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Douglas Lisboa

30 May 2023

Na Margem do Delírio
Um Brevíssimo Insight sobre a Ideologia de Gênero e o
Encanto Gnóstico

Esta minúscula reflexão não tem pretensão de ser conclusiva, até porque, se fosse, não
seria um ensaio e sim uma obra. Tudo não passa de uma tentativa de ir o mais fundo que
consigo para compreender, ainda que num esboço com prováveis defeitos, a origem do
hospício planetário que se transformou a civilização ocidental. A loucura chegou a níveis
inimagináveis, e o carro chefe da vez é a famigerada ideologia de gênero, que consiste em um
fenômeno incomum em que a pessoa tem um tipo de desalinhamento entre aquilo que sente
em termos psicológicos e emocionais, com sua estrutura biológica. Em outras palavras, o
sujeito tem uma repulsa pelo seu estado natural. O remédio encontrado pela grei da medicina
politizada poderia ter sido uma busca por um tratamento psicológico para que o efebo
alinhasse seus sentimentos ao corpo que Deus lho deu. Porém, preferiram o caminho mais
árduo da mutilação. Arrancar seus órgãos de nascimento, ou colocar um pênis no vazio
inevitável de sua condição natural; insertar seios num corpo macho, ou tirar os mamilos para
que a sexualidade seja de acordo com seus desejos desajustados. Quem em sã consciência
prefere ser cortado e ter alterada a sua constituição carnal em vez de apenas tentar um
tratamento para mudar seu estado emocional, psicológico ou sentimental? Bem, não estou
aqui para dizer algo sobre Jonh Money ou Alfred Kinsey, a história toda já está bem
documentada no livro de Rafael Sanzio, Ideologia de Gênero e a Ilusão do Corpo
Equivocado. Meditarei a origem histórica e filosófica do problema, sendo a área onde posso
contribuir ao menos um bocadinho.
***
O problema é claramente gnóstico. A serpente plantou essa ideia na mente humana lá
no mito fundador da nossa civilização cristã. Reiterando de modo mais explícito, o astuto
encantou Eva com uma pequena frase: “terás o conhecimento de Deus”.
Aí veio a separação do real e a gnose. A busca de um conhecimento superior que
transcende a realidade e chega até Deus. A ideia de ser, não a imagem e semelhança, mas a
própria divindade.
A tentação gnóstica persegue toda a história humana. As sagas dos impérios, os versos
dos poetas, as propostas dos filósofos e as investidas dos afortunados do ouro e da prata. Esta é

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a magia por trás da busca pelo poder. Toda a construção técnica humana passa por um
aumento do poder, e o processo de civilização tem como consequência esta medrança. O
poder é um desejo humano, e uma pergunta a ser respondida é: onde termina tal desejo?
Qual é o limite? Esta é a diferença central do homem para o animal. O primeiro é insaciável
e nunca está satisfeito com sua condição. Quando o desejo é realizado, sua alma é ocupada
pelo vazio. Eis o grande mistério humano que já havia sido dado pela arguciosa serpente. O
fetiche gnóstico.
Erwin Panofsky, ao analisar a idea do belo na arte medieval, cita Santo Agostinho
numa passagem em que diz ser a arte uma habilidade humana perigosa. Na idade média tal
atividade era considerada toda ação criativa humana. Tudo que se cria exige técnica, seja as
muito simples até as mais complexas. Segundo Agostinho, a arte deve ser uma atividade de
ligação do homem com Deus. Tudo é feito para a honra e glória de Cristo. Porém, a
sensibilidade do problema se encontra no caminho estreito entre a verticalização da atitude
do artista (a postura religiosa) e o egocentrismo. O profundo olhar para a sua própria
capacidade de feitos mirabolantes é o princípio que o leva à autonomia.
A arte como a atividade humana que concatena a Deus dura até Hugo de São Victor
que educa os intelectuais de monastérios, professores das primeiras universidades. Se antes os
monges buscavam o conhecimento usando suas capacidades intelectivas para adentrarem aos
mais profundos mistérios que a realidade oferece, faziam pelo fundamento cristão. A religião
é o alicerce que sustentava a filosofia monástica. Esses mesmos monges iniciaram uma
geração de pensadores formidáveis, começando assim, um período chamado escolástica em
que a incumbência das partes associadas era promover a lógica aristotélica como o discurso
apropriado para a busca da verdade de determinada proposição. As disputas eram um
fomento para que o conhecimento da lógica subisse a níveis que jamais havia chegado e
nunca mais haveria de tê-lo a tão alto grau.
Passado alguns séculos, toda a proposta inicial é desvirtuada para um âmbito obscuro.
Tudo começa com Guilherme de Ockham, do qual seu nominalismo inaugura o
subjetivismo. O único é o que existe e nada mais. Este que existe é único através do sujeito
que o percebe. O universal deixa de ser para individuar o ente como sendo ele mesmo aquilo
que deve em unidade. Um gato é aquele gato e não outro. A espécie é apenas um nome dado
pelo agente nominador que é o sujeito cognoscente. O nominalismo trouxe uma segunda
etapa da autonomia, e dessa vez, não veio por razões de uma exaltação de si através das
habilidades técnicas, e sim por uma manobra lógica como se fora uma operação de magia; e
não se trata de um processo manual e sim mental. Estamos no século XIV e em pouco mais
de cem anos será inaugurada a renascença humanista.
O perigo dessa segunda etapa da autonomia do homem estaria no fato de que a
confusão demoníaca era uma confusão gnóstica. A soberania da ciência sobre qualquer
observação real da experiência. Essa foi a bifurcação em que o professor Wolfgang Smith
chamou de matéria secunda, onde pela primeira vez na história da civilização o homem olha
para baixo, para o ponto, segundo o físico, ínfero do mundo. Agora, o interesse é tão somente

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no plano matematizado do esquema da realidade e não na realidade em si. Ora, que o
mundo é estruturado fisicamente em esquemas matematizados, não há dúvidas, mas é apenas
um fundamento e não uma descrição totalizante daquilo que é o objeto real. Em outras
palavras, o mundo material tem um fundamento matemático, mas é impossível matematizar
tudo.
O interesse pela matemática se torna um feitiço que encanta os cientistas, místicos e
filósofos da renascença. A realidade em si, que é a matéria prima, não mais caminha com a
matéria secunda. A última é soberana, pois é apenas a matemática e o universo como medida. É
um campo obscuro, misterioso, mas que encheu os olhos humanos e queimou seu espírito
num desejo profundo e estranho de adentrar e iluminar o horizonte tenebroso daquele
mundo inexplorado. O entusiasmo foi tão agudo a ponto de Francis Bacon jogar fora todas as
obras que tratava da matéria prima, ou seja, da realidade concreta, para ficar apenas com o
esquema matematizado dos entes.
A escolástica entra em crise, aquele festim de busca pela verdade termina, entra uma
nova era, pois a idade média já começa a escurecer na mente dos humanistas, se tornando,
portanto, apenas vultos de superstições; e o desinteresse aumenta. A arte tem novas
diligências adquirindo novas descobertas, resgatando o período de sabedoria greco-romano
onde os espaços são matematicamente calculados para dar profundidade à pintura através da
técnica da perspectiva. Agora é possível compor a natureza no seu aspecto mais realista
graças ao novo “deus” chamado "matemática". Quem a opera? Deus? Não, o homem. Ora,
quem é Leonardo Da Vinci, Bramante, Botticelli, Michelangelo, Giotto e Rafael, senão
criaturas humanas?
Se a escolástica foi jogada na lata do lixo, não foi por uma postura intelectual pela
descoberta de que era tudo desprezível. Muito pelo contrário, não havia o que refutar em São
Tomas de Aquino, Jonh Scut, Soares ou Abelardo. Simplesmente, como disse Olavo de
Carvalho, o interesse mudou. O assuntou virou, e agora a conversa é outra. O ocidente, por
conta disto, teve uma perda de conhecimento irreparável que pagará o preço, e chegaremos
lá.
A mudança na bifurcação teve como consequência o surgimento de René Descartes e
a próxima fase da autonomia humana. Seguindo uma notável teoria de Francis Schaffer, o
período humanista é o foco do homem não mais na graça, como era na idade média, e sim
na natureza. O vulto profundo na matematização e na medida, tinha seu âmago descobrir
como a natureza é em seu fundamento puramente abstrato.
A operação de magia gnóstica se deu pelo fato de que o processo de matematização
das coisas é um processo de racionalização. A bifurcação separa o conhecimento do real pelo
conhecimento do conhecimento. O homem já não fala mais da natureza e sim de sua
capacidade intelectiva de conhecer. Mas não o conhecimento intuitivo, já que intuição no
período racionalista se torna um não conhecimento, ou apenas percepção vulgar dos objetos.
A confusão está na própria capacidade de operar a matemática. Uma equação
simples como 2+2=4 é uma atividade mental, porém, ela não está mente. A mente humana

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não aloca nenhum número ou equação. Isto significa que a matemática não está na mente, o
homem apenas cria os símbolos linguísticos para lidar com ela. Em contra partida, se
olharmos para a realidade, não encontraremos números voando de um lado para o outro.
Isto é, o número não está no tempo e no espaço. Não faz sentido eu dizer que 2+2=4 o é em
algum lugar ou em algum momento. Ele é atemporal e transcende o espaço. Em outras
palavras: é o que chamamos de abstração. O que é abstrato não pertence ao mundo concreto,
e sim a uma outra realidade que é tão real quanto a nossa, mas que é totalmente diferente em
sua condição elementar. O mundo abstrato não pode ser confundido com o mundo concreto
e vice e versa. Mas se estas duas realidades não se confundem, porque, então, a matemática é
usada para medir coisas do mundo concreto? A resposta simples é que aquilo que é
contingente é contado e numerado. Os entes têm medidas e quantidades que o categoriza. A
matemática serve para categorizar o ente concreto e dar alguns aspectos da forma a ele. Um
gato tem dois olhos e não três, mas só podemos dizer que tem dois olhos e não três porque
sabemos que existe algo, na realidade abstrata, que se chama dois e três. E esses números são
independentes da quantidade de olhos que o gato tem e também do gato. Não faria sentido o
número ser privado apenas na minha mente, já que eu não conseguiria conceber a existência
concreta do gato como um objeto independente da minha mente. Tudo isso mostra que a
lógica e a matemática pertencem a um mundo muito diferente da minha estrutura cognitiva e
também do mundo concreto do qual observo a matéria prima.
Toda esta lição foi esquecida por Descartes que havia sido encantado pelo demônio de
quem tinha um medo aviltante. O diabo colocou na cabeça do filósofo que o mundo real e
concreto não podia ser provado. Descartes e mais ninguém podia saber que o mundo exterior
a sua mente existe. Voltamos, portanto, ao problema do ceticismo gorgiano em que o objeto
não existe, e mesmo se existisse não poderíamos saber que existe, e mesmo se soubéssemos
que existe não poderíamos transmitir a mais ninguém tal existência.
Descartes cria uma neurose e chama tudo isso de o gênio maligno que o queria
convencer de que o mundo exterior não existe. Mas o filósofo, um cristão devoto, logo pensou
que Deus, sendo um Ser amoroso e dotado de bondade, jamais enganaria o homem desta
maneira. Diante disto, Descartes chega a conclusão de que resta um fundamento para o
conhecimento de que há uma existência, e por esse fundamento chegaria a conceber a
existência de todas as coisas. A base, segundo ele, é o pensamento. Penso, logo existo. Esta
solução cartesiana leva às últimas consequências para a passagem da fase onde a autonomia
do homem que era para com a natureza, e agora é para com o próprio “eu”.
Tudo parte do pensamento humano, eis a raiz do racionalismo. A razão é tudo, pois é
ela que opera a matemática e a lógica. Neste ponto, tudo o que há é o ser autônomo e o seu
super poder: a razão. Este é o poder mágico que levará o homem a ser como Deus e com este
encanto construir uma nova realidade. Mas antes disso, parece que alguém estraga a festa
cartesiana.
Estamos no século XVI, e David Hume dirá que não podemos conceber coisa alguma
e nem mesmo as circunstâncias que nos rodeiam e nos formam. Não podemos saber se o eu

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de ontem é o mesmo do de hoje, pois tudo está em perene mudança. Portanto, todo aquele
“eu” que Descartes garantia o conhecimento do mundo real, minguou, pois para Hume o tal
do “eu” não existe.
O período de confusão que reinou essa época é curada um século depois por um
filósofo alemão. Kant jogou água na cerveja de toda a discussão filosófica do ocidente. A ideia
de dele era organizar o balaio colocando a razão no seu devido lugar. Nem mais, nem menos.
Tudo isso porque Descartes fez mais sucesso do que Hume, e sua filosofia prosperou
soberana, já que o primeiro era também um grande matemático. Mas o alemão o supera e
vem para arrumar a casa.
A principal obra de Kant é chamada, exatamente, de A Crítica da Razão Pura. Ali,
dirá que há um limite para a razão que se encontra numa necessidade de um imperativo
categórico que fundamenta não a razão individual e sim geral, e que a fé é uma necessidade
do funcionamento cognitivo humano, e a religião é o ponto de referência da moral universal.
A ideia de Kant era salvar a fé limitando a razão. Em outras palavras, trazer ordem no caos
cartesiano e humeista.
O próprio sucesso cartesiano, já havia sido abalado pelas descobertas de Newton. A
física mecânica. Tal ciência teve uma profunda influência no idealismo alemão, pois Kant
não podia se livrar do subjetivismo racionalista e não ignorara o objetivismo newtoniano.
Que havia um poder na razão, onde toda a realidade dependia, isso deveria ter uma
explicação com a física mecânica. O salto que Kant deu foi inferir no mundo da ideia o
conceito de tempo, e no mundo real o espaço. No tempo (a ideia) há uma ordem estrutural do
próprio processo noético humano. No espaço (o real) era caos. O homem dava ordem ao caos
que era a natureza, mediante uma estrutura que perpassa toda a humanidade para que ela (a
humanidade) se expresse como tal. A esta estrutura ele chamou de formas a priori. Estaria a
forma a priori fundamentando toda a forma a posteriori que é a experiência humana no espaço.
Portanto, a realidade é delegada pelo homem, onde todas as categorias que dá ao ente um
significado e a possibilidade de ser conhecida, vinha desse esquema a priori, da estrutura
racional humana.
Segundo Kant, não temos acesso à coisa em si, o que percebemos são apenas a forma
fenomênica das coisas. Os olhos dão ao objeto, a cor, quando o objeto sede aos olhos apenas
luzes. A forma do objeto é caótica e não sabemos como o gato é em si, a mente humana é
que dá ao gato as categorias para que ele seja aquilo que é em seu estado fenomênico. A folha
da árvore é verde não porque ela o é em si, mas porque nós a vemos verde. Quase cem anos
depois esta filosofia iria influenciar o movimento impressionista, onde tudo o que o pintor
expressa não é a realidade e sim impressões dela. Como bem diz Giulio C. Argan, a arte
impressionista é senão uma sensação visual. Tudo isso, por conseguinte, é a perda da relação
direta do homem com a realidade.
Pela influência kantiana, as provas científicas não relevam uma verdade. Nem mesmo
fatos são verdadeiros, pois “verdade” é uma palavra que no idealismo alemão de Kant perde
o sentido, visto que o sentido de toda a existência se encontra na ideia. Se assim o é, então

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todas as formas reveladas “objetivamente” e comprovadas, não são verdadeiras e sim válidas.
Essa é mais uma evidência de que a terceira fase da autonomia do homem o apartou da
relação direta com a natureza e o levou para uma relação indireta dirigindo-a para a ideia.
Segundo Olavo de Carvalho, Kant é um exemplo claro de uma deformação da
filosofia, num distanciamento e esquecimento total daquilo que a escolástica havia alcançado.
A filosofia kantiana teve um estrondo tão grande e uma influência tão profunda que todas as
mudanças, hábitos, linguagem, a ciência e o comportamento, se fundamenta direta ou
indiretamente em Kant. Tudo o que surgiu depois e teve um impacto irreparável em todas as
instâncias do pensamento ocidental tem o veneno kantiano. Todos os gigantes movimentos
filosóficos, científicos e a psicologia tiveram suas bases nas formas a priori. Todas as teorias
criaram para a si suas formas a priori. Hegel com o espírito da história, Comte com a teoria
do positivo como forma a priori, Marx com o materialismo histórico, e todas as famosas
correntes da psicanálise de Freud a Carl Young, do behaviorismo à neurolinguística, do sócio-
construtivismo e estruturalismo ao desconstrucionismo. Todos tomaram para si a forma a
priori, e fazê-lo é conceber um novo mundo onde o criador é o filósofo. A razão, nessa fase,
não apenas delega a natureza, como cria uma nova.
Finalmente, o homem alcança aquilo que sempre buscou, a promessa da serpente que
é o conhecimento secreto de Deus: o bem e o mal. Agora tem a fórmula para construir o
mundo e ser o criador de um novo universo. Os sistemas filosóficos; o delírio da idade
moderna.
O filósofo tem o poder de criar sua realidade, mas perceba que tal poder consiste em
criar uma realidade a partir da sua própria razão. Os gnósticos alegavam que a verdade, o
bem e o belo estão privados ao conhecimento, e esta episteme é o que liga o homem a Deus.
A matéria é um atrito à episteme e deve ser sumariamente destruída. Quanto mais matéria,
mais mal. É o demiurgo que desmancha o concreto para elevar-nos a ideia. Destruir a
matéria é destruir o maligno que impede a virtude sagrada do conhecimento. Há, portanto,
um aspecto divinizador a ser alcançado através do conhecimento hermético. Um tipo de
episteme suprema. Aristóteles aconselhou Alexandre O Grande a abandonar toda a ideia
gnóstica, pois era o princípio da destruição civilizacional. Hoje sabemos que isso não é uma s
teoria, uma filosofia ou uma ideia. A gnose é um hábito mental, um estilo de vida, ou um
estado da alma.
O gnosticismo é uma fantasia, mas não deixa de ser uma experiência. Um processo de
encantamento acerca da busca por um conhecimento puro. Mas a destruição da matéria num
todo é inconcebível, um delírio. Porém, é possível um afastamento dela criando um mundo
alternativo operado por medidas matematizadas, dado que a matemática é um conhecimento
puro que independe da matéria, tal como figurou os filósofos no período da bifurcação
renascentista e a própria iniciativa cartesiana. O homem abandonou a graça para conhecer
um tipo de natureza distante, dentro de muros que o impedia acessar diretamente a natureza
bruta. De certo modo, esse muro fez com que a natureza bruta ficasse mais imaginativa sendo
acessada apenas pelo conhecimento teorizado e romantizado. O muro da cidade e os avanços

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tecnológicos separa o corpo humano do peso do real. Tal circunstância cria um hábito mental
gnóstico, uma vez que está fisicamente apartado da natureza e inserido em um mundo criado
por mãos humanas e racionalizado através de entraves burocráticos.
A partir do século XVIII, este afastamento aumentou e se tornou irreversível. A
autonomia do homem não é apenas a independência de Deus e sim de toda a realidade. É
um acolhimento em si para a busca de algo mais divertido e infantil em vez do óbvio. O gato
não é um gato, pois o processo noético já não lida mais com o real e sim com o conhecimento
puro da gnose. Se não temos acesso à coisa em si, então o gato pode ser alterado por aquilo
que me faz perceber o gato, mas não a coisa em si (o gato). Então, o gato já não é mais o
“gato” e sim aquilo que “eu” delegar que seja, pois o que há não é uma verdade e sim coisas
válidas. A experiência, ou o estado a posteriori está abaixo do estado a priori. Nunca é uma
experiência com o real e sim com fenômenos em que a estrutura mental traz a ordem. Bem
vindos ao mundo kantiano.
O problema da prova e da lógica, a matemática como conhecimento puro é que se
pode provar logicamente coisas absurdas. Hume disse que o homem não pode acessar o “eu”,
pois tudo é mudança e o ontem já não é mais o mesmo de hoje, e, portanto, tais
circunstâncias diluem a percepção do “eu”. Obviamente que o próprio Hume está muito
distante da realidade quando professa sua fé num ceticismo tão absurdo. Ao estar
concatenado com o real, percebemos facilmente que se o ontem e o hoje fossem a
circunstância que me priva do “eu” devido à constante mudança, Hume não poderia dizer,
hoje, que havia escrito isso ontem, se alguém o perguntasse quem escreveu tal tese. O mesmo
podemos dizer de Descartes. Eu não penso e logo existo. A minha existência é a condição
fundamental de eu pensar. Mas Descartes tem a necessidade da prova, ora, mas por que
preciso provar tal obviedade? A soberania da prova faz Descartes alçar voos ao racionalismo
colocando o pensamento como condição para a existência só porque pode provar por estes
meios. E podemos, ainda, voltar a Guilherme de Ockham com o nominalismo. Se tudo se
limitar apenas ao único, ao objeto, ou seja, em que o gato é aquele gato e não o outro,
colocando, assim, toda a noção de universal como sendo apenas nomes, eu não poderia saber
que o gato que está correndo na minha direção há cem metros de distância é o mesmo que
está, agora, pertinho de mim roçando nas minhas pernas. Esta retidão do tempo e espaço que
une a observação de fatos e dá sentido a minha percepção só pode se dá na relação do
universal com o individual. Aliás, como eu poderia saber que o gato é um gato se eu não
tivesse antes um conceito universal e abstrato de gato que está para além do nome da
espécie?
Por último e o mais importante, precisamos fazer uma pergunta para o senhor Kant.
O filósofo diz que não temos acesso à coisa em si. Eu sei que Olavo de Carvalho vai muito a
fundo para refutar Kant, e consegue. Mas o kantismo é uma pegadinha. Eu pergunto: Como
diabos Kant sabe que não temos acesso à coisa em si? Nós observamos a coisa em si e não
precisamos provar isso. Caso o filósofo alemão esteja mesmo negando o fato, cabe a ele
responder como diabos ele sabe disso. Tudo isto desmorona a filosofia kantiana, pois é tudo

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uma pegadinha. Muitos professores de filosofia dizem que a filosofia de Kant é irrefutável. Eu
concordo que é, e não estou sendo sarcástico. Ela é irrefutável dentro do sistema kantiano.
Mas aquilo é uma bolha de sabão, pois basta uma pergunta para a coisa toda mostrar sua
fragilidade. Temos uma forma a priori, um imperativo categórico. Uau! Eu não vejo isso, eu
vejo que vivo numa realidade, estou nela e não posso delegá-la. Como eu não posso evitar
que uma pedra do tamanho de um monte me esmagaria se colocada em minha cabeça.
Então, eu perguntaria ao Kant se quando está com fome ele prepara um hambúrguer ou
tudo isso não passa de formas a priori de sua super poderosa mente.
O mundo se encantou com a fragmentação da verdade, claro, através de toda a
operação gnóstica por séculos no ocidente, acabou parindo um Kant. Depois disto todos
podem criar um mundo, destruindo a realidade concreta, nua e crua. O kantismo é uma
operação de bruxaria, e não estou brincando. Há algo espiritual por traz disso, e me parece
bem óbvio. Ele destruiu o ocidente, pois sua filosofia enfeitiçou toda a comunidade científica,
criou monstros como o marxismo e o positivismo e todas as meta-narrativas posteriores.
Alçou vôos na matematização de todas as coisas e saltou o homem para o último grau da
autonomia.
Agora, não só cientistas e filósofos podem criar sua própria realidade, sendo o
demiurgo e se afastando totalmente do mundo real, todos podem fazê-lo, até mesmo
adolescentes, professorzinho de jardim de infância, cantor, burguês maconheiro e mãe
desnaturada. Basta colocar uma importância teleológica para dar um sentido objetivo para
aquilo. A busca pela felicidade. Hoje em dia, qualquer um pode destruir o real, e com o
poder da própria mente criar um mundo onde seja possível adequar-se ao encanto universal,
onde a pedra filosofal chamada felicidade será encontrada. Inclusão, tolerância, igualdade. O
que é a imensidão da natureza sublime perto disso? Não é o romancismo de um Constable,
um surrealismo de Salvador Dalí? No primeiro o homem domina a natureza com sua
vontade, no segundo já vive no mundo onde o sonho é a verdadeira realidade.
O ponto final e o último grau da autonomia do homem é a morte da própria razão. A
destruição da própria humanidade do homem. Um dos aspectos mais patentes da morte da
razão se dá pela chamada ideologia de gênero, onde o sentimento não apenas é soberana a
natureza (como o movimento romancista declarava), mas é superior à própria razão do
agente sensível e racional. O sentimento através da superposição a razão já não é capaz de
compreender o que é a si mesmo como parte da natureza, e natureza em si (pois natureza
nessa fase já não faz o mínimo sentido), e o sentimento como o delegado supremo daquilo
que a pessoa sensível deseja ser. A ideologia de gênero começou com gênero: mudar o corpo
para o sexo (a natureza) se alinhar com o gênero (sentimento). Agora, como era inevitável,
pode ser qualquer coisa. Um cachorro, a lua, um carrapato, uma árvore…
Uma menina, numa entrevista, foi perguntada se ela se arrependia de ter tirado a
própria visão. Ela respondeu, expressando a última etapa da autonomia do homem que é a
destruição de si mesmo: “não me arrependo, já que eu sinto que deveria ter nascido cega”.

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