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Auto da Barca do

Inferno

O Auto da Barca do Inferno (ou Auto da


Moralidade) é uma complexa alegoria
dramática de Gil Vicente, representada
pela primeira vez em 1517. É a primeira
parte da chamada trilogia das Barcas
(sendo que a segunda e a terceira são
respetivamente o Auto da Barca do
Purgatório e o Auto da Barca da Glória).
Ilustração da edição original do Auto da Barca do
Inferno

Os especialistas classificam-na como


moralidade, mesmo que muitas vezes se
aproxime da farsa. Ela proporciona uma
amostra do que era a sociedade lisboeta
das décadas iniciais do século XVI,
embora alguns dos assuntos que cobre
sejam pertinentes na atualidade.

Diz-se "Barca do Inferno", porque quase


todos os candidatos às duas barcas em
cena – a do Inferno, com o seu Diabo, e
a da Glória, com o Anjo – seguem na
segunda. De facto, contudo, ela é muito
mais o auto do julgamento das almas.

Estrutura
O Auto não tem uma estrutura definida,
não estando dividido em atos ou cenas,
por isso para facilitar a sua leitura
divide-se o auto em cenas à maneira
clássica, de cada vez que entra um novo
personagem. A estrutura é vista pelo
percurso cênico de cada personagem,
que demonstra as suas ações enquanto
"julgado".

Existe um percurso cênico padrão - as


personagens começam por se dirigir à
Barca do Inferno (que está mais
enfeitada, que salta mais à vista),
percebem que aquela barca se dirige ao
Inferno e vão à Barca da Glória. As
personagens que não podem entrar
nesta barca, voltam à Barca do Inferno,
onde acabam por ficar.

Resumo
Embora o Auto da Barca do Inferno não
integre todos os componentes do
processo dramático, Gil Vicente
consegue Auto numa peça teatral, dar
unidade de ação através de um único
espaço e de duas personagens fixas
"diabo e anjo".

A peça inicia-se num porto imaginário,


onde se encontram as duas barcas, a
Barca do Inferno, cuja tripulação é o
Diabo e o seu Companheiro, e a Barca da
Glória, tendo como tripulação um Anjo
na proa.

Apresentam-se a julgamento as
seguintes personagens:

Fidalgo, D. Anrique;
Onzeneiro (homem que vivia de
emprestar dinheiro a juros muito
elevados, um agiota);
Sapateiro de nome, que parece ser
abastado, talvez dono de oficina;
Joane, um parvo, tolo, vivia simples e
inconsciente dos seus atos;
Frade cortesão, Frei Babriel, com a sua
"dama" Florença;
Brísida Vaz, uma alcoviteira;
Judeu usurário talvez chamado
Semifará (na obra diz-se que pode ser
o nome do próprio ou de um
conhecido);
Corregedor e um Procurador, altos
funcionários da Justiça;
Enforcado;
quatro Cavaleiros que morreram a
combater pela fé.

Cada personagem discute com o Diabo


e com o Anjo para qual das barcas
entrará. No final, só os Quatro Cavaleiros
e o Parvo entram na Barca da Glória
(embora este último permaneça toda a
ação no cais, numa espécie de
Purgatório), todos os outros rumam ao
Inferno (ao Judeu, por não se querer
separar do bode que levava consigo, não
lhe é permitido sequer entrar na Barca do
Inferno -- este vai "à toa", ou seja, vai
dentro de água, agarrado à barca por
uma corda). O Parvo fica no cais, o que
nos transmite a ideia de que era uma
pessoa bastante simples e humilde, mas
que havia pecado. O principal objectivo
pelo qual fica no cais é para animar a
cena e ajudar o Anjo a julgar as
restantes personagens, é como que uma
2ª voz de Gil Vicente.

A presença ou ausência do Parvo no


Purgatório aquando do fim da peça
acaba por ser pouco explícita, uma vez
que esta acaba com a entrada dos
Cavaleiros na barca do Anjo sem que
existissem quaisquer outros
comentários do Anjo ou do Parvo sobre
o seu destino final.
Análise

Sátira

Tragicomedia alegoria del parayso y del infierno,


uma peça anónima em castelhano baseada no Auto
da Barca do Inferno.

Esta obra tem dado margem a leituras


muito redutoras, que grosseiramente só
nela vêem uma farsa. Mas se Gil Vicente
fez a impiedosa das moléstias que
corroíam a sociedade em que viveu, não
foi para se ficar aí, como nas farsas,
mas para propor um caminho decidido
de transformação em relação ao
presente.[carece de fontes

?
]

Normalmente classificada como uma


moralidade, muitas vezes ela aproxima-
se da farsa; o que indubitavelmente
fornece ao leitor é uma visão, ainda que
parcelar, do que era a sociedade
portuguesa do século XVI. Apesar de se
intitular Auto da Barca do Inferno, ela é
mais o auto do julgamento das almas.
[carece de fontes

?
]

Personagens

As personagens desta obra são


divididas em dois grupos: as
personagens alegóricas e as
personagens – tipo. No primeiro grupo
inserem-se o Anjo e o Diabo,
representando respectivamente o Bem e
o Mal, o Céu e o Inferno. Ao longo de
toda a obra estas personagens são
como que os «juízes» do julgamento das
almas, tendo em conta os seus pecados
e vida terrena. No segundo grupo
inserem-se todas as restantes
personagens do Auto, nomeadamente o
Fidalgo (D. Anrique), o Onzeneiro, o
Sapateiro (Joanantão), o Parvo (Joane),
o Frade (Frei Babriel), a Alcoviteira
(Brísida Vaz), o Judeu (Semifará), o
Corregedor e o Procurador, o Enforcado
e os Quatro Cavaleiros. Todos mantêm
as suas características terrestres, o que
as individualiza visual e
linguisticamente, sendo quase sempre
estas características sinal de corrupção.

Fazendo uma análise das personagens,


cada uma representa uma classe social,
ou uma determinada profissão ou
mesmo uma crença. À medida que estas
personagens vão surgindo vemos que
todas trazem elementos simbólicos, que
representam os seus pecados na vida
terrena e demonstram que não têm
qualquer arrependimento pelos mesmos.
Os símbolos cénicos de cada
personagem são:

Fidalgo: um manto e pajem (criado)


que transporta uma cadeira de
espaldas(costas altas). Estes
elementos simbolizam a opressão
dos mais fortes, a tirania e a
presunção do moço.
Onzeneiro: bolsão. Este elemento
simboliza o apego ao dinheiro, a
ambição, a ganância e a usura.
Parvo: não traz símbolos cénicos, pois
tudo o que fez na vida não foi por
maldade. Esta personagem representa
a inocência e a ingenuidade.
Sapateiro: avental e formas de
sapateiro. Estes elementos
simbolizam a exploração interesseira,
da classe burguesa comercial.
Frade: uma Moça (Florença), uma
espada, um escudo, um capacete e o
seu hábito. Estes elementos
representam a vida mundana(dada
aos prazeres do mundo) do clero, e a
dissolução dos seus costumes.
Alcoviteira: hímenes postiços, arcas
de feitiços, armários de mentir, furtos
alheios, jóias de seduzir, guarda-roupa
de encobrir, casa movediça, estrado de
cortiça, coxins e moças. Estes
elementos representam a exploração
interesseira dos outros, para seu
próprio lucro e a sua actividade de
alcoviteira ligada à prostituição.
Judeu: bode. Este elemento simboliza
a rejeição à fé cristã, pois o bode é o
simbolo do Judaísmo.
Corregedor e Procurador: processos,
vara da Justiça e livros. Estes
elementos simbolizam a magistratura.
Enforcado: "baraço" (a corda com que
fora enforcado) ao pescoço. Este
elemento representa a sua vida
terrena vil e corruptível.
Quatro Cavaleiros: cruz de Cristo, que
simboliza a fé dos cavaleiros pela
religião católica.

(os elementos cénicos dos quatro


cavaleiros não representam os seus
pecados, tanto que eles foram para o
Paraíso.)

Personagens

Diabo: condutor das almas ao Inferno,


conhece muito bem cada um dos
personagens que lhe cai às mãos; é
zombeteiro, irônico e bom
argumentador. Gil Vicente não pinta o
Diabo como responsável pelos
fracassos e males humanos; o Diabo é
um juiz, que exibe às claras o lado mais
recôndito dos personagens, penetrando
nas consciências humanas e revelando
o que cada um deles procura esconder.

Fidalgo: representa a nobreza, e chega


com um pajem, tem uma roupagem
exagerada e uma cadeira de espaldar,
elementos característicos de seu status
social. O diabo alega que o Fidalgo o
acompanhará por ter tido uma vida de
luxúria e de pecados, sendo portanto,
condenado pela vida pecaminosa, em
que a luxúria, a tirania e a falta de
modéstia pesam como graves defeitos.
Ao Fidalgo, nada lhe valem as compras
de indulgências, ou orações
encomendadas. A figura do Fidalgo,
arrogante e orgulhoso, permite a crítica
vicentina à nobreza, e é centrada nos
dois principais defeitos humanos: o
orgulho e a prática da tirania.

Onzeneiro: o segundo personagem a ser


inquirido é o Onzeneiro, usurário que ao
chegar à barca do Diabo descobre que
seu rico dinheiro ficara em terra.
Utilizando o pretexto de ir buscar o
dinheiro, tenta convencer o Diabo a
deixá-lo retornar, demonstrando seu
apreço às coisas mundanas. O Diabo
não aceita que o Onzeneiro volte à terra
para reaver suas riquezas, condenando-o
ao fogo do Inferno.

Parvo: um dos poucos a não ser


condenado ao Inferno. O Parvo chega
desprovido de tudo, é simples, sem
malícia e consegue driblar o Diabo, e até
injuriá-lo. É uma alma pura, cujos valores
são legítimos e sinceros. Ao passar pela
barca do Anjo, diz ser ninguém. Então,
por sua humildade e por seus
verdadeiros valores, é conduzido ao
Paraíso. Em várias passagens da peça, o
Parvo ironiza a pretensão de outros
personagens, que se querem passar por
"inocentes" diante do Diabo.

Sapateiro: representante dos mestres de


ofício, que chega à embarcação do
Diabo carregando seu instrumento de
trabalho, o avental e as formas. É um
desonesto explorador do povo.
Habituado a ludibriar os homens,
procura enganar o Diabo, que
espertamente não se deixa levar por
seus artifícios e o condena.

Frade: como todos os representantes do


clero, focalizados por Gil Vicente, o
Frade é alegre, cantante, bom dançarino
e mau-caráter. Chega acompanhado de
sua amante, e acredita que por ter
rezado e estar a serviço da fé, deveria
ser perdoado de seus pecados
mundanos. Dá uma lição de esgrima ao
Diabo (que finge não saber manejar uma
arma), o que prova a culpa do
espadachim, já que frades não lidam
com armas. E contra suas expectativas,
é condenado ao fogo do inferno. Deve-se
dosar que Gil Vicente desfecha ardorosa
crítica ao clero, acreditando-o incapaz de
pregar as três coisas mais simples: a
paz, a verdade e a fé.

Brísida Vaz: agenciadora de meretrizes,


misto de alcoviteira e feiticeira. Por sua
devassidão e falta de escrúpulos, é
condenada. É conhecida de outros
personagens que utilizaram em vida
seus serviços. Inescrupulosa, traiçoeira,
cheia de ardis, não consegue fugir à
condenação. Personagem que faz o
público leitor conhecer a qualidade
moral de outros personagens que com
ela se relacionaram.

Judeu: entra acompanhado de seu bode.


Detestado por todos, até mesmo pelo
Diabo que quase se recusa a levá-lo, é
igualmente condenado, inclusive por não
seguir os preceitos religiosos da fé
cristã. Bom lembrar que, durante o
reinado de D. Manuel, houve uma
perseguição aos judeus visando à sua
expulsão do território português; alguns
se foram, carregando grandes fortunas;
outros, converteram-se ao cristianismo,
sendo tachados cristãos novos.

Corregedor e o Procurador: ambos
representantes do judiciário: juiz e
advogado. Deveriam ser exemplos de
bom comportamento e acabaram sendo
condenados justamente por serem tão
imorais quanto os mais imorais dos
mortais, manipulando a justiça de
acordo com as propinas recebidas, pois
faziam da lei sua fonte de recursos
ilícitos e de manipulação de sentenças.
A índole moralizadora do teatro
vicentino fica bastante patente com
mais essa condenação, envolvendo a
Justiça humana, na figura dos
representantes do Direito.

Enforcado: chega ao batel acreditando


ter o perdão garantido por seu
julgamento terreno e posterior
condenação à morte. Isso teriam lhe
redimido dos pecados, mas é
condenado também a ir para o Inferno.

Cavaleiros Cruzados: finalmente chegam


à barca quatro cavaleiros cruzados, que
lutam pelo triunfo da fé cristã e morrem
em poder dos mouros. Obviamente, com
uma ficha impecável, serão todos
julgados, perdoados e conduzidos à
Barca da Glória.
Cada um dos personagens focalizados
adentram a morte com seus
instrumentos terrenos, são venais,
inconscientes e por causa de seus
pecados não atingem a Glória, a
salvação eterna. Destaque deve ser feito
à figura do Diabo, personagem vigorosa
que, como vimos, conhece a arte de
persuadir, é ágil no ataque, zomba,
retruca, argumenta e penetra nas
consciências humanas. Ao Diabo cabe
denunciar os vícios e as fraquezas,
sendo o personagem mais importante
na crítica que Gil Vicente tece de sua
época.
Surgem ao longo do auto três tipos de
cômico, o de caráter, o de situação e o
de linguagem. O cômico de caráter é
aquele que é demonstrado pela
personalidade da personagem Parvo,
que devido à sua pobreza de espírito não
mede suas palavras, não podendo ser
responsabilizado pelos seus erros. O
cômico de situação é o criado à volta de
certa situação, como o Fidalgo, em que
é zombado pelo Diabo, e o seu orgulho
pisado. Por fim, o cômico de linguagem
é aquele que é proferido por certa
personagem, como as falas do Diabo.

Análise do personagem
"Diabo" (por Saiane Marin, aluna do curso
de Licenciatura em Letras Português-
Inglês da UTFPR,Campus Pato Branco)

Ao ler Auto da Barca do Inferno, nota-se a


importância do papel do personagem
Diabo, criado por Gil Vicente em seu
mais conhecido auto. De acordo com o
autor é um “auto da moralidade”, sua
intenção era exemplificar como se dava
o comportamento de algumas pessoas
que trabalhavam em determinados
setores da época (décadas iniciais do
século XVI), sendo assim, todos os
personagens da obra são alegóricos e
de narração dramática.

No auto, o autor faz o Diabo –


sujeito/protagonista – parecer-se com
um vendedor, ou seja, ele conhece bem
as pessoas e é um ótimo argumentador,
e busca obter o maior número de
objetos, ou seja, de almas. Porém, como
o próprio nome da personagem já diz,
para enfatizar os mitos, o Diabo age
como zombeteiro e irónico em certos
momentos da peça, exibindo o lado
mais errado dos personagens e
revelando o que cada um deles deseja
esconder, seus vícios e suas fraquezas.
Como competência, ele tem o poder de
retrucar, argumentar e penetrar nas
consciências humanas, e como
performance acaba por levar cada
personagem ao ato de refletir sobre seus
feitos, para que percebam que não
foram bons em vida, destacando assim
o Teocentrismo medieval. Nesse
momento, o diabo age como um
terapeuta espiritual, mesmo sabendo
que os personagens tentarão entrar na
barca com o Anjo – seu oponente. Como
sanção de sua competência, o Diabo
consegue encher sua barca e segue em
direção ao inferno.

Enredo

A peça inicia-se num porto imaginário,


onde se encontram as duas barcas, a
Barca do Inferno, cuja tripulação é o
Diabo e o seu Companheiro, e a Barca da
Glória, tendo como tripulação um Anjo
na proa.
A obra apresenta um conjunto de
personagens, as almas dos mortos, que,
após o traspasse, deparam-se com um
braço de mar onde barcas as aguardam.

O primeiro a embarcar é um Fidalgo, que


chega acompanhado de um Pajem, que
leva a calda da roupa do Fidalgo e
também uma cadeira, para seu encosto.

O Diabo mal viu o Fidalgo e já lhe falou


para entrar em sua barca, pois ele iria
levar mais almas e mostrar que era bom
navegante. Antes disso, o companheiro
do Diabo, começou a preparar a barca
para que as almas dos que viessem,
pudessem entrar.
Quando tudo estava pronto, o Fidalgo
dirigiu a palavra ao Diabo, perguntando
para onde aquela barca iria. O Diabo
respondeu que iria para o Inferno, então
o Fidalgo resolveu ser sarcástico e falou
que as roupas do Diabo pareciam de
uma mulher e que sua barca era horrível.
O Diabo não gostou da provocação e
disse que aquela barca com certeza era
ideal para ele, devido a sua
impertinência. O Fidalgo espantado, diz
ao Diabo que tem quem reze por ele,
mas acaba recebendo a notícia de que
seu pai também havia embarcado rumo
ao Inferno.
O Fidalgo tenta achar outra barca, que
não siga ao Inferno, então resolve dirigir-
se a barca do céu. Ele resolve perguntar
ao Anjo, aonde sua barca iria e se ele
poderia embarcar nela, mas é impedido
de entrar, devido a sua tirania, pois o
Anjo disse que aquela barca era muito
pequena para ele, não teria espaço para
o seu mau caráter.

O Diabo começa a fazer propaganda de


sua barca, dizendo que ela era a ideal, a
melhor. Assim, O Fidalgo desconsolado,
resolve embarcar na barca para o
Inferno. Mas antes, o Fidalgo queria
tornar a ver sua amada (sua amante)
pois ele disse que ela se mataria por ele,
mas o Diabo falou que a mulher que ele
tanto amava, estava apenas enganando-
o, pois mal este morreu ela já estava nos
braços de outro de classe social menor
que a sua, depois de ouvir isto o Fidalgo
queria ver a sua mulher mas acabou por
descobrir,também, que esta estava feliz
após a sua morte. E assim, o Diabo
insistia cada vez mais para que o
Fidalgo esquecesse sua mulher e que
embarcasse logo, pois ainda viria mais
gente.

O Diabo manda o Pajem, que estava


junto com o Fidalgo, ir embora, pois
ainda não era sua hora. Logo a seguir,
veio um onzeneiro que questionou ao
Diabo, para onde ele iria conduzir aquela
barca. O Diabo querendo conduzi-lo à
sua barca, perguntou por que ele tinha
demorado tanto, e o Onzeneiro afirmou
que havia sido devido ao dinheiro que ele
queria ganhar, mas que foi por causa
dele que ele havia morrido e que não
sobrou nem um pouco para pagar ao
barqueiro.

O Onzeneiro não quis entrar na barca do


Diabo, então resolveu dirigir-se à barca
do céu. Chegando até a barca divina, ele
pergunta ao Anjo se ele poderia
embarcar, mas o Anjo afirmou que por
ele, o Onzeneiro não entraria em sua
barca, por ter roubado muito e por ser
ganancioso. Então, negada a sua
entrada na barca divina, o Onzeneiro
acaba entrando na barca do Inferno.

Mais uma alma se aproximou, desta vez


era um Parvo, um homem tolo que
perguntou se aquela barca era a barca
dos tolos. O Diabo afirmou que era e que
ele deveria entrar, mas o Parvo ficou
reclamando que morreu na hora errada e
o Diabo perguntou do que ele havia
morrido, e o Parvo sendo muito sutil
respondeu que havia sido de diarréia.

O Parvo ao saber aonde aquela barca


iria, começou a insultar o Diabo e foi
tentar embarcar na barca divina. O Anjo
falou que se ele quisesse, poderia entrar,
pois ele não havia feito nada de mal em
sua vida, mas disse para esperar para
ver se tinha mais alguém que merecia
entrar na barca divina.

Vem um sapateiro com seu avental,


carregando algumas fôrmas e chegando
ao batel do inferno, chama o Diabo. Ele
fica espantado com a maneira na qual o
sapateiro vem carregado, cheio de
pecados e de suas fôrmas.

O sapateiro tenta enrolar o Diabo,


dizendo que ali ele não entraria pois ele
sempre se confessava, mas o Diabo
joga toda a verdade na sua cara e o
manda entrar logo em sua barca. O
sapateiro tenta lhe dizer todas as
feitorias que havia realizado, na tentativa
de conseguir entrar no batel do céu, mas
o Anjo lhe diz que a "carga" que ele trazia
não entraria em sua barca e que o batel
do Inferno era perfeito para ele. Vendo
que nào conseguiu o que queria, o
sapateiro se dirige à barca do Inferno e
ordena que ela saia logo.

Chegou um Frade, junto de uma moça,


carregando em uma mão um pequeno
escudo e uma espada, na outra mão, um
capacete debaixo do capuz. Começou a
cantarolar uma música e a dançar.

Ele falou ao Diabo que era da corte, mas


o próprio perguntou-lhe como ele sabia
dançar o Tordião, já que era da corte. O
Diabo perguntou se a moça que ele
trazia era dele e se no convento não
censuravam tal tipo de coisa. O Frade
por sua vez diz que todos no convento
são tão pecadores como ele e
aproveitou para perguntar para onde
aquela barca iria. Ao saber para onde
iria, ficou inconformado e tentou
entender porque ele teria que ir ao
Inferno e não ao céu, já que era um
frade. O Diabo lhe responde que foi
devido ao seu comportamento durante a
vida, por ter tido várias mulheres e por
ter sido muito aventureiro. Assim, o
Frade desafia o Diabo, mas este não faz
nada e apenas observa o que o Frade
faz.
O Frade resolve puxar a moça para irem
ao batel do Céu, mas lá se encontraram
com o Parvo, que pergunta se ele havia
roubado aquela espada que ele
carregava. O Frade completamente
arrasado, finalmente se convence que
seu destino é o inferno, pois até mesmo
o Parvo zombou de sua vida e de seus
pecados. Dirigiu-se a barca do Inferno,
resolve embarcar junto com a moça que
o acompanhava.

Assim que o Frade embarcou, veio a


alcoviteira Brísida Vaz, chamando o
Diabo para saber em qual barca ela
haveria de entrar. O companheiro do
Diabo lhe disse que ela não entraria na
barca sem Joana de Valdês.

Ela foi relatando o que estava trazendo


para a barca e afirmava que iria para o
Paraíso, mas o Diabo dizia que sua
barca era o seu lugar, que ela teria que
ficar ali.

Brísida vai implorar de joelhos ao Anjo,


que esse a deixe entrar em sua barca,
pois ela não queria arder no fogo do
inferno, dizendo que tinha o mesmo
mérito de um apóstolo para entrar em
sua barca. O Anjo, já sem paciência,
mandou-lhe que fosse embora e que não
lhe importunasse mais.
Triste por não poder ir para o Paraíso,
Brísida vai caminhando em direção ao
batel do Inferno e resolve entrar, já que
era o único lugar para onde ela poderia
ir.

Logo após o embarque de Brísida Vaz,


veio um Judeu, carregando um bode, na
qual fazia parte dos rituais de sacrifício
da religião hebraica. Chegando ao batel
dos danados, chama o marinheiro, que
por acaso era o Diabo; perguntando a
quem pertencia aquela barca. O Diabo
questiona se o bode também iria junto
com o Judeu, esse por sua vez afirma
que sim, mas o Diabo o impede pois ele
não levava para o Inferno, os caprinos.
O Judeu resolve pagar alguns tostões ao
Diabo, para que ele permita a entrada do
bode; disse que por meio do semifará
ele seria pago. Vendo que não consegue,
ele xinga o Diabo e roga-lhe várias
pragas, apenas por não fazer a sua
vontade.

O Parvo, para zombar o Judeu,


perguntou se ele havia roubado aquela
cabra, e aproveitou para xingá-lo.
Afirmou também que ele havia urinado
na igreja de São Gião e que teria comido
a carne da panela do Nosso Senhor.
Vendo que o Judeu era uma péssima
pessoa, o Diabo ordenou-lhe logo que
entrasse em sua barca, para não
perderem tanto tempo com uma
discussão tola.

Depois que o Judeu embarcou, veio um


Corregedor, carregado de feitos, que
quando chegou ao batel do Inferno, com
sua vara na mão, chamou o barqueiro. O
barqueiro ao vê-lo, fica feliz, pois esta
seria mais uma alma que ele conduziria
para o fogo ardente do Inferno. O
Corregedor era um amante da boa mesa
e sua carga era qualificada como
"gentil", pois tratava-se de processos
relativos a crimes, que era um conteúdo
muito agradável para o Diabo. Ele era
ideal para entrar na barca do Inferno,
pois durante sua vida, ele era um juíz
corrupto e que aceitava perdizes como
suborno.

O Diabo começa a falar em latim com o


Corregedor, pois era usado pela Justiça
e pela Igreja, além de ser a língua
internacional da cultura. Ele ordena ao
seu companheiro que este apronte logo
a barca e que se prepare para remar
rumo ao Inferno.

Os dois começam a discutir em latim,


pois o Corregedor por ser achar superior
ao Diabo, pensa que só porque era um
juíz prestigiado, não teria que entrar em
sua barca. O Diabo vai perguntando
sobre todas as suas falcatruas, até
citando sua mulher no meio, que
aceitava suborno dos judeus, mas o
Corregedor garantiu que com isso ele
não estava envolvido, que estes eram os
lucros de sua mulher, e não dele.

Enquanto o Corregedor estava nesta


conversa com o Arrais do Inferno,
chegou um Procurador, carregando
vários livros. Resolve falar com o
Corregedor, espantado por encontrá-lo
aí, questiona para onde ele iria, mas o
Diabo responde pelo Corregedor e diz
que iria para o Inferno, mas que também
era bom ele ir entrando logo, para retirar
a água que estava entrando na barca.

O Corregedor e o Procurador não


quiseram entrar na barca, pois eles
tinham fé em Deus e também porque
havia outra barca em melhores
condições, que os conduziria para um
lugar mais ameno. Quando chegam ao
batel divino, o Anjo e o Parvo zombam
de suas ações, que eles não tinham o
direito de entrar ali, pois tudo que eles
haviam feito de ruim, estava sendo pago
agora, com a ida de suas almas para o
Inferno. Desistindo de ir para o paraíso,
os dois ao entrarem no batel dos
condenados, encontram Brísida Vaz. Ela
por sua vez, se sentiu aliviada por
estarem ali, pois enquanto estava viva
foi muito castigada pela Justiça.
Veio um homem que morreu enforcado e
ao chegar ao batel dos mal-aventurados,
começou a conversar com o Diabo. Ele
tentou explicar porque ele não iria no
batel do Inferno, pois que ele havia sido
perdoado por Deus ao ser condenado à
forca e morrer, mas isso não passou de
uma mentira, pois ele teria que morrer e
arder no fogo do Inferno devido aos seus
erros. Desistindo de tentar fugir de seu
futuro, ele acaba obedecendo as ordens
do Diabo para ajudar a empurrar a barca
e remar, pois o horário da partida estava
próximo.

Depois disso, vieram quatro Cavaleiros


cantando, cada um trazia a Cruz de
Cristo, pelo Senhor e também para
demonstrar a sua fé, pois eles haviam
lutado em uma Cruzada contra os
Mulçumanos, no norte da África.
Absolvidos da culpa e pena, por
privilégio dos que morreram em guerra,
foram cantarolando felizes indo em
direção ao batel do Céu.

Ao passarem na frente do batel do


Inferno, cantando, segurando suas
espadas e escudos, o Diabo não resiste
e pergunta-lhes porque não pararam
para questionar para onde sua barca iria.
Convidando-os para entrar, o Diabo
recebe uma resposta não muito
agradável de um dos Cavaleiros, pois
esse disse que quem morresse por
Jesus Cristo, não entraria em tal barca.

Tornaram a prosseguir, cantarolando, em


direção à barca da Glória, e quando
chegaram nela, o Anjo os recebeu muito
bem e disse que estava à espera deles
por muito tempo. Sendo assim, os
quatro Cavaleiros embarcaram e
tomaram rumo em direção ao Paraíso, já
que morreram por Deus e porque eram
livres de qualquer pecado.

Humor

Surgem ao longo do auto três tipos de


cómico: o de carácter, o de situação e o
de linguagem. O cômico de carácter é
aquele que é demonstrado pela
personalidade da personagem, de que é
exemplo o Parvo, que devido à sua
pobreza de espírito não mede as suas
palavras, não podendo ser
responsabilizado pelos seus erros. O
cómico de situação é o criado à volta de
certa situação, de que é bom exemplo a
cena do Fidalgo, em que este é gozado
pelo Diabo, e o seu orgulho é pisado. Por
fim, o cómico de linguagem é aquele que
é proferido por certa personagem, de
que são bons exemplos as falas do
Diabo.
Fidalgo sente-se acomodado em
qualquer lugar, na Terra ou no Inferno,
para ele, ambas partes são totalmente
sem sabor, sem graça.

O Auto da Barca do Inferno e


o Inferno anónimo (c. 1515)
do Museu Nacional de Arte
Antiga

Inferno (séc. XVI), óleo sobre madeira, mestre


português desconhecido, Museu Nacional de Arte
Antiga, Lisboa.
Existe no Museu Nacional de Arte
Antiga, em Lisboa, uma pintura anónima
que é quase contemporânea do Auto da
Barca do Inferno. Poderá precedê-lo em
dois anos. É uma pintura de qualidade e
contém, como a obra de Gil Vicente,
intenção de crítica social. Mas enquanto
na Barca assistimos ao julgamento,
donde se pode sair condenado ou salvo,
a pintura mostra um recanto infernal
com danados distribuídos por grupos,
recordando talvez o que se passa na
Divina Comédia; no auto, as
personagens são individuais.

Esta pintura, que Gil Vicente pode bem


ter conhecido, remete para o mesmo
momento cultural e religioso, até para
um semelhante empenho pré-reformista
de intervir na sociedade.

O Auto da Barca do Inferno e


os Diálogo dos Mortos, de
Luciano
Como Michelangelo viria a fazer cerca
de 20 anos mais tarde no Juízo Final[1]
da Capela Sistina (ao fundo do fresco a
barca de Caronte), também Gil Vicente
construiu a sua alegoria com vários
elementos vindos da mitologia, mais em
concreto, dos Diálogos dos Mortos,[2] de
Luciano de Samósata.
A intertextualidade entre esta obra e a
moralidade de Gil Vicente é clara, de
modo particular se considerarmos o
Diálogo X. Veja-se como Hermes,
sempre satírico como o Diabo vicentino,
se dirige ao Filósofo:

Põe de parte a postura, em primeiro


lugar, e depois tudo o mais! (…)
Deita fora também a mentira, a
presunção e o acreditar que és melhor
que os outros, porque se embarcares
com tudo isso, qual o navio de
cinquenta remadores, capaz de te
receber?

A recusa de tudo o que podia significar


distinção social na vida terrena aparece
também no auto, quando lá se fala das
«cárregas» inúteis para garantir êxito no
julgamento.

A afastar as duas obras, está tudo o que


depende da teologia cristã, a começar
pela presença do Anjo, com a
possibilidade de dois destinos, o da
condenação e o da glória, o final
esperançoso (claramente visível quando
se tem em conta o modo como o autor
aproveita a maré ao longo da obra - que
está vasa no final, impedindo a ida para
o Inferno), e ainda o novo contexto
histórico.

O Auto da Barca do Inferno


e a figura mitológica de
Caronte
Em algumas passagens da obra, existe
uma referência ou comparação à lenda
mitológica de Caronte, o barqueiro que
transportava as almas dos mortos pelo
mar, até ao seu destino final. O barqueiro
exigia o pagamento de uma quantia em
dinheiro para pagar a viagem.

O onzeneiro, lamenta-se de não ter


dinheiro, nem para pagar a viagem ao
barqueiro.

Notas e referências
1. Juízo Final
2. Diálogos dos Mortos

Ligações externas
Versão integral da obra, para leitura ou
download
Edição integral com notas e
introdução (Googlebooks)
Sobre o Auto da Barca do Inferno - A
Interpretação -1, nos 500 anos do Auto
das Barcas

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