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AUTO DA BARCA DO INFERNO

A alcoviteira – Cena VII


I – O resumo da cena
A Alcoviteira é um dos tipos mais interessantes do
teatro vicentino. Estas mulheres dedicavam-se a
fazer casamentos, a desencaminhar mulheres
casadas e solteiras e o lançar rapariguitas na
prostituição.
Como esta profissão estava proibida por lei, para não
caírem na alçada da justiça, fingiam que se dedicavam
a bordar e a fabricar perfumes e cosméticos. O povo
tachava-as de bruxas ou feiticeiras.
É o tipo que nos aparece, neste auto, com mais
elementos distintivos e caracterizadores. É um autêntico
carregamento deles: além das moças que prostituía, importava consigo seiscentos virgos
postiços, joias e vestidos roubados. Para poder montar o negócio no outro mundo, levava
ainda uma casa movediça, um estrado de cortiça e dez coxins.
A linguagem que a Alcoviteira emprega, nomeadamente com o Anjo, funciona também como
elemento distintivo. Trata-se duma linguagem melíflua, lisonjeira, repleta de termos
carinhosos, embora empregados hipocritamente. É notar como a Alcoviteira tenta cativar o
Anjo, chamando-lhe mano, meus olhos, minha rosa, meu amor, minhas boninas, olhos de
perlinhas finas, etc. Seria certamente com esta lábia que ela conseguia atrair as jovens à
chamada vida fácil.
A defesa arquitetada e posta em prática pela Alcoviteira revela mentira, hipocrisia,
descaramento.
Considera-se uma mártir por ter sido açoitada diversas vezes e compara a sua missão à dos
apóstolos.
Chega até a afirmar que converteu mais moças do que Santa Úrsula, que nenhuma delas se
perdeu e que todas se salvaram. Trata-se duma linguagem ambígua, em que os termos
converter, salvar e perder-se, frequentes em textos religiosos, saem dos seus lábios com um
significado chulo.
O tipo está bem caracterizado, mas Gil Vicente critica a prostituição e os seus agentes muito
superficialmente. Nem sequer alude às causas socioeconómicas que impeliam as moças a
prostituírem-se.

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O nosso dramaturgo faz uma crítica a nível popular, explorando o pormenor faceto e foge ou é
incapaz de estudar os problemas que equaciona com uma certa profundidade.

II – Quem era a Alcoviteira?


A Alcoviteira representa os elementos do povo e baixa-burguesia que se dedicavam a
encaminhar as raparigas e mulheres casadas para a prostituição. Representa esta atividade
profissional.
Esta personagem apresenta-se com voz elogiosa e usa uma linguagem popular. Começa por
recusar a entrada no Inferno e acusa-se a si própria dizendo tudo o que traz consigo como se
fosse a coisa mais natural.
É a personagem que mais bagagem traz, representando todos os pecados que fez ao longo da
sua vida. Ela traz toda a carga que lhe “convém”, “casa movediça”, pois pretende continuar
com o negócio que deixou em terra.
Tanto o Diabo como o Anjo não a acusam, mas ela defende-se por não querer ir para o Inferno,
dizendo que casava muitas mulheres, que tinha sido muito martirizara, que tinha convertido
muitas raparigas, que as tinha encaminhado e até que as vendia aos padres da Sé,
argumentando que servia a igreja, deveria ir para o Paraíso.
Em cena, a Alcoviteira dialoga primeiro com o Diabo, depois com o Anjo e finalmente é
condenada ao Inferno.

III – Notas importantes…


1. Palavra derivada por sufixação: alcova + -eira. Por sua vez, a palavra alcova é de origem
árabe (al-qubbâ, «tenda»). Atualmente, significa: pequeno quarto interior de dormir; quarto
de prazeres, sentido figurado: abrigo; refúgio. (pág.122)

2.1. Objetos: “Seiscentos virgos postiços” (v. 499); “alguns furtos alheos” (v. 504); “casa
movediça” (v. 507); “um estrado de cortiça” (v. 508) // Conceitos: “três arcas de feitiços” (v.
500); “três almários de mentir” (v. 502); “cinco cofres de enleos” (v.503); “dez coxins de
embair” (v. 509); Os elementos cénicos que traz consigo mostram-nos que, para além de
intermediária entre as prostitutas e os seus clientes (“essas moças que vendia.” (v. 511)),
Brízida Vaz dedicava-se também à feitiçaria, à mentira. mundo.

2.2. Pelas características da personagem e pela carga que transporta, poderíamos aventar a
hipótese de ela pretender continuar a sua atividade no outro

3. A Alcoviteira entende que já suportou, em vida, muitos tormentos, que já foi


suficientemente castigada com açoites, pela justiça, e considera-se tão perfeita como os
apóstolos, os anjos e os mártires; como tal, merece o Céu (cf. vv. 518-521 e 539-541). Para

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além disso, argumenta que servia o clero, criando “as meninas / pera os cónegos da Sé.” (vv.
534-535) e que salvou muitas “cachopas”, arranjando-lhes “dono” (vv. 542-547).

4. Converter, salvar e perder-se são palavras dos textos religiosos que, na boca da Alcoviteira,
adquirem outros sentidos. Ela atraiu (“converteu”) muitas raparigas para a prostituição, tirou-
as (“salvas”) de uma vida de pobreza e todas tiveram sucesso/clientes (“nenhüa se perdeu”).

5. Quando se dirige ao Anjo, a Alcoviteira escolhe meticulosamente palavras e expressões


carinhosas, procurando lisonjear o barqueiro do Céu, para tentar convencê-lo a deixá-la entrar
na sua barca. Cf., por exemplo, v. 526 (“Barqueiro, mano, meus olhos”), v. 531 (“Anjo de Deus,
minha rosa”), vv. 537–538 (“meu amor, minhas boninas, /olhos de perlinhas finas!”).

6. Versos 534-535: “a que criava as meninas / pera os cónegos da Sé.”, nos quais Gil Vicente,
uma vez mais, critica a depravação do clero.

Curiosidade
Os prostíbulos “movediços”, de armar e desarmar, poderiam servir o duplo objetivo de se
deslocarem para onde houvesse mais “clientela” e de mudar de lugar quando as donas eram
“incomodadas” pela Justiça.

III – Síntese
Personagem / Classe social: Alcoviteira/Povo

Elementos / Simbologia: Moças, 600 virgos postiços, joias e vestidos roubados, casa
movediça, dois coxins (almofadas), estrado de cortiça. Símbolos de uma vida de falsidade,
roubo, fingimento, moralmente e legalmente condenável.

Percurso cénico: Cais – Barca do Diabo – Barca do Anjo – Barca do Diabo

Caracterização psicológica

 Direta – “som apostolada, angelada e martelada


 Indireta – Brísida era mentirosa (“três almários de mentir”), mexeriqueira (“cinco
cofres de enleos”), ladra (“alguns frutos alheos”), cínica (“trago eu muita bofé”),
convencida (“e eu vou pera o paraíso”), enganadora (“barqueiro mano meus olhos”).

Argumentos de acusação do Diabo e do Anjo:

A acusação é tão evidente, que nem o Anjo nem o Diabo precisam de a enunciar.

Argumentos de defesa da Alcoviteira

 Considerava-se “angelada” (protegeu as raparigas).

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 Considera-se uma mártir por ter sido açoitada várias vezes, pois foi martirizada,
castigada e suportou tormentos.
 Compara a sua missão à dos apóstolos.
 “Converteu” muitas moças, livrando-as da morte e da pobreza.
 Criou as moças para os cónegos da Sé (serviu o clero).

Momentos psicológicos da personagem:

 Diz que não é a barca do Diabo que procura.


 Está sempre confiante de que vai entrar na barca do Anjo.
 Defende-se dizendo que sofreu muito, como ninguém, que arranjou muitas “meninas”
para elementos do clero e que está orgulhosa por ter arranjado “dono” para todas as
suas “meninas”.
 Quando vai à barca do Anjo muda completamente a sua atitude, usando mais o
vocabulário de cariz religioso e tentando seduzir o Anjo e fazer-se de boa pessoa.

Tipo(s) de cómico usado(s):

 Cómico de linguagem – “barqueiro mano, meus olhos”; “cuidais que trago piolhos?”
 de carácter – “eu som apostolada…fiz cousas mui divinas”.

Destino: Inferno

Intenção crítica: Gil Vicente pretende:

 Criticar a prática da prostituição e seus agentes, neste caso, a exploração de raparigas


indefesas e inocentes pelas alcoviteiras.
 Denunciar a quebra dos votos de castidade dos membros do clero.

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