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F
“ alaremos aos descendentes a
respeito do poder de Deus” (Salmo 78.4)
Anselmo Ernesto Graff1

Introdução

Em 2009, uma telenovela brasileira fez considerável sucesso ao incluir


algumas características marcantes de parte da cultura indiana. Dentre
outras coisas, exaltavam-se os supostos benefícios e orientações forneci-
dos pela astrologia. Certa vez alguém perguntou para Martinho Lutero o
que ele via de valor na astrologia. Dizem que seu amigo Filipe Melanchton
até tinha algum interesse por essas coisas. As pessoas chamavam isso
naquele tempo de mágica natural.
A idéia não seria manipular a natureza, mas simplesmente observá-la
e fazer uma leitura dela. Afinal de contas, se Deus é o criador dos céus e
da terra, sustenta e preserva todas as coisas em sua mão, então ele pode
talvez tentar nos dizer algo através dos sinais da natureza. Pelo menos
alguma coisa do que poderia acontecer em nossa vida diária e de maneira
especial no futuro.

Navegação astronômica – os astros a serviço do bem


Há uma parcela de razão para quem defende os astros como uma es-
pécie de “mensageiros” ou sinalizadores. A navegação marítima se utiliza
de um recurso chamado “navegação astronômica”, que é a observação
dos astros para obtenção de informações necessárias, através de cálculos
matemáticos, para determinar a posição de um navio e levá-lo em segu-
rança para o lugar desejado.
Será que isso funcionaria também para as nossas vidas? Será que
nós poderíamos nos fiar na observação dos astros para chegar ao porto
desejado? Martinho Lutero achava muito complicado fazer esse exercício
de tirar dos astros algo que poderia ser benéfico para as nossas vidas.
É até bem provável que o reformador tivesse tido em mente o texto
de Isaías 47.13: “Já estás cansada com a multidão das tuas consultas!
Levantem-se, pois, agora, os que dissecam os céus e fitam os astros, os
que em cada lua nova te predizem o que há de vir sobre ti. Eis que serão
como restolho, o fogo os queimará; não poderão livrar-se do poder das
chamas; nenhuma brasa restará para se aquentarem, nem fogo, para
que diante dele se assentem”. Nesse texto, o Senhor Deus reprova tanto

1
Este artigo é resultado de palestra proferida no Congresso Nacional da Liga de Servas Lutera-
nas do Brasil (LSLB), em Toledo, PR, em 14 de janeiro de 2010.

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a prática de observar os astros como os seus praticantes e mensageiros,


considerando isto algo inútil e ineficaz, pois o poder da salvação não está
nem nos astros nem nas mãos de astrólogos, pela razão óbvia de que
estes também serão exterminados (Dn 2.27).
Assim, quando alguém perguntava a Lutero sobre o futuro, ele apon-
tava para sua própria história de vida. O filho de um camponês [lavrador],
que foi à universidade, a contragosto do pai se tornou monge, protestou
contra a igreja da época, foi expulso e produziu a reforma da igreja. Quem
poderia ter lido isso nos astros? É uma história muito eletrizante, cheia
de curvas e surpresas. Ninguém poderia imaginar que este homem seria
conhecido como uma das personalidades mais marcantes dos primeiros
20 séculos e continuar sendo no século XXI2.
Com certeza em Martinho Lutero se realizou um provérbio alemão que
diz “Der mensch denkt, aber Gott lenkt” (“o homem propõe, mas Deus
dispõe”). Esta é apenas uma variação das palavras de Deus em Provérbios
16.1: “O coração do homem pode fazer planos, mas a resposta certa dos
lábios vem do SENHOR”. O ser humano articula, mas quem leva a efeito
é Deus. E assim não podemos planejar o que queremos, mas Deus tem
seus próprios planos em mente. Até uma simples ida a outra cidade deve
sempre ser entregue aos cuidados e vontade de Deus (Tg 4.13-17).
Nem sempre a corrida é ganha pelo mais rápido; a batalha não é
sempre vencida pelo mais forte. Algumas vezes pessoas simples, como
Lutero, eram usadas por Deus para causar derrotas a grandes poderosos
do ponto de vista humano. É maravilhoso conhecer o que Deus fez e faz
na história. Como ele usa pessoas de quem “nunca poderíamos imaginar
ou esperar grandes coisas” se tornarem heróis, no melhor sentido da
palavra (Dn 4.17).

Maravilhas e surpresas nas histórias contadas por Deus


Onde encontramos essas maravilhas do poder de Deus? Nos astros?
Não, nunca, mas na história contada pelo próprio Deus. As histórias de
Deus na Escritura Sagrada são como uma dobradiça de uma porta. O
pino do centro é Jesus Cristo. A primeira metade são os fatos relaciona-
dos ao povo de Deus, a libertação do Egito, a caminhada pelo deserto, o
exílio. Também há fatos relacionados ao próprio Cristo. Seu nascimento
da virgem Maria, crucificação, morte e ressurreição. Precisamos desses
fatos. O Cristianismo precisa deles. Mas também é necessária a fé, a
outra parte da dobradiça. Os eventos contados por Deus na Escritura são

2
Em 2003 uma televisão alemã colocou Martinho Lutero em 2º lugar dentre os personagens
de maior influência entre os alemães de todos os tempos. Em 1º lugar está Konrad Adenauer,
Primeiro Ministro durante 14 anos da República Federativa Alemã, na época da reconstrução
do país logo após o regime nazista. Disponível em <http://german.about.com/cs/culturre/a/
bestger.htm>. Acesso em setembro de 2009.

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acompanhados por promessas sólidas para as pessoas do século XXI.


Assim, quando o Senhor Deus convida o seu povo a ouvir e a contar as
histórias e os acontecimentos passados, as maravilhas e seu poder, seu
objetivo é que essa segunda parte da dobradiça, a fé, seja alimentada,
despertada e fortalecida. Deus quer alimentar a confiança nEle como
cuidador e Salvador.
Quando se pergunta a uma criança “quem é o teu Salvador e que te
ama muito”, ela vai dizer: Jesus. Mas sua resposta não caiu magicamen-
te do céu. Ao invés disso, ela confessou essa fé porque os pais, ou um
professor de escola dominical ou um pastor lhe ensinou essa verdade. Foi
esse conhecimento que fez a criança confessar “Jesus me ama e é meu
Salvador”, mas ela teve que saber isto antes e depois crer nessa verdade.
Sua confissão foi precedida pelo fato de que ela foi apresentada ao Senhor
Jesus através de uma história bíblica.

Histórias do Antigo Testamento que viram maravilhas


O povo de Deus do Antigo Testamento tinha muitas histórias para
contar para seus filhos. Histórias tornadas em maravilhas, porque é o
poder e o amor de Deus que estão acima dos seres humanos, os quais
são apresentados na grande maioria dos casos como instáveis pecadores
e cuja tendência é afastar-se de Deus e não confiar nele acima de todas as
coisas. A propósito, nisso está a origem do pecado de Adão e Eva. Quando
Eva foi abordada pela serpente, ela não estava mais muito certa de que
a bondade absoluta estava na palavra do Senhor. Ela começou a vacilar
se era necessário confiar, amar e temer a Deus acima de todas as coisas.
Pode-se dizer que aí reside o núcleo do pecado original.
Robert Kolb afirma que na falta da certeza nas palavras de Deus é que
reside o maior pecado do ser humano. Eva tinha começado a duvidar se
Deus realmente tinha dado a ela e a Adão a verdade sobre a estrutura
humana moldada por Deus para eles viverem. Cada ser humano, desde o
seu nascimento, compartilha da mesma recusa de Eva: reconhecer Deus
como Deus, depender do seu poder que sustenta, descansar na confiança
de sua contínua presença.3
A missão de transmitir aos filhos as maravilhas de Deus tinha diver-
sas finalidades, mas o cerne é um em especial: resgatar a confiança em
Deus e no seu cuidado e não em si mesmos ou em deuses fabricados por
nossa imaginação. É justamente isto que aconteceu desde o início com
os primeiros seres humanos. Ao dar conversa ao diabo, Eva nem se deu
conta que ela não estava mais se segurando na palavra de Deus, mas
sim, ansiava por algo a mais e nessa procura encontrou um vazio que só

3
KOLB, Robert. Speaking the Gospel Today. Revised Edition. Saint Louis: Concordia Pub-
lishing House, 1995. pp. 74-76

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é possível preencher voltando os olhos novamente para Deus.4 E essa é


uma razão pela qual Deus recomenda ouvir e contar as suas maravilhas
operadas na história: Ele quer continuar se revelando como Criador,
Redentor e Consolador e quer que nós voltemos nossos olhos a Ele em
confiança e certeza de que isto é o mais importante e suficiente para as
nossas vidas.

A importância das histórias contadas por Deus


Para os cristãos as histórias contadas por Deus em sua palavra são
mais do que um relatório de fatos históricos e cuja intenção seria apenas
preservar a memória do passado. As histórias narradas pelos cristãos
visam abrir os olhos das gerações seguintes a olhar sem impedimentos o
que Deus operou, ainda faz e continuará fazendo no futuro. Por isso seu
propósito último é abastecer a fé e a confiança no Senhor Deus. Isto dá
sentido às histórias, pois elas indicam um propósito específico além dos
fatos. Não é uma mera sucessão de eventos que proporcionarão algum
sentido, mas quem esteve por detrás deles, o que eles ensinam e o qual
era o verdadeiro propósito.
Se para alguns o objetivo de olhar para trás é prever o que vai ocorrer
no futuro, no sentido de que vai acontecer tudo de novo, as histórias conta-
das pelos cristãos também querem garantir que é possível prever o futuro,
mas não em fatos e jeitos repetidos, mas na certeza do contínuo cuidado
de Deus e sua intenção graciosa em redimir e salvar a humanidade.
É verdade que para muitos [de maneira especial para os gregos],
acontecimentos históricos não eram simplesmente sem sentido, mas
considerados importantes. Porém, não como para os cristãos. Estes veem
a importância dos fatos, das maravilhas de Deus sendo dirigidos e enca-
minhados para um fim último, um propósito que vai além do horizonte
visível a olho nu, e que é a expectativa esperançosa de um futuro infinito
e eterno. Esse tipo de olhar era intensamente visível nas profecias do
Antigo Testamento. Era um olhar futurístico. Deus recomenda olhar para
trás, para o presente, mas também para o futuro. As histórias do passado
representam promessas para o futuro.

Martinho Lutero olhou para trás e para o lugar certo


Quando Martinho Lutero estava miseravelmente ofuscado pela luz
alta vinda no sentido contrário de sua existência, a igreja queria que ele
continuasse olhando para si e para as suas obras e assim obtivesse a seu
favor um Deus bondoso. Mais ele olhava, mais lhe era cegado o olho para
ver esse Deus bom. Era uma missão impossível. Ele precisou olhar para
outra direção, para trás, para a história bíblica. Lá ele percebeu que o

4
Idem, p.76

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ser humano é essencialmente mau e que ele sempre dependeu e sempre


dependerá dos atos graciosos e misericordiosos de Deus. Ao olhar para
trás, para a história bíblica, ele começou a ver outra luz. Viu a suave luz
de Deus iluminando a história do seu povo e aprendeu com ela o funda-
mento da verdadeira confiança cristã.
Já nos seus primeiros escritos sobre os Salmos (1513-1515), Lutero
dava pistas para onde olhar a fim de encontrar um Deus bondoso. Sobre
o Salmo 78.7, por exemplo, Lutero afirma que “por esta razão o Senhor
ordenou a pregação do Evangelho, a fim de que as pessoas possam apren-
der a crer e a esperar em Deus, amar as coisas celestiais e desprezar as
terrenas e que nós tenhamos sempre na memória as obras que Ele [Cristo]
fez por nós na carne”.5
Lutero também descobriu essa verdade do salmista. No meio do seu
desespero, uma pequena, mas suficientemente forte luz surgiu no fim
do túnel e iluminou toda a sua vida. Essa luz é claro que é Jesus. Ele é
o Sol Nascente (Lc 1.78) que alumia a quem está na escuridão espessa
e sem saída. O Reformador aprendeu essa verdade olhando para Deus
e o encontrou onde ele conta histórias, mas mais do que histórias, onde
ele se revela, em sua Palavra, na água do batismo, no pão e no vinho da
santa ceia6. Em meio às contrariedades da vida, Lutero olhou para trás,
mas para o lugar certo, para a Palavra e as maravilhas do poder de Deus
saindo de sua própria boca.

O Salmo 78
Há uma concordância geral quanto à natureza do Salmo 78, embora
existam diferentes formas de denominá-lo. Alguns o designam como um
descritivo hino de louvor, com um texto de introdução característico da
literatura sapiencial. Outros intitulam esse Salmo como um “Salmo his-
tórico”, o que significa que seu conteúdo é uma recitação da história de
Israel. Há ainda aqueles que atribuem ao Salmo traços históricos, bem
como de sabedoria, pois em seu conteúdo há características da narrativa
e propósitos de ensinar as próximas gerações. O Salmo também é con-
siderado como sendo de natureza didática. Nesse caso, todos os relatos
históricos não visariam apenas apresentar uma lista de eventos, mas é
uma oportunidade para louvar ao Senhor através da meditação na his-
tória do seu povo, como apresentada ao longo do salmo. Meditação na
Palavra por sua vez gerará frutos do Espírito, confissão, reconhecimento
do amor e da misericórdia de Deus, consolo, conforto e louvor ao Senhor
de nossas vidas.
5
Lutero, Martinho. Lectures on the Psalms II – Psalm 76-126. Hilton C. Oswald, editor.
Luther`s Works, Volume 11. Saint Louis: Concordia Publishing House, 1976, p.45.
6
ROSIN, Robert. Luther Discovers the Gospel: Coming to the Truth and Confessing the
Truth. Concordia Journal, Volume 32, April 2006, Number 2, p.148.

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Essa é a essência do Salmo 78. É uma sucessão de eventos, não


necessariamente ordenados de forma cronológica, mas importantes na
vida do povo de Deus e que deveriam ser recontados com a intenção de
fortalecer e despertar a confiança perdida no Senhor Deus.
O Salmo começa solicitando a atenção para o que será ensinado. “Es-
cutem a minha palavra”! Escutem e ensinem à próxima geração o poder
de Deus e as maravilhas que ele opera (Salmo 78.4). Essas maravilhas
agora terão que ser passadas pelos pais aos filhos, numa corrente que
não se rompe (Salmo 78.5-6). O objetivo disso é expresso de maneira
clara: para que coloquem em Deus a sua confiança e não sejam instáveis,
incrédulos e infiéis a Deus (Salmo 78.7-8).
Por isso o Salmo 78 é uma porção didática da palavra de Deus. Ele
tem algo a ensinar. Em seu próprio jeito e característica, esse pedaço da
palavra de Deus desenvolve uma espécie de filosofia da história, de uma
forma prática e instrutiva.
O autor do Salmo 78 é Asafe. Há uma referência dele em 1 Cr 25.1-2:
“Davi, juntamente com os chefes do serviço, separou para o ministério os
filhos de Asafe, de Hemã e de Jedutum, para profetizarem com harpas,
alaúdes e címbalos. O rol dos encarregados neste ministério foi: dos filhos
de Asafe: Zacur, José, Netanias e Asarela, filhos de Asafe, sob a direção
deste, que exercia o seu ministério debaixo das ordens do rei”. Asafe é
um dos escolhidos para o ofício de louvar a Deus (cf. 1 Cr 16.5,7). Em
2 Cr 29.30 esse ofício passou aos levitas, com palavras de Davi e Asafe.
O conteúdo do Salmo 78 também é uma manifestação de louvor ao Se-
nhor. Asafe tem uma menção significativa do próprio Senhor Jesus em
Mt 13.35: “Todas estas coisas disse Jesus às multidões por parábolas e
sem parábolas nada lhes dizia; para que se cumprisse o que foi dito por
intermédio do profeta: Abrirei em parábolas a minha boca; publicarei
coisas ocultas desde a criação do mundo”, em especial as palavras do
Salmo 78.2: “Abrirei os lábios em parábolas e publicarei enigmas dos
tempos antigos”. Nesse texto Jesus mostra que o recurso das parábolas
para ensinar é em parte um cumprimento à profecia de Asafe. Ou então
poderia se colocar de forma inversa: Asafe ensinou por parábolas porque
Jesus usou desse recurso didático.7
Assim como fez Jesus, Asafe vai falar sobre acontecimentos revelados
por Deus e que não podem ser apreendidos pelo entendimento humano. Em
resumo, Asafe separa alguns eventos e aspectos significativos na história
do povo de Deus, para ressaltar que o propósito divino se realiza, apesar da
postura rebelde e instável do seu povo. Assim como a salvação de Deus se

7
Outras alusões do Salmo 78 no Novo Testamento: v.3, 1 Jo 1.1-4; vv.18-19, 1 Co 10.9-10;
v.24, Jo 6.31; v.37, At 8.21; v.44, Ap 16.4.

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manifestou na história, segundo interpretação de Asafe, assim a salvação


de Deus está presente nas parábolas contadas pelo Senhor Jesus.8
O Salmo 78 pode ser dividido em sete partes. Essa divisão visa facilitar
sua compreensão, análise e aprendizado. Cada peça tem suas peculiarida-
des e lições. Se vistas individualmente, a mensagem até pode ser perdida.
Mas se olhadas em separado e depois juntadas para formar um mosaico
ou uma pintura, Deus tem ensinos sobre as maravilhas que opera na vida
do seu povo e que podem ser admirados e apreendidos.

1. Histórias para alimentar


a confiança em Deus (vv.1-8)

Asafe escreve o início destacando que as lições da história deveriam ser


contadas para os filhos. Os primeiros versículos deixam clara a intenção
do autor. Esse conselho divino aparece com frequência em sua palavra, e
deveria ser posto em prática seja por iniciativa dos próprios pais ou para
satisfazer a eventual curiosidade dos filhos (Êx 10.2; 12.26-27; 13.8,
14; Dt 4.9; 6.20-25; Salmo 77.11-20; 105.26-38; 106.7-12; 135. 8-9;
136.10-15). Em Dt 6, logo depois do ensino dos mandamentos, é dito às
pessoas ensinar cuidadosamente a seus filhos. A instrução de Deus deve
ser sempre um assunto entre a família de Deus (Dt 6.20-21). Um exemplo
dessa prática é a família de Timóteo (2 Tm 1.5), cuja avó Lóide ensinou
à filha Eunice e que passou a lição ao filho Timóteo.
Quando Deus aconselha a se contar as suas histórias de geração em
geração, seu objetivo não é apenas a memorização, embora o v. 7 fale em
“não esquecer”, mas colocar sua confiança inteiramente e primariamente
em Deus. É o Primeiro Mandamento. Deus criou o ser humano para confiar
nas suas palavras e no seu cuidado, mas Adão e Eva preferiram ouvir a
proposta de Satanás e sucumbiram em sua escolha e partir daí esse é o
problema da humanidade: não ouvir mais a Deus em sua Palavra.
Isso equivale a dizer que a criatura tomou o lugar do Criador e o perigo
é se escorar no dinheiro, bens, inteligência, trabalho, realizações e deles
tirar segurança, alegria e sentido para a existência. Lutero afirma que o
dinheiro é o ídolo mais comum na terra e a este é conferido um alto valor
como fonte de ânimo e confiança.9 Quando o apóstolo Paulo escreveu aos
Coríntios, ele os lembrou de alguns fatos do passado que não foram muito
bons em suas vidas. Idolatria, imoralidade, tentar a Deus, dentre outros. O
apóstolo lembra que isso foi escrito justamente para servir de advertência
e que não se tome o mesmo desastrado rumo (1 Co 10.1-13). Quando
8
Morris, Leon. The Gospel According to Matthew. Grand Rapids: William B. Eerdmans
Publishing Company, 1995, p.355.
9
Lutero, Martinho. Catecismo Maior, 1ª parte, Dos Mandamentos, Livro de Concórdia. Tradução
de Arnaldo Schüler. São Leopoldo e Porto Alegre: Sinodal e Concórdia, 1993, p.395.7-10.

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Deus aconselha contar as suas histórias para as gerações seguintes, é


porque ele quer o coração todo do homem confiando exclusivamente nEle
e em mais nada ou ninguém. Ele nos criou e recria em Cristo para confiar,
não para duvidar.
Assim, Deus quer converter o conhecimento obtido nesse Salmo em
confiança e fé. O povo de Deus do Antigo Testamento está ligado ao Senhor
de duas formas: pela Palavra e por sua ação. Ambos eram necessários
para nutrir e existir um relacionamento adequado entre o povo e Deus, a
saber, as pessoas confiam no seu Deus como seu criador, sustentador e
salvador. Hoje Deus continua se relacionando com seus filhos. Deus con-
tinua se revelando pela natureza e suas ações, mas é na Palavra, Batismo
e Santa Ceia que ele se relaciona com seu povo e confere fé, confiança,
perdão, verdadeira vida e salvação.

2. O povo de Deus esqueceu sua palavra (vv. 9-11)

Aqui Asafe lembra Efraim como exemplo negativo para advertência e


ensino. A tribo de Efraim é diagnosticada como modelo típico de infideli-
dade. Essa declaração do salmista parece não ser uma alusão a um fato
histórico específico, mas uma afirmação de que essa tribo é um padrão de
falha diante da dificuldade. Eles não eram covardes; eram, ao contrário,
até considerados a tribo mais poderosa (Dt 33.17). Seu problema foi a
traição à aliança de Deus, mais concretamente descrita como esqueci-
mento do que Deus fez no passado em suas vidas e assim não andar na
sua palavra.
Há outras sugestões que procuram encaixar o ocorrido mencionado
neste texto. Uma delas seria a perda da Arca para os Filisteus, ocasião
em que todos do povo de Deus fugiram para sua tenda (1 Sm 4.1-10).
Outros falam da morte de Saul e seus filhos (1 Sm 31.1-13), que embora
não tenha conexão clara com Efraim, é um episódio que afirma a escolha
de Davi no reinado de Israel, um dos temas abordados no final do Salmo
78. Uma alternativa, considerada até como a melhor solução, é a queda
de Samaria (2 Rs 17.7-18) e que revela o pecado contra o Senhor ao
seguir outros deuses, abandonando a sua Palavra e por consequência a
confiança nEle.
Isso vai de certa forma ao encontro do que Lutero diz sobre esse texto.
Ele resume essas linhas afirmando que eles não colocaram sua esperança
em Deus, mas se tornaram filhos da desobediência e seu prazer não estava
na palavra do Senhor, mas em sua satisfação pessoal.10

10
Lutero, op. cit., p. 51

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3. Deus gracioso de um lado –


povo infiel do outro (vv.12-31)

Na terceira parte deste Salmo Deus retoma a caminhada pelo de-


serto e o êxodo. Aqui são mencionados exemplos do seu cuidado gracioso
nesses momentos não obstante a infidelidade do povo de Deus. Asafe traz
à lembrança algumas das maiores maravilhas operadas naquela ocasião.
A passagem pelo Mar Vermelho (Êx 14.15-31; Js 2.10) e seu cuidado dia
e noite através da coluna de nuvem e fogo (Êx 13.21-22). Maravilhosa
também foi a providência da água, e nesse caso é interessante notar,
pois isto ocorreu numa situação e manifestação do velho problema do ser
humano, impaciência e desconfiança (Êx 17.1-7). Deus ficou furioso com
a falta de confiança nEle e do presunçoso desejo deles por autonomia e
senso de independência, que não funciona diante de Deus, mas que de
certa forma coloca ainda mais em relevo a graça de Deus, pois as portas
dos céus continuaram abertas para bênçãos serem derramadas.
Nesse mesmo contexto é perceptível uma segunda manifestação da
providência graciosa de Deus, quando o povo chegou a acusar ao próprio
Deus por tê-los libertado da escravidão do Egito (Nm 20.1-13). De um
lado o povo, rebelde, descontente, petulante a ponto de desafiar e ques-
tionar de forma exigente a Deus. Do outro lado Deus, o Deus da graça,
que conhece a estrutura do ser humano (Salmo 103.14). Foi assim num
dos mais extraordinários milagres registrados na palavra de Deus, a pro-
vidência do maná. Deus fez chover pão e carne para o povo se alimentar.
Ele atendeu aos desejos do coração de seus filhos, que em última análise
não confiavam no Deus que os estava conduzindo graciosamente.
O que impacta nessa seção é que Deus foi muito querido, benevolente,
compassivo e gracioso, enquanto o povo de Israel foi muito desconfiado,
petulante e ingrato. Com certeza esse quadro nos deveria causar per-
plexidade e admiração, pois é um mistério registrado seguidamente na
história e que é uma maravilha inigualável: as ações misericordiosas de
Deus não obstante atitudes descrentes, grosseiras e ingratas dos seres
humanos do outro lado.

4. Quando ingratidão vira pecado (vv.32-39)

A quarta parte do Salmo 78 expõe o que não poderia acontecer. A


ingratidão crônica redundou em grave pecado. A atitude de rebelião
prosseguiu, em meio à intensa manifestação graciosa de Deus. Seu arre-
pendimento não foi genuíno, mas temporário e superficial. A impressão
que fica é que seu arrependimento foi motivado pela necessidade e não
pela lealdade consistente a Deus e que é gerada pelo próprio Deus (Rm

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2.4; At 11.18; 2 Tm 2.25). Porém, não dá para afirmar que sua atitude
tenha sido completamente negativa, pois lembraram de Deus como seu
redentor e fonte de segurança. Só que Deus, que esquadrinha corações
e mentes (Salmo 139.23-24; Jr 17.10; Pv 15.11), viu sua atitude como
falsa. “Quando os fazia morrer, então, o buscavam; arrependidos, pro-
curavam a Deus. Lembravam-se de que Deus era a sua rocha e o Deus
Altíssimo, o seu redentor. Lisonjeavam-no, porém de boca, e com a língua
lhe mentiam” (vv.34-36; cf. Is 29.13).
Mais uma vez aparece o grande problema do ser humano diante de
Deus: a falta de confiança. O coração não se firmava. Os olhos, que de-
veriam ficar abertos diante de Deus, insistiam em sonolentamente fechar.
Nesses episódios se confirma a mesma postura de Adão e Eva: não levar
as palavras de Deus a sério. Mesmo assim, Deus não se esquece de seus
filhos. Esse é o outro grande mistério da história e é a maior de todas as
maravilhas. A verdade mais profunda e significativa e que se torna con-
creta no fato de que “Deus corre atrás de seus filhos”. Definitivamente não
dá para enxergar o fim da sua misericórdia, que se renova a cada novo
dia, com os seres humanos que ele conhece (Salmo 103.14). Pode não
haver uma resposta sobre razões que motivam Deus a ser misericordioso,
mas o certo é que a característica do ser humano é a sua instabilidade
(v.39) e Deus, em sua graça, faz de tudo para reconduzi-lo ao caminho
da confiança.

5. Sob a areia movediça da história


dos homens está a rocha do amor de Deus (vv.40-55)

Santo Agostinho de Hipona foi um dos pais da igreja que foi conver-
tido por Deus já depois de adulto. De pagão ele passou a ser um teólogo
cristão renomado e defensor da Teologia Cristã. Um estudioso deste
patriarca afirmou que ele “cria que o amor de Deus forma a rocha sob
as areias movediças da história da salvação”,11 e que a vinda do Senhor
Jesus foi tornar visível esse misterioso amor de Deus. “E brilhantemente
o demonstrou, pois éramos ainda pecadores quando Cristo morreu por
nós”12 (Rm 5.8).
Esta proposição é perfeitamente verdadeira, se observarmos as rebe-
liões em série do povo de Deus ao longo de sua caminhada no deserto.
O cenário posto ao fundo eram os atos graciosos e amorosos de Deus,
mas a cena que se enxergava eram atitudes rebeldes das pessoas e que
ofenderam e magoaram ao Senhor Deus.
11
Harmless, William. Augustine and the Catechumenate. Collegeville, Minnesota: Liturgical
Press [Pueblo Book], 1995, p. 129.
12
Agostinho. A Instrução dos Catecúmenos – Teoria e Prática da Catequese. Tradução
de Maria da Glória Novak. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1978, p.41.

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O problema foi seu esquecimento e de maneira específica das


maravilhas operadas por Deus ainda no Egito, quando da libertação da
escravidão (Êx 7-12). Asafe enumera seis dos dez milagres. 1º, a água
transformada em sangue (Êx 7.14-25); 4º, o enxame de moscas (Êx 8.20-
32); 2º, a invasão das rãs (Êx 8.1-15); 8º, a irrupção de gafanhotos (Êx
10.1-20); 7º, a chuva de pedras (Êx 9.13-35) e o 10º sinal descrito foi a
morte dos primogênitos (Êx 12.29-36). O salmista faz uma viagem, sem
preocupação cronológica, desde a saída do Egito até a chegada à terra de
Canaã, para uma recapitulação na história do povo de Deus. Neste roteiro
o herói é Deus, porque mais uma vez aparece todo o cuidado dele para
com o seu povo. Como ovelhas foram guiados em segurança. Não havia
razão para temores e todos foram encaminhados à sua tenda. Havia mais
alguma coisa que o Senhor pudesse ter-lhes feito? Não. Mas ainda assim
o texto que segue apresenta uma série de exemplos de infidelidade e
rebelião.

6. A infidelidade está nos genes (vv. 56-64)

O povo de Deus olhava para o horizonte e via as maravilhas que Deus


operara em suas vidas. No entanto seus olhos insistiam em baixar e nova-
mente olhar para si. Essa propensão ao mal mais uma vez se materializou
em tentar ao Deus Altíssimo. A falta de confiança em Deus foi manifestada
na criação de imagens de escultura. O povo de novo negou ao seu Deus
Criador e Sustentador o direito de ser o seu Deus. Criados originalmente
com o senso de dependência, os seres humanos se encurvaram sobre si
mesmos e desenvolveram a doença de fechar os olhos para seu Criador
e dirigi-los para outros objetos de dependência, nesse caso, imagens de
escultura.
A raiz do problema estava em não guardar a palavra de Deus. O es-
quecimento dela resultou em desorientação, pois como um “arco enga-
noso” seus erros foram constantes e intensos. Deus mais uma vez ficou
desapontado e o salmista divulga o sentimento de Deus em traços fortes.
Deus ficou furioso. Ele teve de agir para corrigir a visão do seu povo, a
fim de que eles olhassem outra vez para a palavra do Senhor. O episódio
descrito, com a referência a Silo (1 Sm 4.5-22), foi quando a arca, lugar
da habitação do nome de Deus (Jr 7.12), foi tomada. O fato contado aqui
pelo salmista pode ser uma alusão à trágica morte de Hofni e Finéias. Nesse
contexto, os casamentos não tinham a alegria do canto e os sacerdotes
foram mortos e não puderam ser lamentados decentemente.
É uma descrição triste de um momento da história do povo de Deus.
Os exemplos ruins também foram deixados escritos, a fim de que não se
tome o mesmo rumo, aqui no caso, esquecer a palavra de Deus. Nessa

15
Igreja Luterana

situação a história serve como um mapa para não se tomar o mesmo


caminho, que já se sabe de antemão não levará a lugar nenhum.
Essa correção não é a obra própria de Deus. O Salmo fecha com ênfase
somente nas poderosas e bondosas obras que o Senhor fez pelo seu povo.
Isto também é muito instrutivo. Os multiplicados exemplos de teimosia
e desconfiança do povo não mudam e nem podem mudar o caráter ou
atributo do Senhor: sua eterna misericórdia.
Davi conheceu ao Senhor e não se esqueceu desta verdade. Ele confiou
no Senhor em meio a pressões por todos os lados. Ele aprendeu que a ira
do Senhor é preciso ser levada a sério, mas ela não passa de um instante
(Salmo 30.5; 145.8), pois a obra segundo a sua natureza é a misericórdia.
Por isso ele preferiu cair nas mãos afagadoras e misericordiosas do Senhor
a ser questionado e pressionado pelos homens (2 Sm 24.10-17).

7. Deus se coloca na linha de frente para batalhar


pelo povo (vv. 65-72)
A vitória do povo de Deus só pode ser atribuída ao próprio Deus. Essa
última parte aponta para um momento na história quando os inimigos do
povo escolhido serão destruídos e derrotados. Deus mesmo se levantou do
trono e foi para o front do combate. Assim como um herói de guerra que
se coloca na linha de frente para fazer recuar definitivamente os inimigos,
o Senhor despertou como um “valente guerreiro”.
Menção particular é feita nesta parte à escolha da tribo de Judá e a
de Davi, como pastor do seu povo. Para os profetas a esperança a ser ali-
mentada e proclamada era de que o povo de Deus estará sob o cuidado e
comando dum pastor real do Senhor e da casa de Davi, (Ez 34.23; 37.24;
Mq 5.4), o que se tornou realidade em Jesus Cristo, o Grande Pastor das
nossas vidas (Mt 2.6; Jo 10.11; Ap 7.17).

Algumas reflexões
Deus pede para olhar para as estrelas, mas não para consultá-las e
receber algum tipo de ensinamento. Deus pede que olhemos para cima e
admiremos a beleza do firmamento. Seu desejo é que fiquemos espantados
pela sua enormidade e passemos a apreciar a maravilha dessa criação.
Deus conhece cada uma das estrelas e as chama pelo seu nome, como
não saberá o nosso nome (Is 40.26-27) e que está tatuado nas palmas
de suas mãos? (Is 49.14-16)
Deus também pede que olhemos para sua palavra a fim de descobrir
tantas outras maravilhas do seu poder e amor para com seu querido povo.
A fé e a confiança de um cristão que crê num Deus amoroso é um assunto
pessoal, do coração, e devem ser atribuídas à ação do Espírito Santo. Po-
rém, isto também está relacionado ao saber e ao ensino. Primeiro somos

16
Artigos

ensinados, então cremos e depois articulamos a confissão. A verdade que


desperta a fé e a confiança num Deus que cuida nós aprendemos da palavra
de Deus. As histórias contadas por Deus têm uma característica principal,
ou um núcleo que teima em aparecer: de um lado está o ser humano pe-
cador, infiel, ingrato, preferindo afastar-se de Deus e seguir o seu próprio
caminho; do outro lado está Deus, misericordioso e bondoso.
O que tem de errado com o ser humano? Por que ele é descrito como
o vilão nas histórias contadas por Deus? Quando Deus começou a huma-
nidade e criou as pessoas, ele as fez para que estas confiassem nas suas
palavras e o amassem acima de todas as coisas. Porém, o diabo semeou
duas sementes venenosas que estragaram tudo. Não levar as palavras de
Deus completamente a sério, fazendo delas de fato um caso de vida ou
morte e duvidar do amor e do cuidado de Deus, que em outras palavras
significa duvidar da palavra de Deus. Desde então cada ser humano car-
rega em suas células esse mesmo casal de genes: não levar as palavras
de Deus completamente a sério e não ter certeza absoluta no seu cuidado
paterno.
Ao dar conversa ao diabo, Eva nem se deu conta que ela não estava
mais se segurando na palavra de Deus, mas sim, ansiava por algo mais e
nessa procura encontrou um vazio que só é possível preencher voltando
os olhos novamente para Deus.13 E essa é a razão pela qual Deus reco-
menda ouvir, contar e recontar as suas maravilhas operadas na história.
Adão e Eva caíram na cilada ou no conto de Satanás. Eles pensaram
que a proposta dele era vantajosa, “vocês serão como Deus” (Gn 3.5).
Porém, ao concordar com isso, eles estavam dizendo um “não” para a
forma boa que Deus os criou e pensaram em ser melhores do que a sua
criação original.
Deus formou homem e mulher para que tivessem senso de dependên-
cia do seu cuidado e amor paternal e assim ter o verdadeiro sentido de
vida, segurança e identidade. Mas, ao querer “ser igual a Deus”, o homem
pensou que poderia administrar por conta própria a sua vida. E a partir
disso um grande vazio se formou em sua vida. Como os homens foram
criados para ser dependentes, eles buscaram neles mesmos e em outras
fontes atender seu desejo de segurança e sentido para suas vidas. E ao
tirar Deus da sua história, eles tiveram que procurar outro deus: confiar em
si mesmos. Todavia, ao invés de acrescentar, eles tiraram deles mesmos
o que Deus tinha colocado neles de mais valioso: a amor a confiança no
Pai.14 Eles deixaram escapar o santo amor e a santa confiança no Pai.
O pecado causa prejuízos no sentido vertical e no horizontal. Deus
criou os olhos para olhar e confiar nEle e as mãos para cuidar e amar

13
KOLB, op. cit., p. 76.
14
Idem, pp.79-80.

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Igreja Luterana

o restante da boa criação de Deus e de forma especial nosso próximo.


Jesus confirmou e resumiu assim todos os mandamentos. Amar a Deus
de toda a nossa vida e ao próximo como a nós mesmos (Mc 12.28-31).
Quando Adão e Eva não se contentaram com a forma que Deus os dese-
nhou e não confiaram mais nas suas palavras, os olhos que deveriam ser
voltados para o Pai e dele esperar todo o cuidado passaram a ser usados
para olhar para si mesmos. No momento da queda, quando notaram que
estavam nus, eles se envergonharam do seu estado. Com isso, as mãos
que deveriam ser estendidas ao próximo e à criação passaram a funcionar
para se proteger e defender. No relacionamento com Deus, as pessoas não
procuram o que é da vontade divina, o que gera incredulidade, rebelião,
autojustificação e egoísmo. Por isso todos estão sob a ira e o julgamento
de Deus. Os prejuízos também são psicológicos e físicos. A pura razão
de antes da queda agora está contaminada, o que compromete sua ação
para com as outras criaturas e toda a criação de Deus.15
Tudo isso poderia ser resumido no fato de que a confiança e a esponta-
neidade do amor foram perdidas. Todavia Deus não desiste de recolocá-las
nas pessoas e, por isso, ele conta histórias que retratam o ser humano
pecador de um lado e do outro um Deus cuja misericórdia se renova a cada
manhã. Deus conhece a nossa estrutura, as nossas inclinações (Salmo
103.14); sabe que desde a queda não levamos totalmente a sério, como
fizeram Adão e Eva, as palavras de Deus. Fomos criados por Deus para
confiar, mas duvidamos do seu cuidado e amor.
De alguma forma somos responsáveis pelo mal e a culpa e é preciso li-
dar com isso. Porém, é impossível por nós próprios lidar com essa situação.
Jesus veio para tomar o nosso lugar, servir como nosso substituto, realizar
o sacrifício vicário e assim exorcizar nossa culpa. Ele fez isso voluntária e
obedientemente (Fp 2.6-8; Hb 5.8). Jesus tornou-se a vítima da Lei e da
ira do Pai. A fúria de Deus contra o mal é real, tinha que ser combatida,
mas ela não foi subjugada pelo poder, mas na fraqueza e loucura da cruz
(Gl 4.4; 3.13; 2 Co 5.21; Rm 5.9-10).
Por mais irado que Deus possa parecer estar com nosso pecado, ele
enviou o guerreiro para lutar em nosso favor. Adão foi uma criatura humana
e deixou toda a humanidade na mão. Seu vacilo trouxe o pecado e com
o pecado a dura realidade da morte. Mas Jesus foi uma recapitulação de
Deus, no “episódio Adão”, só que com um resultado reverso. Quando Jesus
encarou o enganador mais uma vez, o script já tinha sido escrito. Assim
como Adão, Ele foi tentado em sua carne, em sua fé e em sua fidelidade
a Deus. Todas as três resumidas na tentação – separar Jesus da confiança

15
ÖBERG, Ingemar. Luther and World Mission. A Historical and Systematic Study.
Tradução de Dean Apel. Saint Louis: Concordia Publishing House, 2007, pp. 18-19.

18
Artigos

na palavra de Deus.16 Porém, como um valente guerreiro, Jesus expôs


à vergonha todas as forças do mal e assim a cruz é o sinal da vitória de
Deus e da nossa vitória. Deus toma a morte em suas próprias mãos para
suplantar o seu poder e força.
Como nosso Rei, Jesus, o Cristo, acima de tudo nos resgata e salva
de nossos inimigos, da nossa culpa ou responsabilidade pelo pecado e
dos males que nos fazem suas vítimas (Mt 1.21; 1 Co 15.35-37; Fp 3.20;
2 Tm 1.10; Tt 2.11-14). Como o Ressuscitado, ele é a fonte de vida e
nos salva da morte, o mal culminante de todos que podem nos afligir (Jo
11.25-27; 1 Co 15). Ele foi o guerreiro e se antecipou para preparar o
caminho originalmente criado por Deus, a vida (Hb 6.20).
Jesus é o nosso valente guerreiro sempre desperto para acalmar as
nossas tempestades, mesmo aquelas que fazemos em copo de água. Pois
como diz Martinho Lutero, somos como ovelhas e a ovelha é ao mesmo
tempo um animal extraordinariamente engraçado e estúpido. “Se nós
queremos chamar alguém de estúpido, nós dizemos você é uma ovelha”.
Porém, por outro lado, quando a ovelha reconhece a voz do seu pastor, ela
corre a ele em completa confiança.17 Ao falar das maravilhas e do poder de
Deus, ele quer ser ouvido acima de tudo no Bom Pastor Jesus, a fim de que
nós saiamos correndo e nos aconcheguemos em seus amáveis braços.
Quando passamos a olhar e refletir sobre as histórias de poder e mara-
vilhas narradas por Deus e que estão na sua Palavra, vamos nos enxergar
como personagens dela e por duas razões bem claras: primeira, o pecado
que invadiu a boa criação de Deus também nos afetou; e a segunda razão
é que, apesar disso, continuamos a ser criaturas especiais para o Criador
e a nossa história também é guiada por ele. As circunstâncias e aconte-
cimentos de hoje podem ser completamente diferentes daquelas do povo
de Deus do Antigo Testamento, mas o problema das pessoas continua
sendo o mesmo. Por conta do pecado herdado de Adão e Eva, falta-nos a
confiança completa na palavra de Deus, e por isso também nós precisamos
ser chamados a erguer os nossos olhos a Deus em arrependimento e ele
devolver à nossa vida segurança, sentido e identidade.
Em meio às contrariedades da vida, Lutero olhou para trás, mas para
o lugar certo, para a Palavra e as maravilhas do poder de Deus saindo de
Sua própria boca. Também nós somos vítimas de contrariedades múltiplas.
Talvez para muitos de nós não haja descanso delas e quem sabe só na
eternidade elas cessarão. Porém, no centro das histórias maravilhosas de
Deus está a cruz de Cristo. Ao olhar para a cruz nós sabemos com certeza
que Jesus não está dormindo, mas está na ronda, emboscando nossos

16
KOLB, op. cit. p.76.
17
SIGGINS, Ian D. Kingston. Martin Luther`s Doctrine of Christ. Eugene: Wipf & Stock
Publishers, 2003, pp. 245-246.

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inimigos muito mais vezes que possamos reconhecer. É ele que também
nos consola e nos estimula a nos manter confiantes ainda que haja mil
razões para duvidarmos. Confiança que é confiança não pede e não pre-
cisa sinais. Apenas crê que está nas mãos de Jesus, o Senhor que exerce
o supremo poder (At 2.36; Rm 10.9; 1 Co 12.3; Fp 2.11), não como um
déspota ou ditador, mas como um amoroso Senhor.
Martinho Lutero resume em sua explicação deste Mandamento o que
significa esperar ou confiar em Deus: “toma cuidado no sentido de ape-
nas eu ser o teu Deus e de forma nenhuma procures outro. Isto é: o que
te falta em matéria de coisas boas, espera-o de mim e procura-o junto
a mim, e se sofres desdita e angústia, arrasta-te para junto de mim e
apega-te comigo. EU, eu te quero dar o suficiente e livrar-te de todo o
aperto. Tão só não prendas a nenhum outro o coração, nem o deixes em
outro descansar”.18 Falar do poder e das maravilhas de Deus é nos devolver
essa cega confiança em nosso Pai celestial.
A fé e a confiança cristã, uma parte da dobradiça, não é, pelo menos em
primeiro lugar, um consentimento intelectual a idéias a respeito de Deus.
Elas são antes de tudo uma atitude de confiança e dependência completa
dele (Salmo 131; Mt 19.3; Tg 4.6; 1 Pe 5.5), ligadas a fatos históricos
presentes no Salmo 78. É verdade, esse salmo lida com histórias muito
feias do povo de Deus. Todos os tipos de pecados se manifestaram: falta
de confiança, desobediência, rebelião, petulância. Mas ele também fala
dos grandes milagres da graça de Deus, chamada até de irracional, pois
Deus faz de tudo para compreender e perdoar o seu povo. Isto não pode
ficar guardado, é preciso contar e recontar às próximas gerações.
Ao mesmo tempo em que nos vemos como pecadores, porque perde-
mos nossa devoção espontânea a Deus e sua vontade, ainda assim Jesus
Cristo faz de nós heróis. Mães heroínas, pais heróis, super amigos e super
amigas, trabalhadores incansáveis, servos, servas, vizinhos e vizinhas,
filhos e filhas que cuidam de seus pais idosos, noras e genros que se juntam
nessa missão, de todos o Espírito Santo empresta ombros, mãos, bocas
e vidas, para consolar, ajudar e cuidar da boa criação de Deus. Ao olhar
para as histórias de Deus, podemos ter certeza do que vai acontecer no
futuro. Deus vai continuar nos amando e cuidando aqui e recebendo com
a festa dos anjos na eternidade. Amém.

Metodologia

A metodologia empregada para elaboração deste material tomou


como ponto de partida e base principal as três obras citadas abaixo. Os

18
Lutero, Martinho. Catecismo Maior, 1ª parte, Dos Mandamentos, Livro de Concórdia,
p.395.4.

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Artigos

textos complementares são aludidos em notas de rodapé quando usados.


A informação sobre a “navegação astronômica” foi obtida ao digitar essa
palavra no site de buscas Google.

Referências bibliográficas

LEUPOLD, H. C. Exposition of the Psalms. Minneapolis: Augsburg


Publishing House, 1959.

ROSIN, Robert. Luther Discovers the Gospel: Coming to the Truth and
Confessing the Truth. Concordia Journal, Volume 32, April 2006, Number
2, pp.147-160.

TATE, Marvin E. Psalms 51-100. Word Biblical Commentary, Volume


20, Dallas: Word Books Publisher, 1990.

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