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Centro Cultural Arte em Construção e a experiência da cidade democrática

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Em um momento que o mundo regido sob a lógica capitalista e colonial dá indícios


concretos de sua falência, em que assistimos a nossa democracia em vertiginosa queda e
que as cidades parecem à beira de um colapso – se não já colapsadas –, este ensaio
busca pensar em possibilidades de resistências e reexistências contra hegemônicas a tal
panorama, a partir das relações entre o espaço teatral e o urbano. De modo mais
específico reflito sobre a sede dos coletivos teatrais paulistanos Grupo Pombas Urbanas
e Grupo de Circo Teatro Palombar – Centro Cultural Arte em Construção – como
possibilidades de experiência, ainda que parcial, de uma cidade democrática.

Boaventura de Sousa Santos, em A Difícil Democracia (2016) aponta que atualmente


vivemos em um regime democrático de baixa intensidade marcado por duas
modalidades de crise patológica: a da participação e da representação. A primeira diz
respeito à ideia de que a participação democrática se reduz a escolha de representantes
políticos (no caso do Brasil nos pleitos bienais), enquanto a segunda seria uma espécie
de não reconhecimento da população nos representantes eleitos2. Já David Runciman
prefere o termo “democracias zumbi” para pensar sobre o atual estado de apatia
democrática no qual a participação da população se restringe “a assistir a uma
representação em que seu papel é aplaudir ou negar aplauso nos momentos
apropriados.”3

O que o Brasil tem vivenciado, especialmente desde o golpe político institucional contra
a presidenta Dilma Rousseff em 2016, com a posterior eleição do atual presidente,
seguida da devastadora chegada da pandemia de Covid-19 é, sem dúvida, uma sucessão
de hecatombes – democrática, urbana e humana. Diante disso, o que ambos os autores
nos convidam a refletir é que precisamos não apenas criar, mas sobretudo trazer à tona
experiências que apontam para algum tipo de esperança. Esperança no sentido
apresentado por Paulo Freire – do verbo esperançar –, a qual não se trata de uma espera
passiva por algo, mas de uma busca ativa, de uma ação em busca daquilo que se quer
transformar. Nesse sentido, é que apresento o projeto artístico comunitário realizado no
1
Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Unirio.
2
SANTOS, Boaventura de Sousa. A difícil democracia: reinventar as esquerdas. São Paulo: Boitempo.
2016.
3
RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. São Paulo: Todavia, 1o Edição, 2018, p. 29.

1
bairro Cidade Tiradentes, Região Leste da cidade de São Paulo, na sede do Grupo
Pombas Urbanas e mais recentemente também sede do Grupo de Circo Teatro
Palombar.

O Grupo Pombas Urbanas nasceu em meados do ano 1989 em uma oficina de teatro
realizada na zona leste de São Paulo – no bairro São Miguel –, pelas mãos e mente do
peruano Lino Rojas. A companhia possui um repertório que contempla treze
espetáculos, entre eles Mingau de Concreto (1996), Ventre de Lona (1998), Parceria
que dá certo (2002), Todo mundo tem um sonho (2001), Largo da Matriz (2004),
Histórias para serem contadas (2007), Era uma vez um rei (2014) e o mais recente,
Cidade Desterrada (2015). A poética cênica desenvolvida pelo grupo parte do “estudo
contínuo sobre a cidade de São Paulo e seus habitantes”4 e desde que se instalaram no
Bairro Cidade Tiradentes no ano de 2004, os espetáculos passaram a tratar de questões
caras ao território e a comunidade da qual passaram a fazer parte.

No ano de 2003, já com uma trajetória expressiva em São Paulo, o Pombas Urbanas
participou de um evento que aconteceu na Casa Amarilla, sede do grupo teatral
Corporación Cultural Nuesta Gente, em Medellín na Colômbia – VIII Encuentro
Nacional Comunitário de Teatro Joven de Medellín. Entusiasmado com a sede do
coletivo colombiano, que ocupa um antigo bordel de um bairro periférico, Rojas – ao
retornar ao Brasil e promover uma oficina para os moradores da Cidade Tiradentes –
descobriu um galpão abandonado que havia funcionado como supermercado – sem uso
há dez anos –, e decidiu erguer ali a sede de seu coletivo.

Para entendermos um pouco território para o qual o grupo se deslocou5: Cidade


Tiradentes é um bairro localizado no extremo leste de São Paulo e possui um dos
maiores conjuntos habitacionais da América Latina, inaugurado na década de 1980 – os
emblemáticos COHAB`s. Resultado de uma concepção hegemônica do planejamento
urbano, que segundo Raquel Rolnik, funciona um instrumento de dominação
“étnico-racista, patriarcal, essencial para o modo de produção capitalista racializado e
generificado”6, o bairro

4
Grupo Pombas Urbanas. Retirado do site do grupo. http://grupopombasurbanas.com.br/
5
Mesmo tendo surgido em um bairro da região leste da cidade, antes de migrar para a Cidade Tiradentes,
o Pombas Urbanas tinha como sede um sobrado no bairro Barra Funda, região central da cidade.
6
ROLNIK, Raquel. Palestra realizada na Sessão 12 do curso A Colonialidade do Saber Urbano, no
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da UFRJ, no dia 13/11/2020. Vídeo disponível em:
https://www.facebook.com/ettern.ippur/videos/709508606353183

2
foi planejado como um grande conjunto periférico e monofuncional do tipo “bairro
dormitório”, sem uma preocupação com as necessidades básicas dos futuros moradores
como saúde, saneamento básico, transporte. Não foram construídas áreas de convivência
comum para os moradores, onde pudessem se relacionar e nem criadas condições para
que a comunidade pudesse se integrar ao restante da cidade de São Paulo.7

O descaso foi tamanho que muitos dos prédios foram entregues pela Prefeitura sem o
mínimo essencial – luz, água e esgoto. O que se apreende a partir desse caso (mas
também de inúmeros outros), é que o planejamento das cidades, que se pauta por uma
lógica explícita de favorecimento do capital, que intervém no espaço através de
estratégias verticais de “cima para baixo” – na qual não se parte daquilo que “é”, mas do
que “deveria ser” (e essa utopia via de regra é orientada por modelos externos que
normalmente não guardam relações como as práticas sócio espaciais locais) – funciona
como um “grande laboratório de reconfiguração territorial comandado pelo Estado”8
que sistematicamente produz o “outro” indesejado, inominado, atrasado. Pois, via de
regra, é aplicado de forma que os “benefícios” se concentram em fragmentos da cidade
ocupados pelas elites – normalmente as regiões centrais –, enquanto proposital e
conscientemente produz outros espaços, as periferias, favelas – precários, do ponto de
vista estrutural, segregados e, sobretudo, invisibilizados social e culturalmente. Quando
se decide atuar sobre as regiões periféricas, normalmente os planejadores impõe esses
conjuntos habitacionais, que se tornaram a fórmula hegemônica dos projetos urbanos
para as classes mais pobres.

Retornando à sede, o grupo foi responsável pela reforma da edificação que a princípio
funcionaria apenas como local de ensaio e apresentação dos espetáculos. Entretanto,
antes mesmo do fim das obras, o Pombas Urbanas começou a promover oficinas de
teatro para a comunidade no local. Quando o espaço foi inaugurado, os integrantes
passaram a ir de casa em casa apresentando-o para a população, convocando sua
participação e apropriação, que foi gradativamente se amplificando e se
potencializando. Atualmente a sede se constitui como um lugar “voltado para a arte e a
construção de uma linguagem teatral que expresse e dialogue profundamente com a
comunidade”9. É um espaço de produção, circulação e formação artística da e para a

7
SOUZA, Fabiana Peixoto. Centro Cultural Arte em Construção: Cultura e Transformação em Cidade
Tiradentes. In: Anais do VI Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (ENECULT) da UFBA,
Salvador, 2010, p.3.
8
Rolnik aponta que a noção de planejamento urbano, que surge como uma utopia durante o Renascimento
– tal como o próprio capitalismo –, é experimentada pela primeira vez com as ocupações coloniais na
América Latina.
9
Ibidem.

3
periferia. O centro cultural abriga uma biblioteca comunitária com um acervo de mais
de 10.000 títulos, áreas de convivência, área para práticas circenses, uma sala de aula na
qual acontecem cursos e palestras e um teatro, o Ventre de Lona.

No que diz respeito à prática cênica empreendida pelo grupo, é relevante observar uma
transição no trabalho que pode fornecer pistas para compreendermos a relação da sede
com o território. O Pombas Urbanas não é um grupo originário da Cidade Tiradentes,
nesse sentido, suas práticas cênicas, ao se deslocarem para o referido bairro, poderiam
ser lidas como um teatro para a comunidade, a partir das formulações propostas por
Márcia Pompeo Nogueira e retomadas por Marina Henriques Coutinho tanto em seu
texto O teatro aplicado em questão: abrangência, teoria e o uso do termo (2012). Nos
primeiros momentos de chegada no bairro, portanto, o trabalho se inscreve como um
“teatro feito por artistas para comunidades periféricas, desconhecendo de antemão sua
realidade”10 (NOGUEIRA apud COUTINHO, 2009, p. 177). Contudo, a medida que o
coletivo se fixa no território a partir da sede – alguns de seus integrantes passaram
inclusive a morar no bairro – e se constitui um elevado “grau de participação” da
comunidade nos espetáculos, o trabalho passa à uma prática teatral pela comunidade.
Coutinho aponta que

O teatro pela inclui iniciativas nas quais o grau de participação comunitária é grande,
isto quer dizer, que a partir do impulso ou de um facilitador ou de algum membro da
comunidade, o processo teatral promove a emersão de um teatro que pertence e diz
respeito especialmente aquele local e àquelas pessoas, caracterizando-se como um
movimento “de baixo para cima”.11

Pensando nas relações entre a prática teatral e o espaço constituído a partir da sede, é
plausível que a ideia do pela comunidade que está imbricada no teatro produzido pelo
coletivo – a partir do momento que se deslocam para a Cidade Tiradentes – invada
também sua proposta espacial de sede. Pois é uma espacialidade produzida “de baixo
para cima”, um lugar erguido por uma faísca de um “facilitador externo” mas que se
constitui efetivamente a partir do envolvimento da e com a comunidade. Um espaço que
é construído a partir de duas forças complementares: as necessidades estéticas e
políticas do grupo e as necessidades da população envoltória, que passou inclusive a
gerir a sede junto do coletivo de artistas.

10
COUTINHO, Marina Henriques. O teatro aplicado em questão: abrangência, teoria e o uso do termo.
In: Revista OuvirOuver, Uberlândia v. 8 n. 1-2 p. 110-127 jan.| jun. - ago.| dez. 2012, p.117.
11
Ibidem, p. 122.

4
Aos longos dos 16 anos de existência a sede já realizou incontáveis atividades artísticas
e formativas, se transformou em um centro cultural que é a grande referência do bairro,
foi o local de formação de outros grupos teatrais – entre eles o Grupo de Circo Teatro
Palombar, que desde 2012 divide a sede com o Pombas Urbanas –, promoveu distintos e
importantes eventos sobre teatro comunitário (como por exemplo o 5o Encontro de
Teatro Comunitário Jovem da Cidade de São Paulo que agregou diversos grupos latino
americanos), criou a revista Semear Asas (que leva o mesmo nome do projeto que deu
origem ao grupo), possui uma parceria com as escolas do bairro para amplificar a
formação artística dos jovens e, até antes da pandemia de Covid 19, o espaço artístico
comunitário movimentava uma média de 25.000 pessoas por ano. Enquanto escrevo este
texto, inclusive, existe um mutirão de moradores recuperando a fachada da edificação
por meio de grafites.

Quando pensa sobre os modelos utópicos que pautam a cidade contemporânea, o


economista e sociólogo Carlos Vainer entende que em oposição a utopia da cidade
mercadoria – por excelência antidemocrática, pois as possibilidades de acesso e
apropriação são monetizadas (e portanto restritas às classes dominantes), mas também
porque restringe a distribuição de bens e serviços à alguns bairros específicos (os
bairros de elite são aqueles que concentram maior e melhor infraestrutura urbana, além
de por exemplo, como é o caso aqui investigado, de espaços teatrais e centros culturais)
e exclui os cidadãos de sua construção –, ergue-se, a partir das lutas urbanas e
movimentos sociais que surgem nos anos de 1990 e 2000, uma força de contraposição
que ele define como a utopia da cidade democrática. Dentre as características desse
modelo ele aponta a “ampliação da esfera de participação dos citadinos na definição dos
destinos de suas cidades.”12. Ou seja, nesta perspectiva, o controle da cidade passa da
mão dos tecnocratas, políticos e empresários para as mãos dos cidadãos. O autor
prossegue afirmando que

Nela os citadinos não são vistos nem como espectadores das realizações de um prefeito
iluminado, nem como simples consumidores da mercadoria urbana. Seus habitantes são
pensados como cidadãos em construção, que, ao se construírem, constroem também a
cidade.13

12
VAINER, Carlos B. Utopias urbanas e desafio democrático. In: Revista Paranaense de
Desenvolvimento, Curitiba, n. 105, p. 25-31, jul./dez. 2003, p.28.
13
Ibidem, p.30.

5
No que diz respeito a essa construção da cidade pelos próprios cidadãos, à qual Vainer
se refere, é pertinente o deslocamento para as formulações do antropólogo James
Holston. Em primeiro lugar, pois Holston adota a ideia de uma cidadania insurgente
como uma interseção entre “fazer acontecer”, “ocupar a cidade” e “reivindicar direitos”,
de modo a “fazer valer novos modos de democracia direta”14. Ou seja, essa construção
da cidade pelos habitantes como um gesto de levante democrático que diz bastante da
dinâmica do Centro Cultural Arte em Construção. Afinal o grupo ocupa um galpão
abandonado na periferia, cria junto da população um centro de produção, formação
artística e agitação cultural – na contramão do que havia sido proposto pelo
planejamento urbano capitalista e colonial para a localidade – e por meio disto,
reivindica e conquista o direito a uma cidade parcialmente democrática na qual as
populações periféricas tem vez e voz.

Por meio do Centro Cultural Arte em Construção as cidadãs e cidadãos não apenas
participam dos processos constitutivos da cidade, mas ao fazerem-no trazem para si a
representação dentro do sistema democrático – não é um representante político ou uma
instituição privada que define a espacialidade, mas seus próprios habitantes. Nesse
sentido, ainda que de maneira parcial, evocam-se possibilidades de uma democracia
contra hegemônica, a qual, segundo Santos, se ergue como uma nova gramática social
que rompe “com o autoritarismo, o patrimonialismo, o monolitismo cultural, o não
reconhecimento da diferença”15. Assim, é possível que haja por parte da população da
Cidade Tiradentes um questionamento e muitas vezes uma subversão “da identidade que
lhes foi atribuída externamente por um Estado colonial ou por um Estado autoritário e
discriminatório”16.

O segundo ponto das reflexões do antropólogo que cabe ser suscitado neste texto é o
fato de que os contextos urbanos periféricos são potentes locus de cidadania insurgente.
Diz o autor,

precisamente em periferias urbanas, residentes vêm a entender suas necessidades


básicas não apenas em termos de habitar e sofrer a cidade, mas também em termos
de construí-la, de fazer a paisagem da cidade, da sua história, da vida cotidiana e da
política como um lugar para eles próprios.17

14
HOLSTON, J. Rebeliões metropolitanas e planejamento insurgente no século XXI. In: Revista
Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, Vol. 18 Issue 2, p.191-204. 14p, 2016, p. 192.
15
SANTOS, Op. Cit. 2018, p.13.
16
Ibidem.
17
Ibidem, p. 195.

6
Portanto, o que se percebe com os breves apontamentos e reflexões aqui desenvolvidas
sobre a sede dos grupos Pombas Urbanas e Palombar é que o Centro Cultural Arte em
Construção foi e é construído coletiva e democraticamente convocando os moradores da
Cidade Tiradentes a se tornarem sujeitos ativos na produção daquilo que Santos aponta
como uma utopia concreta – aqui a utopia por um espaço urbano democrático. Como
indica o autor, tais utopias “são resultado de artesanias de práticas que, em
espaços-tempo com escala humana, sabem tecer o novo e a surpresa no velho tear da
luta por outro mundo possível.”18. E neste caso, é na e da periferia e por meio da sede de
dois grupos teatrais que se ergue a luta por uma outra cidade possível.

Referências

COUTINHO, Marina Henriques. O teatro aplicado em questão: abrangência, teoria e o


uso do termo. In: Revista OuvirOuver, Uberlândia v. 8 n. 1-2 p. 110-127 jan.| jun. - ago.|
dez. 2012.

HOLSTON, J. Rebeliões metropolitanas e planejamento insurgente no século XXI. In:


Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, Vol. 18 Issue 2, p.191-204. 14p,
2016.

ROLNIK, Raquel. Palestra realizada na Sessão 12 do curso A Colonialidade do Saber


Urbano, no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da UFRJ (IPPUR)

, no dia 13/11/2020. Vídeo disponível em:


https://www.facebook.com/ettern.ippur/videos/709508606353183

RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. São Paulo: Todavia, 1o Edição,
2018, p. 29.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A difícil democracia: reinventar as esquerdas. São


Paulo: Boitempo. 2016.

SOUZA, Fabiana Peixoto. Centro Cultural Arte em Construção: Cultura e


Transformação em Cidade Tiradentes. In: Anais do VI Encontro de Estudos
Multidisciplinares em Cultura (ENECULT) da UFBA, Salvador, 2010.

VAINER, Carlos B. Utopias urbanas e desafio democrático. In: Revista Paranaense de


Desenvolvimento, Curitiba, n. 105, p. 25-31, jul./dez. 2003.

Site Consultado:

Grupo Pombas Urbanas. http://grupopombasurbanas.com.br/

18
SANTOS, Op. Cit. 2018, p.118.

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