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Problemas metafísicos I

Aula II: A filosofia como aprender a morrer (Platão)


24 de setembro de 2020
Textos: Apologia de Sócrates e Fédon
Professor: Francisco Moraes

Contexto
Os gregos e a morte
1.A escolha de Aquiles e seu significado. O episódio célebre da descida de Odisseu ao
Hades (Odisséia, canto XI). Segundo o fantasma de Aquiles, os mortos não passam de
“fantasmas de homens fatigados”. Suas palavras: “Não tentes consolar-me da morte,
glorioso Odisseu; eu preferiria lavrar a terra a serviço de outrem, de um amo pobre, de
subsistência minguada, a reinar sobre as sombras de todos os extintos.”
2.Fustel de Coulanges e a religião do lar das populações greco-itálicas.
2.1.A ideia de que a vida após a morte poderia ser de recompensas ou de castigos
dependendo da vida presente não era uma ideia dominante. Não havia a compreensão de
que uma segunda vida correspondesse a uma mudança de morada, no caso a morada
celeste, nem tampouco a ideia da metempsicose, ou seja, a ideia de que um espírito
imortal, uma vez evadido do corpo, iria dar vida a um outro corpo, conseguiu enraizar-se
no espírito das populações greco-itálicas. Acreditou-se mesmo que nesta segunda
existência a alma ficava perto dos homens, continuando a viver na terra, junto deles.
Nascida com o corpo, a alma não se separava dele com a morte. Alma e corpo
encerravam-se juntamente no mesmo túmulo. “Na antiguidade supunha-se tão
firmemente que o homem ali vivia sepultado que nunca se deixava de, juntamente com o
homem, se enterrar os objetos os quais se julgava que viesse a ter necessidade: vestidos,
vasos, armas. Derramava-se vinho sobre o seu túmulo para lhe mitigar a sede; deixavam-
lhe alimentos para o apaziguar na fome.” (COULANGES, 1987, p.17) Sem túmulo, a
alma ficava destinada a errar, sem jamais parar, sem nunca receber os alimentos e as
oferendas de que tanto carecia. Se tornava malfazeja. “Toda a antiguidade se persuade de
que, sem sepultura, a alma vive desgraçada e que só pelo seu enterramento adquiria a
felicidade para todo o sempre.” (COULANGES, 1987, p.18) Consequência disso é que
temia-se menos a morte do que a privação de sepultura.
Dois exemplos:
Xenofonte. Helênicas, I, 7. Os generais atenienses, que após uma vitória no mar, foram
condenados à morte por terem abandonado os mortos em batalha. Eram, possivelmente,
discípulos dos filósofos e já distinguiam entre alma e corpo.
Antígona de Sófocles que, apelando às leis não-escritas, desafia decreto de seu tio
Creonte, tirano de Tebas, e sepulta com os ritos fúnebres seu irmão Polinice, morto em
batalha e condenado a jazer sem sepultura, ele que, segundo Creonte, não teria voltado à
sua pátria senão para “aniquilar o país de seus pais e os deuses de sua raça.”
2.2.O culto aos antepassados e os sacrifícios. Para o pensamento dos antigos, cada morto
era um deus e não apenas os grandes homens. Entre os mortos não havia distinção de
pessoa. Não era necessário ter sido homem virtuoso. Tanto era deus o mau como o homem
de bem. “Antes de crerem na metempsicose, que supunha existir uma distinção absoluta
entre a alma e o corpo, acreditaram na vaga e indecisa existência do ser humano, invisível
mas não imaterial, reclamando dos mortais alimento e bebidas.” (COULANGES, 1987,
p. 25) A sociedade entre vivos e mortos se baseava assim na proteção dos vivos por parte
dos mortos e pelos sacrifícios e oferendas permanentes dos vivos aos mortos. O sacrifício,
a oferta de alimento e a libação garantiam aos mortos o repouso e os atributos divinos.
“O homem ficava, então, em paz com seus mortos.” (COULANGES, 1987, p.26) Poder
sacrificar aos mortos, estar em comercio ativo com os deuses exclusivos do lar, era visto
como privilégio, fonte inclusive do direito à propriedade. Por isso, por ser privado do
convívio com os deuses, por não ter esperanças de ser relembrado e mencionado no culto
do lar, o exilado não se encontrava em melhor situação do que o condenado à pena de
morte. “Parece que o sentimento religioso do homem começou com este culto. Foi talvez
pela via da morte que o homem pela primeira vez teve a ideia do sobrenatural e quis tomar
para si mais do que lhe era legítimo esperar da sua qualidade de homem. A morte teria
sido o seu primeiro mistério.” (COULANGES, 1987, p. 27)

3. Heráclito de Éfeso (século VI a.C)


Frag. 21. Morte, tudo o que vemos acordados, sono, o que vemos adormecidos.
Frag. 24: Aos mortos de Ares honram os deuses e os homens.
Frag. 26. O homem toca a luz na noite, quando com visão extinta está morto para si; mas
vivendo, toca o morto, quando com visão extinta dorme; na vigília toca o adormecido.
Frag. 27: Na morte advém aos homens o que não esperam nem imaginam.
Frag. 29. Uma coisa a todas as outras preferem os melhores: a glória sempre brilhante dos
mortais; a multidão está saturada como o gado.
Frag. 62. Imortais mortais, Mortais imortais, vivendo a morte dos outros, morrendo a vida
dos outros.

Platão (século V-IV a.C)


4. Platão tematiza a sua correspondência entre o sentido último da atividade filosófica e
o aprender a morrer utilizando a vida de seu mestre Sócrates como paradigma de vida
filosófica. As passagens que selecionamos foram retiradas de dois de seus diálogos que
tratam, precisamente, do julgamento, condenação e morte de Sócrates: a Apologia ou
Defesa de Sócrates e o Fédon. A morte de Sócrates, sua impassibilidade nos momentos
finais de sua vida, demonstrariam exemplarmente que o filósofo é quem melhor estaria
em condições de superar o temor da morte. Esta impassibilidade seria um testemunho
eloquente de sabedoria. A postura diante da morte distingue os homens valorosos dos
imprestáveis, os sábios dos ignorantes. No entanto, são perceptíveis diferenças
significativas no tratamento do problema nos dois diálogos. Não as atribuiremos a uma
diferença entre Sócrates e Platão, mas a certa evolução no próprio pensamento platônico
a respeito da morte. De qualquer modo, em ambos os casos, é a morte que torna visível o
valor de uma vida e, no caso, o valor da existência filosófica. A filosofia supera
decididamente o medo da morte. Platão não apenas assinala essa verdade por meio do
acontecimento da morte de Sócrates, testemunhado por seus concidadãos atenienses,
como apresenta as razões para essa impassibilidade (e mesmo alegria!) diante da morte,
característica do filósofo. Examinemos esses argumentos:
4.1. Apologia de Sócrates (28 a – 30c)
- Em vez de pensar em viver ou em morrer, cada um deveria pensar unicamente na justiça
ou na injustiça de seus atos. Seria vergonhoso preocupar-se com a morte. Os homens que
enfrentam a morte em batalha temem mais a desonra do que a própria morte, tal como o
demonstra o herói Aquiles. Portanto, os homens valorosos desdenham a morte. Sócrates
se refere ao fato de ter ele próprio permanecido firme em seu posto em Potidéia, Anfípolis
e Délio, arriscando-se, como qualquer outro, a morrer. Se não desertou do posto quando
a ele foi designado por seus superiores, agora que se dedica a uma “missão divina”, à qual
teria sido designado por Apolo, muito menos ainda o faria.
-Temer a morte equivale a presumir saber o que não se sabe. O medo da morte seria uma
espécie de ignorância censurável comum à maioria dos homens. A excepcionalidade do
saber socrático, da filosofia, corresponderia a uma suspensão de juízo a respeito da morte.
Quem deixa de praticar uma bela ação por temor da morte ou quem pratica uma ação vil
pelo mesmo motivo, troca um saber certo por um saber presumido, o que seria o cúmulo
da ignorância, algo de que qualquer um deveria se envergonhar.

4.2. Fédon (63 e -69 e)


- Sócrates parte de uma definição da morte: a morte nada mais é do que a separação da
alma em relação ao corpo. Como o corpo é visto como uma prisão da alma, a morte seria
uma libertação. Ao contrário do que declara na Apologia, no Fédon Sócrates pretende
saber o que é a morte. Ao contrário do que pensa a maioria dos homens (os não filósofos)
a morte é um bem. Com isso, os filósofos seriam os únicos a superarem o medo da morte,
pois nada mais fazem do que se preparar para ela. Isso explicaria a impassibilidade de
Sócrates.
-A alma conhece a verdade separando-se, tanto quanto possível, do corpo. A alma teria
ela próprio um objeto de desejo: o ser, a verdade. O corpo apenas criaria embaraço e
estorvaria essa busca da alma, a qual constitui todo o empenho do verdadeiro filósofo. O
que é puro não se mistura com o que é impuro. A filosofia seria assim uma kathársis, uma
purificação. O corpo nos perturba de mil modos, “causando tumulto e inquietude em
nossa investigação, até deixar-nos inteiramente incapazes de perceber a verdade.” (66 d)
Entre os embaraços causados pelo corpo estão: a necessidade de nos alimentarmos,
doenças, amores, receios, cupidez, imaginações de toda a espécie, guerras, dissenções,
batalhas, amor ao dinheiro (66 c- d).
“E purificação, não vem a ser, precisamente, o que dissemos antes: separar do corpo,
quanto possível, a alma, e habituá-la a concentrar-se e a recolher-se a si mesma, a afastar-
se de todas as partes do corpo e a viver, agora e no futuro, isolada quanto possível e por
si mesma, e como que libertada dos grilhões corporais?
É muito certo, respondeu.
E o que denominamos morte, não será a libertação da alma e seu apartamento do corpo?
Sem dúvida, tornou a falar.
E essa separação, como dissemos, os que mais se esforçam por alcança-la e os únicos a
consegui-la não são os que se dedicam verdadeiramente à filosofia, e não consiste toda a
atividade dos filósofos na libertação da alma e na sua separação do corpo?
Exato.
Sendo assim, como disse no começo, não seria ridículo preparar-se alguém a vida inteira
para viver o mais perto possível da morte e revoltar-se no instante em que ela chega?
Logo, Símias, continuou, os que praticam verdadeiramente a filosofia, defato se preparam
para morrer, sendo eles, de todos os homens, os que menos temor revelam à ideia da
morte.” (66 d – 67 e)
- Somente o filósofo, por empenhar-se na purificação de sua alma, pode ser dito
verdadeiramente corajoso, temperante, e, de modo geral, virtuoso. No caso da coragem,
os que não sendo filósofos passam por corajosos buscam fugir de males maiores e por
isso enfrentam a morte, que também consideram ser um mal. Para Platão parece absurdo
que os homens se tornem corajosos por medo e temor (68 d). Essa coragem não se
compara à verdadeira coragem. Somente os purificados teriam uma sorte digna após a
morte.
“É muito provável que os instituidores de nossos mistérios não fossem falhos de
merecimento e que desde muito nos quisessem dar a entender, por meio de sua linguagem
obscura, que a pessoa não iniciada nem purificada, ao chegar ao Hades, vai para um
lamaçal, ao passo que o iniciado e puro, em lá chegando, possa morar com os deuses.”
(69 c)
Bibliografia

COULANGES, Fustel. A cidade antiga. Trad. Fernando de Aguiar. São Paulo: Martins
Fontes, 1987.
ANAXIMANDRO et. al. Os pensadores originários. Trad. Emmanuel Carneiro leão.
Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2005.
PLATÃO. O banquete, Apologia de Sócrates. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém, PA:
EDUFPA, 2001.
________. Fédon. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém, PA: EDUFPA, 2011.

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