Você está na página 1de 3

Ficha Informativa – Parte I

Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente

Este auto é considerado como sendo um auto de moralidade - peça de carácter didático-moral onde as
personagens encarnam vícios ou virtudes com o objetivo de moralizar a sociedade.
O Auto da Barca do Inferno diz-nos que, após a morte, vamos parar a um rio que havemos de atravessar para
atingirmos o nosso destino final, o Inferno ou o Paraíso.
Gil Vicente inspirou-se na lenda de Caronte, da Antiguidade Clássica. Na mitologia grega, Caronte é o barqueiro
do Hades, que carrega as almas dos recém-mortos sobre as águas dos rios Estige e Aqueronte, que dividiam o
mundo dos vivos do mundo dos mortos. Uma moeda para pagá-lo pelo trajeto, geralmente um óbolo, era por vezes
colocado dentro ou sobre a boca dos cadáveres, de acordo com a tradição funerária da Grécia Antiga.
Neste auto, Gil Vicente substituiu Caronte por dois barqueiros, o Diabo e o Anjo e o destino final pelo Inferno ou
Paraíso.
Ridendo castigat mores - Ao criticar os costumes, hábitos e vícios da sociedade, Gil Vicente quis transmitir uma
moral a toda a sociedade, pretendendo que toda a sociedade, ao ver a peça, se risse. No entanto, simultaneamente,
criticava os '' podres '' da sociedade daquele tempo.

O Auto da Barca do Inferno, como era usual no teatro medieval, não apresenta divisões em atos ou cenas.
A peça mostra-nos diferentes personagens-tipo que se sucedem num cais onde estão ancoradas duas barcas.
Não tem uma ação encadeada e dinâmica, mas um conjunto de miniações semelhantes, sempre com uma
personagem principal e as figuras alegóricas do Anjo e do Diabo. Assistimos a um desfile de tipos que se sucedem no
cais, sujeitando-se às críticas do Diabo e do Anjo, acabando por embarcar na barca que lhes está destinada.
A obra inicia com três personagens: Anjo, Diabo e Companheiro, número que vai aumentando progressivamente,
sendo dezassete as personagens em cena, no final.
É importante salientar que o pajem que acompanha o Fidalgo e as moças que seguem a Alcoviteira não entram
em nenhum batel.
Todas as personagens pretendem embarcar para o Paraíso, mas, perante a recusa do Anjo, retrocedem e acabam
por tomar a Barca do Inferno.

As personagens entram em cena por esta ordem:


Fidalgo

Don Anrique, um fidalgo de solar, arrogante e explorador dos pequenos entra em cena seguido de um pajem que
lhe segura a cauda do manto e transporta uma cadeira de espaldas. Acredita que não irá para o Inferno por ser
nobre e por saber que a esposa e a amante iriam rezar muito pela salvação da sua alma.

Tipo: Nobreza (representa os seus vícios: tirania, vaidade, arrogância e presunção). O facto de fazer referência
ao pai transmite-nos uma denúncia social, uma vez que também o pai do Fidalgo já tinha entrado na Barca do
Inferno, isto é, toda a classe nobre tinha os mesmos pecados.

Símbolos cénicos/Adereços que o caracterizam: pajem (desprezo pelos mais pobres); manto (vaidade); cadeira
(importância e poder)

Argumentos de Defesa: Argumentos de acusação:


- A Barca do Inferno não é um local próprio para - ter levado uma vida de prazeres, sem se importar
ele viajar (“parece-me isso cortiço”) com ninguém
- tem alguém na Terra a rezar por ele - ter sido tirano para com o povo
- é “fidalgo de solar” e por consequência deve - ser muito vaidoso
entrar na barca do Céu - desprezava o povo
- é nobre e importante

1
Momentos psicológicos da personagem:
 no início, o Fidalgo está calmo e seguro de que viajará para o Paraíso.
 dirige-se à barca do Anjo, arrogante, e fica irritado porque ele não lhe responder. Mostra-se, então,
arrependido e desanimado por ter confiado no seu “estado”.
 por fim, dirige-se ao Diabo, mais humilde, pedindo-lhe que o deixe regressar à Terra para ir ter com a
amante.

Caracterização:
 Direta – nobre (fidalgo de solar);
 Indireta - vaidoso, tirano, arrogante, presunçoso.

Nesta cena, Gil Vicente critica os nobres que viviam como queriam (vida de luxúria)e que pensavam que bastava
rezar e ir à missa para ir para o Céu; critica também a forma como as mulheres eram vistas naquele tempo,
atribuindo-lhes características negativas: mentirosas; infiéis; falsas

Onzeneiro

Usurário que sempre viveu do lucro desenfreado, após ter sido criticado pelo Anjo por ter andado toda a vida a
amealhar dinheiro, roga ao Diabo que o deixe voltar de novo à vida para ir buscar os cruzados que deixou escondidos
no fundo de uma arca, mas o diabo fá-lo embarcar e vai fazer companhia ao Fidalgo.

Tipo: Burguesia
Símbolos cénicos/Adereços que o caracterizam: bolsão que representa a ganância pelo dinheiro
Argumentos de defesa:
- ter morrido sem esperar
- não ter tido tempo de “apanhar” mais dinheiro
- jura ter o bolsão vazio
- precisa de ir à Terra para ir buscar mais dinheiro (para comprar o Paraíso)
Argumentos de acusação
- Anjo: acusa-o de levar um bolsão cheio de dinheiro e o coração cheio de pecados, cheio de amor pelo dinheiro.
Acusa-o de ser avarento.

Momentos psicológicos da personagem:


- ao princípio, o Onzeneiro está confiante em como irá para o Paraíso, pois pensaria poder comprar a passagem
- no fim, dirige-se ao Diabo, pedindo-lhe que o deixe regressar à Terra para ir buscar dinheiro e finalmente
reconhece os seus erros (“quem me cegou”)

Caracterização da personagem:
 Indireta – ganancioso, confiante da sua capacidade financeira

Gil Vicente critica, nesta cena, quem pensava que o dinheiro podia comprar tudo.
Parvo
Joane insulta o Diabo e é acolhido pelo Anjo por ser irresponsável e inocente (“per malícia não errou”).
Entretanto, fica no cais à espera dos companheiros e ajuda a caracterizá-los. Vai desempenhar o papel de acusador.

Tipo: Povo (uma pessoa pobre de espírito)

Símbolos cénicos/Adereços que o caracterizam: não traz porque os símbolos cénicos estão relacionados com a
vida terrena e os pecados cometidos e o Parvo não tem qualquer tipo de pecados.

2
Momentos psicológicos da personagem: apresenta-se ao Diabo com “Eu sou”, denotando simplicidade,
ingenuidade e graça; autocaracteriza-se ao Diabo como “tolo”

Argumentos de Defesa:
Anjo: - é simples e tudo o que fez foi sem maldade

Momentos psicológicos da personagem:


- apresenta-se ao Diabo com “Eu sou”
- com simplicidade, ingenuidade e graça, autocaracteriza-se ao Diabo como “tolo”
- queixa-se de ter morrido
- as suas atitudes ao longo da cena são descontraídas, o que irrita o Diabo que o quer na sua barca
- insulta o Diabo
- apresenta-se ao Anjo com “Samica alguém” e este diz-lhe que entrará na sua barca, porque tudo o
que fez foi sem maldade

Gil Vicente, nesta cena, tem como objetivo divertir o público, mas também tem uma intenção de crítica dizendo
que as pessoas simples são mais merecedoras do Paraíso. O papel do Parvo é comentar o ridículo das personagens
convencidas do seu papel, através dos seus disparates. Não se apresenta a si próprio, pois não apresenta interesse
em si mesmo, mas tem como função criar efeitos cómicos, irresponsáveis. Durante a peça interfere diversas vezes,
sendo constante característico o uso do calão, fazendo de si um ser louco, completamente à parte, liberto de regras
e constrangimentos, em que a ordem não exerce qualquer tipo de poder.

Sapateiro
João Antão, carregado de formas, é condenado à barca do Inferno por ter roubado o povo. O uso das expressões
de calão por parte desta personagem devem-se à sua classe social baixa (ele pertence ao povo) e servem para fazer
rir (não esquecer que Gil Vicente diz que ridendo castigat mores).
O Sapateiro pensa que a carga a que o Anjo e o Diabo se referem é composta pelas formas que traz na mão, mas
na verdade para o Anjo e para o Diabo a carga que ele traz é composta pelos seus pecados.

Tipo: Povo (artesão)

Símbolos cénicos/Adereços que o caracterizam: avental, que simboliza a profissão e as formas que, para além de
simbolizarem a sua profissão, representam os seus pecados.

Argumentos de Defesa: Argumentos de acusação:


- fez todas as práticas religiosas: do Diabo: explorou o povo com o seu trabalho; roubou o povo durante 30
rezava, ia à missa, adorava os anos; ia à missa e logo a seguir ia roubar, ou seja, praticava a religião de forma
santos e levava-lhes oferendas. incorreta; morreu excomungado; calou dois mil enganos.
- morreu confessado e do Anjo: não viveu honestamente; roubou o seu povo; a “carrega” (carga)
comungado. embaraça-o, ou seja, o pecado impediu-o de se salvar

Momentos psicológicos da personagem:


- ao princípio, está confiante em como irá para o Paraíso, pois era bastante religioso
- no fim, dirige-se ao Diabo e reconhece os seus erros

Caracterização da personagem:
 Direta: aldrabão, ladrão, desonesto, malcriado
 Indireta: pecador, excomungado, autoconfiante , explorador

Gil Vicente critica, nesta cena, a forma superficial de como os católicos praticavam a religião (julgavam que as
rezas, missas, comunhões, tinham mais valor que praticar o bem).

Você também pode gostar