compromissos nos afastaram um pouco, mas sei que posso contar
contigo... Você também está em meu coração flor!!!
Também agradeço a Só se for Agora, que me acolheu assim que voltei de
Rondônia, pessoas com quem pude aprender MUITO! Confesso que eu ainda era
meio tímida com vocês... rsrsrs! Mas sei que foi o início de uma amizade, que se
consolida a cada dia!!! Obrigada Milena, por sua acolhida e compaixão. A Chavero,
que se dispôs a dividir seu quarto e que sempre anima com sua forma carinhosa de
ser! A Lulu, que pude conhecer melhor na segunda viagem à Rondônia, menina de
ouro, cheia de sensibilidade e inteligência, virou uma irmãzinha minha! O Preps, um
cara que admiro, sempre uma boa companhia. O Atum, amigo de longa data, com
quem pude conviver rotineiramente por um tempo, pessoa que se atrapalha no
tempo, mas que tem sensibilidade e potencial... Quero te ver deslanchar, viu?! E
pode ter certeza que vou te procurar pra gente conversar, também pode contar
comigo para nossas longas conversas que tanto gosto.
Não me esqueço do Faísca, do Gente Fina, da Luz e da Jabu... Amados!!! O
Faísca com todo seu cavalheirismo e cordialidade, o Pina brincalhão e muito
atencioso, a Luz que sempre soube se posicionar e por quem sempre tive simpatia e
a Jabu, com suas massagens mais gostosas...
Ao meu querido Michel... pela paciência que tem quando estou nervosa ou
afobada, pela disponibilidade quando estou passando por perrengues, pela
sinceridade que estrutura nosso relacionamento, pelos rangos deliciosos, pelos
carinhos ao longo do dia, por me aceitar assim, com o meu modo itinerante de ser,
pelos momentos de crescimento e fortalecimento do nosso relacionamento e pelos
momentos de deleite, que possamos passar ainda muitos momentos agradáveis
juntos.
Enfim, agradeço profundamente tod@s que passaram na minha vida e que,
pelo simples fato de uma convivência (mesmo que breve), mudou algo em meu
caminhar. Cada momento é único e a eles agradeço!
Lista de Figuras

Figura 1: Mapa com a área de ocupação dos Wari' entre as décadas de 1920 e 1960
(Dados dos locais habitados pelos wari’ a partir do etnomapa confeccionado por
Vilaça, 2006)........................................................................................................................... 18
Figura 2: Mapa com as Terras Indígenas Atuais.............................................................. 24
Figura 3: Casa tradicional Wari'. (Retirada de PAM CAMEREM, 19??). ..................... 28
Figura 4: Cama tradicional dos Wari' (Retirada de PAM CAMEREM, 19??)............... 28
Figura 5: Campo de futebol com casas ao fundo, Sagarana, 2009 (Foto: Luiza
Teixeira Bussius) ................................................................................................................... 29
Figura 6: Foto de uma casa Wari' atual, Sagarana, 2009 (Foto: Elise Mazon
Albejante) ................................................................................................................................ 29
Figura 7: Na esquerda, mulher cuidando de uma criança e "pisando" o milho para
fazer chicha. À direita, mulher carregando uma criança com uma fita de algodão.
(Retirada de PAM CAMEREM, 19??). ............................................................................... 39
Figura 8: Provavelmente grupo voltando de sua roça (xitot) (Retirada de PAM
CAMEREM, 19??). ................................................................................................................ 40
Figura 9: Homem pescando com arco e flecha (Retirada de PAM CAMEREM, 19??).
.................................................................................................................................................. 46
Figura 10: Wakam, instrumento tocado pelos homens Wari' nas festas tradicionais
(Retirada de PAM CAMEREM, 19??). ............................................................................... 49
Figura 11: Mulher fazendo esteira (Retirada de PAM CAMEREM, 19??). .................. 56
Figura 12: Mulher carregando panero cheio de milho (Retirada de PAM CAMEREM,
19??)........................................................................................................................................ 72
Figura 13: Festa com música, dança e chicha (Retirada de PAM CAMEREM, 19??).
.................................................................................................................................................. 76
Figura 14: Homens voltando de uma caçada com suas flechas, caça no ombro e
assoviando para anunciar a chegada na aldeia (Retirada de PAM CAMEREM, 19??).
.................................................................................................................................................. 78
Figura 15: Casa temporária, usada atualmente para pernoitar na mata (Retirada de
PAM CAMEREM, 19??). ...................................................................................................... 80
Figura 16: Artesanatos Tradicionais. (A) Tambor tocado nas festas; (B) Borduna; (C)
Panero; (D) Cesto Tradicional; (E) Machado de Pedra; (F) Flecha Tradiciona. (Fotos:
Luiza Bussius e Michel Metran da Silva)l .......................................................................... 97
Figura 17: Diferentes formatos de cestos e Marico (bolsa tradicional de outra etnia).
(Fotos: Luiza Bussius e Michel Metran da Silva).............................................................. 98

Lista de Tabela

Tabela 1: Terras Indígenas Wari’........................................................................................ 23


Tabela 2: Atividades femininas no passado e no presente ............................................ 38
Tabela 3: Atividades Masculinas realizadas no passado e no presente ...................... 44
Tabela 4: Tabus Alimentares na Gravidez ........................................................................ 68
Tabela 5: Características das Festas realizadas pelo povo Wari’................................. 75
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................9
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA ......................................................................................12
1. Cultura e Sexualidade........................................................................................12
2. O povo Wari’ ......................................................................................................14
2.1 Primeiros Contatos.......................................................................................20
2.2 Expedições Pacíficas ...................................................................................22
2.3 Sagarana......................................................................................................24
3. Estrutura das Aldeias.........................................................................................26
4. O corpo Wari’.....................................................................................................30
OBJETIVOS ..............................................................................................................32
METODOLOGIA........................................................................................................33
ANÁLISES E RESULTADOS ....................................................................................37
1. Atividades Femininas.........................................................................................37
1.1 Passado .......................................................................................................38
1.2 Presente.......................................................................................................41
2. Atividade Masculina...........................................................................................43
2.1 Passado .......................................................................................................44
2.2 Presente.......................................................................................................45
3. Artesanato .........................................................................................................47
3.1 Passado .......................................................................................................47
3.2 Presente.......................................................................................................50
4. Educação...........................................................................................................51
4.1 Papel da Mãe ...............................................................................................52
4.2 Papel do Pai.................................................................................................53
4.3 Passado X Presente.....................................................................................54
5. Educação Sexual...............................................................................................54
6. Menstruação ......................................................................................................55
7. Paquera .............................................................................................................57
8. Namoro ..............................................................................................................58
9. Relação Sexual..................................................................................................60
10. Casamento ......................................................................................................62
11. Rapto de Mulher ..............................................................................................66
12. Traição.............................................................................................................67
13. Gravidez ..........................................................................................................68
14. Parto ................................................................................................................72
15. Amamentação..................................................................................................73
16. Método Contraceptivo......................................................................................73
17. Festa................................................................................................................74
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................82
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................................................83
ANEXOS E APÊNDICES ..........................................................................................86
ANEXO 1-A............................................................................................................86
ANEXO 1-B............................................................................................................89
ANEXO 2 ...............................................................................................................95
APÊNDICE 1 .........................................................................................................96
APÊNDICE 2 .........................................................................................................97
APÊNDICE 3 .........................................................................................................98
9

INTRODUÇÃO
Antes de iniciar o trabalho, cabe ressaltar o que motivou a pesquisadora
realizar o mesmo. Ela foi buscar na cultura Wari’ o que tanto a instigava em sala de
aula, no curso de Ciências Biológicas. A concepção de corpo que se tem na cultura
não indígena e, mais especificamente, na ciência. Como os processos fisiológicos e
seus conceitos são normatizados, fazendo com que definam como eles devem
ocorrer no corpo, seus desejos, sua orientação sexual, seus anseios. Enfim, como
estes conceitos são transferidos para a sociedade e como esta se apóia neles, para
explicar a sexualidade e o corpo sexual.
Ou seja, como estas idéias se misturam e quais seriam as influências que a
cultura não indígena obteve das diversas culturas indígenas, partindo do
pressuposto que em meados de 1500 se iniciou um grande processo de
miscigenação entre europeus, africanos e indígenas.
Com isso, a pesquisadora foi buscar na cultura Wari’, cujo contato com a
cultura não indígena ocorreu apenas no século XX, a concepção que se tem do
corpo feminino e do corpo masculino. Para então observar quais as transformações
ocorridas dentro desta civilização indígena após um contato mais intenso com esta
cultura externa e, de forma mais implícita, as transformações ocorridas na cultura
não indígena.
Para tal, este trabalho, teve que se estruturar nos moldes científicos, uma vez
que as inquietações da aluna, agora na universidade, tomaram força e se
constituíram em pesquisa.
O trabalho se desvelará com a introdução, com o desenvolvimento,
abordando o povo Wari’, a metodologia, as análises e resultados, e por fim, as
considerações finais. Entretanto, sabendo que a introdução “tem o objetivo de situar
o leitor no ‘estado da questão’, colocá-lo a par da relevância do problema e do
método de abordagem” (SALOMON, 1979, p.221), ressalta-se que, por este trabalho
ter um viés antropológico e se tratar de uma etnia indígena não muito conhecida
pela maioria dos brasileiros, há a necessidade de historicizar a origem dos Wari’, sua
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gente, seu cotidiano, como se deu o contato entre os Wari’ e os não indígenas, sua
estrutura social e sua concepção de corpo
Não será aprofundado tudo que se refere ao povo Wari’, uma vez que há
muito por contar, mas espera-se que, com este pequeno apanhado, os leitores
possam procurar em outras pesquisas, documentos e livros, o aprofundamento na
descoberta deste povo, que é de suma importância na construção de nossas
origens, de nossa cultura.
Cabe ressaltar ainda que há diversos aspectos culturais interessantes na
cultura Wari’, como a espiritualidade, a alimentação, o pajé, a pintura corporal, entre
outros. Porém, estes assuntos possuem uma complexidade tamanha que cada qual
poderia constituir diferentes trabalhos e, caso fossem abordados aqui, seria
demasiadamente superficiais. Além disso, o tema central da pesquisa é a
sexualidade e a relação de gênero que se tem na cultura Wari’.
Entretanto, há determinados pontos da discussão que os mesmos aparecem,
já que uma cultura é composta por temas interconectados. Portanto, o trabalho
caminhou por explicar os pontos chaves para a compreensão dessas discussões.
Os temas abordados se restringiram aos aspectos culturais que se
relacionavam ao tema proposto na pesquisa, pois, segundo Salomon (1979, p.219),
um trabalho de monografia é aquele que se especifica a um único assunto, no caso
deste, a sexualidade de uma cultura indígena.
Há ainda alguns dados coletados que não serão relatados, ou por não
pertencerem ao tema central da pesquisa, ou por um respeito à comunidade, uma
vez que foi combinado entre as partes, tanto por respeito, quanto a pedido da
própria comunidade, para não abordar determinados temas.
A pesquisa abordou a divisão de trabalho baseada em gêneros, os papeis
femininos e masculinos, os espaços e o papel que cada o gênero se coloca em suas
atividades. Também foram abordados os temas relativos à sexualidade, como os
relacionamentos afetivos, desde a paquera, namoro até casamento e traição. O
entendimento que se tem das relações sexuais, da gravidez, da menstruação, da
amamentação, do parto, dos métodos contraceptivos e todos os temas transversais
que os envolvem, também foram motivos de pesquisa. Além disso, foram tratados os
artesanatos e as festas, assim como seus significados.
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Como já anteriormente afirmado, antes de dar continuidade ao trabalho, a


pesquisadora relatou como os Wari’ compreendem seu próprio corpo. Esta
concepção é fundamental, e embasará toda a discussão dos resultados e, sem a
mesma, a compreensão do olhar Wari’ pode ficar presa aos olhares culturais não
indígenas, nos quais os ditos ‘civilizados’ estão demasiadamente impregnados na
sua própria cultura.

Aprender a pensar, aprender o olhar-pensante não é somar


conhecimentos já internalizados, apropriados. Mas é estabelecer
relações entre semelhanças e diferenças. E para isso, uma “forma”
do pensar ou do olhar não tem serventia. A minha forma se exercita,
se instrumentaliza na quebra das amarras de um olhar comum, na
procura consciente da própria forma de olhar, no exercício de buscar
ângulos novos, na construção de relações. É um olhar de
pensamento divergente. (MARTINS, 2003).

Sendo assim, a desconstrução, como método de trabalho, para a abertura


das crenças culturais divergentes quando comparadas com a cultura não indígena,
se faz fundamental.
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REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

1. Cultura e Sexualidade
“Os antropólogos sabem de fato o que é cultura, mas divergem na maneira de
exteriorizar este conhecimento.” (MURDOCK, 1932 apud LARAIA, 2009, p.63). Nota-
se com esta frase inicial, que o conceito de cultura é algo construído e em constante
transformação, assim como a própria cultura. Portanto, é difícil definir a cultura com
apenas uma linha de pensamento restrita, fechada e somente com um referencial
teórico.
Com isso, Keesing apud Laraia (2009, p. 60) cita que há três teorias idealistas
de cultura: 1. Cultura como sistema cognitivo; 2. Cultura como sistemas estruturais;
3. Cultura como sistemas simbólicos.
A primeira teoria baseia-se no estudo de classificação de folk e, segundo ela,
cultura é tudo aquilo que o individuo precisa conhecer e acreditar para se interagir
harmonicamente em uma sociedade.
A segunda, a teoria estruturalista, desenvolvida por Claude Lévi-Strauss,
preocupa-se em definir os princípios da mente que geram a estruturação dos
domínios culturais, pois acredita que a cultura, é “um sistema simbólico que é a
criação acumulativa da mente humana.” (KEESING apud LARAIA, 2009, p.61)
Já na terceira teoria, a cultura é um conjunto de mecanismos que ditam
regras, costumes, moral, valores, instruções direcionando o comportamento do
indivíduo que nela vive. “Estudar a cultura é, portanto estudar um código de
símbolos partilhados pelos membros dessa cultura.” (LARAIA, 2009, p.63)
Nesta última teoria, a cultura é construída socialmente e é ela que organiza as
regras de condutas aceitáveis no meio em que o indivíduo vive. Ela é diferente,
dependendo de onde se vive e pode se transformar ao longo dos anos, ou seja,
também é vária de acordo com a época.
13

Observa-se que o corpo, orgânico, é o instrumento para se viver esta cultura,


e não o contrário. Sendo assim, não é o corpo/ a natureza humana física, que define
a cultura de um local e sim, a cultura que irá definir as maneiras de viver aquele
corpo orgânico. Existe, portanto, uma dialética entre as necessidades biológicas de
um corpo humano e como supri-las, pois embora as necessidades primordiais do ser
humano serem comuns a toda espécie, a maneira de satisfazê-las varia de acordo
com o ambiente/cultura onde se está inserido. (LARAIA, 2009, p.37)

O natural, uma palavra que hoje em dia precisa ser compulsivamente


colocada entre aspas, é simplesmente o cultural congelado, preso,
consagrado, des-historicizado, convertido em senso comum
espontâneo ou verdade dada por certa. (EAGLETON, 2005, p.135)

Segundo Laraia (2009, p.19), se for analisada a divisão sexual do trabalho em


diferentes culturas, percebe-se que não será o corpo biológico, que é naturalizado
pela sociedade, explicando suas manifestações e suas atribuições, que irá definir a
função de cada gênero e sim os pressupostos da cultura em questão.
Entretanto, por muito tempo tentou-se, e ainda hoje há várias tentativas neste
sentido, naturalizar a sexualidade, explicando a mesma através da ciência que a
caracteriza por instintos, relacionando a sexualidade ao sexo e aos instintos sexuais.
O termo sexualidade não existia antes do século XIX. Em 1905, Freud
escreve as “Três Conferências sobre a Teoria da Sexualidade”, sua importância é a
separação que ele faz entre sexualidade e instinto (CHAUÍ, 1984, p.14). A principal
diferença entre estes dois pontos é que o instinto é um comportamento fixo, peculiar
de uma espécie, já a sexualidade é “polimorfa, polivalente, ultrapassa a necessidade
fisiológica e tem a ver com a simbolização do desejo. Não se reduz aos órgãos
genitais [...]” (CHAUÍ, 1984, p.15)

[...] os dicionário registrem como tardio o surgimento da palavra


sexualidade, momento em que o termo sexo passa a ter um sentido
muito alargado, especialmente quando os estudiosos passaram a
distinguir e diferenciar entre necessidades (física, biológica), prazer
(físico, psíquico) e desejo (imaginação, simbolização). Esse
alargamento fez com que o sexo deixasse de ser encarado apenas
como função de prazer ou desprazer [...] para ser encarado como um
fenômeno mais global que envolve nossa existência como um todo,
dando sentidos inesperados e ignorados a gestos, palavras, afetos,
sonhos, humor, erros, esquecimentos, tristezas, atividades sociais
(como o trabalho, a religião, a arte, a política) que, à primeira vista,
nada têm de sexual. (CHAUÍ, 1984, p.11, grifo da autora)
14

E será neste sentido que esta pesquisa tratará da sexualidade, como uma
construção social e cultural, podendo se dispor de diferentes formas em diferentes
culturas, assim como ocorre na cultura não indígena brasileira e na cultura Wari’.

2. O povo Wari’
A etnia Wari’, também conhecida como Pakaa Nova, não possuía um nome
que a designasse como um todo antes do contato pacífico entre a mesma e os não
indígenas. No passado, e ainda hoje, eles se dividem em oito subgrupos (que será
especificado mais adiante) e chamam as outras etnias de waijam, que significa
inimigo. Após o conhecimento da existência deste grupo, os não-indígenas
passaram a chamá-los de Pakaa Nova, por ter relatos de um primeiro contato, ainda
distante (foram apenas avistados) no rio homônimo. Porém, é como Wari’ que
gostam de ser chamados (palavra que significa “nós” / “gente”) e será desta forma
que a pesquisadora os designará. (CONKLIN & VILAÇA, 1998; HAVERROTH, 2004,
p.81; VILAÇA, 1991/1995, p.556, 1998, 2006,p. 55)
Esta etnia pertence à família isolada Txapakura (CIMI - RO, 2002, p.51),
composta, segundo Nimuendaju (1943-1944, apud VILAÇA, 2006, p.219) pelos
seguintes grupos: Capakura, Moré (ou Itene), Huanyan, Matama (ou Matawa),
Cujuna, Kitemoka, Pacaas Novas, Urumacan, Cumuna, Uomu, Abitana, Kabisi,
Itoreuhip, Mure, Nepaka, Itén, Torá, Jaru, Urupá e Rokorona. O mesmo autor ainda
ressalta que nos anos que realizou sua pesquisa, os grupos Torá, Mure, Jaru,
Urupá, Itén, Abitana, Rokorona, Capakura, Kitemoka e Napeka estavam extintos
(VILAÇA, 2006, p.219). Entretanto, Peggion apud VILAÇA (2006, p.219) afirma que
há ainda alguns indígenas Torá, tentando se reorganizar.
Atualmente diversas referências apontam que os grupos remanescentes da
família Txapakura são, além dos Wari’, os Torá, os Cujibim, os Cabixi, os Moré ou
Itenes, os Miguelem e os Orowin, sendo poucos os representantes deste último
grupo, já que foram praticamente dizimados pelos ataques dos não-indígenas (CIMI
- RO, 2002, p.51, CONKLIN & VILAÇA, 1998). Estas etnias, segundo Vilaça
(1991/1995, p.556) viviam em sua maioria na bacia do Madeira e são os únicos
falantes de uma língua de tal família, porém não são os últimos representantes dos
povos pertencentes a estes grupos, o que mostra uma maior representação de
culturas deste tronco lingüístico.
15

É curioso tratar a questão das origens dos grupos e subgrupos de uma


mesma família. Ribeiro (1995, p.29) aponta a bipartição de grupos indígenas,
falantes da mesma língua, após seu crescimento e, com o passar do tempo, os
costumes e dialetos transformam-se diferentemente, sendo assim, estas partes que
constituíam um mesmo povo passam a não se reconhecer mais e se tornam grupos
ou subgrupos diferentes.
Na mitologia Wari’1 há uma evidência da origem dos subgrupos. O mito
chama-se “Dilúvio” e seu foco principal não é este assunto, entretanto, como aponta
Vilaça (2006, p.56), a origem dos subgrupos é relatada ao final de algumas versões
contadas à ela. Esta mesma pesquisadora ainda relata que a origem dos subgrupos
não ocorreu de uma vez e sim a partir uns dos outros, o que corrobora com o
apontamento de Ribeiro sobre a bipartição de um grupo, para a origem de novos
grupos, citado acima.
Segue abaixo o mito de forma resumida2
Houve uma forte chuva por vários dias, vendo a situação um homem
chamado Nanananana resolveu sair dali, pois percebeu que haveria uma alagação.
Convidou seus parentes para fugirem também, entretanto os mesmo quiseram
permanecer por ali, pois com o aumento do nível de água, passou a ter muitos
peixes nas casas. Então Nanananana e suas filhas saíram dali e foram para sua
roça. De repente, ouviram o barulho de alagamento da aldeia e viram que a aldeia
havia afundado e todos que ali permaneceram haviam morrido. Como estavam
isolados, decidiram procurar pessoas para se casarem com as mulheres. Após
alguns dias encontraram e fizeram a aliança entre alguns homens e as filhas de
Nanananana. Com o tempo os casais tiveram filhos e a população cresceu e se
espalhou, formando os diferentes subgrupos.

1
Ressalta-se ainda que a pesquisadora do presente estudo analisou as diferentes versões descritas
por Vilaça (2006, p.56-58 e 307-319), uma das principais pesquisadoras do povo Wari’ e uma versão
contida numa coletânea de mitos Wari’ feita por Arruda & Col.(1997, p.9-15). Com isso, foi decidido
descrever resumidamente o mito usando o referencial da Aparecida Vilaça, porém, caso o leitor
queira ler outras versões deste mito, olhar Vilaça (2006) ou Arruda (1997).
2
Este trabalho contará com duas versões em texto integral (copilado exatamente como o original) que
trata da discussão do mito na etnia Wari’, em anexo 1 (A e B), elaborada por Arruda (1997) e Vilaça
(2006), por entender, que este anexo tem como tema transversal a divisão do trabalho dentro da
cultura Wari’, baseada em gênero. Com isso, ele desvelou a esta pesquisa suporte importante para a
compreensão da cultura e das suas dinâmicas com relação ao gênero e ainda, dará ao leitor a
oportunidade de conhecer mais sobre o povo e seus mitos.
16

Ao contrário do que se possa parecer, cada filha de Nanananana não


constituiu um subgrupo diferente, e sim todas faziam parte de um mesmo subgrupo,
que cresceu e, como os Wari’ nunca gostaram de viver em aldeias com grande
número de pessoas (para uma explicação mais detalhada ver “Estrutura das
Aldeias”), se espalhou. Com a distância geográfica, cada agrupamento passou a ter
peculiaridades distintas, formando os diferentes subgrupos gradativamente.
(VILAÇA, 2006, p.57)
Estes subgrupos que compõe a etnia estudada são: OroNao, OroEo, OroAt,
OroMon, OroWaram, OroWaramXijein, OroJowin e OroKaoOroWaji (VILAÇA, 2006
p.55; VILAÇA, 1992 p.11; VILAÇA, 1998; VILAÇA & CONKLIN, 1998; CONKLIN,
2001; MEIRELES, 1986 p.124). Segundo Vilaça (2006, p.60) e Conklin (2001, p. 25-
26) tanto os OroJowin quanto os OroKaoOroWaji foram extintos. Conklin ainda
ressalta que este segundo subgrupo se misturou aos OroWaramXijein. Porém, a
pesquisadora deste atual estudo, em seu período na aldeia de Sagarana, observou
pessoas que se diziam pertencer ao subgrupo OroKaoOroWaji e outras que diziam
pertencer tanto ao subgrupo OroJowin quanto ao subgrupo Oro Mon.
Em relato pessoal, um indígena pertencente deste segundo caso afirmou ser
OroJowin. Contou que um pouco antes do contato houve uma festa em que algumas
crianças OroJowin defecaram próximo às casas dos anfitriões, com isso os
indígenas presentes apelidaram-nos de OroMon (povo das fezes), entretanto tal fato
não anula o subgrupo OroJowin.
Cada subgrupo foi dividido pelos próprios Wari’ através de suas
peculiaridades, sendo que os nomes simbolizam-nas. O prefixo Oro, presente em
todos os subgrupos, é, segundo Vilaça (2006, p.55) e Meireles (1986, p.71) uma
partícula coletivizadora, podendo esta ser traduzida como “povo”, “grupo”.
Portanto, OroNao é o “povo dos morcegos” (VILAÇA, 2006; p.57), os OroEo
são, a partir da descrição de Vilaça (2006, p.58), o “povo do arroto”, pois arrotavam
após cantar e falar. Os OroAt ou “povo dos ossos”, para Vilaça (2006, p.57)
gostavam de comer osso e para Meireles (1986, p.129), eram designados assim por
serem compridos e magros. Os OroMon, “povo das fezes”, tinham o hábito de
defecar próximo às casas (MERIRELES, 1986; VILAÇA, 2006).
Ainda segundo Vilaça (2006, p.55), os OroWaram eram o “povo do macaco-
aranha”; os OroWaramXijein eram o “povo macaco-aranha outro”; os OroJowin
17

“povo do macaco-prego” e os OroKaoOroWaji “povo dos comedores de verde”, que,


segundo Meirelles (1989, p.129) Kao quer dizer comer e Waji significa fruta verde.
Este grupo indígena, até onde se sabe, habitou pelo menos entre as décadas
de 1920 a 1960 nas proximidades da cidade de Guajará-Mirim, a qual se localiza no
estado de Rondônia, próxima a divisa com a Bolívia. A etnia habitava as
proximidades de igarapés e distantes dos grandes rios, pois eles
acreditavam/acreditam que eram nos grandes corpos de água que se localizava a
aldeia dos mortos, a qual será detalhada mais adiante. (VILAÇA, 2006)
Estes igarapés se localizavam nas redondezas da Serra Dos Pacaas Novos e
a Cordilheira Pacaas Novos e eram nestes locais que os Wari’ faziam tanto suas
roças quanto suas aldeias. Estes igarapés eram afluentes dos seguintes rios: Rio
Ribeirão, Rio Mutum-Paraná, Rio Formoso, Rio Laje, Rio Pacaas Novos, Rio Ouro
Preto, Rio Negro, Rio Novo, Rio Dois Irmãos; sendo que alguns destes rios são
afluentes do Rio Mamoré, à Leste, o qual delimita a fronteira Brasil-Bolivia. Para
visualização da região onde os Wari’ habitavam antes do contato pacífico, adotou-se
um mapa que salienta os rios citados acima e destaca a região onde ficavam as
casas e as roças desta etnia. (Figura 1)
18

Figura 1: Mapa com a área de ocupação dos Wari' entre as décadas de 1920 e 1960 (Dados dos
locais habitados pelos wari’ a partir do etnomapa confeccionado por Vilaça, 2006)

Eram nas proximidades dos igarapés que os Wari’ construíam suas roças ou
xitot, e também organizavam suas aldeias. O sistema de plantio utilizado por esta
etnia se resumia na derrubada de um local feita, no passado, com os machados de
pedra (Apêndice 2, Figura 16- E) e, segundo Vilaça (2006, p.64) a partir da década
de 1920 foi introduzido o machado de metal.
Com o primeiro tipo de machado, a área do roçado era menor, sendo que
eram retiradas apenas os vegetais baixos e os galhos das árvores altas,
posteriormente faziam uma queimada no local. Eles usufruíam destas roças por um,
dois ou mais anos até que o solo daquele local tivesse sido todo utilizado, depois
partiam para outra região em busca de uma área para a abertura de sua nova xitot,
sendo que a área “abandonada” ficava em estado de pousio. (VILAÇA, 2006, p.64)
19

Durante o período de plantação e de colheita, havia a construção de casas


temporárias, nas quais as pessoas se abrigavam. Cada homem casado era
responsável pela abertura de sua roça e alguns homens solteiros também a faziam,
especialmente os rapazes comprometidos, pois davam alimento para suas mães e
irmãs solteiras e também à sua futura esposa, sogro e sogra.
Após o plantio, os Wari’ esperavam o milho crescer cerca de 10 a 20 cm,
posteriormente partiam para suas aldeias na floresta, pois acreditavam que se o
milho fosse visto durante seu crescimento, ele morreria, antes mesmo de produzir
suas sementes, principal fonte de alimento para estes indígenas. (VILAÇA, 2006;
CONKLIN, 1989)
Com isso, partiam para a floresta e, quando encontravam um local adequado,
se instalavam, formando a aldeia propriamente dita, que possuía casas não mais
temporárias. Eles habitavam tal área durante o período em que se utilizavam de uma
determinada roça, portanto, habitavam essas aldeias, segundo Vilaça (2006, p.61),
num período entre um a cinco anos. O mesmo é observado com relação ao povo
Xavante, que se instalava em um local por alguns anos e logo se mudava (SILVA,
1983; p.43).
Cada grupo de pessoas se acomodava em uma região, compondo aldeias
que possuíam, no passado, segundo Conklin (1994, p. 161), cerca de 20 - 30
pessoas. Um conjunto de aldeias constituía a área de um determinado subgrupo.

[...] os Wari’ comentam que suas aldeias eram maiores no tempo dos
antigos, mas não grandes demais, pois nunca gostaram de viver em
meio à multidão como nós, os brancos. (VILAÇA, 2006, p.70)

Durante a permanência na floresta, esta etnia sobrevivia basicamente de


caças e coletas, assim como os seres humanos como um todo faziam em um
passado remoto e como algumas populações tradicionais ainda o fazem. Mason
(1964, p.14) discorre que a grande maioria das civilizações do mundo se desenvolve
numa linha parecida, primeiramente são coletores-caçadores e, posteriormente,
adotam o sistema de agricultura, o que permite uma vida mais sedentária, focando
assim as energias em outros aspectos culturais.
Os Xavantes, por exemplo, por terem sido um povo seminômade dependiam
basicamente da caça e da coleta, apesar de possuírem uma roça, porém a ela não
20

havia muita dedicação, por passarem apenas poucos meses em suas aldeias.
(SILVA, 1983; p.43 e 45)
Os Wari’ viviam – desde o tempo que sua memória alcança até a
pacificação – na terra firme amazônica, em aldeias situadas, de
modo geral, próximo a pequenos igarapés e distante dos grandes
rios. Desconheciam a navegação e deslocavam-se exclusivamente
por trilhas na floresta. O local das aldeias era escolhido em virtude da
roça de milho, o principal cultivo. (VILAÇA, 2006; p.62)

2.1 Primeiros Contatos


Antes de se iniciar os relatos sobre os primeiros contatos entre os Wari’ e os
não indígenas faz-se necessário ressaltar um apontamento de Vilaça (2006, p.34)
dizendo que há algumas documentações sobre os Wari’ em um passado distante.
Entretanto, estes escritos são escassos e não se sabe sua real veracidade, já que
seus autores não tiveram um convívio ou uma longa observação destes indígenas,
sendo que os mesmos foram apenas avistados. Estas incertezas não passam a
segurança de se tratar, de fato, dos Wari’ ou de outros povos indígenas que
habitavam a região.
A primeira documentação que se tem que diz respeito aos Wari’ foi feita pelo
Coronel Ricardo Franco, em meados de 1790 e 1800, que diz ter avistado estes
indígenas nas margens do rio Pacaas Novos. (MEIRELES, 1986, p.72; VILAÇA,
1991/1995;)
Até o início do século XX, os Wari’ permaneceram isolados, tal fato foi
conturbado com o advento da importância econômica da borracha, cuja matéria
prima era amplamente encontrada nas regiões onde habitavam os Wari’. O que
intensificou a situação ameaçadora e conflituosa foi a escolha do rio Madeira como
rota para o escoamento da borracha até o porto de Manaus e, para que esta rota
tivesse eficácia, os não indígenas construíram a ferrovia Madeira-Mamoré para ligar
a localidade de Santo Antonio do Madeira e Guajará Mirim, cuja trajetória aquática é
interrompida por uma cachoeira. (CONKLIN & VILAÇA, 1998)
O surgimento demasiado dos não indígenas na região fez com que os
pertencentes do povo estudado fugissem para áreas de difícil acesso, como as
cabeceiras de rios. (CONKLIN & VILAÇA, 1998)
Conklin apud Vilaça (1992, p.16) ainda descreve que na segunda metade do
século XIX, o centro geográfico dos territórios Wari’ era o rio Ouro Preto, que se
21

tornou rota importante aos seringueiros no primeiro “boom” da borracha. Como


conseqüência, os Wari’ se direcionaram a dois rumos: Ao norte, em direção ao rio
Laje foram os subgrupos OroWaram, OroMon, OroWaramXijein e OroKao’OroWaji; e
ao sul, na região dos rios Negro e Ocaia foram os subgrupos OroNao, OroAt, OroEo
e OroJowin. Houve ainda uma nova fissão, na transição do século XIX para o século
XX. Parte dos indígenas que morava no rio Ouro Preto atravessou o rio Pacaás
Novos e passou a habitar o rio Dois Irmãos.
No ano de inauguração da ferrovia, 1912, houve um abrupto desinteresse
pelo látex brasileiro, já que a Malásia passou a cultivá-lo em larga escala, tendo um
preço muito mais baixo do que aquele extraído na região. Muitos seringueiros
deixaram suas atividades, o que permitiu que os Wari’ voltassem a habitar suas
antigas aldeias. (CONKLIN & VILAÇA, 1998)
Entretanto, na década de 1940, com a Segunda Guerra Mundial, a Malásia foi
ocupada pelos japoneses, o que impossibilitou a exportação do látex.
Conseqüentemente, as atividades extrativistas da região amazônica foram
retomadas, iniciando-se assim o chamado segundo “boom” da borracha. (VILAÇA,
1992, p.16)
Com isso, a região de Guajará-Mirim foi amplamente ocupada, o que,
segundo Caravita & Arruda (2002), foi intensificado por uma campanha do Governo
Federal de ocupação pelos “soldados da borracha”. Os seringalistas, por sua vez,
eram os responsáveis por estes trabalhadores, protegendo-os de todos os perigos
da floresta, o que transformou os antigos ataques isolados aos Wari’ em grandes
massacres, com uso de espingardas e metralhadoras. (CARAVITA & ARRUDA,
2002, p.24; VILAÇA, 1992, p.16-17)
Com o intuito de vingar a morte de seus parentes e proteger suas aldeias, os
Wari’ saiam em expedições guerreiras, nas quais matavam com arco e flecha os não
indígenas que os ameaçavam. (CARAVITA & ARRUDA, 2002, p.24; VILAÇA, 1992,
p.17, 2006, p.30) A população de Guajará-Mirim, principalmente os parentes dos
seringueiros e seringalistas, ficava apavorada com a situação. Conseqüentemente,
esses não indígenas começaram a pressionar as autoridades competentes com o
intuito de se acabar com tal conflito. (VILAÇA, 1992; p.17)
22

2.2 Expedições Pacíficas


Com tantos conflitos descritos acima e com esta pressão da sociedade de
Guajará-Mirim, algumas expedições foram organizadas, para que houvessem
contatos pacíficos. Estas expedições foram nominadas como pacificação e este
termo é amplamente visto na literatura. Entretanto, tal denominação pode soar de
forma pejorativa, pois percebe-se que este termo parece ter o significado de
“amansar” os indígenas e, talvez, fosse esta a idéia na época. A pacificação foi uma
política indigenista numa situação de contato com vários grupos indígenas;
principalmente em regiões que estavam sendo desbravadas.
Por isso, havia disputa pelas terras, que muitas vezes, levavam a
assassinatos e genocídios de vários grupos indígenas. No caso de Rondônia, isto
era muito intenso, já que este estado foi alvo de muito projetos de desenvolvimento
e colonização, o que pressionou os indígenas demasiadamente. Com isso, os Wari’
vingavam a morte de seus parentes provocada pelos não indígenas que ali
“desbravaram”, tal conflito mostra que a pacificação se fez necessária para ambos
os lados.
As expedições para um contato pacífico ocorreram entre 1956 e 1969. A
primeira delas foi realizada por missionários evangélicos da Missão Novas Tribos do
Brasil (MNTB), estabelecendo um contato com os OroNao’ da margem esquerda do
rio Pacaás Novas, que viviam em aldeias isoladas após a intensificação da presença
dos não indígenas na região. (CIMI-RO, 2002, p.50)
Apesar das expedições começarem entre 1956 e 1969, as iniciativas para que
houvesse uma relação de paz se iniciaram a partir de 1930, com algumas tentativas
de postos de atração de indígenas. O primeiro posto de atração, chamado Doutor
Tanajura, foi fundado na foz do rio Outro Preto, no rio Pacaás Novos. Porém, logo foi
transferido ao rio Guaporé (VILAÇA, 2006, p.347). Posteriormente ele voltou para as
proximidades do rio Pacaás Novos e de Guajará Mirim. Outras tentativas também
foram feitas em alguns outros pontos da região nos anos seguintes. E foi através
destes postos e presentes deixados para os indígenas (como machado, facão entre
outros instrumentos) que os contatos foram sendo estabelecidos.
Atualmente, a etnia Wari’ vive em cinco Terras Indígenas (TI), compondo, ao
todo, 20 aldeias. A Tabela 1 mostra os nomes de cada Terra Indígena, sua área,
população, as aldeias que compõem e a Situação Fundiária. As informações quanto
as Terras Indígenas, as áreas e a Situação Fundiária foram descritas por CIMI-RO
23

(2002), Vilaça & Conklin (1998) e Haverroth (2004); Os dados quanto a população
foi retirado do CIMI-RO (2002) e as aldeias que compõem cada TI é descrito em
Haverroth (2004).

Tabela 1: Terras Indígenas Wari’


Terra Área População Situação
Aldeias
Indígena (ha) (nº/fonte/ano) Fundiária
Hom. Dec. Bom Futuro, Santo André, Graças a
Pacaás 257/91 Deus, Tanajura, Pitop, Capoeirinha,
279.906 980/CIMI/2001
Novas Registrada Carriazal, Cajueiro, Quatorze, Deolinda,
CRI/DPU Jorge Melo e Sotério
Hom. Dec.
Com apenas uma grande aldeia e
Rio Negro 86.347/81
104.064 500/CIMI/2001 algumas moradias um pouco afastadas,
Ocaia Registrada
mas fazendo parte dessa mesma aldeia
CRI/DPU
Hom. Dec.
Igarapé 86.347/81 Lage Novo, Lage Velho, Linha Dez,
107.321 350/CIMI/2001
Laje Registrada Limão, Semap e Linha 14
CRI/DPU
Hom. Dec.
Igarapé 86.347/81 Com apenas uma grande aldeia situada
47.863 200/CIMI/2001
Ribeirão Registrada no município de Nova Mamoré
CRI/DPU
Hom. Dec. s/n Com apenas uma grande aldeia e
Sagarana 18.120 240/CIMI/2001 /96 Registrada algumas moradias um pouco afastadas,
CRI/DPU mas fazendo parte dessa mesma aldeia

Como a Terra Indígena Sagarana foi o local de estudo, será feita a descrição
de sua história, além de ser destacada em laranja no mapa da Figura 2, para maior
compreensão e visualização do leitor.
24

Figura 2: Mapa com as Terras Indígenas Atuais

2.3 Sagarana
Após o estabelecimento dos postos de atração e, por conseqüência a
proximidade que os indígenas passaram a ter com os não indígenas, a incidência de
doenças e epidemias foi uma constante nos primeiros anos de contato pacífico.
Estes indígenas foram afetados principalmente pelas gripes e sarampo, o que
diminuiu drasticamente a densidade demográfica do povo Wari’. Segundo o CIMI-RO
(2002, p.52), a estimativa da população Wari’ antes dos massacres era de 5.000
pessoas, passando para 1.000 e, posteriormente, com estas epidemias, foram para
399 pessoas.
Para ajudar o SPI (Sistema de Proteção do Índio, antiga FUNAI) com estes
enfermos, alguns missionários atuaram nestes postos. Vilaça (2006, p.355) diz que
25

as ajudas feitas pelas MNTB, foram aceitas pelo SPI, em postos de atração
principalmente por uma necessidade de assistência material.
Alguns impasses entre os missionários (católicos e protestantes) e o SPI são
relatados tanto por Vilaça (2006) quanto pelo CIMI-RO (2002). Um dos impasses
que é importante ressaltar, se refere a um episódio que ocorreu entre os
missionários católicos da Prelazia e o SPI, quando este órgão proibiu estes
missionário de atuarem no posto Ribeirão, onde atendia os Wari’ que por ali
habitavam (CIMI-RO, 2002).
Entretanto, talvez por uma falta de recurso ou de informação (neste ponto há
dados que divergem possivelmente por conflitos políticos), as doenças passaram a
matar cada vez mais a população Wari’.
Dom Geraldo Verdier (bispo da Diocese de Guajará-Mirim há 29 anos) relatou
em encontro com a pesquisadora, que com o tempo, os indígenas começaram a
buscar ajuda com um padre que tinha também formação médica, chamado
Ferdinando A. Bendoraitis, em sua casa na cidade de Guajara-Mirim. A procura pelo
médico/padre foi muito grande, por parte do povo Wari’, que houve um momento em
que haviam 42 índios numa área improvisada para a recepção destes. (CIMI-RO,
2002, p.51).
Na mesma época, a Igreja ganhou uma doação de um território por uma
organização civil chamada São Judas Tadeu. O mesmo se localizava nas
proximidades da vila de Surpresa, um pouco acima da confluência entre o rio
Mamoré e Guaporé, na beira deste último rio (VILAÇA, 2006, p.360).
Segundo relato de Dom Geraldo, o padre Bendoraitis e o padre Roberto (que
posteriormente virou bispo e sempre atuou junto aos Wari’) resolveram alojar
provisoriamente os enfermos que se encontravam em Guajará Mirim, neste terreno.
Chegando ao local, os indígenas preferiram uma área mais longe daquele grande
curso de água, foi aí que escolheram ficar em uma baía chamada de “Baía da Coca”,
no próprio rio Guaporé, onde, fundou-se no dia 17 de novembro de 1965, a aldeia
Sagarana. (CARAVITA & ARRUDA, 2002, p. 31).
Dom Geraldo ainda contou que certa vez, em 1975, a Polícia Federal iria
retirar os indígenas de Sagarana, por não se tratar da região de origem da etnia,
entretanto o que era provisório virou definitivo, Oron Pawa (um dos indígenas que
vivia na aldeia) disse à polícia que não queriam sair daquela terra.
26

No início da comunidade, era um boliviano que administrava o local.


Entretanto, D. Roberto ficou sabendo que esta pessoa maltratava os Wari’, portanto
a Igreja retirou-o de lá. Então, ele pediu a uma organização jesuíta, chamada OPAN
(Operação Anchieta), que administrasse o local. Esta equipe ficou lá por um tempo e
depois, por uma sugestão do Dom Geraldo, um casal (João Francisco e Eida)
passaram a administrar Sagarana. Eles viveram na aldeia por onze anos e fizeram
um trabalho de resgate a língua Wari’, pois, naquele momento, os indígenas tinham
vergonha de falar na frente dos não indígenas, por uma possível pressão e
preconceito.
Posteriormente, um médico chamado Gil (que atua até hoje junto aos
indígenas) viveu em Sagarana por seis anos. Em seguida viveram alguns outros
casais que não ficavam por muito tempo e logo partiam. Foi então que os indígenas
de Sagarana decidiram que não queriam mais não indígenas, de fora da aldeia, para
administrar a comunidade. Com isso, há cerca de dez anos, são os próprios
indígenas de Sagarana que administram o local. Atualmente, a aldeia leva o título
de “Associação Indígena Sagarana” (CARAVITA & ARRUDA, 2002, p. 31).

Sagarana evoluiu muito, cresceu, organizou-se. Hoje, o povoado


conta com cerca de 60 famílias. Tem sua administração própria,
exercida por um administrador da comunidade, eleito pelo povo
(única comunidade indígena nessas condições, na região). Tem sua
escola com professores da comunidade. (CARAVITA & ARRUDA,
2002, p.32)

3. Estrutura das Aldeias


As aldeias no passado, como dito anteriormente, possuíam cerca de 20 a 30
pessoas. Entretanto, Vilaça (2006; p.78) aponta uma faixa de habitantes um pouco
mais ampla, segundo a autora, uma aldeia oscilava em número de habitantes entre
dez e cinqüenta.

[...] e, em geral, tinham como núcleo um grupo de germanos, homens


ou mulheres, de modo que não se pode falar em viri ou
uroxilocalidade. O mais freqüente era que o grupo local fosse
constituído por um grupo de irmãos casados com um grupo de irmãs,
acrescido de alguns parentes de ambas as partes e seus cônjuges.
(VILAÇA, 2006; p.78)
27

Nelas as casas se dispunham, na maioria das vezes, em uma única linha, a


qual seguia o curso de água. Algumas vezes, haviam casas que compunham uma
linha perpendicular a primeira, formando um desenho em “L” (VILAÇA, 2006; p.71-
72).
Além das casas familiares, havia uma casa de homens solteiros, denominada
kaxa’. Nela dormiam os rapazes que ainda eram solteiros, além de ser o ponto de
encontro dos homens para conversas informais e o local de reclusão dos guerreiros.
Uma casa semelhante a esta é também observada nas aldeias do povo Xerente, ela
se chama warã e tem como função tanto abrigar os rapazes solteiros, quanto ser o
ponto de reunião dos homens desta etnia (SILVA & FARIAS, 1992, p.93). No caso
dos Wari’, a kaxa’ era também onde os convidados das festas ficavam no momento
em que estavam demasiadamente embriagados. (VILAÇA, 2006; p. 70-1).
A arquitetura das casas é descrita por Vilaça (2006, p. 72, 73) como uma casa
composta por um telhado de uma água, feito por folhas de palmeiras, com cerca de
10 metros de altura. Embaixo dele, um metro acima do solo, havia um tipo de
estrado com 1,5 metros de largura e 12 metros de comprimento que acompanhava
toda a extensão do telhado (vide Figura 3Erro! Fonte de referência não
encontrada.). Ele era composto por dois troncos de uma palmeira chamada paxiúba.
Cada tronco tinha 12 metros de comprimento e eram dispostos paralelamente há 1,5
metros. O tronco que ficava mais próximo do telhado era usado como travesseiro, o
outro tronco era onde os indígenas apoiavam a parte interna dos joelhos, deixando
suas pernas penduras, ou apenas dormiam de lado, com as pernas encolhidas (vide
Figura 34). Nas casas familiares, este estrado era completamente forrado por
esteiras feitas pelas mulheres, já na kaxa’ os homens dormiam diretamente da
madeira.
28

Figura 3: Casa tradicional Wari'. (Retirada de PAM CAMEREM, 19??).

Figura 4: Cama tradicional dos Wari' (Retirada de PAM CAMEREM, 19??).

Atualmente as casas da aldeia se assemelham as casas dos moradores


regionais. As paredes das mesmas são compostas por madeira, já o telhado varia;
algumas pessoas utilizam folhas de palmeiras (Figura 5 e Figura 6), outras de
telhas de amianto. Há ainda aquelas casas construídas com tijolos e com telhas de
amianto ou de barro, mas são pouquíssimos os casos.
29

Figura 5: Campo de futebol com casas ao fundo, Sagarana, 2009 (Foto: Luiza Teixeira Bussius)

Figura 6: Foto de uma casa Wari' atual, Sagarana, 2009 (Foto: Elise Mazon Albejante)
30

4. O corpo Wari’
Para entendermos melhor qual é o olhar dos wari’ sobre o corpo humano,
precisamos antes entender o que eles consideram por humanidade. Para eles,
alguns animais possuem espírito e é esta a característica que determina a
humanidade de um ser vivo o que, portanto, faz com que eles considerem alguns
animais irracionais como humanos.
Segundo Vilaça (1998), os Wari’ consideram que apenas alguns seres vivos
possuem jam3·, como certos mamíferos, dentre eles os próprios Wari’, os inimigos,
as onças, os queixadas, além de todos os peixes, algumas aves, as abelhas, as
cobras e alguns poucos vegetais.

Assim, os animais dotados de espírito são tidos como humanos. Têm


um corpo humano, que pode ser visto pelos xamãs, vivem em casas,
bebem chicha de milho e comem alimentos assados e cozidos.
Desse modo, enquanto o corpo (kwere-) é o lugar da diferença - é o
que diferencia as espécies e os indivíduos - o espírito é o lugar da
semelhança. Todos os seres dotados de humanidade têm, digamos
assim, uma mesma cultura, que é a cultura dos Wari'. (VILAÇA,
1998)

Assim, é possível perceber que os Wari’ enxergam o corpo com um olhar


mais profundo do que aquele de costume na cultura não indígena. O corpo não é
pura e simplesmente a forma física e materializada do wari’, mas é também a
personalidade que está por trás desta concepção social e cultural dos ditos
“civilizados” (NOVAES, 1996, p. 63).

Para eles o corpo (kwere - sempre seguido de sufixo indicador de


posse) é o lugar da personalidade, é o que define a pessoa, animal,
planta ou coisa. Tudo o que existe tem um corpo, que é o que lhe dá
características próprias. Os Wari' costumam dizer: "Je kwere" ("meu
corpo é assim"), que significa: "esse é meu jeito", "eu sou assim
mesmo” [...] o que se entende aqui por corpo não é o mesmo que
nós entendemos. Não se trata de um substrato físico cuja
constituição é determinada parte geneticamente, parte pelo
ambiente. O corpo contém afeto, memória, que não podem ser
traduzidos imediatamente em termos de 'composição química' ou
'processo fisiológico'. (VILAÇA, 1998)

3
jam: pode ser traduzido, de forma simplista, como equivalente ao que a sociedade não indígena
considera como alma. Há também outros detalhes e definições, se o leitor quiser se aprofundar, vide
Vilaça, 1992.
31

Em outras culturas também pode-se observar uma diferente relação com o


corpo. Mary Douglas apud Vidal (1992, p.143) aponta que há uma relação muito
forte na forma em que se trata o corpo e a estrutura social de uma cultura. Vidal
(1992, p.147) também comenta que as pinturas corporais possuem íntima ligação
com a categoria à qual o indivíduo pertence, ou seja, se é homem casado ou homem
solteiro, se está em resguardo após o nascimento de um filho, se está em fim de
luto.
Neste mesmo sentido, Andrade (1992, p.126) discorre que entre os Asurini há
a pintura corporal específica para as pessoas enlutadas, que guardam resguardo por
sua perda. Assim também se observa com relação à cultura Wari’, quando os
mesmos estão de luto, raspam seus cabelos. Havia ainda a diferenciação de gênero
na vida cotidiana, de forma que as mulheres usavam cabelos curtos e os homens o
cabelo comprido, que será tratado na discussão dos resultados (item 3).
Pode-se observar aqui as formas de se expressar culturalmente através do
corpo, os diferentes momentos ou as diferentes funções que determinada pessoa
está passando.
Para eles, não é possível enxergar o corpo wari’ na forma como os não
indígenas vêem. A única maneira de enxergar o corpo wari’ é depois de sua morte,
tanto na forma de cadáver quanto no corpo da queixada, já que é para o corpo deste
animal que o espírito vai depois que o Wari’ morre. É por isso que o funeral e todo o
ritual que o envolve era tão importante na cultura deles.

A morte é, para os humanos, uma necessidade lógica, porque só


morrendo são capazes de produzir um corpo. E não me refiro
somente ao corpo definitiva e completamente animal que terão
depois de mortos (queixadas), mas também ao cadáver que, inerte,
inchado e podre, não é mais um simples e genérico corpo humano; o
cadáver é um corpo de Wari’. [...]
Se, ao contemplarem o cadáver, os Wari' podem finalmente ver o
seu próprio corpo, como se diante de um espelho, usufruindo de um
privilégio antes exclusivo aos xamãs, o que estão percebendo antes
de tudo é o corpo da sua espécie, o corpo de Wari', como já disse.
Mas trata-se de uma questão de escala: o importante é essa
propriedade do cadáver, que é um corpo, de tornar visível uma
singularidade, seja do indivíduo, seja da espécie. A morte é
certamente um momento privilegiado de resolução da assimetria de
perspectivas que apontei acima. Mas só para alguns. Os parentes
próximos do morto continuam a ver no cadáver o ente querido. Será
preciso que os não-parentes comam o cadáver para que os primeiros
possam finalmente enxergá-lo. (VILAÇA, 1998)
32

OBJETIVOS
A finalidade deste trabalho é estudar as construções e desconstruções na
cultura do povo Wari’ quando os mesmo entraram em contato com outras cultura.
Para assim observar se houve influência nos diferentes olhares de homens e
mulheres indígenas tanto para com o seu próprio corpo e para com os corpos dos
seus próximos do mesmo sexo, quanto para com os seus próximos do sexo oposto,
quando da chegada da cultura não indígena. Além de observar se o papel dos
gêneros feminino e masculinho desta comunidade indígena foi transformado de
alguma maneira por influência deste contato.
33

METODOLOGIA
Para a realização deste trabalho, a pesquisadora contou com três abordagens
metodológicas: A observação participante, a entrevista semi-estruturada e a revisão
bibliográfica, tendo como foco a abordagem etnográfica.

Dito de outra maneira, o lugar da pesquisa de campo no fazer da


antropologia não se limita a uma técnica de coleta de dados, mas é
um procedimento com implicações teóricas específicas. Se é
verdade que técnica e teoria não podem ser desvinculadas, no caso
da antropologia a pesquisa etnográfica é o meio pelo qual a teoria
antropológica se desenvolve e se sofistica, quando desafia os
conceitos estabelecidos pelo confronto que se dá entre i) a teoria e o
senso comum que o pesquisador leva para o campo e ii) a
observação entre os nativos que estuda. (PEIRANO, 1992, p.8)

Primeiramente, a pesquisadora buscou em diferentes fontes e referenciais


bibliográficos, materiais que discorrem sobre a cultura Wari’, para assim tentar
entender a lógica deste povo.
Entretanto, sabe-se que só se conhece algumas concepções através da
prática. “Uma coisa é a realidade teoricamente estruturada e sistematizada, outra é a
realidade como se dá efetivamente no mundo real” (DEMO, 1987, p.106). Portanto, a
convivência com a comunidade estudada tornou-se uma condição de suma
importância, para a realização da pesquisa. Com a ida a aldeia, a pesquisadora
conseguiu compreender a lógica cultural do povo Wari’, e entender verdadeiramente
os significados das falas e da concepção que eles têm sobre os diferentes pontos
abordados sobre, o gênero, corpo e sexualidade.
Tal metodologia é confirmada por Brandão (1987, p.12), que diz: ”Porque,
também, o primeiro fio de lógica do pesquisador deve ser não o seu, o de sua
ciência, mas o da própria cultura que investiga, tal como a expressam os próprios
sujeitos que a vivem.”
A pesquisadora passou dois meses na aldeia convivendo, construindo e
estreitando laços, ajudando em mutirões, passeando com os indígenas, participando
de diferentes atividades, para assim construir uma confiança mútua.
34

Para Thiollent (1987, p.82) “Trata-se de estabelecer uma adequada


participação dos pesquisadores dentro dos grupos observados de modo a reduzir a
estranheza recíproca.”. Sabendo disso, a pesquisadora acredita ser fundamental
este laço, tanto para não ser invasiva com a comunidade estudada, quanto para
compreender e obter as informações mais reais possíveis.

[...] só se conhece em profundidade alguma coisa da vida da


sociedade ou da cultura, quando através de um envolvimento – em
alguns casos um comprometimento – pessoal entre o pesquisador e
aquilo, ou aquele, que ele investiga. Outra: não é propriamente um
método objetivo de trabalho científico que determina a priori a
qualidade da relação entre os pólos da pesquisa, mas, ao contrário,
com freqüência é a intenção premeditada, ou a evidência realizada
de uma relação pessoal e/ou política estabelecida, ou a estabelecer,
que sugere a escolha dos modos concretos de realização do trabalho
de pensar a pesquisa. Uma última: em boa medida, a lógica, a
técnica e a estratégia de uma pesquisa de campo dependem tanto
de pressupostos teóricos quanto da maneira como o pesquisador se
coloca na pesquisa e através dela e, a partir daí, constitui
simbolicamente o outro que investiga. (BRANDÃO, 1987, p.8, grifo
do autor)

Durante estes dois meses, a principal abordagem metodológica utilizada,


além da pesquisa na literatura, foi a observação participante que, segundo
VIERTLER (2002):

[...] o pesquisador se entrega à rotina e à participação nas várias


atividades de interesse dos pesquisados. Os nós de incompreensão
percebidos pelo pesquisador pouco a pouco vão se dissolvendo por
um complexo processo de “aprender fazendo”, permitindo-lhe
compreender com mais profundidade sentidos até então não
detectados de referenciais culturais dos seus observados.

Além desta abordagem, foram obtidas algumas fotos e vídeos, com


autorização da população local, para que fossem analisados durante a construção
do trabalho, recolhendo o máximo de informações, no que tange ao papel do homem
e da mulher na comunidade estudada. Procurou-se relacionar tais materiais com
atitudes descritas do passado e do presente, observando assim as mudanças
provenientes do contato.
Para a realização deste trabalho, também foi preciso um consentimento da
comunidade. Por isso, o projeto de pesquisa foi passado para o conselho da aldeia
que, após analisar tanto o projeto quanto a postura da pesquisadora, aprovou a
35

realização do mesmo, concedendo uma autorização para permanência e pesquisa


(Anexo 2).

Desta forma, não há como ensinar a fazer pesquisa de campo como


se ensina, em outras ciências sociais, métodos estatísticos, técnicas
de surveys, aplicação de questionários. Na antropologia, a pesquisa
depende, entre outras coisas, da biografia do pesquisador, das
opções teóricas da disciplina em determinado momento, do contexto
histórico mais amplo e, não menos, das imprevisíveis situações que
se configuram no dia-a-dia no local da pesquisa, entre pesquisador e
pesquisados. (PEIRANO, 1992, p.9)

Ressalta-se ainda que houveram alguns encontros com os jovens, com o


intuito de se refletir a sexualidade em seus diferentes aspectos. Estes encontros
aconteceram na escola de Sagarana e contribuiu positivamente, tanto para uma
aproximação entre a pesquisadora e os jovens da comunidade, como para a
compreensão da lógica cultural desta aldeia.
Após estes dois meses, foi acordado entre a pesquisadora e as lideranças
locais, a utilização de entrevistas para a realização da pesquisa. O tipo de entrevista
adotado foi a entrevista parcialmente estruturada, na qual houve um eixo a ser
seguido, sem ser inflexível (Apêndice 1). Pois assim, teve a possibilidade de redefinir
alguns tópicos conforme o desenrolar da mesma, tendo em vista canalizar o discurso
do entrevistado para as perguntas a serem respondidas, como constata VIERTLER
(2002).
Periano (1992, p.5) evidencia a importância de não se querer respostas
através de perguntas imediatas em um estudo etnográfico, pois senão, pode acabar
impondo seu ponto de vista e restringindo o conhecimento passado através da fala
do nativo.
A idéia inicial era entrevistar casais das faixas etárias jovens (até vinte anos),
adultos (de vinte a quarenta anos) e idosos (de quarenta e cinco a cinqüenta).
Entretanto, no acordo anteriormente citado, combinou-se que seriam as próprias
lideranças que escolheriam as pessoas a serem entrevistadas. “[...] não há história
real precisamente sem limitações, sem traições e sem deturpações” (DEMO, 1987,
p.108)
Com isso, foram escolhidos seis jovens (três mulheres e três homens) e um
casal heterossexual adulto. Com os resultados obtidos e analisados, a pesquisadora
36

separou-os em quatro categorias: “Olhar Feminino Jovem”, “Olhar Feminino Adulto”,


“Olhar Masculino Jovem” e “Olhar Masculino Adulto”.
Após a análise e discussão, a pesquisadora fez um segundo campo, para
mostrar os resultados da pesquisa e para uma revisão destes dados.
Desta segunda vez ficou um mês, fez algumas reuniões e encontros.
Entretanto, em uma destas análises, a revisão contou com uma amostragem que
englobava pessoas de todas as categorias anteriormente estabelecidas, além de
dois homens idosos e uma mulher também idosa.

Não esgotamos a realidade, nem temos toda a verdade na mão;


somos apenas pesquisadores, ou seja, gente que duvida, que erra,
que deturpa, mas que, sabendo disso, quer reduzir o desacerto.
(DEMO, 1987, p.111 – grifo nosso)

Esta revisão fez com que as categorias se misturassem e enriqueceu


demasiadamente o resultado da pesquisa. Com isto, a pesquisadora decidiu colher
todas estas informações enriquecendo a abordagem etnográfica4 sobre o grupo
estudado, categorizando os mesmos entre o passado (antes do contato) e o
presente (após o contato), para assim evidenciar a transformação cultural.

Em nossos dias, a etnologia chega a uma avaliação cada vez mais


precisa e matizada dos diferentes estados que conhece, ou
conheceu, a humanidade fragmentada e particularizada. O número
de sociedades estudadas é crescente. A quantidade e a riqueza das
observações permitem ao etnólogo consolidar seu lugar entre os
estudiosos. (Laburthe-Tolra & Warnier, 1997, p.40)

4
Segundo Laburthe-Tolra & Warnier (1997, p.39), “[...] os etnólogos dedicam muito tempo e energia à
descrição e análise das sociedades outras [...] Estabelecem comparações entre várias sociedades [...]
É isto que queremos dizer ao afirmar que a etnologia é comparativa.” (grifo do autor)
37

ANÁLISES E RESULTADOS
Os resultados foram divididos em temas a fim de organizar a lógica que
estrutura esta cultura, entretanto esses diferentes temas são interconectados e,
portanto, podem aparecer mais de uma vez ao longo da discussão.
Os dados aqui apresentados foram colhidos ao longo da pesquisa e
comparados com a literatura, tanto aquelas que dizem respeito à cultura Wari’
quanto àquelas que dizem respeito a outras culturas. Outra comparação feita foi com
relação a sua temporalidade, ou seja, os mesmos foram categorizados entre
passado e presente, para observar assim, a transformação que esta cultura vem
sofrendo ao longo destes anos de contato.

1. Atividades Femininas
Como será possível observar, as atividades na comunidade estudada são
baseadas nos gêneros feminino e masculino.
Na maioria das culturas indígenas esta divisão sexual de trabalho é evidente.
A exemplo disso, Silva & Farias (1992, p.92) discorrem brevemente que no povo
Xerente há também a divisão sexual do trabalho na esfera doméstica. Clastres
(2003, p.120) aponta que entre os indígenas Guayaki há a divisão sexual do trabalho
fortemente marcada, formando campos opostos e complementares.
Esta oposição e complementaridade, observada por Clastres, também será
notada nos Wari’ em suas divisões de tarefas e papeis sociais que cada gênero tem
a incumbência. Neste primeiro tópico, será relatado sobre as atividades que cabem
ao gênero feminino e, no item seqüente, serão tratadas as atividades que cabem ao
gênero masculino.
Há diversos afazeres femininos na cultura Wari’. Para melhor compreensão
do leitor, a pesquisadora elaborou uma tabela evidenciando as atividades citadas
durante a pesquisa, classificando-as como pertencentes ao passado e/ou presente.
A discussão destas atividades acontecerá ao longo deste item.
38

Tabela 2: Atividades femininas no passado e no presente


ATIVIDADES FEMININAS
PASSADO PRESENTE
Arrumar a Casa Arrumar a Casa
Cozinhar (COLOCAR OS PRINCIPAIS) Cozinhar (COLOCAR OS PRINCIPAIS)
Cuidar dos Filhos Cuidar dos Filhos
Carregar Panero
Carregar Panero
Ajudar na Derrubada da Capoeira
Retirar ervas daninhas
Retirar Ervas Daninhas
Plantar
Colher
Plantar
Pescar por Arrastão
Pescar retirando o peixe do tronco oco com a
Colher mão
Pescar com Linhada
Pescar retirando o peixe do tronco oco com a Pescar com Caniço
mão Fazer compras no Mercado
Pescar por Arrastão Lavar Roupa

1.1 Passado
Desde o passado, cabia ao gênero feminino arrumar a casa, cozinhar, fazer
artesanatos (que será detalhado em um item específico para este assunto), cuidar
dos filhos e, eventualmente, cuidar de outras crianças. Além de prover o alimento
cozido rotineiramente para sua família, o gênero feminino cozinhava, e ainda
cozinha, quando há mutirões, sejam eles feminino, masculino, ou quando ambos os
gêneros participam deste trabalho coletivo.
Estes diversos afazeres domésticos pertencentes ao gênero feminino também
pode ser observado entre o povo Tchambuli, no qual grupos de mulheres
permanecem em suas casas cozinhando, trançando e remendando seus
equipamentos de pesca (MEAD, 1988, p.233). Lá, quando há alguma festividade,
“Cinqüenta ou sessenta mulheres se reúnem numa casa, aglomerando-se em
grupos de cozinheiras ao redor das panelas no fogão [...] onde assam bolos e
cozinham [...] panquecas de sagu, que acompanham toda a festa.” (MEAD, 1988,
p.234)
No caso dos Wari’, há dois itens fundamentais para alimentação, que eram
preparados pelas mulheres. Estes eram a chicha de milho e a pamonha, sendo os
principais complementos alimentares das caças. Tal fato evidencia que a base
alimentar desta etnia era o milho (vide Figura 7).
39

Nota-se que, ao contrário dos Wari’, a maioria dos grupos indígenas


brasileiros possui a mandioca como base alimentar. Entretanto, a etnia estudada
neste trabalho não compõe o único grupo indígena que baseia sua alimentação no
milho. Vários povos indígenas dos Andes já se alimentavam desta semente. Mason
(1964, p.29), em um livro sobre as civilizações peruanas, aponta que muitas culturas
americanas adotaram o milho como base alimentar.

Figura 7: Na esquerda, mulher cuidando de uma criança e "pisando" o milho para fazer chicha. À
direita, mulher carregando uma criança com uma fita de algodão. (Retirada de PAM CAMEREM,
19??).

Talvez a influência desta comida venha pela posição geográfica onde se


encontram os Wari’, a oeste do Brasil, mais próximo aos Andes que a maioria das
regiões brasileiras. No entanto, não se pode concluir a partir daí que esta etnia tem
sua origem andina, mesmo porque ela pertence a uma família isolada, aos
Txapakura. Os estudos relativos à mesma dizem apenas que esta família vivia nas
proximidades do Guaporé e Mamoré e nenhum estudo comprova algo além disso:

Muito remotamente – mas não antes do século XVII – alguns grupos


txapakura atravessaram o Mamoré e se fixaram em alguns de seus
afluentes da margem direita, onde estão, até hoje, os Pakaas-novos
[Wari’], a única sociedade txapakura em território brasileiro. [...] O
40

Guaporé agrupou secularmente os povos txapakura, não tendo sido


observada a sua presença em nenhuma outra região. (MEIRELES,
1989, p.46)

Outro espaço onde as atividades femininas eram realizadas é a roça. Lá, elas
carregavam panero5, ajudavam na derrubada, plantavam e colhiam. A importância
de ser a mulher a responsável por carregar o panero fica evidente quando se sabe
que ao gênero masculino cabe a proteção de sua família e da comunidade como um
todo. Com isso, os homens que também participaram do mutirão da roça,
precisavam ter a mobilidade necessária para se utilizar do arco e flecha, caso
aparecesse algum perigo (como etnias rivais ou animais perigosos).
Além da proteção, existia a possibilidade deles acharem alguma caça no
caminho entre a roça e a aldeia, com isso poderiam aproveitar o momento para obter
outras fontes de alimentos (para maiores detalhes, vide Figura 8).

Figura 8: Provavelmente grupo voltando de sua roça (xitot) (Retirada de PAM CAMEREM, 19??).

5
Panero: cesto com uma alça presente em várias culturas indígenas, há vários modelos, dependendo
da cultura. Para visualização do panero, vide Apêndice 2, Figura 16 – C.
41

Dentro das atividades femininas ainda cabe ressaltar duas formas de


pescaria. Uma era, e ainda é, chamada de pesca por "arrastão". Esta forma peculiar
de pesca se resume em um mutirão no qual as mulheres empurravam capim pra
represarem um determinado igarapé. Após este represamento, elas retiravam água
da parte que não foi represada, onde a água deixa de ter seu fluxo por conta da
barreira. Com isso, podiam ver o peixe e pegá-lo com as mãos.
A segunda forma de se pegar os peixes era colocando suas mãos dentro de
troncos de árvores ocos, proveniente das fortes correntezas do chamado inverno
amazônico, e pegavam o peixe que ali permanecia.

1.2 Presente
Atualmente, o gênero feminino continua cuidando dos afazeres domésticos,
entretanto, alguns itens foram incorporados desde o contato mais prolongado e
intenso com os não indígenas.
Além de arrumar a casa, cozinhar e cuidar dos filhos, as mulheres ainda
lavam roupas e compram alguns itens alimentares no supermercado da cidade. Este
último fato mostra que com o contato, houve a mudança alimentar dos Wari’ desta
comunidade.
No passado, esta etnia se alimentava basicamente de caças, peixes, gongo6,
frutos das coletas feitas na mata e de milho, tanto nas formas de farinha e pamonha
quanto na chicha. Atualmente, com a influência de outros povos (diferentes etnias
indígenas, quilombolas, bolivianos, nordestinos, portugueses, espanhóis,
paranaenses entre outros povos que migraram para a região), a pamonha, a farinha
e a chicha de milho continuam sendo feitas, entretanto foi possível constatar que a
pamonha vem sendo substituída por arroz ou macarrão e a farinha de mandioca
substituiu a farinha de milho.
Ou seja, a base alimentar dos Wari’ se transformou. Hoje, o milho ainda é
utilizado na alimentação, com estas diferentes finalidades citadas acima, entretanto
muitas famílias plantam mandioca e fazem farinha com a mesma e seu excedente é
vendido na cidade.

6
Gongo: larva encontrada nos troncos de palmeiras em decomposição.
42

Este último caso foi constatado, certa vez, em um relato pessoal com a
justificativa de que a população não indígena da região tem o hábito de comer
farinha de mandioca e, por conta de uma maior comercialização, muitos dos Wari’
passaram a plantar e fazer farinha desta raiz ao invés de fazer sua farinha
tradicional.
Já chicha de milho, apesar de citada pelos entrevistados como sendo um item
alimentar do passado, ainda é muito consumida hoje e faz parte da rotina e base da
alimentação dos Wari’. Apesar disso, observa-se também a chicha de mandioca
também é presente na comunidade, porém com um consumo muito menor do que a
chicha tradicional desta cultura.
Além da produção de mandioca, proveniente do contato com os não
indígenas, os Wari’ passaram a plantar arroz, sendo sua finalidade o consumo
próprio. O sal, o óleo, o macarrão, o café e o açúcar também foram apontados como
alimentos que passaram a ser consumidos após o contato e que, no entanto, não
são produzidos em Sagarana (ou por causa do clima, ou por ser industrializado). Os
mesmos são, atualmente, comprados em supermercados da cidade.
Nota-se que o aspecto mais evidente é a mudança na alimentação e sua
influência proveniente do contato. A necessidade de temperar os alimentos com sal,
o gosto pelo doce do açúcar, o complemento alimentar do macarrão mostram e
evidenciam hábitos que foram transformados com estes contatos e convivência entre
as diferentes culturas.
Da mesma forma que a cultura brasileira, como um todo, possui vários
hábitos culturais herdados dos indígenas, como o consumo da mandioca e seus
diferentes modos de preparo, o hábito de tomar banho todos os dias, o uso da rede,
dentre tantos outros também são retirados da cultura indígena.
Na roça, o gênero feminino atua na limpeza e manutenção da mesma com o
uso de enxada e terçado7. Também ajudam a retirar os galhos quando vão reutilizar
as áreas de coivara 8.

7
Terçado: Nome dado ao facão na região Norte
8
Coivara: Sistema de agricultura utilizada há muitos anos pelos indígenas que consiste em esperar
um tempo o solo da região, onde era localizada a roça, se fortalecer. Após este tempo há a queimada
da matéria orgânica que cresceu no local (vegetação regenerante) e posterior plantação, reutilizando
a área de roça.
43

Fora o machado de pedra, substituído pelo de ferro, a técnica ainda é


a mesma até hoje, ente os povos indígenas. No final da estação
seca, eles derrubavam a vegetação mais rala ou arbustiva de uma
faixa de floresta. Após secagem natural, um pouco antes das chuvas,
ateava-se fogo. Esse poderoso aliado das caçadas nos cerrados
tornou-se um eficiente instrumento da agricultura na floresta. As
cinzas fertilizavam os solos.
Essa técnica, conhecida até hoje como coivara, permitia alguns
ciclos de culturas anuais (milho, amendoim, abóboras, taiobas, carás,
cabaças...) e o ciclo de plurianuais, como a mandioca e a batata-
doce. Tudo dependia da fertilidade dos solos. Nenhum instrumento
agrícola, em particular, era requerido e o trabalho era todo manual,
denotando sua relativa produtividade naquele contexto. (MIRANDA,
2004, p.8)

A pescaria também foi incrementada com as novas tecnologias advindas do


contato. Apesar dos Wari’ continuarem fazendo suas pescarias tradicionais, a
utilização do caniço9 e linhada10 tornaram-se usuais e auxiliam na captura de peixes.
Isto ocorre pelo mesmo fato das outras adoções de novas tecnologias, já que as
mesmas são mais uma forma eficiente de se pegar o peixe. Além disso, a pescaria
tradicional por “arrastão” demanda a participação de várias pessoas, já o caniço e a
linhada podem ser usados de forma mais independente.

2. Atividade Masculina
Com esta divisão tão acentuada de tarefas e papéis, observa-se também que
os espaços relativos a cada gênero seguem a linha de oposição e
complementaridade anteriormente citada. Como foi observado, as atividades do
gênero feminino são, em sua maioria, encontradas no espaço doméstico, dentro da
aldeia. Já as atividades masculinas, como será possível observar a seguir, envolve
quase que exclusivamente o espaço da floresta, da mata. Porém, cabe ressaltar que
há espaços comuns entre ambos os gêneros. Por exemplo, na roça há tanto
atividades femininas quanto masculinas, o mesmo é observado nos igarapés.
Para melhor compreensão, a pesquisadora confeccionou uma tabela
contendo as atividades relativas ao gênero masculino, evidenciando aquelas que
eram realizadas no passado, no presente ou em ambas as épocas.

9
Caniço: Nome dado na região para vara de pesca.
10
Linhada: Instrumento para pescaria composto por um novelo de linha de pesca e anzol na ponta.
44

Tabela 3: Atividades Masculinas realizadas no passado e no presente


ATIVIDADES MASCULINAS
PASSADO PRESENTE
Caçar com Espingarda
Caçar com Arco e Flecha
Pescar com Arco e Flecha
Pescar retirando o peixe do tronco oco com a
Pescar com Arco e Flecha mão
Pescar com Linhada
Pescar retirando o peixe do tronco oco com a Pescar com Caniço
mão Pescar com Malhadeira
Ajudar a represar o Igarapé na pesca por Arrastão
Ajudar a represar o Igarapé na pesca por Arrastão
Derrubar a mata com terçado
Derrubar a mata com Foice
Derrubar a mata com machado de pedra
Derrubar a mata com machado de ferro
Plantar
Derrubar a mata com terçado
Colher
Carregar Panero
Construção de casa de rabo de jacu
Construção de casa de rabo de jacu

2.1 Passado
Ao gênero masculino cabia caçar e pescar e, como conseqüência, alimentar
com as proteínas animais a família que lhe é responsável; seja esta sua família de
origem (ajudar o pai a alimentar sua mãe e irmãs), seja esta, sua esposa e filhos.
Dependendo da quantidade de carne advinda destas atividades, havia e ainda há a
divisão do alimento com seus parentes; como um caso que foi observado durante o
período vivido pela pesquisadora em Sagarana. Neste período, caçaram uma anta,
que gerou alimento para toda a aldeia.
Tanto a caça quanto a pesca eram feitas com arco e flecha (Apêndice 2,
Figura 16 F), sendo que muitas vezes eles pernoitavam na mata e, por isso,
construíam casas temporárias, descritas pelos Wari’ de Sagarana como casa de
rabo de Jacu. Além disso, eles ajudavam as mulheres no represamento do igarapé e
também pegavam os peixes nos troncos ocos das árvores caídas nestes cursos de
água, métodos de pescarias descritos e discutidos no item anterior.
Entre os Guayaki também se observa uma procura rotineira de fontes de
alimentos, entretanto, no caso deste povo, a agricultura era ausente, o que fazia
recair aos homens esta função quase que exclusiva de prover os alimentos, apesar
das mulheres coletarem frutos, mel e larvas. (CLASTRES, 2003, p.121 e 125-6)
Diferentemente dos Guayaki, os Wari’ tinham na agricultura outra fonte de
alimentação. Neste espaço, o papel masculino era mais direcionado para a
45

derrubada da mata, abrir o roçado. Também agiam assim nas proximidades das
casas, para que não houvesse o perigo de animais ferozes/peçonhentos se
aproximarem e pegarem as pessoas que ali habitavam.
A derrubada da mata para abrir a roça, consistia na retirada de grandes
galhos com machados de pedra e, posteriormente, colocavam fogo na região onde
iriam plantar os alimentos. Todavia, este instrumento foi trocado por terçados e
machados de ferro, anteriormente ao contato pacífico. As aquisições destes novos
objetos aconteciam, na maioria das vezes, antes mesmo da tentativa de um contato
pacífico, dado pelos não indígenas; porém, às vezes, os Wari’ conseguiam estes
instrumentos, quando encontravam e pegavam na mata ou nos acampamentos dos
waijam.

2.2 Presente
Além da substituição dos machados de pedra por terçado e machado de ferro,
o arco e flecha das caçadas também foram trocados por armas de fogo. Estas trocas
foram, evidentemente, influenciadas pelo contato. Entretanto, por elas terem maior
eficiência, foram rapidamente efetivadas, o que não significa que esta comunidade
mudou os valores que embasam a cultura.
Ou seja, com o advento destes eficientes materiais, os indígenas desta
comunidade poderiam obter mais alimentos em menos tempo, entretanto não
passaram a se importar com o acúmulo de bens, sendo assim, não passaram a ter
uma visão capitalista. Ao contrário, eles continuaram obtendo o necessário para a
sua alimentação e a de seus parentes.

Isso significa que as sociedades primitivas dispõem, se assim o


desejarem, de todo o tempo necessário para aumentar a produção
dos bens materiais. O bom senso questiona: por que razão os
homens dessas sociedades quereriam trabalhar e produzir mais,
quando três ou quatro horas diárias de atividade são suficientes para
garantir as necessidades do grupo? De que lhes serviria isso? Qual
seria a utilidade dos excedentes assim acumulados? Qual seria o
destino desses excedentes? É sempre pela força que os homens
trabalham além das necessidades. (CLASTRES, 2003, p. 213)

Além disso, nota-se uma vantagem em não haver uma exploração e produção
intensiva nessas sociedades. Uma vez que fossem intensificados, o meio ambiente
46

talvez não responderia, assim como não responde à sociedade capitalista, com a
velocidade aumentada para uma produção visando o acúmulo. Lembrando que os
principais “bens de consumo” das sociedades indígenas são a própria natureza,
portanto a harmonia entre ela e estes grupos humanos é fundamental para a
perpetuação destas pessoas.
A troca do arco e a flecha pela arma de fogo na caçada também permitiu uma
velocidade maior na captura de animais, já que as chances de um tiro matar a presa
é maior do que a flecha conseguir tal morte. Por mais que esses indígenas tenham
excelente pontaria, poderiam apenas machucar estes animais, não os matando
definitivamente. Além disso, o volume de material para se levar ao mato quando se
utilizava o arco e a flecha era muito maior do que levar uma arma com suas
munições.
Porém, ainda pernoitam na mata, já que muitos animais possuem hábitos
noturnos, portanto a construção da casa de rabo de jacu continua sendo um hábito
dos Wari’ de Sagarana. Outro aspecto/tecnologia preservado entre estes indígenas
é o uso de arco e flecha nas pescarias (Figura 9), entretanto eles incrementaram a
flecha colocando uma ponta de metal.

Figura 9: Homem pescando com arco e flecha (Retirada de PAM CAMEREM, 19??).
47

Ainda na pescaria, passaram a utilizar outras ferramentas como linhada,


caniço e malhadeira. Este último item é utilizado apenas por alguns com o fim de
alimentar seus parentes, sem que haja, portanto, um problema de comercialização
destes recursos.
Atualmente, além do terçado, eles utilizam foice e machado de metal na roça.
Com isso, podem abrir uma área mais rapidamente para a plantação de seus
alimentos (fato já discutido na categoria passado). Além disso, os homens também
plantam e colhem com a mesma freqüência que as mulheres. Ou seja, as mulheres
e os homens participam juntamente da plantação e da colheita de suas roças, as
quais são geralmente familiares; portanto, cada roça pertence a um clã familiar que
ali colocou seus esforços e trabalho.

3. Artesanato
Tanto no passado quanto no presente, homens e mulheres faziam e fazem
artesanatos, entretanto alguns deles são produzidos exclusivamente por um dos
sexos. Clastres (2003, p.123), relaciona a manufatura de determinado objeto com a
atividade na qual o mesmo será empregado; ou seja, o homem faz os artesanatos
que serão necessários a ele, à atividade dele; já a mulher irá fazer os artesanatos
relativos às atividades dela.
Um fato curioso é que a diversidade de artesanatos citados sendo produzidos
pelos homens, no passado, é maior do que aqueles citados como sendo feitos pelas
mulheres na mesma época. Entretanto, a maioria destes objetos masculinos era
produzida tendo as festas como finalidade, como será descrito adiante.
Este traço cultural se assemelha ao papel dos homens Tchambuli. Segundo
Mead (1988, p.239): “[...] os Tchambuli [...] vivem principalmente para a arte. Todo
homem é um artista e a maioria é hábil não apenas numa arte, porém em várias: na
dança, na escultura, no trançado, na pintura etc.”

3.1 Passado
Os homens faziam seus arcos e flechas, tanto para caçar quanto para pescar.
Também faziam vários artesanatos que enfeitavam seus corpos como brincos e
braceletes. Os indígenas, de uma forma geral, valorizam bastante a estética, tanto
48

de seus corpos, pintando-os, quanto de seus artesanatos, fazendo com que os


simples instrumentos do cotidiano se transformem em verdadeiras obras de arte.
Segundo Vidal (1992, p.17), são as funções éticas de uma sociedade
indígena que conferem a estética de seus ornamentos e pinturas corporais e,
através de um aprofundamento nesta arte indígena, é possível compreender a vida
em sociedade destas comunidades. Entretanto, este trabalho não se aprofundou
neste sentido, por ser um ponto extremamente complexo, cujo levantamento de
dados daria, por si só, outra pesquisa.

[...] percebe-se claramente que a obra de arte faz parte da história e


das experiências atuais de uma sociedade: sua especificidade,
autonomia e seu valor estético não a separam absolutamente das
outras manifestações materiais e intelectuais da vida humana. No
contexto tribal, mais que qualquer outro, a arte funciona como um
meio de comunicação. Disso emana a força, a autenticidade e o valor
da estética tribal.” (VIDAL, 1992, p. 14 e 17)

Alguns fatos evidenciam que a estética e o paradigma dos Wari’ eram outros.
Pois, ao contrário do que geralmente acontece atualmente, antes do contato, eram
os homens que tinham mais enfeites do que as mulheres, usando brincos, colares e
braceletes (feitos por eles mesmos). Também usavam o cabelo comprido enquanto
as mulheres o cabelo curto.
Vidal (1992, p.13) aponta que estas variações na forma de se enfeitar, seja
com ornamentos ou com pinturas corporais, evidenciam uma “concepção tribal de
pessoa humana, a categorização social e material e outras mensagens referentes à
ordem cósmica. Em resumo, manifestações simbólicas e estéticas centrais para a
compreensão da vida em sociedade.”
Nas festas eles colocavam uma espécie de cocar, feita da penugem branca
do peito do urubu, manufaturadas pelos próprios homens. Este mesmo material era
utilizado pelos Asurini, entretanto, aplicavam esta pelugem em seus corpos e este
era um ornamento exclusivo dos dançarinos de uma festa (ANDRADE, 1992, p.117).
Os homens faziam vários instrumentos para as festividades, como: o Hwiroroi
(um tipo de flauta feita de taboca11 com um ouriço de castanha na extremidade), o
wakam (consiste em dois troncos grossos e ocos, suspensos paralelamente, além
de uma baqueta, Figura 10) e a pele do tambor tradicional (Vide foto no Apêndice 2,

11
TABOCA: Uma espécie de bambu
49

Figura 16 A), sendo esta feita do látex, proveniente da seringueira e da flor da


bananeira brava. Este último instrumento era feito conjuntamente com as mulheres,
sendo que elas eram as responsáveis pelo pote de cerâmica, compondo assim um
dos instrumentos mais importantes nas canções proferidas nas festas Wari’.

O tambor circulava de mão em mão, e quem o estava segurando


cantava uma música que havia composto – geralmente quando era
um homem mais velho – ou que lhe havia sido ensinada por algum
parente, e era acompanhado pelos demais. Todos desviam olhar
sempre para o chão, com exceção do portador do tambor, que, com
a cabeça baixa, olhava fixamente para ele. (VILAÇA, 2006, p.112)

Figura 10: Wakam, instrumento tocado pelos homens Wari' nas festas tradicionais (Retirada de PAM
CAMEREM, 19??).

Nota-se que eram os homens os responsáveis pela maioria dos objetos que
animavam as festas. Vincular o gênero masculino com a festa parece cabível aqui.
Voltando às atividades baseadas nos gêneros e sua relação com o artesanato,
percebe-se que cada gênero confecciona o objeto que lhe é útil em sua atividade.
Em uma passagem do livro de Vilaça (2006, p.112), ela comenta que as
festas tamara eram compostas, em sua maioria, por homens jovens e velhos e
mulheres solteiras ou casadas ainda sem filhos. Entretanto, ela ainda cita que uma
vez participou de uma festa em que as mulheres com filhos pequenos também
50

participaram desta festividades – porém como ao gênero feminino cabe cuidar dos
filhos – elas ficavam sentadas amamentando e cuidando das crianças.
Outro objeto feito pelos homens é o papaw, ou seja, a borduna. Diversas
etnias têm suas bordunas tradicionais, cada qual com um modelo diferente (para ver
o modelo feito pela cultura Wari’, vide Apêndice 2, Figura 16 B), porém com
finalidades muito semelhantes: utilizá-la em brigas com inimigos e às vezes, com
pessoas da mesma etnia. Esta ferramenta também pode ser usada na caça de
animais. As brigas com bordunas entre os Wari’ serão mais detalhadas no item 12.
Foi mencionado também um tipo de saco para carregar, do mato até a aldeia,
as caças capturadas. Esta bolsa chama-se Tukuram e é feita pelos homens
rapidamente, logo após caçar a presa.
Já as mulheres faziam cestos (Apêndice 2, Figura 16 D), esteiras (sobre a
qual dormiam), paneros (para carregar o milho), uma faixa de algodão (para carregar
o filho) e o pote de barro para a composição do tambor tradicional. O que evidencia,
portanto, que suas manufaturas estavam intimamente relacionadas com suas
funções/papeis sociais.

3.2 Presente
Atualmente, os homens Wari’ confeccionam arco e flecha, anel, colar,
pulseiras, canoa e remo. Todos estes artesanatos feitos apenas no presente são
influências do contato. Cabe ressaltar que os últimos dois utensílios (remo e canoa)
mostram a influência da cultura não indígena e da cultura de outras etnias indígenas
na cultura Wari’, já que eles não eram grandes conhecedores de navegação. Isto
porque tinham medo dos grandes rios, onde, na crença deles, se localizava/localiza
a aldeia dos mortos, no mundo subaquático.

Os Wari’ viviam, tradicionalmente, em área de floresta de terra firme,


junto a pequenos igarapés e longe de grandes rios. Não conheciam a
navegação fluvial e circulavam entre as aldeias através de trilhas na
floresta. Hoje, vivem ainda no mesmo tipo de ecossistema, mas
aprenderam a fazer e navegar canoas, pois a maioria dos postos
onde vivem aldeados situa-se nas margens de grandes rios.
(VILAÇA, 1992; p.21)
51

As mulheres, por sua vez, fazem anéis, brincos, colares, paneros, marico
(bolsa feita com a fibra da folha de uma palmeira), pulseiras, palito de cabelo e
cestos. O palito de cabelo, além de ser confeccionado pelas mulheres, é também
usado por elas. Ou seja, atualmente, são as mulheres que usam o cabelo comprido
e os homens o cabelo curto.
A mudança no comprimento do cabelo de homens e mulheres já foi apontada
anteriormente, todavia fica evidente que este fato mostra a influência cultural e a
quebra de paradigmas que ocorre quando culturas diferentes estabelecem uma
relação de contato. Sendo esta reconstrução mutuamente transformada ao longo do
tempo, alterando assim as concepções estéticas tidas como padrões anteriores ao
contato.
Agora, partindo do pressuposto apontado por Vidal (1992, em citação anterior
na página 47), de que a estética de um povo desvela sua função ética, nota-se que
essas mudanças de paradigmas, no caso o comprimento do cabelo para cada
gênero, evidencia uma influência de novas concepções que esta sociedade passou
a ter após o contato. Esta mudança de paradigmas, advinda do contato, também
pode ser observada ao longo de todo o trabalho.
Estes artesanatos feitos por elas são tanto para uso próprio quanto para
comercialização, sendo uma das principais fontes de rendas das mulheres indígenas
de Sagarana. Por causa deste fim comercial, novos formatos para os objetos
tradicionais podem ser observado entre os Wari’ de Sagarana, que confeccionam
cestos com formas variadas. (vide Apêndice 3, Figura 17)
Estas transformações relativas aos artesanatos, seja por sua nova função ou
por seus novos formatos, também é evidente no povo Asurini. As mulheres desta
etnia confeccionavam duas formas de cerâmica no passado, atualmente foram
incorporadas novas formas, sendo que estas podem estar intimamente relacionadas
com a nova função que o artesanato adquiriu nos tempos atuais, a sua venda.
(ANDRADE, 1992, p. 118).

4. Educação
É interessante notar como se dá a educação para os meninos e para as
meninas. Os primeiros possuem uma educação mais voltada à caçada, as atividades
masculinas de prover alimento para sua família; já as meninas possuem uma
52

educação mais voltada ao namoro/relacionamento, como cuidado para exercer seu


futuro papel de mãe e esposa.
Ensinamentos similares aos jovens Guayaki são descritos por Clastres (2003,
p.123 e 124), nos quais os rapazes, quando atingem uma idade necessária e se
mostram competentes enquanto caçadores à sua família e à comunidade, logo
poderão “ter uma mulher e deverá conseqüentemente prover as necessidades do
novo lar.” De forma complementar as moças, quando ficam menstruadas pela
primeira vez, logo poderão se tornar esposas dos jovens caçadores.
Apesar de pais e mães conversarem com os filhos e educarem
conjuntamente, as práticas destinadas ao gênero masculino é mais evidentemente
passada de pai para filho e as práticas domésticas é mais fortemente passada de
mãe para filha.
Isto não significa que os pais não mostrem às suas filhas algumas de suas
práticas ou que as mães não ensinem seus filhos os afazeres domésticos, entretanto
estas misturas de gênero foram pouco observadas pela pesquisadora na
convivência com o grupo.

4.1 Papel da Mãe


As filhas aprendiam e aprendem na prática as atividades femininas. Nota-se
que as meninas ajudam em casa desde pequenas, além de aprenderem com as
mães, e outras mulheres da família, a fabricar artesanatos. De forma análoga,
Clastres (2003, p.124) descreve como as mães da etnia Guayaki educam suas
filhas:

Menina de nove ou dez anos, recebe de sua mãe uma miniatura de


cesto, cuja confecção ela acompanha atentamente. Ela nada
transporta, certamente; mas o gesto gratuito de sua marcha [...] a
prepara para seu futuro próximo. (CLASTRES 2003, p.124)

Certa vez, uma menina de dez anos contou à pesquisadora que estava
fazendo almoço para sua mãe e cuidando das crianças, enquanto sua genitora fazia
outros serviços que era de sua obrigação.
Diversas vezes também era possível observar as meninas com quatro/cinco
anos cuidando das crianças mais novas que a mesma. A liberdade que as crianças
têm em uma aldeia é muito diferente que as dos não indígenas. Elas ficam todas
53

muito juntas e uma cuida da outra, basta ser uns anos mais velha para cuidar das
crianças mais novas. Os meninos também têm esta liberdade e andam sempre
juntos, se ajudam, entretanto o ato de carregar os menores no colo foi extremamente
mais observado como uma atitude feminina.
As mães também aconselham tanto os meninos quanto as meninas,
entretanto é com as meninas que elas conversam sobre namoro e outros aspectos
que envolvem o relacionamento. Há quem diga ainda que algumas mães mal
conversam com suas filhas sobre namoro e relacionamento. Como será discutido
mais adiante, esta questão ainda é tabu na comunidade Wari’.

4.2 Papel do Pai


Assim como as filhas, os filhos aprendiam e aprendem na prática as
atividades masculinas. Dentre estas atividades foram mencionadas a confecção de
arcos e flechas; se localizar no mato; assoviar para comunicação no mato; subir em
árvore; fazer cestos descartáveis; como tratar uma mulher, dentre outros fatores que
dizem respeito tanto aos relacionamentos quanto as atividades deste gênero. Assim
como as mães, os pais aconselham os filhos e as filhas, não importando o sexo ao
qual pertencem.
Esta forma de aprendizado informal é possível observar em diferentes
culturas. Apesar das regras morais que são passadas ao longo da vida de qualquer
ser humano, uma pessoa adquire seus conhecimentos e comportamentos também
por vivências e observações. Se o leitor parar para analisar sua vida, verá que nem
tudo o que sabe, nem todos os seus hábitos rotineiros, foram ensinados por regras
ou de maneira formal.
Há alguns aspectos sociais que estão cristalizados e que, entretanto, foram
passados para cada um de forma subjetiva, no convívio com os outros. Por exemplo,
em São Paulo as pessoas se cumprimentam com um beijo no rosto; no Rio de
Janeiro, as se cumprimentam com dois; na França, dependendo da região, os
cumprimentos são compostos por três beijos no rosto; nos Estados Unidos, a não
ser que a pessoa tenha muita intimidade, não há beijo no rosto quando se
cumprimentam, o mesmo acontece entre os Wari’, dificilmente uma pessoa de fora
irá receber alguém com um abraço e beijo no rosto.
54

4.3 Passado X Presente


A mudança mais nítida do ponto de vista da educação é a forma como se dá
o ensino-aprendizagem. No passado, os ensinamentos eram feitos na prática,
quando os filhos acompanhavam e ajudavam seus pais e mães. Atualmente isto não
deixou de existir, esta educação não formal ainda ocorre, entretanto o tempo
destinado a mesma ficou mais curto, já que hoje as crianças e jovens vão à escola.
Mas qual a importância da escola na comunidade indígena?
Desde o contato pacífico, a necessidade do conhecimento advindo da
sociedade não-indígena se tornou cada vez maior, porque agora eles não mais
estão isolados em seus habitats. Ao contrário, suas áreas estão cada vez mais
restritas e com maior influência da cultura exterior, isto é, a cultura dos não
indígenas. A presença de uma escola passou a ser algo imprescindível para esta
parte da população, pois agora eles necessitam saber seus direitos e deveres
enquanto cidadãos brasileiros.

5. Educação Sexual
Antigamente existia a divisão de gênero na educação sexual, ou seja, as
mães educavam as filhas mulheres e os pais educavam os filhos homens. Com
relação a este item foi relatado pelos Wari’ que eles conversavam e conversam
sobre o assunto com os filhos desde a infância dos mesmos.
Alguns exemplos de ensinamentos citados pelos Wari’ foram que os filhos
tomassem banho de manhã bem cedo, para que eles crescerem saudáveis, e para
que os casais não fizessem muitas brincadeiras entre eles, pois poderia causar
briga.
Atualmente, não há tanta distinção de gênero na educação sexual como
ocorria no passado. Entretanto, a mãe aconselha mais a filha mulher do que o filho
homem, já o pai aconselha mais o filho homem do que a filha mulher. O hábito de se
tomar banho bem cedo para crescer saudável ainda é um dos pontos ressaltados,
entretanto os jovens não adquiriram o mesmo, dizendo que os pais os aconselham a
se banhar de madrugada, entretanto, falaram que nunca se banham no horário
estipulado.
É curioso notar que eles citaram a questão de tomar banho de manhã bem
cedo enquanto era abordada a educação sexual. Os mais velhos dizem que tomar
55

banho de manhã bem cedo faz com que as pessoas cresçam fortes. Novaes (1996,
p.78) diz que “[...] parceiros sexuais lavam-se logo pela manhã, a fim de remover
resíduos de fluidos sexuais e secreções de seus corpos. A falta de higiene íntima é
explicativo para certas doenças.” Portanto, nota-se que este fato está ligado à
higiene pessoal, sendo esta passada desde criança, quando eles ainda não têm
relação sexual, para assim criarem este hábito.

6. Menstruação
No passado, dentro da cultura Wari’, a menstruação só era considerada
verdadeira após a primeira relação sexual, com isso, é considerada como um sinal.
Novaes (1996, p.64), aponta que o sangue é formado por duas fontes de matérias
primas, os alimentos ingeridos e outros fluidos vitais. Tal pesquisadora cita o sêmen
como um destes fluidos. Talvez seja este o motivo para a menstruação ser
verdadeira só após a primeira relação sexual, já que uma das substâncias que
compõem este sangue menstrual é o sêmen proveniente da relação.

Observe-se que, segundo os Wari’, uma mulher só menstrua se


estiver tendo relações sexuais. A primeira menstruação considerada
verdadeira só ocorre depois da primeira relação. Da mesma forma,
se uma mulher ainda jovem interromper as relações sexuais (viagem,
morte do marido etc.), sua menstruação é suspensa. (VILAÇA, 1992,
p.116, nota 7)

Caso este período menstrual se iniciasse antes do casamento, os pais da


menina ficavam extremamente preocupados, pois achavam que não tinham sido
bons pais e que não haviam cuidado bem de sua filha, pois ela havia ficado
menstruada antes mesmo de ter relações sexuais. Em contrapartida, quando havia a
primeira relação sexual entre o novo casal e não havia o sinal de perda de
virgindade, causada pelo sangue na ruptura do hímen, o homem, assim como os
pais da moça, ficava muito chateado com a situação.
Naquela época, as pessoas desta etnia andavam nuas e, portanto, não
usavam absorventes no período menstrual. Para tanto, as meninas ficavam
sentadas o dia todo em uma esteira, confeccionando outras esteiras (vide Figura
11). Esta situação causava um isolamento da mulher menstruada perante o resto da
comunidade, pois esta não saía para os ambientes sociais e comunitários da
sociedade onde vivia. Andrade (1992, p.130) aponta que dentro dos Asurini as
56

mulheres, quando menstruadas, têm restrições quanto a se pintar, a participar de


uma festa/ritual e de ter relações sexuais.

Figura 11: Mulher fazendo esteira (Retirada de PAM CAMEREM, 19??).

Assim como as mulheres Asurini, as mulheres Wari’, quando ficavam


menstruadas, também não podiam ter relações sexuais. A explicação para tal fato foi
o respeito para com o corpo da mulher. Outra restrição relatada era a de não poder
sentar na cadeira quente, para não ter cólica.

Qualquer pessoa que comer carne crua, mal assada/cozida (o que


inclui ter relações sexuais com mulher menstruada), especialmente
carne de um animal apreciado como presa pelo jaguar – ou que
ingerir, por descuido, sangue – arrisca-se a ser devorada por um
jaguar. Se todos aqueles que morrem devorados por um jaguar
tornam-se jaguar por terem seus jam incorporados a esta espécie,
todos os que comem como jaguar tornam-se também jaguar.
(VILAÇA, 1992; p.68)

Já hoje em dia, o sinal da menstruação em meninas solteiras não tem mais


tanto peso como tinha no passado. Isto porque atualmente as moças namoram e
paqueram antes de se casarem. Com isso, não existe mais a regra de ser virgem até
efetivar o casamento, ou seja, casar-se virgem deixou de ser algo relevante, como
pode-se observar também na maioria das culturas não-indígenas.
57

Atualmente, as mulheres, no período menstrual, não ficam mais sentadas na


esteira, pois usam roupas e absorventes. Entretanto, a liberdade de ir a qualquer
lugar não é total, porque se elas forem para o mato durante este período, elas
poderão atrair o jaguar, por causa do cheiro do sangue, o que se torna muito
perigoso, visto que a região é ocupada por esta espécie animal.

O cheiro do sangue menstrual ou do sangue relacionado com o


sangramento pós-parto, por exemplo, são considerados poderosos
atrativos de jaguar e torna aqueles contaminados com tal cheiro
particularmente vulneráveis aos ataques de jaguar. Ataques de
jaguar compõem parte da etiologia natural das doenças. Doenças
moderadas e debilitação física também podem ser atribuídas ao
contato indevido com os fluidos da mulher, mas não a morte
(CONKLIN, 1989, p.312 APUD NOVAES, 1996, p.78)

A cultura Asurini encara a restrição das mulheres menstruadas de forma


análoga, pois explica a privação de determinados ambiente também pelo cheiro
provocado neste período. Para este povo, a mulher, quando está menstruada, não
pode participar das festividades, pois o cheiro do sangue menstrual provoca
manifestações agressivas e canibais da força karowara12 que os homens carregam
dentro de si. (ANDRADE, 1992, p.130)
Aspectos como não poder sentar no banco quente e não ter relações sexuais
neste período são respeitados ainda hoje. Outra restrição que se nota apenas
atualmente é não carregar peso, o motivo deste tabu não foi explicitado para a
pesquisadora, entretanto pode ser uma confusão entre o período menstrual e a
gravidez. Já que no passado as mulheres grávidas carregavam peso e, com o
contato, passaram a não carregar mais (perigo de se perder o bebê) e talvez tenha
sido uma associação entre o período menstrual e a gravidez.

7. Paquera
No passado, a paquera consistia em o homem predestinado a determinada
menina presentear os pais da mesma, o que mostra uma pessoa que cuida de sua
futura família e que cuidará da menina prometida para ele. Esses presentes
consistiam em arcos e flechas bem feitos, além de caças e peixes que o rapaz trazia
após uma caçada ou uma pesca. Esta “propaganda” que era feita aos pais da

12
karowara é uma força sobrenatural que causa descontrole sobre a pessoa que a recebe
(ANDRADE, 1992, p.126)
58

menina evidencia algo que já foi discutido anteriormente, ao homem cabe a


incumbência de prover alimentos, portanto, mostrar aos pais da garota que ele sabia
fazer arco e flecha (instrumentos da caça) e que era bom pescador e caçador, dava-
lhe características positivas e de confiabilidade.
Durante a paquera o casal que havia sido predestinado não podia ter relação
sexual, entretanto o homem, ainda solteiro, podia se relacionar sexualmente com
outras mulheres. Já as mulheres, como dito anteriormente, não podia ter relações
sexuais com outros homens antes do casamento.
O hábito de presentear a família de sua futura esposa continua na rotina dos
rapazes Wari’. Porém, foi relatado que, atualmente, eles têm mais relação sexual
antes do casamento do que no passado. Um dos motivos para isso, é que antes do
contato, as meninas não tinham relação sexual antes do casamento. Hoje, esta
proibição não existe mais e, portanto, os rapazes têm mais oportunidades de se
relacionar sexualmente com as meninas.
Outro ponto levantado que mostra uma mudança no comportamento dos
jovens é que, com o contato, o hábito de “ficar” passou a acontecer também entre os
Wari’. Eles descreveram este “ficar” como beijar, conversar, trocar carinhos e contar
segredos. Disseram ainda que possa haver relação sexual ou não, mesmo sendo
apenas por aquele momento.
É importante ressaltar que, apesar de não haver mais uma proibição quanto
ter relação sexual antes do casamento ou mesmo “ficar”, essas mudanças no
comportamento dos jovens causa preocupação dos pais. Entretanto, esta
insegurança não é mais relatada enquanto um tabu, com a perda da virgindade e um
desrespeito para com o homem prometido a sua filha, e sim com o medo de suas
filhas engravidarem ainda solteiras.
Outro ponto relatado foi que atualmente, quando uma pessoa está
interessada por alguém, chega e fala, independentemente do sexo. Entretanto, às
vezes as meninas ficam com vergonha e medo de falar, principalmente as mais
novas.

8. Namoro
Sobre este assunto a pesquisadora se restringiu ao período presente. Isto
porque, como já foi discutido, no passado o namoro não ocorria, já que a menina,
59

ainda recém-nascida, era prometida a um jovem solteiro, o qual acompanhava seu


crescimento dando lhe presentes, caças entre outros agrados a ela e à família dela.
Cabe relatar as duas versões que a pesquisadora ouviu sobre o namoro atual.
Uma contada pelos adultos e outra pelos próprios jovens. Os adultos Wari’ disseram
que na época em que eles namoravam, os rapazes iam visitar os pais de sua
namorada, para que os mesmos conhecessem o futuro companheiro de sua filha e
para que vissem se aprovavam.
Já hoje, eles disseram que o namoro está muito similar ao namoro dos não
indígenas, ou seja, pode ter mais de um namorado durante a juventude e não tem
tanto compromisso como no passado. Entretanto, disseram que os jovens atuais
ainda conservam a intimidade e não se beijam e nem se abraçam em público, o que
condiz com os hábitos tradicionais desta cultura.
Na versão dos jovens, eles dizem que hoje a maioria esconde o namoro, isto
porque a maioria das mães não entende e fica com medo da filha engravidar. Aqui é
interessante comparar com a resposta que os adultos deram, dizendo que no
passado mais próximo, os rapazes visitavam seus futuros sogro e sogra, pois se os
jovens de hoje namoram escondidos, significa que eles não visitam os pais da
menina, o que confirma a versão dos adultos.
Ainda comparando as duas versões, nota-se que o namoro atual nem sempre
tem o compromisso que se tinha no passado quando, durante a entrevista, a
seguinte frase é dita pelos jovens: “Namoro é uma coisa, casamento é outra coisa.”
Todavia, há ainda uma parcela de jovens que tem outro discurso. Como
poderá ser constatado, esta parcela mostra a pluralidade existente nos jovens de
hoje, que vivem a transição e a transformação cultural influenciada pela cultura não
indígena.
A mesma diz que quando a sogra não aceita o namoro, a menina para de ter
esta relação, mesmo que sua própria mãe tenha aceitado, pois isto significa que a
sogra não gosta desta moça. Entretanto, quando os pais não aceitam o namoro,
namora-se escondido.
Esta parcela de jovens, também disse que quando quer namorar, os rapazes
pedem para os pais da menina, e que o namoro pode acontecer entre os parentes
por afinidade e entre pessoas do mesmo subgrupo, desde que não sejam parentes
muito próximos.
60

O namoro, segundo os jovens, consiste em dar presentes, fazer passeios,


convidando para sair, vão pescar. Um fato importante a ressaltar é a frase “vão
pescar” dita pelos jovens, seguida de muita risada. Isto porque pescar é muitas
vezes utilizado como eufemismo de ter relação sexual.
O namoro se inicia por volta dos 13/14 anos de idade de ambos os sexos. No
início, quando os jovens são mais novos, não há tanto compromisso por parte deles.
Este compromisso maior vem com o tempo, quando os jovens ficam mais velhos e
mais maduros, o que não difere, de uma maneira geral, da sociedade não indígena.
Eles também disseram que acontece de haver namoro entre pessoas de aldeias
diferentes, porém é mais difícil, pois se encontram muito pouco.

9. Relação Sexual
Os Wari’ relataram que só depois do casamento é que os casais podiam sair
para passear no mato ou pescar com sua futura esposa/marido. Uma explicação
plausível para tal restrição é que o fato de “passear no mato” e “pescar” pode ser
interpretado como um eufemismo de ter relação sexual, como apontado
anteriormente. (VILAÇA, 1992, p.175).
Outra restrição relativa ao relacionamento sexual que foi descrita pelos Wari’
consiste em não se relacionar sexualmente antes de sair para o mato, para caçar. A
explicação para a mesma é que quando um casal tem relação sexual, há muitas
trocas de fluidos, sendo que os hormônios são demasiadamente produzidos. Com
estas trocas, o corpo de cada um do casal ficará com cheiro do ato sexual.
Caso um homem saia para caçar no mato após ter uma relação sexual, ele
poderá atrair um jaguar ou uma cobra por causa do cheiro proveniente do momento
passado com a outra pessoa. Correndo o risco de morrer, pois, além de atrair estes
animais, também têm em seu corpo outras substâncias que não apenas a sua
própria, de tal forma que isto o tornasse mais fraco para a recuperação destes
acidentes.
Este acontecimento pode ser evidenciado de forma análoga com a restrição
ao período menstrual, discutido no item 5, no qual os homens não podem se
relacionar sexualmente com as mulheres menstruadas por causa do cheiro, que,
assim como neste caso, poderá atrair o jaguar.
61

Com outro viés, após uma expedição guerreira, os homens passavam por um
tempo de reclusão, no qual não podiam ter relações sexuais. A explicação para esta
reclusão envolve diversas crenças. Quando um homem flechava seu inimigo, ele
passava a ser consubstancial do mesmo (assim como ocorre na relação sexual),
pois o espírito-sangue13 da vítima era penetrado em seu corpo. Quando voltavam,
estes homens precisavam passar por um período sem fazer muitos esforços, para
assim guardar aquelas substâncias em seu próprio corpo e ficarem mais fortes.
(VILAÇA, 2006, p.176 e 179)
Dentre as várias restrições para não se perder este espírito-sangue, ressalta-
se que os matadores não podiam fazer sexo, pois, caso contrário, a substância
adquirida do inimigo passaria toda para a mulher e, conseqüentemente, ela
engordaria sozinha. Vilaça (2006, p.179), ainda aponta que “Dentro do corpo, o
espírito-sangue do inimigo propiciaria o engordamento do matador, o que, dizem os
Wari’, era o objetivo principal da guerra e da reclusão.”
Após o estabelecimento dos postos de atração, as expedições guerreiras
ficaram cada vez menores até acabarem, com o contato pacífico.
Conseqüentemente, a reclusão deixou de ser algo notório na cultura, o que inclui a
diminuição das restrições relativas às relações sexuais.
Hoje os jovens têm relação sexual antes do casamento, sem a proibição que
havia para as mulheres. Ou seja, antes de se casarem, eles saem para “passear no
mato” e “pescam” com os namorados ou namoradas. Também quando “ficam”
podem ou não se relacionar sexualmente, dependendo das pessoas envolvidas.
A iniciação sexual entre os jovens varia de acordo com cada indivíduo.
Porém, como a pesquisadora pediu para eles relatarem uma idade média, eles
disseram que é por volta dos 13, 14 anos, mas deixaram muito claro que depende
do casal.
A restrição quanto a ter relação sexual antes de sair do mato ainda persiste e,
ao que parece, eles respeitam a mesma. Um fato interessante, que será mais bem
discutido no item “gravidez” é com relação à interpretação da relação sexual e desta
troca de substâncias. Para eles, quando duas pessoas se relacionam sexualmente,
trocam fluidos, o que tornam seus corpos um só, assim como o de seus filhos. Além

13
Segundo Vilaça (2006, p.176), o termo espírito-sangue foi usado “[...] porque os Wari’ alternam
estes dois termos ao se referirem à parte do inimigo que penetrava no matador.
62

disso, o simples ato de compartilhar da mesma comida diariamente também faz com
que seus corpos se assemelhem.

A consubstancialidade desdobra-se em comensalidade, isto é, em


semelhança de dieta [...] A comensalidade marca de tal forma as
relações de substância, que aqueles que são tornados comensais
são identificados como consubstanciais [...] (VILAÇA, 1992, p. 53-54)

10. Casamento
Os Wari’ contam que, antes do contato, eram os pais os responsáveis pela
escolha do futuro genro. Os homens escolhidos naquela época eram bem mais
velhos que suas respectivas esposas, tinham cerca de trinta anos a mais que a
menina.
Por serem bem mais velhos e mais maduros, os pais confiavam no homem
escolhido, pois sabiam que ele cumpriria com as responsabilidades para com suas
filhas. Além disso, tinham maturidade para não ter tantos filhos e o espaço de tempo
entre um filho e outro ser muito maior do que se observa atualmente (para melhor
entendimento ver item “Métodos Contraceptivos”).
Estes homens viviam na casa dos homens solteiros (ou kaxa’) anteriormente
descrita. Por uma facilidade na observação do comportamento destes homens, os
pais optavam, na maioria das vezes, por rapazes que viviam na mesma aldeia que
eles. Mesmo porque, as aldeias eram muito distantes umas das outras. Ou seja,
existia a facilidade na observação dos pais em relação às características deste
homem, se era trabalhador, se ajudava em casa e se, sob a óptica do casal, ele
seria um bom marido para a recém nascida.
Como as aldeias eram constituídas basicamente de um subgrupo, a exogamia
desses subgrupos era algo raro. Entretanto, às vezes acontecia de um casal
escolher um homem solteiro de outra aldeia, neste caso a escolha era geralmente
feita em festas realizadas com estas aldeias envolvidas.

Esses subgrupos visitavam-se, especialmente, para a realização de


três tipos de festas: tamara, hüroroin’ e hwitop’. Membros de
diferentes subgrupos podiam casa-se entre si. Entretanto, apesar de
não ser possível determinar a freqüência desses casamentos
exogâmicos no passado, parece que havia um ideal de endogamia
de subgrupo. (VILAÇA, 1992; p.20)
63

Outro fato curioso é a não permissão do casamento entre parentes, sendo


exceção os parentes por afinidade, com os quais o casamento era permitido. Novaes
(1996, p.69-70) descreve que, para os Wari’, há dois tipos de parentes: aqueles que
são parentes verdadeiros, que definem um grupo de cognatos não casáveis e
aqueles que são “parentes, mas nem tanto” ou “parentes de brincadeira”, que
formam um grupo de afins “[...] com os quais é permitida a troca de mulheres.”

No sentido mais restrito, entretanto, parentes são aqueles que vivem


juntos ou próximos, e com quem se pode traçar laços genealógicos
precisos, especialmente os membros da família nuclear, com ênfase
nos germanos de mesmo sexo. Possuem o mesmo corpo, dizem os
Wari'. Avós, pais, irmãos dos pais e seus filhos, germanos, filhos,
filhos dos germanos e netos, além dos cônjuges, seriam
essencialmente o que os Wari' chamam de "parentes verdadeiros".
Este seria o grupo mínimo dentro do qual as relações sexuais são
consideradas incestuosas - com exceção evidente dos cônjuges [...]
(VILAÇA, 1998)

Algo semelhante pode ser notado no povo Xerente. Segundo Maybbury-lewis


apud SILVA & FARIAS (1992, p.96), a exogamia de clãs era condenada pelos mais
velhos, porém o que as pessoas mais jovens realmente se preocupavam era em
acatar a exogamia de linhagens, para assim não haver casamento entre parentes.
Com relação à cerimônia, não havia nenhum ritual de casamento naquela
época e, geralmente, o homem ia morar com a família da mulher prometida a ele,
entretanto o contrário também podia acontecer.
Algumas vezes, um homem era casado com mais de uma mulher, todavia
este fato acontecia quando um marido morria deixando sua esposa e filhos e, para
que esta família não ficasse sem amparo, o primeiro homem, geralmente parente do
falecido, assumia a viúva, e, até onde se sabe, se este homem já era casado, a
primeira aceitava sem reclamar.
Atualmente isto não ocorre, principalmente pelo contato que esta cultura tem
com a cultura não indígena, sendo assim, a primeira esposa geralmente não aceita
que seu marido tenha outra esposa que não apenas ela. Outro fator que confirma
isto é a resposta dada pelos jovens, os quais nunca conheceram um homem com
mais de uma esposa. Talvez essa mudança cultural de não aceitação da poliginia
ocorra porque não eram numerosos os casos de um homem ser casado com mais
de uma mulher, o que facilita uma transformação neste sentido.
64

Entretanto, a poliginia pode ser observada em outros povos, o que,


desconstrói assim, o conceito de normalidade (casamento heterossexual e
monogâmico) tantas vezes observado na cultura não indígena brasileira. Um
exemplo desta forma de união pode ser observado no povo Tchambuli, no qual os
homens podem ter mais de uma esposa. Apesar desta característica cultural de
poliginia que, ao olhar ocidental, possa parecer degradante às mulheres desta
cultura, são elas que detêm a posição de poder na sociedade Tchambuli, pois a
comunidade depende do peixe pescado pela mulher, assim como do dinheiro
proveniente da principal manufatura deste povo, os mosquiteiros. (MEAD, 1988,
p.245 e 246).
Ainda se tratando de poliginia, porém agora com outro viés, há, entre o povo
Guayaki, a poliandria. Clastres (2003, p.133) explica este comportamento por causa
de um excesso de homens nesta sociedade e, para que não houvesse uma redução
demográfica, as mulheres absorviam os homens excedentes como maridos
secundários. E, por mais que para os homens Guayaki este relacionamento não é o
ideal (Clastres, 2003, p.134), aceitam, pois, assim como as mulheres Wari’, no
passado, despendiam dos alimentos caçados pelo gênero masculino, os homens
Guayaki preferiam compartilhar uma mesma mulher a estar findado ao celibato ou
ainda a diminuir a população local. O que evidencia a construção de um paradigma
cultural.

A espécie humana se difere anatômica e fisiologicamente através do


dimorfismo sexual, mas é falso que as diferenças de
comportamentos existentes entre pessoas de sexos diferentes sejam
determinadas biologicamente. A antropologia tem demonstrado que
muitas atividades atribuídas às mulheres em uma cultura podem ser
atribuídas aos homens em outra. (LARAIA, 2009, p.19)

A ideia é desconstruir padrões inerentes da cultura não indígena brasileira.


Pois, os exemplos apresentados anteriormente evidenciam que os conceitos de
normalidade quanto à poliginia versus monogamia são construídos ao longo da
história de cada povo. Quando um povo entra em contato com outra cultura, como
aconteceu no caso dos Wari’, a aceitação de um casamento poligâmico passa a ser
inexistente e inadmissível. Assim como outros aspectos culturais que foram e serão
transformados ao longo da história que está porvir.
65

Uma dessas transformações, que já se pode observar atualmente, é o fato de


serem as próprias mulheres que escolhem seus maridos e não mais os pais delas.
Este fato é bastante interessante, pois os pais, tanto num passado não muito
distante quanto atualmente, desconfiam bastante da escolha da menina, assim, é
muito difícil os pais ficarem contentes com a escolha da filha.
Muitas vezes, as mulheres engravidam e, para que ela não fique sem amparo,
os pais intimam o genro a se casar com a filha, para assim assumir a criança. Deste
modo, o jovem casal consegue que haja a união desejada sem o impedimento dos
pais. Entretanto, há alguns casos em que a mulher não quer se casar com o pai da
criança, sendo assim, ela recebe um apoio da própria família.
Todo este conflito sobre a escolha do marido é explicado pelos adultos, por
uma insegurança que eles têm, já que os homens escolhidos por suas filhas são
mais jovens do que aqueles escolhidos no passado, e, com isso, os pais têm medo
que o genro não cumpra com o seu compromisso, não tratando com respeito sua
esposa e os possíveis filhos e filhas.
Ainda sobre o casamento, foi dito que não se pode casar com os parentes,
como também pode ser observado na categoria passado. Porém, eles ressaltam que
só pode haver casamento entre parentes quando os envolvidos tiverem um
parentesco bem distante. Isto porque hoje em dia os Wari’ consideram que todas as
pessoas do mesmo subgrupo como parentes. Inclusive, eles se utilizam de seus
subgrupos como uma forma de sobrenome em seus documentos atuais.
Mas a restrição de casamento não se limita aos parentes. Os jovens falaram
que desde a dita “pacificação”, não é permitido o casamento entre os Wari’ e os não
indígenas. As justificativas que os Wari’ deram giraram em torno de dois pontos. Um
estava relacionado às características físicas, pois com esta possível miscigenação,
os traços indígenas podem ser perdidos, podendo descaracterizar os aspectos
físicos do povo. O outro ponto foi com relação à perda do nome, pois caso um
homem não indígena tenha um filho ou uma filha com uma mulher indígena, o
sobrenome, que no caso é o nome do subgrupo, se perde, sendo assim, aquele filho
ou filha terá o sobrenome não indígena.
Outro ponto relativo ao casamento foi a celebração. Disseram que atualmente
há festa quando se casam, geralmente um almoço, porém a festa, por motivos
óbvios, não acontece quando o casamento é escondido. Este segundo tipo de
66

casamento geralmente ocorre quando os pais da garota têm ciúmes de sua filha, ou
então não confiam na responsabilidade do rapaz com que ela pretende se casar.

11. Rapto de Mulher


Antes de iniciar a discussão sobre este item, cabe explicar exatamente em
que consiste este “rapto”. A palavra em si não é a mais adequada, já que a mulher
não é forçada a fugir com o homem e sim convidada, podendo aceitar ou não.
No passado, o rapto acontecia quando um homem e uma mulher se amavam
muito, entretanto a mulher já era casada ou prometida a alguém. Com isso, o casal
combinava de fugir e iam morar em outra aldeia. Porém, tal fato geralmente causava
muita briga entre as famílias dos envolvidos, pois no passado a mulher (como foi
explicado no item casamento) era prometida ao homem quando recém nascida. Os
motivos para estes conflitos podem ser porque, às vezes, a mulher gostava mais de
outro homem e não daquele que lhe fora prometido, fazendo com que ela fugisse
com seu amado. Seu “noivo”, por sua vez, teve a garantia dos pais da menina que
ela seria sua esposa e, com isso, depositou esforços para aquele relacionamento.
Portanto, uma rejeição da moça poderia lhe causar muita raiva e, como
conseqüência, a briga com borduna ocorria entre sua família e a família desta
mulher.

[...] o casamento que aqui se estuda [...] depende de um rapto e, por


conseguinte, de um conjunto de iniciativas, que os nubentes devem
estar aptos a tomar, de modo a que propositadamente e de acordo
com um certo padrão cultural se configure um (consensual) rapto da
mulher. (GNACCARINI, 1989)

O rapto em diferentes subgrupos era muito difícil de acontecer, já que as


aldeias dos mesmos eram distantes e, com isso, se encontravam pouco, geralmente
eram apenas nas festas que os subgrupos tinham um contato.
Após o contato, o hábito de se realizar casamentos, prometendo a recém
nascida a um homem solteiro, deixou aos poucos, de ser efetivado. Com isso, eram
os próprios homens e mulheres que se escolhiam enquanto casal. Por conseguinte,
o rapto entre pessoas já casadas deixou de ter sua justificativa.
Atualmente o “rapto” continua acontecendo, entretanto ele ocorre entre os
jovens quando os pais são contra o namoro. Com isso, os rapazes podem convidar
67

as meninas para fugir por uma noite ou então passam a morar juntos, casando
escondido.
Houve alguns relatos nas entrevistas que diziam sobre algumas mães que,
quando descobrem que suas filhas fugiram com um determinado rapaz por uma
noite, ficam bravas e brigam com suas filhas.
O fato dos pais serem contrários ao namoro já foi discutido no item namoro,
mas cabe ressaltar ainda que umas das justificativas dadas para esta fuga é o ciúme
que os pais têm de suas filhas, não permitindo o namoro entre elas e um
determinado rapaz.

12. Traição
Sobre este assunto, os Wari’ deixaram claro que a traição é algo conflituoso,
não aceito culturalmente. Também ressaltaram que a traição acontece mais entre os
casais de namorados do que entre os casados.
Antes do contato, quando um dos membros de um casal traia seu
companheiro ou sua companheira, uma briga se instaurava. Primeiramente a pessoa
traída batia com a borduna na pessoa traidora. Esta, por sua vez, batia em quem lhe
havia batido. A família da pessoa traída se indignava com a situação e, por sua vez,
batia na pessoa traidora. Com isso, a família da pessoa traidora, também indignada
com a situação, batia na família da pessoa traída. Porém, depois que a raiva
passava, bebiam chicha e ficava tudo certo, sem maiores rancores.

Tradicionalmente, praticavam uma luta chamada “ka mixita wa” (onde


mixita = bater sobre a cabeça), a fim de diluir conflitos internos, como
por exemplo, as agressões físicas contra as mulheres e o adultério.
(NOVAES, 1996, p.76)

É interessante notar esta relação com a briga e com a raiva que este povo
tem. O sentimento existe, porém, após ter sido posto pra fora (através da briga), ele
passa, e a pessoa permanece sem guardar mágoa uma da outra.
Atualmente a briga, por causa de uma traição, continua acontecendo. Porém,
hoje eles não se utilizam mais da borduna e, as famílias dos envolvidos também não
participam do conflito. No máximo os pais interferem na briga do casal. O que
continua deste conflito é a relação entre a raiva e a briga. Após o casal brigar e
expor todo aquele sentimento de raiva, o conflito passa.
68

Foi descrito ainda que no namoro a traição é mais freqüente do que no


casamento, porque no primeiro tipo de relacionamento a infidelidade pode acarretar
em briga ou no término deste envolvimento. Já no casamento, a separação é rara,
pois há maior envolvimento pelas partes, além do fato de, muitas vezes, se ter uma
família constituída, com isso o pai ou a mãe dificilmente irão abandonar seus filhos
ou filhas.

13. Gravidez
Os pontos conversados sobre a gravidez não diferiram muito entre o passado
e o presente. Portanto, a pesquisadora resolveu mesclar hábitos do passado com os
hábitos atuais, especificando quando ocorre em apenas uma das épocas ou nas
duas.
Nota-se que, na cultura Wari’, a gravidez é profundamente observada pelos
pais, uma das justificativas para isso é porque eles não podiam, e nem podem
contar, com a tecnologia vigente das cidades. No passado, e ainda em alguns casos
de hoje, não apenas os pais observam a gestação, mas também a parteira da aldeia
acompanha todo o desenvolvimento deste período, já que é ela a detentora deste
conhecimento.
Atualmente, quando fazem um acompanhamento pré-natal por meio das
tecnologias da sociedade não indígena, precisam se deslocar até hospitais, o que se
torna praticamente inviável fazê-lo com a freqüência que os casais urbanos fazem.
Há ainda algumas mães e pais que permanecem na cidade durante os últimos
meses da gestação.
Por esta dificuldade de acesso e pela inexistência destes aparelhos no
passado, os cuidados no período de gestação são inúmeros, dentre eles, foi descrito
pelos Wari’ o fato de ouvir o batimento cardíaco do bebê e sentir a posição em que o
bebê está no útero da mulher. Outro cuidado curioso consiste nos tabus alimentares
para este período.

Tabela 4: Tabus Alimentares na Gravidez


Assunto Animal Explicação

Tabus Alimentares na Para o bebê não chora muito


Alencor (Ave)
gravidez e não ficar inchado
69

Tabus Alimentares na Para a criança não respirar


Cascudo
gravidez pela boca

Tabus Alimentares na
Cotia NADA
gravidez

Tabus Alimentares na Para não correr risco de o


Gato Marajá
gravidez bebê nascer morto

Tabus Alimentares na Para não correr risco de o


Gavião
gravidez bebê nascer morto

Tabus Alimentares na
Ovo de gaivota Para o bebê não chora muito
gravidez

Para a criança não ficar com


Tabus Alimentares na
Paca manchas brancas pela pele, a
gravidez
chama "mancha de paca"

Tabus Alimentares na
Quati Causa tontura na criança
gravidez

Tabus Alimentares na
Saracura Para o bebê não chora muito
gravidez

A crença em tabus alimentares é bastante presente na aldeia, mas ela veio


dos saberes ancestrais desta cultura. Essas restrições se dão principalmente
quando a mulher está grávida. Neste caso, tanto ela quanto o pai da criança aderem
tal comportamento. Isto porque eles acreditam que com as trocas de fluidos
corporais, realizadas nas relações sexuais, os corpos se conectam de tal forma que
passa a ser um, ou seja, tornam-se consubstanciais; no sentido de que há a
circulação de esperma e lubrificações no ato sexual. Tal fato é apontado por Vilaça
(1998) “Os cônjuges, concretizado o casamento, são tornados consubstanciais por
meio da intensa troca de substâncias corporais que ocorre entre eles: sêmen,
líquidos vaginais e suor”.
Um fato curioso é que esta unificação de corpos se estende aos filhos do
casal e a criança gerada por esta troca também possui o mesmo sangue,
conseqüentemente o mesmo fluido e também faz parte deste corpo. Portanto, para
que o tratamento tenha real efetividade ele deve ser feito pelo pai, pela mãe e pela
criança, ou seja, se o pajé diz que uma criança não pode comer determinado
alimento, os pais da mesma também não poderão comê-lo. Caso contrário, o filho
70

não irá recuperar de determinada doença e/ou ficará doente, pois o alimento de seus
pais, de certa forma, atinge seu corpo.

Os filhos são considerados substancialmente idênticos ao pai e mãe,


compartilhando com eles e entre si (irmãos) o mesmo sangue, que
se traduz como ‘o mesmo corpo’. Os cônjuges, devido à freqüência
das relações sexuais, quando seus sangues se misturam, também
passam a compartilhar o mesmo sangue e, portanto, uma identidade
física, que se desfaz em caso de separação (com a interrupção das
relações sexuais) (VILAÇA, 1992; p. 52-53)

Como foi apontado na Tabela 4, dentre os alimentos que devem ser excluídos
da alimentação do casal durante a gestação, foram descritos: alguns peixes, como o
cascudo – pois senão o bebê irá respirar pela boa –, o quati – porque pode causar
tontura na criança –, ovo de gaivota, saracura e alencor – para que o bebê não
chore muito –, além disso, se o alencor (uma ave) for ingerido neste período, o bebê
poderá ficar inchado, gavião e gato marajá – pois, caso contrário, o bebê pode
nascer morto – e a paca – para que a criança não fique com manchas brancas pelo
corpo, as chamadas “mancha de paca” – além da cotia, que não souberam explicar
o motivo para a pesquisadora, apenas afirmaram que não podia ingeri-la neste
período.
Outra restrição citada pelos Wari’ no período da gravidez foi com relação ao
pai da criança matar alguns animais como a onça, algumas cobras e o queixada. Há
algo em comum entre estes animais. Eles possuem jam- (podendo ser traduzido por
alma), o que para os Wari’ é um fator muito relevante, já que os animais que
possuem jam- são considerados humanizados:

A presença do espírito (jam -, sempre acompanhado de sufixo


indicador de posse) é exclusiva a alguns tipos de seres: Wari',
inimigos (índios de outras etnias e Brancos), determinados
mamíferos (onça, queixada, anta, caitetu, macaco-prego, veado roxo
e veado vermelho, dentre outros), todos os peixes, algumas aves,
todos os tipos de abelhas e cobras, além de alguns poucos vegetais.
O espírito é o que caracteriza a humanidade, o que torna qualquer
ser, wari' ("nós" no plural inclusivo, "ser humano", "gente"). (VILAÇA,
1998)

Quando questionados se precisava haver várias relações sexuais para o bebê


nascer forte, os Wari’ negaram. Ainda disseram que nunca tinham ouvido falar a
respeito deste costume; entretanto tal informação pode ser observada na literatura:
71

Para que o corpo da criança seja formado, são necessários


depósitos sucessivos de sêmen no fundo da vagina. Se, após o início
da gravidez, a mulher interromper as relações sexuais, devido à
ausência do marido ou dos parceiros, a criança nascerá pequena e
fraca. Faltar-lhe-á justamente corpo, substância. Se, por outro lado,
uma mulher, já grávida ou não, tiver relações sexuais com outros
homens, além do marido, o sêmen de todos eles vai colaborar na
constituição do corpo da criança. Mas, no fim, aquele que assume a
paternidade (freqüentemente o próprio marido) acaba por ser
reconhecido como único pai biológico. (VILAÇA, 1992; p. 52)

A explicação mais plausível que a pesquisadora pode argumentar é uma


transformação na cultura Wari’ de Sagarana, com o contato com diferentes
entidades, repletas de morais e valores. Ou então, os Wari’ entrevistados por Vilaça
podem ser de outros subgrupos, já que seu local de trabalho não foi Sagarana, e
talvez os subgrupos entrevistados tenham esta crença característica a eles.
Outro cuidado citado pelos Wari’ foi que a mulher grávida não pode carregar
peso. Porém, este cuidado provavelmente veio com o contato, já que no passado
eram sempre as mulheres que carregavam os paneros (vide Figura 12) e as
crianças, pois assim, como dito anteriormente, os homens poderiam proteger sua
família de qualquer ataque inimigo, ou ainda caçar algum animal para a alimentação
dos mesmos, caso estes fossem encontrados no meio do caminho.
72

Figura 12: Mulher carregando panero cheio de milho (Retirada de PAM CAMEREM, 19??).

14. Parto
No passado, eram as mulheres mais velhas que faziam o parto, por serem
elas as detentoras deste conhecimento. Os Wari’, principalmente as mulheres,
explicaram brevemente como o mesmo ocorria. Na hora do parto, participavam três
mulheres; uma ficava nas costas da grávida, outra ficava massageando a barriga,
colocando o bebê na posição certa (caso ele não estivesse) e induzindo-o a sair, e a
terceira ficava auxiliando no que fosse preciso e era ela que segurava o recém-
nascido. Após o nascimento, o bebê permanece um tempo em cima da barriga da
mãe e só após este momento o cordão umbilical é cortado.
Alguns detalhes importantes quanto ao momento do parto. Os homens não
podiam estar presentes, nem as crianças. Eles explicaram que se uma criança
estivesse no momento do parto, poderia atrapalhar querendo atenção ou brincando
com algo, fazendo com que essas mulheres se distraíssem. Já com relação aos
homens não houve nenhum explicação, apenas que eles não podiam presenciar o
episódio.
Atualmente há ainda este parto realizado na aldeia. Entretanto a restrição da
presença dos homens não é mais tão rígida, mesmo porque os agentes de saúde
indígenas também fazem alguns partos e os mesmos nem sempre são mulheres.
73

Entretanto, foi relatado que hoje a maioria dos partos é feita na cidade, em
hospitais. As mulheres vão à cidade geralmente nos últimos meses de gravidez e
tem seus filhos no hospital. Após o parto há um período de resguardo, no qual não
se pode ter relação sexual, caso contrário o bebê fica com disenteria, como será
mais abordado no próximo item.

15. Amamentação
Este assunto aponta uma diferença de atitude entre os períodos antes do
contato e após o contato com a cultura não indígena. Antes deste contato, as
mulheres Wari’ amamentavam os bebês até eles completarem três anos de idade; a
amamentação era complementada com outros alimentos quando o bebê completava
um ano de idade e acreditava-se que durante o período de amamentação os pais
não podiam ter relação sexual, pois caso contrário a criança teria diarréia.
Atualmente foi relatado que os casais não têm respeitado este período de
resguardo na amamentação. Isto pode ser um fator que explica porque antigamente
o espaço de tempo entre um filho e outro era maior quando comparado com os dias
atuais, entretanto este assunto será analisado no item seguinte.
Além disso, hoje, os Wari’ disseram que as mães complementam a
amamentação, dando outros alimentos ao bebê quando o mesmo tem por volta de
seis meses a oito meses, não esperando eles completarem nem um ano de idade.
Estas alterações evidenciam a influência e troca cultural com os não indígenas da
região.

16. Método Contraceptivo


Os Wari’ relataram que no passado não havia um método contraceptivo
específico, entretanto disseram que o espaço de tempo entre um filho e outro era
muito maior. As explicações dadas giraram em torno do respeito. Eles disseram que
o tempo em que os homens passavam no mato, tanto para caçar quanto para
guerrear, era muito maior, o que propiciava a distância de casa e de sua esposa.
Também apontaram que os homens não tinham relação sexual por um
respeito com sua esposa e filho, já que, caso a mulher engravidasse em um período
menor que três anos, o primeiro filho ficaria fraco.
74

Nota-se uma coincidência de tempo entre o nascimento de um filho e outro


com o tempo de amamentação de cada filho. Se o casal tinha relações sexuais
durante o período que a mãe amamentava o bebê, a criança tinha diarréia. Com
isso, a casal passava por um período de resguardo de três anos, pois era este o
período em que as mães acreditavam ser necessário para o bebê ficar forte. Fica
evidente, portanto, que este tempo era de fato respeitado pelo casal, o que impedia
uma gravidez antes da criança mais nova completar três anos de idade. Sendo o
resguardo o principal método contraceptivo.
Atualmente, este fato mudou e o mesmo pode ser explicado por dois vieses.
Ambos têm ligação com o contato com a cultura não indígena, entretanto um destes
vieses possibilitou-os a terem acesso aos métodos contraceptivos utilizados pela
segunda cultura, como a pílula e a camisinha. Ressalta-se que a pílula não é usada
pelas mulheres, já que pensam ser algo que não respeita o próprio corpo. Já a
camisinha é usada mais pelos jovens, porém foi relatado que nem sempre há
camisinha na aldeia, o que, às vezes, impossibilita o seu uso.
Faz-se necessário apontar um trabalho feito entre a pesquisadora e os jovens
da aldeia. Este consistiu em alguns encontros que tratavam principalmente a
sexualidade. Em um dos encontros houve várias conversas sobre métodos
contraceptivos, dentre eles a camisinha. A citação de tal fato torna-se importante por
causa da resposta dada pelos jovens, que disseram usar freqüentemente a
camisinha. Talvez estas respostas tenham surgido de forma unânime por uma
influencia pelos encontros descritos. Mas também não é possível afirmar com
exatidão até que ponto as respostas foram influenciadas pelos encontros e até que
ponto o uso do preservativo tem esta freqüência.
O outro viés tem relação com o respeito, que segundo alguns Wari’,
principalmente os mais velhos, o respeito entre os casais está cada vez menor.
Neste sentido e, como conseqüência, eles não esperam o tempo de três anos para
se restabelecer as relações sexuais entre os casais.

17. Festa
No passado as festas reuniam mais de 300 pessoas, vinda de diversas
aldeias, contando com mais de um subgrupo. Vilaça (2006, p. 107-8) cita três tipos
75

delas, o tamara, o huroroin’ e o hwitop’; sua estrutura básica é a relação entre os


anfitriões e os convidados (ou estrangeiros).
Apesar de cada uma ter suas peculiaridades, a pesquisadora irá se deter aos
aspectos gerais de cada uma e, posteriormente irá citá-las em determinadas
discussões para o entendimento de pontos relevantes ao tema da pesquisa (Tabela
5).

Tabela 5: Características das Festas realizadas pelo povo Wari’.


Tipo de
Iniciativa Quem participa Instrumentos
Festa
Outras aldeias Homens jovens e velhos;
Tambor de caucho
tamara chegavam e os mulheres solteiras ou
(towa); Com canções
anfitriões faziam a festa sem filhos
Flauta de bambu
(Hwiroroi); Tambor de
Homens e mulheres (elas
huroroin' Anfitriões convidavam tronco (wakam); Tambor
tem papel fundamental)
de caucho pequeno;
Com canções
Flautas transversais e
Homens e mulheres,
doces de bambu; Tambor
Hwitop' Anfitriões convidavam pessoas próximas, que
de tronco (wakam); Sem
tem intimidade
canções

As festas que contavam com a presença da mulher, nas quais o papel


feminino era importante para a ocorrência da mesma (huroroin’ e hwitop’) se
tornaram cada vez mais escassas, pois para que as diferentes aldeias se
encontrassem, era necessário atravessar alguns rios, muito deles freqüentados por
não indígenas. Portanto, dificultava, ou ainda, impossibilitava a travessia das
mulheres com seus filhos e filhas. (VILAÇA, 2006, p.118)
Aqui, há dois pontos que podem ser ressaltados: um referente à tarefa das
mulheres de cuidar das crianças, com isso, ficavam nas aldeias enquanto os
homens, jovens e velhos, e as mulheres sem filhos, iam às festas. A outra
possibilidade pode estar ligada a tarefa guerreira dos homens, com isso, caso
encontrassem um não indígena/um inimigo, eles poderiam se defender.
Entretanto, e talvez, as mulheres que os acompanhavam, por ser em menor
número – já que participavam apenas as solteiras ou sem filhos – eram mais
facilmente defendidas pelos homens de sua aldeia, antes da presença dos não
indígenas.
76

As festas tinham, como uma de suas finalidades, trocar elementos que cada
aldeia tinha em abundância e/ou em particular da área onde habitava. Também era
o momento para reencontrar parentes e amigos que moravam longe.

Tudo começava quando uma pessoa decidia: ”Vamos dançar e ver


nosso parente!” A razão explicitada era o desejo de alguém de ver
um parente que vivia em terra estrangeira. Também organizavam um
tamara como um modo de chegar aos estrangeiros e pedir-lhes
coisas que estivessem necessitando, como pedra de machado [...] ou
milho para plantio [...] (VILAÇA, 2006, p.108)

Também podiam ser idealizadas quando uma aldeia fazia muita chicha e, por
isso, chamava as outras aldeias desta etnia para beber junto, cantar e dançar (vide
Figura 13). As pessoas cantavam as músicas sentadas, dançavam de pé, dando
passos para frente e para trás e se enfeitavam para as festividades.

Figura 13: Festa com música, dança e chicha (Retirada de PAM CAMEREM, 19??).

Dentre estes enfeites pode-se incluir as pinturas corporais entre outros


adereços que usavam no momento. Também confeccionavam alguns instrumentos –
citados na Tabela 5 – e as festas eram sempre regadas de muita chicha de milho.
77

(para maiores detalhes e especificidades quanto aos instrumentos e adereços


utilizados nas festas, vide item 3 do resultado).
Cabe ressaltar que a chicha era de milho e não de mandioca, como se
observa em muitas etnias indígenas brasileiras. Esta bebida consiste na
fermentação do milho, podendo ficar doce ou azeda. Havia também uma bebida
produzida por frutos silvestres (patauá) ou ainda de mel, quando não estava na
época certa do milho para o preparo da chicha.14
Já atualmente eles disseram que as festas que ocorrem na aldeia são iguais
as dos waijam (palavra na língua Wari’ que significa inimigo e é assim que eles
chamam os não indígenas15.), não tocam mais as músicas tradicionais e sim as
músicas dos não indígenas. A pesquisadora pôde perceber que essas músicas são
as músicas ouvidas também pelos ‘civilizados’ da região. Muitas vezes os Wari’ de
Sagarana tocam e/ou compõem músicas na língua deles, porém com o ritmo das
músicas dos ditos waijam.
Apesar destas festividades bastante similares as festas dos não indígenas,
ainda existem dois rituais que trazem consigo a tradição e esta, por sua vez, é
passada aos mais novos através dos mesmos. O primeiro deles é a caçada coletiva,
a qual acontece no período de cheia e é organizada pelas mulheres, porém
realizada predominantemente pelos homens; o segundo é a pesca coletiva, que
ocorre no período de seca e é combinada entre os homens, entretanto, realizada
predominante pelas mulheres.
Na caçada coletiva, são as mulheres que organizam a expedição.
Primeiramente elas combinam um dia entre elas, em segredo, e avisam os homens
que vai acontecer a caçada coletiva. Este aviso é feito através de uma brincadeira,
as mulheres fazem uma surpresa, saem atrás dos homens (estes, na maioria das
vezes, estão desprevenidos) e batem neles com folhas de bananeiras dizendo
diferentes nomes de caças e mandam-nos trazerem as mesmas. Quando avisados,
os homens combinam o dia que irão sair, enquanto as mulheres preparam chicha
doce (bebida fermentada não alcoólica), pamonha, farinha, entre outras comidas
para a alimentação dos mesmos durante a expedição.

14
Cabe colocar que apenas na festa huroroin’ a chicha de milho é imprescindível, nos outros dois
tipos de festa, pode haver outras bebidas que não a chicha de milho. (VILAÇA, 2006)
15
“Com o fim das expedições guerreiras (desde a ‘pacificação’ pelo SPI e missionários das Novas
Tribos, realizada entre 1956-69), somente os ‘civilizados’ continuaram a ser chamados waijam, o que
hoje se observa.” (VILAÇA, 1992; p.94)
78

Nesta caçada, os mais velhos guiam os mais novos, ensinando-os a como se


cuidar na mata, como caçar, a tomar banho de manhã cedo (por volta das 4:00 e
5:00 da manhã), pelo mesmo motivo apontado no item 9, pois acreditam que assim
irão crescer fortes, além de ser o momento que os homens mais velhos têm a
oportunidade de ensinar aos mais novos seus diversos saberes tradicionais.
Alguns hábitos relativos ao crescimento são observados também em outras
culturas indígenas. Para os Asurini, segundo Andrade (1992, p.126), pintar o recém-
nascido com jenipapo, pode acelerar seu crescimento, esta mesma etnia ainda
acredita que cantar e dançar garante o crescimento biológico da pessoa.
Outro aspecto ensinado pelos mais velhos aos jovens é ter resistência (os
jovens não podem comer os animais caçados durante este período), sendo assim,
eles tem que cuidar de si, para quando se tornarem mais velhos irem caçar e assim
alimentar sua família e não a si próprio.
Quando voltam da caçada, fazem flautas tanto de taboca quanto de barro
(Casa de cigarra) e assoviam quando estão se aproximando da aldeia (Figura 14).
Este hábito é também retratado pela Vilaça (1992, p.100) quando, no passado, os
homens voltavam de suas expedições guerreiras.

Figura 14: Homens voltando de uma caçada com suas flechas, caça no ombro e assoviando para
anunciar a chegada na aldeia (Retirada de PAM CAMEREM, 19??).

Na aldeia, as mulheres os esperam com a chicha azeda (bebida fermentada


alcoólica), obrigando os a beber até, muitas vezes, passar mal. Eles denominam
79

essa atitude como castigar, pois as mulheres se vestem de não indígenas (neste
vestir, usam da criatividade para fazer gozação com as características dos
ocidentais) e castigam os índios que estão chegando.
Este fato é interessantíssimo, já que no passado o mesmo era feito nas
festas. Quando as outras aldeias iam para as festas, a aldeia anfitriã os recebia com
muita chicha e os castigava. Este provavelmente era um método para embriagar os
convidados, pois assim os anfitriões tinham o controle da situação, já que tratavam
os convidados como estrangeiros.

De tanto beber e vomitar, acabavam perdendo os sentidos, entrando


em um estado de inconsciência, itam, chamado de morte. Os
anfitriões diziam que os haviam matado, do mesmo modo que se diz
ter matado uma presa, e já os ouvi referirem-se a um conhecido bom
bebedor como “aquele que já morreu e ressuscitou várias vezes”
(VILAÇA, 2006, p.121)

Já o ritual de pesca coletiva, o qual acontece na época de seca, tem a


estrutura muito semelhante ao ritual de caçada coletiva. Entretanto, nele são os
homens que combinam o dia para avisar as mulheres. Este aviso é feito através da
mesma brincadeira, porém são as mulheres que fazem as próprias comidas para se
alimentarem na expedição.
Quando saem, as mais velhas ensinam as mais novas diferentes músicas e
pesca de forma tradicional a cultura, passam algumas noites no mato e, por isso,
constroem casa temporária, onde pernoitam (Figura 15). Esta pesca consiste em ir a
um igarapé, o qual é estreito por estar no período de seca. Ao chegar no igarapé,
elas juntam diferentes fibras de palmeiras e folhas para assim represar os rios. Com
isso, os peixes não passarão dali, ficando concentrados numa região deste curso de
água, e assim elas pegam os peixes com as mãos.
80

Figura 15: Casa temporária, usada atualmente para pernoitar na mata (Retirada de PAM CAMEREM,
19??).

Em uma conversa pessoal, uma jovem, quando descrevia este ritual, disse
que não se pode brincar ou rir das músicas cantadas, pois elas são sagradas, elas
pedem permissão para a natureza, pois assim não desrespeitarão a mesma nesta
pesca. Quando alguém faz o contrário, faz gozação das músicas, pode levar uma
mordida de peixe no momento em que estiver pegando-os. Esta “vingança” da
natureza é também descrita Vilaça:

Segundo Conklin (p.343-4), jamikarawa não costuma atacar os Wari’


sem motivos, mas somente como retribuição a um insulto ou
transgressão: ingestão acidental do urucum mágico e outras frutas
do animal; demora em cortar e assar a carcaça; tratamento
desrespeitoso desta; preparo inadequado (cozinhar ao invés de
assar determinados animais, cozinhar certos animais com alguns
vegetais considerados incompatíveis) e distribuição não generosa da
carne. (VILAÇA, 1992; p.119, nota 33)

Após pegarem uma quantidade de peixe suficiente para toda a aldeia, as


mulheres voltam e, chegando lá, também são “castigadas”, bebendo chicha, e há a
81

distribuição dos peixes para toda a aldeia; o mesmo acontece com as caças, o que
mostra um costume após as caçadas abundantes, como cita Vilaça (1992, p.66). A
distribuição é feita de maneira proporcional as pessoas e a família a qual faz parte
(se for de uma família grande, recebe um pedaço grande). Até mesmo as crianças
recebem seu pedaço de caça e este também é proporcional ao seu tamanho.
Ao final de ambas as expedições, tanto aqueles que ficaram na aldeia quanto
aqueles que saíram, compõem uma música e quando estão todos reunidos, há uma
competição das músicas. Tanto os homens quanto as mulheres catam suas músicas
e no final é consenso de qual música foi melhor, ou seja, não há um júri, todos
decidem e geralmente é algo unânime, apesar de ser raro, às vezes algumas
pessoas não concordarem com o que a maioria decidiu.
Uma competição entre homens e mulheres também pode ser observada pelo
povo Xerente, entretanto esta etnia faz uma competição de corridas de toras,
podendo esta ser feita entre homens, entre mulheres ou entre homens e mulheres
(SILVA, 1992, p.101)
82

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fica evidente assim, que a cultura Wari’ se transformou ao longo dos anos,
tanto por um processo intrínseco a qualquer cultura, quanto por um contato pacífico
e, em um primeiro momento, forçado.
Além da convivência quase que diária com os não indígenas (por causa de
uma vila próxima à Sagarana, chamada Surpresa), a aldeia ainda conta, há cerca de
cinco anos, com alguns aparelhos de televisão.
Assim como acontece na sociedade não indígena brasileira, a influência da
televisão na comunidade está cada vez maior. Esta influência se inicia na troca das
conversas nas noites de luar por causa de uma novela ou de um jogo de futebol. O
que marca a diminuição de um dos momentos mais ricos na transmissão da cultura
dos mais velhos para os mais novos, através de várias histórias contadas nestas
noites iluminadas.
Com a atuação de algumas instituições que não eram presentes no passado
como: a escola, a religião, a mídia, o governo, entre outros meios de comunicação, o
processo de transformação da cultura passa a se acelerar. As conseqüências deste
fato ficaram evidentes em cada ponto abordado ao longo do trabalho.
Mas, até que ponto tais mudanças são positivas ou negativas na construção
da sexualidade? Será esse processo, uma aculturação total da etnia? Será que tais
alterações fazem com que eles deixem de ser indígenas? As pessoas desta etnia
estão perdendo seus valores? Será que uma pessoa não nascida e crescida nesta
cultura/meio é capaz de julgar tais desconstruções e novas construções?
Estas perguntas ainda deslumbram o olhar da pesquisadora e somente o que
está porvir mostrará o que acontecerá a esta etnia. O que realmente importa é que a
construção da sexualidade deles seja respeitada, à medida que eles elegem suas
escolhas, seus caminhos, tão subjetivos, cheios de sabedorias... Não abrindo mão
de seus mitos, cultura, mas considerando o entendimento da ciência que o século
XXI desvela, como possíveis contribuições não só a eles, mas a todas as pessoas,
independente de sua cultura, etnia, etc.
83

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86

ANEXOS E APÊNDICES

ANEXO 1-A

Versão colocada por Aparecida Vilaça (2006, p.308-310)

Nanananana

É o que os antigos contavam sobre o que aconteceu muito tempo atrás com o
espírito da chuva. Chovia muito, muito, vários dias seguidos. Então chegou o espírito
da chuva. Parecia uma velha, avó materna deles, mãe das mulheres. Ela trazia um
cesto muito velho. As mulheres disseram: “Nossa mãe chegou!” Era igualzinha à
mãe das mulheres. A chuva havia se transformado [em gente]. “Você veio, mãe?” “É.
O fogo dos irmãos mais velhos de vocês apagou. Eles não têm o que comer”, disse
a velha, com uma voz sumida. “É mesmo?”, disse-lhe a filha, que estava mexendo
chicha no fogo. A velha sentou junto do fogo e ficou esquentando as mãos.
Esquentou, esquentou e disse: “Eu vou embora. Dêem-me fogo que eu vou levar
para os irmãos mais velhos [MB, eB] e mães [MZ] de vocês. Estão morrendo lá.”
Queria fogo para que pudesse assar a comida, comer. Era mentira. Provavelmente
ela tinha fogo. A chuva havia se transformado [em gente]. “Vamos com você, avó
materna. Temos pena de você nessa chuva.” “Vocês ficam, vocês ficam. Eu vou
sozinha.” Era porque o espírito da chuva não era humano. Ela pegou o fogo. “Leve
uma esteira velha, avó materna.” Ela pegou uma esteira velha e protegeu a cabeça
da chuva. “Se a velha não tivesse com tanto frio...”, comentaram as pessoas. Ela
pegou a bengala e foi embora devagar.
Assim que ela foi embora a chuva engrossou, ficou muito forte. Não era uma
chuvinha à-toa. A água começou a chegar nas casas pelo chão. Os peixes
chegavam nas casas e as pessoas começaram a matá-los. Nanananana sabia:
“Vamos fugir. É possível que afundemos aqui, crianças. Vamos para a casa onde
está o nosso milho. A água vai nos matar”, disse ele para as filhas. Ele e as filhas; os
87

maridos não foram “Vão com o pai de vocês. Nós vamos ficar aqui para matar peixes
para que vocês possam assá-los para nós”, disseram à esposas. Á noite, eles
assaram peixes e comeram. Estavam dormindo quando os antepassados
afundaram.
No dia seguinte, o pai [Nanananana] disse: “Vamos ver a aldeia onde estão
os pais de nossos netos.” A água tinha inundado as roças. Das casas só se viam os
esteios. “Os pais de nossos afundaram, nanananana.” Ouvia-se o som de mulheres
moendo milho em pedra, vindo debaixo d’água, como se ainda houvesse gente na
aldeia, como se estivessem vivos. “Vamos pegá-los!” Nanananana cortou uns paus,
amarrou-os e foi para a aldeia: “Eu tenho pena das minhas filhas, nanananana.” As
moças solteiras [que estavam sob a água] disseram: “Está bem. Vamos com o nosso
irmão mais velho.” Elas iam subindo pelo pau, subindo, subindo. As mãos delas
emergiram. Quando a cabeça delas estava aparecendo na superfície, elas
escorregavam e viraram botos. Nanananana disse aos rapazes: “Rapazes, tenham
pena de nós. Ficaremos sozinhos.” “Está bem. Vamos encontrar o nosso irmão mais
velho [referindo-se a Nanananana].” Então os que dormiam na casa dos homens
começaram a subir pelo pau. Quando os braços deles estavam saindo da água, eles
escorregaram e viraram lontras [Lutra platensis]. “Vou pegar a arara vermelha!” Ela
foi andando pelo pau, quando escorregou virou cigana [opisthocomus hoazin, que é
uma ave da beira d’água]. “Vou pegar o jacamim [Psophia SP.]. “E ele virou um tipo
de garça. “Tenha pena das crianças, mãe” [que estava sob a água], disse ele. “Está
bem”, ela respondeu. A velha concordou. Foi subindo pelo pau, escorregou e virou
jacaré. “Vou pegar a borduna.” Mas ela [a borduna] caiu na água e virou peixe
elétrico [Electrophorus electricus]. “Vou pegar esse pedaço de panela para
comermos farinha [de milho].” Ele caiu na água e virou arraia.
Eles voltaram para onde estavam. Depois de um tempo ele disse: “Vamos
procurar gente [wari’], nanananana.” Foi com as filhas para o mato e encontrou a
roça da outra gente [xukun wari’]. Viu frutos, mamões. Disse para as filhas: “Eu
encontrei gente [wari’]. Vamos pegá-los para comermos frutos também.” “Está bem”,
disseram as mulheres. “Não tenham medo deles”, ele disse. “Está bem”,
responderam as mulheres. O pai sentou-se junto dos frutos. Esperou, esperou, até
que apareceram as mulheres [da outra gente]. Elas vieram para comer frutos. Eram
filhas da outra gente. O pai delas tinha ficado na pedra [na serra]. “Corte [o fruto] que
eu pego aqui, irmã mais velha”, disse uma das mulheres [da outra gente]. Comiam
88

os frutos quando Nanananana apareceu. Elas gritaram. “Não precisam gritar por
minha causa. Os pais de nossos netos afundaram, nanananana.” Ele segurou uma
das mulheres pelo braço: “Nós não vamos matar vocês. Os pais de nossos netos
afundaram, nanananana.” “É mesmo?” Ele contou tudo para elas e perguntou:
“Vocês têm irmãos mais velhos, por parte da mãe de vocês?” “Temos sim. Os
nossos irmãos mais velhos ficaram lá.” “Corram e contem a eles!” “Está bem”, elas
responderam. Elas partiram. Depois chegaram os irmãos delas, irmãos mais novos e
mais velhos. “Você veio?”, eles perguntaram. “Eu vim, nanananana. Os pais de
nossos netos afundaram.” “É mesmo!” “Casem-se com minhas filhas”, ele disse.
Então os que viviam na pedra tornaram-se homens casados.
O pai desses homens, que vivia dentro da pedra, quis sair. Os filhos já tinham
saído. Ele disse: “Quero ver as esposas de vocês, meus filhos.” Ele esfregou no
corpo folha para ficar escorregadio, mas não conseguiu passar pelo buraco da
pedra. Era muito corpulento. A mãe deles também:”Vou ver as esposas de meus
filhos!” Tentou sair, mas não conseguiu passar pelo buraco. Não pôde sair. Os
rapazes que se casaram tiveram filhos. Primeiro perto da casa dos pais deles, mas à
medida que foram procriando, procriando, ficaram muitos, tiveram de abrir roças
cada vez mais longe. É possível que o pai deles tenha morrido. Foram se
espalhando e os filhos deles foram abrindo roças.

OBSERVAÇÃO: Esta versão pode ser considerada OroNao. Há outras versões de


outros subgrupos, que não serão contadas aqui, porém, se o leitor tiver curiosidade,
verificar no livro “Quem Somos Nós” da Aparecida Vilaça, páginas 308-313.
89

ANEXO 1-B

Versão colocada por Arruda e Col. (1997, p.9-15)

O Dilúvio Contado Pelos Nossos Antigos

Começa a cair uma chuva. Chove muito forte toda uma manhã. Continua a
chuva ainda e vai com mesma intensidade o dia todo. Vem a noite e a mesma chuva
continua e vara a noite toda. No dia seguinte amanhece chovendo e continua o dia
todo. Anoitece ainda com a mesma chuva que continua toda a noite. Amanhece de
novo chovendo. Chove toda a manhã. Chove o dia todo. Vem a terceira noite com a
mesma chuva, sem nenhuma interrupção. E chove ainda a noite toda. Amanhece o
quarto dia com a mesma intensidade de chuva que cai do mesmo jeito durante o dia
todo até à noite. Volta ainda a noite e é a mesma chuva que vai com a mesma
intensidade por toda a noite.
No quinto dia, logo que amanhece, um grupo de pessoas percebe que vem
caminhando para o lado deles, uma velha. Essa velha é o próprio Espírito da chuva.
Ela vem se aproximando deles. Ela vem trazendo nas costas um paneiro velho. É
preto o paneiro que ela vem trazendo. Ela vem direto na direção deles. Mesmo com
esse mau tempo, ela vem prosseguindo. Logo que a viram já bastante perto, um do
grupo disse aos companheiros:
“Acenda alguém ai um fogo, para a nossa vovó poder aquecer-se.” Ela chega.
Entra na casa e vem aquecer-se ao fogo. Pega um pouco mais de lenha, coloca-a
no fogo e o ajeita melhor. Porém ela fica pouco tempo.
“_Já vou embora, menino.” Diz ela.
“_Espere, vó! Esquente-se um pouco mais aí com o fogo!” Assim falam os
presentes.
“_Não, diz ela. Tenho que ir. Adeus para Vocês!”
Imediatamente ela os deixa e sai.
Nesse momento os rios estão todos enchendo. As águas já estão
transbordando e espalhando-se pelas terras e pelas matas. Só se vê água correndo
para um lado, água correndo para outro lado. Água por todos os cantos. Água
cobrindo tudo!...
90

Os peixes começam então a subir, acompanhando a correnteza das águas.


Por toda parte a gente encontra traíras, mandis, surubins, tucunarés...
O pessoal se mete a flechar peixes e a flechar peixes. Todos matam peixes.
Matam muitos peixes.
Cai ainda uma vez a noite e a chuva continua sempre do mesmo jeito, forte
como no começo. Não se percebe uma mínima diminuição... Chove forte, sem parar.
E sempre mais chuva. E as águas subindo, por todos os lados. A essas alturas já
fica seca somente aquela parte de terra onde estão.
Um homem mais experimentado reflete então consigo mesmo, compreende a
situação, e diz aos outros:
“_Gente, Vamos embora. Vamos sair já daqui, porque vai haver uma
alagação!...”
“_Companheiros, insiste ele ainda com os outros, Vamos embora. Eu acredito
que vamos ter uma alagação...”
Mas ninguém lhe dá ouvidos. Todos continuam tranquilamente flechando
peixes e recolhendo sempre mais peixes.
Ele chama então a esposa e lhe diz:
“_Vamos sair já daqui com nossas crianças.”
“_Vamos, sim. Responde ela.”
Está acabando de cais a noite. Está muito escuro, Mas ele parte assim
mesmo, com a escuridão da noite.. Vai embora com a sua família. Dirige-se logo
para a sua casa de milho, lá na sua roça. Com muita dificuldade consegue
finalmente chegar ao paiol de milho. Lá, cada um instala-se como pode, por cima do
milho.
A chuva continua forte, como antes. Chove muito durante a noite. Chove a
noite todinha.
Vem chegando a madrugada. Escuta-se então um grande barulho. A terra
acaba de se afundar.
Assim contam os nossos antepassados.
O homem escuta o barulho quando a terra se afunda.
E isso aconteceu mesmo. São os nossos antigos que o contam.
“Certamente que se afundaram lá todos os nosso irmãos e parentes!”
Diz o homem.
E ele chora e chora muito até pela manhã.
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No dia seguinte ele diz aos filhos:


“Fiquem aqui, Vocês, enquanto eu vou procurar e ver se consigo ainda
encontrar algum dos parentes de Vocês.
Assim fala aos filhos e sai.
Ele segue pelo mato, tentando chegar ao lugar das moradas. Vai
caminhando, ora para um lado, ora para outro... Ora para cá, ora para lá... Para,
finalmente na beira do rio e observa. Nota que a água está ainda subindo.
“_Vou tentar descobrir o lugar onde estavam as casas.” Se diz ele.
Mas não o consegue. Não existe mais nada de terra acima da água!...
Ele para e chora. Chora muito...
Volta então para junto dos seus. AO chegar diz à esposa:
“_Foram-se para o fundo todos os que lá deixamos!...”
“_É mesmo?...” Exclama-se a mulher.
E todos eles choram muito. Choram por muito tempo...
Passa-se esse ano. Passa-se o outro ano. Estão já no terceiro ano em que
ele está levando a vida assim triste e preocupado.
Um dia ele diz à esposa:
“_Vamos tentar procurar e ver se existem por aí outras pessoas?”
Ele sai pala mata procurando... Procura de um lado, procura de outro...
Procura aqui, procura ali...
Finalmente descobre vestígios de gente: -Galhos quebrados... outros galhos
dobrados... Mais galhos dobrados...
“_Estes são certamente Wari’!” Exclama-se ele.
No dia seguinte ele deixa novamente a esposa em casa:
“_Você fique aqui com as crianças, diz ele à esposa. Eu volto lá para verificar
se são Wari’ ou se são brancos que moram por esses lados.”
Dito isso ele sai. Vai andando e reparando com muito cuidado. Repara num
lugar, repara num outro... De repente, ei-lo saindo num caminho deles!... um
caminho muito grande.
Ele se mete nessa estrada e segue por ela. Percebe logo que PE a estrada
da roça deles. Vê logo grande quantidade de mamão. Justo que ele está nesse
momento com muita fome. Pega o mamão e come À vontade. Vem já caindo a
tardinha. Ele volta para casa. Chega alegre e diz à esposa:
“_Quase que encontro os Wari’!”
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“_É mesmo?” Pergunta ela.


NO dia seguinte muito cedo ele diz ainda à esposa:
“_Fiquem ainda aqui, Você e as crianças. EU vou de novo lá certificar-me se
são mesmo Wari’ ou não as pessoas cujos sinais eu descobri ontem.”
Parte imediatamente e dirige-se para o mesmo lugar onde esteve na véspera.
Ele chega no lugar antes do amanhecer. Aproxima-se devagar e com muito
cuidado. Para e espera aqui... Para e espera mais ali...
A luz do dia vem subindo. Chega enfim o dia completamente.
Logo que acaba de amanhecer ele escuta vozes de um grupo de mulheres.
Elas vêm descendo da morada delas numa serra vizinha. Vêm todas numa conversa
animada.
Ele se esconde,
Ao chegar na entrada da roça. As mulheres dividem-se em vários grupinhos,
continuando a mesma animação da conversa, dirige-se justamente para o lado do
nosso homem. Elas vêm parar bem pertinho dele e sempre em grande algazarra de
conversa. Isso continua por bons momentos.
Emas delas diz à companheira:
“_Leva alguns mamãos para o meu irmão mais velho, sim?”
“_De acordo, responde a outra. Vou levar uma braçada assim para ele. Está
bem?”
E todas riem-se muito entre elas.
Então o homem se diz:
“_Eu vou pegar e segurar uma dessas mulheres, para poder conversar com
elas.”
Isso dizendo, ele corre para junto das mulheres, segura uma delas e tenta
conversar com ela. Mas a mulher grita apavorada.
Não tenhas medo, diz ele. Na sou um homem branco. Eu vivo também
sozinho nas matas.”
Rapidamente ele conta para as mulheres o que se passou: Que os irmãos e
parentes dele pereceram todos na grande alagação.
“_Foram ao fundo todos os meus irmão e parente.” Diz ele.
“_Verdade?” Perguntaram as mulheres.
Enquanto estão conversando, muitas outras pessoas_aproximaram-se deles.
Ele pergunta então à mulher:
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“_Na tua família, vocês são numeroso?”


“_Somos numerosos.” Responde a mulher:
“_tenho um irmão mais velhos do que eu. Tenho um irmão mais jovem do que
eu. E muitos irmãos e irmãs. Isso aí.”
Ele percebe então um moço que permanece afastado do grupo. Vai até ele e
pergunta:
“_E Você, tem parentes também?”
“_Não, responde o rapaz. Eu vivo sozinho.”
“_Queres casar-te com uma filha minha?” Pergunta ainda ele.
Continua interrogando o rapaz e, ao mesmo tempo, vai dando uma volta em
torno do mesmo. Nota que ele tem rabo.
Da mesma maneira ele continua interrogando e observando a outros.
Vai assim procurando e examinando a todo o pessoal, Ele que ver se
encontra algum que não tenha mais o rabo.
Após muito procurar, encontra um que tem o rabo já bem curto e enroladinho.
Pergunta então a esse:
“_Aceitas casa-te com uma filha minha?”
A mesma pergunta ele continua dirigindo a vários outros.
Finalmente encontra um homem que não tem mais nada de rabo.
“_Aceitas casar-te com uma filha minha?” Pergunta-lhe ele.
“_Aceito sim.” Responde o homem.
Com esse ele termina a procura e diz ao pessoal:
“_Vou agora buscar e trazer para cá a mãe e as meninas.”
Dito isso ele parte imediatamente.
Com pouco tempo volta conduzindo a mulher e as filhas.
Ele diz então ao pessoal:
“_Porque vocês não desceriam agora lá dessa serra? Porque não faríamos
todos nossas casas aqui, na terra plana?”
O pessoal concorda com ele e começa logo a descer da montanha. E vêm
descendo. Vêm descendo. Descem todos.
Começam logo a construir as casas. Todos constroem. Após um certo tempo
de trabalho, lá estão as casas já todas prontinhas.
Mas o chefe deles (o cacique) não consegue vir com o pessoal. Ele é muito
gordo e fica preso na caverna. Não consegue passar pela porta de pedra. Também
94

a mulher dele é muito gorda. Ficam ambos presos na caverna. É assim mesmo...
Eles têm que ficar lá dentro.
O cacique fica então furioso. Profere insultos, maldições e pragas.
“_Vocês vão crescer muito.” Diz ele. “_Vocês irão crescendo e crescendo.
Mas depois vão parar de crescer e vão diminuir. Quando as mulheres de vocês os
convidarem para irem tomar banho juntos, essas mulheres de vocês vão ficar
pequenas como crianças. Elas não crescerão mais do que A altura da cintura de
vocês.”
Assim fala o cacique e deixa isso dito e decidido para toda a vida. E é o que
vem acontecendo. Tudo vem se realizando exatamente como ele disse.
Um belo dia o homem diz aos companheiros:
“_Vou cantar uma música para vocês. É uma música que escutei há já muito
tempo.”
E ele começa a cantar assim:
“_para e espera aqui, enquanto eu subo ali no mamoeiro... Para e espera aqui
enquanto eu subo ali no mamoeiro... Leva depois uma braçada para o meu irmão
mais velho...”
É isso aí o canto. Por aí ele termina.
Nesse momento já existe muita gente com ele.
As filhas dele começam a ter filhos. Elas têm já muitos filhos. E continuam
tendo sempre mais e mais filhos.
Entretanto, quase todos continuam ainda com o rabo. Só com o tempo é que
o rabo vai diminuindo, até que acaba desaparecendo.
Só então é que começam a ser assim como somos agora,, sem o rabo.
Antes não éramos Oromon, não éramos Ororamxijein ou outro... Éramos todo
OROJOWIN (macaco prego).
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ANEXO 2

Autorização para a pesquisa


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APÊNDICE 1

Entrevista Semi-estruturadas

- Como era/é a paquera? Como se demonstra que está interessada/o?


- Como era/é o namoro? (passado, presente)
- Como era/é o casamento? (passado, presente)
- O que motiva o casamento atualmente?
- Como era a relação entre pais e filhos?
- Qual o papel do homem (pai, marido, trabalhador)?
- Qual o papel da mulher (mãe, esposa, trabalhadora)?
- Como era o nascimento dos filhos? E hoje?
- Controle de natalidade
- Gravidez/Amamentação
- Menstruação/ Ejaculação
- Educação Sexual
- Relação Sexual
- Quem eram os parceiros?
- Relações extraconjugais
- Como eram e são ensinadas as atividades?
- Artesanatos, quem faz?
-Quais os rituais que existem?
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APÊNDICE 2

Artesanatos Tradicionais

Figura 16: Artesanatos Tradicionais. (A) Tambor tocado nas festas; (B) Borduna; (C) Panero; (D)
Cesto Tradicional; (E) Machado de Pedra; (F) Flecha Tradiciona. (Fotos: Luiza Bussius e Michel
Metran da Silva)l
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APÊNDICE 3

Artesanatos modificados com o contato

Figura 17: Diferentes formatos de cestos e Marico (bolsa tradicional de outra etnia). (Fotos: Luiza
Bussius e Michel Metran da Silva)
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Rio Claro, 21 de dezembro de 2009,

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Autora: Elise Mazon Albejante

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Orientadora: Profa. Dra. Célia Regina Rossi

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Co-Orientadora: Profa. Dra. Bernadete Aparecida de Castro Oliveira

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