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Mestranda em Estudos Literários Aplicados pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS.
Bolsista do CNPq. E-mail: francinebp10@gmail.com
1 Introdução
E tu morreste excomungado:
Non o quiseste dizer.
Esperavas de viver;
Calaste dous mil enganos.
Tu roubaste bem trint’anos
O povo com teu mester. (VICENTE, 2005, p. 39).
Com relação à cobiça, em Auto da Compadecida a crítica se
dirige em especial aos membros da igreja, prontos a bajular e
fazer as vontades dos mais ricos, sempre tendo em vista
alcançar benefícios pessoais. É assim quando João Grilo pede
ao Padre para dar à benção a um cachorro que está morrendo. A
princípio o Padre reluta por saber pelas regras eclesiais que não
é permitido dar bênçãos a cachorros moribundos, porém,
quando João Grilo, mentindo, lhe revela que o dono do cachorro
é Antônio Morais, homem de posses, a atitude do Padre muda
completamente:
PADRE
E o dono do cachorro de quem vocês estão falando é
Antônio Morais?
JOÃO GRILO
É. Eu não queria vir, com medo de que o senhor se
zangasse, mas o major é rico e poderoso e eu trabalho
na mina dele. Com medo de perder meu emprego, fui
forçado a obedecer, mas disse a Chicó: o padre vai se
zangar.
PADRE, desfazendo-se em sorrisos
Zangar nada, João! Quem é um ministro de Deus para
ter direito de se zangar? Falei por falar, mas também
vocês não tinham dito de quem era o cachorro!
(SUASSUNA, 1978, p. 33-34).
JOÃO GRILO
Está esquecido da exploração que eles fazem conosco
naquela padaria do inferno? Pensam que são o cão só
porque enriqueceram, mas um dia hão de me pagar. E a
raiva que eu tenho é porque quando estava doente, me
acabando em cima de uma cama, via passar o prato de
comida que ela mandava para o cachorro. Até carne
passada na manteiga tinha. Para mim nada, João Grilo
que se danasse. Um dia me vingo. (SUASSUNA, 1978, p.
39).
Em Auto da barca do inferno, a crítica à injustiça praticada
pelos mais poderosos contra os subordinados é feita
diretamente pelo Diabo, já em A Compadecida é o próprio afetado
com a prepotência dos ricos que faz a acusação, reforçada mais
tarde no julgamento pelo Encourado e ratificada pelo próprio
Manuel (Jesus Cristo). Dessa forma, a desaprovação das más
condutas novamente vai de encontro com aquilo que é
condenado pela moral cristã e está explicitado na Bíblia: “Eis
que o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos
e que vós, desonestamente, deixastes de pagar está clamando
por justiça; e tais clamores chegaram aos ouvidos do Senhor
dos Exércitos”. (BÍBLIA, Tiago, 5,4)
A crítica moralizante é, pois, uma característica
fundamental do tradicional teatro medieval, do qual Gil Vicente
foi precursor. Ariano Suassuna, por sua vez, resgata essa
tradição, inserindo no seu auto contornos da cultura local
brasileira e trazendo à tona os costumes simples do povo
nordestino.
Destaca-se, assim, uma abordagem pautada na visão de
mundo cristã, em que os valores exaltados são a humildade, a
generosidade, a caridade, o serviço ao próximo, e os (contra)
valores reprovados são a arrogância, a cobiça, a
autossuficiência e a indiferença às necessidades do outro. Seja
nos membros da igreja ou nos indivíduos leigos, há uma clara
denúncia da contradição existente entre o modo de vida dos
que se dizem cristãos com a doutrina cristã. Assim, para que
esta abordagem ganhe ares de entretenimento, os autores não
se esquivam de fazer uso do humor como melhor meio para pôr
em vista os maus costumes da sociedade.
4 A linguagem satirizada e a denúncia da “justiça” humana e do
preconceito
SACRISTÃO
Sé é assim, vamos ao enterro (João Grilo estende a mão a
Chicó, que a aperta calorosamente). Como se chamava o
cachorro?
MULHER, chorosa
Xaréu.
SACRISTÃO, enquanto se encaminha para a direita em
tom de canto gregoriano.
Absolve, Domine, animas omnium fidelium defunctorum
ab omni vinculi delictorum.
TODOS
Amém. (SUASSUNA, 1978 p. 70-71).
MANUEL
Muito obrigado João, mas agora é a sua vez. Você é
cheio de preconceitos de raça. Vim hoje assim de
propósito, porque sabia que isso ia despertar
comentários. Que vergonha! Eu Jesus, nasci branco e
quis nascer judeu, como podia ter nascido preto. Para
mim, tanto faz um branco como um preto. Você pensa
que eu sou americano para ter preconceito de raça?
(SUASSUNA, 1978, p. 149).
5 Conclusão
REFERÊNCIAS