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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA-UnB

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS


CURSO DE HISTÓRIA

Victor Freitas de Souza

O processo inquisitorial de Manoel do Espirito


Santo Limpo e a questão do movimento ilustrado
português.

BRASÍLIA
2022
Victor Freitas de Souza

O processo inquisitorial de Manoel do Espirito


Santo Limpo e a questão do movimento ilustrado
português.

“Trabalho de Conclusão de Curso”


apresentado ao Departamento de História do
Instituto de Ciências Humanas da
Universidade de Brasília como requisito parcial
para a obtenção do grau de
licenciado/bacharel em História”.
Orientador (a): Neuma Brilhante
Rodrigues

BRASÍLIA
2022
Victor Freitas de Souza

O processo inquisitorial de Manoel do Espirito


Santo Limpo e a questão do movimento ilustrado
português.

Brasília, 11/05/2022

COMISSÃO EXAMINADORA

Neuma Brilhante Rodrigues

____________________________________________

Daniel Gomes de Carvalho

_____________________________________________

Luiz César de Sá

_____________________________________________
Dedicatória
Este trabalho é dedicado ao meu pai, por
seu apoio e paciência, minha mãe, aquela
com quem eu mais gostaria de ter
compartilhado esse momento, e a todos
meus amados familiares e amigos, assim
como minha querida filha, Morgana...
O processo inquisitorial de Manoel do Espirito Santo Limpo e a
questão do movimento ilustrado português

Victor Freitas de Souza

RESUMO

Este artigo analisa o processo inquisitorial de Manoel do Espirito Santo Limpo com o objetivo
de colaborar com o debate historiográfico a respeito da ilustração, mais especificamente, na
defesa de um movimento iluminista plural, que se moldou a contextos históricos específicos,
como foi o caso português. Manoel do Espirito Santo foi militar, matemático e professor e foi
julgado por heresia e apostasia, pois renegou publicamente ter fé em Deus e na Igreja. Foi ávido
leitor, possuía uma biblioteca significativa para a época, inclusive com tomos em francês, e se
mostrou defensor da ciência e da razão. Por fim, este trabalho terá o intuito de caracterizar esse
militar como ilustrado e enfatizar a significância de seu regimento como local de articulação de
ideais dentro de Portugal dos setecentos, mostrando que a célebre Universidade de Coimbra
não deve ser entendida como único centro irradiador da Ilustração em Portugal.

Palavras-chave: História moderna, Iluminismo, Ilustração, Portugal, Inquisição, UnB.

ABSTRACT

This article analyzes the inquisitorial process of Manoel do Espirito Santo Limpo with the
objective of collaborating with the historiographical debate about the Enlightenment, more
specifically, in the defense of a plural movement, which was malleable to specific historical
contexts, as was the case in Portugal. Manoel do Espirito Santo was a soldier, mathematician
and teacher and was tried for heresy and apostasy in 1778, as he publicly denied having faith
in God and the Church. He was an avid reader, had a significant library for the time, including
volumes in French, and was a defender of science and reason. To summarize, this work will
aim to characterize this soldier as a tinker of the Enlightenment and emphasize the significance
of his regiment as a place of articulation of ideals within Portugal in the eighteenth century,
showing that the famous University of Coimbra should not be understood as the only irradiating
center of Enlightenment in Portugal.

Keywords: Modern history, Enlightenment, Portugal, Inquisition, UnB.

“Iluminismos”

O Iluminismo, como Wieland colocou, significava ter "luz suficiente ... para que
aqueles que venham a ver com sua ajuda não sejam cegos nem tenham sua visão
ofuscada, e nem, mesmo por qualquer outro caso, impedidos de ver nem de querer
ver." Significava separar o verdadeiro do falso, desembaraçar o emaranhado, dissolver
o complexo em seus componentes originais simples e, em seguida, persegui-los de
volta às suas origens. Acima de tudo, significava que “nenhuma representação ou
reivindicação passada pelos homens como verdadeiras sejam livres de escrutínio
irrestrito.” Somente por estes meios seria finalmente possível diminuir “a massa de
erros e enganos perniciosos que escurecem o entendimento humano.” (PAGDEN,
2013, p. 38)

Anthony Pagden1 faz parte do campo da história que acredita em "Iluminismos", ou seja,
que este movimento foi plural, com apropriações e soluções específicas, a depender das
localidades e a partir de experiências históricas próprias, mas com amplas semelhanças de
propósito e método. A sua noção de Iluminismo é estruturada por uma série de conceitos chave
que pretendem descrever as ideias e mentalidades dos setecentistas. Entre eles, podemos
destacar o ceticismo, o cosmopolitismo e o cientificismo, que serão melhor explicados abaixo.
O autor define esses pontos a partir de suas observações, mas ele também ressalta como todos
esses eram temas de debate dos próprios ilustrados2.

O ceticismo, mais especificamente, a noção do escrutínio irrestrito de qualquer tema


pertinente, com certeza foi o aspecto mais polêmico do movimento ilustrado, mas talvez
também um dos mais importantes. Foi amplamente defendido pelos pensadores setecentistas,
mesmo que com diferentes graus de intensidade a depender do indivíduo em questão e da

1 Seguirei este autor na apresentação do movimento iluminista. Os trechos citados de sua obra foram
traduzidos por mim.
2 “A luta pela identidade do Iluminismo também fez parte do próprio Iluminismo.” (PAGDEN, 2013,

P. 29)
tradição a qual pertencia. Havia aqueles que queriam questionar até mesmo a religião e a
cultura, enquanto outros preferiam deixar certos temas livres de questionamentos.

O segundo é o ideal de cosmopolitismo, a ideia de que somos “cidadãos do mundo”,


visto repetidamente nos escritos dos pensadores do período. O Marquês de Condorcet, famoso
filosofo do século XVIII, e Christoph Martin Wieland, mencionado na epígrafe deste texto, são
alguns exemplos de claros defensores dessa ideia, apesar de não usarem o termo. A palavra tem
sua origem em uma fala de Diógenes, o cínico do século IV a.C., o homem famoso por morar
em um barril e andar pelas ruas de Atenas ao meio-dia com uma lâmpada acesa em busca de
um “homem honesto”, que quando perguntado de qual cidade (polis) ele vinha, respondia: “Sou
cidadão do mundo” (Kosmopolites). Apesar da palavra inicialmente ter conotação negativa 3,
esse pensamento de que todos os seres humanos são membros de uma única comunidade e,
logo, igualmente capazes e merecedores dos mesmos direitos, princípio em que viria a sustentar
a declaração universal dos direitos humanos, rapidamente se tornou dominante na mente de
grandes pensadores dos setecentos.

O último conceito é o cientificismo: a convicção de que a natureza humana pode ser


estudada pela filosofia com a mesma precisão que as ciências exatas estudam os fenômenos
naturais. As ciências naturais, coloca Condorcet, alcançaram sucessos surpreendentes no século
XVII, e para isso basearam-se em uma única crença: de que todas as leis do universo são
“necessárias e constantes” ao longo do tempo. Como os humanos fazem parte desse universo,
o estudo de sua história, por exemplo, permitiria ao historiador prever, com grande
probabilidade de acerto, os eventos do futuro. O autor ressalta a improbabilidade da descoberta
de leis tão precisas quanto as da física, mas, de toda forma, defende uma nova maneira de
encarar as questões sociais no século XVIII (PAGDEN, 2013, pp. 24 e 25).

Esse ponto pode chamar a atenção ao possibilitar uma interpretação errônea da


mentalidade dos iluministas, no sentido de lhes atribuir um racionalismo exacerbado. Pagden
destaca ser ingênuo confundir o Iluminismo com o racionalismo. O autor reforça esse ponto ao
citar a ideia de Hume, outro pensador do séc. XVIII, de que "a razão é e só deve ser escrava das
paixões", e dando a devida atenção ao culto setecentista da sensibilidade e do conceito de

3 “Mais tarde, a expressão foi tomada pelos estoicos, que, como veremos, desempenhariam um papel transformador
em sua história posterior. Para todos os opróbrios dirigidos contra ela no século XIX e século XX, quando o
“cosmopolitismo” passou a ser lançado como uma forma de imoralidade, uma traição à verdade e objetos
apropriados de lealdade, que não era para o mundo, mas para a nação, mostrou-se notavelmente resiliente.”
(PAGDEN, 2013, P. 28)
sociabilidade, com isso pode-se enxergar um movimento muito preocupado também com o
aspecto passional do ser humano.

Pois no centro do “projeto iluminista” houve uma tentativa de descobrir uma nova
definição de nada menos do que a própria natureza humana. E isso exigia muito mais
do que a simples aplicação da razão irrestrita. Exigiu, primeiro, uma compreensão das
“paixões” (...). (PAGDEN, 2013, p. 46)

Mesmo com diversos historiadores defendendo a pluralidade do movimento ilustrado,


com as características acima se mostrando, caso após caso, muito maleáveis e capazes de
adaptação aos contextos em questão, a questão da Ilustração portuguesa continua sendo tema
polêmico. João de Azevedo e Dias Duarte propõe em seu artigo “Iluminismo e religião: ruptura
ou continuidade” que, para entender essa divisão dentro da historiografia, basta olhar para como
a questão religiosa foi tratada dentro do iluminismo por diferentes autores.

Em grande medida, o interesse concedido à essa questão é fruto da centralidade que o


Iluminismo assumiu desde a Revolução Francesa, em que a emergência de uma narrativa da
modernidade secularizada como uma ruptura radical com um passado tirânico surgiu. O
secularismo esteve no centro de uma série de interpretações histórico-filosóficas a respeito do
Iluminismo durante o século XX, todas essas inspiradas pela narrativa da ilustração
reformadora. Paul Hazard (2015) e Peter Gay (1977) são exemplos de historiadores que viam a
ilustração como um fenômeno transformador e secular por excelência. Na visão deles, entre
outros, o Iluminismo é geralmente concebido como um secular, racional, igualitário e
democrático programa de libertação humana (DUARTE, 2020).

Pode-se imaginar como nessa visão é quase impossível aceitar um iluminismo que
dialogou e se conciliou com a religião, e que se desviou dos pensamentos dos “radicais”
filósofos parisienses. Mas hoje, que o horizonte revolucionário deu lugar a uma visão mais
sombria, uma de crescente ceticismo em relação ao progresso tecnológico, a religião reafirmou-
se na vida pública, e o legado da ilustração está recebendo atenção renovada. Mas importante
ressaltar o argumento de Duarte que, embora a relação entre o Iluminismo e a religião, segundo
a literatura recente, seja melhor caracterizada como continuidade ao invés de ruptura, essa
continuidade também envolveu transformações, inclusive na própria maneira como a religião
era entendida (DUARTE, 2020, p.107).
Desde a década de 1980, historiadores têm defendido o diálogo entre o iluminismo e a
religião e, consequentemente, a experiência se mostrou muito diferente do pensamento pregado
por filósofos como Voltaire e Rousseau. O “Iluminismo Radical”, para fazer uso do termo de
Jonathan Israel, pode ser visto como uma dentre várias vertentes da ilustração. Neste sentido,
historiadores como John Pocock (1999), Dale Van Kley (1996), Jonathan Shehaan (2005) e
William Bulman (2016) defenderam um iluminismo muito mais amplo e menos radical do que
havia se argumentado no passado.

No que se refere ao Iluminismo português, apesar dos estudos e questões anteriormente


mencionados, há certa continuidade em o identificar, nas historiografias brasileira e portuguesa,
não como um caso particular, mas sim como incompleto ou precário, e têm como referência
uma suposta Modernidade europeia, entendida como uniforme e altamente inovadora.
Felizmente, percebemos alterações nesta forma de analisar. Neste sentido, podemos mencionar
o trabalho de Flávio Rey de Carvalho que examina as produções intelectuais lusas do século
XVIII e suas tentativas de conciliação entre ideias modernas e tradição católica (CARVALHO,
2008).

Neste artigo, portanto, pretende-se analisar certos aspectos da Ilustração portuguesa em


diálogo com outros autores atuais que consideram o movimento intelectual em voga no
Setecentos, longe de ter sido uniforme, como possuidor de diversas tendências.

O trabalho em tela terá como fonte o processo inquisitorial de Manoel do Espirito Santo
Limpo4, que nos traz a possibilidade de refletir sobre a experiência ilustrada portuguesa a partir
de outros centros de difusão de ideias que não a célebre Universidade de Coimbra. Ele foi um
importante escritor, lente (professor universitário) e militar português do século XVIII e início
do século XIX. Nasceu em 1755, durante o reinado do rei José I, em Madalena, Olivença. Filho
de Francisco do Espírito Santo Limpo e de Margarida Eugénia Rosado, naturais também de
Olivença, viria a casar-se, mais tarde, com Maria da Maternidade d’Abreu e Oliveira. 5

4 Processo de Inquisição de Manoel do Espirito Santo Limpo, Arquivo Nacional da


Torre do Tombo. Disponível em: https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=2358163 - Sítio para pesquisas de
arquivos digitalizados do acervo.
5 Além da fonte citada, outras informações a respeito da vida de Manoel foram encontradas na obra “Manoel

do Espírito Santo Limpo: uma biografia” de Diogo Manuel Zegre Parreira, Mestre em Ciências Militares Navais,
da Escola Naval de Portugal. Ele teve acesso a um número maior de fontes documentais a respeito da vida do
ilustrado, traçando um nítido retrato, apesar de que enfrentou os mesmos problemas que este artigo na
medida que suas fontes também são todas de cunho institucional.
Pouco se sabe sobre sua vida privada além do que foi colocado acima, com as fontes de
cunho institucional, que são as únicas disponíveis sobre o indivíduo, deixando poucas
oportunidades para enxergar esse ângulo da narrativa. Mas algumas colocações em seu processo
inquisitorial possibilitam inferir que ele vinha de família com certo grau de importância e com
posses. Ele alega em seu inventario, por exemplo, que havia ainda de receber herança de seus
pais, inferindo uma quantidade ao menos notável de bens acumulados por sua família. Há
também o fato de que cursou matemática na citada Universidade de Coimbra, sendo natural,
como já dito, de Olivença, feito esse possível apenas para as classes mais favorecidas da
sociedade, com condições de sustentar o estudante durante sua estadia fora de casa.

Enquanto lente, na Academia Real da Marinha e na Companhia Real das Guardas


Marinhas, Manoel teve um papel significativo e foi um dos responsáveis pela formação de
oficiais militares da marinha de guerra portuguesa e da marinha mercante, tendo sido ele
também o responsável por escrever os primeiros livros, em língua portuguesa, de manobras de
navios e de táticas navais. Foi também, por nomeação da rainha D. Maria I, o primeiro diretor
do Observatório Real da Marinha, logo após sua criação em 1802. O ilustrado conciliou muito
bem sua vida intelectual e militar, mas escrevia principalmente para os seus “discípulos”
(Parreira, 2019, p. 7) e seus trabalhos se concentraram nas áreas da engenharia, matemática e
navegação, sendo essas todas voltadas para as ciências exatas, militares e a guerra. Manoel do
Espirito Santo estava se organizando para vir ao Brasil, como diretor do Observatório, quando
faleceu em 29 de outubro de 1809, poucos meses antes da partida dos navios que levariam os
equipamentos de sua instituição para a América Portuguesa (Parreira, 2019, pp. 16-41). Sua
vida foi repleta de significativos episódios. Este artigo abordará especificamente a prisão pelo
Santo Ofício em 1778, acusado de heresia e apostasia.

Manoel fora denunciado por alguém que o presenciou publicamente negar e distorcer a
fé, o que caracterizava apostasia e heresia, respectivamente. Manoel se tornou réu em um
processo que durou pouco mais de um ano e culminou em uma branda penitência. Tal
experiência, contudo, em nada impediu o militar e intelectual de continuar sua carreira e de
assumir importantes cargos, como foi visto anteriormente. Seu julgamento perante o Santo
Oficio, contudo, traz à tona outros lados de sua vida intelectual que se mostram bastante
pertinentes ao debate historiográfico de Portugal durante os setecentos.
As luzes de Portugal

Os Inquizidores Aspostolicos contra a hirética pravidade e apostazia nesta


cidade de Coimbra e seu distrito. Mandamos a qualquer familiar ou offical
do Santo Officio a que esse da nossa parte for aprezentado que na villa delle
(…ilegível…) onde for achado Manoel do Espirito Santo Limpo que se diz ser
natural de Olivença, destacado na ditta villa. (Mandato de prisão. Processo
da Inquisiçaõ de Manoel do Espirito Santo Limpo, p. 7.)

Manoel do Espirito Santo Limpo foi preso em 28 de janeiro de 1778, de acordo com a
primeira página de seu processo inquisitorial, apesar do mandato acima datar de 4 de janeiro de
1777. Após começado o processo, os Inquisidores se propuseram a “alcançar a verdade” a
respeito das denúncias de “depravidade” feitas por Joaquim Vicente Pereira de Araújo 6,
encaixando-se como heresia e apostasia, como visto acima. O próprio Manoel não escondeu
seus feitos e confessou serem verdadeiras suas falas contra Deus e a religião. Sua condenação
foi definida em 16 de outubro de 1778 e teve como punição a obrigação de se confessar em
quatro alturas festivas da Igreja Católica: o Natal, a Páscoa, a Ressurreição do Espírito Santo e
a Assunção de Nossa Senhora, e a rezar a cada semana um terço à Virgem Maria e, nas sextas
feiras, cinco Pai Nossos e cinco Ave Marias. 7

Não há como saber se Manoel cumpriu sua penitência, mas não há dúvidas de que essa
foi levíssima dadas as acusações e confissões. Pode-se conjecturar, diante da procedência dos
fatos do processo, que Manoel não tinha outra intenção senão confirmar as denúncias e assumir
seus discursos contra a fé na presença dos inquisidores. Isso pode ter sido feito na esperança de
que a sua penitência fosse branda, e talvez até para a possível salvação de sua alma, mas não se

6 Processo da Inquisição de Manoel do Espirito Santo Limpo, p. 5


7 Processo da Inquisição de Manoel do Espirito Santo Limpo, p. 143
pode descartar também a possibilidade de suas confissões terem sido provocações e até insultos
direcionados aos clérigos e à religião da qual havia se afastado.

Importante aqui salientar que essa inquisição não era mais a mesma que fora no passado,
tendo sofrido alterações no âmbito do processo reformador do Marquês de Pombal. Como
pondera Luís Ramos: “O Regimento de 1774, publicado pelo Marquês de Pombal, seculariza a
Inquisição, coloca-a na dependência da Coroa, formula um violento requisitório contra os
jesuítas, ataca o sigilismo e testemunha mudanças de vulto no aspecto penal” (RAMOS, 1988,
p. 173). Com isso em mente, é possível considerar a possibilidade da atitude de Manoel ter sido
uma afronta diante das autoridades desta Inquisição “castrada”, agora secularizada, e que não
podia punir em bases puramente religiosas. Esta Inquisição reformada, contudo, serviu à clara
empreitada política da nova monarca portuguesa, Maria I, que queria enfraquecer os aliados de
seu antigo rival, Pombal, e qualquer outro elemento subversivo dentro de seu reinado, no
movimento que ficou conhecido como “Viradeira” (MAXWELL, 2001, p. 162).

A justificativa dada para a prisão de Manoel foi de cunho puramente religiosa, mas seria
ingênuo assumir que essa instituição, agora atrelada ao estado, não possuía interesses políticos
em suas ações. Esta tese é reforçada pelo fato de vários de seus colegas de regimento terem sido
réus em processos inquisitoriais naqueles anos, os quais eram reconhecidos como estudiosos e
leitores das mais novas e polêmicas obras dos setecentos. Era rotineiro dos monarcas
setecentistas proibirem leituras consideradas subversivas aos regimes vigentes. E Sabe-se que
Portugal se enquadrou nesse caso8, fazendo de uso do novo modelo de Inquisição.

As colocações dos parágrafos anteriores apontam para a necessidade de ampliar as


considerações acerca do contexto de Portugal nesse momento, marcado pelo fim das reformas
pombalinas (1750-1777), e pelos esforços de reconfiguração das ações do Marquês a partir das
disputas políticas da chamada “Viradeira”. De modo geral, podemos observar que as ações da
Rainha Maria I não visaram desmantelar o fortalecimento do poder régio construído pelas
reformas pombalinas, mesmo Pombal tendo sido seu rival de longa data, chegando até a tentar
impedi-la de assumir o trono por uma lei Sálica. O renomado brasilianista Kenneth Maxwell
coloca:

8 Naquela ocasião, experimentou-se o aumento do controle do material lido pelos alunos e professores com o
intuito de controlar a entrada das ideias consideradas sediciosas que vinham de outras localidades da Europa,
marcadamente da França e da Inglaterra. (CURTO, 1999, 37)
Desse modo, enquanto a reputação de Pombal, “esse grande homem, conhecido como
tal pela classe média e pensante desta nação,” como escreveu Ratton muito mais tarde,
era eclipsada, o grupo que ele havia favorecido permaneceu e prosperou. A queda de
Pombal, longe de debilitar seu poder e influência, forneceu um disfarce para a
manipulação do Estado no interesse desse grupo e para que ele açambarcasse a
maioria dos empreendimentos que o Estado havia estabelecido. (MAXWELL, 2001,
p. 166)

Vê-se então que, apesar das disputas políticas entre Pombal e a Rainha, as reformas
políticas que buscaram fortalecer o poder régio nunca correram perigo de retrocederem. O
reinado de D. Maria, assim como as reformas de Pombal buscaram fortalecer o mercantilismo
e a burocracia, assim como o próprio aparato estatal e qualquer outra instituição atrelada a esse
que pudesse ajudar a manter a coesão política, como foi o caso da citada Inquisição portuguesa.

A profissionalização das forças portuguesas também foram objetivo das reformas


pombalinas e teve na ação do Conde Lippe importante marco. Como Portugal pretendia ser
“moderno”, seu exército não podia continuar “defasado”. Ana Cristina Araújo aponta para as
mudanças ocorrendo dentro do exército luso afim de reformá-lo: “No quadro da reorganização
do Exército português (1762-1768), confiada ao conde de Schaumburg-Lippe, várias
guarnições de oficiais estrangeiros foram estrategicamente aquarteladas em pequenas
localidades da província” (ARAÚJO, 2003, 93). O Regimento de Artilharia do Porto, onde
Manoel servia quando foi réu, foi criado naquele contexto.

Quando Manoel foi convocado pela Inquisição ele era cabo de esquadra no Regimento
de Artilharia do Porto, aquartelado na Praça de Valença do Minho. Seu regimento era conhecido
por ter sido notável partidário dessas reformas das forças armadas lusas e tido importantes
aliados do Conde Lippe como comandantes. Ana Cristina Araújo reconhece esse papel
inovador de certas partes do exército português e coloca:

(...) o meio militar, com os seus postos-chave preenchidos por oficiais estrangeiros
com boa formação em quartéis e lojas maçônicas, desempenhou um papel importante
no processo de desarticulação dos tradicionais mecanismos de reconhecimento
cultural e social. (ARAÚJO, 2003, pp. 92-93)

O movimento ilustrado causou grandes polêmicas em seu tempo. O papel dos


regimentos militares como espaço de propagação de ideias tidas como perigosas não passou
despercebido pelas autoridades. Logo no primeiro parágrafo da certidão de decreto 9 do processo
de Manoel encontramos a afirmação de que Inquisição está abrindo dito processo contra os
“Libertinos de Valença”, denominação com forte conotação negativa:

Vários indivíduos foram perseguidos por causa de suas ideias e comportamentos


libertinos, no mundo luso-brasileiro, ao final do século XVIII. Naquele contexto, o
termo libertino foi utilizado para nomear os indivíduos adeptos de uma conduta
considerada licenciosa e corrupta, mas igualmente aqueles que ousaram examinar, de
forma crítica, os ensinamentos da Igreja Católica, as atitudes dos religiosos e as práticas
devocionais dos fiéis (NUNES, 2019, p. 2).

Essa reputação ilustrada e libertina do regimento é facilmente comprovada ao examinar


as figuras com quem Manoel lá teve contato. Como é o caso de José Anastácio da Cunha,
reconhecido ilustrado português. Ele foi nomeado tenente do Regimento de Artilharia do Porto
e ficou aquartelado, também, na Praça de Valença do Minho, no mesmo período que Manoel.
José Anastácio também passou pela Inquisição e foi taxado diversas vezes como libertino diante
de seus escritos e ideias. Esse tenente também foi poeta, tradutor e professor de matemática e
geometria, foi nomeado lente da faculdade de matemática na Universidade de Coimbra pelo
próprio Pombal quando ocorreu a reforma dessa instituição em 1772.10 As suas obras ficaram
caracterizadas pela presença de ideais como a tolerância, o deísmo e o racionalismo, ideias
famosas entre os ilustrados do restante da Europa setecentista, além de ter sido responsável por
traduzir obras dos filósofos ilustrados para a língua portuguesa11. A conexão entres esses
militares ilustrados também é bem conhecida por outros historiadores:

A esse núcleo [o regimento de Valença do Minho] pertenceram, além de outros, os


futuros lentes de matemática, soldado João Manuel de Abreu e cabo Manuel do
Espírito Santo Limpo; os cadetes Henrique Leitão de Sousa e José Barreto e os antigos
companheiros de José Anastácio da Cunha, soldado José de Sousa e tenente José
Leandro Miliani da Cruz. (RAMOS, 1998, p. 176, grifo meu)

9 Processo da Inquisição de Manoel do Espirito Santo Limpo, p. 5


10“Nesse ambiente [o regimento de Valença], o jovem e brilhante José Anastácio da Cunha logo chegou ao
posto de Tenente e era figura frequente em tais debates. Foi ainda responsável pela tradução de poesias
e de outros textos que circulavam pelo regimento. Seus conhecimentos em matemática e em
física levaram-no a ser indicado pelo próprio Pombal, em 1773, para ocupar a cátedra de
geometria na recém-reformada Faculdade de Filosofia e Matemática da Universidade de
Coimbra.” (RODRIGUES, 2008, p.31, grifo meu)
11 Em seu processo, José Anastácio reconheceu haver traduzido, de Voltaire, a oração

final do Poema da Lei Natural e Maomé, e também A oração universal, de Alexander Pope.
Para além dessas, foram-lhe atribuídas as traduções de Anacreonte, Virgílio, Horácio, Racine,
Montesquieu e Shakespeare, entre outros. (MALATO & MARINHO, 2006)
Tendo tudo isso em mente, um valioso ponto a ressaltar é o desejo de caráter pessoal de
Manoel de participar desse grupo, tendo deixado seus estudos universitários para adentrar na
Artilharia, mesmo não havendo qualquer tipo de razão externa para o fazer, com até mesmo
seus pais sendo contra tal ideia. Ele alega que aquele era o único lugar capaz de lhe propor os
ensinamentos necessários para dar continuidade aos seus estudos e, assim, abandonou a
reformada universidade de Coimbra, com um novo departamento exclusivamente dedicado ao
estudo da matemática (Carvalho, 2008, p. 63), para servir sob esse regimento. Essas são
colocações impressionantes, poderia um regimento do exército angariar todo esse
conhecimento e influência? A fala de Manoel pode ser vista no trecho abaixo:

(…) Dice que havera pouco mais de dous annos depois de ter aprovado nos
dous antecedentes Mathematica nesta Universidade para assentar Praça no
Regimento da Artilharia do Porto aquartelado na Praça de Valença contra a
vontade de seos Pays, unicamente por inclinação sua própria e desejos do
seo adiantamento naquele exercicio E ali por lhe persuadirem que só os
livros françeses são os que melhores tratarão da materia (...) (Processo da
Inquisição de Manoel do Espirito Santo Limpo, p. 23)

Importante destacar, assim, que a participação naquele grupo de militares ilustrados foi
um desejo de Manoel e entendido como caminho para ter acesso a livros que uma pessoa
comum não teria, além de usufruir da companhia de militares estrangeiros bem estudados. Já é
reconhecido por vários historiadores como o exército foi um grande ponto de propagação de
ideias ilustradas dentro de Portugal, mas faz-se necessário aqui chamar a atenção para o fato de
que o renome desses grupos era tão grande que Manoel dá preferência ao serviço militar em
detrimento de uma notável universidade.

Um militar ilustrado nos cárceres inquisitoriais

Com o objetivo de elaborar alguns apontamentos sobre a ilustração portuguesa, e sobre


o status de ilustrado do militar em questão, passo agora a destacar três partes do processo. Em
ordem de procedência do documento, a primeira é o inventário dos bens na posse de Manoel
do Espirito Santo Limpo, que elenca suas posses e, em particular, seus livros. A segunda é a
transcrição de algumas das acusações contra Manoel, proferidas por testemunhas, que irão
descrever práticas e dizeres do réu em determinadas ocasiões públicas. E a terceira e última
parte são as confissões do próprio militar perante o Santo Oficio, sendo que essas foram as
principais evidências usadas pelos inquisidores do Santo Ofício para proferirem as acusações e
determinarem a sua penitência. Importante aqui ressaltar que serão citadas apenas trechos
considerados mais relevantes e, por consequência, algumas partes desse processo serão dadas
maior atenção que outras.

Nas primeiras páginas do processo de Manoel encontra-se um inventario, nele o militar


declara alguns de seus bens, nada chamativo, ressaltando que não possui objetos ou imóveis de
alto valor em decorrência de seus pais ainda estarem vivos. Ele declara também um total de seis
livros no ato de sua prisão, todos de matemática, o que parecia ser de pouca importância para
os inquisidores do tribunal, dada a falta de menção deles no decorrer do processo. Algumas
páginas adiante, contudo, novos livros foram incluídos pois foram identificados como
pertencentes a ele no inventário de outro réu, um de seus colegas de regimento. Assim, diante
do ocorrido, Manoel viu-se na obrigação de os incluir em seu próprio inventário. Abaixo está
transcrito a adição ao inventario de Manoel:

(…)Dice elle que tem mais alem do que tem declarado: huma veste de pano azul de
pouco valor e o resumo do calculo integral e diferencial de Bezut, em hum volume.

Entre os volumes do sequestro de Jose Barreto estarão alguns de elle Reo, que são:

• Viagem a Olanda, a Alemanha e a Itália, em hum volume;

• Resumo da Architetura de Vitoriozo, em hum volume;

• Desgraça, não se lembra de que author, em hum volume;

• História de Espanha, hum volume;

• Hum volume com duas comédias intituladas: o Aldeão gentil e o medo por força;

• Hum segundo tomo (…ilegível…) de Jacob

todos escritos na língua francesa. Elle parece que tem mais três tomos de lhe
lembra os authores nem também de que tratam, e só lhe parece que saõ de comedias
e viagens e mais naõ Dice. (Processo da Inquisição de Manoel do Espirito
Santo Limpo, pp. 17-18)
Além do livro de Étienne Bézout, matemático francês que era conhecido nos setecentos
por seus avanços científicos e lições didáticas, nada foi encontrado a respeito das obras acima.
A princípio então podem parecer irrelevantes as informações aqui colocadas, mas importante
ressaltar que, por exemplo, a mera presença desses livros em língua francesa demonstra que
além de já estar apto a ler obras inteiramente em francês, Manoel possuía um interesse muito
mais do que superficial na literatura do resto da Europa, com o francês sendo a língua franca
do período. O fato de falar uma segunda língua também reforça seus status como elite. Essa
preocupação com o mundo além das fronteiras nacionais de Manoel se remete fortemente ao
ponto colocado no início do artigo a respeito do cosmopolitismo presente nos ideais iluministas.

Parecia que o regimento de Manoel realmente possuía os meios de propagar as ideias


que estavam rodando pelo restante da Europa, e ele se mostrou muito interessado em tais
assuntos. Outro fato interessante é que foi na posse de um colega de regimento que esses livros
foram encontrados, assim como o fato dos colegas de Manoel "lhe persuadirem que só os livros
franceses melhor tratarão da matéria" que ele buscava se aprofundar. Diante desses fatos pode-
se inferir duas coisas: que o regimento tinha fácil acesso a obras em francês e que qualquer livro
que pertencesse a um desses homens rodava livremente entre os integrantes do grupo.

E aqui é importante também salientar que Manoel parece ter ocultado propositalmente
tais livros em posse do colega no início de seu processo. Para melhor entender essa atitude do
militar, é preciso primeiro esclarecer como se davam as censuras dentro de Portugal nesse
período e qual tipo de obras, e consequentemente seus leitores, eram alvos de repressão. Luiz
Carlos Villalta escreveu sobre o assunto:

Na lei de 5 de abril de 1768, que instituiu a Real Mesa – e também em muitos dos
editais e leis expedidos pela mesma – são apresentados como objetivos a unificação
do processo censório, o aumento de sua eficácia, sua subordinação direta à Coroa e,
ao mesmo tempo, o prosseguimento da ofensiva contra os jesuítas, iniciada em 1759
com a expulsão da Companhia de Jesus. (VILLALTA, 1999, P. 154)

O trecho acima mostra como no final do século XVIII o aparato censório, presente em
Portugal desde o início da contrarreforma, continuou operacional, apesar de agora estar
reformado. Pombal fez de uso desse sistema para lutar contra seus oponentes políticos, como
os jesuítas, mas também o usou para reforçar sua agenda regalista, e é preciso ressaltar, que
agora o índex de livros proibidos deixava de se confundir com o proposto pelo Papa. Faz sentido
que o estado português, cada vez mais absolutista durante os setecentos, continuasse, mesmo
após a queda de Pombal, a tomar medidas para evitar a propagação de ideias perigosas que
pudessem incitar movimentos contra a monarquia ou qualquer um dos novos preceitos
autoritários e centralizadores do novo regime lusitano.

Nesse regimento da Real Mesa Censória existiam quinze condições que tornavam as
obras passíveis de proibição. Elas diziam respeito a uma variedade de assuntos, mas alguns
exemplos significantes para este artigo são: As condições 6 – conter obscenidades que
corrompessem os costumes e a moral do país; e 7 - ser infamatórios e trazer sátiras, que
atacassem diretamente as pessoas, ultrapassando os limites da decência; A condição 14 - ser de
autoria dos “Pervertidos Filósofos destes últimos tempos”; E por fim, 1 - de autoria de ateus,
que combatessem “nossa Santa Religião”; e 2 – de autores protestantes contrários a fé católica;
e 3 - que negassem a obediência ao Papa 12.

A partir de uma análise mais extensiva dessas condições, é possível concluir que a
censura dentro de Portugal concedia um peso expressivo aos livros contra a religião (sete
condições, da 1ª à 5ª, a 9ª e a 10ª) e à política (seis, a 8ª e da 10ª à 14ª) e, inversamente, pouca
importância aos que afrontassem a moral (duas, a 6ª e a 7ª) e a cultura (três, 5ª, 6ª e 15ª). Os
escritos dos protestantes, como se pode observar, e dos ilustrados mais radicais, enquadravam-
se perfeitamente em uma ou mais dessas condições, ou mesmo em todas (VILLALTA, 1999,
pp. 163-164).

Apesar de não encontrarmos livros dos “radicais” no inventario de Manoel, vemos que
muitas das obras abordavam temas polêmicos levando em consideração as proibições expostas.
Apesar não ser possível saber exatamente qual o conteúdo desses livros, isso não nos impede
de conjecturar sobre as repercussões de Manoel tê-los em sua biblioteca. Os livros, por
exemplo, que contam sobre viagens à Holanda e à Alemanha bastam ter breves ou pequenas
menções a respeito da religião protestante desses países para sofrerem forte escrutínio das
autoridades locais, agora imagine se tal livro falasse positivamente dessas práticas religiosas e
culturas.

Outros livros que chamam a atenção são: Desgraça, que Manoel não se lembra qual o
autor, e o volume com duas comédias: O Aldeão Gentil e O Medo por Força. Esses dois
parecem se enquadrar perfeitamente na condição 7, a qual se refere a sátiras, e as duas parábolas
parecem abordar temas políticos, temas sensíveis, como já colocado. Após tal colocação pode-

12 Informações retiradas do citado livro de Luiz Carlos Villalta.


se entender a decisão de Manoel não mencionar tais livros inicialmente, essas obras, altamente
propicias a censura, e de possível origem ilícita, poderiam prejudica-lo significativamente
dentro do processo.

De toda forma, para terminar de pintar o retrato de Manoel como ilustrado, é preciso dar
continuidade à análise de seu processo. Algumas páginas adiante, o foco se torna as testemunhas
que, junto dos inquisidores e suas habilidades investigativas ao entrevistar os jovens soldados
e comparar suas falas, recriaram uma série de relatos que viriam ser usados contra Manoel, na
medida que mostravam as ditas práticas “depravadas” do réu. O primeiro relato transcrito
abaixo é ótimo ponto de partida, pois é exemplo claro das discussões que se davam dentro do
regimento do Minho:

(...) Que ao quartel aonde ele estava aquartelado tem declarado costumavao vir
algumas vezes Antonio Luis Porta bandeira da infantaria, Denis Frederico soldado
Também de infantaria, Luis Goteres primeiro tenente Da artilharia, e tem ele Reo
per certo, que em algumas das ditas occasioins falaria afim (…ilegível…), Como
Jose Barreto e João Manoel de quem tem dito na presença dos sobreditos em alguns
pontos de religião e doutrinas de Volter (Voltaire), mas não tem individual
lembrança (...) (Processo da Inquisição de Manoel do Espirito Santo Limpo,
p. 39)

Quando lemos o trecho acima, vemos que Manoel tinha muito mais contato com outras
obras proibidas do período que o resto do documento permite verificar, principalmente se
pensarmos na afirmativa feita alguns parágrafos acima de que os livros desse regimento
circulavam livremente entre seus componentes. Mas além disso, esse trecho também reforça o
nível de discussão que esses regimentos militares estavam tendo entre seus integrantes. Voltaire
foi um dos grandes expoentes da luta contra o Antigo Regime e sua menção por si só já pode
se mostrar como preocupante para o regime em vigor. Este fato é confirmado pela sua breve,
mas inexorável, presença no processo.

Voltaire sempre foi grande crítico de sua terra natal, a França, por conta de seu regime
considerado autoritário, e constantemente a comparava com Inglaterra, seu local de exílio e
moradia de longa data. O autor fazia repetidos elogios à monarquia constitucional inglesa,
chegando ao ponto de colocar os ingleses, no conto filosófico “La princesse de Babylone”,
como os adultos da Europa, enquanto os franceses como as crianças 13.

Outros trechos chamativos durante essa fase de investigação são as várias alegações de
Manoel do Espirito Santo Limpo confessar-se afastado e descrente da fé cristã, diante de seus
colegas, tal como se pode verificar na seguinte transcrição: (…) Dice que desta prática ficara
elle inteiramente duvidoso e apartado da fé, o que comunicara em casa do dito Jose Barreto e
ao dito João Manoel propondo-lhe o mesmo argumento (…). (Processo da Inquisição de Manoel
do Espirito Santo Limpo, p. 46-47)

Abaixo encontra-se outra passagem alegando que Manoel do Espirito Santo Limpo
admitiu proferir, em forma de oitava (poesia), juntamente com João Manoel e José Barreto,
suas dúvidas, novamente, a respeito da existência de Deus.

(…) Oh Deos que todo o mundo desconhece. Oh Deus que tudo enuncia. Ouviu
ontem a palavra que minha boca pronuncia. Se eu me enganei foi procurando a
velha fé. Meu coração pode perderse. Mas elle está cheio de vós. Eu vejo sem me
estremecer. Aparecer a eternidade. Eu não posso pensar que hum Deos que me deo
o ser. Hum Deos que durante a minha vida me concedeo tantos benefícios. Quando
me dá a morte me condene para sempre (…) (Processo da Inquisição de Manoel
do Espirito Santo Limpo, p. 25)

E ao verificar o último trecho relevante que destaquei do processo, vemos como Manoel
concordou com essas e todas as outras afirmações feitas sobre sua pessoa. Abaixo está a
transcrição:

(...) Dice mais que, em virtude desta prática ficara elle reo inteiramente duvidoso e
apartado da Fé: e que comunicara estes mesmos sentimentos a certas pessoas, que
declarou, propondo-lhe o mesmo argumento. Que pela continuação que tinha de falar
com as que já eram pervertidas e inflacionadas, sentia cada vez menos remorsos na
consciência, e o seu animo mais inclinado às doutrinas do mesmo impio e heretico
author que se reduziam a crer, que havia um Deos, que se não conhecia, que se não
devia fazer mal ao próximo, nem temer a Eternidade: E que elle reo ficava cada vez
mais persuadido em que a Religiaõ Catholica era falsa, e da mesma sorte entendia
que não havia alguma verdadeira no Mundo. Que logo que vira os procedimentos
deste Tribunal contra algumas pessoas desejando remediar o mal que tenha durado,
não tanto pelo terror de ser prezo como pela grande dor e horror de suas culpas, e

13LOPES, Marco Antônio. Voltaire Político: Espelhos de príncipe de um novo tempo. São Paulo: Editora UNESP,
2004, pp. 25-26.
que estas eram as que tinha cometido, o que lhe pezava muito, dellas pedia perdão e
que com elle sentisse mezericordia. (...) (Processo da Inquisição de Manoel do
Espirito Santo Limpo, p. 132)

No trecho acima, Manoel se confessou descrente na religião e nos seus dogmas,


colocou-se como afastado da fé, além de duvidoso de que qualquer divindade do mundo seria
verdadeira, posição incontestável de um ateu, e assume ter comunicado a outros essas suas
ideias. Mas aqui vemos também que afirmou estar confessando tudo isso diante de culpa e pela
vontade de redenção, como já foi colocado anteriormente neste artigo. E as possíveis
interpretações de suas falas já foram elencadas anteriormente também: ou ele realmente se
redimiu ou fez o que deveria para se livrar de uma grave punição ao mesmo tempo que mostrava
não ter medo de transparecer seus pensamentos mais polêmicos.

Seja qual for o caso, apesar de ter sido discutido que não necessariamente eram todos
os ilustrados que se mostravam tão contrários a religião, é inegável o fato de que muitos deles
acreditavam na disseminação do conhecimento como forma de enaltecer a razão em detrimento
do pensamento religioso, pregando doutrinas como o deísmo e até mesmo o ateísmo em alguns
casos, e Manoel se encaixa perfeitamente aqui. A noção de que nada deve ficar livre de
escrutínio, dentro do conceito de ceticismo elencado por Pagden, remete ao fato de que todas
as facetas da vida humana deveriam ser permeadas pela razão iluminista, e Manoel, mesmo no
caso de sua redenção, se mostrou inclinado, em ao menos um momento de sua vida, a aplicar a
razão até mesmo aos assuntos de fé.

Considerações finais

Pode-se constatar então que Manoel, possuidor de um número significativo de livros


para o período, lia também obras estrangeiras, discutia os filósofos mais polêmicos e até
abertamente criticava Deus e a religião católica, mas aparentemente cumpriu sua penitência e
nunca mais mostrou indícios de reincidência. Ele não escreveu sobre esses pensamentos ou
advogou por tais posicionamentos abertamente dentro da política portuguesa, e isso pode dar a
impressão de que se rendeu ao sistema e às crenças dominantes. Entretanto, essa colocação
pode ir de encontro com a tese central de Jonathan Israel, que defende, em sua obra “Iluminismo
Radical”, a existência de duas vertentes dentro da ilustração.
A primeira, mais radical, interessada em maiores quebras com a norma, e a mais
estudada pelos estudantes de idade escolar, pode ser muito bem representada por um autor como
Voltaire, citado no processo de Manoel. Voltaire nunca foi republicano ou democrata, mas sua
defesa das liberdades civis, incluindo as liberdades religiosas e de livre expressão, são inéditas
e polêmicas para o momento, levando em consideração o contexto do Antigo Regime. Já a
segunda, mais moderada, marcada pela conciliação, e manutenção de uma certa continuidade,
talvez seja mais visível na vida pacata que Manoel levou após seu julgamento. Pode-se imaginar
que ele foi apenas um indivíduo esclarecidos pelas luzes ilustradas, que também desejava mudar
o mundo, mesmo que não drasticamente, concretizando tais mudanças de formas pequenas,
como com suas ações dentro da gestão pública (ISRAEL, 2009).

E sabe-se que a situação do Observatório Real de Marinha, nos primeiros anos de vida,
não foi nada fácil, no entanto, Manoel foi sempre uma pessoa bastante crítica, sobretudo, no
que toca à necessidade que havia de se criar melhores condições para o Observatório, sonhava
em dar-lhe instalações mais adequadas, e muito cobrou do estado português (Parreira, 2019, pp.
30-41). Ele também deve ter deixado sua marca em todos os soldados e discípulos que passaram
por sua tutoria. Nem todo ilustrado precisa ser radical em suas posições políticas, e convicções
pessoais, basta ele acatar e defender os conceitos básicos do movimento para ele ser
considerado como tal. Ao final, este artigo, assim como outros, pretende reforçar que o
iluminismo foi um movimento de larga escala e heterógeno, que se moldou a realidade de cada
contexto regional e individual.

Espera-se então que a essa altura fique mais clara a posição ilustrada de Manoel do
Espírito Santo Limpo, não só ele se mostrou avido leitor em tempos turvos, como também era
um cosmopolita a par das ideias de toda a Europa, além de um cético homem das ciências. E
talvez a maior contribuição deste artigo seja a melhor caracterização de um indubitável e
influente meio de propagação de ideias iluministas dentro de Portugal, o qual Manoel fez parte,
e onde seus integrantes tomavam partidos em acaloradas discussões de cunho político,
filosófico e até mesmo religioso e que compartilhavam com qualquer um que estivesse
interessado todo seu arcabouço intelectual.
Bibliografia

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