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A SÁTIRA SOCIAL E A CRÍTICA MORALIZANTE NOS

AUTOS DE GIL VICENTE E ARIANO SUASSUNA: UMA


COMPARAÇÃO ENTRE AUTO DA BARCA DO INFERNO
E AUTO DA COMPADECIDA

Francine Bystronski Puchalski1


Prof. or: Antônio Marcos Vieira Sanseverino

RESUMO: O objetivo deste trabalho é estabelecer relações intertextuais entre


as obras de teatro Auto da barca do inferno (1517), do português Gil Vicente e
Auto da Compadecida (1955), do brasileiro Ariano Suassuna. Tais obras
oferecem uma visão dicotômica do mundo, que se baseia na oposição entre
o bem e o mal, tendo como pano de fundo um cenário marcado pela fé cristã.
Considerando as perspectivas de Moreira (2005) e Magaldi (2004) sobre as
peças, será realizada, primeiramente, uma análise das personagens,
ressaltando a crítica moralizante que os autores operam através de suas
características e personalidades. A seguir, serão feitas considerações sobre
a sátira social, destacando de que maneira a linguagem é um fator
importante para a compreensão do elemento satírico nos autos. Dessa
forma, ao propor um diálogo entre as peças, busca-se constatar quais são os
principais vícios condenados e virtudes louvadas, a fim de situar o contexto
religioso em que baseiam as obras, percebendo suas diferenças e
semelhanças.

PALAVRAS-CHAVE: Auto da barca do inferno, Auto da Compadecida, Sátira.

RESUMEN: El objetivo de este trabajo es establecer relaciones intertextuales


entre las obras de teatro Auto da barca do inferno (1517), del português Gil
Vicente y Auto da Compadecida (1955), del brasileño Ariano Suassuna. Tales
obras ofrecen una visión dicotómica del mundo, que se basa en la oposición
entre el bien y el mal, teniendo como plano de fondo un escenario marcado
por la fe cristiana. Al considerar las perspectivas de Moreira (2005) y Magaldi
(2004), sobre las piezas, en primer lugar será realizado un análisis de los
personajes, señalando la moraleja crítica que los autores cumplen por medio
de sus características y personalidades. Luego, serán hechas
consideraciones sobre la sátira social, subrayando cómo el lenguaje es un
aspecto importante para la comprensión del elemento satírico en los autos.
De esa manera, al proponer un diálogo entre las piezas, buscamos constatar
cuáles son los principales vicios condenados y virtudes alabadas, con el fin
de situar el contexto religioso en que se basan las obras, percibiendo sus
diferencias y semejanzas.

PALABRAS-CLAVE: Auto da barca do inferno, Auto da Compadecida, Sátira.

1
Mestranda em Estudos Literários Aplicados pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS.
Bolsista do CNPq. E-mail: francinebp10@gmail.com
1 Introdução

As relações entre Auto da barca do inferno e Auto da


Compadecida partem certamente da influência que Ariano
Suassuna colheu do teatro vicentino, expoente do gênero em
Portugal na Idade Média. O auto é a composição que dá forma a
uma linguagem popular de temas religiosos ou profanos,
criticando as más condutas dos seres humanos de uma dada
sociedade, e propondo como solução uma mudança na atitude
moral. Com relação aos autos de Gil Vicente e Suassuna, o
núcleo do enredo é o julgamento particular dos personagens
após a morte.
No primeiro auto, os personagens representam
determinados tipos sociais, tendo um significado alegórico, por
outro lado, os personagens do segundo auto, apesar de
representarem certas camadas da sociedade, possuem traços
de personalidade mais particulares, ainda que sua
caracterização muitas vezes se aproxime da caricatura.
Ao destacar as diferenças e semelhanças dos autos no
plano das personagens, do enredo, das soluções, das críticas e
da visão moral, o intuito analisa-las não de forma isolada, mas
estabelecendo um diálogo que possibilite compreender melhor
as obras ao contemplá-las conjuntamente nas suas relações.

2 A pluralidade de tipos sociais e humanos representados

Em Auto da barca do inferno, o Anjo e o Diabo esperam, em


uma barca, os recém-mortos que serão levados ou ao Paraíso,
ou ao Inferno. A história se inicia com a figura do Fidalgo,
representante da nobreza e acusado de tirania e arrogância, e
se segue com mais uma fila de personagens, todos na sua
maioria condenados ao inferno por diversos motivos: o
Onzeneiro, avaro e cobiçoso; o Sapateiro, igualmente cobiçoso;
o Frade e sua amante, hipócrita e luxurioso; a Alcoviteira
Brísida Vaz, mentirosa, feiticeira e corruptora de jovens; o
Judeu, avaro e negocista; o Corregedor e Procurador,
fraudulentos e corruptos; e o Enforcado, ladrão.
Os únicos levados diretamente à Barca da Glória são os
Quatro Cavaleiros Cruzados, elevados aos céus por sua valentia
na defesa da fé cristã. Outro personagem que vai para a Barca
da Glória é o Parvo Joane, indivíduo simples e inocente,
considerado pelo Diabo como “inapto” para o inferno. Desse
quadro multifacetado de tipos sociais, comenta Tutikian (2005,
p. 12-13) na introdução ao auto de Gil Vicente:

A psicologia de suas personagens é uma psicologia de


grupo social que as transforma em tipos
transindividuais; elas são caricaturais sem perder a
força da presença, com as noções lógicas das coisas
naturais, e são portadoras da mentalidade e do
comportamento dos grupos que representam.

Seguindo o estilo do dramaturgo português, Ariano


Suassuna também cria personagens que refletem uma psique de
conjunto social, no entanto, algumas figuras possuem
características singulares, tais como João Grilo e Chicó. Com
sua astúcia para criar situações inusitadas, João Grilo será o
condutor dos acontecimentos da peça. Além do teatro
vicentino, a obra colheu referências de romances populares do
nordeste, tais como O Enterro do Cachorro e a História do cavalo que
Defecava Dinheiro. É a partir desses romances que os dois
primeiros atos da peça se desenrolam, com João Grilo armando
e improvisando circunstâncias para “vingar-se” dos patrões, que
não foram capazes de lhe prestar solidariedade quando estava
doente, além de explorá-lo no trabalho.
No decorrer da peça, vão surgindo as figuras do Padeiro e
da Mulher, denunciados no julgamento por avareza e adultério,
respectivamente; do Padre, do Sacristão e do Bispo, sempre
interessados no dinheiro e na posição social dos mais
abastados; além das figuras de Antônio Morais, homem rico da
região; do Frade, homem reto e piedoso; e dos salteadores
Severino e Cangaceiro, assassinos e ladrões. Por fim, após a
morte de todos personagens por Severino e o Cangaceiro
(também mortos), com exceção de Chicó e do Frade, surgem no
julgamento Jesus Cristo (chamado Manuel pelo Demônio); o
Encourado (Demônio) e a Virgem Maria (A Compadecida). Nesse
sentido, Magaldi (2004, p. 239) revela que:

A estrutura de A Compadecida está de acordo com


esse espírito de improvisação. As personagens, se são
necessárias ao desenvolvimento da trama, sucedendo-
se com uma lógica irrepreensível, dão a impressão de
que surgem à mercê dos acontecimentos, isto é, são
chamadas a participar da ação, pois, do contrário, ela
não prosseguiria.

Diferentemente do auto de Gil Vicente, o desenvolvimento


da personalidade das figuras do Auto da Compadecida possui
maior aprofundamento, pois seus comportamentos morais são
justificados, no momento do julgamento, por sentimentos
psicológicos mais complexos do que a simples aparência
sugere, e são revelados pela compaixão da advogada (Virgem
Maria) diante dos pecadores que pedem misericórdia.
Dessa forma, o Bispo, o Padre e o Sacristão, apesar de
serem acusados pelo Encourado de arrogância, preguiça e
hipocrisia, tem suas faltas atenuadas pelos sentimentos de
medo da morte, do sofrimento, da fome. Já o Padeiro, apesar de
ser avaro e de ter tratado mal a Mulher, possuía o medo da
solidão, e a Mulher, sendo adúltera, justifica que assim o fazia
por ser maltratada pelo marido. Severino e o Cangaceiro,
mesmo sendo assassinos, são desculpados pela Virgem Maria
por terem enlouquecido depois de perderem suas famílias.
Todos, dessa forma, pela intercessão da Compadecida,
conseguem ir para o purgatório. João Grilo, por sua vez, tem
como justificativas para sua atitude de vingança a exploração
que sofria dos patrões, conseguindo a graça de voltar a viver,
com a promessa de emendar-se.

3 A crítica à cobiça e à exploração dos pobres

Tendo repassado alguns elementos importantes das


peças, cabe destacar de que forma os autores se valeram da
crítica moralizante em suas obras. Ao analisar o
comportamento pelo qual algumas personagens são julgadas,
percebe-se que um vício em particular se sobressai e aparece
com mais frequência no decorrer das obras: a cobiça, a
ambição desmedida pelo dinheiro.
No auto de Gil Vicente são cinco os personagens que
entram na barca do inferno por sua ambição: o Onzeneiro, o
Sapateiro, o Corregedor, o Procurador e o Judeu. Já no auto de
Suassuna encontram-se personagens sempre interessadas em
lucro financeiro, tais como o Padre, o Sacristão, o Bispo, e o
Padeiro e sua Mulher.
Assim, em ambas as obras aparece a crítica dos costumes
sociais em que a busca excessiva pelos bens materiais torna-se
o centro da existência. Tendo a moral cristã como parâmetro de
conduta, pode-se dizer que a desaprovação diante dessa atitude
transparece as palavras de Jesus Cristo no Evangelho segundo
São Lucas: “Nenhum servo pode servir a dois senhores: ou há de
odiar a um e amar o outro, ou há de aderir a um e desprezar o
outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro”. (BÍBLIA, Lucas,
16, 13).
Da mesma forma e juntamente a essa crítica do apego às
riquezas, surge a questão da exploração do mais pobre,
igualmente motivo de condenação eterna. A figura do Fidalgo, o
primeiro a entrar na barca do inferno, é culpado justamente por
haver ignorado os mais necessitados e ter agido com
prepotência, presunção e arrogância. Assim revela o Diabo no
seu julgamento:

Vós ireis mais espaçoso


Com fumosa senhoria,
Cuidando na tirania
Do pobre povo queixoso;
E porque, de generoso
Desprezastes os pequenos,
Achar-vos-eis tanto menos
Quanto mais fostes fumoso. (VICENTE, 2005, p. 26).

A mesma falta é denunciada pelo Diabo no


comportamento do Corregedor, que por ser corrupto, fazia mal
uso das suas funções aproveitando-se de sua condição. O
personagem é julgado justamente por ter omitido ao confessor
essa falta: “Eu mui bem me confessei, mais tudo quanto roubei
encobri ao confessor” (VICENTE, 2005, p. 61-62). Igualmente o
Sapateiro, motivado por sua cobiça, é acusado pelo Diabo de
ser ladrão do povo:

E tu morreste excomungado:
Non o quiseste dizer.
Esperavas de viver;
Calaste dous mil enganos.
Tu roubaste bem trint’anos
O povo com teu mester. (VICENTE, 2005, p. 39).
Com relação à cobiça, em Auto da Compadecida a crítica se
dirige em especial aos membros da igreja, prontos a bajular e
fazer as vontades dos mais ricos, sempre tendo em vista
alcançar benefícios pessoais. É assim quando João Grilo pede
ao Padre para dar à benção a um cachorro que está morrendo. A
princípio o Padre reluta por saber pelas regras eclesiais que não
é permitido dar bênçãos a cachorros moribundos, porém,
quando João Grilo, mentindo, lhe revela que o dono do cachorro
é Antônio Morais, homem de posses, a atitude do Padre muda
completamente:

PADRE
E o dono do cachorro de quem vocês estão falando é
Antônio Morais?
JOÃO GRILO
É. Eu não queria vir, com medo de que o senhor se
zangasse, mas o major é rico e poderoso e eu trabalho
na mina dele. Com medo de perder meu emprego, fui
forçado a obedecer, mas disse a Chicó: o padre vai se
zangar.
PADRE, desfazendo-se em sorrisos
Zangar nada, João! Quem é um ministro de Deus para
ter direito de se zangar? Falei por falar, mas também
vocês não tinham dito de quem era o cachorro!
(SUASSUNA, 1978, p. 33-34).

Desfeita a confusão armada por João Grilo e a descoberta


de que o cão era do Padeiro e da Mulher, novamente João Grilo
apela, dessa vez à ambição do sacristão, ao alegar que o
animal, já morto, deixou um testamento com a condição de que
fosse enterrado “em latim”. Os três religiosos (Sacristão, Padre
e Bispo) reagem da mesma maneira ao tomarem conhecimento
do lucro que poderiam obter:

SACRISTÃO, enxugando uma lágrima


Que animal inteligente! Que sentimento nobre!
(Calculista) E o testamento? Onde está? (SUASSUNA,
1978, p. 64).
PADRE
Que cachorro inteligente! Que sentimento nobre!
(SUASSUNA, 1978, p. 67).
BISPO
É por isso que vivo dizendo que os animais também são
criaturas de Deus. Que animal interessante! Que
sentimento nobre! (SUASSUNA, 1978, p. 85).

Cabe destacar, nesse sentido, a forma cômica com que a


crítica moralizante é operada em Auto da Compadecida, seja pelos
elementos envolvidos nas confusões tramadas por João Grilo
(cão-defunto com exéquias solenes, gato que “descome”
dinheiro, etc.), seja pelas reações dos personagens, que não
cuidam em disfarçar seus próprios interesses e defeitos de
caráter. Apesar da cobiça dos membros da igreja ser um
assunto em si mesmo grave, em A Compadecida a forma de
denunciar este problema é através do riso, da ausência de
seriedade.
Semelhantemente, a denúncia que João Grilo faz da
exploração que sofre de seus patrões ganha contornos de
comédia, levando-se em conta a forma com que o personagem
busca vingar-se. Sabendo da importância que os patrões dão ao
lucro e do apego da mulher do Padeiro por animais, João Grilo
inventa a história do gato que “descome” dinheiro e consegue
vendê-lo por um preço alto à patroa. Por trás das mentiras e das
confusões que cria, João Grilo se justifica, respondendo a
Chicó:

JOÃO GRILO
Está esquecido da exploração que eles fazem conosco
naquela padaria do inferno? Pensam que são o cão só
porque enriqueceram, mas um dia hão de me pagar. E a
raiva que eu tenho é porque quando estava doente, me
acabando em cima de uma cama, via passar o prato de
comida que ela mandava para o cachorro. Até carne
passada na manteiga tinha. Para mim nada, João Grilo
que se danasse. Um dia me vingo. (SUASSUNA, 1978, p.
39).
Em Auto da barca do inferno, a crítica à injustiça praticada
pelos mais poderosos contra os subordinados é feita
diretamente pelo Diabo, já em A Compadecida é o próprio afetado
com a prepotência dos ricos que faz a acusação, reforçada mais
tarde no julgamento pelo Encourado e ratificada pelo próprio
Manuel (Jesus Cristo). Dessa forma, a desaprovação das más
condutas novamente vai de encontro com aquilo que é
condenado pela moral cristã e está explicitado na Bíblia: “Eis
que o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos
e que vós, desonestamente, deixastes de pagar está clamando
por justiça; e tais clamores chegaram aos ouvidos do Senhor
dos Exércitos”. (BÍBLIA, Tiago, 5,4)
A crítica moralizante é, pois, uma característica
fundamental do tradicional teatro medieval, do qual Gil Vicente
foi precursor. Ariano Suassuna, por sua vez, resgata essa
tradição, inserindo no seu auto contornos da cultura local
brasileira e trazendo à tona os costumes simples do povo
nordestino.
Destaca-se, assim, uma abordagem pautada na visão de
mundo cristã, em que os valores exaltados são a humildade, a
generosidade, a caridade, o serviço ao próximo, e os (contra)
valores reprovados são a arrogância, a cobiça, a
autossuficiência e a indiferença às necessidades do outro. Seja
nos membros da igreja ou nos indivíduos leigos, há uma clara
denúncia da contradição existente entre o modo de vida dos
que se dizem cristãos com a doutrina cristã. Assim, para que
esta abordagem ganhe ares de entretenimento, os autores não
se esquivam de fazer uso do humor como melhor meio para pôr
em vista os maus costumes da sociedade.
4 A linguagem satirizada e a denúncia da “justiça” humana e do
preconceito

Entendida como composição literária que ironiza e


ridiculariza os defeitos e erros, a sátira atinge todos os
membros da sociedade retratados nos dois autos, não
importando a condição social que ocupam. Para compreender
melhor a forma com que o elemento satírico se manifesta, é
interessante observar a linguagem utilizada por alguns
personagens, que revelam as hipocrisias, as mentiras e
injustiças que se escondem sob a capa de formalismos.
No caso de Auto da barca do inferno, a linguagem do Parvo
Joane, repleta de expressões populares chulas do português
arcaico da época, ironiza o palavreado empolado dos outros
membros “ilustres” que vão ao inferno, como o Fidalgo.
Enquanto os condenados tentam negociar com o Diabo, o Parvo,
ao perceber-se na presença do inimigo, solta-lhe uma série de
impropérios, que partem de sua espontaneidade e falta de
malícia:
Pero Vinagre, beiçudo,
Rachador d’Alverca, huhá!
Çapateiro da Candosa!
Antrecosto de carrapato (...)
Furta-cebola! Hiu! Hiu!
Escomungado nas erguejas! (VICENTE, 2005, p. 36).

Por outro lado, a fala da alcoviteira esconde as suas


intenções tortas, que são apresentadas de forma bonita e
aparentemente com finalidades justas. Ao tentar argumentar
com o Diabo, a mulher alega ter conseguido orientar várias
moças para o que ela considera como o bom caminho. A fala
particular do tipo social das alcoviteiras é caracterizada pelos
termos “meu amor”, “minhas boninas”:
Passai-me, por vossa fé,
meu amor, minhas boninas
olho de perlinhas finas
E eu som apostolada, angelada e martelada
E fiz cousas mui divinas
Santa Úrsula nom converteo
Tantas moças como eu:
Todas salvas polo meu
Que nenhuma se perdeo.
E aprouve Àquele do Ceo
Que todas acharam dono. (VICENTE, 2005, p. 51).

Percebe-se, por esse trecho, que a personagem considera


como um bem a prostituição das jovens, sendo o seu trabalho
como alcoviteira algo “divino”. Assim, o uso da ironia revela a
inversão de valores que forma o pensamento e a fala da
personagem, alvo de sátira pelas escolhas de linguagem do
autor. Moreira (2005, p. 47) destaca como Gil Vicente alcança
esse processo em Auto da barca do inferno:

A sua arma de combate às deformações sociais e a


estratégia de moralização dos costumes é a sátira
mordaz, a ironia refinada, o uso da caricatura e a força
dramática que emprestava às suas personagens. A
verdade embutida na zombaria, a denúncia disfarçada
de sátira, a censura sob a sutileza do gracejo foram as
fórmulas mágicas encontrada pelo autor para despertar
a consciência entorpecida dos seus contemporâneos
para o desconcerto moral que punha em decadência os
bons costumes e a própria sociedade.

A ironia perpassa todo o auto vicentino e se torna mais


evidente quando entra a figura do Corregedor, latinista
acostumado a expor suas ideias sempre no idioma
característico de seu ofício. A linguagem torna-se o instrumento
pelo qual se vai operar a zombaria contra as figuras sisudas e
respeitáveis do alto escalão da sociedade, que se valem da sua
posição social e de sua suposta sabedoria para praticar a
corrupção. De forma irônica e debochada, o Diabo mistura ao
português um latim improvisado no diálogo com o Corregedor, a
fim de expor seus vícios. É uma das passagens em que a
comicidade está mais presente na peça:

Et vobis quoque cum ea,


Não temuistis Deus.
A largo modo adquiristis
Sanguinis laboratorum,
Ignorantes peccatorum. (VICENTE, 2005, p. 59)

O Parvo também entra na cena e se insere no diálogo,


fazendo uso do latim de forma livre e totalmente inexata, com
termos como “rapinastis coelhorum” e “embarquetis in
zambuquis” (p. 63). Dessa forma, na condenação da conduta do
Corregedor, satiriza-se o pedantismo e academicismo, e a
hipocrisia fica descoberta pela boca do povo simples,
representado na figura do Parvo, que se apropria da linguagem
dos poderosos para ridicularizá-la.
O mesmo tom irônico com que é tratado o latim em Auto da
barca do inferno aparece também em A Compadecida, no episódio
do enterro do cão do Padeiro e da Mulher, realizado pelo
Sacristão. Nesse caso, aquilo que é formal é utilizado para um
fim corriqueiro, e o latim torna-se pretexto para a sátira
direcionada à ambição do Padre e do Sacristão, prontos a
recorrerem à língua latina fora de seu contexto para alcançar
seus objetivos financeiros. Essa total desvinculação entre o
contexto corrente de uso da língua (celebrações religiosas e
eventos solenes) e entre um evento cotidiano e vulgar (o
enterro de um cão) é o que proporciona o efeito cômico do
incidente:

SACRISTÃO
Sé é assim, vamos ao enterro (João Grilo estende a mão a
Chicó, que a aperta calorosamente). Como se chamava o
cachorro?
MULHER, chorosa
Xaréu.
SACRISTÃO, enquanto se encaminha para a direita em
tom de canto gregoriano.
Absolve, Domine, animas omnium fidelium defunctorum
ab omni vinculi delictorum.
TODOS
Amém. (SUASSUNA, 1978 p. 70-71).

Outro elemento alvo da sátira é a imperfeição da justiça


humana diante da justiça divina. O Jesus retratado por
Suassuna, assim como a Virgem Maria, não gosta de
formalismos e sim de quem se dirige a Ele de maneira franca e
simples. Durante o julgamento dos personagens, Manuel (Jesus)
fala de modo irônico a João Grilo: “Deixe de chicana João, você
pensa que isso aqui é o palácio da justiça?” (SUASSUNA, 1978,
p. 162). É também o próprio Jesus quem denuncia o preconceito
racial, ao aparecer como “preto retinto” aos acusados:

MANUEL
Muito obrigado João, mas agora é a sua vez. Você é
cheio de preconceitos de raça. Vim hoje assim de
propósito, porque sabia que isso ia despertar
comentários. Que vergonha! Eu Jesus, nasci branco e
quis nascer judeu, como podia ter nascido preto. Para
mim, tanto faz um branco como um preto. Você pensa
que eu sou americano para ter preconceito de raça?
(SUASSUNA, 1978, p. 149).

Dessa forma, através das pilhérias feitas por Manuel, são


explicitados problemas graves como a incompetência e
inabilidade da “justiça” operada pelos políticos, assim como o
racismo dos “americanos” que, no entanto, se encontra
arraigado nas mentes até dos mais simples, como João Grilo,
pobre e trabalhador.
Levando-se em conta que o espaço em que ocorre a peça
é uma cidade do nordeste do Brasil, pode-se dizer que a sátira,
apesar de dirigir-se a quaisquer falhas e preconceitos humanos,
tem como alvo a sociedade brasileira, em que não falta o
elemento da corrupção na ação da “justiça” e em que o
problema do preconceito ainda é bastante presente.
Por fim, no que diz respeito à Providência Divina nas duas
peças, é interessante destacar uma diferença bastante
essencial no seu modo de ação no que toca o julgamento das
personagens. Em Auto da Barca do Inferno, o que prevalece é a
justiça, que repele os maus e acolhe os bons, enquanto em Auto
da Compadecida, a ênfase está na misericórdia, e no papel da
Virgem Maria como intercessora.
Na obra vicentina, o Anjo e o Diabo aparecem como figuras
alegóricas e há distanciamento das personagens com relação a
Deus. O mesmo não ocorre em A Compadecida. Aqui, Jesus
aparece na figura de um preto, e a Virgem Maria surge para ser
a “advogada” dos pecadores. Assim, enquanto em uma peça
predomina uma visão mais fria e afastada dos seres celestiais,
na outra a proximidade praticamente familiar de Jesus e Maria
aos personagens reflete a mentalidade sincera e espontânea do
povo do nordeste brasileiro.

5 Conclusão

A crítica moralizante em Auto da barca do inferno e Auto da


Compadecida transparece nas duas peças a partir da visão
religiosa que dita a conduta moral da sociedade, e da qual os
autores se valeram para condenar os vícios e exaltar as
virtudes dos tipos sociais e indivíduos representados. Os males
reprovados que ganham maior ênfase são a cobiça e o apego às
riquezas, que tem por consequência a tirania e exploração dos
mais pobres. Ainda que tratado de forma cômica, o conteúdo da
crítica tem por objetivo levar o público a uma tomada de
conscientização diante de seus desvios de caráter.
A sátira social, por sua vez, tem como principal
instrumento a linguagem, meio pelo qual são denunciados os
vícios e expostas as hipocrisias das personagens. Da mesma
forma, a ironia com relação às instituições e mentalidades
humanas são descobertas pela figura de Jesus, provocando no
leitor/espectador ao mesmo tempo riso e reflexão,
entretenimento e aprendizagem. Assim, conjugando elementos
humanos e divinos, burlescos e sérios, formais e corriqueiros,
os autos de Gil Vicente e Ariano Suassuna não perdem sua
atualidade, pois têm o mérito de apresentar as constantes lutas
entre o bem e o mal que existe dentro de cada indivíduo,
valendo-se de uma comicidade palpitante, sempre capaz de
conquistar novos leitores/espectadores no decorrer das
gerações.

REFERÊNCIAS

BÍBLIA. N. T. In: BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada: contendo o


antigo e o novo testamento. Tradução dos originais grego,
hebraico e aramaico mediante a versão dos monges. São Paulo:
Ave-Maria, 2010.

MOREIRA, C. Zenóbia. Humor e crítica no teatro de Gil Vicente. Natal:


RN Econômico Gráfica e Editora, 2005.

MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. São Paulo: Global,


2004.

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir,


1978.

VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno. Porto Alegre: L&PM, 2005.

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