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BRASÍLIA
2022
Victor Freitas de Souza
BRASÍLIA
2022
Victor Freitas de Souza
Brasília, 11/05/2022
COMISSÃO EXAMINADORA
____________________________________________
_____________________________________________
Luiz César de Sá
_____________________________________________
Dedicatória
Este trabalho é dedicado ao meu pai, por
seu apoio e paciência, minha mãe, aquela
com quem eu mais gostaria de ter
compartilhado esse momento, e a todos
meus amados familiares e amigos, assim
como minha querida filha, Morgana...
O processo inquisitorial de Manoel do Espirito Santo Limpo e a
questão do movimento ilustrado português
RESUMO
Este artigo analisa o processo inquisitorial de Manoel do Espirito Santo Limpo com o objetivo
de colaborar com o debate historiográfico a respeito da ilustração, mais especificamente, na
defesa de um movimento iluminista plural, que se moldou a contextos históricos específicos,
como foi o caso português. Manoel do Espirito Santo foi militar, matemático e professor e foi
julgado por heresia e apostasia, pois renegou publicamente ter fé em Deus e na Igreja. Foi ávido
leitor, possuía uma biblioteca significativa para a época, inclusive com tomos em francês, e se
mostrou defensor da ciência e da razão. Por fim, este trabalho terá o intuito de caracterizar esse
militar como ilustrado e enfatizar a significância de seu regimento como local de articulação de
ideais dentro de Portugal dos setecentos, mostrando que a célebre Universidade de Coimbra
não deve ser entendida como único centro irradiador da Ilustração em Portugal.
ABSTRACT
This article analyzes the inquisitorial process of Manoel do Espirito Santo Limpo with the
objective of collaborating with the historiographical debate about the Enlightenment, more
specifically, in the defense of a plural movement, which was malleable to specific historical
contexts, as was the case in Portugal. Manoel do Espirito Santo was a soldier, mathematician
and teacher and was tried for heresy and apostasy in 1778, as he publicly denied having faith
in God and the Church. He was an avid reader, had a significant library for the time, including
volumes in French, and was a defender of science and reason. To summarize, this work will
aim to characterize this soldier as a tinker of the Enlightenment and emphasize the significance
of his regiment as a place of articulation of ideals within Portugal in the eighteenth century,
showing that the famous University of Coimbra should not be understood as the only irradiating
center of Enlightenment in Portugal.
“Iluminismos”
O Iluminismo, como Wieland colocou, significava ter "luz suficiente ... para que
aqueles que venham a ver com sua ajuda não sejam cegos nem tenham sua visão
ofuscada, e nem, mesmo por qualquer outro caso, impedidos de ver nem de querer
ver." Significava separar o verdadeiro do falso, desembaraçar o emaranhado, dissolver
o complexo em seus componentes originais simples e, em seguida, persegui-los de
volta às suas origens. Acima de tudo, significava que “nenhuma representação ou
reivindicação passada pelos homens como verdadeiras sejam livres de escrutínio
irrestrito.” Somente por estes meios seria finalmente possível diminuir “a massa de
erros e enganos perniciosos que escurecem o entendimento humano.” (PAGDEN,
2013, p. 38)
Anthony Pagden1 faz parte do campo da história que acredita em "Iluminismos", ou seja,
que este movimento foi plural, com apropriações e soluções específicas, a depender das
localidades e a partir de experiências históricas próprias, mas com amplas semelhanças de
propósito e método. A sua noção de Iluminismo é estruturada por uma série de conceitos chave
que pretendem descrever as ideias e mentalidades dos setecentistas. Entre eles, podemos
destacar o ceticismo, o cosmopolitismo e o cientificismo, que serão melhor explicados abaixo.
O autor define esses pontos a partir de suas observações, mas ele também ressalta como todos
esses eram temas de debate dos próprios ilustrados2.
1 Seguirei este autor na apresentação do movimento iluminista. Os trechos citados de sua obra foram
traduzidos por mim.
2 “A luta pela identidade do Iluminismo também fez parte do próprio Iluminismo.” (PAGDEN, 2013,
P. 29)
tradição a qual pertencia. Havia aqueles que queriam questionar até mesmo a religião e a
cultura, enquanto outros preferiam deixar certos temas livres de questionamentos.
3 “Mais tarde, a expressão foi tomada pelos estoicos, que, como veremos, desempenhariam um papel transformador
em sua história posterior. Para todos os opróbrios dirigidos contra ela no século XIX e século XX, quando o
“cosmopolitismo” passou a ser lançado como uma forma de imoralidade, uma traição à verdade e objetos
apropriados de lealdade, que não era para o mundo, mas para a nação, mostrou-se notavelmente resiliente.”
(PAGDEN, 2013, P. 28)
sociabilidade, com isso pode-se enxergar um movimento muito preocupado também com o
aspecto passional do ser humano.
Pois no centro do “projeto iluminista” houve uma tentativa de descobrir uma nova
definição de nada menos do que a própria natureza humana. E isso exigia muito mais
do que a simples aplicação da razão irrestrita. Exigiu, primeiro, uma compreensão das
“paixões” (...). (PAGDEN, 2013, p. 46)
Pode-se imaginar como nessa visão é quase impossível aceitar um iluminismo que
dialogou e se conciliou com a religião, e que se desviou dos pensamentos dos “radicais”
filósofos parisienses. Mas hoje, que o horizonte revolucionário deu lugar a uma visão mais
sombria, uma de crescente ceticismo em relação ao progresso tecnológico, a religião reafirmou-
se na vida pública, e o legado da ilustração está recebendo atenção renovada. Mas importante
ressaltar o argumento de Duarte que, embora a relação entre o Iluminismo e a religião, segundo
a literatura recente, seja melhor caracterizada como continuidade ao invés de ruptura, essa
continuidade também envolveu transformações, inclusive na própria maneira como a religião
era entendida (DUARTE, 2020, p.107).
Desde a década de 1980, historiadores têm defendido o diálogo entre o iluminismo e a
religião e, consequentemente, a experiência se mostrou muito diferente do pensamento pregado
por filósofos como Voltaire e Rousseau. O “Iluminismo Radical”, para fazer uso do termo de
Jonathan Israel, pode ser visto como uma dentre várias vertentes da ilustração. Neste sentido,
historiadores como John Pocock (1999), Dale Van Kley (1996), Jonathan Shehaan (2005) e
William Bulman (2016) defenderam um iluminismo muito mais amplo e menos radical do que
havia se argumentado no passado.
O trabalho em tela terá como fonte o processo inquisitorial de Manoel do Espirito Santo
Limpo4, que nos traz a possibilidade de refletir sobre a experiência ilustrada portuguesa a partir
de outros centros de difusão de ideias que não a célebre Universidade de Coimbra. Ele foi um
importante escritor, lente (professor universitário) e militar português do século XVIII e início
do século XIX. Nasceu em 1755, durante o reinado do rei José I, em Madalena, Olivença. Filho
de Francisco do Espírito Santo Limpo e de Margarida Eugénia Rosado, naturais também de
Olivença, viria a casar-se, mais tarde, com Maria da Maternidade d’Abreu e Oliveira. 5
do Espírito Santo Limpo: uma biografia” de Diogo Manuel Zegre Parreira, Mestre em Ciências Militares Navais,
da Escola Naval de Portugal. Ele teve acesso a um número maior de fontes documentais a respeito da vida do
ilustrado, traçando um nítido retrato, apesar de que enfrentou os mesmos problemas que este artigo na
medida que suas fontes também são todas de cunho institucional.
Pouco se sabe sobre sua vida privada além do que foi colocado acima, com as fontes de
cunho institucional, que são as únicas disponíveis sobre o indivíduo, deixando poucas
oportunidades para enxergar esse ângulo da narrativa. Mas algumas colocações em seu processo
inquisitorial possibilitam inferir que ele vinha de família com certo grau de importância e com
posses. Ele alega em seu inventario, por exemplo, que havia ainda de receber herança de seus
pais, inferindo uma quantidade ao menos notável de bens acumulados por sua família. Há
também o fato de que cursou matemática na citada Universidade de Coimbra, sendo natural,
como já dito, de Olivença, feito esse possível apenas para as classes mais favorecidas da
sociedade, com condições de sustentar o estudante durante sua estadia fora de casa.
Manoel fora denunciado por alguém que o presenciou publicamente negar e distorcer a
fé, o que caracterizava apostasia e heresia, respectivamente. Manoel se tornou réu em um
processo que durou pouco mais de um ano e culminou em uma branda penitência. Tal
experiência, contudo, em nada impediu o militar e intelectual de continuar sua carreira e de
assumir importantes cargos, como foi visto anteriormente. Seu julgamento perante o Santo
Oficio, contudo, traz à tona outros lados de sua vida intelectual que se mostram bastante
pertinentes ao debate historiográfico de Portugal durante os setecentos.
As luzes de Portugal
Manoel do Espirito Santo Limpo foi preso em 28 de janeiro de 1778, de acordo com a
primeira página de seu processo inquisitorial, apesar do mandato acima datar de 4 de janeiro de
1777. Após começado o processo, os Inquisidores se propuseram a “alcançar a verdade” a
respeito das denúncias de “depravidade” feitas por Joaquim Vicente Pereira de Araújo 6,
encaixando-se como heresia e apostasia, como visto acima. O próprio Manoel não escondeu
seus feitos e confessou serem verdadeiras suas falas contra Deus e a religião. Sua condenação
foi definida em 16 de outubro de 1778 e teve como punição a obrigação de se confessar em
quatro alturas festivas da Igreja Católica: o Natal, a Páscoa, a Ressurreição do Espírito Santo e
a Assunção de Nossa Senhora, e a rezar a cada semana um terço à Virgem Maria e, nas sextas
feiras, cinco Pai Nossos e cinco Ave Marias. 7
Não há como saber se Manoel cumpriu sua penitência, mas não há dúvidas de que essa
foi levíssima dadas as acusações e confissões. Pode-se conjecturar, diante da procedência dos
fatos do processo, que Manoel não tinha outra intenção senão confirmar as denúncias e assumir
seus discursos contra a fé na presença dos inquisidores. Isso pode ter sido feito na esperança de
que a sua penitência fosse branda, e talvez até para a possível salvação de sua alma, mas não se
Importante aqui salientar que essa inquisição não era mais a mesma que fora no passado,
tendo sofrido alterações no âmbito do processo reformador do Marquês de Pombal. Como
pondera Luís Ramos: “O Regimento de 1774, publicado pelo Marquês de Pombal, seculariza a
Inquisição, coloca-a na dependência da Coroa, formula um violento requisitório contra os
jesuítas, ataca o sigilismo e testemunha mudanças de vulto no aspecto penal” (RAMOS, 1988,
p. 173). Com isso em mente, é possível considerar a possibilidade da atitude de Manoel ter sido
uma afronta diante das autoridades desta Inquisição “castrada”, agora secularizada, e que não
podia punir em bases puramente religiosas. Esta Inquisição reformada, contudo, serviu à clara
empreitada política da nova monarca portuguesa, Maria I, que queria enfraquecer os aliados de
seu antigo rival, Pombal, e qualquer outro elemento subversivo dentro de seu reinado, no
movimento que ficou conhecido como “Viradeira” (MAXWELL, 2001, p. 162).
A justificativa dada para a prisão de Manoel foi de cunho puramente religiosa, mas seria
ingênuo assumir que essa instituição, agora atrelada ao estado, não possuía interesses políticos
em suas ações. Esta tese é reforçada pelo fato de vários de seus colegas de regimento terem sido
réus em processos inquisitoriais naqueles anos, os quais eram reconhecidos como estudiosos e
leitores das mais novas e polêmicas obras dos setecentos. Era rotineiro dos monarcas
setecentistas proibirem leituras consideradas subversivas aos regimes vigentes. E Sabe-se que
Portugal se enquadrou nesse caso8, fazendo de uso do novo modelo de Inquisição.
8 Naquela ocasião, experimentou-se o aumento do controle do material lido pelos alunos e professores com o
intuito de controlar a entrada das ideias consideradas sediciosas que vinham de outras localidades da Europa,
marcadamente da França e da Inglaterra. (CURTO, 1999, 37)
Desse modo, enquanto a reputação de Pombal, “esse grande homem, conhecido como
tal pela classe média e pensante desta nação,” como escreveu Ratton muito mais tarde,
era eclipsada, o grupo que ele havia favorecido permaneceu e prosperou. A queda de
Pombal, longe de debilitar seu poder e influência, forneceu um disfarce para a
manipulação do Estado no interesse desse grupo e para que ele açambarcasse a
maioria dos empreendimentos que o Estado havia estabelecido. (MAXWELL, 2001,
p. 166)
Vê-se então que, apesar das disputas políticas entre Pombal e a Rainha, as reformas
políticas que buscaram fortalecer o poder régio nunca correram perigo de retrocederem. O
reinado de D. Maria, assim como as reformas de Pombal buscaram fortalecer o mercantilismo
e a burocracia, assim como o próprio aparato estatal e qualquer outra instituição atrelada a esse
que pudesse ajudar a manter a coesão política, como foi o caso da citada Inquisição portuguesa.
Quando Manoel foi convocado pela Inquisição ele era cabo de esquadra no Regimento
de Artilharia do Porto, aquartelado na Praça de Valença do Minho. Seu regimento era conhecido
por ter sido notável partidário dessas reformas das forças armadas lusas e tido importantes
aliados do Conde Lippe como comandantes. Ana Cristina Araújo reconhece esse papel
inovador de certas partes do exército português e coloca:
(...) o meio militar, com os seus postos-chave preenchidos por oficiais estrangeiros
com boa formação em quartéis e lojas maçônicas, desempenhou um papel importante
no processo de desarticulação dos tradicionais mecanismos de reconhecimento
cultural e social. (ARAÚJO, 2003, pp. 92-93)
final do Poema da Lei Natural e Maomé, e também A oração universal, de Alexander Pope.
Para além dessas, foram-lhe atribuídas as traduções de Anacreonte, Virgílio, Horácio, Racine,
Montesquieu e Shakespeare, entre outros. (MALATO & MARINHO, 2006)
Tendo tudo isso em mente, um valioso ponto a ressaltar é o desejo de caráter pessoal de
Manoel de participar desse grupo, tendo deixado seus estudos universitários para adentrar na
Artilharia, mesmo não havendo qualquer tipo de razão externa para o fazer, com até mesmo
seus pais sendo contra tal ideia. Ele alega que aquele era o único lugar capaz de lhe propor os
ensinamentos necessários para dar continuidade aos seus estudos e, assim, abandonou a
reformada universidade de Coimbra, com um novo departamento exclusivamente dedicado ao
estudo da matemática (Carvalho, 2008, p. 63), para servir sob esse regimento. Essas são
colocações impressionantes, poderia um regimento do exército angariar todo esse
conhecimento e influência? A fala de Manoel pode ser vista no trecho abaixo:
(…) Dice que havera pouco mais de dous annos depois de ter aprovado nos
dous antecedentes Mathematica nesta Universidade para assentar Praça no
Regimento da Artilharia do Porto aquartelado na Praça de Valença contra a
vontade de seos Pays, unicamente por inclinação sua própria e desejos do
seo adiantamento naquele exercicio E ali por lhe persuadirem que só os
livros françeses são os que melhores tratarão da materia (...) (Processo da
Inquisição de Manoel do Espirito Santo Limpo, p. 23)
Importante destacar, assim, que a participação naquele grupo de militares ilustrados foi
um desejo de Manoel e entendido como caminho para ter acesso a livros que uma pessoa
comum não teria, além de usufruir da companhia de militares estrangeiros bem estudados. Já é
reconhecido por vários historiadores como o exército foi um grande ponto de propagação de
ideias ilustradas dentro de Portugal, mas faz-se necessário aqui chamar a atenção para o fato de
que o renome desses grupos era tão grande que Manoel dá preferência ao serviço militar em
detrimento de uma notável universidade.
(…)Dice elle que tem mais alem do que tem declarado: huma veste de pano azul de
pouco valor e o resumo do calculo integral e diferencial de Bezut, em hum volume.
Entre os volumes do sequestro de Jose Barreto estarão alguns de elle Reo, que são:
• Hum volume com duas comédias intituladas: o Aldeão gentil e o medo por força;
todos escritos na língua francesa. Elle parece que tem mais três tomos de lhe
lembra os authores nem também de que tratam, e só lhe parece que saõ de comedias
e viagens e mais naõ Dice. (Processo da Inquisição de Manoel do Espirito
Santo Limpo, pp. 17-18)
Além do livro de Étienne Bézout, matemático francês que era conhecido nos setecentos
por seus avanços científicos e lições didáticas, nada foi encontrado a respeito das obras acima.
A princípio então podem parecer irrelevantes as informações aqui colocadas, mas importante
ressaltar que, por exemplo, a mera presença desses livros em língua francesa demonstra que
além de já estar apto a ler obras inteiramente em francês, Manoel possuía um interesse muito
mais do que superficial na literatura do resto da Europa, com o francês sendo a língua franca
do período. O fato de falar uma segunda língua também reforça seus status como elite. Essa
preocupação com o mundo além das fronteiras nacionais de Manoel se remete fortemente ao
ponto colocado no início do artigo a respeito do cosmopolitismo presente nos ideais iluministas.
E aqui é importante também salientar que Manoel parece ter ocultado propositalmente
tais livros em posse do colega no início de seu processo. Para melhor entender essa atitude do
militar, é preciso primeiro esclarecer como se davam as censuras dentro de Portugal nesse
período e qual tipo de obras, e consequentemente seus leitores, eram alvos de repressão. Luiz
Carlos Villalta escreveu sobre o assunto:
Na lei de 5 de abril de 1768, que instituiu a Real Mesa – e também em muitos dos
editais e leis expedidos pela mesma – são apresentados como objetivos a unificação
do processo censório, o aumento de sua eficácia, sua subordinação direta à Coroa e,
ao mesmo tempo, o prosseguimento da ofensiva contra os jesuítas, iniciada em 1759
com a expulsão da Companhia de Jesus. (VILLALTA, 1999, P. 154)
O trecho acima mostra como no final do século XVIII o aparato censório, presente em
Portugal desde o início da contrarreforma, continuou operacional, apesar de agora estar
reformado. Pombal fez de uso desse sistema para lutar contra seus oponentes políticos, como
os jesuítas, mas também o usou para reforçar sua agenda regalista, e é preciso ressaltar, que
agora o índex de livros proibidos deixava de se confundir com o proposto pelo Papa. Faz sentido
que o estado português, cada vez mais absolutista durante os setecentos, continuasse, mesmo
após a queda de Pombal, a tomar medidas para evitar a propagação de ideias perigosas que
pudessem incitar movimentos contra a monarquia ou qualquer um dos novos preceitos
autoritários e centralizadores do novo regime lusitano.
Nesse regimento da Real Mesa Censória existiam quinze condições que tornavam as
obras passíveis de proibição. Elas diziam respeito a uma variedade de assuntos, mas alguns
exemplos significantes para este artigo são: As condições 6 – conter obscenidades que
corrompessem os costumes e a moral do país; e 7 - ser infamatórios e trazer sátiras, que
atacassem diretamente as pessoas, ultrapassando os limites da decência; A condição 14 - ser de
autoria dos “Pervertidos Filósofos destes últimos tempos”; E por fim, 1 - de autoria de ateus,
que combatessem “nossa Santa Religião”; e 2 – de autores protestantes contrários a fé católica;
e 3 - que negassem a obediência ao Papa 12.
A partir de uma análise mais extensiva dessas condições, é possível concluir que a
censura dentro de Portugal concedia um peso expressivo aos livros contra a religião (sete
condições, da 1ª à 5ª, a 9ª e a 10ª) e à política (seis, a 8ª e da 10ª à 14ª) e, inversamente, pouca
importância aos que afrontassem a moral (duas, a 6ª e a 7ª) e a cultura (três, 5ª, 6ª e 15ª). Os
escritos dos protestantes, como se pode observar, e dos ilustrados mais radicais, enquadravam-
se perfeitamente em uma ou mais dessas condições, ou mesmo em todas (VILLALTA, 1999,
pp. 163-164).
Apesar de não encontrarmos livros dos “radicais” no inventario de Manoel, vemos que
muitas das obras abordavam temas polêmicos levando em consideração as proibições expostas.
Apesar não ser possível saber exatamente qual o conteúdo desses livros, isso não nos impede
de conjecturar sobre as repercussões de Manoel tê-los em sua biblioteca. Os livros, por
exemplo, que contam sobre viagens à Holanda e à Alemanha bastam ter breves ou pequenas
menções a respeito da religião protestante desses países para sofrerem forte escrutínio das
autoridades locais, agora imagine se tal livro falasse positivamente dessas práticas religiosas e
culturas.
Outros livros que chamam a atenção são: Desgraça, que Manoel não se lembra qual o
autor, e o volume com duas comédias: O Aldeão Gentil e O Medo por Força. Esses dois
parecem se enquadrar perfeitamente na condição 7, a qual se refere a sátiras, e as duas parábolas
parecem abordar temas políticos, temas sensíveis, como já colocado. Após tal colocação pode-
De toda forma, para terminar de pintar o retrato de Manoel como ilustrado, é preciso dar
continuidade à análise de seu processo. Algumas páginas adiante, o foco se torna as testemunhas
que, junto dos inquisidores e suas habilidades investigativas ao entrevistar os jovens soldados
e comparar suas falas, recriaram uma série de relatos que viriam ser usados contra Manoel, na
medida que mostravam as ditas práticas “depravadas” do réu. O primeiro relato transcrito
abaixo é ótimo ponto de partida, pois é exemplo claro das discussões que se davam dentro do
regimento do Minho:
(...) Que ao quartel aonde ele estava aquartelado tem declarado costumavao vir
algumas vezes Antonio Luis Porta bandeira da infantaria, Denis Frederico soldado
Também de infantaria, Luis Goteres primeiro tenente Da artilharia, e tem ele Reo
per certo, que em algumas das ditas occasioins falaria afim (…ilegível…), Como
Jose Barreto e João Manoel de quem tem dito na presença dos sobreditos em alguns
pontos de religião e doutrinas de Volter (Voltaire), mas não tem individual
lembrança (...) (Processo da Inquisição de Manoel do Espirito Santo Limpo,
p. 39)
Quando lemos o trecho acima, vemos que Manoel tinha muito mais contato com outras
obras proibidas do período que o resto do documento permite verificar, principalmente se
pensarmos na afirmativa feita alguns parágrafos acima de que os livros desse regimento
circulavam livremente entre seus componentes. Mas além disso, esse trecho também reforça o
nível de discussão que esses regimentos militares estavam tendo entre seus integrantes. Voltaire
foi um dos grandes expoentes da luta contra o Antigo Regime e sua menção por si só já pode
se mostrar como preocupante para o regime em vigor. Este fato é confirmado pela sua breve,
mas inexorável, presença no processo.
Voltaire sempre foi grande crítico de sua terra natal, a França, por conta de seu regime
considerado autoritário, e constantemente a comparava com Inglaterra, seu local de exílio e
moradia de longa data. O autor fazia repetidos elogios à monarquia constitucional inglesa,
chegando ao ponto de colocar os ingleses, no conto filosófico “La princesse de Babylone”,
como os adultos da Europa, enquanto os franceses como as crianças 13.
Outros trechos chamativos durante essa fase de investigação são as várias alegações de
Manoel do Espirito Santo Limpo confessar-se afastado e descrente da fé cristã, diante de seus
colegas, tal como se pode verificar na seguinte transcrição: (…) Dice que desta prática ficara
elle inteiramente duvidoso e apartado da fé, o que comunicara em casa do dito Jose Barreto e
ao dito João Manoel propondo-lhe o mesmo argumento (…). (Processo da Inquisição de Manoel
do Espirito Santo Limpo, p. 46-47)
Abaixo encontra-se outra passagem alegando que Manoel do Espirito Santo Limpo
admitiu proferir, em forma de oitava (poesia), juntamente com João Manoel e José Barreto,
suas dúvidas, novamente, a respeito da existência de Deus.
(…) Oh Deos que todo o mundo desconhece. Oh Deus que tudo enuncia. Ouviu
ontem a palavra que minha boca pronuncia. Se eu me enganei foi procurando a
velha fé. Meu coração pode perderse. Mas elle está cheio de vós. Eu vejo sem me
estremecer. Aparecer a eternidade. Eu não posso pensar que hum Deos que me deo
o ser. Hum Deos que durante a minha vida me concedeo tantos benefícios. Quando
me dá a morte me condene para sempre (…) (Processo da Inquisição de Manoel
do Espirito Santo Limpo, p. 25)
E ao verificar o último trecho relevante que destaquei do processo, vemos como Manoel
concordou com essas e todas as outras afirmações feitas sobre sua pessoa. Abaixo está a
transcrição:
(...) Dice mais que, em virtude desta prática ficara elle reo inteiramente duvidoso e
apartado da Fé: e que comunicara estes mesmos sentimentos a certas pessoas, que
declarou, propondo-lhe o mesmo argumento. Que pela continuação que tinha de falar
com as que já eram pervertidas e inflacionadas, sentia cada vez menos remorsos na
consciência, e o seu animo mais inclinado às doutrinas do mesmo impio e heretico
author que se reduziam a crer, que havia um Deos, que se não conhecia, que se não
devia fazer mal ao próximo, nem temer a Eternidade: E que elle reo ficava cada vez
mais persuadido em que a Religiaõ Catholica era falsa, e da mesma sorte entendia
que não havia alguma verdadeira no Mundo. Que logo que vira os procedimentos
deste Tribunal contra algumas pessoas desejando remediar o mal que tenha durado,
não tanto pelo terror de ser prezo como pela grande dor e horror de suas culpas, e
13LOPES, Marco Antônio. Voltaire Político: Espelhos de príncipe de um novo tempo. São Paulo: Editora UNESP,
2004, pp. 25-26.
que estas eram as que tinha cometido, o que lhe pezava muito, dellas pedia perdão e
que com elle sentisse mezericordia. (...) (Processo da Inquisição de Manoel do
Espirito Santo Limpo, p. 132)
Seja qual for o caso, apesar de ter sido discutido que não necessariamente eram todos
os ilustrados que se mostravam tão contrários a religião, é inegável o fato de que muitos deles
acreditavam na disseminação do conhecimento como forma de enaltecer a razão em detrimento
do pensamento religioso, pregando doutrinas como o deísmo e até mesmo o ateísmo em alguns
casos, e Manoel se encaixa perfeitamente aqui. A noção de que nada deve ficar livre de
escrutínio, dentro do conceito de ceticismo elencado por Pagden, remete ao fato de que todas
as facetas da vida humana deveriam ser permeadas pela razão iluminista, e Manoel, mesmo no
caso de sua redenção, se mostrou inclinado, em ao menos um momento de sua vida, a aplicar a
razão até mesmo aos assuntos de fé.
Considerações finais
E sabe-se que a situação do Observatório Real de Marinha, nos primeiros anos de vida,
não foi nada fácil, no entanto, Manoel foi sempre uma pessoa bastante crítica, sobretudo, no
que toca à necessidade que havia de se criar melhores condições para o Observatório, sonhava
em dar-lhe instalações mais adequadas, e muito cobrou do estado português (Parreira, 2019, pp.
30-41). Ele também deve ter deixado sua marca em todos os soldados e discípulos que passaram
por sua tutoria. Nem todo ilustrado precisa ser radical em suas posições políticas, e convicções
pessoais, basta ele acatar e defender os conceitos básicos do movimento para ele ser
considerado como tal. Ao final, este artigo, assim como outros, pretende reforçar que o
iluminismo foi um movimento de larga escala e heterógeno, que se moldou a realidade de cada
contexto regional e individual.
Espera-se então que a essa altura fique mais clara a posição ilustrada de Manoel do
Espírito Santo Limpo, não só ele se mostrou avido leitor em tempos turvos, como também era
um cosmopolita a par das ideias de toda a Europa, além de um cético homem das ciências. E
talvez a maior contribuição deste artigo seja a melhor caracterização de um indubitável e
influente meio de propagação de ideias iluministas dentro de Portugal, o qual Manoel fez parte,
e onde seus integrantes tomavam partidos em acaloradas discussões de cunho político,
filosófico e até mesmo religioso e que compartilhavam com qualquer um que estivesse
interessado todo seu arcabouço intelectual.
Bibliografia
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