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O “Capítulo VI (inédito)”, assim chamado porque foi publicado pela primeira vez em 1933, teria

sido escrito por Karl Marx entre 1863 e 1867, com o título “Resultado do processo de produção
imediato”, definido por alguns como uma ponte entre o livro 1 e o livro 2 de O capital. Nele são
abordadas algumas questões fundamentais do modo de produção capitalista, a começar pela
mercadoria, que é também por onde se inicia a análise do livro 1, a forma elementar da riqueza
no capitalismo.

O mercado e a mercadoria, assim como o dinheiro, não são criações originais do capitalismo.
Mercadorias existem desde a antiguidade, passando pelo escambo no comunismo primitivo,
evoluindo com a intermediação do dinheiro já no escravismo e depois no feudalismo, antes de
chegarem ao capitalismo, onde adquirem nova dimensão e qualidade. Pela primeira vez na
história, a produção de mercadoria passa a ser o objetivo imanente da produção capitalista, o
que é uma questão central na análise de Marx.

As mercadorias possuem duas características (valor de uso e valor de troca), e o trabalho tem
duplo caráter (trabalho concreto e trabalho abstrato). Para o capitalista, o que importa é o
valor de troca e o trabalho abstrato, que o produz.

A prevalência do valor de troca estabelece uma diferença fundamental, que distingue o


capitalismo dos modos de produção anteriores. Nos modos de produção pré-capitalistas, o
objetivo era a produção de valores de uso, ou seja, produtos para o autoconsumo ou o
consumo do senhor feudal ou do dono do escravo. Esses produtos não têm valor de troca, não
são mercadoria. A produção de mercadorias, ou de produtos para a troca, era marginal,
circunscrita a um ou outro ramo da produção e formada pelos excedentes da produção em
relação ao consumo

Sob o capitalismo, quase tudo que se produz é mercadoria. Como diz Marx, tal como na lenda
do rei Midas, tudo que o capital toca vira mercadoria e, na sequência, ouro. O ser mercadoria
invade e domina áreas como educação, saúde, saneamento. A privatização transforma em
propriedade privada capitalista todas as atividades à sua frente. Uma das características do
capitalismo, a crise de superprodução, só ocorre porque a finalidade da produção é a feitura de
mercadorias e não de valores de uso.

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A mercadoria onipresente

A mercadoria é o resultado imediato do processo de produção capitalista, mas também entra


nele como fator constitutivo, o “momento imanente de todo o processo”. A transformação de
uma soma de dinheiro adiantado (D) em fatores do processo de produção (Meio de produção –
Mp – e Força de Trabalho – T) já é um ato da circulação de mercadorias, conforme observa
Marx

D-M (Mp + T) – D´ (D´ = dinheiro acrescido de mais valor)

D´-M´-D´´ (onde M´é a mercadoria utilizada no processo de produção de uma nova mercadoria,
por exemplo, o fio usado na produção do tecido).

Da interação dos valores de uso das mercadorias compradas pelo capital surge um valor novo.

O valor de uso do capital (meios de produção, trabalho pretérito – capital constante, e força de
trabalho, trabalho vivo – capital variável) é a autovalorização, ou seja, a produção de mais
valor.
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O capital não é uma coisa, embora apareça ora sob a forma de capital-mercadoria, ora sob a
forma de capital-dinheiro. Esta é uma das causas da confusão que Marx observa entre os
economistas – matérias-primas, o dinheiro ou a força de trabalho (comprada com o capital
variável), isoladamente, não são capital, embora sejam vistos como sinônimos de capital. Nem
a mercadoria nem o dinheiro são, em si, capital (o salário e a mercadoria para consumo). O
capital é uma relação social de produção

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O capitalismo se consolida no momento que o produtor já não vende a mercadoria que produz,
mas a própria força de trabalho.

“Apenas quando o trabalhador, em vez de vender o produto do seu trabalho, passa a vender
sua própria capacidade de trabalho, somente então em sua totalidade a produção de
mercadorias em toda a sua profundidade e amplitude transforma todos os produtos em
mercadoria e as próprias condições objetivas de cada esfera individual de produção entram
nela como mercadoria”.

As mercadorias são o resultado imediato do processo de produção capitalista; as mercadorias


em circulação são o capital valorizado em busca de uma metamorfose em D´; sob o
capitalismo, a circulação de mercadorias deve ser compreendida como circulação de capital.

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Trabalho produtivo é o que produz mais valor

Trabalho de um mesmo conteúdo pode ser produtivo ou improdutivo, dependendo da relação


social que envolve. Marx contrapõe Milton, que escreveu Paraíso Perdido, ao autor de um
compêndio de economia política que escreve profissionalmente para uma editora. O trabalho
de Milton foi improdutivo, pois não objetivava ser mercadoria, enquanto o do outro escritor foi
produtivo, pois o compêndio era uma obra destinada pela editora ao mercado.

Existem muitos outros exemplos, entre eles o do professor. O professor do setor público não
produz mais valor e, portanto, realiza trabalho improdutivo, ao passo que o professor do setor
privado produz mais valor, ou seja, realiza um trabalho produtivo

Este é um aspecto essencial para Marx. Sob o capitalismo e para o capitalismo, trabalho
produtivo é o que produz mais valor, mas é preciso lembrar que há outras questões a
considerar quando se analisa, por exemplo, o trabalho do comerciário, do carcereiro, do
guarda, da polícia, do bancário e inúmeros outros casos de trabalho improdutivo.

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Capital: trabalho pretérito (meios de produção – capital constante) e trabalho vivo (força de
trabalho – capital variável) são dois modos de existência do capital na forma mercadoria.

No interior do processo de produção capitalista o trabalho é transformado em capital

“Como esforço, como dispêndio de energia vital, o trabalho é a atividade pessoal do


trabalhador. Mas, como formador de valor, como incorporado no processo de sua objetivação,
o trabalho do trabalhador, tão logo entra no processo de produção, é ele mesmo o modo de
existência do valor capital, incorporado nele.” Ou seja, é capital variável em operação.
O mais valor, fruto do tempo de trabalho excedente e resultado do processo de produção
capitalista, é capital valorizado.

O capitalista funciona como capital personificado, enquanto o trabalhador como trabalho


personificado, que lhe pertence como tormenta, mas pertence ao capitalista como substância
criadora e potencializadora de riqueza. “O domínio do capitalista sobre o trabalhador é,
portanto, o domínio da coisa sobre o homem, do trabalho morto sobre o trabalho vivo, do
produto sobre o produtor, a inversão do sujeito em objeto caracterizando a alienação do
trabalho”.

O capital emprega trabalho – mesmo essa relação em sua simplicidade denota a personificação
das coisas e coisificação das pessoas.

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Marx enfatiza o trabalho assalariado como a forma, por excelência, de contratação no


capitalismo ou da relação entre capital e trabalho.

Hoje assistimos novidades a este respeito, com o surgimento de ramos em que a forma
assalariada não é imprescindível à exploração.

Na Uber e outros os programas, dados e instruções que comandam o funcionamento de


dispositivos eletrônicos (APPs), para motoristas e entregadores, principalmente, não existe
capital variável; o capitalista não adianta capital para pagar salários, não existe a relação
assalariada. Mais: o que o aplicativo domina não são os meios de produção propriamente ditos
– o meio de produção ou de trabalho de uma corrida é um carro que é propriedade do
motorista ou um veículo que ele alugou, não é propriedade do aplicativo, pertence ao
trabalhador, ainda que alugado.

O que o aplicativo domina é o processo de distribuição, ou seja, o mercado. A ligação entre o


mercado consumidor e o trabalhador – o produtor – é monopolizada pelo APP.

Ou seja, o capital variável empregado – na relação com o motorista ou entregador - é igual a


zero, ou quase igual, levando-se em conta o pessoal contratado na realização do serviço. Isto
significa que todo dinheiro que ele, o APP, embolsa nesta relação, equivale exclusivamente a
tempo de trabalho excedente, ou seja, mais-valor

O trabalho necessário do motorista, no caso, é o trabalho que produz o valor com o qual ele
próprio se paga, ou que ele embolsa, sendo que deste valor deve ser subtraído também as
despesas com manutenção do veículo e combustível.

São novas relações sociais de produção que emergiram com o capitalismo de plataformas,
deslocando com um só golpe o Direito do Trabalho. Significam novas formas de exploração do
trabalho, mas que podem mudar com a regulamentação se o APP, por exemplo, tiver de pagar
salário mínimo (como na Inglaterra) previdência, seguro, auxílio alimentação, que são formas
indiretas de salário, ou seja, constituem capital variável.

Uma parte do trabalho realizado pelo trabalhador vai ser trabalho necessário (??? Explicar)

A regulamentação provocaria naturalmente uma redução das taxas de mais valor e também
das fabulosas taxas de lucros no chamado capitalismo de plataforma – o que não quer dizer
que ele vá à falência. A Uber, na Inglaterra, vangloria-se hoje de “conceder direitos” e continua
funcionando e lucrando, só que menos.
Daí a renhida luta dos proprietários das plataformas para manter o status quo, na qual
procuram também envolver os “colaboradores” que se julgam empreendedores, com uma
consciência típica da pequena burguesia.

Aqui aflora a questão da identidade e consciência de classe – a guerra ideológica e a criação de


uma consciência falsa e uma realidade invertida.

Os trabalhadores absorvem a ideia de que são independentes, empreendedores (ideologia do


empreendedorismo). Nesta relação, a aparência e também a realidade criam a falsa impressão
de autonomia. Não há uma jornada regular e, não obstante, trabalha-se 12 a 15 horas por dia.
O que explica este excesso é a necessidade do trabalhador – com a mesma força dos grilhões
que acorrentavam Prometeu.

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