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PRIMEIRA PARTE - MUSA MODERNA

Dedicatória À PROVÍNCIA DO RIO GRANDE DO SUL

Torrão abençoado do meu berço!


Fertilíssima plaga, a cujas auras
Senti pulsar o coração de infante!
Onde nas várzeas a perder-se ao longe,
Extensas como a ideia do infinito,
Aprendi a adorar a liberdade!
Terra de heróis, Esparta brasileira,
Que tantas vezes ao clarim das lutas
Entre bombardas alcançaste a glória!
Honra, orgulho da terra americana!
Permite, ó grande mãe, que em teu regaço
O mais pobre, o mais rude de teus filhos,
Deposite estes cantos, inspirados
No teu clima bendito, na grandeza
Soberba em que te elevas como a águia
Transcendendo os espaços!
É minhalma
Votada a ti numa oblação sincera!

A quem ler

Leitor: eu devo dar-te um pequenino esboço


De quem te preocupa: é rio-grandense e moço.

Acata com respeito os nobres sentimentos,


Preferindo a virtude a cofres opulentos.

De todo o coração condói-se da miséria,


Causando embora riso à gente grave e séria.

Detesta do bordel a mórbida vigília,


Consagra amor à pátria e cultos à família.

Vota extremos febris à plena liberdade,


Sempre a lira depôs nas aras da verdade.

Não sabe o que é temor às lutas da existência,


Tem sempre, como escudo, a paz da consciência.

Tem asco, tem horror nos tédios da preguiça,


Conhece o que é dever e sabe o que é justiça.

Não quer a glória, não, que é bem terrível cousa!


Àqueles a quem ama esconde-os sob a lousa!

Fundado na razão, sorri-se dos ateus,


E finalmente crê numa entidade — DEUS.

À Pátria

Ó malfadada pátria, quebra o jugo


Odiosa cadeia que te prende
Ao passado que é treva aterradora
E marcha para a luz — o sol dos livres!
De que te vale a voz dos parlamentos,
Se quem te pode dar possante impulso
É surdo ao teu gemer angustioso,
E zombando demais de teu suplício,
Esquece ideias que aprendeu ao longe,
Quando em passeio analisava os povos?

As artes e ciências se aniquilam


Sem ter os incentivos que aviventam;
As letras, o lutar da inteligência,
Desalentadas vivem na penumbra;
Indústrias nacionais sob os impostos
Vão arrastando vida miserável;
O labor mercantil que dá riquezas
Por toda parte lento desfalece;
A lavoura vegeta no marasmo;
Em tudo lê-se enorme desalento,
E prostração profunda, indefinível...

Ao passo que o lirismo canta versos


Apaixonados, lânguidos, chorosos,
Arremedando os provençais antigos,
E terno o sabiá, nas laranjeiras,
Desfere o canto que extasia as almas,
E poetas exclamam: «Quanto é lindo
Teu céu azul, ó terra abençoada!
Tens estrelas a mil, flores sem conta,
No prado as brancas borboletas vagam
E constela-se a noite em pirilampos,»
Ao passo que o lirismo sonha flores,
Tu sobes o calvário das angústias
Vergada ao peso de uma cruz nefasta!

Contempla as mais nações de todo mundo,


Que exuberam de vida e de progresso!
Compara o teu viver estacionário
Com a marcha constante que a animas
Na luminosa estrada do futuro!
No solo americano és tu somente
Que à fronte cinges a ferrenha c’roa
Que simboliza a c’roa do martírio!
Só tu não gozas plena liberdade,
Ó gigante indolente que adormeces,
Sem vingar teus direitos conculcados
Pela mais ominosa tirania!

Mas, ó pátria infeliz, mal governada,


Cingindo à fronte o resplendor da glória,
Podes ainda levantar-te em breve,
Calcando aos pés o preconceito estulto,
Desfraldar a bandeira das vitórias,
E chamar os teus filhos a combate
Contra quem na rotina te encarcera!

Se alguns ingratos filhos te maculam


Sedentos de ambições inconfessáveis,
E só visando os próprios interesses,
O povo que contempla os teus destroços,
O mesmo povo que insciente oprimes,
Cansado um dia do lutar inglório,
Acorrerá pujante aos teus reclamos!

Por entre as amarguras que te cercam,


Solta, ó pátria, dos lábios ressequidos
Um grito apenas! e a geleira imensa
Avalanche no cimo adormecida,
Despedaçando as peias opressoras
Por toda parte conduzindo a morte,
Rolará da montanha, impetuosa,
Febril, insanamente arrebatada
No turbilhão da cólera suprema!
Um grito apenas! e verás por terra
O poste da ignomínia, espedaçado
O grilhão que teus pulsos arroxea,
E, por entre os clarões da eterna glória,
Terás a redenção num brado: ÉS LIVRE!

À América - I

Tu, que de luzes o horizonte alagas,


Surgiste um dia do lençol das vagas
Qual a deusa pagã,
E sobre os mares dispersando a treva,
Enlevada sorriste como a Eva
Na esplêndida manhã!

Como a nave pujante que desfralda


As velas sobre as ondas de esmeralda,
Revoltas, a bramir,
Assim, formosa plaga do Cruzeiro,
Arrastada nas asas do pampeiro,
Arrojas-te ao porvir!

A vastidão da flora exuberante,


A riqueza do solo deslumbrante,
Não tem o mundo iguais!
Em teu seio bendito a natureza
Expande a majestática beleza
Aos lumes tropicais!

Inundada de santos esplendores


—Astro imortal nadando entre fulgores —
És da luz a caudal!
Aos gigantescos passos que já medes,
Ao mundo antigo, às três irmãs excedes
Na marcha triunfal!

II

Europa, a douta, ousada paladina,


Que do porvir na senda purpurina
Prossegue sem parar,
Sedenta de ambições, ardendo em guerra,
Quer, orgulhosa, avassalar a terra,
Os povos dominar!

Formosa, varonil, mas louca e fátua,


Um dia ajoelhou-se aos pés da estátua
Da deusa da razão!
Liberta-se das leis do feudalismo,
Porém deixa a Polônia em fundo abismo
Nas garras da opressão!

Rodeia-se de luz, de lama e vícios!


As grandes capitais — vastos hospícios—
Regurgitam de ateus!
Os descendentes de Jafé que outrora
Defenderam a cruz, sem crença agora
Duvidam ’té de Deus!

Enquanto o rico na opulência dorme.


Tirita o povo na miséria enorme.
Mendiga sem cessar,
E, semelhante à ave que abandona
A choupana que o vento desmorona.
Aqui procura um lar!

Atônita no fumo das conquistas.


Não lança Europa entristecidas vistas
À desgraça dos seus
Busca da glória os luminosos trilhos
Madrasta, expulsa multidão de filhos
Errantes como hebreus!

III

A Ásia, a mais senil, que viu outrora


Refletir em seu seio a luz d’aurora
Que iluminou Adão,
Aos voos do progresso refratária,
No mundo é sempre a velha estacionária
Submissa à tradição!

Debalde Cristo, o sonhador sublime


Daquelas plagas extirpando o crime,
Pregou a crença, a fé!
Das Índias calmas à Sibéria fria,
E d‘Arábia ao Japão a idolatria
Ostenta-se de pé!

Adora Maomé, Dalai-Lama,


Ou a crença de Fó, ou Buda, ou Brahma.
Do sol a viva luz!
Mas jamais comovida prosternou-se
Ante o vulto de Cristo, belo e doce,
Pendente duma cruz!

Sonhadora, indolente sibarita,


A Ásia vaporosa só palpita
De amor, de embriaguez!
Das ciências a chama que se espalha
Jamais transpôs a célebre muralha
Do tímido chinês!

Não banha a fronte ao sol da liberdade!


Sempre humilde à despótica vontade
Do bonzo semi-deus,
Arrasta tristemente vida inglória
Sem que veja nas páginas da história
Brilhar os filhos seus!

A indústria move sem vigor o passo,


Ali se desalenta de cansaço
— Autômato de pé! —
Só dous nomes destacam-se nos fastos
Daqueles povos pelo tempo gastos:
Confúcio, Maomé!

IV

A África descansa enorme vulto


Profundamente estéril, vasto, inculto,
D’areias no lençol!
Sono mortal que nunca foi desperto!
Tem por dobras os ventos do deserto
E por tocheiro o sol!

Jaz ali, sepultada entre palmares,


Cartago, a bela, dos antigos mares
Garbosa imperatriz!
Faraós e Cleópatras passaram
Como gênios soberbos que tombaram
Sem louros na cerviz!

A fitar o horizonte que se tinge


Dum azul de safira vê-se a esfinge
Imóvel, hirta e só!
Ouvem-se apenas uivos leoninos
E o surdo galopar dos beduínos
Nos mares do ideal!
Ali, desde a Hotentótia à Barbaria,
Tem altares a torpe idolatria,
Fetichismo brutal!

Imensos povos, nômades, errantes,


Ali vivem às auras sussurrantes,
Sob esplêndido céu!
E do Egito as pirâmides altivas
São dessas raças pobres, semi-vivas,
O grande mausoléu!

Só tu susténs da pobre humanidade


O estandarte de luz, a liberdade!
Olímpico arrebol!
Ó do Colombo sedutora filha,
Tu és do mundo oitava maravilha
Fulgente como um sol!

Tu que sentes pulsar o sangue ardente


Como a lava que salta candescente
Do seio dos vulcões,
Tu és a grande tenda do futuro!
Arca santa a boiar no pego escuro,
Sobranceira aos tufões!
Tu marchas do progresso na vanguarda,
Sem lampejos sinistros da bombarda,
Ribombos do canhão!
Cingida a fronte no barrete frígio,
Resplandeces de luz como um prodígio
Na nova geração!

Abraçada por vastos oceanos,


Ciclópicos gigantes, soberanos,
Que esplêndida tu és!
Reclinada na enorme cordilheira,
Tens um polo a servir de cabeceira,
Outro polo a teus pés!

Avante, avante, América formosa,


Que vês nos céus brilhar esplendorosa
D’estrelas uma cruz!
Murcha ao futuro, ao Panteão da glória!
Inunda as folhas da moderna história
Em turbilhões de luz!

À Mocidade

Ó mocidade, desperta,
Não adormeças assim!
Ouve este brado de alerta
Fremente como um clarim!

Empunha a pena que é lança.


Põe ao braço o teu broquel,
Mostra máscula pujança
Como um Átila cruel!

Tu vês que o vício se nutre


Da crença que perverteu,
E crava as garras de abutre
Nos seios de Prometeu!

É necessário que os moços,


Numa batalha campal,
Dispersem dele os destroços
Pelas sendas da moral!

Que nos combates titânios


A que a razão nos conduz,
Façamos jorrar nos crânios
As cataratas de luz!

A luta leva os atletas


Ao caminho do porvir!
Segundo a voz dos poetas,
O lutar é progredir!

Para a crença exagerada


Do sacerdote impostor,
Tenhamos resposta dada
Num riso motejador!
Bem sabes que a gargalhada
As densas trevas destrói
Como se fora uma espada
Brandida por mão de herói!

Tem a força de alavancas


A ironia de Voltaire
E as grandes risadas francas
Do travesso Molière!

Os vultos tão decantados


Dos cavaleiros andantes
Foram todos esmagados
Pelo riso de Cervantes!

Levemos por toda parte


Só da verdade o clarão,
Cravando o nosso estandarte
Sobre a vã superstição!

Banindo as trevas da estrada,


Marchemos com pé seguro,
Com a fronte iluminada
Nos arrebóis do futuro!

À nova filosofia

Não dou preitos ao vão materialismo


Dos sábios e modernos menestréis,
Que, em nome de banal racionalismo,
A Deus dirigem máximas cruéis.

Transudando descrença e ceticismo,


Jamais transpus a porta dos bordéis:
Só almas saturadas de cinismo
Amam do vício os pútridos lauréis.

Quando sangram-me os pés pelos caminhos


Da rígida virtude e que os espinhos
Cruciam-me de dores infernais,

Minh’alma, sem temor, febricitante,


Vai banhar-se na luz, pura e brilhante,
Da imaculada crença de meus pais.

Decadência

Ditosas gerações passaram sobre a terra


Altares levantando a Deus, à eterna luz,
A crença, o talismã que a salvação encerra,
Brilhava como o sol que sobre nós reluz.

Em ondas de orações imersa a humanidade,


Vivendo em plena paz, sentia-se feliz.
Votando adorações à santa caridade,
Fugindo com horror dos sentimentos vis.

Soava alegremente o sino das ermidas,


Enchiam-se de incenso as grandes catedrais,
Subiam para o céo mil vozes comovidas
Das choças dos plebeus, dos pórticos reais.

Mas tudo decaiu! A crença imaculada


Deixou de palpitar nos brônzeos corações;
O templo agora jaz exposto à gargalhada,
A sacrilégios mil, a mil profanações.

O tipo divinal do padre legendário


Sinceramente bom, exemplo de virtudes,
Que sem fino argumento, ou fundo corolário,
Sabia comover os corações mais rudes;

Aquele em cujo olhar, tranquilo como um lago,


Não lia-se a preguiça, o desmazelo, o ócio,
Mas uma vida calma, e com celeste afago
Cumpria de Jesus o santo sacerdócio;

O tipo de Benvindo, herói dos Miseráveis,


Morreu d’inanição à falta de alimentos,
Deixou muitos irmãos, em parte detestáveis,
Sem honra, sem pudor, sem nobres sentimentos.

Ativos em romper os mais sagrados votos


Que juraram guardar à face dos altares,
Impõem-se às multidões os cínicos devotos
Com a filáucia hostil dos grandes titulares.

Deslizam-se de rojo assim como as serpentes


Os sórdidos Rodins, os Bórgias sensuais,
Afeitos a manchar as virgens inocentes,
A cobrir de vergonha os leitos conjugais!

………………………………………...

Correi, turba venal, aos mares da luxúria!


Cevai-vos no prazer, fartai-vos de cobiça,
Que um dia sentireis na fronte negra, espúria,
O gládio vingador, enorme, da justiça!

As novas ideias - A UMA POETISA

Vós perguntais, Senhora, ao torpe realismo


Que cousas cantareis à luz da nova escola,
Ao verdes sepultar-se em bem profundo abismo
O tristonho ideal que às almas desconsola.

Decerto, não deveis descer à vossa horta,


Nem ir pedir à couve a diva inspiração;
Mas tendes o dever de abrir a grande porta
Que dft para o progresso e dá para a razão.

Ao rúbido clarão das vastas oficinas,


Ao forte restrugir das forças do vapor,
Oh! vinde contemplar as formas purpurinas
Deste belo ideal banhado de fulgor!

Não ama o desespero, as fundas agonias,


Não canta o desalento, as mortas ilusões,
Nem fala do passado em queixas doentias,
Mas fala do futuro às novas gerações!

Não vão casar a voz aos hinos do piano,


Nem ama a serenata, os cantos ao luar;
Vibra o som dos clarins no seu lutar insano
E com valor incita os povos a marchar.

Febril, a combater em prol da liberdade,


Valente gladiador arroja-se na liça,
Por sufocar o erro em nome da verdade,
A torva escravidão em nome da justiça!

Sem vãs ostentações, nem fúteis aparatos,


Amando da ciência o claro resplendor,
Estuda a natureza, os portentosos fatos
Que suspendem noss’alma ao sempiterno Autor!

E quer ver na mulher a forte lidadora,


Do homem companheira afeita às provações,
Das turbas juvenis sensata educadora,
De sentimentos bons formando os corações!

No peito sente amor, mas nunca lacrimoso,


Mas nobre, transcendente, altivo, universal,
Lançando em toda terra um sulco luminoso
Os povos a enlaçar num beijo fraternal!

Não quer no mundo ser o marco estacionário


Refúgio da preguiça, abrigo de indolência;
Prossegue sem parar no longo itinerário
Em busca da moral, das artes, da ciência!

Este séc’lo d’heróis, de fúlgidas conquistas,


Há muito não pertence aos tristes provençais,
Que deixam de fitar as langorosas vistas
Na resplendente luz dos novos ideais!

Que vendo sempre em torno edificantes temas,


Assuntos a brilhar, fulgentes como o sol,
Não querem discutir os másculos problemas
Cantando só jasmins e nuvens do arrebol!

Descrer e suspirar é puro anacronismo


Na época atual de vida e de frescor;
Ninguém já quer ouvir o falso idealismo
Dos louros Antonys e dos Romeus de amor!

Senhora, reparai: na literária história


O rubro pavilhão nos ares já pompeia!
Por toda parte soa um hino de vitória
Ao vivo rutilar do sol da nova ideia!

Bem vedes : o lirismo inválido, indolente,


Morreu sentido a luz da límpida manhã!
Deixai passar, Senhora, a rápida corrente,
Deixai fazer-se ouvir a voz de Pelletan!

Às Frinés
Ó lânguidas Frinés, lorettes da cidade,
De aveludada tem à custa de alvaiade,
Vós sois, mas n’aparência, esplêndidas vestais!
Em noites de saraus, em noites de vigílias,
Roubais filhos às mães, maridos às famílias,
Dinheiro a velhos pais!

Calçais nos pés mignos botinas d’amazonas


Causando inveja assim às magras solteironas,
Que morrem por beijar as aras do himeneu!
Cintila o vosso olhar como uns sidéreos lumes,
Deixais atrás de vós um rasto de perfumes,
De rosas, que sei eu!...

Enquanto conservais uns restos de beleza,


Enquanto inda valeis afagos da riqueza,
Gozai da mocidade as fáceis emoções!
Folgai nas saturnais; ao voltear das danças
Deixai cair na espádua as vossas longas tranças,
Ó deusas dos salões!

Folgai que a vida é breve! O tempo tudo gasta!


Ele há de derribar, o grande iconoclasta,
Todo o vosso futuro, o vosso pleno Abril!
Trará consigo inverno e tempestade o gelos...
E há de transmudar a cor desses cabelos
Na triste cor senil!

Nem nada o condoer, feroz como um caudilho,


Vos roubará do olhar o fascinante brilho,
Das formas a altivez, da face a rósea cor!
Tereis de ver (ó magoa!) os vossos mil amantes,
A rirem-se de vós, correr febricitantes
Aos braços d’outro amor!

Velhas então na idade e muito mais nos vícios.


Ai! tristes! provareis bem rudes sacrifícios
Sem ter talvez um pão, sem ter sequer um lar!
Raladas pela dor, ó brancas Julietas,
Talvez que sobraçando o gancho das muletas,
Tenhais de mendigar!

Pendendo ao ombro nu raquítica sacola.


Ireis pedir talvez enferrujada esmola
Aos sórdidos sultões do vosso lindo harém!
Após o percorrer por todas as baixezas,
Sucmbireis à fome, ó pálidas belezas,
Sem bênçãos de ninguém!

Não vos impressioneis! Os tristes pensamentos


São nuvens a correr à discrição dos ventos,
Não deixam nem vestígio ou lúgubre sinal!
Vivei à la princesse, in dolce far niente,
Sem lembrar o porvir, e cuida só do presente!
O resto nada val’!

Ó lânguidas Frinés, lorettes da cidade,


De aveludada tez à custa de alvaiade,
Vós sois, mas n'aparência, esplêndidas vestais!
É pena que tenhais de resvalar um dia
Dos lindos céus azuis a pobre enfermaria
Dos tristes hospitais!

À deusa da razão

Ó deusa da razão, teu facho rutilante


Tem feito escurecer a sacra luz intensa
Maior que o astro-rei que surge do levante,
A luz que vem de Deus e que se chama Crença!

No meio do escarcéu, da tempestade imensa,


Quando em socorro vais do lasso navegante,
Ensinas-lhe talvez a formular a ofensa,
A blasfêmia feroz num grito lacerante!

Tu quiseste cingir de c’roa luminosa


A fronte pensativa e sábia de Espinosa,
O gênio de Tindal, o gênio de Voltaire.

Descrês do próprio Deus, e crês em ti somente!


Versátil, caprichosa, altiva intransigente
Ó deusa da razão, bem mostras que és mulher!

No templo

No íntimo sacrário de minh’alma


Não pervertida pelo amor aos vícios,
Às mundanas paixões que se chafurdam
No lago impuro da moleza e ócio,
Devoto humilde, levantei altares
A Ti, cujo poder que se não mede,
Abrange os orbes,o infinito abrange!

Tu és a causa prima, geradora


Das multidões de sóis que se constelam
Na abóbada infinita; só tu guias
Os lucíferos corpos nos espaços
Como notas harmônicas formando
Universal concerto. Do teu trono
Irrompe a luz que os seres vivifica
No mar, na terra, n’amplidão sem termo!

Não és decerto o gênio vingativo


Coroado de raios, golfejando
Terror, flagelações às almas fracas,
Encarcerando-as nas prisões eternas!
Tu não fazes pagar por um minuto
(Que tanto dura a transitória vida)
Embora eivado de loucura e erros,
Um eterno sofrer de mil tormentos,
De angústias infernais! Cruel vingança
Não mancha os teus desígnios luminosos!

Engolfado na luz da glória excelsa,


Jamais acolhes os mentidos preitos
Dos sagrados Tartufos que se inclinam
Beijando as aras, profanando o templo,
Entre bocejos recitando a Bíblia!
Pecadores sem fé, que muitas vezes
Tintas as faces ao calor dos vinhos,
Ardendo a mente de brutais desejos,
Vão, entre hosanas, profanar Teu nome,
Não são na terra os Teus ministros santos!
A voz apaixonada, impura e rouca
Que desprende dos lábios a luxúria,
O salmear confuso, inconsciente,
Torpemente vendido por dinheiro.
Os cantos sem a unção que santifica,
São terrenos demais para elevar-se
A Ti, ó sempiterna Divindade,
Que rodeias o trono de grandezas.
De prodígios que a mente não concebe
Por mais que em vãos esforços se aniquile!

Tu brilhas na minh’alma como brilha


Alâmpada num templo solitário
Exposto à convulsão dos elementos.
Deixando o pó mundano a Ti me elevo
Nas asas da oração pura e fervente
Que o coração murmura e nunca os lábios.
Escuto a voz solene, harmoniosa,
Que o órgão vibra ressoando as naves...
Num êxtase profundo e luminoso
Eu penso contemplar-te no infinito!

Ideal

Há milênios procura a humanidade,


A batalhar em gloriosa liça,
A encarnação perfeita da igualdade,
Protótipo do belo e da justiça.

Em busca do ideal que além fulgura,


Qual aos nautas perdidos um farol,
Desejando engolfar-se na luz pura
Que ao mundo espalha esse brilhante sol.

Na luta das ideias, triunfante,


Cinge na fronte viridantes louros
E marcha altiva, em progredir constante,
Juncando a estrada d’imortais tesouros.

Mas, ó triste irrisão! inda consente


O direito da força, a lei brutal,
Que manda assassinar impunemente
A membros da família universal!

A guerra, negra, atroz carnificina,


Atentado inaudito contra irmãos,
Arranca os operários da oficina
E de sangue lhes tinge as nobres mãos!

A guerra, esse fatal anacronismo


Que a prepotência d’ambição promove,
É a sombra que mancha o brilhantismo
Das ideias do século dezenove!
A bem da paz geral são necessários
Não somente os recursos da ciência,
Mas sentimentos bons, utilitários,
Enlaçando de amor nossa existência!

Demos culto de Cristo às sãs doutrinas,


Construamos o mundo da moral,
Desprezando vinganças pequeninas,
Teremos a conquista do ideal!

Culto externo

Desfila a procissão… Nos trêmulos andores


Impõem-se às multidões Batistas seminus
E santas joviais de vestes multicores
Fazendo reluzir argênteos resplendores
À vibração da luz.

Desfraldam-se os guiões d’agigantada altura,


Derrama-se d’incenso o langoroso odor!
Semelha a multidão enorme serpe escura
Que ondeia compassada, em grave compostura
Aos rufos do tambor.

De face carminada, azitas de gaivota,


Ali se podem ver anjinhos a marchar.
Segura cada um no braço de um janota,
Que às sacadas dirige o seu olhar idiota
Perfeitamente alvar.

Marchando com aprumo as aguerridas tropas,


Desfraldam com valor o pátrio pavilhão:
Os cetros a empunhar quais novos reis de copas,
Devotos santarrões com desbotadas opas
Dão lustre à procissão.

O bravo militar valente nas revistas,


Temido nos quartéis, só vencedor na paz,
Como herói consumado em célebres conquistas,
Faz do peito vitrine ao jeito das modistas,
Enfeita-o de crachás!

Os dândis bem gaités, alegres, reluzentes,


De perfumada roupa e lábios de carmim,
Sorriem por mostrar a nitidez dos dentes,
Enquanto um gordo padre em cantos estridentes
Fala a Deus em latim.

À frente do festejo, em bandos caricatos,


A plebe juvenil costuma a se exibir.
Lançando à nossa crença uns leves desacatos,
Berloques de truões, apupos insensatos
Cabriolando a rir.

Desfila a procissão por entre enorme grita


De tambores, clarins, estrídulos, cruéis;
Saudemos com fervor a prática bendita;
É boa, salutar, e francamente excita
O riso dos fiéis!

Nova doutrina

Diz Luiz Figuier (que ideias todas novas!)


Que noss’alma, leitor, do sol é que desceu,
E depois de passar por multidões de provas,
Uma quis o teu corpo, a outra quis o meu!

Vai ler Le Lendemain e rasga os catecismos!


Curva a fronte rebelde ao dogma da ciência!
Vai ver que deduções, que fundos silogismos,
E quanto se descobre além desta existência!

Exulta em ter nascido em séc’lo tão fecundo


De raras invenções tendentes ao porvir!
Agora já se sabe a vida n’outro mundo!
As almas todas vão ao sol se reunir!

É lá que vão viver ligadas, em congresso,


Qual vive a salamandra ao fogo sem arder!
Demos palmas, leitor, às luzes do progresso!
Havemos d’ir ao sol! Qu’importa hoje morrer?

Morrer é desprezar a túnica terrena


E, sob uma outra forma, ao éter transcender!
É daí remontar à região serena
Do sol, mudando sempre o primitivo ser!

Inferno, purgatório e santo paraíso


Por terra tudo jaz envolto em negro pó!
Deste planeta ao sol um homem de juízo
Alçou enorme escada, igual à de Jacó!

A alma, a diva luz, primeiro anima a planta,


Depois, em progressão, dá vida aos animais,
Ao asno, ao rouxinol, ao dromedário, à anta…
E chega finalmente aos monos racionais!

Resolveu-se a questão! É claro este problema!


Curvemo-nos, leitor, à grande ideia nova!
Explica-se à merveille! A base do sistema
Assenta na razão!
É pena não ter prova!

A Escola

Aquela casa pelo sol batida


É do saber a luminosa estância.
Dali se expande a luz que difundida
Traz aos povos o gozo d’abundância.

Abre-se o templo da verdade. A infância


Rindo se envolve na pujante lida,
A combater a treva da ignorância
Que nos sombreia a transitória vida.

Da nossa pátria os prósperos destinos


Dependem de elevados sentimentos
E das luzes que damos aos meninos,

Impulsora de vastos pensamentos,


A preparar futuros paladinos,
Que Deus te inspire os nobres movimentos!

Degradação

O templo, o casto asilo d’almas puras,


É agora o refúgio da mentira!
Tem mochos espectrais, sombras escuras,
Que lembram velhas ruínas de Palmira.

Ali a estupidez mancha os altares


Como um laivo de lama em branca tela;
O vício deixa os torpes lupanares,
E vai beijar de Cristo a imagem bela.

É dali que nos benze e nos conforta


Mostrando-nos da vida o triste fim,
Abrindo-nos dos céus a estreita porta
Ao som de macarrônico latim.

É dali que troveja a santidade


Qual um canhão do púlpito sombrio,
Fazendo estremecer a humanidade
Com fatos milagrosos que não viu.

Eu curso a fronte ao velho missionário,


Ao defensor das máximas divinas,
Que inspira-se no Mártir do Calvário
E com brandura prega sãs doutrinas.

Mas não a vós, ó filhos de Loyola,


Que desejais, calcando resistências,
Firmar solidamente a vossa escola,
Prender, como galés, as consciências!

A razão neste séc’lo grandioso


Bem mostra que de nada mais valeis!
O vosso poderio sempre ominoso
Jamais abalará tronos e reis!

Confundi-vos no pó, curvai as frontes


Ao peso da justiça que é fatal!
Fez-se a luz da razão nos horizontes!
Fez-se esplêndida aurora boreal!

À Liberdade

Ela é divina e pura como um astro;


D’aurifulgente clâmide formosa
Estende sobre a terra um longo rastro
Como se fora imensa nebulosa!
Filha da luz, santelmo da verdade,
É ela, a Liberdade!

De Roma no reinado dissoluto


Dos devassos Tarquínios opressores,
Fez brilhar um punhal nas mãos de Bruto
Tinto em sangue, banhado de fulgores!
Fez tombar o colosso — despotismo
Da Tarpeia no abismo!

Foi ela que na França dominada


Pelo clero e nobreza, levantou-se
Desfraldando a bandeira sublimada,
Perante a qual o mundo prosternou-se!
Fez ondular com santa majestade
O pendão da igualdade!

É ela quem conforta os oprimidos,


Em nome da razão rompendo leis,
Quebrando preconceitos carcomidos,
Arremessando ao chão tronos de reis!
É quem castiga os déspotas e maus,
E faz a luz no caos!

Desce, ó deusa, das lúcidas esferas,


E vem, mais forte ainda que os Anteus,
Conter a multidão das bestas-feras
Que zombam do poder do próprio Deus!
Num turbilhão de luz liberta os povos
Dos Torquemadas novos!

O mundo moral

Quando triste contemplo as cousas desta vida,


A justiça, o dever, que vejo postergados,
Sem ter nos corações respeitos, nem guarida,

Os sentimentos bons no lodo recalcados,


A virtude a trajar as vestes da indigência,
Os vícios, sem pudor, em tronos levantados,

A honra a mendigar às portas da opulência,


A própria juventude a escarnecer dos velhos,
Os velhos, em bordéis, fingindo adolescência,

O padre a declamar do púlpito conselhos


À vida regular, da qual negando exemplo,
Quer ver ante seu verbo as turbas de joelhos;

Quando esse imenso mar de vícios eu contemplo


De torpes ambições de pérfidos ciganos,
Que buscam bem viver à custa até do templo;

Ó Deus, curvada a fronte a tantos desenganos,


Eu penso no teu Filho, a quem mandaste um dia
Confundir fariseus e astutos publicanos!

E sinto na minh’alma a cólera sombria


De ver tão profanada a crença de Jesus,
A crença que valeu-lhe um século de agonia!

Do Gólgota sublime a salvadora luz


Está de todo extinta? Os peitos lazarentos
Não comovem-se mais diante de uma cruz!
Só lembram-se de Deus nos críticos momentos,
Quando o vício os reduz à condição precária
De esmolar todo o dia os tristes alimentos.

Então a mente insana outrora refratária


Ao culto da moral, das afeições sinceras,
Reveste-se d’unção bastante extraordinária!

Desfeita a pompa vã, desfeitas as quimeras,


Comidos da doença, inúteis, feios, vis,
Ou lançam triste olhar às lúcidas esferas,

Ou se vão suicidar em pútridos covis


E morrem como uns cães! Esplêndida vingança!
Desforra às leis de Deus e aos códigos civis!

É isto o que tu vês, ó musa da esperança!


Horror por toda parte, em toda parte o vício,
O vício multiforme, o vício que não cansa!

Resvala a sã moral em fundo precipício;


A fé, piedoso arcanjo, alívio do que luta,
Há muito que morreu — matou-a o Santo Ofício.

Ó Sempiterno Ser, se nesta escura gruta


Não pode mais a luz, vencendo a tempestade,
Infiltrar-se dos maus na consciência bruta,

À conquista do bem conduze a mocidade!


Derrama-lhe d’amor universal eflúvio!
Que essa bela porção da velha humanidade
Ressurja com vigor das ondas do dilúvio!

À Glória

Sedutora mulher! Do fulgurante olhar


Expande a viva luz, cintilação divina,
Que o astro do pastor, a Vênus vespertina,
Derrama sobre a terra, atira sobre o mar!

Do seio langoroso o palpitante arfar


Na tela virginal da branca musselina
Desenha-lhe talvez... ó graça alabastrina!
Dous mundos de paixão banhados de luar!

A prometer amor e festas delirantes,


É ela o grande sol que insanamente brilha
Nas almas varonis dos gênios triunfantes!

Em prêmio do labor, a branca maravilha


Costuma a transfundir no peito dos amantes
O veneno letal que verte a mancenilha!

O Gênio

O Gênio! o Gênio desce à profundez dos mares,


Estuda do oceano os vários movimentos,
Ou sobe às amplidões esplêndidas dos ares
Por dar à humanidade os múltiplos inventos!

Perscruta com ardor das plantas o atributo,


Compara e classifica espécies de animais,
Rasgando o dorso ao mar, qual um cetáceo bruto,
Percorre do Equador às zonas glaciais!

Do fulvo olhar despede as chispas esplendentes


Que irrompem do vulcão enorme de seu crânio;
Por sob o mesmo mar, aos longes continentes,
Arroja o pensamento — um raio subitâneo!

Heroico, varonil, sedento de façanhas,


Arroja-se ao porvir nas lutas que encetou;
Audaz, vai decifrar no seio das montanhas
Por que transformações a terra já passou!

Tem nos pulsos viris a força de um Atlante,


Nos olhos o fulgor dos astros imortais,
É sábio como Humboldt, divino como Dante,
Ostenta na cerviz os louros triunfais!

Debalde a treva, o erro, inquisições, horrores,


Intentem derribar o grande Prometeu;
O Gênio sobrenada, ileso, entre fulgores,
Ou seja André Vesale, ou seja Galileu!

Antigo qual Homero, existe como um astro


Formoso iluminando a fronte do talento;
A humanidade segue o deslumbrante rastro
Fitando pasmo olhar no azul do firmamento.

O Gênio rutilo na fronte de Hipatia,


O ideal da ciência em forma de mulher!
Deu vida à inteligência altiva de ironia,
Brilhante como a luz que se chamou Voltaire!

Recalca da insciência as rudes arrogâncias,


Fascina as multidões com pensamentos novos,
Por meio do vapor faz suprimir distâncias
E liga os corações dos mais remotos povos!

Sempre foi alavanca ao mundo da ciência!


A ele dirigiu-se a voz de Pelletan!
Atravessa da vida a fúlgida existência
Entre as leis de Jesus e a crença de Renan!

Salve, Gênio imortal, excelsa majestade,


Robusta como o bronze, altiva como os sóis!
Tu não podes morrer, ó branca divindade,
Que é essência de Deus e alma dos heróis!

Escravos

Hilotas infelizes! Ja vivestes


Entregues à alegria descuidosa
Nas plagas africanas, vosso berço,
Ouvindo perpassar nas tardes calmas,
Ciciando nos leques das palmeiras,
A viração do mar, que se embebia
Nos selvagens perfumes das florestas
Aonde o baobá aos céus levanta
A opulenta ramagem vigorosa
Ali só tinheis a temer as feras!
Nas palhoças de colmo, em noites alvas,
Dançáveis, ao soar dos instrumentos,
Cantando alegres trovas inspiradas
Naquela natureza abrasadora.

Felizes dos desertos, só queríeis


Viver gozando plena liberdade!
Mas um dia estrangeiros cobiçosos
Com promessa falaz ou força bruta,
Vos roubaram dos braços da família!
Tudo acabou-se para vós na terra!
Sagradas afeições, tranquilidade,
Morreram para vós desde o momento
Em que deixastes africanas costas
Estéreis, porém livres qual siroco
Que revolve o areal de seus desertos,
Que no ar turbilhonar em tempestades
Sufocando as errantes caravanas!
Estéreis, porém livres como os ares,
Como o correr das rápidas gazelas
Que dum salto transpõem despenhadeiros!

O auriverde pendão que no Ipiranga


Cobriu-se de lauréis mostrando ao mundo
Um punhado de heróis que destemidos
Quebraram jugos dum poder nefasto;
O pavilhão sagrado deste Império
Formoso como as várzeas e as florestas,
Opulento de dons inexauríveis,
Valente como o curso do Amazonas
Que leva de vencida o vasto oceano,
Fazendo-o recuar pasmo de susto;
Consente, à sua sombra, que se avilte
Essa triste porção da humanidade
Flagelada num poste d’ignonímias!
Que vivam sob os golpes da vergasta
Tantos nossos irmãos! Mil infelizes,
Que iludidos, roubados de seu berço,
De lágrimas de sangue a terra ensopam
Mil crânios embotados no martírio!
Mil almas sofredoras condenadas
Aos açoutes brutais do cativeiro!

Vergonha nos anais da história pátria!

A Utopia

Era belo de ver o monstro fumegante!


Quando ele, à prima vez, ornado de bandeiras,
Condensando o vapor nas rúbidas caldeiras,
Foi n’água resvalar sereno, triunfante,

Quedaram-se de pasmo as ondas altaneiras!


O verde-negro mar, audaz, feroz Atlante,
Não podendo esmagar a máquina flamante,
Nem opor-lhe sequer as líquidas barreiras,

Arrojou-se-lhe aos pés e a suspendeu nos ombros!


Inundado de luz, de glórias e de assombros,
O monstro caminhou seguro para o bem!

Por meio do vapor ligaram-se as nações!


A ciência, que é sol que espanca as negridões,
Vingou-vos afinal, ó manes de Papin!

Aos miseráveis

Nas grandes capitais, nas praças e nas ruas


Vê-se constantemente em formas seminuas
O grupo da miséria: aos ombros a sacola,
No olhar a prostração de quem suplica esmola.
Em cada corpo frio que lento se consome
Quantas cenas de horror não representa a fome?
Alguns já não têm luz no amortecido olhar,
E outros sem vigor mal podem se arrastar;
Aquele foi soldado, invalidou-se em lutas,

E esta já viveu nas glórias impolutas


Da flórea mocidade; o viço, a graça, a cor,
Já deram seiva e alma àquela pobre flor
Exposta aos vendavais. Em todos a miséria
Nas faces estampou a garra deletéria.
Pobres crânios sem luz! A febre da agonia
Crestou-lhes dentro d’alma as pét’las d’alegria!

Nos rotos corações da errante populaça


Nem uma aspiração já pulsa por desgraça,
Nem sentimento bom às chagas dá remédio;
É tudo desespero, e ceticismo e tédio!

Miseráveis senis, infortunadas mães,


Às vezes invejais a sina até dos cães
Que passam junto a vós, robustos e valentes,
De crânio levantado e pelos reluzentes!
Vão fartos como uns réus após um bom almoço,
E mostram como um padre as roscas no pescoço,
Vão cheios de gordura e d’altivez e brio,
Ao passo que morreis à fome, à sede, ao frio,
Expostos à irrisão da turba que escarnece,
Da turba que é feliz a rir de quem padece!

Quem sabe se amanhã, depois destas agruras,


Não gozareis nos céus auroras de venturas,
Sorrisos imortais na esplêndida mansão?

Eu sei que ireis dormir no lamacento chão


Que iguala a hierarquia, as condições iguais
Ireis vos dissolver no que se chama — a vala.
Ess’alma que sentis e amargamente chora,
Não sei se subirá, brilhante como a aurora,
Risonha, angelical, aos paços do Senhor...

Podeis pagar a reza ao capelão-cantor?


Quereis um cadafalso e tochas mil acesas?
O órgão vai gemer no coro umas tristezas?
Fareis vibras a voz dos brônzeos campanários?
Vai ser muito sentida a morte nos diários?
Deixareis uma herança enorme aos escrivães?
Tereis uns mausoléus, ó desoladas mães,
Ó descendentes nus da desgraçada Eva?
Jamais!
His de morrer como viveis — na treva.

Na lama de hospitais, sem pão, sem ar, sem luz,


Como uns bandidos vis cravados numa cruz,
Sem bênçãos morrereis! Voss’alma, num suspiro,
Assim como quem sai dum fúnebre retiro,
Julgará que partida a grade da prisão,
Ninguém há de impedir-lhe os voos n’amplidão!
Fitando o claro azul, imerso em fundo engano
Esquecerá que existe o braço ultramontano!

A luminosa essência, o sopro do Senhor,


Sem ter da santa Igreja o coro atroador.
Sem eça, sem latim, sem réquiem por esmola,
Sem ver a cruz de Deus na seda de uma estola,
Sem gota d’água benta, e só banhada em prantos
Não poderá subir às regiões dos santos!
Será de Satanás mais uma presa bela,
Por não poder pagar os preços da tabela!

Entanto, vede além um coche agaloado


Levando ao cemitério o corpo dum finado...
Aquele foi um Creso; a cofres opulentos,
A grandes capitais deu grandes movimentos.
Deixou quase um milhão. Alegres os parentes
Fizeram funerais pomposos, eloquentes;
Esplêndido caixão com ouros e veludos,
Vigários, sacristães e cônegos pançudos
Cantaram largo tempo, um coro triste, enorme,
Capaz de despertar aquele que ali dorme
Na tétrica mudez! Aos cânticos profundos
Foi confundir-se a voz dos sinos gemebundo.

A alma que subiu nas densas espirais


Do incenso, já desfruta os gozos imortais.

Qu’importa que ele fosse em vida um traficante,


Um biltre sem pudor, um cínico farsante?
Qu’importa que iludisse a tímidas donzelas,
E as deixasse a vagar em lôbregas vielas?
Qu’importa que tivesse a fama de ladrão?

“Mais um justo morreu, o honrado cidadão,


O nobre titular, o pai sempre extremoso,
Nosso amigo exemplar, o desvelado esposo...”
Foi esta a opinião dos públicos jornais.

Deixou quase um milhão, não vos importe o mais.

Aquilo que ali vai é simplesmente lodo!


A luz já foi bilhar aos pés do imenso Todo.
Arrastai a vossa cruz, ó tristes nazarenos!
Sorvei desta existência os pérfidos venenos,
Heroicos, sem temor, iguais na imensa luta,
Ao mestre de Platão, ao mártir da cicuta!
A vida é como a onda a combater a frega,
É sempre este vaivém, é sempre a mesma vaga
Que bate, que rebrama em loucas convulsões
E vai morrer desfeita em brancas ilusões!
Avante! Caminhai no rude itinerário
Que liga o vosso berço ao cimo do calvário!
Tingi com vosso sangue os cravos do suplício!
Morrei como Jesus no grande sacrifício!
Alguém vos vingará! alguém que não cobiça
As riquezas da terra e chama-se Justiça!

Aos vadios - I

Heróis de botequins, gentis aventureiros,


Que sois como Bayard, uns nobres cavaleiros,
Famosos D. Juans inúteis, sem valor,
Amantes dos cafés, das tascas, dos bilhares,
E das mulheres vis dos torpes lupanares,
— Aspásia sem pudor;

Vós que sempre viveis sedentos de conquistas


Em planos ideais lançando grossas vistas
Às virgens de metal, às filhas dos barões;
Vós, cujos corações, versáteis como a onda,
Farejam sem cessar as minas de Golconda,
Heranças de milhões:

II

Eu sei que todos vós sois almas gastas


Pelo fel da descrença, iconoclastas
Dos ídolos ideais!
Arrastais sobre as pedras dos caminhos
A virtude, a moral, amor, carinhos,
E sonhos virginais!

E sempre a rir, a rir como tunantes


Que em plena saturnal, entre bacantes,
Blasfemam por prazer!
Ó dandys enfunados de arrogância,
Foi essa a educação que vós na infância
Pudestes receber?

Abandonando a banca do trabalho,


O martelo, a bigorna, a serra, o malho,
Vadios, o que fazeis?
Entregues à mais vil ociosidade,
Afogais em luxúria a mocidade,
De tudo escarneceis!

Tibérios da moral, eu vos contemplo!


Quer no lar da família, que no templo,
Sois sempre vendilhões!
Em vez de bons, honrados, nobres, francos
Vós sois em toda parte os saltimbancos
Das grandes afeições!

Imberbes, já com alma de bandidos,


Erguei-vos, lazzaronni. apodrecidos
No pântano moral!
Procurai no trabalho santo abrigo
Contra a sanha dum pérfido inimigo
— O código penal!

A Rússia

Vassalos do czar, os niilistas,


São condenados todos à miséria,
Flagelados de dores sob as vistas
Dos cossacos, nos planos da Sibéria.

Da Sibéria! onde a vasta natureza


Desnuda-se dos verdes atavios,
Onde o clima com áspera fereza
Produz a morte em longos calefrios;

Onde a neve enregela fatalmente


Sem ter do sol o caridoso auxílio,
Onde a tortura prostra ao mais valente
Naquela campa que se diz exílio!

Ali vão sucumbir os desterrados


Envoltos nos algentes nevoeiros,
Ouvindo além, nos tristes descampados,
O tredo uivar dos lobos carniceiros.

Sepulcrais solidões tempestuosas


Cheias de horror e de tristeza e luto,
Veem morrer famílias numerosas
Dizimadas à peste d’escorbuto!

A fera russa que ao direito invade,


Atormentada em negros pesadelos,
Intenta sepultar a liberdade
Como um cadáver num lençol de gelos!

Todas as leis da humanidade insulta,


Despótico poder quer ter por viso:
Irrisória ambição! vaidade ‘stulta
Que em vez da compaixão nos move o riso!

E quer marchar à frente dos mais povos


Sem ter a luz que dele se irradia,
Impondo aos campeões robustos, novos,
O nefasto pendão d’autocracia!

Soldados do porvir, descei à liça,


Correi ao monstro colossal, titânio
Em nome do direito e da justiça
Fazei brotar a luz naquele crânio!

À Imprensa I

Sobre o mar espumante das ideias,


À plena luz do sol da liberdade,
Um astro rutilou!
O pensamento espedaçou cadeias,
Atravessando o azul da imensidade,
A Deus se remontou!

Surgiu a Imprensa, a luz vivificante


Que d’Alemanha deslumbrando os povos,
Mostrou-nos o porvir!
Foi Guttenberg o colossal Atlante
A sustentar um céu d’inventos novos,
O céu do progredir!

À luz das forjas, ao labor constante


De ousados e valentes operários,
Sublimes como heróis,
A indústria, a arte caminhou pujante,
Mostrando ao mundo nos inventos vários
Constelações de sóis!

II

De sábios levantaram-se as falanges


Que sem brandir de gládios, nem d’alfanges
Ao mundo deram leis!
Contra os erros na esplêndida revolta
Franklin, Galileo, Daguerre, Volta,
Foram mais do que reis!

Filhos do povo, democratas bravos,


Livrando os pulsos dos grilhões de escravos,
Calcaram-nos aos pés!
A conduzir o mundo pela estrada
Do saber, da ciência sublimada,
Foram novos Moisés!

Talentos circundados pela glória,


Inscreveram nas páginas da história
Os nomes imortais,
Enquanto que Colombo, o sábio crente
Arrojando-se aos mares do ocidente
Achava um mundo mais!

Tingiram-se de azul os horizontes,


Vestiram-se de gala prados, montes,
Ao róseo alvorecer!
Às ondas bramidoras como feras
Gemeram sob a quilha das galeras
Que às Índias foram ter!

III

Quais as lavas candentes do Vesúvio


Que saltam coruscantes nos espaços
E aos céus parecem ir,
Assim de ideias livres um dilúvio
Segue da Imprensa os luminosos passos
Caminho do porvir!
Morse transmite o pensamento ao longe
Nas pandas asas da electricidade
Pasmando as multidões
Schwart, pensador e sábio monge,
Da pobre cela ensina à humanidade
A construir vulcões!

« Guerra aos castelos! Paz para as cabanas!”


Foi a legenda escrita no estandarte
Que o povo levantou!
Ideias varonis, republicanas,
Espadanaram luz por toda parte!
Nova aurora raiou!

Nos antigos e fortes baluartes,


Nas ameias da grande cidadela,
— O feudalismo atroz —
Tremularam brilhantes estandartes
Da razão, que é a luz fulgente e bela
A refletir-se em nós!

Do progresso aos audazes movimentos,


Juncaram-se de louros os caminhos,
O sol resplandeceu!
Derrocaram-se os velhos monumentos
E amortalhado em fofos pergaminhos
O autocrata morreu!

Alavanca motora do progresso,


Salve, produto de subido engenho,
Emissária da luz!
Embora o gênio que te deu ingresso
Morresse como Cristo sobre o lenho
Duma infamante cruz!

Se outrora os desvalidos da fortuna


Não gozavam de santas liberdades,
Opressos pelas leis,
Tu é agora a popular tribuna
Donde lábios plebeus soltam verdades
Que estremecem os reis!

Contra os erros audaz propagandista,


Pulverizas o vício refratário,
Em nome da razão!
Em teu sagrado templo o publicista
Tem sacerdócio igual ao missionário
Que ensina a multidão!

Tu descerras as portas da ciência!


No livro, no jornal, pregas ideias
De futuro às nações!
E decantas com mágica eloquência
Os feitos dos heróis nas epopeias
Dos Miltons e Camões!

Atravessando todas as idades,


Tu fazes perdurar os pensamentos
Como eternos fanais!
Sobrepujando as fortes tempestades
Levantas mil soberbos monumentos
Às glórias imortais!

Salve, das letras portentosa guia!


Tu que desferes luminoso rastro
Por entre os escarcéus,
Tu és o sol brilhante que irradia
Sobre a face dos povos como um astro
Desprendido dos céus!

A uma cigana

Cigana sem pudor que os ferros despedaças


Das lúgubres prisões dos cínicos galés,
Que te fazem calar com fúlgidas mordaças,
Punhados d’ouro vil arremessado aos pés;

Que em público leilão te vendes pelas praças


Em concorrência igual às virgens dos cafés,
Que sabes perseguir somente as populaças,
Os mendigos senis, as ínfimas ralés:

Conheço-te cigana, hipócrita e venal:


A insaciável sede e fome de cobiça
Te fazem chafurdar em fundo tremedal!

Eu vou te desfazer a máscara postiça!


Comparsa rota e vil dum doido carnaval,
Tu és o ladrão Caco em forma de justiça!

A Victor Hugo

Colosso de Titã, fronte de Homero,


Em cujo olhar de esplendoroso brilho
Fulgura o sol da inspiração fecunda
Como um astro a luzir na imensidade!
Caudal torrente de harmonias puras
Que se despenha — catadupa enorme —
Sobre a face da terra deslumbrada!
Gigante do futuro, quem te insufla
As estrofes de fogo, entusiastas,
Como se em plena adolescência ainda
Sentisses a paixão pulsar nas veias?
Quem te anima o vigor do vasto crânio
— Revolto mar d’ideias luminosas —
E inspira-te poemas cujas laudas
São para os povos o evangelho augusto
Que na terra se chama — a liberdade?
Moderno Prometeu, que ao céo te elevas
Por colher do Senhor sublime essência,
E vens aos povos derramar fulgores,
Quem deu-te a lira do cantor da Grécia,
Do pálido Anfion que fascinava
Às brutas pedras e animais ferozes?
As grandezas da terra, cetros, c'roas,
As tiaras esplêndidas de fausto,
Tudo se abate ao peso do teu gênio,
Tudo é mesquinho, miserável, pobre,
Diante de tamanha majestade!

Águia sempre, fugindo às leis do tempo


À fatal gelidez de tantos évos,
Librada ainda nas possantes asas.
Pairas altiva n’amplidão do éter,
Perto contemplas multidões de mundos!

Na pátria d’Alembert. Buffon, Laplace,


Descartes e Pascal e tantos gêuios
Cingidos pela glória imarcescível
És o farol que aponta à humanidade
O caminho a seguir, livre de trevas,
Isento de cadeias opressoras!

À luz deslumbradora de tu'alma,


Sinto meu ser perdido na poeira
Sem voz e sem ação. mal suportando
Na retina o fulgor de que te cercas!

Assim também o nauta pensativo,


Fitando amplidões do céu sem termo,
Vê que no mar da criação é nada.

A seca no Ceará

O sol dardeja a prumo as rúbidas centelhas:


O vento abrasador, mefítico, letal,
Estende sobre a terra ondulações vermelhas
Que semelham de sangue um crepe funeral.

Devastação tremenda em campos, em lavouras!


A terra, sem vigor, queimada pelo sol,
Tem formas espectrais, senis, consternadoras,
Qual mostra a Líbia ardente envolta no lençol!

No meio deste horror, profundo, indescritível,


De angústias infernais e de sofrer sem nome,
Um fantasma pairou, que na cerviz terrível
Trazia maldições sinistras... Era a fome!

A fome, a sede, a peste, a luta de elementos,


A penúria, a miséria: eis tudo que caiu
Daquele céu de bronze! Em lúgubres lamentos
O povo agonizava entregue ao desvario.

Fugiam dos sertões os rotos miseráveis,


Banhados de suor, famintos, seminus,
Mancebos, anciãos, donzelas adoráveis
Curvadas para o chão, gemendo sob a cruz.

Alguns, ardendo o peito em desvairada fúria,


A mente enfebrecida em lúgubres visões,
Ousaram cercear as garras da penúria...
E então, para comer, tornaram-se ladrões!

Quanta cena de horror! A própria Divindade


Soía adormecer no mago dos céus,
Esquecida talvez da triste humanidade
Que morria a lutar em negros esearcéus!

Espírito imortal, prodigiosa essência,


Que vives n'amplidão dos célicos abismos,
Que és a eterna luz, a eterna providência
Que sabe suspender os grandes cataclismos;

Se queres minorar as dores das viúvas,


Dos órfãos e dos pais que morrem sem ter pão,
Transforma num momento em reiteradas chuvas
Os prantos que o Brasil tem derramado em vão!

A imortalidade da alma

Embora atormentado dos cilícios


De uma sina cruel, sofrida a custo
Sob o peso de enormes sacrifícios,
A indomável cerviz não dobra o justo.

Não rende preitos a nefandos vícios,


Ante as aras de Deus, no templo augusto
Não vai mentir coberto de flagícios,
Nem pregar a moral, impondo o susto.

Extingue das paixões o fogo insano,


E como o nauta que supera a vaga
E vence a fúria do revolto oceano,

Se o corpo morre na deserta plaga,


Ala-se a mente ao sublimado arcano.
Mudada em chama que jamais se apaga.

A Arte (À D. Emília Adelaide PimenteD

A Arte! O talismã que as frontes diviniza


Lançando sobre o gênio a púrpura de rei,
Que tem, qual uma pilha, a força que eletriza,
A força de uma lei;

A Arte! A grande luz que desce das esferas,


Aclara a humanidade e mostra-lhe o porvir!
Constantemente brilha assim como as crateras
No céu do progredir!

Esmaga e escuridão das trevas e do erro


Ao clarão perenal d’inapagáveis sóis,
E condenando o vício às lutas do desterro.
Imortaliza heróis!
'
A Arte não morreu! Não viu tombar na vala
As crenças varonis, ardor, aspirações
Possante como um deus, reveste-se de gala!
Deslumbra as gerações!

De Rubens no pincel, no mármor’ de Canova


Na música, no palco, ostenta-se qual é!
E tem por companheira a grande Ideia nova,
Fulgente como a fé!
A Arte não morreu! Eleva-se tranquila
Acima das paixões, por sobre o grande mar!
É como um diamante enorme que rutila
Ao fundo de um altar!

Senhora! vós que um dia, abandonando os lares,


Quisestes vir mostrar à terra dos palmares
O talento imortal que tendes por brazão;
Que sabeis deslizar na fúlgida romagem
Risonha como a luz, robusta de coragem
Qual um mártir cristão:

Vós que tendes colhido a palma das vitórias


Nos aplausos febris das cultas multidões;
Que marchais ao porvir e sois uma das glórias
Da pátria de Camões;

Em nome desta terra heroica do Rio Grande,


Que sabe o que é prezar o gênio que se expande,
Em nome do Brasil representado em nós:
Senhora! permiti que todas estas almas
Vos cubram de ovações num turbilhão de palmas,
Saudando a Arte em vós!

A Bíblia

Sobre o alto dum trono circundado


D’arcanjos, querubins e grão cortejo
Das almas dos fiéis que sucumbiram
Na desgraça e na dor; ouvindo as harpas
Dos serafins eternos que descantam
Do senhor a possante majestade:
Tal a Bíblia figura a excelsa glória
Do Onipotente Criador dos mundos!
Um Deus todo lirismo, acalentado

Ao narcótico som d'eternos cantos,


Vendo a seus pés os orbes descrevendo
Pelos espaços mil diversas curvas!
Só Ele imóvel sobre o sólio altivo
Do fundo azul a contemplar o globo
Que aprouve nos doar, e muitas vezes
Entre seus filhos fomentando guerras,
Levando assolações ao lar dos ímpios,
Executando planos de vinganças.
Em tudo a revelar fragilidades
Da contingência humana! Ora bondoso
Arrebatando aos céus em ígneos carros
Profetas bem amados; ora em fúrias
Fazendo despenhar as cataratas,
Cobrindo a terra de voragens tredas,
Num mar de prantos afogando os homens!

Nas páginas sagradas a virtude


Num beijo fraternal se enlaça ao crime!
No conceito dos lívidos profetas,
Inspirados, translúcidos videntes,
As estrelas são luzes encravadas
No firmamento azul e seu destino...
Calai-vos, sábios dos modernos tempos!
É de fulgores inundar a terra!
A terra! grão de areia convertido
Em centro universal, olhando em torno
O girar incessante das esferas,
A harmonia dos mundos que gravitam
Presos à força que do centro emana!

Astuto Satanás onipresente,


Por toda parte a levantar discórdias!
Irrisória ficção! vão simulacro,
Representando tão somente o erro
Os preconceitos dos antigos povos!
Pressupor um algoz que vive eterno
Contra o seu Deus a conjurar vinganças,
A flagelar contínuo a humanidade,
É crer demais no fementido embuste,
É descrer da razão e da justiça!

Quando percorro as páginas divinas


Estranhas comoções a mente assaltam!
Mistérios insondáveis, lutas, preces,
Tumulto de paixões e preconceitos,
Misto informe de afetos e de crimes,
Eis o que vejo rodeado em sombras...

Mas, eterno consolo às almas puras!


No grande caos revolto, inextricável,
Em que se perde a inteligência humana,
Vê-se uma luz brilhar imorredoura
— Fanal que indica a salvadora rota —
O santo e puro olhar de Jesus Cristo!

Aos operários I

A vida é qual o mar que açouta a penedia!


Ao lúgubre fragor da insana ventania
Que varre as amplidões,
À mercê do tufão que despedaça as velas,
O homem luta sempre envolto nas procelas
De encontradas paixões.

Se, presa da desgraça, à fé não dando abrigo,


Da luta se apavora e teme do perigo,
Descrendo do Senhor,
Pusilânime, vil, abisma-se nas vagas!
Depois, arroja o mar à solidão das plagas
Um corpo sem calor!

Lutar e progredir é lei da humanidade,


Que por milênios marcha à rubra claridade
De resplendentes sóis;
Qu’importa a dor enlute a forja dos gigantes,
Se depois de morrer, em traços deslumbrantes
Revivem como heróis?

De que vale chorar as mágoas transitórias


Se devemos seguir o carro das vitórias
Que roda sem cessar?
Não deve adormecer em meio estádio apenas
Abrindo o coração às cruciantes penas
Quem ama o batalhar!

II

A vida é qual o mar: as sirtes, os abrolhos,


As paragens fatais, os pérfidos escolhos
São árduos de vencer…
Quanto nauta arrojado, em noite tormentosa
Ferindo no cachopo a fronte esperançosa,
Jamais se pôde erguer!

Na funda escuridão da treva aterradora


Rebrilha o claro sol da crença animadora
Sob a forma da cruz...
É ela quem nos mostra o derradeiro porto
Da ventura real, da paz e do conforto,
Da verdadeira luz!

A centelha de Deus que dentro em nós reside,


Que sente, que palpita, e para Deus progride
Na prática do bem,
Ao findarmos na terra as lutas gloriosas,
Eleva-se tranquila às plagas luminosas
Das amplidões d’além...

Partícula imortal, liberta-se da sorte


Do corpo contingente, ao qual a negra morte
À ossamenta reduz;
Não vai aos vegetais dar seiva nutritiva,
Decompor-se no ar! Com majestade altiva,
Sobe ao foco da luz!

……………………..

Atletas varonis que ao sol da liberdade


Sabeis cobrir a fronte à toda humanidade
De fúlgidos clarões;
Audazes Prometeus da causa do futuro
Que sem temor subindo ao céu brilhante e puro
Colheis irradiações;

Obreiros do porvir, avante pela estrada


Do bem! mostrando sempre a fronte iluminada,
Serena no escarcéu!
Avante, avante, irmãos! Das forjas do trabalho
O trom da ferramenta, as vibrações do malho
Repercutem no céu!

Comédia vulgar

Faz-me rir o furor d'alguns republicanos


Que tentam derribar do sólio a majestade,
Em nome do porvir da deusa liberdade
Que esmaga sob os pés o cetro dos tiranos.

Pretendendo abater a fronte aos soberanos


Com doutas conclusões repletas de verdade,
Não cessam de citar varões d’antiguidade,
Os Mários, os Catões, os Brutos desumanos.

Mas, após a explosão qu’esvai-se num momento,


Tristíssima comédia! a recalcar os brios,
A quem vão mendigar socorro e valimento?

Diretamente ao rei, que em paga aos desvarios,


Lhes dá sempre um lugar à mesa do orçamento
Qual se atirasse um osso a magros cães vadios!

A Colonização UM QUADRO I

Tinham chegado, havia poucos meses,


Pai e mãe com seis filhos: tiroleses
Que d’além-mar, em busca d'agasalho,
Aqui vieram procurar trabalho.

Os robustos e fortes lavradores


Tinham na face as rubicundas cores
D’alegria sincera e da saúde.
Eram pobres em toda plenitude.

Os filhos, três casais, formosos, castos


De longas tranças e cabelos bastos
Já tinham do Tirol nas altas serras
Aprendido o labor d’amanhar terras

As coradas, risonhas raparigas,


Eram mais do que irmãs, eram amigas:
Criadas no trabalho honesto e rude,
Tinham todo o frescor da juventude!

Os rapazes, vermelhos e valentes,


De músculos de bronze, rijos dentes,
Afeitos a lutar com dissabores.
Semelhavam três jovens gladiadores.

II

Ao deixar o país em que nasceram.


De amargo pranto a face umedeceram,
Mas logo sucedendo ao pranto o riso,
Puseram-se a caminho. Era preciso
Marchar, marchar.
Alguém dissera um dia
Ao velho pae que à fome sucumbia:

“Tu vês, a nove cai, e a voz do vento


Vai soluçando um fúnebre lamento
No pinheiral sombrio; as sementeiras
Estão mortas no peso das geleiras.
Na horta, no pomar, tudo é deserto.
Não sei que fundo abismo vejo aberto
Diante de teus passos, caro amigo!
Mas podes ‘inda achar feliz abrigo
Que não seja o da campa. Além dos mares
Há benignos climas, salutares
Ubérrimo terreno inculto ainda.
Onde a plena abundância nunca é finda.
Precisam do teu braço, dos teus filhos,
Do teu arado que fecunda os trilhos
E que faz prosperar a agricultura.
Oh! decerto acharás paz e ventura
No seio sempre nobre, hospitaleiro,
Do americano povo brasileiro.

“Nao pagas cousa alguma na viagem:


Alimentos, despesas de passagem
Ele proprio dará. Eu te asseguro
Que fruirás esplêndido futuro.
Hão de à risca pagar os teus salários,
Terás subvenções, ferros agrários,
E casas provisórias e sementes.
Como vós vivereis então contentes
Ao ver-vos na abundância desejada!...
Tende fé: não vos há de faltar nada.

“Haveis de trabalhar com grande ardor


Para a glória do vosso benfeitor.
Tornareis as colônias abundantes,
Estimulando os moços emigrantes
Que sem perda de tempo principiem
A formar capitais que se auxiliem.
Gozareis a alegria funda, imensa,
De ver do vosso esforço a recompensa.
Se Deus vos ajudar, em breves anos,
Volvereis a Tirol. ricos, ufanos,
Ditosos de ter ganho o vosso pão
Sem baixeza, sem torpe humilhação.”

O velho acreditou que se cumpria


A promessa que o homem lhe fazia.

III

Vieram, e a sorrir, com passo afoito,


À colônia seguiram todos oito.

Por íngremes caminhos pedregosos


Ladeados de abismos tenebrosos,
De enormes paredões, despenhadeiros,
Os nossos esforçados estrangeiros
Andaram, tendo às costas os baús,
Cobertos de suor como Jesus
Ao subir o Calvário. Muitas vezes,
Prostrados de fadiga, os tirolezes
Ao caminhar insano davam tréguas.

Foi todo o itinerário — quinze léguas.

Após a longa marcha que fizeram,


Por justa recompensa o que lhes deram?
Instrumentos agrários imprestáveis,
Sementes semi-podres, detestáveis...

……………………………
A colônia era péssima em resumo:
Distante dos mercados de consumo,
Entregue à deplorável decadência,
Arrastando misérrima existência
Sem boa direção, sem harmonia,
Sem prestígio moral, sem alegria,
Sem escolas agrícolas, sem aulas,
Parecia composta só de jaulas
Das serpentes do tédio e desalento.
Trabalhar, para quê? Para o sustento?
Bem custa a produzir a terra ingrata!
A ração do governo é mais barata.
Onde iriam vender os cereais?
Quinze léguas distante, às vezes mais?
Nos cargueiros o lucro se consome.
Trabalhar, para quê? Antes ter fome.

IV

Poucos meses depois, filhos e pais.


Sem proveito tirar de cereais,
Quase mortos à míngua de alimentos
Expostos aos mais rudes sofrimentos,
À capital voltaram, seminus,
E descalços, gemendo sob a cruz
Das provações, dos ásperos castigos.

São felizes agora — são mendigos.

Os moços, enervados pelo ócio,


Fizeram da honradez torpe negócio
E malandros, vadios como uns vigários
Tornaram-se (infelizes) refratários
Aos ditames do senso e da moral.

As mulheres, no escuro tremedal


Dos vícios da cidade dissoluta,
Não podendo vencer a enorme luta
Das paixões infernais que as profanaram
Os sentimentos puros arrojaram
Aos abismos sinistros da luxúria.

Eis como não se morre de penúria!

A um lírico

Tu és um membro da família humana,


Um ente social: os teus esforços
Devem tender ao progredir constante,
Às plácidas conquistas do futuro,
— Este belo ideal da humanidade!

Por que te isolas do festim ruidoso


Das artes, da ciência, do trabalho,
E vais na sombra suspirar descrenças,
Ao riso juvenil misturar prantos,
Vibrando a lira em triviais queixumes?
Por que lançar à fronte dos atletas
Em vez de louros ressequidos palmas,
Tristes ciprestes, merencórios goivos?!

Esquece para sempre as mágoas todas,


Que brotam do sofrer imaginário!
Liberta o estro das cadeias áureas
Com que te prende amor; audaz levanta
A fronte esperançosa, onde cintila
A luz da inteligência! Entoa hosanas
A Deus, à cara patria, à liberdade,
Trindade sacrossanta que veneras,
A quem só deves consagrar teus hinos!
Despreza o que é banal, o que é mundano,
O que pertence à terra e nela esvai-se
Sem deixar do que foi nenhum vestígio!
Fita os olhos no azul do firmamento
Constelado de esferas rutilantes,
Que circundam de Deus o trono excelso,
Num contínuo volver harmonioso!
Sobranceiro a ti mesmo eleva a alma
Num turbilhão de cânticos sonoros!

Tal como a ave que desprende o voo


Para a amplidão serena, iluminada,
Que a débil vista humana não alcança,
Assim também abandonando a vida
Dos frívolos afetos transitórios,
Transportado de ardor qual o Mazzepa
Na carreira febril, dá novo alento
Às ideias viris que te arrebatam!
Canta a glória, o porvir, as vivas crenças,
Os dramas sociais, comovedores,
Tudo que sentes palpitar de grande
No coração de moço e de inspirado!
Da lira em que vibravas doces mágoas
Faze agora brotar canções guerreiras
Como o som dos clarins chamando à luta,
Alegres como o riso das crianças
E fortes como as rochas de granito!
Avante! que saudando os teus triunfos,
Como invalido herói da prisca Helênia,
Juntarei teus lauréis, para depô-los
No Panteão da pátria!

À Guerra

Não aplaudo-te, ó monstro, a valentia


Que revelas nos campos marciais,
Nem a glória imortal que s’irradia
Dos teus feitos heroicos, triunfais!

Percebo nos teus hinos de alegria


Os mil soluços, doloridos ais,
Dos cidadãos que espedaçaste um dia
À luz sinistra dos canhões fatais!

Sobre cadáveres teu poder impera!


Em recompensa do furor brutal,
Sabes acaso que porvir te espera?
A lança da justiça imparcial
Há de esmagar-te, ó sanguinária fera
Em nome da concórdia universal!

A José de Anchieta

Herói da crença, forte missionário,


Que te internaste nos sertões brasiléus,
Só tendo por escudo o breviário,
E por armas a cruz,
Atravessando inóspitas paragens,
E matas virgens que só feras trilham,
Levaste à fronte de cruéis selvagens
A verdadeira luz!

Ao som fluente de teu verbo augusto


Que comovia endurecidas almas
A crença impunhas sem temor, nem custo,
Às rudes multidões;
Transformavas as tabas dos guerreiros,
Onde por vezes golfejara o sangue,
Em asilos de paz, hospitaleiros,
Sacrários de afeições!

Diante da soberba majestade


Da fértil natureza americana,
Ensinavas a crer na Divindade
Aos filhos de Tupã;
Por toda parte difundindo a crença,
Fizeste a luz resplandecer nos crânios
Tal como a grande claridade intensa
Que ilumina a manhã!

Jamais tu’alma chafurdou-se em vício!


As tentações satânicas da carne
Foram-te o fel do grande sacrifício
Que te quiseste impor!
Heroico sempre, inquebrantável, forte,
Gravaste o nome nos anais da pátria
E transparente os penetrais da morte
Banhado de fulgor!

……………………….

Ficou sem frutos o teu nobre exemplo!


O clero d’hoje que se entrega ao ócio,
Transforma as aras do sagrado templo
Em sórdido balcão!
Não se entranha no seio das florestas
Arrimado ao bordão do missionário:
Prefere o gozo das mundanas festas,
A fátua ostentação!

Não vai pregar ao povo sãs doutrinas,


Nem combater os vícios, a descrença,
Que intentam destruir as leis divinas.
A sempiterna luz:
Na grande Babilônia mergulhado,
Dá-se ao prazer da torpe mancebia,
Rompendo os votos que prestou curvado
Ante o mártir da cruz!

A mulher

É do homem sincera companheira,


Não mais a escrava da remota idade,
Do Senhor a feitura derradeira.
A impávida mulher:
Ou quer nas dores da maternidade,
Ou contra as peias da ferrenha sorte,
Haveis de vê-la batalhando forte,
Sem trepidar sequer!

E quantas vezes vai buscar a glória


Nas esforçadas lides literárias,
Gravando o nome nos anais da história
Que passa às gerações!
Ou na família, por mil formas várias,
Seguindo sempre da virtude os brilhos,
Educa, eleva o coração dos filhos
Inspirando-lhe as grandes afeições!

Dar da moral edificante exemplo


Sem vãs ostentações e sem ruído,
Amar a pátria, a liberdade, o templo.
Mas sem superstição,
Proteger com amor ao desvalido,
Procurar instruir-se na verdade,
Contribuir ao bem da humanidade,
Tem ela por missão.

A missão da mulher! Fundo problema


Que certamente o vulgo não resolve
Quando procura discutir o tema
Da vida social;
As vastas relações em que se envolve
Esta ideia fecunda e transcendente,
Só pode avaliar quem dela sente
Desprender-se uma luz universal.

Seu modesto viver não é na luta,


Nas sangrentas refregas do combate
Em que faz predomínio a força bruta.
Suplantando a razão!
Na liça do dever que não abate
E mais heroico recolher os louros,
Do que lançar a morte, entre pelouros,
Ao peito dum irmão.

Oh! não deixemos perdurar no erro


O gérmen puro da futura glória;
Levemos ao seu plácido desterro
O saber que seduz!
Abramos nova fase em nossa história!
Tenha a mulher as aulas secundárias,
E veremos surgir mil voluntárias
A se alistar nos batalhões da luz!
SEGUNDA PARTE - DOLORES - PÁGINAS DE HUMORISMO - I - O encontro

O templo era repleto: nos altares


Castos, floridos, cintilavam luzes;
O ar se enchia de azulado incenso;
Em toda a igreja o palpitar dos leques
Semelhava o rumor das asas tênues
De namoradas pombas. Um sussurro,
Um contínuo soar de confidencias,
Baixinho se elevava... Nas tribunas
Donzelas adornadas de brilhantes
— Gotas de luz pendidas nas orelhas —
Mil episódios comentavam rindo,
Os jovens, sob o coro. recostados
Às marmóreas colunas, dirigiam
De toda parte cintilavam ditos,
Frases amáveis, confissões sinceras...

Bem junto do altar-mor padres obesos


Em macias cadeiras reclinados
Em longas capas d’aspergir envoltos,
As mãos cruzadas nos rotundos ventres,
Ali se viam bocejar de tédio.

E sobre um trono iluminado ao fundo,


Na cruz pregado agonizava Cristo!

Depois de haver pregado sãs doutrinas,


O novo Massillon, padre Modesto,
Exausto de falar à alegre turba,
Desceu a escada vagarosamente,
À sorrelfa lançando olhares ternos
Às formosas devotas.
“Varão santo
Virtuoso, exemplar vozes baixinho
Murmuravam fitando o bento padre)
Quem nos dera beijar-te qual se beija
Do venerando Cristo a vera efígie!
Adoramos-te. sim, que nos seduzes
Quando prostradas a teus pés, contritas
Confessamos as culpas inocentes
Que um teu beijo absolve... Tu dominas
Em nossos corações…” e suspiravam

Algumas devotinhas cismadoras,


Suspiravam de amor, fitando o padre,
Que passava orgulhoso de triunfo.

Reinaldo, recostado na coluna,


Cismava... certamente em cousas vagas,
Em céus, em paraíso, em vida eterna...

E viu passar envolta frocos de escumilha


Uma linda mulher, um tipo de criança,
Coquette a desprender perfumes baunilha
Da rescendente trança.

Molhando n’água os dedos delicados,


A moça levantando um pouco o raro véu,
Mostrou do nosso vate aos olhos deslumbrados
Um rosto divinal que todo era do céu.

Cruzaram um com outro as chispas incendidas


De apaixonado olhar;
As almas como irmãs, nervosas, comovidas,
Num delírio de amor quiseram se abraçar!

Porém ela passou no doido torvelhinho


De damas e senhores;
Reinaldo, ao vê-la ir, só murmurou baixinho:
“Adoro-te, Dolores...”

A moça era formosa como poucas;


Perante aquela imagem peregrina
Cuidava a gente ver a Fornarina
Tão decantada por milhões de bocas.

Tinha no olhar cintilações magnéticas


Que sabia vibrar nos corações;
As almas, quer ardentes, quer ascéticas;
Aos pés iam depor-lhe adorações.

Nas covinhas do rosto se aninhava


A turba alada dos febris desejos;
Os lábios em que o sangue palpitava
Faziam rebordar ardentes beijos.

Era uma flor de lânguidos aromas


Des’brochada no sol americano,
Que sabia ocultar de olhar profano
Os lírios ideais das níveas pomas.

Qual a terna visão do florentino,


Ou formosa odalisca de Corregio,
Contemplá-la em um êxtase divino.
E deixar de adorá-la um sacrilégio.

Os ombros largos, a cintura estreita.


E nas faces as cores juvenis,
Pequena a boca virginal, bem feita,
Gracioso o contorno dos quadris...

Por ela muito dandv almiscarado


Houvera feito dedilhar a lira.
Chamando-a querubim, anjo adorado,
Ou divindade em forma de hetaíra.

Mas desprezando as frases lisonjeiras


De incensadores vãos, de quem zombava,
Suspirosa de amor, noites inteiras
Passava sem dormir... A moça amava...

A virgem del Sarto não sonhara


Nem Petrarca, nem mesmo outro vidente,
Amava, sem saber como brotara
Aquela flor de amor no seio ardente.

Amava ao nosso herói a moça incauta!


E muita vez, em noite constelada,
Quis ouvir-lhe a voz doce, apaixonada,
Como o terno murmúrio de uma frauta.

Dolores que adorava a Traviata,


Que aprendera de cor o Moço Louro,
Queria ter também no seu namoro
Cada noite uma nova serenata.

Ó vós, apaixonados do lirismo,


Amantes da quadrinha alambicada,
Lede as ternas Canções do romantismo
Que são versos da última fornada!

Ali transborda o puro sentimento


Que tem feito chorar tanto Romeu!
São versos de um pelintra de talento
Que nunca regras d’arte conheceu!

II Canções - Recitadas a violão em noites de luar I

Quando, fitando o teu olhar divino,


A medo escuto a feiticeira fala,
Sinto minh’alma desprender hino
Qual o perfume que a baunilha exala.

Tanta doçura a tua voz respira,


É tão harmônica a sutil linguagem,
Que vago, incerto, o coração suspira
Como entre as folhas matutina aragem.

Não é mais doce n'amplidão sidérea


A terna voz do angelical cortejo!
Doces gorjeios! harmonia etérea!
Sempre sonora qual sonoro beijo!

Quando tu falas outro sol resplende,


Os céus se adornam de mais vivas galas,
Mais a minh’alma ao teu poder se rende,
Mais te idolatro, meu amor, se falas!

Ao meigo timbre dessa voz celeste.


Não sei que eflúvios bafejar-me vêm;
Não vejo espinhos no caminho agreste
Que vai do berço à sepultura além.

Das tuas falas ao sublime encanto.


São sufocados de minh'alma os trenos
Na face fria não desliza o pranto,
Cessa o martírio por um pouco ao menos!

Só tu mitigas o sofrer intenso


Que o peito enluta de tristonhos véus:
Quando tu falas, meu amor, eu penso
Que estamos juntos a sorrir nos céus!

II

Ó astro predileto
Que brilhas no meu horto,
Mostrando além o porto
De aspirações repleto!

Na vida em que vegeto


Só tu me dás conforto
Ao peito quase morto,
Ao pensamento inquieto.

Se em meu sofrer dolente


O teu olhar bendito
Derrama luz fulgente,

Sufoco o pranto aflito


E sinto então a mente
Perder-se no infinito...

III

Nosso amor, minha amada, é qual rochedo


Que do centro do mar ao céu se eleva,
Desprezando do mundo o lodo, a treva,
Procurando de Deus a infinda luz!
Sentimos o rugir das tempestades,
A vaga a nossos pés, louca, delira...
O vento que perpassa brame em ira
Revolvendo a poeira que conduz!

Nós fitamos o céu, risonhos, calmos,


Esquecidos do mundo em que vivemos;
O murmurar da inveja não tememos
Que jamais poderá chegar a nós!
Do alto do rochedo em cujo cimo
Ligados para sempre nos sentamos,
Com profundo pesar só lamentamos
Que seja esta existência tão veloz!

Nosso amor, minha amada, é como um astro


Que envolvendo de luz as nossas frontes
Aponta-nos ridentes horizontes
Qual a nuvem brilhante dos hebreus!
Nosso amor não s’extingue numa campa,
Nem no pó se desfaz! Altivo e forte,
Zombará do poder da própria morte
Subindo ao seio altíssimo de Deus!

III A partida

Eu gosto de rimas várias


Quais borboletas dispersas,
Em bandos de luz imersas,
Folganlo pela amplidão.

Conforme requer a ideia,


Ora escrevo alexandrinos.
Ora versos pequeninos
De fácil composição.

Já são passadas as eras


Em que os versos dos poemas
Saturavam-se de algemas
Corno uma escura prisão!

Hoje tudo está mudado:


Nas odes, nos poemetos.
Até nos próprios sonetos
Completa revolução!

Os poetas europeus
Com alma de americanos
Tornaram republicanos
Os metros de convenção.

Das caducas etiquetas


Libertou-se o pensamento:
Gira como um catavento
Ao sopro da inspiração!

O modernismo galante
Em toda parte acha ingresso!
Eu adoro este progresso
Com bem profunda paixão!

Repleto de ideias novas


Mais brilhantes do que a luz,
É ele quem nos conduz
À terra da Promissão.

Só acho um leve defeito


Neste progresso fulgente:
É ser um pouco descrente
Por falta de educação.

Na sua marcha incessante


Pelas sendas do futuro,
Segue a seita de Epicuro
Dizendo ser da razão.

A coorte dos descrentes


Aumenta de dia a dia
Como uma nuvem sombria
Na garganta de um vulcão.

Os sábios materialistas,
Ralados de desenganos,
Explicam santos arcanos
Com profunda exatidão!

Neste combate de ideias,


Onde a razão sempre avulta,
Parece incrível! Resulta
Deplorável confusão!

A ciência em tudo fala,


Miudamente analisa;
Mas eu sei que ela precisa
De crer num Deus de perdão.
Antes que um dia durmamos
Debaixo da fria lousa,
Creiamos n’alguma cousa
Que nos encha o coração.

Devemos ter mais cautela


No manejo da ironia,
Com que a vã filosofia
Quer tudo deitar ao chão.

Devemos...
Vamos à história
Singelamente narrada,
Que o mundo não lucra nada
Com tantas rimas em ão!

*
**

Sabemos que o rapaz era um talento;


Mas como ocupação ninguém lhe viu,
Teve em breve o destino do vadio
—Nas garras do fatal recrutamento!

Mas antes d’ir tragar os amargores


Da guerra, o nosso jovem fantasista
Pode ter com a pálida Dolores
De relance esta rápida entrevista:

— Dolores, prenda querida,


Da minha infeliz partida
Não tarda a soar a hora!
Bem vês: o dever me ordena...

— A que partas sem demora?


É pena!

— Ao leve romper d’aurora


Verás ondular no espaço
O pavilhão brasileiro.

— Hei de ver do meu terraço


Partires tu, meu guerreiro,
Sem levar n’alma a lembrança
Dos nossos tempos felizes...

— Que duras frases me dizes,


Dolores, és bem criança!
No meu prolongado exílio
Recordarei com saudade
O nosso encantado idílio!

— E meu retrato? É verdade


Que o levas sempre contigo?

—A tua ideia bendigo:


Contra o destino cruel
Hei de ver no teu retrato
O mais seguro broquel!
Adeus, prenda!
— Adeus, ingrato.
Volta breve!
—E triunfante
Por tratar dos esponsais!
— Dá-me um beijo, ó lindo amante!
— Eu agora... e outro mais!
— Que te proteja o bom Deus!
— Dolores, adeus!
—Adeus!

E se estreitaram num saudoso abraço...


A lua, envolta numa nuvem densa,
Lançando aos jovens uma sombra extensa,
Pudicamente adormeceu no espaço...

Marchou por ínvias serras, por paludes,


Por vales, por coxilhas, por picadas,
Sofrendo privações, trabalhos rudes,
E ganhando umas tísicas soldadas!
A nata mais gentil dos trovadores,
Reinaldo, o caro amante de Dolores!

Muitos dias passou sem ter almoço,


Exposto ao vento, à chuva, à fome, ao frio!

Quase a morte o levou! Por pouco o moço


Não viu quebrado da existência o fio!
Era horrível sofrer tantos horrores,
Longe da pátria, longe de Dolores!

E muita vez, do triste acampamento


Lembrando-se da virgem que deixara
Cantava umas estrofes ao relento.
Fitando o puro azul da noite clara:

SAUDADE

Outrora minh’alma, por entre os escolhos,


À luz de teus olhos pudera viver;
Agora, Dolores, sem ver teu semblante,
Da pátria distante pressinto morrer!

Os astros cintilam
Com vivo fulgor,
Só eu neste exílio
Soluço de amor!

Se agora pudesse te ouvir a linguagem


Na voz desta aragem que passa a gemer,
Minh’alma escutando teus cantos divinos,
Ao som de teus hinos quisera morrer!

Eu sinto dos ventos


O insano furor,
Sem ter os sorrisos
De um anjo de amor!

Minh’alma não pode, transpondo esses mares,


Volver aos teus lares, contigo viver:
Cumprindo as angústias de sina funesta.
Somente me resta saudoso morrer!

Tu vives bem longe


Do teu trovador,
Nem sonhas ao menos
Que eu morro de amor!

IV A volta

Depois de pela pátria haver lutado


Um lustro de provanças,
Voltando o nosso lírico soldado,
Repleto de esperanças,

Aos lares da família, aos seus amores


Veio o pobre saber
Que a sua formosíssima Dolores...
Até custa a dizer!

Igual à flor que tomba na corrente


E levada no vórtice fervente
Vai ter aos tremedais,
Dolores, arrastada ao precipício,
À desonra cedeu, cedeu ao vício
Que envolveu a nas densas espirais.

Maldito o que perverte um’alma casta


Na louca febre de brutais desejos!
Maldita a consciência impura e fasta
Que sabe apunhalar com torpes beijos!

Presa talvez de forte magnetismo,


Não pôde recuar a virgem bela,
E, desfolhando as rosas da capela,
Perdeu-se em fundo abismo...

Podia comparar-se com certeza


À Ofélia a boiar na correnteza...

Quem fora o sedutor? Quem se atrevera


A profanar o corpo da madona,
E arrojá-lo do cimo da virtude
Ao tremedal escuro das torpezas?
Que vampiro sinistro maculara
os lábios róseos da donzela incauta?
Oh! sacrilégio atroz!
Um santo padre!
Um pregador de máximas divinas,
Um filho de Loyola, que abençoa
O povo após a missa, que confessa
Revolvendo recônditos segredos,
Falando em Deus, em céus, em paraíso.
Em chamas infernais: — Padre Modesto!

…………………………………..

Um mês inteiro, entregue à febre,


A todos os tormentos da loucura,
Em um leito de dor curtiu Reinaldo
Sofrimentos cruéis que o lábio humano
Recusa descrever... Ora supunha
Ser toda aquela infâmia um sonho apenas,
Ora, medindo a profundez da culpa,
Pensava em dar ao demo a rapariga!

Quando ergueu-se do leito era um cadáver


Debilmente animado: dir-se-ia
Esguio fantasma que deixasse a campa!

Dias depois, compunha o nosso bardo


Uns versos, cujo título em bastardo
Era “Dores na sombra”: estilo frouxo,
Mais sonolento que o piar dum mocho:

DORES NA SOMBRA

Era um lindo palácio circundado


De floridos jardins: o riso, a festa,
A luz, o movimento, às harmonias
Das harpas e das cítaras sonoras,
A fragrância das flores, a beleza
Das marmóreas colunas, os terraços
Donde a vista perdia-se embebida
No transparente azul dos horizontes
Inundados de fúlgidos vapores...
Tudo, tudo, na esplêndida morada
Era belo, sublime como um templo!
Ali moravam mocidade, sonhos,
Douradas ilusões, santos enlevos
E doces esperanças do futuro.

A tempestade veio. Os elementos


Convulsos de furor como os arcanjos
Despenhados à treva dos abismos,
Insanos, a bramir desesperados
Como tigres rompendo férreas jaulas,
Sinistros, hediondos como o crime,
Passaram derramando mil blasfêmias,
Levando assolações, angústia e morte
À morada feliz que se elevava
No meio da planície qual oásis
Verdejante ao meio dos desertos!

Depois crença, ilusões e mocidade,


Tudo por quanto o coração palpita,
Eu vi cair despedaçado e morto
Debaixo de um acervo de ruínas.
Assim foi o passado que pranteio! —

*
**

Após uma existência de amarguras


Por tristes hospitais de caridade,
Dolores, velha em plena mocidade,
Foi repousar na paz das sepulturas.
Não sei se aquele espírito, em fulgores,
Arrebatou-se aos páramos celestes:
O corpo foi dar vida às belas flores
Que vegetam na sombra dos ciprestes.

Depois de haver chorado a infausta sorte


Da virgem que tombara em pego imundo,
Quis Reinaldo, comprando um passaporte,
Ir procurar ventura n'outro mundo.

Mas em tempo lembrou-se da vingança


Que o delito do padre merecia,
E lhe foi infringir, sem mais tardança,
O castigo que o caso requeria.

Não quis chamá-lo ao banco da justiça,


Lenitivo das honras ultrajadas,
Mas em certo domingo, após a missa,
Teve um belo desforço — a chicotadas!

Quis o moço depois mandar ao prelo


Toda a história infeliz dos seus amores:
Mas nunca satisfez o seu anelo
Por falta de dinheiro e de editores.

Volveu a ser perfeito vagabundo,


Lazzaroni, vivendo de cantatas,
Importunando a Deus, a todo mundo
Nas tascas, nos cafés, nas serenatas.

Mas, cousa singular! no mar do vicio


Tinha assomos febris de dignidade:
Sentia que era enorme o sacrifício
De chafurdar no lodo a mocidade.

Sentia que era infame descer tanto


Abaixo do dever, do pundonor,
E deixava rolar na face o pranto...
O pranto! esse sublime redemptor,

Que resgata dos charcos mais imundos


Formosos corações que se esfacelam
Nos Mäelstroms sociais, abismos fundos,
Que às frontes juvenis descoram, gelam.

Tão somente de ar ninguém se nutre,


E por isso Reinaldo estremecia
Ao lembrar que da fome o negro abutre
As garras bestiais lhe cravaria!

E, milagre de Deus! com firmes passos


Foi seguir da virtude o bom caminho!
Quis viver dos proventos nada escassos
De honesta profissão: fez-se meirinho!

Regenerou-se, emfim! Banhou-se todo


No Jordão do trabalho, n'alegria
Tirou d’alma o lirismo, o negro lodo,
O pântano que em breve o mataria!

Esqueceu-se de amores transitórios


E vive como um bispo, farto e puro
Recitando pregões nos auditórios
E sonhando casar-se no futuro!

V Modesto

Pretendo descrever sumariamente


O padre sedutor,
Que soube perverter como a serpente
Um anjo encantador.

Romanesco e formoso como um pajem


Da célebre Regência,
Com sutil, maquiavélica linguagem
Fascinava a inocência.

Aquele bom católico-romano


Tão devotado à Santa Madre Igreja,
Não tinha a corpulência de um germano
Que é tonel de sabença e de cerveja.

Não era um padralhão corado e nédio,


Fronte de touro, ventre de baleia;
Tinha o ar sensual do vício e tédio,
E das paixões curáveis na cadeia.

Nem era como um padre italiano,


Escuro, cadavérico. sombrio,
De lunático olhar de ultramontano
Constantemente entregue ao desvario.

Porém, sim, qual Saint-Just, um lindo todo,


Trajado sempre à lei do modernismo,
Não dando a perceber que tinha em lodo
O coração repleto de cinismo.

No mundo social em que vivia


Era o padre elemento necessário,
Pois à boca pequena se dizia
Que em breve chegaria a milionário.

Amar, gozar, beber, tal era a santa faina


Daquele bom ministro (oposto a Fénelon)
Que em vez duma estamenha ou tísica sotaina
Trajava redingote e largo pantalon.

Facundo nos sermões e grave, apocalítico,


Sabia verberar os vícios com furor;
Mas sempre a declamar à moda do político
Que sendo um Satanás quer ser um Redentor.

VI Giovannina

A deusa da fortuna é varia como o vento;


Ora impele o baixel à plaga da ventura,
Ora envolve-o sem dó num áspero tormento
Que tem por conclusão a paz da sepultura.

Modesto, o sedutor da tímida Dolores,


Após tê-la arrojado ao mar da perdição,
Não sei por que razão
Começou a sentir amargos dissabores.

Levado pelo amor d’altas conquistas


Qual um Byron moderno, ou qual Elmano,
Começou a lançar contínuas vistas
Para alguém do teatro italiano.
Um levita por tudo se apaixona!
Amava como um louco a primadona.

Giovannina chamava-se o planeta


Que o arrastando em turbilhões, sem calma,
Fazia-o de Mercúrio em torno ao sol...
Apaixonado o cínico roupeta,
Sentiu então brilhar nas trevas d’alma
A luz daquele esplêndido farol.

Modesto, ouvindo-a chilrear uma ária


Da ópera chamada o Guarani,
Sentiu que uma paixão extraordinária
Como um incêndio se ateava em si.

O cenário mostrava a bela alcova


Da amorosa Cecília: a luz da lua
Placidamente iluminava as formas
Que nem Fídias sonhara: Giovannina,
Polvilhadas as faces, lábios rubros,
Opulentas madeixas sobre os ombros,
Num desalinho casto de lorette,
Tangia uma guitarra... suspirosa,
Envolta em gases de Alcazar lyrique...
A voz que desferia soluçante
Ao compasso das lânguidas rabecas,
Parecia vibrada nos espaços
Por um coro de gênios: enlevava
Como estranha visão que a mente sonha!
Prendia as almas dos vadios boêmios!
Arrastava-as aos céus nos seus transportes!

Modesto, da plateia, alucinado,


Convulso murmurou: Hás de ser minha!

E foi. Por intermédio de um corista,


Embaixador ativo da signora,
Conseguiu assinar a extensa lista
Dos amantes privados da cantora.

Quereis ver em relevo a Giovannina?


Era um tipo gentil de italiana
Que excedia talvez à peregrina
Graziella, formosa procitana.

Coberta de ouropéis, finos brilhantes,


Luzia como um astro em céu de anil,
Inspirando paixões aos estudantes
Cada qual mais grotesca e mais servil.

Para agradar fazia um longo estudo


Diante do marmóreo toucador,
Amigo certo, confidente mudo,
Ao qual votava estremecido amor.

Aí, com pó de arroz, carmim, essências,


Tinturas de um completo boudoir,
Sabia castigar as insolências
Do tempo que vem tudo desbotar.

Aquela flor do vício encantadora


Galantes predicados via em si :
Dissoluta, intrigante, gastadora,
Perfeitamente igual à Du Barry.

Dava ao olhar a majestade altiva


Que a Ninon de Lenclos sabia dar;
Amava as seduções: era lasciva
Como a linda mulher de Putifar.

O padre que adorava a comoção,


O delírio das noites sensuais,
Que sentia pulsar no coração
O desejo febril dos cardeais,

Foi nela procurar santo conforto,


Sem perceber que o íd’lo fementido
Já tinha o coração mais corrompido
Do que os frutos dourados do Mar Morto.

Muitos meses passou manchando as vestes


Sacerdotais
Com ela a desfrutar gozos celestes
Em bacanais.

E muita vez lhe dizia:


“Tu és o meu relicário,
Com teu peso eu subiria
Pela rampa do Calvário.

Remiria os meus pecados


Morrendo como Jesus,
Se teus braços torneados
A mim servissem de cruz.

Por ti desprezo os altares


Os votos todos que fiz;
Antes ver-me em lupanares
Que ser um padre infeliz.

Muitos sábios de juízo


Rasgaram da crença o véu;
Um teu beijo, um teu sorriso
Valem mais que todo o céu.

Na febre que me consome


Eu sinto loucura tal,
Que escrevo sempre o teu nome
Nas folhas do meu missal!

Ó formosa italiana,
És mais bem proporcionada,
Que a seminua Suzana
Por Davi tão cobiçada!

Crê que a bela israelita,


A boa e piedosa Ester,
Não era assim tão bonita,
Nem tão perfeita mulher.

Minh’alma robusta e forte,


Palpitante de desejos
Quer contigo achar a morte
Numa batalha de beijos.

No teu seio sempre ardente


Cantar solene vitória,
Equivale certamente
Subir ao reino da glória!

Qu’importa que o mundo chame


À batina uma mortalha,
E me diga: “ó padre infame,
Tu não passas dum canalha!”

Relevo a nefanda injúria


Sem um protesto sequer,
Porque gosto da luxúria
Gostando de ti, mulher!

Não calculas os horrores


Negros dramas imorais,
Que têm tido por atores
Os papas e cardeais!...

Se o bom Deus, por desafogo,


Lavrou incêndio em Sodoma,
Devia também pôr fogo
Na torpe e devassa Roma!

Portanto, não tenhas pejo


Deste amor que me alucina;
É nobre e santo o desejo
Que nos liga, ó Giovannina!

Linda joia idolatrada,


Repara em minha pessoa:
De padre não tenho nada,
Apenas tenho esta c’roa!

Deixa beijar-te, querida,


A boca breve e carmínea!
Somos Fausto e Margarida,
Ou antes Paulo e Virgínia!

………………………….
Assim passaram venturosos dias
Sempre em bordéis,
Gastando o padre nas febris orgias
Contos de réis...

Por fim aborrecida a linda amante


Dele zombou;
Com injúria brutal, feia, insultante,
Quase o matou.

Chamou-o de mendigo. Sem dinheiro


Padre que val’?
O levita gastara o mealheiro!
Crise fatal!

E Giovannina então foi noutras plagas


Cantar, viver,
Deixando ao padre lazarentas chagas
D’atro sofrer.

VII Transformação

Andava o padre de nariz purpúreo,


De faces cadavéricas, terrenas,
A tomar salsa, frascos de mercúrio,
A ver se desfazia tantas penas.
Tu muito podes, madre natureza,
Mas não restituíste-lhe a beleza.

Minoraste-lhe a dor, pois que ele tinha


Uma botica esvaziado a meio!
Mas não lhe deste mais a cor que a vinha
Imprime num semblante gordo e cheio!
Fizeste do padreca... o que sei eu?
Perfeitamente múmia de museu!

Tendo curtido as lacerantes dores


Que o prazer sensual lhe pòde dar,
Viu-se em breve cercado de credores,
Sem ganhar um vintém com que os pagar.

Sem crédito, sem honra, sem dinheiro,


De ninguém arrancava um ai de dó
Aquele desgraçado aventureiro
Magro, feio, doente como um Jó.

Batido pelo vento, em doido labirinto,


Rugia ao longe o mar como um leão faminto.
De quando em quando o céu abria-se em crateras
Ribombando depois como um milhão de feras,
Como a trompa fatal do último juízo.
Silvava pelo espaço a chuva de granizo.
As artérias do mar, as rápidas correntes,
Volvendo-se em cachões, em vórtices ferventes,
Faziam recordar o sorvedouro atroz
Da costa escandinava: o temporal feroz,
Batendo com fragor as asas do nordeste,
Mostrava a sanha ali dum Átila celeste.
O globo em convulsões naquela escura noite
Sentia-se morrer ferido pelo açoite
De Titãs colossais, num infernal ludíbrio,
Sem órbita, sem leis, sem forças de equilíbrio.
Casavam-se os trovões d'abóbada sombria
Às rajadas brutais da insana ventania
Tal como o invetivar enraivecido e fero
Dos trágicos heróis, indômitos, de Homero.
Os austros, aquilões e euros de tropel
Soíam construir horrífica Babel
De treva e tempestade. Aquele escuro caos
Presidia Satã, senhor dos gênios maus,
Como um rei fustigando as negras legiões,
Levantando em troféu cruéis imprecações
A luz que o derribou do brônzeo pedestal.

Era o deus do terror, o espírito do mal.

Ao clarão dos fuzis, n'agreste penedia,


Impassível, cruel, um vulto ali se via
Fitando sem pavor o negro mar profundo,
Ouvindo a voz do raio a estremecer o mundo.
Sentindo o batalhar de opostos elementos
A blasfêmia da vaga, a maldição dos ventos.

Com audácia de ateu, que insulta a Divindade,


Bradava em alta voz à toda imensidade:

“Quem és, ó Criador! Esquálido fantasma,


Destaca-te da sombra e dize-me quem és!
Minh'alma varonil que ao teu poder não pasma,
Nem crê nas abusões,
Nem curva-se a teus pés,
Quer ouvir-te falar na voz destes trovões,
Unindo à tempestade o verbo teu divino,
Como fizeste outrora ao célebre assassino
Que chamou-se Moisés!

Tu a força, a lei que rege a natureza?


A luz que a tudo anima?
Tu levantas o mar com toda esta fereza?
Tu és a causa prima?

És tu que dás alento ao mínimo infusório,


À planta que respira e sente como um ser?
Tu és esse imortal, fantástico, irrisório,
Que vinga-se de nós fazendo-nos sofrer?

Foste o grande escultor dos monstros colossais


Da raça — Leviatã, da raça — Behemoth?
Mudaste numa estátua as formas triviais
Da curiosa mulher do incestuoso Ló?

Acaso apareceste, ó ídolo dos profetas,


Nas místicas visões dos lívidos ascetas?
Alguém ouviu-te a voz por entre a sarça ardente?
Alguém já contemplou-te a face onipotente?

Debalde te procuro: o livro da ciência


Ou nega-te a trindade a escarnecer de tudo,
Ou vai mais longe ainda e nega-te a existência.

A Bíblia para mim foi sempre um livro mudo;


Histórias para rir, enquanto não dão sono,
Não resistem sequer a comezinho estudo.

Se o finado Israel já pode ver teu trono,


Segundo reza a lenda, em sonho vaporoso,
Do sólio já caíste e jazes no abandono.

Rebrama o vendaval feroz, tempestuoso,


Açouta a rocha, o mar, os corações humanos,
Que sabem só dormir nos vórtices do gozo.

Vivi nas saturnais à moda dos ciganos,


Roubando, escarnecendo os nobres sentimentos,
E sempre a conceber uns luminosos planos!

Quisera ser sultão sequer alguns momentos;


Nos lábios de coral de inúmeras donzelas
Imprimiria então mil ósculos sedentos.

Quisera desfolhar as flóridas capelas


Das Ofélias febris, das louras Fornarinas,
De todas as visões fantásticas e belas!

Formosas criações, esplêndidas, divinas!


Por vós eu trocaria as renegadas crenças,
Se as pudesse arrancar às lúgubres sentinas

Do vício em que as perdi! Ó sórdidas doenças!


Assim despedaçais o corpo de um levita
Numa carga fatal de pútridas ofensas!

Se o demo aqui viesse acaso, ou por visita


Talvez me socorresse: “Oh, gênio do terror!
Escuta o meu gemer ao peso da desdita!

Eu quero ter dinheiro e ser comendador!”


Escuridão profunda... insana tempestade...
Nem mesmo Satanás quer ser meu Redentor!

Eu vivo como um cão por entre a sociedade,


Lazarento, vadio, coberto de baldões,
Sem asilo pedir à humana caridade.

Da minha juventude as fortes transições


Eu vou contar-te agora, estúpida tormenta,
Ao som do teu bramir, à luz dos teus trovões.

Que vida a que eu passei, de gozos opulenta


Fazia entrar nos céus mil almas de bandidos
Por meio de orações e potes d’água benta.

Eu tinha dos jornais encômios merecidos,


Sabia recitar sermões edificantes,
Roubados, já se vê, d’autores instruídos.
Amava com fervor belezas deslumbrantes,
Sem ouvir da canalha os ásperos motejos,
Fui muita vez dormir no leito das bacantes.

Oh! dor!... não sentirei a música dos beijos,


O santo e puro olhar que ainda me fascina,
A graça que arrastava a lúbricos desejos!

Nunca mais te verei, ó branca Giovannina!


Não mais apertarei num convulsivo abraço,
Essa forma ideal, perfeita, alabastrina!

Deixaste-me sem dó, prostrado de cansaço,


Na lama dos bordéis. Ingrata, infame atriz,
Fizeste-me servir de estúpido palhaço!

Eu sinto dentro d’alma a funda cicatriz,


O remorso cruel de não poder matar-te,
Cobrindo-te depois de andrajos torpes, vis!

Há de o tempo também um dia transformar-te


Repelente, servil, corcunda pelos anos,
Sem dentes morrerás aí por qualquer parte!

Os ventos infernais, cruéis, republicanos,


Parecem destruir a máquina terrena;
Pretendem ir aos céus quais outros Centimanos.

Presido ao grande horror da trevas da geena!


Há gritos, maldições, sinistras gargalhadas,
E choro junto a mim, soluços de quem pena.

São almas das Frinés, das virgens recatadas


Que vêm pedir abrigo às portas de Sodoma,
Abandonando a Deus as lúcidas moradas!

Passai, turba febril, vós sois como um sintoma


Da falta de moral e falta de critério
Que vê-se em toda a parte, a começar de Roma!

Virtudes sociaes, ninguém as toma ao sério:


Despreza-se a pobreza, elevam-se os tratantes,
O ser honrado agora é quase um vitupério!

Viceja a grande flor dos vícios degradantes,


Resvala a humanidade em rápido declive
À prostração moral dos tédios enervantes.

Que novo Jonas venha às praias de Ninive


Pregando às multidões sentenças de profeta,
E tenha, em recompensa, os pontapés que tive!

Vou mergulhar no lodo esta existência abjeta


Dolores!... Giovannina!... ó pombas namoradas!
Toquei da minha vida a luminosa meta!

Pretendo ver nos céus as rútilas escadas


Por onde as almas vão! Eu hei de ver Jesus
De fronte gotejante e mãos ensanguentadas.
Então lhe informarei que o símb’lo vão da cruz
Agora só se emprega em peitos de ladrões!
É céu que não tem sol, e sol que não tem luz!

Ó famoso Ideal das vãs superstições!


A razão me esclarece o ponto tenebroso
No qual sabes dormir cercado de visões!

Há muito que saí do círculo vicioso


Do ser e do não ser: conheço o que tu és!
Tu és uma ficção, um símb’lo duvidoso,
Hipótese sem base, um mito de Moisés!

Tu és…”

Não prosseguiu: sonora bofetada


Paralisou de todo a língua envenenada
Do triste pigmeu que se julgara Atlante.

Um outro vagabundo e cínico farsante,


Companheiro fiel, inseparável sócio,
Alegre e bon vivant das saturnais do ócio,
Quis despertá-lo assim à vida do prazer.
Não era longe a tasca, e foram lá beber,
Entre a turba senil de estúpidos garotos,
D’Ofélias sensuais e de Manfredos rotos.

…………………………………

A procela amainou. As nuvens denegridas,


Quais águias colossais, do vento repelidas,
Gemendo na soidão perderam-se no ar.

Volveu a paz ao céu, a quietação ao mar.


A terra, fatigado e negro mastodonte,
Sentiu-se de repente em branda luz banhada:
Brilhava radiosa acima do horizonte
A lua semelhante à hóstia consagrada.

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