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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

DOUGLAS BATISTA DE MENEZES

A DENÚNCIA MORAL NA OBRA DE GIL VICENTE


UMA ANÁLISE DO AUTO DA BARCA DO INFERNO

Rio de Janeiro
2015.2
UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

DOUGLAS BATISTA DE MENEZES


Matrícula: 113070029

A DENÚNCIA MORAL NA OBRA DE GIL VICENTE


UMA ANÁLISE DO AUTO DA BARCA DO INFERNO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


Universidade Cândido Mendes como requisito
parcial a aprovação na disciplina TCC,
ministrada pelo (a) Professor (a): Nilo Gomes.

Orientador (a): Nilo Gomes.

Rio de Janeiro
2015.2
Nome: Douglas Batista de Menezes
Matrícula: 113070029

A DENÚNCIA MORAL NA OBRA DE GIL VICENTE


UMA ANÁLISE DO AUTO DA BARCA DO INFERNO

Monografia apresentada à Universidade


Cândido Mendes como requisito para a
aprovação na disciplina Trabalho de Conclusão
de Curso Ministrada pelo (a) Professor (a): Nilo
Gomes.

Nota:_____ Data:__/__/____.

_______________________________________________

Professor (a):______________________

_______________________________________________

Professor (a):______________________
Às minhas mães, Maria das Neves e
Jonice (in memoriam), por nunca
desistirem de mim.
AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar agradeço a Deus por permitir que eu chegasse até aqui e não
desanimasse, mesmo nos momentos de adversidade em que pensei que não
conseguiria.
À minha mãe, Maria das Neves, mulher de fibra, pela incessante cobrança e firmeza.
À minha família, pelo apoio prestado por minhas irmãs sempre que necessário.
Ao professor Nilo Gomes, orientador desta pesquisa, pela paciência, dedicação e
orientação precisa.
A José Augusto Cardoso Bernardes, Professor Catedrático da Faculdade de Letras
de Coimbra, por fornecer materiais essenciais para a pesquisa.
À professora Sueli Alves, apaixonada por literatura portuguesa que forneceu ajuda
bibliográfica para esta pesquisa.
À Universidade Cândido Mendes pelo aprendizado ao longo desses anos de
graduação.
Aos colegas do curso de Letras pela ajuda e companheirismo nessa caminhada.
"A consciência é o melhor livro de moral e o
que menos se consulta."

(Blaise Pascal)
A DENÚNCIA MORAL NA OBRA DE GIL VICENTE
UMA ANÁLISE DO AUTO DA BARCA DO INFERNO

Douglas Batista de Menezes

RESUMO

Esta pesquisa analisa a concepção de moralidade na Idade Média e retrata os desvios


de conduta por parte dos membros do clero, da nobreza e das demais classes sociais.
Contextualiza o momento histórico em que Gil Vicente escreveu o Auto da Barca do
Inferno assim como também apresenta o Humanismo, movimento literário do qual o
dramaturgo fez parte. Expõe uma breve biografia do autor e as características do
teatro vicentino. Sobre a obra, há uma síntese que mostra a história e os personagens
alegóricos da peça. O trabalho é finalizado com a investigação da denúncia moral
presente na obra de Gil Vicente, apresentando os personagens e tipos sociais
propostos pelo autor, mostrando sua insatisfação com as atitudes portuguesas de sua
época. O dramaturgo português condenava o pecado e não o pecador.

Palavras-chave: Gil. Vicente. Teatro. Humanismo. Moral.

ABSTRACT

This research analyzes the conception about morality in the Middle Ages and shows
misconduct by the clergy, the nobility and the other social classes. Contextualizes the
historical moment wherein Gil Vicente wrote the Auto da Barca do Inferno as shows
the Humanism, a literary movement from which the playwright was part. Exposes a
brief biography of the author and the Vincentian theater features. On the work, there is
a summary that shows the history and allegorical characters in the play. The work ends
with the investigation of moral denunciation present in the work of Gil Vicente,
introducing the characters and social types proposed by the author, showing their
dissatisfaction with the Portuguese attitudes of his time. The portuguese playwright
condemned the sin and not the sinner.

Key Words: Gil. Vicente. Theater. Humanism. Moral.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO…………………………………………………………............................09

CAPÍTULO I - O PANORAMA HISTÓRICO PORTUGUÊS NA ERA MEDIEVAL.....10

CAPÍTULO II - ATIVIDADES CULTURAIS E INTELECTUAIS..................................13

CAPPÍTULO III - O TEATRO VICENTINO.................................................................15

CAPÍTULO IV - O AUTO DA BARCA DO INFERNO.................................................18

CAPÍTULO V - A DENÚNCIA MORAL NA PEÇA O AUTO DA BARCA DO INFERNO


DE GIL VICENTE........................................................................................................21

CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................26

REFERÊNCIAS..........................................................................................................27
9

INTRODUÇÃO

A sociedade portuguesa do século XV passou por um momento de transição


entre o mundo medieval e o mundo moderno. Neste contexto, os pensamentos
filosóficos e os costumes da época passavam por mudanças que refletiram no
movimento literário da época, chamado Humanismo.
O tema deste trabalho está inserido neste contexto, pois o autor escolhido e
sua respectiva peça, o Auto da Barca do Inferno, retratam Portugal e suas concepções
de moralidade.
A escolha do tema A Denúncia Moral na Obra de Gil Vicente, deu-se após a
realização de um trabalho, no qual consistiu em comparar duas obras: Laços de
Família, de Clarice Lispector e O Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente.
Com base na peça o Auto da Barca do Inferno foi feita a análise da denúncia
moral presente da obra de Gil Vicente, levando em consideração os aspectos
literários, filosóficos e históricos. Além disso, nos capítulos há a contextualização da
época em que nasceu o dramaturgo português, as atividades literárias e os
pensamentos filosóficos que influenciaram o período, sua biografia e seu teatro
inovador, um breve resumo da obra e por fim, a denúncia moral presente em sua peça
que é o tema desta pesquisa.
Este trabalho tem como objetivo analisar e identificar a denúncia moral na obra
vicentina, de forma mais específica utilizando-se da peça o Auto da Barca do Inferno,
analisando os personagens e os tipos sociais aos quais são relacionados pelo autor.
10

CAPÍTULO I - O PANORAMA HISTÓRICO PORTUGUÊS NA ERA


MEDIEVAL
O contexto histórico em que viveu Gil Vicente foi o de Portugal das expedições
marítimas, de grandes descobrimentos e de conquistas ultramarinas.
Em sua obra Os Lusíadas, uma das obras mais importantes da literatura
portuguesa, CAMÕES1 (2000, p.75) exalta a bravura da raça lusitana nos homens que
se lançam aos mares à procura de novas terras, ricas em ouro, prata, canela e cravo;
homens como Vasco da Gama, que chegou às costas da Índia em 1498: “Vestido o
Gama vem ao modo hispano/ Mas francesa era a roupa que vestia/ De cetim da
adriática Veneza/ Carmesi, cor que a gente tanto preza”.
Ao falar do conquistador, Camões fala também de um outro Portugal, que
embora tivesse grande força para construir naus e caravelas, não fabrica os tecidos e
roupas que vestiam seus navegadores; um Portugal dependente do comércio,
dominado pela Itália e pela Liga Hanseática (organização de comércio do norte da
Europa), para se prover de lã, seda e trigo, que necessita de ouro e prata para comprar
esses produtos e se lança em grandes aventuras marítimas a fim de encontrar tais
metais preciosos.
O país em que viveu Gil Vicente foi rico em conquistas, mas deficiente em
produção agrícola e manufatureira. Portugal teve um desenvolvimento social, cultural
e econômico diferente do ocorrido no restante da Europa.
A Igreja Católica tinha plenos poderes e era soberana na Era Medieval, isto
quer dizer que influenciava diretamente nas decisões políticas e acumulava muitas
riquezas, em sua maioria dinheiro e terras; isso se deve ao fato de a própria Igreja
condenar o acúmulo de capitais como pecado. Desta maneira, ela se distanciava de
seus próprios ensinamentos e caía em contradição, chegando a vender indulgências
– o perdão dos pecados -, o que gerou uma grande revolta em Martinho Lutero, monge
que deflagrou a Reforma Protestante ao discordar publicamente da prática de venda
de indulgências pelo Papa Leão X e foi completamente contra esta prática.
Como afirma o historiador BLAINEY (2012, p.113)2: “A ideia tradicional de
perdão sustentada pela Igreja, foi se modificando. Decorridas algumas décadas,
estava instituída a prática da venda do perdão. Bastava pagar, e o cristão ficava livre

1 CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Prefácio de Álvaro Júlio da Costa Pimpão; Apresentação de Aníbal
Pinto de Castro - 4.a ed. – Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros. Instituto Camões, 2000.
2 BLAINEY, Geoffrey. Uma Breve História do Cristianismo. 1. ed. Fundamento, 2012.
11

dos pecados”.
A Igreja estava perdendo crédito como pode ser constatado no trecho a seguir:

Em 1500, surgiram sinais de que gigantes mãos humanas sacudiriam a Igreja


Católica. Não seriam as mãos do Papa, dos cardeais nem dos bispos, mas
de religiosos mais simples. A Igreja indiscutivelmente estava em perigo. 3

A declaração do Papa Pio II, em 1463, mostra a preocupação da Igreja: “Não


temos credibilidade. O clero é objeto de escárnio. As pessoas nos acusam de
vivermos no luxo, de acumularmos riquezas, de sermos escravos da ambição, de
ficarmos com os melhores cavalos e mulas”. (BLAINEY, 2012, p. 110)4
De acordo com BLAINEY (2012, p.110)5, “a referência à qualidade dos cavalos
era quase equivalente a uma acusação, nos dias atuais, de os líderes da Igreja
possuírem luxuosos carros esportivos”. Por isso a contradição: a Igreja condena o
acúmulo de riquezas e bens materiais como pecado, mas ela própria é quem detém
toda a riqueza na era medieval.
Além da fundação do Protestantismo, existem alguns fatores que colocam a
Igreja em questão como o desenvolvimento e maior valorização da ciência, as artes e
a filosofia retomam a tradição clássica de exaltação do homem e suas realizações; o
antropocentrismo retorna como pensamento filosófico, ou seja, o homem como centro
universo. De acordo com BLAINEY (2012, P. 110)6:

Ao fim do século XV, às vésperas do surgimento da Reforma Protestante,


novos e brilhantes teólogos se formavam, e as procissões continuavam.
Pode-se afirmar que na Europa, havia mais atividade intelectual – religiosa
ou secular – na Igreja Católica do que em todas as outras instituições
somadas. Muitos exploradores, naquele início de era de grandes
navegações, viam-se ao mesmo tempo como missionários e
empreendedores.

O Humanismo e o Renascimento Clássico dominam o cenário cultural


português. As condições em que Portugal entra nesse período fazem com que o
renascimento português também tenha características peculiares. A valorização das
ciências e das relações humanas não teve a contrapartida do questionamento mais
profundo à nobreza e ao clero.

3
BLAINEY, Geoffrey. Uma Breve História do Cristianismo. 1. ed. Fundamento, 2012.
4
BLAINEY, Geoffrey. Uma Breve História do Cristianismo. 1. ed. Fundamento, 2012.
5
BLAINEY, Geoffrey. Uma Breve História do Cristianismo. 1. ed. Fundamento, 2012.
6
BLAINEY, Geoffrey. Uma Breve História do Cristianismo. 1. ed. Fundamento, 2012.
12

Havia sim, questionamentos, mas a desvios de exageros na conduta moral de


fidalgos e religiosos. É importante salientar que sempre se preservava a instituição,
ainda que em autores de comprovada postura crítica ao real como Gil Vicente.
Portugal se encontra sem mais recursos para financiar sua expansão colonial
e muito menos povoar os territórios descobertos; a aliança lusitana começa a
enfraquecer mediante as dificuldades em manter e ampliar o ritmo comercial. Os
empréstimos constantes tomados aos banqueiros protestantes do norte da Europa,
com o objetivo de tornar viável a aventura colonial, fazem o país descapitalizar-se.
Os últimos resquícios de grandeza colonial vêm à tona no reinado de D.
Sebastião, na tentativa de resgatar a amplitude do império lusitano guerreando contra
os mouros, no entanto, é derrotado em 1578 e desaparece.
O descontentamento interno se intensifica e a aliança entre nobreza, clero,
mercadores e soberanos se extingue. O sucessor de D. Sebastião, Cardeal Henrique,
desenvolve ampla repressão à cultura humanista, que floresceu na fase dos
descobrimentos e da abertura para o mundo. A Contrarreforma, movimento católico,
é conduzida diretamente pelo monarca, através da Inquisição e com o apoio dos
padres da Companhia de Jesus.
A censura ao pensamento é disseminada e perseguem-se os “cristãos novos”
(judeus convertidos ao catolicismo), impedindo-os de ocupar cargos públicos e
confiscando seus bens. Os dogmas da Igreja e o respeito ao Estado, sem
questionamento de qualquer ordem, substituem a invenção científica, a elaboração
filosófica e o florescimento cultural.
13

CAPÍTULO II - ATIVIDADES CULTURAIS E INTELECTUAIS


Em 1418, tem início em Portugal, a Segunda Época Medieval, mais conhecida
como Humanismo, período em que foi publicado O Auto da Barca do Inferno, de Gil
Vicente. Este período foi chamado de humanista tendo em vista a mudança de
perspectiva sobre o estar no mundo, isto é, pensamentos e preocupações que antes
se voltavam para Deus e para o divino, agora estavam com olhares para as questões
terrenas e humanas, influenciados pelo Renascimento.
De acordo com MOISÉS (2013, p.41)7 “a época do Humanismo principia
quando Fernão Lopes é nomeado por D. Duarte, em 1418, Guarda-Mor da Torre do
Tombo”.
Sobre esta escola literária, MOISÉS (2013, p.42) afirma que:

Esta época se caracteriza pela humanização da cultura. Na verdade, o


século XV português, corresponde em consonância com o resto da Europa,
ao nascimento do mundo moderno, na medida em que inaugurava um
padrão de cultura voltado para o ser humano, seja encarado como indivíduo,
seja entrevisto como integrante da coletividade.8

A concepção teocêntrica da existência, ou seja, tendo Deus como escala de


valores, continua vigente, mas já começam a despontar atitudes contraditórias
diretamente centradas no homem. É importante salientar que o Humanismo ocorre
num momento de transição entre o mundo medieval e o moderno, marcado pela Era
Clássica e compreendido pelo Classicismo, Barroco e Arcadismo.
Contribui para isso a euforia provocada pelas descobertas e conquistas
ultramarinas, iniciadas com a tomada de Ceuta em 1415 e só terminadas no século
seguinte.
A cultura torna-se laica em grande parte; e a educação do homem, fidalgo,
sobretudo, constitui o objetivo da literatura moralista então escrita; nas crônicas de
Fernão Lopes, o povo, a massa popular, aparece pela primeira vez.

7
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. - 37. ed., rev. e atual. 1ª reimp. São Paulo: Cultrix 2013.
8 MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. - 37. ed., rev. e atual. 1ª reimp. São Paulo: Cultrix 2013.
14

Tanto os artistas quanto os autores passaram a olhar mais para as emoções


humanas, de acordo com MOISÉS (2013, p.42, 43):

Uma onda de realismo, de terrenalismo, de apego à natureza física, eleva-


se para se contrapor ao transcendentalismo anterior: as crônicas, a poesia
e especialmente o teatro vicentino documentam à saciedade essa mutação
histórica, identificada com o fato de o acento tônico da cultura se transferir
para o homem como tal e não para o homem concebido à imagem e
semelhança de Deus.9

O Humanismo e o Renascimento Clássico dominam o cenário cultural


português, portanto, são responsáveis pela propagação de novos pensamentos
filosóficos, como o antropocentrismo e uma visão mais humana da sociedade. Neste
contexto, há mudanças não só de questões filosóficas, mas também comerciais e
sociais.
Com o fim das relações de vassalagem, a burguesia, até então relegada a um
plano inferior, começou a despertar como classe.
Na literatura, a humanização foi refletida através de textos aprimorados de
autores que conheciam o latim clássico. Nesse período, desenvolveram-se a prosa, a
poesia e teatro popular, este mostrava mais claramente as características deste
período.

9
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. - 37. ed., rev. e atual. 1ª reimp. São Paulo: Cultrix 2013.
15

CAPÍTULO III - O TEATRO VICENTINO

De acordo com MOISÉS (2013, p. 54)10, a biografia de Gil Vicente anda envolta
em dúvidas, pois teria nascido em 1465 ou 1466, talvez em Guimarães e morrido entre
1536 e 1540. Ourives e mesmo mestre da balança da Casa da Moeda de Lisboa, inicia
seu teatro a 7 de junho de 1502, por ocasião do nascimento do futuro D. João III, filho
de D. Manuel e de sua segunda mulher, Maria de Castela, filha dos reis católicos, D.
Fernando e D. Isabel.
O Monólogo do Vaqueiro (ou Auto da Visitação) é declamado em espanhol a
fim de saudar o nascimento do filho de D. Manuel assim como o nascimento de Cristo,
pois à criança serão oferecidos presentes, como haviam feito os Reis Magos.
O auto causa tão boa impressão que pedem seu retorno nas festas de Natal.
Em vez de recitar este auto, decide encenar outra peça, de tema similar: Auto Pastoril
Castelhano. A partir daí, Gil dedica-se a escrever e representar teatro para o
entretenimento da realeza e da fidalguia, concomitantemente com suas outras
funções junto à Corte.
Conforme afirma MOISÉS (2013, p.55)11, o teatro vicentino pode ser divido em
três fases: a primeira, de 1502 a 1514, onde é notória a influência de Juan del Elcina,
sobretudo nos primeiros anos e atenuando-se depois de 1510; a segunda de 1515 a
1527, começa com Quem tem farelos? e termina com o Auto das Fadas: corresponde
ao ápice da carreira dramática de Gil Vicente, com a encenação de suas grandes
peças, dentre as quais a Trilogia das Barcas (1517-1518), o Auto da Alma (1518), a
Farsa de Inês Pereira (1523), o Juiz da Beira (1525), e a terceira de 1528, com o Auto
da Feira, até 1536, com a Floresta de Enganos, fase em que o dramaturgo passa a
intelectualizar seu teatro, sob o impacto do classicismo renascentista.
Quanto ao tema, o teatro de Gil Vicente pode ser classificado em tradicional e
de atualidade. O primeiro refere-se àquilo que é evidente e dominante inflexão
medieval: são as peças de cunho religioso, como o Auto da Fé (1510) e o Auto da
Alma (1518), filiadas ao teatro religioso de Juan del Elcina e remotamente aos
milagres e mistérios franceses; as de caráter bucólico, como o Auto Pastoril
Castelhano, o Auto Pastoril Português (1523) e as que tinham como inspiração as
novelas de cavalaria, como D. Duardos (1522) e o Auto de Amadis de Gaula (1533).

10 MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. - 37. ed., rev. e atual. 1ª reimp.São Paulo: Cultrix 2013.
11
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. - 37. ed., rev. e atual. 1ª reimp. São Paulo: Cultrix 2013.
16

O teatro de atualidade caracteriza-se por conter o retrato satírico da sociedade


da época, em seus vários estratos, a fidalguia, a burguesia, o clero e a plebe a fim de
denunciar desvios de conduta e moralidade, como a Farsa de Inês Pereira e o Auto
da Barca do Inferno.
Conforme afirma JUNIOR (2003, p.09):

Os autos religiosos ou nas farsas populares, ninguém escapou de seu


penetrante olhar satírico: nem o clero, nem a nobreza, nem o povo. Numa
sociedade em ebulição pela chegada de riquezas antes nunca vistas que
colocava Lisboa como a Corte mais rica da Europa, poucos continuavam a
se preocupar com a produção.12

E complementa em:

A sátira de Gil Vicente é implacável: pune, com humor, o sapateiro ladrão, a


esposa adúltera, as alcoviteiras, o escudeiro malandro, o frade enamorado,
etc. Absolve bem poucos, entre eles, o Parvo, por ser inconsciente do que
faz.13

Além desses tipos, as peças vicentinas contam com a presença de


personagens alegóricas, como o Anjo e o Diabo do Auto da Barca do Inferno. Mesmo
nessa forma de figuração (utilizando anjo, diabo e barcas misteriosas), a alegoria -
que exige uma segunda interpretação que o sentido literal, de imediato, não fornece -
contribui para a representação realista, evidenciando as ações, os caracteres das
personagens e suas ligações com o meio social.
São personagens que perdiam valores medievais - valores de um mundo
estático onde cada um vivia conforme a as condições sociais de nascimento - e se
desorganizavam socialmente. Perdiam antigos valores, mas não adquiriam novos,
com exceção das atitudes imediatistas de busca da riqueza fácil: seria válido tudo o
que levasse ao enriquecimento, não importando a maneira com que fosse
conquistado.
O teatro de Gil Vicente, embora dirigido a um público palaciano, foi popular na
forma e no conteúdo. Suas raízes são medievais, de onde incorporou alegorias,
símbolos e temas bíblicos; personagens populares com suas linguagens e costumes;

12
JUNIOR, Benjamim Abdala. Auto da Índia; Auto da Barca do Inferno; Farsa de Inês Pereira / Gil
Vicente; adaptação e notas por Benjamim Abdala Junior. – 2ª Ed. – São Paulo; Editora Senac,
2003.
13
JUNIOR, Benjamim Abdala. Auto da Índia; Auto da Barca do Inferno; Farsa de Inês Pereira / Gil
Vicente; adaptação e notas por Benjamim Abdala Junior. – 2ª Ed. – São Paulo; Editora Senac,
2003.
17

danças, cantigas e narrativas folclóricas. Este teatro voltou-se ainda para a atualidade
do Renascimento, aliando o humanismo religioso com atitude crítica diante dos
problemas sociais de sua época. Cada personagem representava, principalmente na
oratória, sua condição social.
O anticlericalismo das sátiras de Gil Vicente para ter trazido problemas com a
Inquisição. O autor contava, entretanto, com proteção palaciana, em especial da
rainha D. Leonor, que lhe encomendou várias peças. Talvez esse fato explique o largo
espaço de tempo que vai da morte de Gil Vicente (entre 1536 e 1540) e a publicação
da compilação de suas peças, iniciada pelo autor e concluída por seu filho Luís Vicente
em 1562, compilação essa que foi modificada pela censura inquisitorial.
A reconstituição integral de muitos textos foi possível, como no Auto da Barca
do Inferno, pela existência de folhas avulsas desses textos. A farsa de Inês Pereira
também foi objeto de confronto posterior com folha avulsa da época. Já o texto do
Auto da Índia segue a compilação terminada por Luís Vicente.
18

CAPÍTULO IV - O AUTO DA BARCA DO INFERNO

O Auto da Barca do Inferno é uma peça (um auto de moralidade) escrita por Gil
Vicente em 1517 e tem como personagens as seguintes figuras: Fidalgo, Onzeneiro,
Joane (um parvo), Sapateiro, Alcoviteira, Judeu, Corregedor, Procurador, Enforcado,
Quatro Cavaleiros de Cristo, Anjo, Diabo e seu Companheiro.
A peça trata de um motivo religioso da Idade Média: o do juízo final. O Auto da
Barca do Inferno mostra uma galeria de tipos sociais, alegorias usadas por Gil Vicente.
O tema da peça é a busca da resposta à indagação acerca do destino imposto pela
morte.
À medida que eles chegam à praia, local onde se dá o juízo, são julgados pelos
diabos, que têm a função de conduzir as almas a seu destino. O aspecto mais
importante desse auto é, portanto, a problemática social, contudo, não podemos
esquecer a caracterização dos tipos sociais, que Gil Vicente realiza de forma
magistral, através da fixação dos níveis apropriados de linguagem que os identificam,
de modo imediato, aos olhos do leitor.
De acordo com JUNIOR (2003, p. 11), "cada personagem falava de acordo com
sua condição social, como a fala pernóstica do Fidalgo ou a fala de um Parvo, ou a
estropiada dos judeus".14
Conforme afirma MIRANDA (2003, p.61):

A peça está embebida em uma concepção medievalizante. Daí que seja dada
atenção aos gestos cometidos na terra, porque deles depende a vida
posterior. Desse modo, a peça mostra que trágico é o destino do homem após
o pecado original, por estar sujeito à condenação eterna. 15

14
JUNIOR, Benjamim Abdala. Auto da Índia; Auto da Barca do Inferno; Farsa de Inês Pereira / Gil
Vicente; adaptação e notas por Benjamim Abdala Junior. – 2ª Ed. – São Paulo; Editora Senac,
2003.
15 MIRANDA, I. D. . Gil Vicente e o teatro medieval: a carnavalização em O Auto da Barca do

Inferno. Acta Scientiarum , Maringá-PR, v. 24, n.1, p. 59-66, 2002


19

Todas estas questões são tratadas de maneira cômica na peça vicentina como
pode ser constatado por MIRANDA (2003, p.61):

Assim, a seriedade do tema é quebrada pelo tratamento que recebe:


ninguém pode chorar a sua sorte quando de depara com uma prefiguração
de um juízo final. O modo como as personagens descobrem a sentença que
lhes foi determinada dá-se de forma alegre e divertida, pois o rigor da
sentença contrasta com o realismo grotesco de certos personagens e com o
sarcasmo do interrogatório do Diabo.16

Na peça de mestre Gil, embora o destino dos mortos já tenha sido previamente
definido, o Diabo age numa relação de aparente independência em relação a Cristo,
ou a seu representante, o Anjo.
Desse modo, as esferas divina e infernal tocam-se apenas por ocuparem o
mesmo espaço, já que não há nenhuma conversação entre o Anjo e o Diabo. Esse
nivela todos os personagens não só pelo tratamento irônico e familiar que lhes
concede, como por apontar em todos, indistintamente, os vícios, ambições, tirania,
desonestidade, entre outros.
Um tribunal estruturado sobre os mesmos valores terrenos acusa
impiedosamente cada um dos personagens. O perdão é concedido a poucos. Os
critérios do Diabo assemelham-se aos utilizados no exercício da justiça terrena,
parecendo ao mesmo tempo, reduplicar o processo da sátira ou da crítica aos
costumes.
Na peça, os personagens são condenados por serem falhos, pecadores,
incompletos e esperam sua completude depois de responderem pela sua existência
terrena. No auto, o simbolismo do fogo remete à ideia de sacrifício necessário à
regeneração:

A purificação pelo fogo é complementar à purificação pela água. Ambos estão


relacionados com Deus: a primeira como origem e o segundo como
revelação. A água é também purificadora e regeneradora. “Mas o fogo
distingue-se da água porquanto ele simboliza a purificação pela compreensão
até a mais espiritual de suas formas, pela luz e pela verdade”. (CHEVALIER
e GHEERBRANT,1989).17

16 MIRANDA, I. D. . Gil Vicente e o teatro medieval: a carnavalização em O Auto da Barca do


Inferno. Acta Scientiarum , Maringá-PR, v. 24, n.1, p. 59-66, 2002
17 CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio,

1989.
20

Com base nesta afirmativa, podemos concluir que o perdão está presente de
forma simbólica no Auto da Barca do Inferno. Gil Vicente é contra o pecado, o desvio
de conduta e não, o pecador como afirma MIRANDA (2003, p.65):

No auto de Gil Vicente, há uma grande dose de sátira que atinge a todos,
grandes e pequenos. Não se limita a anotar esta ou aquela figura mais
saliente. Ao Fidalgo não se perdoa a tirania, aos pequenos dá-se o desprezo.
Acusa o desonesto, seja ele o sapateiro, o onzeneiro, o juiz, ou o corregedor.
Critica o clero, esquecido do verdadeiro sentido de sua missão, apontando-
lhe os desvios, como a luxúria, a soberba e a simonia.18

O dramaturgo português reúne uma galeria de tipos sociais e os desmascara.


Sua crítica atinge todas as classes sociais, sobretudo as que detêm o poder e
demonstra simpatia pelos simples, como o Parvo.
Por esse motivo é que a peça vicentina, assim como toda sua obra, opõe-se
aos valores estabelecidos pela sociedade de sua época, pois de acordo com
MIRANDA (2003. p.65)19, condena os desmandos dos que representam a fé na terra,
as práticas exteriores à religião que invertem seu verdadeiro sentido. Desse modo, o
Auto da Barca do Inferno insere-se na linha da contra-ideologia.
Desta forma, Gil Vicente conserva extraordinária atualidade pela criação de
tipos humanos que se elevam à universalidade.

18 MIRANDA, I. D. . Gil Vicente e o teatro medieval: a carnavalização em O Auto da Barca do


Inferno. Acta Scientiarum , Maringá-PR, v. 24, n.1, p. 59-66, 2002.
19 MIRANDA, I. D. . Gil Vicente e o teatro medieval: a carnavalização em O Auto da Barca do

Inferno. Acta Scientiarum , Maringá-PR, v. 24, n.1, p. 59-66, 2002.


21

CAPÍTULO V - A DENÚNCIA MORAL NA PEÇA O AUTO DA BARCA


DO INFERNO DE GIL VICENTE

O olhar crítico de Gil Vicente não excluía nenhum membro da sociedade. O


autor trazia à tona desvios de caráter e moral de todas as camadas da sociedade
portuguesa, como o clero, nobreza e o povo.
Como pode ser constatado na afirmação de MOISÉS (2013, p.58):

Teatro de sátira social, não perdoa qualquer classe, povo, fidalguia ou clero.
Obra de moralista, põe em prática o lema castigat ridendo mores (rindo,
corrige os costumes), realizando o princípio de que a graça e o riso,
provocados pelo cômico baseado no ridículo e na caricatura, exercem ação
purificadora, educativa e purgadora de vícios e defeitos.20

Consoante MOISÉS (2003, p. 59) a sátira vicentina é contundente e dissolvente


porque toca fundo nas feridas sociais do tempo, é contrabalançada por um elevado
pensamento cristão, expresso nas peças de inspiração medieval como o Auto da Alma
e ainda nas peças de caráter satírico, como no Auto da Barca do Inferno.
Neste auto podemos perceber claramente a presença de influências clássicas,
em especial a mitologia, na figura de Caronte. Este mesmo foi utilizado por Dante em
A Divina Comédia, pois foi dessa barca que Gil Vicente inspirou-se para as suas, e de
Caronte lhe adveio a lembrança do Diabo dos três autos.
A sátira se dá em forma de denúncia nesta obra, pois o autor se utiliza de
alegorias, ou seja, ela não dá nomes comuns aos personagens. Em vez disso, ele cria
tipos sociais, como o sapateiro ladrão, o onzeneiro agiota, entre outros, afim de que
ao ler, qualquer um se identificasse com algum personagem.
BERNARDES (2001. p.20) afirma que:

Em nome da versatilidade própria do Teatro, a moralidade vicentina


desdobra-se, nas Barcas, em modelos progressivos e articulados. Começam
por absorver o elemento farsesco: a grande maioria das personagens da
primeira Barca parece saída das farsas medievais sucedendo-se, até aos
cavaleiros, num cortejo de enganos, só desvelados através das acusações
do Diabo e do Anjo. 21

A denúncia moral presente nos personagens deste auto, evidencia a crítica


severa de mestre Gil no que diz respeito às atitudes da sociedade portuguesa da

20
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. - 37. ed., rev. e atual. 1ª reimp. São Paulo: Cultrix 2013.
21
BERNARDES, José Augusto Cardoso. Danças da Vida e da Morte nas Barcas de Gil Vicente.
Revista eHumanista, volume 1, 2001.
22

época. O dramaturgo português questiona, a partir das atitudes dos personagens, a


perda dos valores medievais, isto é, valores de um mundo estático, no qual cada um
vivia conforme as condições sociais de nascimento. Tudo isto gerava uma grande
desorganização social.
Segundo JUNIOR (2003, p.10):

Para Gil Vicente cada personagem deveria limitar-se a desempenhar


honestamente sua profissão, sem procurar a ascensão social - o "vencer na
vida" a todo custo seria fonte de corrupção e de desorganização da vida em
sociedade. Importava-lhe a verdade que viria dos costumes estabelecidos
que se chocavam com o delírio advindo das conquistas marítimas.22

O autor português buscava a correção da sociedade e por esse motivo,


expunha as práticas ilícitas das pessoas. "Sua arte teve esse sentido de intervenção
social. ” (JUNIOR, 2003, p.11)23
Foi acusado de irreverente e de profanador dos mistérios da religião, como se
em suas obras não fosse notória a devoção cristã. É importante dizer que Gil Vicente
é um católico que repreende os demais e não um herege a taxar os outros. Mestre
Gil não atacou, de maneira alguma, os dogmas da Igreja e seus mistérios religiosos.
É fato que em sua obra, inclusive no Auto da Barca do Inferno, existe uma
preocupação incessante em atingir o clero, entretanto, o dramaturgo o faz, com a
melhor das intenções, contra os elementos que mereciam censura.
Essa atitude não agradava a muitos naquela época. Sá de Miranda, em Carta
a António Pereira, escreveu: "Que troca ver lá Pasquinos/ Portugueses cento a cento/
(Quem o vê sem sentimento?) / Tratar os livros divinos/ Com tal desacatamento!"
Falemos, então, acerca dos personagens e sua trajetória na peça teatral
vicentina.
O Anjo, Arrais do Céu, representa a figura divina. Fala pouco, faz intervenções
apenas quando são necessárias, com muita sabedoria. Não argumenta de forma
insistente com os desejosos passageiros de sua embarcação, pois os mesmos
carregam consigo, as marcas de seus vícios terrenos. Desta forma, raramente utiliza

22
JUNIOR, Benjamim Abdala. Auto da Índia; Auto da Barca do Inferno; Farsa de Inês Pereira / Gil
Vicente; adaptação e notas por Benjamim Abdala Junior. – 2ª Ed. – São Paulo; Editora Senac,
2003.
23
JUNIOR, Benjamim Abdala. Auto da Índia; Auto da Barca do Inferno; Farsa de Inês Pereira / Gil
Vicente; adaptação e notas por Benjamim Abdala Junior. – 2ª Ed. – São Paulo; Editora Senac,
2003.
23

argumentos irônicos e apenas aguarda o embarque das poucas almas puras, que no
final são escassas.
O Diabo ou o Arrais do Inferno é aquele que detém mais falas, tem voz ativa
durante toda a encenação e por seu caráter persuasivo, faz que o embarque a Barca
do Inferno, pareça uma viagem agradável. Para convencer as personagens, acusa-as
pelos seus erros quando em vida, conscientizando-as dos mesmos. Mostra-se
extremamente sarcástico, dominador e tem muita pressa pela viagem, uma vez que
sabe que a barca irá cheia. Usa o canto para seduzir as almas no embarque.
O Companheiro do Diabo é analisado como servo do Arrais do Inferno, que
apenas concorda com o seu mestre, sem voz ativa. Este é Caronte, da mitologia
grega, que é encarregado de fazer a travessia das almas rumo ao seu destino.
De acordo com RIOS (2008, p.10):

A passagem dessas almas a um dos dois mundos é feita por meio de barcas,
que lembram ao leitor o barqueiro Caronte e o rio Aqueronte da mitologia
clássica, elementos pagãos que se encontram pari passu 24 com os valores
cristãos. Esse sincretismo entre o paganismo e o cristianismo reforça, mais
uma vez, o caráter transitivo da obra de Gil Vicente, que tem bases sólidas
no medievo e um pé no renascimento, tal qual Janus dividido entre o passado
e o futuro.25

O Fidalgo tirano, representa a nobreza dentro da peça de Gil Vicente. Mostra-


se arrogante e por sua posição social, acredita ser merecedor de embarcar na Barca
do Anjo. Traz consigo um pajem que levava a cadeira de espaldar para assistir as
missas na Igreja. Dos personagens que estão na obra é o que mais argumenta, que
mais tem voz ativa e mostra a crítica do autor pelas pessoas que se apegam ao status
e aos bens materiais.
O Onzeneiro representa o agiota, considerado pelo próprio Diabo como
parente, uma vez que se aproveita da desgraça dos outros para tirar proveito, um
verdadeiro aproveitador. Carrega um bolsão, a marca de seus crimes quando em vida.
É a marca da sua agiotagem.
O Parvo representa o povo e não leva nada consigo da sua estada na terra. Ele
é um homem honesto e humilde, que por suas qualidades foi o primeiro a embarcar

24No mesmo passo, ao mesmo ritmo.


25RIOS, Otávio. E no meio do caminho, havia o Diabo. 2008.
Disponível em: <http://www.uefs.br/nep/labirintos/edicoes/01_2008/14_artigo_otavio_rios.pdf>.
Acesso em: 24/11/2015.
24

com o Arrais do Céu, embora antes tenha rejeitado o Diabo com muita coragem e
desenvoltura.
Ao entrar na Barca, o condutor pede que aguarde se haverá outros a irem para
o Paraíso na seguinte viagem. Joanes, o parvo, não tem consciência de seus atos e
por esse motivo é considerado puro.
O Sapateiro representa o comércio e chega trazendo consigo, o avental e as
formas do seu ofício. Ele vivia de aparências, enganava as pessoas cobrando sempre
a mais pelo serviço prestado, um verdadeiro ladrão. Por morrer confessado, acreditou
que embarcaria rumo ao Céu, entretanto, o Anjo disse-lhe que para os que roubam, o
desígnio é a maldição. A crítica de Gil Vicente neste ponto está ligada à sua defesa
pelo Cristianismo, mas a forma errônea pela qual a doutrina era estipulada pela Igreja.
O Frade representa a Igreja e vem trazendo uma jovem, de nome Florença, e
uma espada. Vem cantando e dançando, o que mostra sua acomodação frente à
situação a qual aparece seu destino final. Pelo ofício, o de frade, achava-se digno do
Paraíso, mesmo que a companheira feminina fosse a representação de seu maior
delito.
A Alcoviteira traz consigo muitos objetos dos quais fazia uso quando em vida,
inclusive virgos postiços (hímens), com os quais inventava que as moças que oferecia
eram virgens, arrumando assim bons casamentos e ganhando com isso. Na tentativa
de embarcar na Barca do Anjo, Brígida Vaz utilizou alguns dos melhores argumentos
da obra, invocando Santa Úrsula para que o anjo se compadecesse de sua alma.
Queria relacionar o que havia feito com o bem que proporcionara aos usuários de
seus serviços, no entanto, esquecia que enganar o outro também era um pecado fatal.
A personagem do Judeu é claramente apegada ao dinheiro. Sua marca é um
bode, o qual ele carrega as costas. Quando chega à Barca do Inferno já oferece
dinheiro para que o Diabo lhe embarque, o que demonstra de fato que os judeus não
eram bem vistos naquela época e possivelmente eram perseguidos por seus
costumes religiosos, assim como o fato de o próprio autor não saber como lidar com
a figura do judeu dentro de uma sociedade Cristã.
O Corregedor representa a Justiça e traz como marca uma vara na mão e os
processos judiciais. Ao encaminhar-se para falar com o Diabo, utiliza como forma de
persuasão uma linguagem profissional, para mostrar sua importância como juiz. O fato
é de que também o Corregedor traz com bagagem a mais, o pecado da corrupção e
venda de sentenças e não há argumento que o faça embarcar com o Arrais do Céu.
25

O Procurador representa o advogado, vindo carregado de livros e dentro da


peça, é uma extensão do Corregedor. A crítica feita por Gil Vicente, é que toda a
justiça era corrupta e possivelmente este personagem é mais sensato do que seu
superior, pois não sustenta sua própria defesa, ou seja, não esboça contrariedade
ante os desígnios do Diabo em querer o embarcar.
O Enforcado, acompanhado de sua corda, a qual representava o suicídio, é a
personagem que achava que por ter sofrido com a morte, tinha pagado seus pecados
e, por esse motivo, merecia embarcar na Barca do Céu. No entanto, censurável pela
Igreja, o ato de tirar a própria vida é condenação certa para o Inferno.
Os últimos personagens a embarcarem na Barca do Céu são representados
pelos Quatro Cavaleiros. Eles morreram lutando pelo Cristianismo, e por isso, as vidas
que ceifaram até as próprias mortes, são perdoáveis já que a causa que defendiam,
era a divulgação da fé. Para o autor, todos deveriam dedicar a vida às coisas cristãs
e isto é demonstrado pela passagem dos bravos guerreiros rumo a Barca do Céu. O
Diabo ainda pergunta porque os mesmos passam pela sua barca infernal direto rumo
àquela do Arrais do Céu, e os dois cavaleiros com voz ativa na obra, respondem:
”Aqueles que morrem por Jesus Cristo, não haverão de embarcar na Barca do
Inferno”, um pensamento típico das Cruzadas e ainda presente no século XVI.
Gil Vicente é implacável em sua denúncia e não deixou que se calasse a
verdade, independente contra quem fosse. Não havia motivos para rir, pois, quem
risse, teria que se arrepender, pois, poderia chegar a sua vez.
26

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desta pesquisa foi identificar na obra vicentina, a denúncia de


desvios de conduta de membros da sociedade, ou seja, a denúncia moral feita através
da literatura, nesse caso, uma peça teatral intitulada de o Auto da Barca do Inferno.
Analisando o autor pudemos perceber a importância do seu teatro inovador na
literatura portuguesa. É provável que antes de Gil Vicente já existisse atividades de
teatrólogos em Portugal, entretanto, nenhum teve tanta visibilidade e prestígio quanto
o seu.
A pesquisa foi possível através de consultas bibliográficas e virtuais aos
acervos que continham informações sobre Gil Vicente, o teatro vicentino, a
organização da sociedade na Idade Média e as concepções de moral da época.
No que diz respeito ao autor, podemos que concluir que sua crítica era
revolucionária, pois suas denúncias tinham caráter corretivo para os desvios de
conduta e a única maneira encontrada pelo dramaturgo a fim de evidenciá-los, foi
através de seu teatro, inserindo tipos sociais, alegorias, personagens sem nome, que
facilmente podem ser encontrados nos dias de hoje. Isso mostra a universalidade dos
personagens vicentinos e como seu teatro foi fundamental para a literatura
portuguesa.
27

REFERÊNCIAS

BERNARDES, José Augusto Cardoso. Danças da Vida e da Morte nas Barcas de


Gil Vicente. Revista eHumanista, volume 1, 2001

BERNARDES, José Augusto Cardoso. A compilaçam de todalas obras: o livro e o


projecto identitário de Gil Vicente. Universidade do Minho Centro de Estudos
Humanísticos. Braga, Portugal. 2005.

BLAINEY, Geoffrey. Uma Breve História do Cristianismo. 1. ed. Fundamento, 2012.

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Prefácio de Álvaro Júlio da Costa Pimpão;


Apresentação de Aníbal Pinto de Castro - 4.a ed. – Lisboa: Ministério dos Negócios
Estrangeiros. Instituto Camões, 2000.

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 2.ed. Rio de Janeiro:


José Olympio, 1989.

JUNIOR, Benjamim Abdala. Auto da Índia; Auto da Barca do Inferno; Farsa de Inês
Pereira / Gil Vicente; adaptação e notas por Benjamim Abdala Junior. – 2ª Ed. –
São Paulo; Editora Senac, 2003.

MIRANDA, I. D. . Gil Vicente e o teatro medieval: a carnavalização em O Auto da


Barca do Inferno. Acta Scientiarum , Maringá-PR, v. 24, n.1, p. 59-66, 2002.

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. - 37. ed., rev. e atual. 1ª reimp. São
Paulo: Cultrix 2013.

RIOS, Otávio. E no meio do caminho, havia o Diabo. 2008. Disponível em:


<http://www.uefs.br/nep/labirintos/edicoes/01_2008/14_artigo_otavio_rios.pdf>.
Acesso em: 24/11/2015.

RODRIGUES, Manuel Augusto. Do Humanismo à Contrarreforma em Portugal.


Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra. Coimbra.
1981.
.

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