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BARROS, Dezwith.

Fichamento (com comentários) de O herói de mil faces, de Joseph


Campbell. Arquivo pessoal. Outubro de 2023.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Trad. Adail Ubirajara Sobral 5. ed. São Paulo:
Cultrix/Pensamento, 1999.

PREFÁCIO
O propósito deste livro é desvelar algumas verdades que nos são apresentadas sob o disfarce
das figuras religiosas e mitológicas, mediante a reunião de uma multiplicidade de exemplos
não muito difíceis, permitindo que o sentido antigo se torne patente por si mesmo. (Campbell,
1999, p. 11)
Há, sem dúvida, diferenças entre as inúmeras religiões e mitologias da humanidade, mas este
livro trata das semelhanças; uma vez compreendidas as semelhanças, descobriremos que as
diferenças são muito menos amplas do que se supõe popularmente (bem como
politicamente). A esperança que acalento é a de que um esclarecimento realizado em termos
de comparação possa contribuir para a causa, talvez não tão perdida, das forças que atuam, no
mundo de hoje, em favor da unificação, não em nome de algum império político ou
eclesiástico, mas com o objetivo de promover a mútua compreensão entre os seres humanos.
Como nos dizem os Vedas: "A verdade é uma só, mas os sábios falam dela sob muitos
nomes". (Campbell, 1999, p. 12)
Comentário:
Logo no Prefácio de sua obra-prima, Joseph Campbell já se posiciona como uma
espécie de herói. Nesta metalinguagem retórica, o autor coloca a sua obra na posição – de
certo modo – paladina de promover “a mútua compreensão entre os seres humanos”, uma
causa, para muitos, vista como perdida. Haveria, meus caros, empreitada mais heroica do que
a conquista deste diálogo universal? Quantos desentendimentos, conflitos e até guerras
seriam evitados em caso de êxito deste propósito? O modo por meio do qual Campbel tenta
dar cabo deste objetivo passa por um estudo extremamente amplo e, ao mesmo tempo,
minucioso da arte e da técnica de contar histórias, de relatar vivências e estruturar arquétipos,
iniciando pela elucidação da relação entre mito e sonho. É, portanto, justamente por este
ponto que o Prólogo de O herói de mil faces começa a sua jornada.

PRÓLOGO: O monomito
1. Mito e sonho
Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos
humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de todos os
demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos. Não seria demais
considerar o mito a abertura secreta através da qual as inexauríveis energias do cosmos
penetram nas manifestações culturais humanas. (Campbell, 1999, p. 15)
os símbolos da mitologia não são fabricados; não podem ser ordenados, inventados ou
permanentemente suprimidos. Esses símbolos são produções espontâneas da psique e cada
um deles traz em si, intacto, o poder criador de sua fonte. (Campbell, 1999, p. 15)
os heróis e os feitos do mito mantiveram-se vivos até a época moderna. Na ausência de uma
efetiva mitologia geral, cada um de nós tem seu próprio panteão do sonho privado, não
reconhecido, rudimentar e, não obstante, secretamente vigoroso. (Campbell, 1999, p. 16)
O inconsciente envia toda espécie de fantasias, seres estranhos, terrores e imagens ilusórias à
mente seja por / meio dos sonhos, em plena luz do dia ou nos estados de demência; pois o
reino humano abarca, por baixo do solo da pequena habitação, comparativamente corriqueira,
que denominamos consciência, insuspeitadas cavernas de Aladim. Nelas há não apenas um
tesouro, mas também perigosos gênios: as forças psicológicas inconvenientes ou objeto de
nossa resistência, que não pensamos em integrar ou não nos atrevemos a fazê-lo à nossa vida.
E essas forças podem permanecer insuspeitadas ou, por outro lado, alguma palavra casual, o
odor de uma paisagem, o sabor de uma xícara de chá ou algo que vemos de relance pode
tocar uma mola mágica, e eis que perigos os mensageiros começam a aparecer no cérebro.
Esses mensageiros são perigosos porque ameaçam as bases seguras sobre as quais
construímos nosso próprio ser ou família. Mas eles são, da mesma forma, diabolicamente
fascinantes, pois trazem consigo chaves que abrem portas para todo o domínio da aventura, a
um só tempo desejada e temida, da descoberta do eu. Destruição do mundo que construímos e
no qual vivemos, assim como nossa própria destruição dentro dele; mas, em seguida, uma
maravilhosa reconstrução, de uma vida mais segura, límpida, ampla e completamente humana
- eis o encanto, a promessa e o terror desses perturbadores visitantes noturnos, vindos do
reino mitológico que carregamos dentro de nós. (Campbell, 1999, p. 18-19)
torna-se claro que o propósito e o efeito real desses rituais consistia em levar as pessoas a
cruzarem difíceis limiares de transformação que requerem uma mudança dos padrões, não
apenas da vida consciente, como da inconsciente. Os chamados ritos [ou rituais] de
passagem, que ocupam um lugar tão proeminente na vida de uma sociedade primitiva
(cerimônias de nascimento, de atribuição de nome, de puberdade, casamento, morte, etc.),
têm como característica a prática de exercícios formais de rom/pimento normalmente
bastante rigorosos, por meio dos quais a mente é afastada de maneira radical das atitudes,
vínculos e padrões de vida típicos do estágio que ficou para trás. Segue-se a esses exercícios
um intervalo de isolamento mais ou menos prolongado, durante o qual são realizados rituais
destinados a apresentar, ao aventureiro da vida, as formas e sentimentos apropriados à sua
nova condição, de maneira que, quando finalmente tiver chegado o momento do seu retorno
ao mundo normal, o iniciado esteja tão bem como se tivesse renascido (p. 20-21)
A função primária da mitologia e dos ritos sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o
espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que
tendem a levá-lo para trás (Campbell, 1999, p. 21)
Sigmund Freud enfatiza em seus escritos as passagens e dificuldades da primeira metade do
ciclo de vida humano – aquelas vivenciadas na infância e na adolescência, quando o nosso sol
se aproxima do zênite. C.G.Jung, por sua vez, enfatizou as crises da segunda metade –
quando, para evoluir, essa esfera brilhante deve submeter-se a descer e desaparecer,
finalmente, no útero noturno do túmulo. Os símbolos normais dos nossos desejos e temores
transformam-se, nesse entardecer da vida, em seus opostos; pois, nesse ponto, já não é a vida,
mas a morte, que constitui o desafio. Portanto, não é difícil deixar o útero; a dificuldade
reside em deixar o falo – a não ser, é verdade, que o amargor da vida já tenha tomado posse
do coração, situação na qual a morte atrai como a promessa de bênção que era antes
repre/sentada pelo encantamento amoroso. Percorremos um círculo completo, do túmulo do
útero ao útero do túmulo: uma ambígua e enigmática incursão num mundo de matéria sólida
prestes a se diluir para nós, tal como ocorre com a substância do sonho. E, rememorando
aquilo que prometia ser nossa aventura – ímpar, imprevisível e perigosa –, tudo o que
encontramos, no fim, é a série de metamorfoses padronizadas pelas quais homens e mulheres,
em todas as partes do mundo, em todos os séculos de que temos notícia e sob todas as
aparências assumidas pela civilizações, têm passado. (Campbell, 1999, p. 22-23)
A figura do monstro-tirano é familiar às mitologias, tradições folclóricas, lendas e até
pesadelos do mundo; e suas características, em todas as manifestações, são essencialmente as
mesmas. Ele é o acumulador do benefício geral. É o monstro ávido pelos vorazes direitos do
"meu e para mim". A ruína que atrai para si é descrita na mitologia e nos contos de fadas
como generalizada, alcançando todo o seu domínio. Esse domínio pode não ir além de sua
casa, de sua própria psique torturada ou das vidas que ele destrói com o toque de sua amizade
ou assistência, mas também pode atingir toda a sua civilização. O ego inflado do tirano é uma
maldição para ele mesmo e para o seu mundo — pouco importa quanto seus negócios
pareçam prosperar. Auto-aterrorizado; dominado pelo medo; alerta contra tudo, para
enfrentar e combater as agressões do seu ambiente — que são, primariamente, reflexos dos
incontroláveis impulsos de aquisição que se encontram em seu próprio íntimo —, o gigante
da independência autoconquistada é o mensageiro do desastre do mundo, muito embora, em
sua mente, ele possa estar convencido de ser movido por intenções humanas. Onde quer que
ponha a mão, há um grito (que, se não se eleva do exterior, vem — mais terrivelmente — de
cada coração): um grito em favor do herói redentor, o portador da espada flamejante, cujos
golpes, cujo toque e cuja existência libertarão a terra. (Campbell, 1999, p. 25)
O herói é o homem da submissão autoconquistada. [...] Apenas o nascimento pode conquistar
a morte— nascimento não da coisa antiga, mas de algo novo. Dentro do espírito e do
organismo social deve haver — se pretendemos obter uma longa sobrevivência — uma
contínua "recorrência de nascimento" (palingenesia) destinada a anular as recorrências
ininterruptas da morte. (Campbell, 1999, p. 26)
Numa palavra: a primeira tarefa do herói consiste em retirar-se da cena mundana dos efeitos
secundários e iniciar uma jornada pelas regiões causais da psique, onde residem efetivamente
as dificuldades, para torná-las claras, erradicá-las em favor de si mesmo (isto é, combater os
demônios infantis de sua cultura local) e penetrar no domínio da experiência e da
assimilação, diretas e sem distorções, daquilo que C. G. Jung denominou "imagens
arquetípicas" (Campbell, 1999, p. 27)
Os arquétipos a serem descobertos e assimilados são precisamente aqueles que inspiraram,
nos anais da cultura humana, as imagens básicas dos rituais, da mitologia e das visões. [...] O
sonho é o mito personalizado e o mito é o sonho despersonalizado; o mito e o sonho
simbolizam, da mesma maneira geral, a dinâmica da psique. Mas, nos sonhos, as formas são
destorcidas pelos problemas particulares do sonhador, ao passo que, nos mitos, os problemas
e soluções apresentados são válidos diretamente para toda a humanidade. (Campbell, 1999, p.
27-28)
O herói, por conseguinte, é o homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações
históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. As visões,
idéias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das fontes primárias da vida e do
pensamento humanos. Eis por que falam com eloqüência, não da sociedade e da psique
atuais, em estado de desintegração, mas da fonte inesgotável por intermédio da qual a
sociedade renasce. O herói morreu como homem moderno; mas, como homem eterno—
aperfeiçoado, não específico e universal—, renasceu. Sua segunda e solene tarefa e façanha é,
por conseguinte (como o declara Toynbee e como o indicam todas as mitologias da
humanidade), retornar ao nosso meio, transfigurado, e ensinar a lição de vida renovada que
aprendeu. (Campbell, 1999, p. 28)
A grande massa de homens e mulheres dá preferência ao caminho menos eivado de aventuras
das rotinas tribais e cívicas comparativamente inconscientes. Mas esses peregrinos também
são salvos— em virtude dos auxílios simbólicos herdados da sociedade, os rituais de
passagem, os sacramentos geradores de graça, dados à humanidade antiga pelos redentores e
mantidos ao longo dos milênios. Apenas àqueles que não conhecem nem um chamado
interno, nem uma doutrina externa, cabe verdadeiramente um destino desesperador; falo da
maioria de nós, hoje, nesse labirinto fora e dentro do coração. Ai de nós! (Campbell, 1999,
p.30)
2. Tragédia e comédia

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