Você está na página 1de 21

Transcrição feita por Gabriel Coelho Teixeira em 11/04/2020

MATÉRIA E FORMA

RAPHAEL DE PAOLA:
Todo teólogo tem sempre que deixar aberta a possibilidade do milagre
teoricamente mas quando você mostra um milagra para ele, ele resiste até as últimas na
verificação de um fato empírico. Ele é um sujeito que nega um milagre em particular mas
supostamente está sempre aberto para a possibilidade do milagre. Eu vou pegar por este
veio aí algo do que eu acho que permeia a civilização ocidental, que é este impulso muito
grande de verificar até as últimas consequências os fatos alegados. Eu acho que isso –
tem que ser melhor investigado, deve haver referências a esse respeito – mas eu acho
que essa neura que nós temos hoje em dia, que a mentalidade cientificista tem hoje em
dia, pelas minúcias nos últimos detalhes dos fenômenos deve ter nascido dentro da
cristandade com a preocupação de checar e verificar os milagres alegados em diversas
comunidades e diversas épocas.
Filosofia de Aristóteles, por exemplo, para descrever o que são os seres, não é
difícil entender o que dos seres que as ciências modernas têm em foco. Todo ente
material é um composto indissolúvel de matéria e forma – forma responde à pergunta “o
que é?” e matéria responde a várias perguntas diferentes, mas uma delas é “de que é
feito?; de que são feitas as coisas?” – e aí a gente começa a entrar no que que a ciência
moderna tem feito.
Os cientistas – e mais ainda, filósofos – da entrada da modernidade não tinham
razão quando diziam que não importa a forma substancial dos escolásticos. A forma
substancial das coisas – se é um passarinho, se é uma pedra – isso não me importa. E
talvez nem exista (essa é uma inferência errada). Isso deve estar na nossa mente, é a
nossa mente que projeta essas formas no ser para o exterior. O que nós temos certeza
que existe é essa matéria mais inanimada no fundo.
É um erro dizer que o passarinho é a soma dos seus átomos, mas ele vira isso
depois que você mata ele e esfarela ele e procura estudar a matéria da qual ele é feito.
Então, não é que os entes sejam matéria, matéria responde a pergunta “de que são feitas
as coisas?”, e para rastrear isso você precisa quebrá-la, quebrar as coisas. O que a física
e a matemática têm feito é o seguinte: não importa qual é a forma substancial da coisa
porque eu vou destruí-la, e não importa quais são as qualidades sensíveis que a coisa
nos mostra (quando eu vejo uma maçã vermelha – Descartes, uma séria de filósofos e
cientistas dizem o seguinte: olha, eu não sei se é maçã e não sei se é vermelha). Então
desses três andares de forma substancial, quantidade e qualidade, a filosofia moderna
retirou do seu assunto o que é a forma substancial, o que são as qualidades sensíveis e
ficou com um recorte do mundo – um recorte quase que puramente quantitativo. Não dá
para reduzir as coisas a quantidades puras, porém elas sempre vão nos mostrar
aspectos quantitativos quando você choca, quebra, evapora etc.
É claro que com um ferramental pobre – metafisicamente pobre – como este, você
não vai conseguir de forma alguma contradizer alguém que está olhando a realidade
integral e cheia, pelo menos com forma substancial e qualidades sensíveis. Muito menos
ainda, para uma realidade mais cheia que possa conter outros extratos da realidade
advindos da fonte do próprio ser. Então, como o Olavo vem dizendo, todo acontecer é
um acontecer concreto, mas tudo o que as ciências particulares estudam são recortes
abstrativos. Esses recortes estão nos fenômenos mas eles não constituem o fenômeno,
não são o fenômeno. E dentro do que é o milagre, se você ficar só com o aspecto
quantitativo (ou quantitativo ou aspecto puramente médico – que de certa forma também
lida com a matéria num sentido mais alto mas ainda são aspetos físicos, materiais), o
máximo que você pode afirmar – o que não é pouca coisa – é atestar se o fato ocorreu
ou não, atestar empiricamente: olha, tal fato é assim, agora a causa disso eu não sei.

OLAVO DE CARVALHO:
A inteligência humana, ela própria não tem explicação. Por exemplo, como é que
um bicho – nós somos bicho, evidentemente – chega a ter uma concepção dum negócio
chamado infinito? O que que significa infinito para um jumento, para um urso, para uma
minhoca? Não significa nada, isso é absolutamente inconcebível. A concepção, por
exemplo, duma verdade apodítica, a verdade irrefutável como dois mais dois é quatro?
Para um animal, isso é absolutamente inconcebível. Ora, examinando a nós fisicamente,
a diferença entre nós e os animais é pouca, então quer dizer que existe um fator extra
operando na inteligência humana. A inteligência mesma, ela jamais terá explicação no
nível puramente humano. O ser humano tem capacidades intelectivas que transcendem
a animalidade de tal maneira que você tentar encontrar uma explicação na fisiologia, na
evolução etc é uma bobagem.
Se você pegar toda a evolução animal – vamos supor que a Teoria da Evolução
esteja certa –, me explica pela Teoria da Evolução como foi que Charles Darwin a
descobriu. Evidentemente uma teoria que não se explica a si mesma – tá faltando algo
nela, né? Quer dizer, numa certa data, na escala evolutiva humana aconteceu que esse
processo evolutivo se tornou auto-consciente. Como foi que isso aconteceu? Me explica
isso evolutivamente, pela evolução das espécies, pela seleção natural – não dá, você
tem que apelar a um outro elemento.
Em geral, as pessoas não buscam explicações na esfera de uma inteligência
superior, elas não querem inspiração para descobrir a verdade, elas querem descobrir
uma verdade que já combine com aquilo que elas sabem antes. Assim não dá!
O procedimento científico, ele mesmo não tem explicação científica. Dois
camaradas estão investigando uma coisa, um descobre e o outro não: por quê? Você
não tem explicação científica para isso. As grandes realizações da inteligência humana
são inexplicáveis nos termos de uma concepção fechada. Só se você entender que a
inteligência humana é continuamente alimentada desde uma fonte que a transcende, aí
você começa a entender tudo. Essa fonte não é por si mesma ininteligível – ao contrário,
é supremamente inteligível.
Quando você leva em consideração a supra-inteligência divina, você começa a
participar dela, ela começa a te iluminar, e esse é o caminho que todos os místicos
sempre seguiram.
O problema da abordagem científica do que quer que seja é que toda ciência
existe para estudar um determinado campo de fenômenos e esse campo se constitui
basicamente da distinção entre ele e outros campos. Por exemplo, a distinção entre a
fisiologia e a patologia. Esses métodos são determinados na própria inauguração da
ciência, e daí pra diante ela só vai estudar o que caiba dentro dos seus métodos, portanto
ela não pode estudar nenhum fato concreto. Isso quer dizer que existe sempre uma
tensão cognitiva no ser humano entre o conhecimento científico e o conhecimento do
fato concreto.

WOLFGANG SMITH:
Embora o sobrenatural se mostre incompreensível do ponto de vista científico
contemporâneo, tal não foi de forma alguma o caso nos tempos antigos, pois enquanto
nossa ciência contemporânea considera um universo em que os níveis de anima e
spiritus estão ausentes, parece que nem uma única civilização pré-moderna nutriu uma
visão de mundo tão trincada.
O milagroso foi, portanto, percebido nos tempos antigos como uma intervenção
de uma esfera superior – o que na verdade é. O que ofuscou a questão nos tempos
modernos é a visão de mundo pós-iluminismo, que reduz o cosmos ao seu domínio mais
baixo. No entanto, acontece que a imagem está prestes a mudar pois veio à tona que
nos últimos anos que essa perspectiva se mostra insustentável.
Embora ainda oficialmente não reconhecido, o fato é que foram feitas descobertas
científicas em vários campos contradizendo frontalmente alguns dos princípios básicos
que sustentam nossa suposta visão de mundo baseada na ciência. Parece que o arco
da história que começou há quatro séculos com Galileu e Newton estão irrevogavelmente
chegando ao fim. Para os céticos, podemos dizer: a crença oficial de que “a ciência
refutou a possibilidade de milagres” já foi desmentida em bases científicas sólidas.
Em particular, foi mostrado com base na teoria quântica – e, portanto, no nível
fundamental da física per se – que existe uma causalidade até então desconhecida,
denominada “vertical”, mais básica que o tipo previamente conhecido pela física,
doramente denominado “horizontal”. O fato crucial surgiu de que a causalidade vertical
se sobrepõe à horizontal. Se, portanto, concebemos um milagre como um evento que
contradiz as leis da física, resulta do exposto que a física não exclui o milagroso.
De fato, torno-se sabido que as leis da física estão sendo violadas não apenas no
caso do que chamamos de milagres, mas também em inúmeros outros aspectos: por
exemplo, em atos humanos que exemplificam o que é tradicionalmente denominado
“livre arbítrio”. Pode-se agora afirmar isso com base em rigosos fundamentos
matemáticos: a afirmação do Iluminismo de que tudo se move de acordo com as leis da
física foi, assim, refutada.

OLAVO DE CARVALHO:
Ora, definir um milagre como aquilo que não tem explicação científica é o absurdo
dos absurdos porque a quase totalidade dos fatos da realidade não tem explicação
científica. Por exemplo, eu jogo um tijolo do alto de uma casa, o tijolo se espatifa em
cinco mil pedaços em vez de se estilhaçar em dez mil: por quê? – não tem nenhum meio
de você explicar isso cientificamente. Por que a Hillary Clinton perdeu a eleição? – não
tem explicação. Por que um sujeito caiu da escada?; por que um caiu da escada e saiu
inteiro e o outro quebrou a perna e morreu? – você não tem explicação. A quase
totalidade dos fatos não tem explicação científica pela simples razão de que nenhuma
ciência estuda fatos concretos. Ciência só estuda fatos previamente recortados segundo
um conceito que é delimitado segundo o campo dessa ciência. Isso não é um fato
concreto, isso é um recorte, uma faixa da realidade. E toda ciência estuda somente esse
tipo de fatos.

RAPHAEL DE PAOLA:
Toda ciência começa com um recorte, um recorte primeiramente material: que tipo
de ser eu vou estudar? Depois toda ciência faz uma pergunda sobre os seres, que tipo
de pergunta eu vou responder a respeito daqueles seres – eu não vou responder a todas
as perguntas. Então, o resultado final de toda ciência são sempre afirmações muito
gerais (leis ou teorias muito gerais) sobre pontos muito específicos que foram recortados
do objeto.

WOLFGANG SMITH:
Voltando aos milagres “comuns”, definidos pelo fato de eles violarem o que
consideramos leis da natureza: a ciência moderna pode, na melhor das hipóteses,
verificar que tal violação realmente ocorreu mas não pode explicar de que maneira esse
desvio da normalidade pode ter ocorrido, pois o próprio fato de ter ocorrido prova que a
ciência em questão tem suas limitações; que, na verdade, está aquém da verdade
completa que normalmente se considera. Portanto, não pode nos dizer nada da
verdadeira causa sobre a qual o milagre se baseia.
Para entender o milagroso na medida em que isso é possível para nós
precisamos, em consequência, voltar a outros lugares: primeiro à filosofia e à teologia e
a essas fontes pertencentes à ciência pré-moderna que podem ainda estar acessíveis.
E, de minha parte, o que quer que seja incompreensível depois de tudo isso ser realizado
pode ser atribuído com segurança à inescrutável vontade de Deus.

OLAVO DE CARVALHO:
O que é um fato concreto? É o fato cuja essência, cuja definição está articulada
com todo o conjunto dos acidentes necessários para que ele se produza. Por exemplo,
um sujeito foi atropelado na esquina: por que ele estava ali? Não tem uma ciência que
estude, que articule uma coisa com a outra, no entanto é essa articulação que compõe
o fato concreto. O sujeito só foi atropelado na esquina porque ele estava ali. Existe um
meio científico de você articular a causa dele estava ali com o atropelamento? Não tem
nenhuma ciência que estudo isso. Portanto, por esse exemplo você entende: nenhuma
ciência estuda um fato concreto.
Ora, se nenhuma ciência estuda um fato concreto, nenhuma ciência tem
explicação para um fato concreto, só tem para aspectos seletos do fato. Se você pega o
milagre e já seleciona o fato de acordo com aquilo que nele tem explicação científica e o
que não tem, você não está estudando um fato concreto, você está estudando somente
uma diferença entre dois ângulos de visão. E com isso nunca se vai chegar a coisa
nenhuma.
O estudo dos milagres teria que aprofundar na questão no fato concreto.

RAPHAEL DE PAOLA:
O mundo concreto – ou corpóreo – continua sendo o mundo em que a gente vive.
Ele é concreto porque é feito de vários andares e de vários aspectos que recaem sobre
a coisa. O termo “acidente” significa cair sobre (accadere – cair sobre), são coisas que
recobrem os entes e também os eventos.
O prestar atenção ao mundo concreto – que não é redutível a nenhuma ciência,
ao objeto de nenhuma ciência: nenhuma ciência estuda o mundo concreto, o mundo
corpóreo; estudam recortes quantitativos (e no caso da física e da matemática o
professor Wolfgang Smith chama isso de mundo físico) – essa caída, essa descida de
nível é o que o professor Olavo e o que o professor Wolfgang Smith estão chamando a
atenção: olha, isso não constitui a realidade integral; a realidade é feita de mais coisas.
E até a investigação desses recortes quantitativos acabam no final das contas apontando
para a necessidade e para a existência como que gritando do mundo corpóreo.
CONCRETO E TRANSCENDENTE

OLAVO DE CARVALHO:
A ciência que mais se aproxima do estudo do fato concreto é a ciência da história,
onde você às vezes, por testemunhos, por documentos você consegue reconstituir a
rede inteira de elementos essenciais e acidentais que produziram determinado fato. Eu
cito como exemplo a derrota de Napoleão em Waterloo, em que ele incubiu um
determinado general de perseguir uma tropa inimiga que estava em retirada e a tropa
inimiga deu a volta e voltou para campo de batalha e ele não percebeu. Em vez dele
voltar, ele continuou seguindo os caras de maneira que quando ele os alcançou, era
tarde demais. Nós entendemos isso. Esse general chama-se Grouchy. Por que Grouchy
fez isso? Você precisa estudar toda a vida dele para entender: bom, não era um mal
soldado, mas era um homem rotineiro, ele não tinha imaginação etc etc. E daí você até
entende por que o sujeito agiu como agiu e quais foram as consequências da sua ação.
Não tem nenhuma outra ciência que chegue a esse nível de detalhamento, nem
mesmo a psicologia chega a isto – a psicologia também estuda generalidades e não
fatos concretos. Existem técnicas que estudam isso: psicoterapia é uma técnica, não
uma ciência. Então através de uma psicoteria, de uma anamnese e tal você pode chegar
a entender o processo de uma conduta humana em particular, mas você precisa
espremer o fato sob todos os seus ângulos para obter a interconexão entre os vários
fatores que contribuíram concretamente para aquele acontecer, inclusive fatores
acidentais.
Por exemplo, essa menina que foi lá procurar o Pe Pio [milagre de Gemma de
Giorgi; Ribeira, na Sicília, Itália; 18 de junho de 1947]. Muito bem, ela foi procurar o Pe
Pio no dia em que ele estava lá. Se ela não encontrasse o Pe Pio, não teria acontecido
nada. Vamos supor que o Pe Pio estivesse naquele momento uma fila de quinhentos
pecadores no confessionário, a menina podia desistir e ir embora. Então, essa arte da
narrativa tem que ser aplicada meticulosamente a todos os passos do acontecimento
denominado miraculoso. Aí você começa a entender o encadeamento e ver em que o
acontecimento miraculoso se distingue de outros fatos. Porque existe uma intervenção
que articula o conjunto daquilo como uma narrativa dotada de sentido – o milagre diz
alguma coisa. Só você entendendo o sentido do acontecimento, você entende a
diferença entre um milagre e um acontecimento não-miraculoso. Fora disso, não – você
vai definir o milagre negativamente apenas como uma coisa que não tem explicação
científica, o que é totalmente absurdo. Esse critério serve para qualquer coisa. Por
exemplo, por que nós estamos aqui hoje? Você está aqui por um motivo, ele está por
outro, ele está por outro, ele nem sabia que ia encontrar essa gravação aqui. Existe uma
explicação científica para este fato aqui? Não. Existe uma explicação histórica. se você
reconstituir todos os passos. Então eu acho que o milagre é, em primeiro lugar, um
problema da ciência histórica, não da medicina ou da fisiologia e tal – isso é tudo absurdo.
Porque se você disser que as ações de Deus não têm explicação, você está
dizendo que Deus age de maneira arbitrária – Ele não age de maneira arbitrária, ele age
de maneira sobre-humana, de maneira que transcende a capacidade da mente humana
mas que é na verdade mais inteligível do que os nosso pensamentos. Isso é um
elemento fundamental: Deus é simples. Não tem complexidade em Deus. Isso quer dizer
que o que Deus faz tem muita razão de ser, tem mais razão do que nós podemos
entender. Então, algo dessa razão, algo dessa racionalidade que tá implícita ali você tem
que poder pegar.
É precisa restabelecer toda a intercomunicação humano-divina para daí você
começar a entender algo. E daí você começa a perceber que o milagre é supremamente
inteligível, mais inteligível do que qualquer fato da ordem natural. A ordem natural é
enormemente complexa, nela entram elementos de acaso, de absurdidade que jamais
terão explicação, e no divino não tem nada disso. Então, em vez de você relegar um
milagre para o ininteligível, você precisa entender que isso é mais inteligível do que os
fatos da ordem natural, e os da ordem social nem precisa falar, nem precisa dizer. Então,
buscar a inteligibilidade do milagre.

RAPHAEL DE PAOLA:
Você não precisa ir para eventos supostamente ou alegadamente miraculosos
para atestar que os entes e a realidade são compostos de diversos andares ontológicos
que constituem o ente e o fato em si. Eu dou o exemplo de uma ida ao cinema: se alguém
te pergunta por que você foi ao cinema, respostas inteiramente satisfatórias são do tipo
“eu gosto do ator”, “o assunto me interessa”, “minha namorada vai me matar se eu não
for ao cinema junto com ela”. Para o ouvinte, essas são respostas que satisfazem
plenamente a curiosidade porque perfazem a integralidade do ato, do evento e da ida ao
cinema.
Agora, o que as ciências particulares podem estudar desta ia ao cinema? Por
exemplo, a física o que poderia estudar? – num certo nível, quais são as leis da gravidade
que estão em jogo na hora em que você desce o elevador para chegar na rua e caminhar.
O que a ciência da economia pode dizer a esse respeito? – bom, as trocas econômicas
que foram feitas ali no táxi, o quanto você pagou ou a bilheteria do cinema. Esses são
recortes que estão no ato também, mas que fazem como que a condição do ato, do
evento, e não explicam o que foi o evento e muito menos por que ele ocorreu.
OLAVO DE CARVALHO:
A classificação pode ser feita a partir dum interesse que é externo ao fato, mas
existem fatos onde esses três fatores se interpenetram. Por exemplo, a menina se
deslocou até San Giovanni Rotondo, onde estava o Pe Pio, por meios naturais: tomou
um carro, um trem, qualquer coisa. O demônio pode ter interferido várias vezes no trajeto
retardando, atrasando, produzindo desencontros etc. e por fim se produz o milagre.
Então tem aí o natural, o sobrenatural e o preternatural (o natural, o divino e o diabólico
tudo misturado). A vida é assim, na vida as coisas estão sempre misturadas. A
classificação da doutrina é uma classificação genérica. O plano no qual a doutrina está
falando não é o plano do fato concreto. Portanto, a doutrina em si não pode oferecer
nenhuma explicação a nenhum fato concreto.
Se você é católico, você aceita a doutrina e diz que determinados fatos foram
produzidos por uma intervenção divina. Isso é uma explicação? Ainda não. Isso só vai
cair na classificação daqueles fatos que não têm explicação científica. Você precisa
reconstruir o diálogo humano-divino que houve ali.
Houve um milagre? Houve. Mas houve uma prece que precedeu o milagre. A
prece foi feita de determinada maneira, em determinado momento etc. etc. Tudo isso faz
parte da história do milagre.
A famosa escada que tem na igrejinha do Novo México [milagre da Escada de
São José; Santa Fé, Novo México, 1898]. Os padres precisavam da escada, não tinham
dinheiro para fazer, rezaram e apareceu um sujeito totalmente desconhecido que
construiu uma escada com uma madeira que não existia no México, que até hoje
ninguém sabe onde existe aquilo. Uma escada que desafiava totalmente a lei da
gravidade e que está em pé até hoje. Em seguinte, o homem desapareceu, foi embora e
nunca mais apareceu. A história inteira precisa fazer sentido, porque se disserem “olha,
apareceu aqui uma escada que desafia a lei da gravidade”, bom, pode ser um grande
cientista, o Nikola Tesla chegou lá e inventou o negócio, pode ser isso. Mas e a prece?
A coisa aparece em resposta a uma prece. O homem que chegou sabia que estavam
rezando e pedindo aquilo e ele tinha a resposta. Então precisa contar a história inteira.
Por isso que eu digo, a única abordagem correta inicial da coisa tem que ser a
abordagem histórica.

RAPHAEL DE PAOLA:
Na integralidade do fato, num fato integral – qualquer fato que seja – você tem
todas as camadas ontológicas apesar das ciências particulares estudarem recortes já
previamente definidos que, se por um lado não são um ato, por outro lado constituem
também um ato ou as condições para o ato. São como que condições materiais que
possibilitam e preparam qualquer evento.
Daí a infertilidade de você atacar qualquer fato que seja com as ferramentas puras
de uma ciência ou de outra em particular. Porque elas estão enfocando diferentes
aspectos que estão no ato mas não constituem o ato. Você usar este recorte quantitativo
e as leis que você descobre a esse respeito para negar o fato como uma integralidade,
esse é o absurdo que a filosofia moderna tem feito não só com relação aos milagres mas
com relação aos fatos mais corriqueiros possíveis.
Sócrates já vinha reclamando disso. Se eu não me engano, no diálogo Ménon ao
falar de por que ele se deixou prender, ele responde: “olha, um lugar onde você não vai
achar resposta para isso é no movimento dos meus tendões que fazem os ossos se
moverem”. Bom, isso tudo são condições para o evento mas não constituem o evento
que é feito também de um entrega moral, valorativa que ele percebeu muito mais coisas
que estão compondo todo o entorno da cena.
Se esta esquizofrenia já é feita filosoficamente na entrada da modernidade com
relação a ator ordinários, imagina então atos alegadamente extraordinários, que têm um
fonte supostamente mais integral ainda que falam para toda a inteligência e todo o livre
arbítrio humano.
A história que levou a pessoa a fazer uma oração pedindo por uma interceção
divina, a recepção daquele favor divino, a gratidão que acompanha depois o milagre – a
peregrinação, a ida, a sede de todo beneficiado por um milagre de ir às últimas
consequências. Os familiares próximos, mesmo de outras religiões – é comum ver
nesses documentários – levam a pessoa até o Vaticano, vão para os tribunais
eclesiásticos e procuram investigar o assunto no seu cheio, em tudo o que pode fazer
parte daquele evento.

WOLFGANG SMITH:
Um milagre autêntico é incomparavelmente mais do que simplesmente um evento
que transgride o que consideramos ser uma lei da natureza: tem um significado, um
significado próprio que, de fato, se relaciona com a razão de ser da existência humana.
Pois, quer os milagres sejam atribuídos a Deus, quer a Seus anjos ou à ação de um
santo, ele faz referência de uma forma ou de outra à busca espiritual, à esfera da religião:
a própria circunstância de os milagres se apresentarem ao nosso olhar como algo
“sobrenatural” é expressivo desse fato. Em suma, os milagres têm um papel a
desempenhar na busca de Deus, eles pertencem à vida da religião. E com certeza, a
história do cristianismo desde os dias em que o próprio Deus andou sobre a Terra até os
dias atuais confirma esse fato abundantemente.
RAPHAEL DE PAOLA:
É esquisito hoje em dia você ver um detrator da possibilidade dos milagres, um
materialista, digamos assim. Ele acusa o fiel ou o crente de ter uma pré-disposição para
a crença em coisas ou inexplicadas, ou miraculosas – eventos extraordinários. Ora, se
fosse verdade isso, você teria em cada crente, em cada fiel um testemunho quase que
diário de dois, três, quatro milagres. Se ele já tivesse a pré-disposição psicológica de ver
em tudo a atuação direta e primeira da causa primeira, e não de causas segundas, ele
estaria todos os dias dizendo “olha, peguei um táxi e foi milagroso, eu dei uma aula e foi
milagroso”, enfim. Você não vê isso. Essa suposta pré-disposição psicológica
simplesmente não se manifesta com a quantidade que seria requerida para favorecer a
tese do materialista.
E, ao contrário, quando se alega um fato como miraculoso, ou como a
possibilidade ainda de um milagre, as atitudes do fiel e do materialista, mesmo que cada
um tenha alguma pré-disposição para puxar sardinha para a sua brasa – porque o
materialista diz “o fiel tem uma pré-disposição para ver milagre em tudo”; bom, o ateu, o
materialista tem a pré-disposição contrária, ele vai negar o milagre em tudo – o fiel tem
uma abertura que não está disponível para o materialista.
O materialista, antes da investigação ele já tem a resposta, o veredito dele é: não
pode ter sido milagre. O fiel pode investigar e, dependento da religião – a nossa religião
diz que você tem que investigar aquilo até as raias da virulência, como costuma
acontecer nos tribunais eclesiátios, as pessoas separam as testemunhas de um milagre,
deixam isoladas (isso aconteceu com o milagre de Loudes [milagre de Lourdes; Lourdes,
França; 11 de fevereiro de 1858], as pessoas que testemunharam aquilo de primeira mão
são isoladas da sua comunidade, são postas sob a máxima suspeição possível), todas
as possibilidades são investigadas: sugestão, alucinação, fraude – tudo isso é suposto
como possibilidade, isso tudo faz parte do arcabouço psicológico prévio que está
disponível tanto ao ateu materialista quanto também ao fiel, mas o fiel está aberto a uma
outra possibilidade: tem uma hora que é possível que você veja a realidade integral se
manifestando naquele fenômeno, e aí não dá para negar mais. Essa possibilidade está
fechada para o ateu, ele já tem a resposta de antemão.
Na vida do crente, do fiel não é que tudo seja milagre, mas Deus constituiu as
coisas como criação mesmo, Ele deu alguma autonomia para as coisas e é o que
suportam a inteligência humana. E este suporte à inteligência humana não é negado, ao
contrário, ele é utilizado na própria intelecção de um fato miraculoso. Quer dizer, vai além
daquilo. Não é que você esteja negando aquilo, vai além daquilo.

OLAVO DE CARVALHO:
Aquele caso, por exemplo, do doutor Castañón, aquele médico neurofisiologista
boliviano ateu que foi estudar o caso de uma hóstia que caiu no chão [milagre eucarístico
de Bueno Aires; Buenos Aires, Argentina; 18 de agosto de 1996] – a instrução dada ao
sacerdote é que se a hóstia caiu no chão, você a deposita dentro de um copo d’água e
espera ela dissolver, daí você joga a água fora e não tem problema; você não pode jogá-
la fora enquanto ela está inteira – o padre botou aquilo num copo e começou a aparecer
um liquido vermelho. Daí ele por curiosidade chamou esse doutor Ricardo Castañón e
falou “o que seria isso aqui?”. Castañón pegou a hóstia, foi examinar e viu que aquilo era
sangue mesmo.
Daí ele levou a vários laboratórios para examinar, pegou os melhores laboratórios
do mundo, não dizia que aquele sangue vinha de um hóstia e um dos técnicos que
examinaram – um sujeito que eu esqueci o nome dele agora mas é um laboratorista de
fama mundial – disse: “olha, isso aqui é o seguinte, isso aqui é o sangue de um paciente
que morreu com trauma, que sofreu horrivelmente antes de morrer. Agora, o mais
estranho de tudo é que essas células desse sangue estão vivas”.
Bom, você teria que se perguntar “por que essa hóstia caiu no chão?”, “por que
ele chamou o doutor Ricardo Castañón e não outro?”. Você teria que pegar todo o
encadeamento dessa coisa, daí começa a fazer sentido. Daí você entende que é uma
linguagem, que é uma mensagem, que é algo que está sendo dito. Para isso, você
precisa articular a narrativa buscando a unidade entre fatos aparentemente desconexos,
entre os elementos essenciais e acidentais. Que é como se faz, por exemplo, na arte
dum romance ou num livro de história, biografia (sei lá, de Napoleão Bonaparte ou de
qualquer outro). Só assim você terá o entendimento do que é um milagre, mas isso na
verdade escapa às discussões usuais sobre o milagre pois tudo o que eles fazem é
chamar lá um grupo de médicos, uns fisiologistas e dizer “tem explicação científica? não
tem”. Então um vai chamar isso de milagre, o outro vai chamar de desconhecido e –
como diz o Moreira da Silva: até hoje ninguém sabe quem morreu, eu garanto que foi
ele, ele garante que fui eu – e fica essa dúvida eterna que não resolve nada.
Então, eu acho que o estudo dos milagres tem que começar de uma maneira
totalmente diferente, pela narrativa histórica com todos os seus detalhes.

RAPHAEL DE PAOLA:
Há uma preocupação muito grande da procura por médicos não-católicos e muitas
vezes ateus, agnósticos, de todos os campos possíveis, às vezes até anti-católicos, com
uma vida pública até anti-católica.
É um testemundo que a gente ouve muito desses especialistas de que eles não
encontram uma resistênia, um ceticismo tão grande quanto nos tribunais eclesiásticos à
investigação da suposta miraculosidade dum ato, dum evento. Ele se dava por satisfeito
– vi outro dia um médico que se declarou ateu – ele se daria por satisfeito três ou quatro
passos antes e mesmo assim o tribunal eclesiástico foi às últimas consequências e
prosseguiu em novas fases com novas investigações que – ele mesmo disse – a
comunidade científica já se daria por satisfeita um pouco antes disso.

OLAVO DE CARVALHO:
Bom, eu acho que o mais óbvio, o mais fácil de confirmar são os corpos
incorruptíveis. Existe uma autora americana chamada Joan Carroll Cruz, ela escreveu
vários livros a respeito dos milagres, é um imenso repertório de milagres e tem um livro
dela sobre os corpos incorruptíveis: é uma lista enorme. Não é exaustiva a lista mas são
exemplos. Segundo, os milagres eucarísticos, como esse do doutor Ricardo Castañon –
são milhares, isso aí não acaba mais. Se você pensar bem, os milagres acontecem em
tal profusão que eles se tornam inabarcáveis.
Os milagres que contêm o elemento profético como o de Nossa Senhora em
Fátima [milagre de Fátima; Cova da Iria, Fátima, Portugal; 13 de outubro de 1917] onde
ela diz “vai acontecer isso mais isso mais isso mais isso” e tudo acontece exatamente
naquela ordem. Se você disser “ah, isso não tem explicação”, como não tem explicação?
Você acha que Nossa Senhora disse uma coisa qualquer? Ela chutou no espaço, ela
não tem razões para dizer isso? Ela não tem uma compreensão do processo histórico
superior a que você tem, superior a que os historiadores têm?
Em vez de você procurar no evento miraculoso uma fonte de inspiração que te
ajude a enxergar, não, você tapa os olhos para aquilo. Se você não tem a hipótese de
uma inteligência sobre-humana que está dirigindo os fatos, você só tem duas
alternativas: você levará o seu trabalho de inteligência humana até um certo ponto e
dizer “daqui para diante eu não entendo mais” – isso é o máximo que você pode fazer.
Mas se você permitir que a inteligência divina te esclareça, você acaba entendendo o
processo histórico com uma profundidade que as pessoas não chegam a pegar.
Então você precisa juntar as fontes do conhecimento. E a inspiração do Espírito
Santo é uma coisa básica.

RAPHAEL DE PAOLA:
Se fosse o caso, por exemplo, do testemunho da dança do sol no milagre de
Fátima, você poderia levar câmaras fotográficas e filmar o evento lá. O evento não é só
isso mas aquela dança do sol é um componente essencial que compõe o milagre todo.
Mas você vê que ali Nossa Senhora está falando de toda a história, está fazendo um
prognóstico pra frente dizendo, relatando o que vai acontecer caso as pessoas não se
convertam etc. Isso tudo faz parte do milagre. Ter acontecido com pastorinhos, com
crianças. Como é que três crianças conseguem convencer em alguns meses 70 mil
pessoas para comparecerem num lugar e testemunharem um fenômeno que é também
da ordem natural? Quer dizer, o milagre não é só aquilo que aconteceu quando as 70 mil
pessoas estavam lá, é toda essa história.

WOLFGANG SMITH:
Com a redescoberta dos estratos ontológicos superiores correspondentes, como
observamos, à anima e ao spiritus, será mais uma vez entendido que os milagres, na
medida em que derivam de reinos supracorporais, podem ser profundamente
significativos.
Nem todos os milagres, é claro, são equivalentes, e é necessário, em particular,
reconhecer que os mais elevados, evidentemente, são aqueles que procedem
diretamente do próprio Deus. Mas mesmo milagres “menores”, de qualquer tipo, têm,
sem dúvida, um papel a desempenhar na vida espiritual, por mais que isso não seja
reconhecido. De um modo geral, parece que uma religião vazia de milagres é de algum
modo empobrecida, de alguma forma incompleta.
E não nos esqueçamos, finalmente, que o objetivo da religião autêntica que não
pode deixar de transcender nossas concepções finitas constitui necessariamente o maior
milagre de todos.

RAPHAEL DE PAOLA:
Nas opções que a gente tem ao falar do mundo, dos fatos, corremos o risco de
cair em dois extremos. Um extremo é uma instabilidade sem regras – será que o mundo
mostra alguma regra? será que existe casualidade no mundo ou é tudo um caos total e
sempre? O outro lado da moeda, o outro extremo da possibilidade – você descobriu as
constâncias, quais são e porquê e não há rompimento possível dessas constâncias que
você observou. Essa segunda atitude é muito comum hoje em dia. Apesar dos cientistas
se dizerem abertos sempre a novos fatos, são sempre fatos menores do que a sua
capacidade, nunca maiores do que a sua capacidade, do que a capacidade da sua
ciência se vê investida para investigar. Entre esses dois extremos da total aleatoriedade
do mundo, de uma variedade sem fim e uma inexistência total de regras até um rigorismo
absoluto, uma mente sã deve se pôr no meio do caminho.
A total aleatoriedade significaria dizer o seguinte: Deus não criou as coisas, tudo
o que acontece são intervenções diretas d’Ele. É claro que ele sustenta as coisas todas
mas Ele deu alguma autonomia para as coisas, são as chamadas causas segundas. Mas
às vezes essas causas segundas podem ser – eu não diria rompidas pela invasão da
causa primeira – ao contrário de serem rompidas, quando a causa primeira, que é o
próprio Deus, interfere no curso “regular” das coisas, no curso das causas segundas,
aquilo – para uma mentalidade mais sadia e aberta realmente ao acontecer – longe de
negar, aquilo vai completando a sua inteligência e abrindo para a inesgotabilidade do
ser. Sempre há coisas novas em planos diferentes que podem acontecer.
REALIDADE

OLAVO DE CARVALHO:
Os milagres dos santos da Igreja Católica são os fatos mais bem comprovados da
história. A discussão usual a respeito do milagre é baseada em definições toscas e
conceitos totalmente inapropriados. Não existe ainda um critério científico para o estudo
dos milagres.
O primeiro desses critérios teria que se basear na seguinte obversação. Se você
pega do milagre somente o seu efeito físico final, então ele pode ser semelhante a muitos
outros fatos. Por exemplo, o sujeito tinha um câncer e se curou do câncer – tem milhares
de tipos de cura do câncer diferentes – e ele só seria diferente dos outros pela sua
suposta causa. Você teria uma causa divina em vez de ter uma causa explicável pela
fisiopatologia. Ora, então o milagre só se diferencia de outros fatos do mesmo teor pela
sua suposta causa. Então, quando dizem que é uma causa desconhecida – uns
proclamam que é um milagre e outros proclamam que é uma causa desconhecida – isso
aí tudo corresponde a dizer rigorosamente nada.

WOLFGANG SMITH:
É bastante fácil verificar a realidade do sobrenatural: tudo o que se precisa,
basicamente, são olhos comuns que vêem. Compreender o significado, a razão de ser
dos milagres, por outro lado, é muito mais difícil, pois isso requer que transcendamos a
visão de mundo dos nossos dias.
Há inerentemente quatro etapas: primeiro, o reconhecimento de que a
cosmovisão contemporânea que oficialmente percebe que o mundo é “feito de partículas
fundamentais” é na verdade falsa, que os objetos que percebemos não reduzem de fato
a um agregado das assim chamadas partículas. Esse reconhecimento é o que eu chamo
de “a redescoberta do mundo corpóreo”.
O segundo passo consiste na percepção perene de que o próprio mundo corpóreo
constitui o estrato mais baixo do cosmos integral, que se revela, de fato, tricotômico:
quebra em três estratos ontológicos, dos quais o corpóreo constitui o mais baixo.
A terceira é a redescoberta de uma profunda correspondência entre o cosmo ou
o macrocosmo e o homem, o chamado microcosmo: pois, assim como o plano corpóreo
na tricotomia cósmica corresponde ao corpus na constituição ternária
corpus/anima/spiritus do homem, assim como os dois estratos superiores do cosmos
integral correspondem, em ordem ascendente, a anima e spiritus.
E isso nos leva ao quarto e último reconhecimento, a saber, que, tanto no cosmos
quanto no homem, a tricotomia apresentada se mostra hierárquica, o que equivale a dizer
que a superior detém a primazia sobre a inferior. Para o ternário corpus/anima/spiritus
isso significa, em termos concretos, que anima triunfa sobre o corpus, “alma” tem
domínio sobre “corpo” e “espírito” tem poder sobre “alma”. O fato decisivo então é que
uma ordem hierárquia correspondente se aplica ao cosmo integral.
Consideremos então milagres “comuns”, isto é, milagres não realizados
diretamente pela vontade de Deus. Vê-se agora que tais milagres parecem
“sobrenaturais” apenas enquanto não se reconhece a hierarquia cósmica tripartida; eles
parecem sobrenaturais desde que nós, humanos, permaneçamos “sub-naturais” em
consequência do que a teologia se refere como o pecado original. E isso é certo porque
os santos manifestam certa aptidão para o milagroso: na medida em que eles superaram
os efeitos do pecado original e assim recuperaram a plenitude da natureza humana, eles
têm a capacidade de anular as forças da natureza que emanam do plano corpóreo e
pode fazê-lo de fato a partir de dois níveis: do psíquico ou do espiritual.

OLAVO DE CARVALHO:
O milagre tem que ser estudado não somente no seu efeito físico final mas na
totalidade da sua história desde o início. Por exemplo, eu cito o caso daquela menina
que não tinha pupilas e que foi lá no Pe Pio. O Pe Pio rezou e ela passou a enxergar
sem pupilas, o que é, pela fisiologia, impossível. Então, por que ela foi lá? Esse é o
primeiro ponto: por que ela tinha de ir lá e não em outro lugar?
Você tem que contar a história com todos os seus componentes e aí você percebe
que o milagre tem uma linguagem, que ele diz alguma coisa, que ele é uma história
dotada de sentido e só aí você o entende. Fora disso, você o reduz a uma concepção
materialista e como é que você vai tirar uma explicação miraculosa de uma coisa já
definida materialisticamente? É impossível, fica num circuito fechado.
O que eu acredito é que é preciso fazer uma fenomenologia do milagre com todos
os seus componentes. Por exemplo, os corpos incorruptíveis de tantos santos: São João
Maria Vianney, São João Bosco etc. Passam séculos e os corpos estão absolutamente
intactos. Isto só acontece com santos da Igreja Católica. Não tem mais nada que se
pareça com isso no mundo – não tem no budismo, não tem no hinduísmo, não tem em
parte alguma. Então, até por efeito estatístico você vai dizer: “bom, deve ter uma causa
comum a todos esses acontecimentos”. Qual é a causa comum? Bom, você precisaria
investigar a vida inteira do cidadão. Só aí a incorruptibilidade do seu corpo começaria a
fazer sentido. Agora, se você pegar somente o fenômeno físico de um corpo
incorruptível, o que você vai extrair daí? Que é uma causa desconhecida.
RAPHAEL DE PAOLA:
O que é um milagre? Eu diria que é a irrupção no comum do sobrenatural de modo
a não deixar dúvidas quem é o autor, qual é a mensagem e como que aquilo não nega
a expectativa da doutrina, a expectativa moral das pessoas que estão envolvidas na
religião mas a estende. Vai na mesma direção mas fala mais, devido a sua fonte, a fonte
superabundante.

WOLFGANG SMITH:
A distinção entre Cristo como revelado a nós nas Escrituras e na Tradição e o
chamado “Jesus histórico” não tem fundamento em nenhuma base e constitui de fato um
dos equívocos mais perniciosos essenciais ao ataque modernista à Igreja.
Milhões entre os fiéis foram enganados pelo argumento implícito de que o
sobrenatural e o miraculoso se referem apenas ao “oficial” em oposição ao Jesus
“histórico”. O ponto é que, uma vez aceita essa dicotomia, ficamos a apenas um pequeno
passo para relegar a primeira ao reino da imaginação piedosa e declarar o “histórico”
(como concebido pelos hereges e não crentes) ser o verdadeiro, o autêntico Jesus.
É preciso entender que a existência do sobrenatural não é apenas essencial para
a doutrina cristã, mas, de fato, tem sido demonstrada repetidas vezes para todos verem
desde que Jesus andou sobre a terra. Século após século a Igreja trouxe santos que
poderiam comprovadamente “operar milagres”, de curar os incuráveis ou prever eventos
futuros a maravilhas como a bilocação: basta lembrarmo-nos de São Padre Pio de nossa
época, em cuja vida tais acontecimentos foram quase comuns e testemunhados por
milhares.
Negar, além disso, que o próprio Cristo fosse capaz de ações miraculosas
dificilmente mereceria uma resposta se não fosse pelo fato de que hoje em dia até os
homens de batina sucumbem, com demasiada frequência, a noções desse tipo.

RAPHAEL DE PAOLA:
Uma abertura maior para a possibilidade do milagre na cabeça das pessoas só
seria possível se a gente conseguisse restaurar uma cosmovisão mais integral e menos
reducionista como é o caminho que eu acredito que não seja o da ciência moderna, é
interpretação filosófica que muita gente dá ao que a ciência moderna tem feito. Então,
se a gente recuar para problemas filosóficos que já foram resolvidos e que hoje em dia
se levanta de forma até pueril – para quem conhece as soluções que Aristóteles, São
Tomás de Aquino, João de São Tomás dão a determinados problemas sobre se existe
ou não o mundo exterior, o quanto eu posso confiar nos dados do mundo exterior: isso
é um tema de debate acaloradíssimo hoje em dia na academia.
OLAVO DE CARVALHO:
Eu outro dia mesmo escrevi um negócio, falei “olha, quando eu tinha uns 12, 13
anos, eu descobri que eu tinha uma paixão por entender o sofrimento humano”. Mas era
o sofrimento humano concreto, real que não cabia em nenhuma das ciências existentes.
Nada de sofrimento psicológico, sofrimento fisiológico, sofrimento econômico – os nomes
das disciplinas pegam aspetos abstrativos que na verdade não existem. Eu queria
entender o sofrimento humano na sua realidade concreta. Isso não correspondia ao
interesse por nenhuma disciplina ou ciência em particular e eu acho que isso deveria ser
uma característica constante da filosofia se ela não tivesse se transformado também
numa profissão especializada.
Michael Dummett diz: a filosofia é uma disciplina para quem gosta de argumentos
abstratos. Bom, então eu não sou filósofo, eu odeio argumentos abstratos. E você vê
que grandes filósofos não se interessaram por argumentos abstratos de maneira alguma.
Alguns se interessaram mas outros não. Estou interessado é na realidade concreta.
Claro, você vai ter que usar o vocabulário abstrativo, sem dúvida. Mas ficar
trocando argumentos abstratos? Isso é coisa de menino de ginásio. Um defente uma
tese, outro defende a outra, você faz um debate ginasial. Isso não é filosofia, isso é
apenas retórica, a arte da discussão.
Os grandes filósofos não se interessam em provar coisíssima nenhuma, eles
estão interessados em explorar a realidade. As provas vêm muito tempo depois. Os
dscípulos, epígonos etc. produzem provas. Ele está interessado na descoberta, não na
prova. A prova é sempre secundária.
Se se reduz a filosofia a uma troca de argumentos abstratos então acabou a
filosofia. Só pode haver argumentos abstratos em torno de fatos já conhecidos.

RAPHAEL DE PAOLA:
Parece que as pessoas não estão vendo no seu dia a dia todos os outros andares
que constituem os efeitos ordinários que acontecem diante da gente por causa de um
viés cientificista que nos encoraja a só dizer que está acontecendo aquilo que é captável
dentro de instrumentos ou teorias, enquanto tem muito mais coisa acontecendo – numa
maçã vermelha tem a vermelhidão, tem a essência – apesar disso não ser rastreavel
pelas ciências matematizantes, pela física moderna.
Um milagre é composto de uma quantidade de escalas ontológicas muito maior
ainda do que os fenômenos ordinários. Talvez através do milagre, que remete a todos
os andares do ser, as pessoas comecem a pensar em como que os seus acontecerem
do dia a dia não são totalmente rastreáveis pelo que as ciências particulares estão
fazendo.
Quer dizer, você tem uma cabeça muito pequena, você é convidade coletivamente
a só repetir como crença sua aquilo que é rastreável pelas ciências e não aquilo que
você testemunha com os olhos de forma humana mais concreta – isso sem falar de
milagre!

WOLFGANG SMITH:
Um milagre, eu diria, é um evento que parece violar o que consideramos ser uma
lei da natureza. Se algo é ou não é percebido como “milagroso” depende, portanto, de
nossas crenças científicas: de nossa cosmologia, poderíamos dizer.
A operação de um i-Phone, por exemplo, teria sido considerada milagrosa nos
tempos medievais pela simples razão de que não poderia ser explicada em termos das
concepções científicas predominantes. Essa regra também pode se aplicar ao contrário:
há, de fato, fatos que parecem miraculosos para nós, mas estão de acordo com os
princípios cosmológicos compreendidos nos tempos pré-modernos.
A noção de que a humanidade estava impregnada de escuridão e superstição até
Sir Isaac Newton aparecer para trazer luz ao mundo revela-se ela mesma uma
superstição da qual nossa própria civilização foi vítima.
Quando eu era jovem, viajei pelo mundo em busca de remanescentes de tradições
pré-modernas, enclaves nos quais um conhecimento operacional de algumas ciências
antigas possa ter sobrevivido e voltei com a convicção de que “há coisas no céu e na
terra” que são de fato “não sonhadas” em nosa filosofia.

RAPHAEL DE PAOLA:
A preparação anterior de um certo povo, a vinda do Messias, Ele é morto e três
dias depois ressuscita, passa quarenta dias aí, conversa com quinhentas pessoas – tem
eventos em que ele fala com quinhentas pessoas – e isso repercute ao longo de pelo
menos dois milênios – é difícil você olhar para isso tudo, aceitar as narrativas com
critérios históricos os mais estritos e não ver que aí tem a própria causa primeira atuando.
Atuando desde a criação até hoje em dia, repercutindo até hoje em dia na inteligência de
cada homem que ouve falar de tudo isso ao mesmo tempo. É uma narrativa inteira,
composta de testemunhos que abrem a inteligência do homem em vez de fechá-la.

WOLFGANG SMITH:
O milagre mais importante na história da humanidade é o fato de que Deus “se
fez carne” e nasceu da Virgem Maria. Ultrapassa todos os outros milagres por um infinito,
pode-se realmente dizer, e inaugura uma religião que nenhuma mente humana poderia
conceber.
OLAVO DE CARVALHO
Um episódio que eu gosto demais no Evangelho é quando João Batista está na
cadeia e manda os discípulos perguntarem para Jesus: você é o Messias ou nós temos
que esperar um outro? – O que é Jesus responde? – Vocês vão a João bastista e contem
o que vocês viram e ouviram. O que é isso aí? É o fato concreto.
Ele não dá uma resposta doutrinal, ele apela até ao método científico.
Então, assim, é o que nós vimos e ouvimos. E toda investigação, todo desejo de
conhecimento surge disso: daquilo que você viu e ouviu.
Conhecimento começa com espanto, começa com a estranheza – diz Aristóteles.
Quer dizer, tem um fato ali e você não está entendendo o fato.
Se não houvesse fatos, fatos estranhos, nós não teríamos nenhuma capacidade
de investigar.

Você também pode gostar