Texto de referência: MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política - Livro I (Cap.
IV), Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.
A fórmula geral do capital
O capital surge com a circulação da mercadoria, seu desenvolvimento se dá através do comércio incipiente com o advento das grandes navegações no século XVI, onde “o comércio e o mercado mundial se inauguram” (MARX. p 289). O produto final da troca destes valores em circulação é o dinheiro, sendo assim a primeira forma de manifestação do capital. No entanto, é necessário diferenciar o dinheiro como dinheiro do dinheiro como capital, segundo o autor “[…] eles se distinguem apenas por sua diferente forma de circulação“ (MARX. p 290) e não por nenhuma de suas propriedades naturais. Temos então duas formas de circulação, sendo a primeira delas a forma imediata M-D-M (mercadoria-dinheiro-mercadoria), onde se vende para comprar. Na segunda forma temos D-M-D (dinheiro-mercadoria-dinheiro), nela o processo é dividido em duas etapas, na primeira observamos a compra "D-M” onde o dinheiro é convertido em mercadoria, e na segunda temos a venda “M-D” quando a mercadoria se converte em dinheiro e se repete o ciclo. Em suma é um processo onde se compra para vender e nessa “compra para vender" o dinheiro se transforma em capital. Entretanto, a parte mais importante com relação a essas duas maneiras de circulação reside nos seus pontos de diferenciação, segundo Marx a principal delas “[…] é a ordem invertida de sucessão das mesmas fases antitéticas de circulação[…]" (MARX p.292). Ou seja, na primeira forma a venda ocorre para possibilitar a compra, e na segunda - quando o dinheiro já circula como capital - a compra é feita para possibilitar a venda (venda essa com valor superior ao de compra). A segunda diferença fica no ponto de partida e chegada, em D-M-D é possível visualizar que o dinheiro se encontra tanto no início quanto no fim, já em M-D-M é a mercadoria. Outro aspecto de diferenciação é que em M-D-M o dinheiro chega em um ponto final no momento em que o dinheiro é gasto de forma definitiva para adquirir uma nova mercadoria. Em D-M-D o vendedor compra a mercadoria com expectativa de vendê-la novamente, com a intenção de obter ganhos no processo, esse fluxo de volta do dinheiro ao portador é uma necessidade do ciclo do capital “[..] sem esse refluxo a operação está fracassada [..]faltando aqui sua segunda fase, a de venda que completa e conclui a compra.” (MARX. p.293). Sendo então o objetivo desse ciclo a obtenção do valor de troca, o dinheiro, não como dinheiro, mas sim como capital. Notavelmente, outra diferença fundamental está no conteúdo - e não somente na forma - dos movimentos de cada ciclo, tanto no de mercadorias quanto de capital. No ciclo M-D-M os dois extremos são mercadorias e ambos possuem a mesma grandeza de valor, a diferença reside no conteúdo da troca, ou seja, seu valor é medido de forma qualitativa "[..] a satisfação das necessidades - o valor de uso - é assim, seu fim último” (MARX p.293). Porém, no ciclo do capital, ambos os extremos têm a mesma forma [o dinheiro], logo, a única maneira de encontrar diferenciação entre eles é na sua grandeza, em termos quantitativos, já que não há distinção qualitativa do dinheiro.
Contradições da fórmula geral
Marx, entretanto, percebe contradições na fórmula geral, e começa chamando atenção para o processo de circulação de mercadorias em sua forma pura, com a troca de mercadorias expressa na forma M-D-M, troca esta feita sendo fator determinante da transação o valor de uso das mercadorias intercambiadas, onde as mercadorias ofertadas não possuem valor de uso àqueles que as ofertam e, com a troca, poderá ser substituída por uma mercadoria que possua valor de uso para o demandante — é meramente uma metamorfose — havendo ganho em ambas as partes, ou seja, “[...] Na medida em que se trata de valores de uso, é claro que ambas as partes que realizam a troca podem ganhar. Ambas alienam mercadorias que lhes são inúteis como valores de uso e recebem em troca mercadorias de cujo valor de uso elas necessitam. [...]” (MARX, p.301). Essa circulação exige a troca de equivalentes, equivalência esta que se manifesta de forma quantitativa, no valor, que é o mesmo para as mercadorias no ponto de partida e de chegada. O que acontece neste processo, portanto, é que o mesmo valor se conserva primeiro como mercadoria, depois sob a forma de dinheiro e, por último, novamente como mercadoria. “[...] O dinheiro serve, nesse caso, como moeda de conta, para expressar o valor das mercadorias em seus preços, porém não se confronta materialmente com as próprias mercadorias. [...]” (MARX. p.301). Como todos os elementos desse processo têm o mesmo valor de troca, não há aumento quantitativo no valor. Isso ocorre porque todos trocam algo que têm por algo que não têm — sem receber mais do que doam. Logo, não ocorre formação de mais-valia. O que Marx aponta na obra, entretanto, é que a circulação de mercadorias nessa forma pura, na verdade, não se concretiza na realidade. O que ocorre na realidade é uma troca de não equivalentes. Não ocorre no modo de produção capitalista a produção individual de todo o necessário para si e posterior venda de apenas aquilo que lhe é desnecessário e necessário a outros. As relações comerciais se dão, na verdade, pela obtenção de lucro na venda de mercadorias, o que, segundo Marx, fere a lei de troca de mercadorias, já que “[...] Em sua forma pura, ela é uma troca de equivalentes, não um meio para o aumento do valor.” (MARX, p.303). Marx exemplifica o ato de obtenção de lucro em um primeiro momento por meio de uma situação onde, de forma extraordinária, é permitido aos vendedores que realizem sua mercadoria com um aumento nominal de preço de 10%. Acaba que, já que todos os vendedores passam a vender suas mercadorias a 10% a mais do que seu valor original, os preços se dilatam, mas as relações de valor continuariam as mesmas, já que, a exemplo de um vendedor, “[...] depois de ter sido vendedor, ele se torna comprador. E eis que um terceiro possuidor de mercadorias confronta-se com ele como vendedor e usufrui, por sua vez, do privilégio de vender a mercadoria 10% mais cara do que seu valor. [...]” (MARX, p.305). A formação de mais-valia e, logo, a transformação de dinheiro em capital não podem ser explicadas pela venda de mercadorias acima do seu valor ou pela compra destas abaixo do seu valor. Fora da circulação, os proprietários de mercadorias ainda se relacionam apenas com suas mercadorias. Ele pode agregar novo valor ao valor original por meio de novo trabalho, aumentando o valor da mercadoria. A mesma mercadoria possui mais valor porque contém mais trabalho. Portanto, é impossível para os produtores de mercadorias converter dinheiro ou mercadorias em capital sem entrar em contato com outros proprietários de mercadorias fora do meio de circulação, “[...] Assim, encontrando-se o produtor de mercadorias fora da esfera da circulação, sem travar contato com outros possuidores de mercadorias, é impossível que ele valorize o valor e, por conseguinte, transforme dinheiro ou mercadoria em capital.” (MARX, p. 311). Desta forma, como evidenciado por Marx, a circulação de mercadorias não gera valor, sendo assim, ainda persiste o questionamento de como o D (dinheiro) se transforma em D’ (capital).
Compra e venda da força de trabalho
Neste momento, Marx aponta que a transformação do dinheiro em capital deve ser realizada na mercadoria comprada na primeira parte do processo de circulação do capital (D — M), sendo assim, o valor de uso, de consumo, da mercadoria é o que gera essa transformação. Para extrair valor do consumo das mercadorias, o possuidor de dinheiro precisa descobrir no âmbito da circulação uma mercadoria que seu próprio valor de uso tenha a propriedade de produzir valor, e essa mercadoria é encontrada no mercado como a força de trabalho. No entanto, para que os possuidores de dinheiro encontrem o trabalho como mercadoria no mercado, várias condições devem ser atendidas, dentre elas:
No entanto, para que o possuidor de dinheiro encontre a força de trabalho como
mercadoria no mercado, é preciso que diversas condições estejam dadas. [...] Sob esse pressuposto, a força de trabalho só pode aparecer como mercadoria no mercado na medida em que é colocada à venda ou é vendida pelo seu próprio possuidor, pela pessoa da qual ela é a força de trabalho. Para vendê-la como mercadoria, seu possuidor tem de poder dispor dela, portanto, ser o livre proprietário de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa [...] (MARX, p.312-313)
É preciso também que o capitalista reconheça o trabalhador como igual/proprietário,
diferenciando-se apenas pelo status de comprador e vendedor. Marx chama atenção para o fato de que estas condições não são naturais, elas são provenientes de uma construção histórica que se apresenta especificamente no modo de produção capitalista: “[...] a natureza não produz possuidores de dinheiro e de mercadorias, de um lado, e simples possuidores de suas próprias forças de trabalho, de outro. Essa não é uma relação histórico-natural [...]” (MARX, p.315). A força de trabalho é uma mercadoria, e, como todas as outras mercadorias, possui um valor. Este valor é dado a partir dos custos relacionados ao acesso dos meios de subsistência necessários para além de sua sobrevivência, necessários também à sua reprodução: ”O proprietário da força de trabalho é mortal. Portanto, para que sua aparição no mercado de trabalho seja contínua, como pressupõe a contínua transformação do dinheiro em capital, é preciso que o vendedor de força de trabalho se perpetue, “como todo indivíduo vivo se perpetua pela procriação” [...]” (MARX, p.318). O que é pago, porém, é o valor da força de trabalho, mas não o trabalho executado; a jornada de trabalho é dividida entre o trabalho necessário para a produção e trabalho excedente, que gera o mais-valor, assunto que será abordado na próxima seção do livro.