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O ARTIVISMO COMO POÉTICA DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA DO

COLETIVO Pɳ

Marlon Bruno Vitor de Paula

O Coletivo Pé³ (leia-se Pé ao cubo) de performance artivista, residido em São


João del-Rei (MG), iniciou os trabalhos com o objetivo de construir poéticas que
pudessem confluir sociedade, história, política e arte. Formado em 2016, não por
acaso o mesmo ano de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em que o país
viveu um dos maiores cataclismos políticos da Nova República, os integrantes, por
uma necessidade de manifestação artística, fundam o grupo, buscando aprofundar a
relação entre arte e política ao trazer o artivismo como uma poética do grupo.
O artivismo, historicamente, surge dos ideais e práticas da revolução estudantil
de maio de 1968 na França, despontando não como uma nova corrente artística, mas
uma prática que suscita uma outra relação entre o artista e a pólis, atenta ao
desenvolvimento da arte como instrumento de sensibilização da sociedade para um
contexto histórico ou realidade social. O artivismo busca na arte uma mediadora
discursiva para ampliação da percepção cidadã, levando temas como resistência,
mobilização e reflexão política para as massas. Geralmente, deslocando de suas
práticas os espaços e instituições formais de consumo de arte para a ocupação das
ruas, praças e internet (ciberativismo), construindo estéticas de aproximação e\ou
esclarecimento para determinadas audiências que geralmente não possuem acesso à
arte.
Percebe-se no artivismo um realismo político que busca o sucesso dos
objetivos seja no microcosmo (quarteirão ou bairro), seja no macrocosmo (público
ampliado, áreas internacionais ou Internet). Pode-se falar em realismo também por
incorporar à arte uma certa instrumentalização, dando a ela uma função sócio-
política, que vai desde a formação de consciência do outro, passando pela educação,
até o fomento da mobilização. Pode-se ter, então, a metáfora do artista como gatilho
de futuros desdobramentos sociais. (CHAIA,2007, p.10-11)

O artivismo impresso nas ações do grupo


A seguir, apresento alguns trabalhos desenvolvidos pelo coletivo,
performances que não necessariamente são executadas conjuntamente por todos
membros, mas participam do repertório do grupo, na medida que conceitualmente
foram geridas ou alimentadas por debates entre seus integrantes.
“Mulher de Pau”(2017), desenvolvido pela performer Lucimélia Romão, é um
trabalho que aborda como temática central a mulher negra e os papéis sociais
construídos para a mesma no ambiente doméstico. A performer convida o público
para um jantar performático. Dentro do espaço da cozinha a audiência contempla a
performer, seminua, vestindo apenas um avental, preparando um caldo de abóbora
com colheres de pau. O programa¹ de performance é concebido a partir de uma
comparação entre a colher de pau, utensílio de cozinha abolido de restaurantes por
órgãos de vigilância sanitária, e o corpo da mulher negra, que historicamente sempre
ocupou a cozinha na preparação de alimentos, e nunca foi convidada a sentar-se à
mesa. Ao submeter o corpo da mulher negra como objeto, tal como a colher de
madeira, por ser material inadequado, a performer compara os lugares de negação e
marginalização da colher e da mulher, que segundo a performer, desde o período
colonial foram tradicionalmente condicionados a servir.

Figura 1 : Performance "Mulher de Pau"(2017). Foto: Divulgação

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1- Programa é um termo utilizado por Eleonora Fabião(2008) para definir uma ação idealizada pelo
performer que funciona no corpo do mesmo, como um ativador ou estimulador de experiência.
O lugar militante que o artista assume, não somente por questões de empatia,
mas por um compromisso de estar politicamente envolvido nas demandas de grupo
minoritários, está inerentemente ligado ao modo de criação artística do coletivo. No
Brasil, país que segundo a pesquisa “Emprego Doméstico no Brasil” , do DIESSE, a
maioria dos empregos domésticos ainda são ocupados por mulheres negras, o trabalho
“Mulher de Pau” encontra ressonâncias ainda maiores, provendo para audiência
contextos que levantam as origens e perpetuação de um passado escravocrata ainda
não resolvido no Brasil.
A “Republiqueta das Bananas: A marcha da Nódoa ao Caos”(2016) é um dos
trabalhos de maior destaque do coletivo. Realizada em São João del-Rei, Tiradentes e
Brasília, tem como inspiração a histórica Marcha da Família com Deus pela
Liberdade, ocorrido anteriormente ao golpe de estado de 1964, e também faz alusão
ao famoso termo pejorativo “República das Bananas” cunhado pelo humorista e
cronista estadunidense O. Henry, como sátira a países de democracias frágeis e
governos corruptos, alinhados a interesse internacionais.
A performance consistia de uma caminhada que atravessava o espaço urbano,
com três performers carregando em suas costas bananeiras e distribuindo bananas para
os transeuntes que se aproximavam da ação. O trabalho foi primeiramente pensado em
um percurso de 10 quilômetros que ligava as cidades históricas de São João del-Rei à
Tiradentes, pela linha da Maria Fumaça, um importante atrativo turístico das cidades,
mas também vou realizada outras vezes, sofrendo pequenas alterações.

Figura 2: Performance "Republiqueta das Bananas: A Marcha da Nódoa ao Caos",

realizada em Brasília (2016). Foto: Kauê Rocha


Para a realização da performance o coletivo convidou o público por um evento
nas redes sociais, abrindo um diálogo que retirava o espectador do lugar apenas
contemplativo e o integrava para a marcha das bananeiras. Pela internet foram
fornecidas algumas orientações para a caminhada, para que a experiência da
performance também se tornasse algo vivenciado para o público disposto a participar.
Durante trechos do caminho eram realizadas pausas, em que um dos
performers compartilhava alguma história ou relato de opressões e conflitos a partir de
uma pesquisa da historicidade latino americana. Muitas dos relatos adquiriam um tom
autobiográfico, como no caso de Lucimélia Romão, que trabalha com a memória da
avó que morreu aos 91 anos sem conhecer sua origem familiar; tinha sobrenome
judeu, pois era costume no período de escravidão os povos escravizados receberem
sobrenomes de seus senhores, mas devido a queima de arquivos relacionados ao
tráfico negreiro pelo então ministro da Fazenda Rui Barbosa, apagou-se dos registros
públicos qualquer vínculo que pudesse ser estabelecidos entre a comunidade negra e
sua ancestralidade africana.
O performer Mar de Paula trouxe o fatídico Massacre das Bananeiras, ocorrido
em 1928, na Colômbia, onde um grupo de trabalhadores da empresa americana United
Fruit Company, ao protestar contra as injustas formas de trabalho que vinham
enfrentando, interditaram as linhas de produção e bloquearam a passagem do trem que
escoava as produção de bananas para o porto. O presidente do período, Miguel Abadia
Méndez, ordenou que o general Carlos Cortes Vargas fosse a região para sanar os
conflitos e proteger a vida dos diretores da companhia americana. No dia 5 de
dezembro os trabalhadores, acompanhados de suas mulheres e filhos, se deslocaram
para o povoado de Ciénaga para receber a visita do governador, mas ao chegarem
foram recebidos pelo general Cortes Vargas, que diante de várias ameaças ordenou
que 300 soldados disparassem contra os cinco mil camponeses. O número de mortos
nunca foi oficializado, o general assumiu 47 vítimas, mas números não oficiais falam
de três mil mortos, além dos corpos não contabilizados que foram atirados ao mar
após serem carregados pelos vagões da United Fruit Company. Coube a perpetuação
da memória das vítimas desse atentado na obra literária de Gabriel Garcia Marquez:
O capitão deu a ordem de fogo e quatorze ninhos de metralhadoras
responderam imediatamente. Mas tudo parecia uma farsa. Era como se as
metralhadoras estivessem carregadas com fogos de artifício, porque se escutava o
seu resfolegante matraquear e se viam as suas cusparadas incandescentes, mas não
se percebia a mais leve reação, nem uma voz, nem sequer um suspiro, entre a
multidão compacta que parecia petrificada por uma invulnerabilidade instantânea.
De repente, de um lado da estação, um grito de morte quebrou o encantamento:
“Aaaai, minha mãe”. Uma força sísmica, uma respiração vulcânica, um rugido de
cataclisma, arrebentaram no centro da multidão com uma descomunal potência
expansiva, enquanto a mãe e o outro eram absorvidos pela multidão centrifugada
pelo pânico. […] tentando fugir do pesadelo, José Arcádio Segundo arrastou-se de
um vagão a outro […] via os mortos homens, os mortos mulheres, os mortos
crianças […] Quando chegou no primeiro vagão deu um salto na escuridão e ficou
estendido em uma vala até que o trem acabou de passar. Era o mais comprido que já
tinha visto, com quase duzentos vagões de carga e uma locomotiva em cada
extremo e uma terceira no centro. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014: p. 340-341)

A performance foi realizada em outro contexto também em 2016, no XX


Encontro Nacional de Estudantes de Arte - ENEARTE, em Brasília. O percurso inicial
foi na Universidade de Brasília até as Praça dos Três Poderes. Um pequeno número de
pessoas participaram da ação. Ao final, com o auxílio de facões, os performers
retiravam de suas costas e cortavam as bananeiras, triturando o vegetal, formando no
chão a palavra que unia todas as histórias narradas no trajeto: sangue.

A ponte entre obra e público

Além de trazer abordagens de elevada crítica social na estética e conceitos dos


trabalhos, outro aspecto a ser analisado é o envolvimento do coletivo na repercussão
das obras. Uma temática explorada em uma performance nunca é esgotada ao término
da apresentação. Existe um interesse do grupo em uma repercussão mais duradoura
dos debates que cada obra suscita.
Nos trabalhos de performance em que os artistas muitas vezes utilizam-se de
metáforas visuais e constroem narrativas que deslocam signos e símbolos do lugar
ordinário freqüentemente desperta a curiosidades no públicos que observa a
intervenção urbana. Durante as caminhadas da performance ''Republiqueta das
Bananas: A marcha da Nódoa ao Caos" muitos transeuntes indagavam sobre o
acontecimento; o porquê das bananas e das bananeiras, qual a razão e a finalidade
daquela ação. “A eliminação de um discurso mais racional e a utilização mais
elaborada de signos fazem com que o espetáculo da performance tenha uma leitura
que é antes de tudo uma leitura emocional. Muitos vezes o espectador não
‘entende’(porque a emissão é cifrada) mas ‘sente’ o que está acontecendo” (COHEN,
2002, p.60). Os performers perceberam que deveriam ir além, que poderiam criar
algum mecanismo que transformasse a curiosidade dos transeuntes em uma
indagação, que perfurasse o lugar do estranhamento estético e alcançasse o lugar mais
aprofundado e crítico do trabalho.
A superação e não a ruptura se dá na medida em que a curiosidade
ingênua, sem deixar de ser curiosidade, pelo contrário, continuando a ser
curiosidade, se criticiza. Ao criticizar-se, tornando-se então, permito me repetir,
curiosidade epistemológica, metodicamente "rigorizando-se" na sua aproximação ao
objeto, conota-se seus achados de maior exatidão. (FREIRE, 1996, p.17)

A aproximação com as materialidades trabalhadas na performance como


facões, bananas, bananeiras, roupas, fotografias, vídeos e relatos escritos, apresentou-
se como um grande possibilidade de aguçar a curiosidade do público e trazê-los para o
universo conceitual da performance. A performer Hana Brener Mockdece, a partir de
suas experiências com o evento Troca de Saberes², trouxe ao coletivo a noção de
Instalação Artístico Pedagógica, um espaço para confluir com o público
conhecimentos e saberes interdisciplinares. As Instalações Pedagógicas tiveram
origem nas Escolas Sindicais da Central Única dos Trabalhadores, nas décadas de
1980 e 1990, e trata-se de espaço expositivo que trabalha com uma disposição
espacial de objetos que acionam o compartilhamentos de algum saber ou práticas,
funcionando como dispositivos para discussão e reflexão. (LOPES, 2013, p.2)
O grupo produziu a exposição “O Rastro”, que reuniu os objetos trabalhados
na performance ''Republiqueta das Bananas: A marcha da Nódoa ao Caos". Na
atividade ocorreu também roda de conversa com os visitantes; na ocasião, o coletivo
esclareceu ao público as inspirações conceituais e motivações artísticas do projeto. O
evento ocorreu dentro de um laboratório do curso de Teatro da Universidade Federal
de São João del-Rei e contou com a presença de público extra-acadêmico e
universitário.
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2 - A Troca de Saberes é um evento realizado pela Universidade Federal de Viçosa (UFV),


através da Assessoria de Movimentos Sociais e Programa de Extensão universitária TEIA,
conjuntamente com o Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM), movimentos
sociais, movimentos culturais e sindicatos de trabalhadoras(es) rurais (STRs) da região apoiados pela
Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da UFV
Vieira Batista (2007), analisando uma cartografia ilustrada elaborada por
Suzanne Lacy, aponta que o artista artivista tem que tornar o trabalho multidisciplinar
ou clarificar processos artísticos para audiências não educadas em arte. A exposição
“O Rastro” nasceu para cumprir este propósito, ao possibilitar um espaço aberto de
troca, em que o público livremente pudesse transitar sobre a instalação e ter
individualmente seu espaço de análise do trabalho. Com o compartilhamento das
materialidades e ferramentas de criação da performance, houve sim, a possibilidade
de sensibilizar a curiosidade do público, ao aprofundar a experiência estética e atingir
o que Paulo Freire menciona como uma superação de um estágio de curiosidade
ingênua para um espaço de curiosidade crítica.
Conceitos como "republiqueta das bananas" "massacre" "minorias" "guerra"
"ditadura" foram submergindo nas rodas de conversa, juntamente com os elementos
estéticos trabalhados na performance, transformando as metáforas visuais utilizadas
em simbologias dotadas de lastro histórico e político. O estranhamento visual
destacando os objetos do seu contexto original (COHEN, 2002) produzindo novas
formas de relevância e significado.

Caminhos do Coletivo Pé³


Com três anos de existência, o coletivo vem se consolidando como um grupo
que procura desenvolver processos artísticos que não se ocupam apenas em uma
preocupação política de mundo, mas que mirem em um envolvimento social, seja
desenvolvendo tecnologias de aproximação entre o público e a obra, ou criando
dispositivos que promovam uma relação mais estreita entre o artista e a pólis. As
poéticas desenvolvidas são geralmente pensadas para intervir diretamente em espaços
não tradicionais de consumo de arte, buscando audiências em espaços públicos. O
grupo continua sua pesquisa na utilização da arte para dar visibilidade a questões que
afligem grupos minoritários. Seus membros tem focado em trabalhos solos, ampliando
as ações do grupo e diversificando o repertório temático, sempre buscando conferir a
estética dos trabalhos uma função sócio-política.

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mundo globalizado / Christoph Wulf; tradução Vinicius Spricigo. - São Paulo:
Hedra, 2013.

Vários Autoras/Vários Autores. Cia. Excessos: entre arquivos e práticas


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Jundiaí, Paco Editorial: 2015.

COHEN, Renato. Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de


experimentação. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo, Editora EGA, 1996

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cem anos de Solidão/ Gabriel García Márquez;


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