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CITAÇÕES – HOMEM-COMUM

Ao se dar conta de tudo o que havia destruído, por iniciativa sua e sem nenhum motivo aparente, e, pior ainda, sem
ser essa sua intenção, contra sua própria vontade – da aspereza com que tratara um irmão que nem mesmo uma só
vez fora áspero com ele, que jamais deixara de consolá-lo e acorrer em sua ajuda, e do efeito que tivera sobre os
filhos o fato de abandonar suas mães -, ao se dar conta, humilhado, de que não era apenas no plano físico que se
havia reduzido à condição de alguém que não desejava ser, começou a bater no próprio peito com o punho, no ritmo
constante de sua autoacusação, não acertando no desfibrilador por uma questão de centímetros. Naquele momento,
percebeu suas próprias deficiências muito melhor do que Randy e Lonny jamais o fizeram. Aquele homem que
costumava ser tão equilibrado golpeava o coração com fúria, como se fosse um fanático rezando, e, dominado pelo
remorso, não só por este erro, mas por todos os seus erros, todos os erros inerradicáveis, idiotas, inescapáveis –
arrasado pela desgraça de suas limitações, e no entanto agindo como se todas as contingencias incompreensíveis
da vida fossem de sua responsabilidade -, exclamou, em voz alta: “Sem nem mesmo o Howie! Terminar assim, sem
nem mesmo ele!”. (p. 105)

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SAMUEL RAWET – CONTOS

O FIO
Narrador em primeira pessoa, alienado, caminha pela rua e vê dois homens do outro lado da calçada, o
homem magro salva o homem gordo de ser atropelado, porém é ele quem morre. Isso não afeta o
personagem-narrador. Ele admite isso várias vezes. Ele vê na alienação, a coerência. Depois de ver o
homem morrer, ele se sente tranquilo (a morte é do outro):
“Caminho por um mundo calmo, realizado, além dos desesperos e das angústias. Uma dúvida apenas
encrespa as águas desse mar tranquilo por onde derivo: a morte.” (RAWET, p. 151)

Mas mesmo assim, ele continua a pensar na morte.


“Devo seguir meu caminho como se nada pudesse perturbar o ritmo dos passos ou a pulsação no peito.” (p. 149)

“O episódio trazia em si a marca de um entardecer que me conduzia à toa, e apenas acrescentava um desequilíbrio
ao movimento em torno. Quando o caminho é lento e a esperança nenhuma pode-se até encontrar um certo encanto
nas vitrinas abarrotadas. Eletrolas. Faqueiros. Televisores. Liquidificadores. O corpo modelado pelo cetim de uma
estrela loura no cartaz do cinema, a boca entreaberta, o rosto em diagonal como que sustentado por uma sólida
coluna de cabelos descendo em ondas, os olhos semicerrados na sugestão de gozo que milhões arrastarão pelas
retinas até o lençol de um quarto solitário.” (p. 150)

“Um aparelho de televisão agrupa curiosos e carreia olhares publicitários do grupo de vendedores no interior da loja.
A tela exibe um documentário sobre foguetes e satélites artificiais, ao mesmo tempo em que imbrica nos olhos que se
movem para além, sempre para além, a inconsciência de uma irredutível miséria humana em dimensões cósmicas.
Há rostos que se cruzam numa eterna expectativa, sombras desconhecidas se entrechocam em contatos
inimagináveis e as vezes indesejáveis. É um universo de identificações e repulsões alheio à vontade e a qualquer
intromissão de um hipotético diálogo. Todo um mundo de comunicação que se alonga sob os pés, varre as calçadas
e adere aos muros, lâmina líquida e elástica com o rigor de fantásticas perspectivas.” (p. 150)

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A BATALHA DE KURUKSHETRA
Kurukshetra – Hinduísmo - Mahabharata – guerra entre dois clãs irmãos por um reino, famílias de
parentesco próximo Káuravas Vs. Pândavas. O príncipe Arjuna, em crise de consciência por estar
combatendo contra amigos e familiares, cogita desistir da luta e entre em diálogo com o deus Krishna, que
o convence que aquela guerra faz parte do destino do seu povo e não pode ser evitada. Ética.18 dias de
conflitos, muitas mortes.
“Vago professor de vaga matéria, nunca ultrapassou a convenção de bom gosto e bom-tom, e ainda agora
naugrafava num cenário de lugares-comuns. Até mesmo a rápida percepção de sua condição de objeto
evanesceu-se com o implacável choque de uma praça em movimento, e o inevitável encadeamento de
palavras que não chegara a pronunciar.” (p. 172)
“A ironia, a autocomplacencia, a hiperemotividade, vago narcisismo, parcelas de delírio, confusão de
causa e efeito. Vasta pretensão e vasta confusão de real e irreal. A única armadilha talvez de quem tenta
fugir da palavra pela palavra,” (p. 172)
“Poucos momentos antes violentara o cotidiano, numa subversão denormas até então aceitas, mas algo o
levara a crer que, ao contrário, entrara na verdadeira dimensão do cotidiano, aquela em que existe apenas
uma sucessão de acontecimentos, rigidamente amarrados por um determinismo do acaso. E vistos os
acontecimentos por esse ângulo, numa apreensão de essências, em que os atos se equilibram num jogo
de fatos indiferentes, certos conflitos entre dor e ideal se tornavam mas compreensíveis. E certas
violações delirantes ganhavam uma contextura humilde que não as amesquinhava, ao contrário, devolvia-
as à sua magnitude de fatos naturais. Como se um impulso criador se manifestasse no momento da
destruição, uma afirmativa dentro da negativa, uma extrapolação da paranoia, um salto de um homem
comum, sem os privilégios ou as concessões divinas, um golpe devido exclusivamente à imanência da
espécie.” (p. 172)
“Viu-se agora criança e agora na sucessão de danos que culminaram com o gesto de há pouco. Tirou do
bolso do paletó o revolver e guardou-o na gaveta novamente. Fora difícil recuperar a espontaneidade de
um gesto de ódio até o dia em que descobriu que a estupidez humana era humana. Na esfera em que
pairava já não lhe interessava saber ao certo se matar ou não um homem.” (p. 173)
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O CRIME PERFEITO

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