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AUTO DA BARCA DO INFERNO

O Parvo – Cena IV

I – O resumo da cena
Os Parvos têm, no teatro vicentino, uma função cómica, ocasionada pelos disparates que
proferem.
Assim acontece neste auto, embora, em certos passos, o Parvo se junte às personagens
sobrenaturais para criticar os que pretendem embarcar e sirva, algumas outras vezes, de
comentador.
Evidentemente que, nos termos desarticulados e
ilógicos, ditos pelos Parvos, há, por vezes, muito
que refletir e analisar. Neste auto, isso acontece
com a célebre resposta ao Anjo: «… Samica
alguém:» (ed. de 1518) ou «Não sou ninguém»
(ed. de 1562) que tem sido comentada por
variadíssimos autores.
A decisão do Anjo de acolher o Parvo, na sua
barca, está na lógica da doutrina católica: não
pode ser responsabilizado pelos seus atos quem
nasceu irresponsável. É o que o Anjo exprime
muito sinteticamente com a palavra simpreza.
Simplesmente, o Anjo não lhe ordena que
embarque imediatamente mas, pelo contrário, manda-o aguardar no cais os futuros
companheiros («espera entanto per i»). Mas, no momento próprio, os quatro Cavaleiros da
Ordem de Cristo, seus companheiros, embarcam triunfalmente, deixando o Parvo no cais. A
verdade é que quando chega a barca seguinte, já ele lá não estava…
como que a materialização dos seus pecados. Se condenação dum Sapateiro, acusado de
roubar o povo. Aliás, em muitos outros passos, Mestre Gil defende este ponto de vista: ser-se
religioso consiste mais em atuar com espírito evangélico do que assistir ou cumprir os atos
externos do culto.

II – Notas importantes…

Prof. Gina Pereira 2023/2024


1. Enquanto nas cenas anteriores (e posteriores) as personagens não precisam de se
apresentar ao Anjo ou ao Diabo, sendo por estes imediatamente reconhecidas, neste caso o
Parvo tem de se identificar perante os dois barqueiros. À pergunta do Diabo “Quem é?” (v.
250), ele responde “Eu sou.” (v. 250), identificando-se logo de seguida como um tolo (v. 252); à
pergunta do Anjo “Quem és tu?” (v. 300), ele responde “Samica alguém.” (v. 300) (na edição
de 1562, o Parvo diz “Não sou ninguém.”). Estas respostas revelam a sua inocência e a pouca
importância que o Parvo atribui a si próprio.

2. A função dos símbolos cénicos é representar os vícios e pecados das personagens, ajudando
à sua caracterização. Ora, o Parvo não pecou e, por isso, não se faz acompanhar de quais- quer
símbolos. Pela mesma razão, não é feita qualquer referência à sua vida.

3. O Anjo dá-lhe, de imediato, a possibilidade de embarcar, convidando-o a aguardar, no cais,


por outros passageiros.

4. Sendo um pobre de espírito, os erros que possa ter cometido não foram premeditados (vv.
302-303).

5. Convém a Gil Vicente manter o Parvo em cena, pois pode fazer, através dele, muitas críticas
que, de outra forma, não poderiam ser feitas. Acrescente-se que, ao interagir com outras
personagens, o Parvo ajuda, também, a quebrar a monotonia das cenas, introduzindo o
cómico.

6. De todos os cómicos, o de linguagem é o mais significativo. De facto, o Parvo caracteriza-se


pela sua linguagem desbragada, com recurso frequente ao calão, num discurso incoerente e
desorganizado, recorrendo ainda aos insultos e às obscenidades (cf. particularmente a longa
fala do Parvo, vv. 270-297). O cómico de situação e o de carácter surgem, por exemplo,
quando Joane pergunta se entra na barca do Diabo “De pulo ou de voo?” (v. 253), pelo
absurdo que encerra.

Curiosidade: Em latim, a palavra parvo significava “pequeno”, “insignificante”,


“diminuto”. No uso mais comum, a palavra parvo significa “tolo”.

III – Síntese
Personagem / Classe social: Parvo/ povo (uma pessoa pobre de espírito)

Prof. Gina Pereira 2023/2024


Elementos / Simbologia: Não traz porque os símbolos cénicos estão relacionados com a vida
terrena e os pecados cometidos e o Parvo não tem qualquer tipo de pecados.

Percurso cénico: Cais – Barca do Diabo – Barca do Anjo (fica no cais)

Caracterização psicológica

 Direta: “Samica alguém”


 Indireta: tolo, descarado

Argumentos de acusação do Diabo:

 Não é acusado.

Argumentos de defesa do Parvo:

 Como não é acusado, não precisa de se defender.

Momentos psicológicos da personagem:

 Apresenta-se ao Diabo com “Eu sou”


 com simplicidade, ingenuidade e graça, autocaracteriza-se ao Diabo como “tolo”
 queixa-se de ter morrido
 as suas atitudes ao longo da cena são descontraídas, o que irrita o Diabo que o quer na
sua barca
 insulta o Diabo
 apresenta-se ao Anjo com “Samica alguém” e este diz-lhe que entrará na sua barca,
porque tudo o que fez foi sem maldade

Tipo(s) de cómico usado(s):

 de situação – quando insulta o Diabo (inversão dos papéis)


 de caráter –o modo desbragado do parvo
 de linguagem – utilização da ironia e do calão

Destino: Fica no cais

Intenção crítica: Gil Vicente pretende:

 Enaltecer os pobres de espírito que, graças à sua simplicidade e humilde obtêm a


misericórdia divina.

Prof. Gina Pereira 2023/2024


 A função desta personagem é fazer rir e vai acusar as personagens que estão para
chegar.
 Esta cena tem uma intenção lúdica, fazendo divertir quem está a assistir a esta peça,
mas também tem uma intenção de crítica dizendo que as pessoas simples são mais
merecedoras do Paraíso. O Parvo é convertido numa espécie de comentador
independente da ação, pondo à mostra, com os seus disparates, o ridículo das
personagens convencidas do seu papel. Em Gil Vicente, a função do Parvo não é
apresentar-se a si próprio, nunca sendo observado pelo interesse que em si mesmo
possa oferecer, mas tem como função criar efeitos cómicos, irresponsáveis. Durante a
peça do Auto da Barca do Inferno, interfere diversas vezes, sendo constante
característica o uso do calão, que tanto é injurioso como otimista, fazendo de si um ser
louco, completamente à parte, liberto de regras e constrangimentos, em que a ordem
não exerce qualquer tipo de poder. Denunciar a exploração dos indivíduos da mesma
classe

Prof. Gina Pereira 2023/2024

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