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Português - 2016/2017

AUTO DA BARCA DO INFERNO DE GIL VICENTE


TÍTULO:
A obra intitula-se Auto da Barca do Inferno, porque a maioria das personagens embarca na barca
do Diabo.

CLASSIFICAÇÃO DA OBRA:
A obra é um auto de moralidade, porque revela os vícios, os defeitos e os costumes da época de
Quinhentos, criticando-os de modo a moralizar a sociedade.

ASSUNTO:
O auto apresenta a dualidade BEM / MAL, simbolizada pelas personagens alegóricas, ANJO e
DIABO, as quais se encontram na respetiva BARCA, atracada no CAIS. Aqui surgem várias
ALMAS que, através do diálogo com o Anjo e /ou o Diabo, expõem a sua vida, carregada de vícios,
o que as leva à condenação.

SIMBOLOGIA DO CENÁRIO:
Cais - representa o tribunal no qual somos julgados segundo o nosso comportamento enquanto
vivos.
• Barcas - simbolizam a partida para o outro mundo;
• Rio - simboliza a divisão e a transição entre este mundo e o outro.

PERSONAGENS:
Anjo / Diabo:
Semelhanças Diferenças
• São personagens alegóricas; • Diabo: espera um grande número de passageiros, por
• Nenhum deles tenta recuperar as isso enfeita a barca _ “Põe bandeiras, que é festa”;
personagens que entram em cena; • Anjo: Confiante de que não terá muita gente _ “(…)
• Ambos avaliam o tipo de vida das veremos se vem alguém/ merecedor de tal bem (…);
personagens, realçando os aspetos • Diabo: linguagem sarcástica, irónica, zombeteira,
negativos (na generalidade); crítica, agressiva e, por vezes, chocante;
• Ambos têm uma única função: condenar • Anjo: sóbrio na linguagem e nos gestos;
(Diabo) ou salvar (Anjo). • Diabo: lembra às personagens que o destino já se
encontra traçado, referindo os seus vícios;
• Anjo: o julgamento é definitivo.

Personagens-tipo:
Semelhanças Diferenças
 Grande apego aos bens materiais e ao seu
tipo de vida (exceções. Parvo, Cavaleiros);
 Não existe um arrependimento real,
embora, por vezes, haja uma tomada de  Percurso cénico
consciência do erro;  Representatividade dos símbolos.
 Visão deturpada da religião;
 Fazem-se acompanhar de símbolos
cénicos (exceção: Parvo).
Relações entre as personagens:

• Joane / Diabo: a ingenuidade do Parvo estanca a veia satírica e paralisa a agressividade do Diabo.
• Joane / Anjo: o Parvo tem uma atitude de humildade e simplicidade.
• Alcoviteira / Diabo: trata-o com rispidez e secura, pois acredita que não vai para o Inferno.
• Diabo / Alcoviteira: é irónico.
• Alcoviteira / Anjo: tenta seduzir o Anjo, utilizando uma linguagem bajuladora.
• Anjo / Alcoviteira: trata-a rudemente, menosprezando-a. Tem ainda uma atitude de indiferença.
• Alcoviteira / Corregedor: recebe-o mal, porque, em vida, a mandara açoitar.
• Cavaleiros / Diabo: o segundo fica surpreendido com a segurança dos cruzados. Por sua vez, estes
reagem com arrogância à interpelação do Diabo, achando-a ousada.

TEMPO:

Situando-se num plano extraterreno, a ação não apresenta uma evolução cronológica.

CRÍTICA:

Nesta peça, Gil Vicente denuncia os vícios da sociedade portuguesa quinhentista, segundo o lema
latino ridendo castigat mores, isto é, a rir se corrigem os
costumes. Assim, são criticados:
• A vaidade;
• A falsa prática religiosa; • Desregramento sexual;
• A corrupção da justiça; • A ostentação;
• O judaísmo; • Desprezo pelos humildes;
• A exploração; • A ignorância e a credulidade;
• A tirania, • A frivolidade.
• A ganância;

INCONGRUÊNCIAS DA PEÇA:

• Florença não fala durante a cena, nem é julgada; contudo, entra na barca do inferno;
• O Parvo, apesar de ser inculto, fala latim macarrónico.

ESTRUTURA EXTERNA:

Os textos dramáticos organizam-se, habitualmente, em atos que contêm diversas cenas. Tal não
acontece no Auto da Barca do Inferno, embora não seja difícil dividir em cenas esta peça de Gil
Vicente. Assim, temos as seguintes cenas:

• Introdutória: diálogo entre o Diabo e o Companheiro (cena


• Frade (cena longa);
curta) • Alcoviteira (cena curta);
• Fidalgo (cena longa); • Judeu (cena curta);
• Onzeneiro (cena curta); • Corregedor e Procurador (cena longa);
• Parvo (cena curta); • Enforcado (cena curta);
• Sapateiro (cena curta); • Cavaleiros (cena curta).

A estrutura repetitiva da peça é quebrada por:


• Cenas longas intercaladas com cenas curtas;
• Introdução de irregularidades e assimetrias: cantos do Diabo e do Frade, o Frade a dançar,
aparelhamento da barca do inferno, ordens dadas pelo diabo ao Companheiro.
A peça é constituída por oitavas, com versos em redondilha maior, seguindo o esquema rimático
abbaacca.
ESTRUTURA INTERNA:

Cada cena, exceto a inicial, apresenta as três partes clássicas:


• Exposição: breve apresentação da personagem;
• Conflito: interrogatório feito pelo Diabo e pelo Anjo;
• Desenlace: atribuição da sentença.

O CÓMICO:

Cómico de carácter:
• A loucura de Joane e a inconsciência dos seus atos e das suas palavras.
• Um frade dançarino e enamorado (desajuste entre o que a personagem deveria ser e a realidade)

Cómico de linguagem:
• Uso do calão
• Frases desconexas proferidas por Joane
• As respostas absurdas de Joane
• Ironia
• Latim macarrónico
• Falas de Brísida Vaz

Cómico de situação:
• O Fidalgo que entra em cena presunçoso e seguro da sua salvação
• Surpresa do Onzeneiro ao ver o Fidalgo na Barca do Inferno
• Um frade que canta, dança e se faz acompanhar de uma moça
• Lição de esgrima que o Frade dá ao Diabo
• Encontro do Corregedor com Brísida Vaz na Barca do Inferno

LINGUAGEM:

A linguagem apresenta-se como um meio caracterizador das personagens, dos estatutos, das
profissões, dos vícios, dos destinos, etc. Assim, Joane utiliza uma linguagem indecorosa, injuriosa,
rude e agressiva; a do Sapateiro é desbragada e rude, registando-se a presença de alguns tecnicismos
(“badana”, “cordovão”, etc.); o interesse que o Frade demonstra pela esgrima está patente nos termos
técnicos a que recorre com frequência; a Alcoviteira apresenta uma linguagem ambígua e deturpada,
invertendo o sentido das palavras que se encontram nos textos religiosos; o Judeu recorre ao calão; o
Corregedor usa o latim.
A linguagem transmite ainda o tom irónico e zombeteiro do Diabo, contrapondo-o ao ar calmo e
austero do Anjo.
Como recursos estilísticos, há que realçar a ironia, o eufemismo e o recurso a trocadilhos.

Aspetos medievais e renascentistas da obra:

Aspetos Medievais Aspetos Renascentistas


• Inexistência de uma divisão externa (atos • Existência de uma exposição, de um conflito e de um
e cenas) da peça; desenlace;
• Uso da redondilha maior; • Dimensão crítica da peça.
• Conceção religiosa da vida humana
(ideia do Juízo Final).
"AUTO DA BARCA DO INFERNO" QUADRO SÍNTESE

Outras personagens
Personagens em Classes Caracterizaçã
Símbolos cénicos Acusações Defesa Percurso cénico
Julgamento Sociais o Alegóricas Figurantes

Nobre, tirano, Cais> Barca do


Vida imoral; Companheiro
Pajem, manto, Estatuto social; tem quem Inferno> Barca da Diabo
Fidalgo Nobreza vida de prazer; vaidoso, do Diabo,
cadeira reze pela sua alma Glória> entra na Anjo
tirania; vaidade convencido Pajem
Barca do Inferno
Só pensava no
dinheiro; vida
imoral;
avarento; viveu Convencido, Cais> B.I.> B.G> Diabo
Onzeneiro Bolsão Povo Levava o saco vazio
do lucro avarento entra na B.I. Anjo
desenfreado e
do juro
excessivo
Joane não se faz
acompanhar de
símbolos cénicos,
O Anjo afirma que Joane Crítico,
porque representa
não errou por malícia. Na idiota, Cais> B.I.> BG>
algo imaterial - a
realidade, ele é destituído ingénuo, cais (onde fica a
ausência de malícia. Diabo
Parvo (Joane) Povo de senso, por isso não se humilde, aguardar alguém
Há ainda quem Anjo
lhe pode imputar simples, merecedor de
justifique este facto, entrar na BG)
responsabilidade pelos cómico,
afirmando apenas
seus atos. irresponsável
que o Parvo não
representa um vício
concreto.
Morreu
excomungado; Viveu para
roubou o povo; Morreu confessado e as
Sapateiro Avental, várias Povo praticou a falsa comungado; ouviu missas, aparências, Cais> B.I.> B.G.> Diabo
(Joanantão) formas (artesãos) confissão; foi ofereceu donativos à Igreja; ladrão, entra na B.I. Anjo
desonesto; nunca assistiu à hora dos finados. mentiroso,
indemnizou os desonesto
clientes
Os outros também Leviano,
Corrupção ocioso,
Broquel, espada, praticam a corrupção;
moral; frade licencioso, Cais> BI.> B.G.> Diabo Moça
Frade casco, capelo e Clero confiante nas orações e no
amancebado; brigão, entra na B.I. Anjo (Florença)
hábito; moça estatuto; enamorado;
mundano enamorado,
virtuoso dançarino
600 virgos postiços, 3
Levava uma vida Foi mártir; levou açoites;
arcas de feitiços, 3
imoral, sofreu tormentos; dava moças
armários de mentir, a molhos; criava as meninas Falsa, meretriz,
Alcoviteira (Brísida* 5 cofres de dedicando-se à
para os cónegos da sé; é descarada, Companheiro
Vaz) mexericos, furtos prostituição Cais> B.I.> B.G.> Diabo
Povo apostolada; é semelhante a um astuciosa, do Diabo;
alheios, joias de (desencaminhava anjo; converteu muitas entra na B.I. Anjo
hipócrita, ladra, Moças
* ou Brízida vestir, guarda-roupa, jovens), à fraude / cachopas;
casa movediça, mentirosa
impostura, à arranjou marido para todas as
estrado de cortiça, 2 feitiçaria e ao furto raparigas; dormia pouco
almofadas, moças
Mijou na Igreja;
comia carne no Tem direito a passar pelo Avarento, julga
dinheiro que tem; tem o Cais> B.I (vai à
Judeu Bode Judeu dia de N. Sr.; que o dinheiro Diabo
mesmo direito que a toa)
"ruim pessoa"; compra tudo
Alcoviteira
roubou o bode
Deixou-se
subornar; julgou Confiante no seu estatuto;
Burguesia/ com malícia; trabalhou muito; julgou com Corrupto,
Carregado de Cais> B.I.> B.G.> e Diabo
Corregedor Nobreza explorou os justiça e imparcialidade; os mentiroso,
processos, vara entra na B.I. Anjo
(magistrado) lavradores; não subornos eram um pecado da parcial
confessou tudo sua mulher.
ao padre

Povo/ Não se Bacharel,


pequena confessou; Confiava em Deus; não teve Cais> B.I.> B.G.> Diabo
Procurador Carregado de livros crente em
burguesia roubou coelhos e tempo para se confessar entra na B.I. Anjo
Deus, ladrão
(magistrado) pernas de
perdigotos

Bem-aventurado em morrer
Crédulo,
dependurado; fez bons
Enforcado Corda no pescoço Povo ignorante, Cais> Entra na B.I. Diabo
feitos; o Senhor o escolheu
ingénuo
para seu bem

Lutaram e morreram por


Cruz de Cristo, Nobreza Deus; morreram nas terras Cais> entram na Diabo
4 Cavaleiros
espadas, escudos (Cruzados) dos mouros; estão livres de B.G. Anjo
todo mal

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