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Comunicação, arte e cultura política nos movimentos sociais: a teatralidade sem
terra e a literatura zapatista
Resumo: Este trabalho é uma pesquisa introdutória sobre a potencialidade das artes,
notadamente a literatura e o teatro, enquanto forma de manifestação estética e
comunicação política desenvolvida por movimentos sociais. Abordaremos a utilização da
literatura pelo mexicano e indígena Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e
o teatro pelo Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
1
Entre outras coisas Doutor em Ciência Politica (Unicamp) e atualmente está como Professor Assistente Doutor da
disciplina de Ciência Política na Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Contato: a.hilsenbeck@gmail.com.
Este escrito é fruto da participação no III Seminário Comunicação, Cultura e Sociedade do Espetáculo, realizado de 15
a 17 de outubro de 2015 na Faculdade Cásper Líbero. Retomo aqui discussões apresentadas de forma separada em
outros momentos e espaços, especialmente sobre a literatura zapatista ver, (Hilsenbeck Filho, 2013), e sobre a
teatralidade sem terra (Hilsenbeck Filho, 2012).
Grupo
de
Pesquisa
da
Comunicação
e
Sociedade
do
Espetáculo
3º
Seminário
Comunicação,
Cultura
e
Sociedade
do
Espetáculo
Faculdade
Cásper
Líbero
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outubro
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2015
Anacrônica apresentação
Numa época reprodutora do presente contínuo, em que se vende a ideia de que não há
saídas possíveis nem pontos de fuga existentes, e na qual a Indústria Cultural e a
Sociedade do Espetáculo parecem ter atingido patamares cada vez mais gerais e
totalitários na vida social, em que a mídia televisiva ainda detém forte hegemonia nos
lares e mentes das pessoas, e os conglomerados midiáticos aumentam seus oligopólios
comunicativos, convenhamos que falar de indígenas e camponeses, que empunham a
literatura e o teatro como elementos de crítica e perspectivas de vivenciar formas distintas
de relações sociais, muitas vezes como contraditórias às formas dominantes, não deixa de
soar um tanto anacrônico, utópico, alguns diriam que algo já fora de época, démodé. No
entanto, tais movimentos sociais apresentam, também no uso da literatura e do teatro,
aspectos relevantes do que poderíamos denominar como formas antissistêmicas e
sociabilidades contra-hegemônicas2, desvelando um horizonte mais plural e complexo do
que a eterna repetição do presente levada adiante pela Indústria Cultural, que tal como
demonstrado por Adorno e Horkheimer (1985) tende a produção de uma dimensão
puramente de constatação e reprodução da ideologia capitalista, em que o próprio
capitalismo é apresentado como a única realidade possível, como um presente perpétuo
(Debord, 1997).
Neste sentido, os movimentos sociais são caracterizados não apenas pelas bandeiras
reivindicativas que empunham, mas também pela realidade que criticam e pelo devir que
apresentam, isto é, pelas bandeiras e práticas de transformação social, cultural, política e
econômica que defendem.
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Formas antissistêmicas e sociabilidades contra-hegemônicas, nos movimentos sociais e processos políticos latino-
americanos, constituem-se como dois eixos da agenda de pesquisa do Grupo de Trabalho do Conselho Latino
Americano de Ciências Sociais Anticapitalismos e Sociabilidades Emergentes, do qual fazemos parte. Para
aprofundamento no tema recomendamos a leitura dos livros coletivos: (Brancaleone; Chaguaceda, 2012) e (Camara et.
al., 2015).
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As possíveis alternativas que os movimentos apresentam dão-se, também, em variadas
dimensões que envolvem desde a disputa por ideias até a construção prática e concreta de
elementos de outros modos de vida. A comunicação, a cultura e a arte (campos geralmente
entrelaçados) constituem-se como extremamente relevantes no sentido de auxiliar no
processo de liberação de forças coletivas e potencialidades emancipadoras. Ainda que,
convém não esquecer, estas mesmas dimensões da vida social possuem elementos
contraditórios, que garantem certa autonomia relativa, baseados na contradição existente
na própria sociedade capitalista, da divisão entre trabalho intelectual e manual, fazendo
com que essas três dimensões também passem a fazer parte da reprodução do sistema
capitalista (Debord, 1997).
Como elementos constituintes de estratégia política, a comunicação, a arte e a cultura
atuam de modo dialético, movendo-se na inter-relação entre parte e todo, ou seja,
abrangem impactos externos e internos aos movimentos sociais, auxiliando na pretendida
crítica aos aspectos da sociedade que combatem, bem como esses mesmos elementos
culturais e comunicacionais podem servir para a crítica à limites dos próprios movimentos
sociais. Ainda assim, poucos são os movimentos que se valem de forma estratégica da
comunicação, da arte e da cultura enquanto potências liberadoras, focando geralmente
apenas no âmbito mais restrito e instrumental da agitação e propaganda.
Abordaremos neste trabalho alguns aspectos dialéticos dessa relação entre política, arte,
cultura, comunicação e movimentos sociais a partir da constituição de grupos de teatro
nos assentamentos do Movimento Sem Terra e da compulsiva criação literária zapatista,
especialmente pela escrita do Subcomandante Insurgente Marcos. Duas formas de
linguagem que, ao seu modo, permitem ligar densamente a descrição com a imaginação.
Uma das facetas mais propaladas do zapatismo, desde que tomaram de assalto sete
cidades do estado de Chiapas, foi o uso da internet e dos fluxos comunicacionais enquanto
elemento constitutivo da guerra declarada ao sistema político e social mexicano. Chama
a atenção o paradoxo: em primeiro de Janeiro de 1994, na entrada em vigor do Tratado
de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) e em plena vigência da ideologia do
Fim da História, indígenas maias mal armados pregam uma revolução social e política, e
embrenhados no meio da selva utilizam a internet para difundir suas palavras, que
mesclam aspectos dos clássicos grupos políticos e guerrilheiros marxistas com a
cosmogonia indígena, intercalando escritos poéticos, contos, crônicas, comunicados,
romances.
O aspecto informacional talvez tenha sido o mais destacado nos estudos sobre o
zapatismo, fruto do encantamento e das possibilidades colocadas por um meio de
Tal escrita tem por núcleo convergente a unidade numa diversidade, a procura pelo que
há em comum nas diversas dores e agruras dos “de baixo”, isto é, o que faz com que os
diferentes sejam iguais em opressões e explorações vivenciadas. Desse modo, o
Subcomandante zapatista - com a insistente tentativa de corporações midiáticas
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Para Naomi Klein, “Quando ouvi Marcos se dirigir à multidão na Cidade do México, fiquei surpresa de que ele não
parecesse um político em um comício ou pregador em seu púlpito, mas um poeta no maior recital de poesia do mundo”;
e de acordo com José Saramago, “Nas suas ideias e na forma como se expressa, Marcos não é só uma grande
inteligência, é também uma extraordinária sensibilidade”; e Antônio Cândido afirma que, “Marcos sabe dar o melhor
realce ao contorno das ideias, revigoradas pela justeza e a eloquência da expressão” (Marcos, 2003).
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tradicionais em atrelar sua identidade numa engessada perspectiva positivista - definiu-
se como:
(...) gay em São Francisco, negro na África do Sul, asiático na Europa,
palestino em Israel, judeu na Alemanha, dona de casa em um sábado à noite,
em qualquer bairro, de qualquer cidade do México, camponês sem terra,
trabalhador desempregado, estudante inconformado, escritor sem livros nem
leitores e, seguramente, zapatista no sudeste mexicano. Enfim, Marcos é um
ser humano qualquer deste mundo. Marcos simboliza todas as minorias
oprimidas, resistindo, explodindo, dizendo 'já basta'. Todas as minorias na hora
de falar, e as maiorias na hora de calar e aguentar. Todos os marginalizados
procurando uma palavra, sua palavra. Tudo o que incomoda o poder e as boas
consciências, isso é Marcos.
Deste modo, sem suplantar as especificidades, percebe-se a busca zapatista por certa
unidade na transformação dessa realidade, por outro mundo possível, com outras
sociabilidades e relações, em que as diferenças não sejam mais signos de exclusão ou
exploração.
Outro exemplo encontra-se no romance policial escrito por Marcos em conjunto com
Paco Taibo II, em que um (póstumo) investigador zapatista apaixona-se por uma
transsexual da Cidade do México:
Olhe, Elias, talvez você me entenda porque é indígena e sabe o que se sente
com a discriminação e o racismo. Não sei, há como um ódio ao que é diferente.
E esse ódio não é nada mais do que lhe interpretarem mal, caçoarem de você,
fazerem piadas ou o humilharem e insultarem [...] chegam até a assassinar [...]
E também, por ser o que somos, se acontece algo de ruim, suspeitam primeiro
de nós [...] Como se a nossa preferência sexual fosse produto de uma mente
criminosa, um traço de delinquência... ou de animalidade [...] Não sei, mas o
caso é que se uma pessoa é homossexual, lésbica, transsexual ou trabalhadora
sexual, isso basta para ela ser o primeiro suspeito ou suspeita de algo ruim.
Então a pessoa tem que esconder sua diferença ou acantoná-la em uma rua
escura. E por que vamos esconder o que somos? Trabalhamos como qualquer
um, amamos e odiamos como qualquer um, sonhamos como qualquer um,
temos virtudes e defeitos como qualquer um, ou seja, somos iguais porém
diferentes [...] Além disso, não se usa a referência homossexual para insultar
alguém? “Puto”, “viado”, “bicha”, “maricas”. Bem, o que estou lhe contando
se “índio” continua sendo ainda um insulto neste país que se construiu e se
levanta sobre as costas dos indígenas? (Marcos; Taibo II, 2006, p.148-149).
É o que se pode constatar numa experiência no Rio Grande do Sul. O grupo de teatro do
MST, formado majoritariamente por jovens (entre doze e trinta e dois anos), após
pesquisar a realidade cotidiana do assentamento, identificar angústias e agruras sociais e
familiares vivenciadas no dia-a-dia, construíram coletivamente um texto e, a partir de
variadas técnicas teatrais, desenvolveram criativamente uma peça com o intuito de trazer
à esfera pública do assentamento a discussão sobre problemas sociais que,
convencionalmente, atribui-se à ordem da esfera privada, seja individual ou familiar. Na
peça apresentada à comunidade, mazelas e expectativas de vida dos assentados vieram a
ocupar o primeiro plano, fazendo com que temas delicados, mas candentes, como o
consumo de drogas, a necessidade de vender precariamente sua força de trabalho na
cidade, a presença da prostituição como saída de uma vida menos miserável
financeiramente, fossem encenados a partir de elementos carnavalescos do teatro
popular, fazendo com que essas questões fossem apresentadas e discutidas alternativas ao
que estava posto.
Noutra experiência, no Distrito Federal, o teatro serviu como elemento questionador dos
métodos adotados pela direção do acampamento. Nesse caso, criou-se uma comédia
política em forma de fábula para abordar criativamente um problema político e de
convívio social.
(…) narrada por um habitante, supostamente bêbado, da pequena cidade,
dominada pelo Rei Traquinos Trapos e pela Rainha Fala Trapos, que
mantinham em seu domínio, na base do medo, todo o conselho. O contato com
a experiência teatral de Brecht proporcionou condições para que o militante
construísse uma metáfora sobre as relações arbitrárias de poder que haviam se
estabelecido no acampamento, a revelia da organicidade do movimento. A
fábula foi uma providência de proteção, pois a abordagem indireta do assunto
permitiu que aflorasse a discussão sobre o problema, até então sentido mas
velado, e colaborou para a resolução posterior do mesmo. Esse é um dos
exemplos latentes que ilustram o poder que o teatro pode ter, como nexo entre
Percebe-se, pois, que questões subentendidas, mais ou menos manifestas, podem ser
abordadas de modo efetivo e criativo a partir de determinadas formas teatrais, permitindo
representações simbólicas de experiências e identidades, denunciando violências e
descortinando possibilidades, explicitando, deste modo, parte do potencial estético e
pedagógico da crítica social possibilitada pelo teatro. Percebe-se, também, que para além
de sua característica de espetáculo, o teatro poder ser um eficaz vetor de comunicação do
movimento social com a sociedade e, ainda pode ter forte impacto na organicidade interna
e servir como elemento aglutinador, ao incorporar elementos da cultura e experiências
cotidianas das comunidades, ao discutir coletivamente opressões e contradições que
vivenciam.