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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC

ÉTICA EM ANTÍGONA

São Bernardo do Campo – SP


2021
A tragédia, gênero literário que surgiu na Grécia Antiga, traduz aspectos da experiência
humana até então despercebidos e marca uma etapa na formação do homem interior, do
homem como sujeito responsável (Vernant e Vidal-Naquet, 1977). O gênero possui dois
elementos principais: o coro, componente lírico, coletivo e anônimo, que exprime os temores,
os julgamentos e os sentimentos no decorrer da história, e os personagens, elementos
individualizados, que formam o centro do drama, por meio de suas atitudes e ações, as quais
são colocadas em questão diante do público. Dessa forma, a tragédia mostra um herói
problemático e, opõe o pensamento jurídico e social e as tradições míticas e heróicas (Vernant
e Vidal-Naquet, 1977). Diante desse contexto, três dramaturgos ganharam destaque: Ésquilo,
Eurípedes e Sófocles. Esse último será abordado com mais ênfase nos parágrafos seguintes.
Sófocles nasceu em Colono, cidade próxima à Atenas, por volta de 497 a.C., e viveu no
período áureo de Atenas, sob o governo Péricles. O dramaturgo era filho de um rico fabricante
de armaduras e fez parte da elite. Suas principais obras foram “Édipo Rei” e “Antígona”
(Frazão, 2020a). A tragédia de Sófocles tem como tema central o destino do protagonista, ou
seja, do herói problemático, que sofre e é questionado. Além disso, as histórias
caracterizam-se pela ênfase ao pensamento e a complexidade dos indivíduos, mostrando
dilemas, presentes em suas atitudes, sofrimentos, que decorrem de seus excessos, além de
tudo, apresentando o modo de atuação do destino na vida das personagens, e se destacam pela
determinação e poder que possuem, sendo dotadas de defeitos ou virtudes, que serão
apresentados na trama (Frazão, 2020a). Ao comparar os autores, nota-se certa diferença nos
temas de Sófocles e Ésquilo, que expressava em seus dramas a negação da culpa coletiva e o
direito de arbitrariedade e autonomia do homem perante os deuses e ao destino (Frazão,
2020b), e Eurípedes, humanizou os deuses em suas histórias, colocou em destaque a reflexão
interior do herói, e criou um “Deus ex machina”, isto é, um deus que surgia para solucionar
um conflito (Frazão, 2020c).
Além do âmbito temático, a tragédia de Sófocles também se destaca pela inovação na
questão do coro. Em Ésquilo, o coro tem grande intensidade, dialogando com o personagem
principal, e, também, possui um caráter mais estético, com uma linguagem afastada do
cotidiano grego (Menezes, 2007). Diferentemente de Ésquilo, ao desenvolver seus dramas
trágicos, Sófocles promoveu uma alteração nas características do coro, dando-lhe um caráter
mais suave e independente, com a função apenas de narrar e questionar a cena, sem dialogar
com nenhum personagem, ou seja, tornando-se um espectador ideal na história contada
(Menezes, 2007). Para completar, vale ressaltar que Eurípedes ampliou essa independência do
coro, visto que em suas tragédias tal elemento possui uma função apenas ocasional e indireta,
aparecendo sem nenhuma relação próxima com o decorrer da ação (Frazão, 2020c).
O gênero em debate apresentou diversas inovações para a civilização grega. Além de
ser uma nova forma de expressão, foi uma novidade na maneira de montar espetáculos,
trazendo outra forma de visão de mundo. Com base em mitos antigos e personagens heróicos,
a tragédia grega era uma forma de arte que representava a formação do homem, a
responsabilidade de suas atitudes, os dilemas que encontra, a dualidade de religiosidade e
estado, a moral e a virtude das ações do ser humano.
A tragédia traz à tona a imagem heroica do personagem principal, muito comum à
época. Porém, ao invés de o colocar como um modelo, este se torna alvo de indagações sobre
o comportamento do homem, questionamentos os quais partem do coro na tragédia, que
representa o pensamento dos espectadores. Este gênero possui um período curto de
permanência, onde seu surgimento e decaimento se encontraram em um espaço de tempo
correspondente a quase um século. Em seu princípio cabia a ideia de teatralização do herói,
por meio de um espetáculo voltado a cenas trágicas que traziam consigo o questionamento das
atitudes do herói, colocando em ênfase a esfera jurídica, que se via em desenvolvimento na
época. Essa inclusão da cena constitucional serve como um meio de disseminação desse
espectro, e serve como contraste para as atitudes do herói, que por muitas vezes deveria ser
submetido a um tribunal, recentemente imposto na época.
Nas tragédias, o julgamento de um tribunal não existe, pois é o que envolve o enredo
do personagem, este que se vê entre a autoridade em si própria e o julgamento divino, como é
no caso de Antígona, que por respeito ao divino e sua própria moralidade optou por enterrar
seu irmão a desobedecer ao rei. Esse tipo de escolha se torna o primeiro aspecto conflituoso
do gênero, pois o personagem se vê coagido a tomar uma decisão baseada em valores
totalmente ambíguos, onde não há o certo e o errado propriamente ditos. Além disso, a
própria desmistificação dos heróis foi um aspecto um tanto negativo, pois as lendas de cunho
religioso com protagonismo heroico representavam para a cidade tudo aquilo que deveriam
abominar, além de ter suas origens em linhagens reais.
Sua decadência se dá quando os autores de tragédia não se veem mais ligados às
tradições, escrevem suas obras baseados inteiramente em sua própria criatividade, cortando
esse laço com o passado e com a imagem dos heróis.
A tragédia Antígona retrata a história da personagem título na sua busca por um enterro
honroso para seu irmão Polinices, que morre em batalha contra seu outro irmão Etéocles e os
dois acabam por matar um ao outro em uma tentativa mal sucedida de invasão do povo de
Argos. Após isso, Creonte, tio dos mortos e rei de Tebas, proíbe o povo da cidade de velar o
corpo de Polinices por esse ser traidor de sua terra natal.
A Antígona como grande parte das tragédias clássicas está repleta de situações que
levam o espectador ou leitor a questionamentos éticos e morais. Pode-se perceber algumas
questões centrais, entre elas, o livre-arbítrio, o julgamento moral, a justiça, certo e o errado.
Para aprofundar essa discussão veja como exemplo o livre-arbítrio, que aparece em diversas
passagens, entre elas, está a decisão de Antígona de enfrentar o édito do Rei e realizar um
enterro honroso. A decisão de enfrentar Creonte pode ser considerada como um ato livre,
contudo a própria Antígona diz cumprir apenas seu destino amaldiçoado, outro ponto que é
apresentada a questão do livre arbítrio é em relação ao guarda que encontrar Creonte para
informar sobre a transgressão de Antígona, e vai no caminho do campo de batalha até o
palácio se questionado de seria melhor dar a notícia, não dá-la ou esperar que o Rei
descobrisse por terceiros e também se consola com o pensamento que seu destino está
definido. Isso ocorre porque as tragédias gregas defendem o determinismo das personagens,
porém isso não significa que esses textos não discutam as liberdades dos atos de suas
personagens.
Para alguns críticos, Antígona e Creonte partilham de algumas características, em
relação a forma que julgam o bem e o mal já que para Creonte tudo o que não é para o bem da
cidade é um ato errado e o cidadão que toma não o coloca o bem da cidade acima de suas
próprias necessidades merece punição, já que a sociedade é assegurada pela amizade cívica.
Antígona considera que todos os atos em defesa da família e dos mortos estão corretos
deixando de lado toda a relação com a pátria, chega a ser possível afirmar que se o texto
contasse apenas com Antígona não haveria sequer uma menção a cidade, apenas as relações
familiares seriam destacadas. Então os dois erram ao sobrepor família ou pátria ao em vez de
conciliar os dois.
Com isso o texto traz um embate entre sentimentos cívicos e familiares, já que dois
grandes personagens da trama defendem posições completamente opostas, porque Creonte
defende a pólis acima de tudo e Antígona defende a família. Na narrativa nenhuma das opções
se mostra viável, já que o embate desses dois sentimentos levou a morte de Antígona, Homôn.
e Tirésias, ambos filhos de Creonte, além do suicídio de Eurídice, nos parece claro que o autor
de forma indireta defende que o caminho não seria pelos extremos, mas por um caminho
conciliador entre os sentimentos cívicos e familiares.
O livro como já se pode ter percebido é composto de sentimentos duais, nesse quesito é
possível opor Antígona e sua irmã Ismênia em relação a Polinices, porque como já se é sabido
Antígona contesta o edito real e honra o corpo morto de seu irmão, enquanto Ismênia em um
sentimento frio se acanha e não se opõe ao Rei. Então seria errada Antígona por honrar o
irmão e trair a ordem cívica, ou manter em perfeita harmonia com a polis e desonrar o corpo
morto
do próprio irmão? O livro no seu desenvolvimento nos dá a entender que é mais importante
seguir as tradições do que um tirano, já que Ismênia acaba por se arrepender dos seus atos
frios. Outro ponto importante do livro é em relação às decisões no campo familiar e político
de Creonte, já que considerava que seu julgamento moral em relação ao que era o ideal para a
polis e seus cidadãos era o que deveria ser levado em conta e que aqueles que discordassem
dele eram inimigos do Estado e por isso merecedores de punição, já no campo familiar pouco
se importava com as relações familiares mas apenas com o sentimento de amizade cívica,
porém o final trágico revela todos os seus erros de julgamento e acaba por levantar uma
questão importante, será que os homens só conseguem perceber suas falhas de julgamento
quando não há mais solução? A tragédia não dá uma resposta clara, porém parece que sua
mensagem tende
ao sim, e assim todo o desenrolar da história pode servir como um exemplo a não ser seguido.
Para nós é indiscutível a tirania exercida por Creonte em Tebas e que Antígona está apenas se
rebelando contra esse poder autoritário, é notório que como esses personagens estão buscando
uma representação fiel da índole humana, eles apresentam erros e acertos. Esses erros e
acertos estão muito mais relacionados ao campo da ética, mas achamos justo o desrespeito aos
atos de Antígona, porque nenhum cidadão está obrigado a seguir um ato autoritária que se
opõe às suas tradições e essa sobreposição do sentimento familiar em detrimento da polis é
justa contra um tirano. E que Antígona foi a única com força de enfrentar esse Estado
corrompido, porém esse enfrentamento acabou por ocasionar a sua morte.
Ao trazer a obra à contemporaneidade, é possível decretar a impossibilidade da
existência longeva de um Estado com um governador aos moldes de Creonte, pois a partir do
momento em que uma nação rasga a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ela tende a
fracassar, e Creonte, ao rasgá-la algumas vezes, fracassaria o mesmo tanto de vezes.
Não respeitar a isonomia ao julgar Polinices e Etéocles de formas distintas (infame x
herói, traidor x justo), nem o luto de Antígona ao cercear suas liberdades individuais, poriam o
rei de Tebas como uma ameaça à democracia, logo, ditador a ser combatido, e Antígona como
posto da representação da liberdade individual e luta pelos direitos.
O heroísmo de Antígona merece destaque, e sua bravura oposicionista fiel às suas
convicções tradicionais sem se importar com o julgamento e punição do rei, dá a credibilidade
necessária para se manter como símbolo ainda nos dias de hoje, e, apesar de seu passado
amargo, não merece ser resumida à uma "maldição familiar", pois é convencional dizer que o
ser tem liberdade de definir seu futuro através do livre-arbítrio, abandonando o passado.

BIBLIOGRAFIA

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MENEZES, Renan Figueiredo. Ésquilo, Sófocles e Eurípedes: um caminhar do gênero
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