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José Oliveira
Uma Breve Introdução à Ética Animal: Desde as Questões Clássicas até o Que Vem Sendo Discutido Atualmente
de Luciano Carlos Cunha
Curitiba: Editora Appris, 2021, 249 pp.
Matei a Maria queimando-a com um maçarico. Deixei a Maria morrer com uma doença que lhe provocava dores tão
intensas como queimaduras. Em nenhum dos casos a Maria fez o que quer que fosse para merecer aquele sofrimento e este
não tinha qualquer intenção de evitar um sofrimento muito maior. Será que a minha acção no primeiro caso é moralmente
diferente da minha omissão no segundo? Para eu chegar a uma conclusão, fará alguma diferença se a Maria for de uma
espécie diferente da minha? Fará também alguma diferença se a Maria pertencer a uma espécie em vias de extinção? Ou a
uma espécie com determinadas características mais próximas às humanas? E, face a isso, fará alguma diferença se a Maria
morreu porque foi violentamente torturada ou se a deixei morrer de causas naturais, como uma doença, por exemplo? A
escala do dano desse tipo de sofrimento e de mortes, a medida em que se possam prevenir e o número de pessoas que já
esteja a fazê-lo, como podem estes factores influenciar se dou ou não prioridade à resolução desse problema? O modo como
respondo a estas questões não definirá em que medida posso melhorar o mundo, deixando de provocar sofrimento
desnecessário ou impedindo que este aconteça?
Luciano, fico a pensar, quando primeiro escreveste sobre a Maria no teu livro, que animal te veio à cabeça? Uma cadelinha?
Uma gatinha? Todos teremos algum tipo de enviesamento especista, mas é bem possível que a filosofia seja um dos
melhores caminhos para expor os nossos preconceitos e que isso talvez tenha a força suficiente para nos levar a agir de
modo diferente, para melhor.
Ao longo dos anos tenho acompanhado o teu trabalho, Luciano, mas talvez só agora esteja mais ciente do seu valor. E que
melhor forma de o mostrar do que nas palavras de alguém reconhecido mundialmente nesta área, o professor e filósofo
moral, Oscar Horta, que assim escreve no prefácio do teu recente livro:
Luciano Cunha explica, de uma forma acessível, e ao mesmo tempo profunda e engenhosa, as ideias
fundamentais sobre como devemos agir em relação aos animais de outras espécies [...] é um pioneiro na
questão [do sofrimento animal na natureza], não só no Brasil como em nível internacional. Já escrevia sobre
ela há mais de 10 anos, e conhece o tema como poucas pessoas. [...]
É por esses motivos que este livro é muito diferente de outros publicados até agora sobre ética animal. Vai
além do que normalmente foi escrito sobre o assunto, levantando novas questões e formulando em novos
termos outras questões apresentadas anteriormente. [...]
Por tudo isso, este livro mostrará ser de grande valia para todas as pessoas interessadas em saber como
devemos agir em relação aos animais de outras espécies [e] pode ser uma ferramenta muito interessante para
se trabalhar tal tema no campo acadêmico.
Luciano, talvez estas palavras ecoem na tua cabeça, mas certamente não mais do que as palavras de quem dás voz. O que
diria a Maria? O que diriam todos os outros como ela? Todos eles terão voz no teu livro? E aqueles que não querem ouvir a
voz deles? Até esses têm voz no teu livro? Mas como seria a voz do especista mais empedernido? Como seria a voz do
académico especista? Como seria a voz do ambientalista especista? Como seria a voz do activista da causa animal que nem
sequer percebe que é especista? Como seria a voz do altruísta que pretende ser o mais eficaz possível, mas que nessa
equação não pesa o seu especismo? Essas vozes estão nas objecções que levantas, em catadupa, à sucessão de argumentos
que vais apresentando num constante desafio cognitivo (e moral) ao leitor. Mas será que eu conseguiria traduzir essa leitura
vertiginosa e instigante para as várias vozes que te questionam? Será que isso faria justiça àquilo que laboriosamente
explicas na tua “Breve Introdução à Ética Animal”? Não seria eu, ao dar-lhes voz, demasiado enviesado ou falacioso? Ou,
pelo contrário, seria eu capaz de ser tão enviesado e falacioso como a generalidade das pessoas que defendem um
tratamento desigual injustificado com base na espécie?
José Oliveira
Nota
1. Estes números têm por base informação patente em sites dedicados a estas actividades (rodeios e touradas), havendo
divergências substanciais com números patentes em outras fontes (até do mesmo género). Todos os outros números
são retirados do livro em apreço. ↩