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Décima Quarta Série: Da Dupla Causalidade . ... 97 Vigésima Terceira Série: Do Aion 167
Os acontecimentos-efeitos incorporais, sua causa e sua
quase-causa — Impassibilidade e gênese — Teoria de As características de Cronos e sua reversão por um devir
Husser] — As condições de uma verdadeira gênese: um das profundidades — Aion e a superfície — A organiza-
campo transcendental sem Eu nem centro de individua- ção que decorre de Aion e suas diferenças com relação
ção. a Cronos,
Décima Quinta Série: Das Singularidades ........ 103 Vigésima Quarta Série: Da Comunicação dos Acon-
À batalha — O campo transcendental não pode conser- tecimentos 175
var a forma de uma consciência — As singularidades Problema das mcompa ibilidades alóglcas — Leibniz —
impessoais e pré-individuais — Campo transcendental ¢ Distância positiva e síntese afirmativa de disjunção — O
superficie — Discurso do indivíduo, discurso da pessoa, eterno retorno, o Aion e a linha reta: um labirinto mais
discurso sem fundo: haverá um quarto discurso? terrivel. . .
Vigésima Quinta Série: Da Univocidade ........ 183 Trigésima Quarta Série: Da Ordem Primiria e da
O individuo e o acontecimento — Seqiiéncia do eterno- Organizagio Secundiria 247
— As trés significagSes da univocidade, A estrutura pendular do fantasma: ressonncia e mo-
vimento forcado — Da palavra ao verbo — Fim da
Vigésima Sexta Série: Da Linguagem .......... 187 génese dindmica — Rejeigdo, primária e secundéria —
Satirica, irdnica, humoristica.
O que torna a linguagem possivel — Recapitulagio da
organizagio da linguagem — O verbo e o infinitivo.
——
Os Estoicos, por sua vez, distinguiam duas espécies
de coisas: 1) Os corpos, com suas tensdes, suas qualidades
fisicas, suas relações, suas ações e paixdes e os “estados de
coisas” correspondentes. Estes estados de coisas, ações e
paixdes, sdo determinados pelas misturas entre corpos. No
limite, há uma unidade de todos os corpos em função de
um Fogo primordial em que eles são absorvidos ¢ a partir
do qual se desenvolvem segundo sua tepsdo respectiva. O
único tempo dos corpos e estados de coisas é o presente.
Pois o presente vivo € a extensdo temporal que acompanha
o ato, que exprime ¢ mede a ação do agente, a paixdo do
paciente. Mas, na medida da unidade dos corpos entre si,
na medida da unidade do principio ativo e do principio
passivo, um presente cósmico envolve o universo intejro:
só 0s corpos existem no espago e só o presente no tempo.
Não há causas e efeitos entre os corpos: todos os corpos
são causas, causas uns com relação aos outros, uns para os
outros. À unidade da causas entre si se chama Destino,
na extensão do presente césmico.
2) Todos 0s corpos são causas uns para 0s outros,
uns com relagio aos outros, mas de que? São causas de
certas coisas de uma natureza completamente diferente.
Estes efeitos ndo sdo corpos, mas, propriamente falando,
“incorporais”. Não são qualidades e propriedades fisicas,
mas atributos l6gicos ou diaiéticos. Não são coisas ou es-
tados de coisas, mas acontecimentos. Não se pode dizer
que existam, mas, antes, que subsistem ou insistem, tendo
este minimo de ser que convém ao que ndo é uma coisa,
cntidade ndo existente. Não sdo substantivos ou adjetivos,
mas verbos. Não sdo agentes nem pacientes, mas resulta-
dos de ações e paixões, “impassiveis” — impassíveis resul- é de uma outra natureza: não mais estados de coisas ou
tados. Não são presentes vivos, mas infinitivos: Aion ili- — misturas no fundo dos corpos, mas acontecimentos incorpo-
mitado, devir que se divide ao infinito em passado e em rais na superficie, que resultam destas misturas. A drvore
futuro, sempre se esquivando do presente. De tal forma que verdeja. .. ? O génio de uma filosofia se mede em primeiro
o tempo deve ser apreendido duas vezes, de duas maneiras lugar pelas novas distribuicbes que impõe aos seres e aos
complementares, exclusivas uma da outra: inteiro como pre- conceitos. Os Estdicos estdo em vias de tragar, de fazer
sente vivo nos corpos que agem e padecem, mas inteiro passar uma fronteira onde nenhuma havia sido jamais vista:
também como instância infinitamente divisível em passado- neste sentido deslocam toda a reflexão.
-futuro, nos efeitos incorporais que resultam dos corpos, O que estão operando é, em primeiro lugar, uma cisão
de suas ações e de suas paixões. Só o presente existe no totalmente nova da relagdo causal. Eles desmembram esta
tempo e reúne, absorve o passado e o futuro, mas só o relagdo, sujeitos a refazer uma unidade de cada lado. Re-
passado e o futuro insistem no tempo e dividem ao infinito metem as causas às causas e afirmam uma ligação das causas
cada presente. Não três dimensões sucessivas, mas duas entre si (destino). Remetem os efeitos aos efeitos e colo-
leituras simultâneas do tempo. — “cam certos lagos dos efeitos entre si. Mas não o fazem,
Como diz Emile Bréhier na sua bela reconstituição do absolutamente, da mesma maneira: os efeitos incorporais
pensamento estdico: “Quando o escalpelo corta a carne, o não são jamais causas uns em relação aos outros, mas so-
primeiro corpo produz sobre o segundo não uma proprie- mente “quase-causas”, segundo leis que exprimem talvez em
dade nova, mas um atributo novo, o de ser cortado. O cada caso a unidade relativa ou a mistura dos corpos de
atributo não designa nenhuma qualidade real. .., é sempre que dependem como de suas causas reais. Tanto que a
ao contririo expresso por um verbo, o que quer dizer que liberdade se vê salva de duas maneiras complementares:
é não um ser, mas uma maneira de ser... Esta maneira
uma vez na interioridade do destino como ligagdo das causas,
de ser se encontra de alguma forma no limite, na superficie outra na exterioridade dos acontecimentos como lago dos
de ser e não pode mudar sva mnatureza: ela não é a bem efeitos. Eis por que os Est6icos podem opor destino e ne-
dizer nem ativa nem passiva, pois a passividade suporia uma
cessidade 3. Os Epicuristas operam uma outra cisdo da cau-
natureza corporal que sofre uma ação. Ela é pura e sim- salidade, que fundamenta também a liberdade: conservam
plesmente um resultado, um efeito não classificavel eatre os a homogeneidade da causa e do efeito, mas recortam a causa-
seres. .. (Os Estéicos distinguem) radicalmente, o que nin-
lidade segundo séries atémicas cuja independéncia respectiva
guém tinha feito antes deles, dois planos de ser: de um é garantida pelo clinamen — não mais destino sem necessi-
Jado o ser profundo e real, a forga; de outro, o plano dos dade, mas causalidade sem destino 4. Nos dois casos come-
fatos, que se produzem na superficie do ser e instituem uma ça-se por dissociar a relagdo causal, ao invés de distinguir
multiplicidade infinita de seres incorporais™ 1. tipos de causalidade, como fazia Aristételes ou como fard
No entanto, o que há de mais intimo, de mais essen- Kant. E esta dissociação nos remete sempre à linguagem,
cial ao corpo do que acontecimentos como crescer, diminuir, seja à existéncia de uma declinacdo das causas, seja, como
ser cortado? O que querem dizer os Estdicos quando veremos, à existéncia de uma conjugação dos efeitos.
opbem à espessura dos corpos estes acontecimentos incor- Esta dualidade nova entre os corpos ou estados de
porais que se dariam somente na superficie, como um vapor cojsas e os efeitos ou acontecimentos incorporais conduz
nos campos (menos até que um vapor, pois um vapor é um a uma subversdo da filosofia. Por exemplo, em Aristételes,
corpo)?
O que há nos corpos,na profundidade dos corpos, todas as categorias se dizem em fungdo do Ser; e a diferen-
sdo misturas: um corpo penetra outro e coexiste com ele
em todas as suas partes, como a gota de vinho no mar ou 2. Ci os comentirios de Bréhier sobre este exemplo, p. 20.
o fogo no ferro. Um corpo se retira de outro, como o 3.
que o
Sobre a distingdo das causas reais internas e das causas exteriores
em relações fimitadas de “confatalidade”, cf. Cícero, De faro,
liquido de um vaso. As misturas em geral determinam es- e 16,
tados de coisas quantitativos e qualitativos: as dimensões
4. Os Epicuristas têm também uma idéia do acontecimento muito próxima
da dos Estóicos: Epicuro, carta a Heródoto, 3940, 6873; e Lucrécio,
de um conjunto ou o vermelho do ferro, o verde de uma L 4490 s Lucrécio analisa o acontecimento: “a filha de Tindaro foi seques-
Hada.—” -Ele opõe os comia (servidio-besdade, pobreza-riqueza,
drvore. Mas o que queremos dizer por “crescer”, “dimi- concórdia) aos conjuncta (qualidades reais inseparáveis dos corpos). Os acom-
tos não parecem exatamente incorporais, mas são entretanto apresentados
nuir”,“avermelhar”, “verdejar”, “cortar”, “ser cortado” etc., como não existindo por si mesmos, impassiveis, puros resultados dos movimentos
da matéria, das ações e paixdes dos corpos, Entretanto, não parece que o3
1. Batmer. Emile. La Theorie des incorporels dans Pancien stoicisme. Epicuristas tenham desenvolvido esta teoria do acontecimento; talvez porque
Vria, 1928, pp. 11-18. a dobravam às exigências de uma causalidade homogénea e a faziam depender
de sua propria concepção do simulacro. Cf, Apêndice IL.
ça se passa no ser entre a substância como sentido primeiro O devir-ilimitado torna-se o próprio acontecimento,
e as outras categorias que lhe são relacionadas como aci- ideal, incorporal, com todas as reviravoltas que lhe são pró-
dentes. Para os Estóicos, ao contrário, os estados de coisas, prias, do futuro e do passado, do ativo e do passivo, da
quantidades e qualidades, não são menos seres (ou corpos) causa e do efeito. O futuro e o passado, o mais e o menos,
que a substância; eles fazem parte da substância; e, sob este o muito e o pouco, o demasiado e o insuficiente ainda, o já
título, se opõem a um extra-ser que constitui o incorporal e o não: pois o acontecimento, infinitamente divisível, é
como entidade não existente. O termo mais alto não é pois sempre os dois ao mesmo tempo, eternamente o que acaba
o Ser, mas Alguma coisa, aliquid, na medida em que sub- de se passar e O que vai se passar, mas nunca o que se
sume o ser é o não-ser, as existências e as imsisténcias 5. passa (cortar demasiado profundo mas não o bastante). O
Mais ainda, os Estóicos procedem & primeira grande revira- ativo e o passivo: pois o acontecimento, sendo impassível,
volta do platonismo, & reviravolta radical. Pois se os cor- troca-os tanto melhor quanto não é nem um nem outro,
pos, com seus estados, qualidades e quantidades, assumem mas seu resultado comum (cortar-ser cortado). À causa e
todos os caracteres da substincia ¢ da causa, inversamente, o efeito: pois os acontecimentos, não sendo nunca nada
os caracteres da Idéia caem do outro lado, neste extra-ser mais do que efeitos, podem tanto melhor uns com os outros
impassivel, estéril, ineficaz, 3 superficie das coisas: o ideal, entrar em funções de quase-causas ou de relações de quase-
o incorporal não pode ser mais do que um “efeito”. á -causalidade sempre reversíveis (a ferida e a cicatriz).
A conseqiiéncia é de uma importincia extrema. Pois, Os Estóicos são amantes de paradoxos e inventores.
em Platdo, um obscuro debate se processava na profundi- É preciso reler o admirável retrato de Crisipo, em algumas
dade das coisas, na profundidade da terra, entre o que se páginas, por Diógenes Laércio. Talvez os Estóicos se sir-
submetia & ação da Idéia e o que se subtraia a esta ação (as vam do paradoxo de um modo completamente novo: ao
cépias e os simulacros). Um eco deste debate ressoa quan- mesmo tempo como instrumento de análise para a linguagem
do Sécrates pergunta: haverd Idéia de tudo, mesmo do pélo, e como meio de sintese para os acontecimentos. A dialética
da imundicie e da lama — ou entdo haverd alguma coisa é precisamente esta ciência dos acontecimentos incorporais
que, sempre e cobstinadamente, esquiva-se à Xdéia? Só que tais como são expressos nas proposições e dos laços de
em Platão esta “alguma coisa” não se achava nunca sufi- acontecimentos tais como são expressos nas relações entre
cientemente escondida, recalcada, repelida na profundidade proposições. À dialética é realmente a arte da conjugação
dos corpos, mergulhada no oceano. Eis que agora tudo sobe (cf. as confatalia, ou séries de acontecimentos que depen-
a superficie. É o resultado da operagdo estéica: o ilimita- dem uns dos outros). Mas é próprio da linguagem, simul-
do torna a subir. O devir-louco, o devir-ilimitado não é taneamente, estabelecer limites e ultrapassar os limites esta-
mais um fundo que murmura, mas sobe à superficic das belecidos: por isso compreende termos que não param de
coisas € se torna impassivel. Não se trata mais de simu- deslocar sua extensão e de tornar possível uma reversão da
lacros que escapam do fundo e se insinuam por toda parte, ligação em uma série considerada (assim, demasiado e in-
mas de efeitos que se manifestam e desempenham scu papel. suficiente, muito e pouco).
Efeitos no sentido causal, mas também “efeitos” sonoros, O acontecimento é coextensivo ao devir e o devir, por
opticos ou de linguagem — ¢ menos ainda, ou muito mais. sua vez, é coextensivo à linguagem; o paradoxo é, pois,
uma vez que eles não têm mais nada de corporal ¢ são essencialmente “sorite” isto é, série de proposições interro-
agora toda a idéia... O que se furtava à Idéia subiu à gativas procedendo segundo o devir por adições e subtrações
superficie, limite incorporal, ¢ representa agora toda a idea- sucessivas. Tudo se passa na fronteira entre as coisas e as
lidade possivel, destituida esta de sua eficicia causal e es- proposições. Crisipo ensina: “se dizes alguma coisa esta
piritual. Os Estéicos descobriram os efeitos de superficic. coisa passa pela boca; ora, tu dizes uma carroga, logo uma
Os simulacros deixam de ser estes rebeldes subterrineos, carroga passa por tua boca”. Ha ai um uso do paradoxo
fazem valer seus efeitos (o que poderiamos chamar de “fan- que só tem equivalente no budismo Zen de um lado, e do
tasmas”, independentemente da terminologia estbica). O outro no non-sense inglés ou norte-americano. Por um lado
mais encoberto tornou-se o mais manifesto, todos os velhos o mais profundo é o imediato; por outro, o imediato está
paradoxos do devir reaparecerdo numa nova juventude — na linguagem. O paradoxo aparece como destituicdo da
transmutação. profundidade, exibição dos acontecimentos na superficie,
5y, f Plotino, VI, 1, 25: a exposição das cetegorias estóicas (Bróticr, desdobramento da linguagem ao longo deste limite. O hu-
p. 43). mor é esta arte da superficie, contra a velha ironia, arte
das profundidades ou das alturas. Os Sofistas e os Cinicos incorporal. É seguindo a fronteira, margeando a superficie,
já tinham feito do humor uma arma filosófica contra a que passamos dos corpos ao incorporal. Paul Valéry teve
ironia socrática, mas com os Estóicos o humor encontra uma expressdo profunda: o mais profundo é a pele. Des-
sua dialética, seu princípio dialético e seu Jugar natural, seu coberta est6ica, que supde muita sabedoria e implica toda
puro conceito filosófico. uma ética. É a descoberta da menina que só cresce e di-
Esta operação inaugurada pelos Estóicos, Lewis Carroll minui pelas bordas, superficie para enrubescer e verdejar.
a cfetua por conta própria. Ou então, por conta própria, Ele sabe que os acontecimentos concernem tanto mais os
ele a retoma. Toda a obra de Carroll trata dos aconteci- corpos, cortam-nos e mortificam-nos tanto mais quanto per-
mentos na sua diferença em relação aos seres, às coisas e correm toda sua extensio sem profundidade. Mais tarde
estados de coisas. Mas o começo de Alice (toda a primei- os adultos são aspirados pelo fundo, recaem e não com-
ta metade) procura ainda o segredo dos acontecimentos e preendem mais, sendo muito profundos. Por que os mes-
do devir ilimitado que eles implicam, na profundidade da mos exemplos do estoicismo continuam a inspirar Lewis
terra, poços e tocas que se cavam, que se afundam, mistura Carroll? A árvore verdeja, o escalpelo corta, a batalha
de corpos que se penetram e coexistem. À medida que serd ou ndo travada...? É diante das 4rvores que Alice
avançamos na narrativa, contudo, os movimentos de mer- perde seu nome, é para uma árvore que Humpty Dumpty
gulho e de soterramento dão lugar a movimentos laterais de fala sem olhar Alice. E as falas anunciam batalhas. E
deslizamento, da esquerda para a direita e da direita para por toda parte ferimentos, cortes. Mas serdo mesmo exem-
a esquerda. Os animais das profundezas tornam-se secun- plos? ‘Ou entdo serd que todo acontecimento ndo é deste
dários, dão lugar a figuras de cartas de baralho, sem espes- tipo, floresta, batalha e ferimento, sendo tudo tanto mais
sura. Dir-se-ia que a antiga profundidade se desdobrou na profundo quanto mais isso se passe na superficie, incorporal
superfície, converteu-se em largura. O devir ilimitado se de tanto margear os corpos? A histéria nos ensina que
desenvolve agora inteiramente nesta largura revirada. Pro- os bons caminhos não tém fundação, e a geografia, que a
fundo deixou de ser um elogio. Só os animais são pro- terra só é fértil sob uma ténue camada,
fundos; e ainda assim não os mais nobres, que são os ani- Esta redescoberta do sábio estéico ndo estd reservada
mais planos. Os acontecimentos são como os cristais, não 4 menina. É bem verdade que Lewis Carroll detesta em
'se transformam e não crescem a não ser pelas bordas, nas geral os meninos. Eles tém profundidade demasiada; logo
bordas. É realmente este o primeiro segredo do gago e do falsa profundidade, falsa sabedoria e animalidade. O bebé
canhoto: não mais penetrar, mas deslizar de tal modo que masculino em Alice se transforma em porco. Em regra ge-
a antiga profundidade nada mais seja, reduzida ao sentido ral, somente as meninas compreendem o estoicismo, têm o
inverso da superficie. De tanto deslizar passar-se-a para senso do acontecimento ¢ liberam um duplo incorporal. Mas
o outro lado, uma vez que o outro lado não é senão o sen- ocorre que um rapazinho seja gago e canhoto e conquista,
tido inverso. E se não há nada para ver por trás da cor- assim, o sentido como duplo sentido da superficie. O ódio
tina é porque todo o visivel, ou antes, toda a ciéncia possi- de Lewis Carroll com relagdo aos meninos não é devido a
vel, está ao longo da cortina, que basta seguir o mais longe, uma ambivaléacia profunda, mas antes a uma inversio su-
estreita e superficialmente possivel para inverter seu lado perficial, conceito propriamente carrolliano. Em Sílvia e
direito, para fazer com que a direita se torne esquerda e Bruno é o garoto que tem o papel inventivo, aprendendo as
inversamente. Não há, pois, aventuras de Alice, mas uma lições de todas as maneiras, pelo avesso, pelo direito, por
aventura: sua ascensio à superficie, sua desmistificagio da cima e por baixo, mas nunca “a fundo”. O grande roman-
falsa profundidade, sua descoberta de que tudo se passa na ce Silvia e Bruno conduz ao extremo a evolução que se es-
fronteira, Eis por que Carroll renuncia ao primeiro titulo bogava em Alice, que se prolongava em Do outro lado do
que havia previsto, “As aventuras subterraneas de Alice”. espelho. A conclusio admirdvel da primeira parte é pela
Com maior razão para Do outro lado do espelho. Af, gléria do Este, de onde vem tudo aquilo que é bom, “tan-
os acontecimentos, na sua diferenga radical em relagio às to a substincia das coisas esperadas como a existéncia das
coisas, ndo são mais em absoluto procurados em profundi- coisas invisiveis”. Mesmo o barômetro não sobe nem desce,
dade, mas na superficie, neste ténue vapor incorporal que mas vai em frente, de lado e dá o tempo horizontal. Uma
se desprende dos corpos, pelicula sem volume que os en- méquina de esticar aumenta até mesmo as cangdes. E a
volve, espetho que os reflete, tabuleiro que os torna planos. bolsa de Fortunatus, apresentada como anel de Mocbius, é
Alice não pode mais se aprofundar, ela libera o seu duplo feita de lengos costurados in the wrong way, de tal forma
. Terceira Série:
que sua superfície exterior está em continuidade com sua
superfície interna: ela envolve o mundo inteiro e faz com Da Proposicao
que o que está dentro esteja fora e o que está fora fique
dentro 6. Em Sílvia e Bruno a técnica da passagem do real
para o sonho, e dos corpos para o incorporal, é multipli-
cada, completamente renovada, levada à sua perfeição. Mas
é sempre contornando a superfície, a fronteira, que passa-
mos do outro lado, pela virtude de um anel. A continui- *
dade do avesso e do direito substitui todos os níveis de pro-
fundidade; e os efeitos e superfície em um só e mesmo
Acontecimento, que vale para todos os acontecimentos, fa-
zem elevar-se ao nível da linguagem todo o devir e seus
paradoxos ?. Como diz Lewis Carroll num artigo intitulado
The dynamics of a parti-cle, “superfície plana é o caráter de
um discurso. . .”
|
como partículas especiais: eu, tu; amanhã, sempre; alhur que a promessa é efetivamente cumprida? O valor légico
em toda parte etic. E da mesma forma que o nome pró- da significação ou demonstragio assim compreendida não é
prio é um indicador privilegiado, Eu é o manifestante de mais a verdade, como o mostra o modo hipotético das im-
base. Mas não são somente os outros manifestantes que plicagdes, mas a condição de verdade, o conjunto das con-
dependem do Eu, é o conjunto dos indicadores que se re- dições sob as quais uma proposi¢io “seria” verdadeira. A
ferem a ele!, A indicação ou designação subsumia os es- proposição condicionada ou concluida pode ser falsa, na me-
tados de coisas individuais, as imagens particulares e os dida em que designa atualmente um estado de coisas ine-
designantes singulares; mas os manifestantes, a partir do Eu, xistentes ou não é verificada diretamente. A significação
h
constituem o domínio do pessoal, que serve de principio a nio fundamenta a verdade, sem tornar ao mesmo tempo o
toda designação possível. Enfim, da designação à manifes- erro possivel. Eis por_que a condição de verdade
tação se produz um deslocamento de valores lógicos repre- opõe ao falso,mas ao absurdo: o gue é sem sij
sentado pelo Cogito: não mais o verdadeiro e o fal: s o que não pode ser verdadeiro nem falso.
a_veracidade e o engano. Na análise célebre do pedaço 2. Por exemplo, quando Brice Parain opõe a denominação (desigaagio)
e a demonstração (significação), ele entende demonstração de uma maneira
1. Cf. a teoria dos embrayewrs tal como é apresentada por Benveniste, que engloba o sentido moral de um programa a preencher, de uma promessa
Trobiêmes de inguistique , Gallimard, cap. 20. Separamos “amaohã” * comprir, de um possível a realizar, como em uma “demonstração de amor”
ontem ou agora, porque "“amanhã” é primeiramente expressão de crens ou em “eu te amarei sempre", Cf. Aecherches sur la nature et les fonctions du
& só tem um valor indicativo sesundário, ” e langage, Gallimard, cap. V-
A pergunta: a significação é, por sua vez, primeira forma de “não é isto, é isto”, ndo se explica a não ser pela
com relação à manifestação e à designação? deve receber constincia do conceito significado. Da mesma forma, os
uma resposta complexa. Pois se a própria manifestação descjos ndo formariam uma ordem de exigéncias ou mesmo
é primeira com relação à designação, se ela é fundadora, de deveres, distinta de uma simples urgéncia das necessida-
é de um ponto de vista muito particular. Para retomar des, e as crengas ndo formariam uma ordem de inferéncias
uma distinção clássica, digamos que é do ponto de vista distinta das simples opinies, se as palavras nas quais se
da fala, ainda que fosse uma fala silenciosa. Na ordem manifestam não remetessem primeiramente a conceitos e im-
da fala, é o Eu que começa e começa em termos absolutos. plicagdes de conceitos que tornam significativos estes dese-
Nesta ordem ele é pois primeiro, não só em relação a toda jos e estas crengas.
designação possível que fundamenta, mas com relação às sig- Contudo, o suposto primado da significagdo sobre a
nificações que envolve. Mas justamente deste ponto de vis- designagdo levanta ainda um problema delicado. Quando
ta, as significações conceituais não valem e não se desen- dizemos “logo”, quando consideramos uma proposicdo como
volvem por si mesmas: elas permanecem subentendidas pelo concluida, fazemos dela o objeto de uma assergdo, isto &,
Eu, que se apresenta, ele próprio, tendo uma significação deixamos de lado as premissas e a afirmamos por si mesma,
imediatamente compreendida, idêntica à sua própria mani- independentemente. Nés a relacionamos ao estado de coisas
festação. Fis por que Descartes pode opor a definição do que designa, independentemente das implicações que cons-
homem como animat racional à sua determinação como Co- tituem sua significagio. Mas, para isto sdo necessarias duas
gito: pois a primeira exige um desenvolvimento explícito condições. É preciso em primeiro lugar que as premissas
dos conceitos significados (que é animal? o que é racional?) sejam postas como efetivamente verdadeiras; o que nos forga
enquanto que a segunda é suscetivel de ser compreendida, desde já a sair da pura ordem de implicagdo para relacio-
no momento mesmo em que for proferida 3. nálas a um estado de coisas designado que pressupomos.
Este primado da manifestação, não somente com rel Em seguida, porém, mesmo supondo que as premissas A e
ção & designação mas com relação 2 significação, deve po B sejam verdadeiras, ndo podemos concluir dai a proposi-
ser entendido em uma ordem da “fala” em que as signifi- ção Z em questio, não podemos destacd-la de suas pre-
cações permanecem naturalmente implícitas. É só aí que missas e afirma-la independentemente da implicação a não
o Eu é primeiro em relação aos conceitos — em relação ser admitindo que ela é por sua vez verdadeira, se A e B
ao mundo e a Deus. Mas se existe uma outra ordem em são verdadeiras: o que constitui uma proposigio C que per-
manece na ordem da implicação, não chega a sair dela, uma
que as significações valem e se desenvolvem por si mesmas,
vez que remete a uma proposição D, que diz ser Z verdadei-
então elas são primeiras, nesta ordem, ¢ fundamentam a
ra se A, B ¢ C sdo verdadeiras... até o infinito. Este
manifestagdo. Esta ordem é precisamente a da lingua:
paradoxo, no coração da légica e que teve uma importincia
uma proposi¢do não pode aparecer ai a não ser como pre-
decisiva para toda a teoria da implicagdo e da significagao
missa ou conclusdo e como significante dos conceitos antes simbélica, é o paradoxo de Lewis Carroll, no texto célebre
de manifestar um sujeito ou mesmo de designar um estado “O que a tartaruga disse a Aquiles”4. Em suma: de um
de coisas. É deste ponto de vista que conceitos significa- lado, destacamos a conclusdo das premissas, mas com a con-
dos, tais como Deus ou o mundo, sdo sempre primeiros re- dição de que, de outro lado, acrescentemos sempre outras
lativamente ao Eu como pessoa manifestada e às coisas premissas das quais a conclusio não é destacivel. É o
como objetos designados. Em termos mais gerais, Benve- mesmo que dizer que a significação ndo é nunca homogê-
niste mostrou que a relação da palavra (ou antes, de sua nea; ou que os dois signos “implica” e “logo” são comple-
prépria imagem acústica) com o conceito era a unica ne- tamente heterogéncos; ou que a implicação não chega nun-
cessdria, ndo arbitriria. Somente a relagio da palavra com ca a fundamentar a designação a não ser que se dê a desig-
o comceito goza de uma necessidade que as outras relagbes nação já pronta, uma vez nas premissas, outra na conclusão.
não tém, uma vez que permanecem no arbitrdrio enquanto Da designação à manifestação, depois à significação,
as consideramos diretamente ¢ que só saem dele na medida mas também da significação à manifestação e à designa-
em que as referimos a esta primeira relação. Assim, a ção, somos conduzidos em um círculo que é o círculo da
possibilidade de fazer variar as imagens particulares associa-
4. CE in Logique sans peino, cd, Hermana, trad, Gattegao e Coumet
das à palavra, de substituir uma imagem por outra sob a Sobre a abundante bibKografia, lterária, lógica e cientítica, que conceme n
esse paradoxo de Carrol, nos reportaremos aos comentários de Ermest Commet,
3. Descantes, Principes, 1, 10. Pp. 281-288.
proposição. A questão de saber se devemos nos contentar das crencas ¢ dos desejos estava fundada na ordem das im-
com estas três dimensões, ou se é preciso acrescentar a plicagGes conceituais da significagdo e, até mesmo, que a
elas uma quarta que seria o sentido, é uma questão econd-| identidade do eu que fala ou diz Ex não era garantida a
mica ou estratégica. Não que devêssemos construir um mo- não ser pela permanéncia de certos significados (conceitos de
delo a posteriori que correspondesse a dimensões prelimina- Deus, do mundo...) O Bu não é primeiro e suficiente na
res. Mas, antes, porque o próprio modelo deve estar apto
ordem da fala senfio na medida em que envolve significa-
do interior a funcionar a priori, ainda que introduzisse uma
ções que devem ser desenvolvidas por si mesmas na ordem
dimensão suplementar que não tivesse podido, em razão de da lingua. Se estas significagdes se abalam, ou não são es-
sua evanescência, ser reconhecida na experiência. Trata-se
tabelecidas em si mesmas, a identidade pessoal se perde —
pois de uma questão de direito e não somente de fato. experiéncia dolorosa por que passa Alice — em condigGes
Contudo, há também uma questão de fato e é preciso co- em que Deus, o mundo e o eu se tornam os personagens
meçar por ela: pode o sentido ser localizado em uma des- indecisos do sonho de um alguém indeterminado. Eis por
—
tas três dimensões, designação, manifestação ou significa- que o último recurso parece ser o de identificar o sentido
ção? Responderemos primeiro que isto parece impossível com a significagdo.
no que se refere à designação. A designação é o que, sendo ‘Eis-nos jogados no circulo e reduzidos ao paradoxo de
preenchida, faz com que a proposição seja verdadeira; e Carroll, em que a significagio nfio pode nunca exercer seu
não preenchida, falsa. Ora, o sentido evidentemente não
papel de último fundamento e pressupe uma designagio
pode consistir naquilo que torna a proposição verdadeira irredutivel. Mas existe talvez uma razão muito geral pela
ou falsa, nem na dimensão onde se efetuam estes valores. qual a significação malogra e o fundamento faz circulo com
Além do mais, a designação não poderia suportar o peso o fundado. Quando definimos a significação como a con-
da proposição a não ser na medida em que se pudesse mos- digdo de verdade, nós lhe damos um caráter que lhe é co-
trar uma correspondência entre as palavras e as coisas ou mum com o sentido, que já é do sentido. Como, porém,
estados de coisas designados: Brice Parain fez a conta dos por sua propria conta a significagio assume este cariter,
paradoxos que tal hipótese faz surgir na filosofia gregas. E como é que ela faz uso dele? Falando de condição de ver-
como evitar, entre outras coisas, que uma carruagem passe
dade nés nos elevamos acima do verdadeiro e do falso, uma
pela boca? Mais diretamente ainda, Lewis Carroll pergun-
vez que uma proposição falsa tem um sentido ou uma sig-
ta: como os nomes teriam um “correspondente”? E que nificagdo. Mas, a0 mesmo tempo, definimos esta condigdo
significa para alguma coisa “responder” a seu nome? E se superior somente como a possibilidade para a proposigio de
as coisas não respondem a seu nome, que é que as impede
ser verdadeira’. A possibilidade para uma proposigio de
de perder seu nome? O que é que sobraria então, salvo o
ser verdadeira não é nada além do que a forma de possibili-
arbitrário das designações às quais nada responde e o vazio dade da proposição mesma. H4 muitas formas de possibi-
dos indicadores ou dos designantes formais do tipo “isto” — lidade de proposicdes: légica, geométrica, algébrica, fisica,
tanto uns como os outros destituídos de sentido? É certo sintática, . .; Aristóteles define a forma de possibilidade
que toda designação supde o sentido e que nos instalamos| lógica pela relação dos termos da proposição com “lugares”
de antemão no sentido para operar toda designação. que dizem respeito ao acidente, ao próprio, ao gênero ou
Identificar o sentido & manifestação tem maiores chan- 4 definição; Kant chega a inventar duas novas formas de
ces de Êxito, uma vez que os próprios designantes não têm possibilidade, a possibilidade transcendental e a possibilidade
sentido a não ser em função de um Eu que se manifesta na moral. Mas, seja qual for a manejra segundo a qual defi-
proposição. Este Eu é realmente primeiro, pois que faz nimos a forma, trata-se de um estranho empreendimento,
começar a fala: como diz Alice, “se falássemos somente que consiste em nos elevarmos do condicionado a condição
quando alguém nos fala, nunca ninguém diria nada”. Con- para conceber a condição como simples possibilidade do
cluir-se-á que o sentido reside nas crenças (ou desejos) da- condicionado. Eis que nos elevamos a um fundamento,
quele que se exprime . “Quando emprego uma palavra, diz mas o fundado continua a ser o que era, independentemente
também Humpty Dumpty, ela significa o que eu quero que da operagio que o funda, não afetado por ela: assim, a
¢la signifique, nem mais nem menos... A questdo é saber designacdo permanece exterior 4 ordem que a condiciona, o
quem é o senhor e isso é tudo.”Mas vimos que a ordem verdadeiro e o falso permanecem indiferentes ao principio
Panars, Brice. Op. cit. Cap. TM que ndo determina a possibilidade de um deles a não ser
219 281;4 CE. Russell, Signification et vérité, ed. Flammarion, trad. Devaux, pp. 7. Russell, op. cit, p. 198: “Podemos dizer que tudo o que é afirmado
por um emmeiado provido de sentido possui uma certa espécie de possibilidade”.
deixando-o substituir na sua antiga relação com o outro. Neufchiteau e Pierre d’Ailly contra Rimini, Brentano e
De tal forma que somos perpetuamente remetidos do condi- Russell contra Meinong). O fato é que a tentativa de fazer
cionado à condigdo, mas também da condigdo ao condi- aparecer esta quarta dimensdo é um pouco como 2 caga ao
cionado. Para que a condição de verdade escape a este Snark de Lewis Carroll. Ela é, talvez, esta prépria caga e
defeito, serd preciso que ela disponha de um clemento o sentido é o Snark. É dificil responder aqueles que jul-
próprio distinto da forma do condicionado, seria preciso gam suficiente haver' palavras, coisas, imagens e idéias. Pois
que ela tivesse alguma coisa de incondicionado, capaz de podemos
não do sentido, que
nem mesmo dizer, arespeito
assegurar uma génese real da designagdo e das outras ele exista: nem mas coisas, nem no espirito, nem como uma
dimensões da proposigdo: entdo a condigio
definida não mais como forma
de possibilidade conceitual,
de verdade seria NN existencia fisica, nem com uma existéncia mental. Diremos
que, pelo menos, ele é útil e que devemos admiti-lo por sua
mas como matéria ou “camada” ideal, isto é, não mais | t% vtilidade? Nem isso já que é dotado de um esplendor ine-
como significagio, mas como sentido. ;
O sentido é a quarta dimensdo da pmposxgao.
Estéicos a descobriram com o acontecimento: sentido
o é
o&à“f ficaz, impassivel e estéril. Eis por que diziam que, de fato,
não se pode inferi-lo a não ser indiretamente, a partir do
circulo a que nos conduzem as dimensdes ordindrias da
O expresso da proposição, este incorporal na supeúlcxe daskà proposição. É somente rompendo o circulo, como fazemos
coisas, entidade complexa irredutível, acontecimento pnro\) para o anel de Moebius, desdobrando-o no seu compri-
que insiste ou subsiste na proposição. Por uma segunda mento, revirando-o, que a dimensão do sentido aparcce por
vez, no século XIV, esta descoberta é feita na escola de % si mesma e pa sua irredutibilidade, mas também em scu
Ockham, por Gregório de Rimini e Nicolas d’Autrecourt. poder de gênese, animando então um mudelo interior a
Uma terceira vez, no fim do século XIX, pelo grande filó- priori da proposição **. A lógica do sentido é toda inspi-
sofo ¢ lógico Meinong 8. H4, sem dúvida, razdes para estes rada de empirismo; mas, precisamente, não há senão o em-
momentos: vimos como a descoberta estdica supunha uma pirismo que saiba ultrapassar as dimensões experimentais do
reviravolta do platonismo; da mesma forma a lógica ockha- visível, sem cair nas Idéias e encurralar, invocar, talvez pro-
miana reage contra o problema dos universais; e Meinong duzir um fantasma no limite extremo de uma experiência
contra a lógica hegeliana e sua descendéncia. A questão alongada, desdobrada.
é a scguinte: ha alguma coisa, aliguid, que não se confunde Esta dimensão última é chamada por Husserl expressão:
nem com a proposigdo ou os termos da proposigdo, mem ela se distingue da designação, da manifestação, da demons-
com o objeto ou o estado de coisas que ela designa, nem tração!!. O sentido é o expresso. Husserl, não menos que
com o vivido, a representagdo ou a atividade mental da- Meinong, reencontra as fontes vivas de uma inspiração es-
quele que se expressa na proposição, nem com os conceitos tóica. Quando Husserl se interroga, por exemplo, sobre
ou mesmo as esséncias significadas? O sentido, o expresso o “noema perceptivo” ou o “sentido da percepção”, ele o
da proposigdo, seria pois irredutível seja aos estados de distingue ao mesmo tempo do objeto físico, do vivido psico-
coisas individuais, às imagens particulares, às crengas pes- lógico, das representações mentais e dos conceitos lógicos.
soais e aos conceitos universais e gerais. Os Estdicos sou- Ele o apresenta como um impassível, um incorporal, sem
beram muito bem como dizé-lo: nem palavra, nem corpo, existência física nem mental, que não age nem padece, puro
nem representagio sensivel, nem representação racional o, resultado, pura “aparência”: a árvore real (o designado)
Mais do que isto: o sentido seria, talvez, “meutro”, indife- pode queimar, ser sujeito ou objeto de ação, entrar em mis-
”
rente por completo tanto ao particular como ao geral, ao turas; não o noema da árvore. Há muitos noemas ou sen-
singular como 2o universal, ao pessoal e ao impessoal. Ele tidos para um só e mesmo designado: estrela da noite e
seria de uma outra natureza. Será, preciso, porém, reconhe- estrela da manha são dois noemas, isto é, duas maneiras
cer uma tal instincia como suplemento — ou então deve- pelas quais um mesmo designado se apresenta em expressões.
mos nos arranjar com aquelas de que já dispomos, a desig- Mas, nestas condições, quando Husserl diz que o noema é o
nação, a manifestação e a significação? Em cada uma das 10. Cf. as observações de Albert Lautman sobre o anel de Moebius: ele
épocas referidas, a polêmica foi retomada (André de não tem senão “um só lado ¢ esta é uma propricdade essencialmente extrínseca,
pois que para nos darmos conta disso precisamos fender o anel e revirá-lo,
8. Hubert Elie, num belo livro (Le Compiexe significable, Vrin, 1936), © que supõe uma rsotação em toro de um cixo exterior & superfície do anel,
expõe e comenta as doutrinas de Gregório de Rimini e de Nícolas d'Autrecourt. £, entretanto, (Eossível caracterizar esta unilateralidade por uma proprisdade
Mostra a extrema semelhança das teorias de Meinong, e como uma mesma puramente intrínseca..,” ete, Essai sur les motions de structure et d'existence
Rolêmica se zeproduz nos séculos XIX e XIV, mas não indicn & origem estóica en mathématiques, ed. Hermano, 1938, t. 1, p. 51.
11. Não levamos em conta aqui o emprego particular que Husserl faz
9. Sobre a diferença estóica entre os incorporais e as representações ra- de “sx%râxliuçio“ na sua terminologia, seja para identificá-la, seja para ligh-la
a “sentido”
Cionais, compostas de traços corporais, cf. E. Bréhier, op. cif, pp. 16-18.
percebido tal como aparece em uma apresentação, o “per- partida: o sentido não existe fora da proposição... etc.
cebido como tal” ou a aparência, não devemos compreen- Mas aqui não se trata de um círculo. Trata-se, antes,
der que se trata de um dado sensível ou de uma qualidade, da coexistência de duas faces sem espessura, tal que passa-
mas, ao contrário, de uma unidade ideal objetiva como cor- mos de uma para a outra margeando o comprimento, _In.
relato intencional do ato de percepção. Um noema qual- separavelmente
quer não é dado em uma percepção (nem em uma lembran- roposição e o atributo do estado de coisas.
ça ou em uma imagem), ele tem um estatuto completa- face para as coisas, uma face para as proposições. Mas
mente diferente que consiste em não existir fora da propo- não se confunde nem com a proposição que o exprime nem
sição que o exprime, proposição perceptiva, imaginativa, de com o estado de coisas ou a qualidade que a proposição
lembranga ou de representação. Do verde como cor sen- designa. É, exatamente, a fronteira entre as proposições
sivel ou qualidade, distinguimos o “verdejar”
múática ou atributo. À árvore verdeja, não é isto, final-
como por noe-
insistência, este mínimo de ser que convém às LSRG
e as coisas. É este aliquid,
&
extra-ser e ao me: tempo
mente, o sentido de cor da árvore e a árvore arvorifica, seu teste senti ntecimento”: com a condiçãe
sentido global? O noema será outra coisa além de um
e =
ão confundir. o gco; ntecimento com sua efetuação espo-
de
confundir
não
acontecimento puro, o acontecimento de árvore (embora ço-temporal em um estado de roi. Não
perguntaremas,
‘4—
N.
Husserl assim não fale, por razões terminológicas)? E o ois, qual é o senti tecimento: o acontecimen-
que ele chama de aparência, que é senão um efeito de su- to é o próprio sentido. O acontecimento pertence essen-
perfície? Entre os noemas de um mesmo objeto ou mesmo cialmente inguagem, ele mantém uma relação essencial
de objetos diferentes se elaboram laços complexos análogos com a linguagem; mas a linguagem é o que se diz das coisas.
aos que a dialética estóica estabelece entre os acontecimen- Jean Gattegno marcou bem a diferença entre os contos de
tos. Seria a fenomenologia esta ciência rigorosa dos efeitos Carroll e os contos de fada clássicos: em Carroll tudo o que
de superficie? se passa, passa-se na linguagem e passa pela linguagem;
Consideremos statuto complexo do sentido ou do “não é uma história que ele nos conta, é um discurso que
expresso. De um lado, não existe fora da proposição que nos dirige, discurso em várias partes...!3. É exatamente
o exprime. O expresso não existe fora de sua expressão. neste mundo plano do sentido-acontecimento, ou do expri-
Daí por que o sentido não pode ser dito existir, mas so- mivel-atributo, que Lewis Carroll instala toda sua obra.
mente insistir ou subsistir. Mas, por outro lado, não se Disso decorre a relação entre a obra fantástica assinada
confunde de forma nenhuma com a proposição, ele tem Carroll e a obra matemático-lógica assinada Dodgson. Pa-
uma “objetividade” completamente distinta. O expresso Tece difícil aceitar que se diga, como já se fez, que a obra
não se parece de forma nenhuma com a expressão. O sen- fantástica apresente simplesmente a amostra das armadilhas
tido se atribui, mas não é absolutamente atributo da pro- e dificuldades nas quais caímos quando não observamos as
posição, é atributo da coisa ou do estado de coisas. O regras e leis formuladas na obra légica. Não somente por-
atributo da proposição é o predicado, por exemplo, um pre- que muitas das armadilhas subsistem na própria obra lógica,
dicado qualitativo como verde. Ele se atribui ao sujeito mas porque a partilha parece-nos outra. É curioso cons-
da proposição. Mas o atributo da coisa é o verbo verdejar, tatar que toda obra lógica diz respeito diretamente à sig-
por exemplo, ou antes, o acontecimento expresso por este nificação, & implicações e conclusões ¢ não se refere ao
verbo; e ele se atribui & coisa designada pelo sujeito ou sentido a não ser indiretamente — precisamente por inter-
ao estado de coisas designado pela proposição em seu con- médio dos paradoxos que a significação não resolve ou até
junto. Inversamente, este atributo lógico, por sua vez, não mesmo que ela cria. Ao contrário, a obra fantástica se re-
se confunde de forma alguma com o estado de coisas fisico, fere imediatamente ao sentido e relaciona diretamente a ele
nem com uma qualidade ou relagdo deste estado. O atri- a potência do paradoxo. O que corresponde aos dois esta-
dos do sentido, de fato e de direito, a posteriori e a priori,
—
designando a coisa. E eis-nos de volta a nosso ponto de ¥ 18. Em Logique sans peine, op. cit., prefácio, pp. 19-20.
WKREUMGINLOA JULUIIC.
Das Dualidades
—
já que sua apresentação progressiva da série lhe permite
espelho, no encontro de Alice com o cavaleiro. O cavaleiro atribuir-se nela um ponto de partida arbitrário, “Olhos es-
anuncia o titulo da canção que vai cantar “O nome da can- bugalhados”. Mas é evidente que a série, tomada no seu
ção é chamado Olhos esbugalhados” — “Oh, é o nome da sentido regressivo, pode ser prolongada ao infinito na alter-
canção?” diz Alice. — “Não, vocé não compreendeu, diz néncia de um nome real e de um nome que designa esta
o cavaleiro. É como o nome é chamado. O verdadeiro realidade. Observar-se-á, por outro lado, que a série de
nome é: o Velho, o velho homem”. — “Entdo eu deveria Carroll é muito mais complexa do que aquela que indicá-
——
ter dito: é assim que a canção é chamada?’ corrigiu Alice. vamos há pouco. Antes tratava-se, com efeito, apenas do
— “Não, não deveria: trata-se de coisa bem diferente. A seguinte: um nome que designa uma coisa remete a outro
canção é chamada Vias e meios; mas isto é somente como ela nome que designa seu sentido, ao infinito. Na classificação
é chamada, compreendeu?” — “Mas entdo, o que é que ela de Carroll esta situação precisa é representada somente por
é — “Já chego ai, diz o cavaleiro, a canção é na realidade n; € N4: n, É o nome que designa o sentido de n.. Ora,
Sentado sobre uma barreira’, ) Lewis Carrol! aí acrescenta dois outros nomes: um primeiro,
Este texto, que só pudemos traduzir pesadamente, para porque ele trata a coisa primitiva designada como sendo ela
sermos fiéis 3 terminologia de Carroll, distingue uma série de própria um nome (a canção); um terceiro, porque trata o
entidades nominais. Ele ndo segue uma regressão infinita sentido do nome designador como sendo ele próprio um
mas, precisamente para se limitar, procede segundo uma nome, independentemente do nome que vai, por sua vez,
.progressiio convencionalmente finita. Devemos pois partir designá-lo. Lewis Carroll forma, pois, a regressio com
do fim, restaurando a regressão natural. 19) Carroll diz: a quatro entidades nominais que se deslocam ao infinito.
canção é, na realidade, “Sentado sobre uma barreira”. É Isto é: ele decompde cada par, fixa cada par, para tirar
que a canção é, ela rópria, uma proposição, um nome deste um par suplementar. Veremos por qué. Mas pode-
(seja n,). “Sentado sobre uma barreira” é este nome, este mos nos contentar com uma regressão de dois termos alter-
nome que é a canção e que aparece desde a primeira es- nanfes: o nome que designa alguma coisa € o mome que
trofe. 2º) Mas não é o nome da canção: sendo ela própria Jesigna o senfido deste primeiro nome. Esta regressão com
um nome, a canção é designada por um outro nome. Este dois termos é a condicao minima de proliferago indefinida.
segundo nome (seja nº), é “Vias e meios”, que forma o Esta expressdo mais simples aparece em um texto de
tema das 22, 32, 42 e 52 estrofes. Vias e meios é pois o Alice, em que a Duquesa encontra sempre a moral a ser
nome que designa a canção, ou o que a canção é chamada. extraida de toda e qualquer coisa. De toda coisa, com a
30) Mas o nome real, acrescenta Carroll, é o “Velho, velho condigdo, pelo menos, de que seja uma proposigdo. Pois
homem”, que aparece, com efeito, no conjunto da canção. É quando Alice não fala a duquesa fica desamparada: “Você
que o próprio nome designador tem um sentido que forma pensa em alguma coisa, querida, e isto faz esquecer de falar.
um novo nome (n;). 4º) Mas este terceiro nome, por sua Não posso lhe dizer, por enquanto, qual é a moral”. Mas,
vez, deve ser designado por um quarto. Isto é: o sentido assim que Alice fald, 2 duquesa encontra as morais: “Pa-
de ng, ou seja na,, deve ser designado por nu. Este quarto rece-me que agora o jogo anda muito melhor”, diz Alice —
nome é como o nome da canção é chamado: “Olhos esbu-
“E verdade, diz a duquesa, e a moral disto é: oh! é o amor,
galhados”, que aparcce na 6% estrofe. & o amor que faz girar o mundo” — “Alguém disse, mur-
Há quatro nomes na classificagio de Carroll: o nome murou Alice, que o mundo girava quando cada qual tratava
como
1.
realidade da
Cf. G. Frege,
canção;
Ueber Sinn und
o mome
Bedeutung,
que designa
Zeitschrift £, Ph.
esta reali-
und ph. Kr.
dos seus proprios problemas.” — “Pois &, quer dizer mais
1892. Esse principlo de uma proliferacho infinita das entidades suscitou em ou menos a mesma coisa, diz a duquesa, ... € a moral
muitos lógicos contemporaneos resisténcias pouco justificadas: assim Carnap, é: tome cuidado com o sentido e os sons tomardo
Meaning and necessity, Chicago, 1947, pp. 130-138. disto
outro. E se o primeiro nos forga a comjugar o mais alto
cuidado de si mesmos.” Não se trata de associações de
idéias, de uma para outra frase, em toda esta passagem: a poder e a maior impoténcia, o segundo nos impõe uma
moral de cada proposição tarefa andloga, que serd preciso cumprir mais tarde: con-
consiste numa outra proposição jugar a esterilidade do sentido com relação à proposição
que designa o sentido da primeira. entido o obje!
de uma nova proposição, é isto “cuidar bem do sentido”, em
de onde o extrafmos, com sua poténcia de génese quanto as
condições tais que as proposições proliferam, “os sons tomam
dimensSes da proposigdo. De qualquer maneira, parece que
conta de si mesmos”. Lewis Carroll está vivamente consciente de que os dois
Confirma-se a possibilidade de um
laço profundo entre a lógica do sentido e a ética, paradoxos formam uma alternativa, Em Alice, os perso-
a moral nagens só tém duas possibilidades para se secar do banho
ou a moralidade,
de légrimas em que cairam: ou escutar a histéria do ca-
@ Paradoxo do_desdobramento estéril ou da reiteracdo mundongo, a mais “seca” histéria que se comhece, já que
Seca. Há um meio de evitar esta regressio ao infinito: é ela isola o sentido de uma proposição em um isto fantasma-
fixar a proposigdo, imobilizá-la, justamente no momento de gbrico; ou se langar em uma corrida louca, em que giramos
extrair dela o sentido como esta ténue pelicula no limite das em circulo de proposição em proposição, parando quando
coisas e das palavras, (Daí o desdobramento que acabamos queremos, sem vencedor nem vencido, mo circuite de uma
de constatar em Carroll a cada etapa da regressio.) Mas proliferagdo infinita. De qualquir maneira, a secura é o
serd que é este o destino do sentido: não podemos dispen- que serd chamado mais tarde de impenetrabilidade. E os
sar esta dimensão, mas, ao mesmo tempo, não sabemos dois paradoxos representam as formas essenciais da gagueira,
o que fazer com ela quando a atingimos? Que fizemos a forma coréica ou clônica de uma proliferacio convulsiva
além de liberar um duplo neutralizado da proposigio, seco em circulo e a forma tetdnica ou tonica de uma imobili-
fantasma, sem espessura? Eis por que, sendo o sentido ex- zação sofreada. Como se diz em “Poeta fit non nascitur”,
Presso por um verbo na proposição, exprime-se este verbo espasmo ou assobio, as duas regras do poema.
sob uma forma infinitiva ou participial ou interrogativa: @ Paradoxo da_neutralidade oy do terceiro-estado daes-
Deus-ser ou o existente-azul do céu, ou o céu é azul? O O segundo paradoxo, por sua vez, nos joga nece:
seatido opera a suspensdo da afirmagdo assim como da ne- sariamente em um terceiro. Pois se o sentido como duplo
da proposigiio é indiferentc tanto & afirmagiio como à nega-
ção, se não é nem passivo e mem ativo, nenhum modo da
proposição é capaz de afeti-lo. O sentido permanece estri-
tamente o mesmo para proposicdes que se opõem seja do
ponto de vista da qualidade, seja do ponto de vista da quan-
tidade, scja do ponto de vista da relagdo, seja do ponto de
-acontecimento: somente os corpos agem e padecem, mas vista da modalidade. Pois todos estes pontos de vista con-
ndo os incorporais, que resultam das ações e das paixdes. cernem, & designagdo e aos diversos aspectos de sua efetua-
Este paradoxo podemos, pois, chamé-lo de paradozo dos ção ou preenchimento por estados de coisas e ndo ao sentido
Estóicos. Até em Husserl repercute a declaragio de uma ou à expressio. Primeiramente, a qualidade, afirmação e
espléndida esterilidade do expresso, que vem confirmar o negagdo: “Deus é” e “Deus não é” devem ter o mesmo sen-
estatuto do noema: “A camada da expressão — e af está sua tido, em virtude da autonomia do sentido com relagdo &
originalidade — a não ser, precisamente, que existéncia do designado. Tal é, no século XIV, o fantastico
confira uma
expressão a todas as outras intencionalidades, não é produ- paradozo de Nicolas d’Autrecourt, objeto de reprovagdo:
tiva. Ou, se quisermos: sua produtividade, sua ação noemd- contradictoria ad invicem idem significant 3.
tica, esgotam-se no exprimir” 2, Depois a quantidade: todo homem é branco, nenhum
<
. Extraído da proposição, o sentido é independente desta, homem não é branco, algum homem não é branco... E a
ois. del i a negação e, no_entanto, relação: o sentido deve permanecer o mesmo para a rela-
não é del escente: exatamente o sor- ção invertida, uma vez que a relagio com respeito a ele
riso sem gato de Carroll ou a chama sem vela. E os dois se estabelece sempre nos dois sentidos ao mesmo tempo, na
paradoxos — o da regresso infinita e o do desdobramento medida em que ele faz emergir todos os paradoxos do
estéril — formam os termos de uma alternativa: um ou o devir-louco. O sentido é sempre duplo sentido e exclui a
8. Cf Hobert Elie, op. cit, E. Maurice de Gandillac, Le Moucement
2. Husser, Idées $ 124: Ed. Gallimard, wad, Ricoeur, p. 421, Doctringl du 1Xº au XIVe sidele, Bloud e Gay, 1951.
possibilidade de que haja um bom sentida da relação. Os linguagem, uma das técnicas mais gerais de Carroll é a que:
linguagem,
pri-
acontecimentos nunca são causa uns dos outros, mas entram consiste na apresentação duas vezes do acontecimento:
em relações de quase-causalidade, causalidade real e fantas- meiro na proposição em que subsiste e, em seguida, no esta-
magórica que não cessa de assumir os dois sentidos. Não do de coisas ao qual, na superfície, ele advém. Uma vez na
é nem ao mesmo tempo nem relativamente à mesma coisa estrofe de uma canção que o relaciona à proposição, outra
que eu sou mais jovem e mais velho, mas é ao mesmo no efeito de superfície que o relaciona aos seres, às coisas e
tempo que me torno um e outro e pela mesma relação. De estados de coisas (por exemplo, a batalha de Tweedledum e
onde os exemplos inumeráveis disseminados na obra de de Tweedledee ou a do leão e a do unicórnio; e em Sílvia
Carroll, onde vemos que “os gatos comem os morcegos” € e Bruno, onde Carroll pede ao leitor para adivinhar se cons-
“os morcegos comem os gatos”, “digo o que penso” e truiu as estrofes da canção do jardineiro a partir dos acon-
“penso o que digo”, “amo o que me dão” e “dão-me o tecimentos ou os acontecimentos a partir das estrofes). Mas
que eu amo”, “respiro quando durmo” e “durmo quando será que devemos mesmo dizer duas vezes, pois é sempre ao
respiro” — têm um só e mesmo sentido. Até no exemplo mesmo tempo, pois são as duas faces simultâneas de uma
final de Sílvia e Bruno, em que a jóia vermelha que traz es- mesma superfície da qual o interior e o exterior, a “insis-
crita a proposição “Todo mundo amará Sílvia” e a jóia azul téncia” e o “extra-ser”, o passado ¢ o futuro, acham-se em
que traz a proposição “Sílvia amará todo mundo” são os continuidade sempre reversivel?
dois lados da mesma jóia que não podemos preferir senão Como poderiamos resumir estes paradoxos da neutrali-
a si mesmo segundo a lei do devir (to choose a thing from mostram, sem exceção, o sentido inafetado
dade, os quais
itself). distinguia
pelos modos da proposicdo? O filósofo Avicena
Finalmente, a modalidade: como a possibilidade, a rea- universal com relação ao inte-
trés estados da esséncia:
lidade ou a necessidade do objeto designado afetariam o relagdo às coisas
lecto que a pensa em geral; singular com
sentido? Pois o acontecimento, por conta prépria, deve ter
particulares em que se encarna. Mas nenhum destes dois
uma só e mesma modalidade, no futuro e no passado se-
estados é a esséncia em si mesma: Animal não é nada além
gundo os quais ele divide ao infinito sua presenca. E se o animal non est nisi animal fantum, indiferente
de animal,
acontecimento é possivel no futuro e real no passado, é pre-
tanto ao universal como ao singular, tanto ao particular como
ciso que seja os dois a0 mesmo tempo, pois ele então se divi-
a0 geral 5. O primeiro estado da esséncia ¢ a esséncia como
« de ai ao mesmo tempo. Isto significa que ele é necessario? na ordem do conceito e das im-
significada pela proposição,
Todos se lembram do paradoxo dos futuros contingentes e
plicações de conceito. O segundo estado é a esséncia en-
da importéncia de que gozou junto ao estoicismo. Ora, a
quanto designada pela proposigdo nas coisas particulares em
hipétese da necessidade repousa na aplicagdo do principio
que se empenha. Mas o terceiro é a esséncia como senti-
de contradigio à proposi¢do que enuncia um futuro. Os do, a esséncia como expressa: sempre nesta secura, animal
Estéicos fazem prodigios, colocados nesta perspectiva, para
tantum, esta esterilidade ou esta neutralidade espléndidas.
escapar à necessidade e para afirmar o “fatal”: não o ne- Indiferente ao universal e ao singular, ao geral e ao par-
cessário *. É preciso, preferencialmente, sairmos desta pers- ticular, ao pessoal e ao coletivo, mas também & afirmação e
pectiva, sujeitos a reencontrar a tese estdica em um outro à negação etc. Em suma: indiferente a todos os opostos.
plano. Pois o principio de contradigdo se refere, de um
Pois todos estes opostos são somente modos da proposição
lado, & impossibilidade de uma efetuação de designagic e,
considerada nas suas relações de designagdo e de significa-
de outro, ao minimo de uma condição de significagdo. Mas Será,
ção e não caracteristicas do sentido que ela exprime.
não concerne, talvez, ao sentido: nem possivel, nem real, pois, que o estatuto do acontecimento puro e do fatum que
nem necessirio, mas fatal... O acontecimento subsiste na o acompanha não é o de ultrapassar todas as oposigdes:
roposicdo que o exprime €. a0 mesmo tempo, advém às
nem privado, nem piiblico, nem coletivo, nem individual. . .,
coisas em sua superticie, no exterior do ser: & é isto, como tanto mais terrivel e poderoso nesta neutralidade, uma vez
veremos, “fatal”. É próprio também do acontecimento ser que é tudo ao mesmo tempo?
dito como futuro pela proposigic, mas não é menos préprio rdo ou dos objetos impossiveis. Deste
Paradoxo
à proposição dizer o acontecimento como passado. Preci- que s
de-
samente porque tudo passa pela linguagem e sc passa na paradoxo decorre ainda um outro: asproposicde
signam objetos contraditérios têm um sentido. Sua designa-
4. Sobre o paradoxo dos futuros contingentes e sua importincia mo pen-
;uón?nm leªstsâmo. É. o estudo de P. M. Schuhl, Le Dominateur et les possibles, 5. Cf. o5 comentirios de Etieane Gilson, FÊtre et Vessence, ed. Vrin, 1948,
pp. 120-123.
ção, entretanto, não pode em caso algum ser efetuada; e elas L Sexta Série:
Sobrea _ .
—
não têm nenhuma significação, a qual definiria o gênero de
possibilidade de uma tal efetuação. Elas são sem signifi-
cação, isto é, absurdas. Nem por isso deixam de ter um Colocacao em Séries
sentido e as duas noções de absurdo e de não-senso não
devem ser confundidas. É que os objetos impossíveis —
quadrado redondo, matéria inextensa, perpetuum mobile,
montanha sem vale etc. — são objetos “sem pátria”, no
exterior do ser, mas que têm uma posição precisa e distinta
no exterior: eles são “extra-ser”, puros acontecimentos ideais
inefetuáveis em um estado de coisas. Devemos chamar este
paradoxo de paradoxo de Meinong, que soube tirar dele
os mais belos e mais brilhantes efeitos. Se distinguimos
duas espécies de ser, o ser do real como matéria das desig-
nações e o ser do possível como forma das significações,
devemos ainda acrescentar este extra-ser que define um
mínimo comum ao real, ao possivel e ao impossivel. Pois
o princípio de contradição se aplica ao real e ao possível,
mas não ao impossível: os impossíveis são extra-existentes,
O paradoxo de que todos os outros derivam é o da
reduzidos a este mínimo e, enquanto tais, insistem na pro-
regressdo indefinida. Ora, a regressio tem necessariamente
posição.
a forma serial: cada nome designador tem um sentido
que deve ser designado por um outro nome, n, > 1 * n:
— mM ... Se consideramos somente a sucessio dos nomes, a
série opera uma sintese do homogéneo, cada nome distin-
gue-se do precedente apenas pela sua posigdo, seu grau ou
seu tipo: de acordo com a teoria dos “tipos”, com efeito,
cada nome que designa o sentido de um precedente é de um
grau superior a este nome e ao que ele designa. Mas se con-
sideramos não mais a simples sucessio dos momes, mas o
que alterna nesta sucessão, vemos que cada nome étomado
prifiieiro
designagdo
na que ópera e, em seguida,no sentido
que exprime, uma vez que é este sentido que serve de desig-
nado ao outro nome: a vantagem da apresentagio de Lewis
Carroll era, precisamente, a de fazer aparecer esta diferenga
de natureza. Desta vez, trata-se de uma sintese do hetero-
géneo; ou antes, flmm&m%fwia
simultaneidade de duas séries pelo menos. Toda sérle única,
cujos termos homogéneos se distinguem somente pelo tipo
ou pelo grau, subsume mecessariamente duas séries hetero-
géneas, cada série constituida por termos de mesmo tipo
ou grau, mas que diferem em natureza dos da outra série
(eles podem também, como é óbvio, diferir em grau).
forma serial €, pois, essencialmente multisserial. Já é assi
em matemética, onde uma série construida na vizinhanga de
um ponto ndo tem interesse a ndo ser em função de umal
outra série, construida em torno de outro ponto e que con-
verge ou diverge da primeira. Alice é a histéria de uma
regressdo oral; mas “regressdo” deve ser compreendido pri-
meiro em um sentido lógico, o da sintese dos nomes; e a designada ou o sujeito manifestado. Finalmente, o signifi-
forma de homogeneidade desta síntese subsume duas séries cante é a única dimensão da expressão, que possui com
heterogêneas da oralidade, comer-falar, coisas consumíveis- efeito o privilégio de não ser relativa a um termo independen-
-sentidos exprimíveis. É, assim, a forma serial que nos te, uma vez que o sentido como expresso não existe fora
remete aos paradoxos da dualidade que descrevêramos há da expnassãoi%l então o_significado é a designação, a ma-
pouco e nos força a retomá-los a partir deste novo ponto fifestação oú mesmo a significação, no sentido estrito, isto
de vista. & a proposição enQUENto 0 seniido ouo expresso dela-se
Com cfeito, as duas séries heterogêneas podem ser de- distingue. Ora, quando se estende o método serial, consi-
terminadas de maneiras diversas. Podemos considerar uma derando-se duas séries de acontecimentos ou duas séries de
série de acontecimentos e uma série de coisas em que estes coisas ou duas série de proposições ou ainda duas séries de
acontecimentos se efetuam ou não; ou então, uma série de expressões, a homogeneidade não é senão aparente: sempre
proposições designadoras e uma série de coisas designadas; uma tem um papel de significante e a outra um papel de
ou então, uma série de verbos e uma série de adjetivos e significado, mesmo que elas troquem estes papéis quando
substantivos; ou então, uma séric de expressdes e de senti- mudamos de ponto de vista.
dos ¢ uma série de designagdo e de designados. Estas va- Jacques Lacan pôs em evidéncia a existência de duas
riagbes não tém nenhuma importincia, já que representam séries em uma narrativa de Edgar Poe. Primeira série: o
apenas graus de liberdade para a organização das sérics he- rei que não vê a carta comprometedora recebida por sua
terogéneas: é a mesma dualidade, como vimos, que passa mulher; a rainha, aliviada por ter melhor escondido a carta
pelo lado de fora entre os acontecimentos ¢ os estados de justamente por ter deixado a carta em evidência; o ministro
coisas, na superficie entre as proposicdes e os objetos desig- que vê tudo e se apodera da carta. Segunda série: a polícia,
nados e no interior da proposição entre -as expressões e as que não acha nada em casa do ministro; o ministro que teve
designagdes. Mas, o que é mais importante é que podemos a idéia de deixar a carta em evidência para melhor escondê-
construir as duas séries sob uma forma aparentemente ho- -Ja; Dupin que vê tudo e retoma a cartal. É evidente que as
mogénea: podemos entdo considerar duas séries de coisas diferenças entre séries podem ser mais ou menos grandes
— muito grandes em alguns autores, muito pequenas em
ou duas séries de acontecimentos; ou duas séries de propo-
sições, de designagGes; ou duas séries de sentidos ou de ex- outros que não introduzem 2 não ser variações infinitesimais,
pressdes. Significa isto que a constituição das séries se faz mas não menos eficazes. É evidente também que a relação
entre as séries, o que se refere a significante à significada, o
de forma arbitraria?
que põe a significada em relação com a significante, pode ser
A lei das duas séries simultineas é que nfio são nunca
assegurada da manejra mais simples pela continuação de
iguais. Uma representa o significante, a outra o significado. uma história, a semelhança das situações, a identidade dos
Em razão de nossa terminologia estes dois termos adquirem,
personagens. Mas nada disto é essencial. O essencial apa-
porém, uma acepção particular. Chamamos de “significan-
rece, ao contrário, quando as diferenças pequenas ou grandes
te” todo signo enquanto apresentd em si mesmo um aspecto, superam as semelhanças, quando elas são primeiras, quando,
qualquer do sentido; “significado”, ao contrério, o que serve por conseguinte, duas histórias completamente distintas se
de correlativo a este aspecto do sentido, j É e
desenvolvem simultaneamente, quando as personagens têm
define em dualj ejati to. /O que é sig- uma identidade vacilante e maldeterminada.
mificado ndo €, por conseguinte, nunca o prépri ido. 0. O Podemos citar vários autores que souberam criar técni-
que ¢ significado, numa acepção restrita, é o conceito; e, em
cas seriais de um formalismo exemplar. Joyce assegura a
uma acepção larga, é cada coisa que pode ser definida pela
relação da série significante Bloom com a série significada
distinção que tal ou qual aspecto do sentido mantém com
Ulisses graças a muitiplas formas que comportam uma ar-
ela. Assim, o significan rimeiraments aconteciments
como atributo lógico ideal de um estado de coisas e o sig- queologia dos modos de narração, um sistema de correspon-
nificado é o e i i elações dência entre números, um prodigioso emprego de palavras
esotéricas, um método de perguntas-respostas, uma instau-
reais, Em seguida, o significante é a proposição em seu
ração de correntes de pensamento, de linhas de pensamento
conjunto, na medida em que ela comporta dimensões de de-
múltiplas (o double thinking de Carroll?). Raymond Roussel
signação, de manifestação, de significação no sentido estrito;
funda a comunicação numa relação fonemática (“les bandes
e o significado é o termo independente que corresponde a
1. LAcaN, Jacques. Ecrits. Ed. du Sevil, 1966, “Le Séminaire sur la
estas dimensões, isto é, o conceito, mas também a coisa tetire volée”,
significante, apresenta um excesso sobre outra; há sempre
du vieux pillard”, “les bandes du vieux billard” — um excesso de significante que se embaralha. Final-
P mente, o ponto mais importante, que assegura o desloca-
preenche toda diferença por uma história maravilhosa em mento relativo das duas séries e o excesso de uma sobre a
que a série significante p volta a se juntar com a série sig- outra, é uma instdncia muito especial e paradoxal que não
nificada b: história tão enigmática que, neste procedimento se deixa reduzir a nenhum termo das séries, a nenhuma
em geral, a série significada pode permanecer escondida2. relação entre estes termos. Por exemplo: a carta, segundo
Robbe-Grillet estabelece suas séries de descrições de esta- o comentirio que Lacan faz da narrativa de Edgar Poe.
dos de coisas, de designações rigorosas com pequenas dife- Ou ainda Lacan comentando o caso freudiano do “Homem
renças, fazendo—as girar em torno de temas fixos, mas pró- dos lobos”, colocando em evidéncia a existéncia de séries
prias a se modificarem e a se deslocarem em cada série de no inconsciente — no caso a série paterna significada e a
maneira imperceptível. Pierre Klossowski conta com o nome série filial significante — e mostrando nos dois o papel
próprio Roberte, não para designar uma personagem e ma- particular de um elemento especial: a dividaS. Em Finne-
nifestar sua identidade, mas ao contrário para exprimir uma gan's Wake, é também uma carta que faz comunicar todas as
“intensidade primeira”, para distribuir sua diferença e pro- séties do mundo em um caos-cosmos. Em Robbe-Grillet, as
duzir seu desdobramento segundo duas séries: a primeira, séries de designação são tanto mais rigorosas e rigorosa-
significante, que remete ao “marido que só imagina sua mente descritivas, quanto mais convergem na expressio de
mulher surpreendendo-se a si mesma a se deixar surpreen- objetos indeterminados ou sobredeterminados, tais como a
der”, a segunda, significada, que remete 3 mulher “langan- borracha, o corddozinho, a mancha do inseto. Segundo
do-se em iniciativas que devem convencê-la de sua liberda- Klossowski, o pome Roberte exprime uma “intensidade”,
de, quando nada mais fazem do que confirmar a visão do isto é, uma diferenca de intensidade, antes de designar ou
esposo” 3. Witold Gombrowicz estabelece uma série signi- de manifestar “pessoas”.
ficante de animais enforcados (mas significando o qué?) e Quais são os caracteres desta instdncia paradoxal? Ela
uma série significada de bocas femininas (mas significadas não para de circular nas duas séries. E é mesmo gragas a
em qué?), cada série desenvolvendo um sistema de signos, isto que assegura a comunicagdo eatre elas. É uma instancia
era por excesso, ora por falta, e comunicando com a outra de dupla face, ignalmente presente na série significante e na
por estranhos objetos que interfercm e pelas palavras eso- série significada. É o espelho. E, ao mesmo tempo, pala-
téricas que pronuncia Léon 4. vra e coisa, nome e objeto, sentido e designado, expressdo
Ora, trés caracteres permitem precisar a relagdo e a e designagdo etc. Ela assegura, pois, a convergéncia das
distribuição das séries em geral. Primeiro, os termos de duas séries que percorre, com a condição, porém, de fazé-las
cada série estio em perpétuo deslocamento relativo diante divergir sem cessar. É que ela tem como propriedade ser
dos da outra (assim, o lugar do ministro nas duas séries de sempre deslocada com relação a si mesma. Se os termos
Poe). Há um desnivel essencial. Este desnivel, este deslo- de cada série são relativamente deslocados, uns com relação
camento não é de forma nenhuma um disfarce que viria aos outros, é porque primeiramente, em si mesmos, elas tém
recobrir ou esconder a semelhanga das séries, nelas introdu- um Iugar absoluto, mas este lugar absoluto se acha sempre
zindo variações secundarias. Este deslocamento relativo &, determinado por sua disténcia deste elemento que ndo pára
a0 contrário, a variação priméria sem a qual cada série não de se deslocar relativamente a si mesmo nas duas séries.
desdobraria na cutra, constituindo-se neste desdobramento Da instancia paradoxal é preciso dizer que não estd nunca
e não se relacionando à outra a não ser por esta variação. onde a procuramos e, inversamente, que nunca a encon-
Há pois um duplo deslizamento de uma série sobre a outra tramos onde estd. Ela falta em seu lugar, diz Lacanb. Da
mesma forma, podemos dizer que ela falta a sua prépria
ou sob a outra, que as constitui ambas em perpétuo desequi-
librio uma com relação & outra. Em segundo lugar, este identidade, falta a sua propria semelhanga, falta a seu
desequilibrio deve, ele mesmo, ser orientado: o fato é que proprio equilibrio e a sua prépria origem. Das duas
uma das duas séries, precisamente a que é determinada como séries que ela anima não diremos, por conseguinte, que
uma seja origindria e outra derivada. Elas podem certa-
2. Cf. MicrEr FoucAutt, Raymond Roussel, Gallimard, 1963, Cap. 2 (¢
particularmente sobre as séries, p. 78 e s). 5., É o fexto de Lacan, esencisl para um mitodg serial, mas que não é
3. Krossowskr, Piome. Les lois de Uhospitalité. Gallimard, 1965, retomado nas Zerits: “Le Mythe individuel du névrosé, C.D.U.
Avertissement, p. 7. 6. Écrits, p. 25._ O pamdoxº que descrevemos aqui deve ser chamado
4. Gomprowicz, Witold. Cosmos. Denodl, 1966, Sobre tudo o que paradoxo de Lacan, Ele dá testemunho de uma inspiração carrolliana frequenr
preceden, cf. Apéndice L temente presente em seus escritos,
OELUITIA OETIE;:
mente,
outra.
ser originárias
Podem ser sucessivas.
ou derivadas
Mas
uma com relagio
são estritamente simul-
2
Das Palavras Esotéricas
tâneas com relação 2 instância em que comunicam. São
simultâneas sem nunca serem iguais, uma vez que a instância
tem duas faces, das quais uma sempre falta à outra. É
proprio desta instdncia, pois, estar em excesso em uma série
que ela constitui como significante, mas também em falta
na outra que ela constitui como significada: sem par, desem-
parelhada por natureza ou com relação a si. Seu excesso re-
mete sempre a sua propria falta e inversamente. De tal
forma que estas determinagGes são ainda relativas. Pois o
que é, em excesso de um lado, senão um lugar vazio extre-
mamente movel? E o que estd em falta do outro lado não
é um objeto muito mével, ocupante sem lugar, sempre extra-
numerdrio ¢ sempre deslocado?
Na verdade, não há elemento mais estranho do que
esta coisa de dupla face, de duas “metades” desiguais ou
impares. Como em um jogo, assiste-se à combinagdo da Lewis Carroll é o explorador, o instaurador de um mé-
casa vazia e do deslocamento perpétuc de uma peca. Ou, todo serial em literatura. Achamos nele vários processos de
antes, como na loja da ovelha: Alice comprova aí a com-
desenvolvimento em séries. Em primeiro lugar, duas séries
plementaridade da “prateleira vazia” e da “coisa brilhante de acontecimentos com pequenas diferenças internas, regu-
que se acha sempre acima”, do lugar sem ocupante e do ladas por um estranho objeto: assim em Sílvia e Bruno, o
ocupante sem lugar. “O mais estranho (oddest: o mais de- acidente de um jovem ciclista se acha deslocado de uma
semparethado) era que cada vez que Alice fixava com os série para a outra (Cap. 23). E não hd dúvida de que
olhos uma prateleira qualquer para fazer a conta exata do estas duas séries são sucessivas uma em relação à outra, mas
que nela havia, esta prateleira mostrava-se sempre absolu-
são simultâneas em relação ao estranho objeto, aqui um
tamente vazig, enquanto que as outras ao redor estavam re-
carrilhão com oito ponteiros e corda inversora, que não anda
pletissimas. Como as coisas esvanecem aqui, disse ela final- com o tempo, mas ao contrário, o tempo é que anda com
mente num tom queixoso, depois de ter passado cerca de um ele. Ele faz voltar os acontecimentos de duas maneiras,
minuto perseguindo inutilmente uma grande coisa brilhante seja de forma invertida em um devir-louco, seja com pe-
que se assemelhava, ora a uma boneca, ora a uma caixa quenas variações em um fatum estóico. O jovem ciclista,
e que se achava sempre spbre a prateleira acima daquela que cai sobre uma caixa na primeira série, agora passa
que ela olhava. .. Vou segui-la até à prateleira mais alta. indene. Mas quando os ponteiros reencontram sua posição,
Suponho que ela hesitará em atravessar o teto! Mesmo este ele jaz de novo ferido sobre o carro que o leva ao hospital:
plano, porém, malogrou: a coisa passou através do teto, tão como se o relógio tivesse sabido conjurar o acidente, isto
tranqgiiilamente quanto possivel, como se disto tivesse longo é, a efetuação temporal do acontecimento, mas não ó próprio
hábito”. Acontecimento, o resultado, o ferimento enquanto verdade
eterna... Ou então na segunda parte de Sílvia e Bruno
(Cap. 2) uma cena que reproduz uma outra da primeira
parte, com pequenas diferenças (o lugar variável do velho,
determinado pela “bolsa”, estranho objeto que se acha des-
locado em relação a si mesmo, uma vez que a heroína para
entregá-lo é forçada a correr numa velocidade feérica).
Em segundo lugar, duas séries de acontecimentos com
grandes diferenças internas aceleradas, reguladas por pro-
posições ou, ao menos, por ruídos, onomatopéias. É a lei
do espelho, tal como Lewis Carroll a descrevia: “Tudo
o que podia ser visto do antigo quarto era ordinário e
sem interesse, mas o resto era tão diferente quanto pos-
séries da oralidade, alimentar e semiológica ou das duas di-
sivel”. As séries sonho-realidade de Sílvia e Brimo sio mensões da proposição, designadora e expressiva. Sílvia e
construídas segundo esta lei de divergência, com os des- Bruno oferece outros exemplos: o Phlizz, fruto sem sabor
dobramentos de personagens de uma série para outra e seus ou o Azzigoom-Pudding. A variedade destes nomes expli-
redobramentos em cada uma, No prefácio da segunda parte, ca-se facilmente: nenhum é a palavra que circula, mas é,
Carroll desenha um quadro detalhado dos estados, humanos antes, um nome para designi-la (“o nome pelo qual a pa-
e feéricos, que garantem a correspondência das duas séries lavra é chamada”). A palavra circulante é de uma outra
segundo cada passagem do livro. As passagens entre séries, natureza: em principio é a casa vazia, a prateleira vazia, a
suas comunicações, são geralmente asseguradas por uma pro- palavra em branco, como ocorre a Lewis Carroll aconselhar
posição que começa em uma e acaba na outra por uma ono- os timidos a deixarem em branco certas palavras nas car-
matopéia, um ruído que participa das duas. (Não com- tas que escrevem. Esta palavra é também “chamada” por
preendemos por que os melhores comentadores de Carroll, nomes que marcam evanescéncias e deslocamentos: o Snark
especialmente os franceses, fazem tantas reservas e críticas é invisivel e o Phlizz é quase uma opomatopéia daquilo
levianas a Silvia e Bruno, obra-prima que dá testemunho de que se desvanece. Ou, entdo, é chamado por nomes total-
técnicas inteiramente renovadas em relação a Álice e ao mente indeterminados: aliquid, it, isto, coisa ou negécio (cf.
Espelho.) o isto na histéria do camundongo ou a coisa na loja da
da ovelha). Ou, finalmente, ela não é chamada por ne-
Em terceiro lugar, duas séries de proposições (ou então nhum nome, mas é nomeada pelo refrdo de uma canção
uma série de proposições e uma série de “consumações”, que circula através de suas estrofes e faz com que elas se
ou então uma série de expressões puras e uma série de comuniquem; ou, como na canção do jardineiro, por uma
designações) com forte disparidade, reguladas por uma pa- conclusdo de cada estrofe que faz com que se comuniquem
lavra esotérica. Primeiro devemos considerar, porém, que os dois géneros de premissas.
as palavras esotéricas de Carroll são de tipos muito dife-
rentes. Um primeiro tipo contenta-se em contrair os ele- Em quarto lugar, séries com forte ramificacio, regu-
mentos sildbicos de uma proposigio ou de vérias que se ladas por palavras-valise e constituidas, quando necessdrio,
Seguem: assim, em Silvia e Bruno (Cap. 1), “y'reince” no por palavras esotéricas de um tipo precedente. Com efeito,
lugar de Your royal Highness. Esta contração se propde as palavras-valise são elas préprias palavras esotéricas de
extrair o sentido global da proposição para nomeá-la por um novo tipo: podemos defini-las, em primeiro lugar dizen-
meio de uma só sílaba, “Impronunciável monossílabo”, como do que contraem vérias palavras e envolvem vários sen-
diz Carroll. Outros procedimentos são conhecidos, já em tidos (“furiante” — fumante + furioso). Mas todo o pro-
Rabelais e Swift: por exemplo, o alongamento silábico com blema é de saber quando é que se tornam necessérias estas
sobrecarga de consoantes ou entãoa simples desvocalização, palavras-valise. Pois é possivel sempre encontrar palavras-
sendo conservadas somente as consoantes (como se fossem -valise; quase todas as palavras esotéricas podem ser inter-
aptas para exprimir o sentido, ao passo que as vogais seriam pretadas assim. Com muita boa vontade, mas com muita
apenas elementos de designação) etc.!, De qualquer ma- arbitrariedade também. Mas, na verdade, uma palavra-va-
neira, as palavras esotéricas deste primeiro tipo formam lise só é necessariamente fundada e formada se coincide
uma conexdo, uma síntese de sucessão referidas a uma só com uma função particular da palavra esotérica que ela
série. pretende designar. Por exemplo, uma palavra esotérica com
As palavras esotéricas peculiares a Lewis Carroll são uma simples função de contragio sobre uma só série
de um outro tipo. Trata-se de uma síntese de coexistén- (y'reince) não é uma palavra-valise. Por exemplo, ainda, no
cia que se propõe assegurar a conjunção de duas séries de célebre Jabberwocky, um grande número de palavras dese-
proposições heterogêneas ou de dimensões de proposições nha uma zoologia fantdstica, mas não forma necessariamen-
(o que dá no mesmo, já que podemos sempre construir as te palavras-valise: assim, os foves (pincéis, lagartixas, saca-
groposiçõ'es de uma série encarregando-as de encarnar par- -rolhas), os borogoves (passaros-vassouras), os raths (por-
ticularmente uma determinada dimensão). Vimos que o cos verdes); ou o verbo ourgribe (mugir-espirrar-assobiar)2.
grande exemplo era a palavra Snark: circula através das duas
2. Henri Parisot e Jacques B. Brunius deram duss belas traducSes do
Jabberwocky. A de Parisot é reproduzida no seu Lewis Carroll, ed. Seghers; a
il Pons s Detores de Smih, Pleinipo guaso S 2 clasificsto do
1. Sobre os procedimentos de Rabelais f ificação de Brunjus, com comentirios sobre as palavras nos Cahiers du Sud, 1948, nº
Por exemplo, finalmente, uma palavra esotérica subsumindo de objetos portadores de sentido (seres simbdlicos ou fun-
duas séries heterogéneas não é necessariamente uma palavra- cionais do tipo “empregado de banco”, “selo”, “diligéncia”
-valise: acabamos de ver como esta dupla função de sub- ou mesmo “ação de estrada de ferro” como no Snark). É
sunção era suficientemente preenchida por palavras como possivel entdo interpretar o fim da primeira estrofe como
Phlizz, coisa, isto significando, de um lado, à maneira de Humpty Dumpty:
Já nestes niveis, no entanto, palavras-valises podem “os porcos verdes (raths), longe de casa (nome = from
aparecer. Snark é uma palavra-valise que designa um ani- home) mugiam-cspirravam-assobiavam (outgrabe)”; mas
mal fantdstico ou compésito: shark + snake, tubardo + também como significando, de outro lado: “as taxas, os
serpente. Não é uma palavra-valise, a não ser secundéria cursos preferenciais (rath — rate + rather) longe de seu
ou acessoriamente, pois seu teor não coincide com sua ponto de partida, estavam fora de alcance (outgrab)”. Deste
função como palavra esotérica. Por seu teor remete a um modo, porém, qualquer interpretacdo serial pode ser aceita
animal compésito, enquanto que por sua fungdo conota duas e não vemos como a palavra-valise se distingue de uma
séries heterogéneas, das quais uma somente se refere a um sintese conjuntiva de coexisténcia ou de uma palavra eso-
animal, ainda que compésito, e a outra diz respeito a um térica qualquer assegurando a coordenagio de duas ou mais
sentido incorporal. Não &, pois, por seu aspecto de “va- séries heterogéneas.
lise” que ela preenche sua função. Em compensagio, Jab- A solução é dada por Carroll no preficio de 4 Caga
berwock é sem divida um animal fantistico, mas é tam- ao Snark. “Colocam-me a questão: sob que rei, diga, seu
bém uma palavra-valise, cujo teor, desta vez, coincide com ordindrio? fale ou morre! Não sei se o rei era William ou
a função. Carroll sugere, com efeito, que é formada de Richard. Entdo respondo Rilchiam.” Revela-se como a pa-
wocer ou wocor que significa rebento, fruto, e de jabber, lavra-valise é fundada em uma estrita sintese disjuntiva. E,
que exprime uma discussdc volivel, animada, tagarela. É longe de nos encontrarmos diante de um caso particular,
pois enquanto palavra-valise que Jabberwock conota duas descobrimos a lei da palavra-valise em geral, com a con-
séries andlogas & do Snark, a série da descendéncia animal dição de pôr em cvidéncia a disjunção que poderia estar
ou vegetal que concerne a objetos designaveis e consumiveis escondida. Assim, no que se refere a “furiante” (furioso
e a série da proliferagdo verbal que concerne a sentidos ex- e fumante): “Se vossos pensamentos se inclinam por pouco
_primiveis, Estas duas séries podem, entretanto, ser cono- que seja do lado de fumante, direis fumante-furioso; se eles
tadas de outra forma e a palavra-valise não encontra aí o se voltam, ainda que com a espessura de um fio de cabelo,
fundamento da sua necessidade. A definição da palavra- do lado de furioso, direis furioso-fumante; mas se tendes
-valise, segundo a qual ela contrai vérias palavras e encerra este dom rarfssimo, ou scja, um espirito perfeitamente equi-
virios sentidos, não passa de uma definição nominal. librado, direis furiante”. A disjungdo necessdria não é, pois,
Comentando a primeira estrofe do Jabberwocky, entre fumante e furioso, pois podemos muito bem ser as
Humpty Dumpty apresenta como palavras-valise: slithy duas coisas ao mesmo tempo, mas entre fumantc-e-furioso,
“fluctuoso” — flexivel-untuoso-viscoso); minssy (“detriste”. de um lado e, de outro, furioso-e-fumante. Neste sentido,
= débil-triste)... Aqui o nosso embaraço redobra. Ve- a função da palavra-valise consiste sempre em ramificar a
mos como hd, a cada vez, vérias palavras e vérios sentidos série em que se insere. Eis por que ele nunca existe só:
contraidos; mas estes elementos se organizam facilmente em ela dá sinal a outras palavras-valise que a precedem ou a
uma só série para compor um sentido global. Não vemos, seguem e que fazem com que toda série seja já ramificada
pois, como a palavra-valise se distingue de uma contração em principio ainda ramificdvel. Michel Butor diz muito
simples ou de uma sintese de sucessio conectiva. Não há bem: “Cada uma destas palavras poderá se tormar como
divida de que podemos introduzir uma segunda série; o um desvio e iremos de uma a outra por uma multidio de
préprio Carroll explicava que as possibilidades de interpre- trajetos; de onde a idéia de um livro que ndo conta somente
tagdo eram infinitas. Por exemplo, podemos reduzir o uma histéria, mas um mar de histérias” 3. Podemos pois
Jabberwocky ao esquema da canção do jardineiro, com suas responder a questdo que colocdvamos no comego: quando
duas séries de objetos designdveis (animais consumiveis) e a palavra esotérica não tem somente por função conotar
ou coordenar duas séries heterogéneas, mas além disso in-
287. Ambos citam também versões do Jabberwocky em linguas diversas. To- troduzir nelas disjunções, então a palavra-valise é necessd-
mamos de empréstimo os termos de que nos servimos, ora de Parisot, ora de
Brunius. Deveremos considerar mais tarde a transcrição que Ántoain Artaud
fez da primeira estrofe: este texto admirivel coloca problemas que não são 3. Burom, Michel. Introduction aux fragments de “Finnegans Wake”.
mais os de Carroli, Gallimard, 1962. p. 12.
ria ou necessariamente fundada; isto é, a própria palavra Oitava Série:
esotérica é então “chamada” ou designada
-valise. A palavra esotérica remete em
por uma palavra-
geral, ao mesmo
Da Estrutura
tempo, à casa vazia e ao ocupante sem lugar. Mas deve-
mos distinguir trés espécies de palavras espgéricas em Car-
roll: as contraentes, que operam uma sinfése de sucessio
sobre uma só séric e recaem sobre os elementos sildbicos de
uma proposição ou de uma seqiiéncia de proposigdes para
daf extrair o sentido composto (“conexo™); as circulantes,
que operam uma sintese de coexisténcia e de coordenação
entre duas séries heterogéneas e que recaem diretamente,
de vez, sobre o sentido respectivo destas séries (“conjun-
ção”); as disjuntivas ou palavras-valise, que operam uma
ramificagdo infinita das séries coexistentes e recaem, a0 mes-
mo tempo, sobre as palavras e os sentidos, os elementos
sildbicos e semioldgicos (“disjungfio”). É a função ramifi-
cante ou a sintese disjuntiva que dá a defini¢do real da
palavra-valise,
Lévi-Strauss indica um paradoxo anilogo ao de Lacan
sob a forma de uma antinomia: dadas duas séries, uma
significante e outra significada, uma apresenta um excesso
€ a outra uma falta, pelos quais se relacionam uma a outra
em cterno desequilibrio, em perpétuo deslocamento. Como
diz o heréi de Cosmos: signos significantes, sempre exis-
tem em demasia. É que o significante primordial é da
ordem da linguagem; ora, seja qual for a maneira segundo
a qual é adquirida a linguagem, os elementos da lingua-
gem são dados todos em conjunto, de uma só vez, já que
não existem independentemente de suas relações diferenciais
possiveis. O significado em geral, porém, é da ordem do
conhecido; ora, o conhecido acha-se submetido à lei de um
movimento progressivo que vai por parte, partes extrapartes.
E sejam quais forem as totalizagbes operadas pelo conhe-
cimento, elas permanecem assintticas 2 totalidade virtual
da lingua ou da linguagem. A série significante organiza
uma totalidade preliminar, enquanto que a significada orde-
na totalidades produzidas. “O Universo significou bem an-
tes de termos comegado a saber o que ele significava. ..
O homem dispõe desde sua origem de uma integralidade de
significante que muito o embaraga quando se trata de atri-
buir um significado, dado como tal sem ser, no entanto,
conhecido. H4 sempre uma inadequacio entre os dois” 1.
Este paradozo poderia ser chamado de paradoxo de
eem
Robinson, pois, é evidente que Robinson em sua ilha de-
sam de se distanciar no passado, de se distanciar no futuro. 3. Bomoms. Fictions. pp. 187-188. (No seu Histoire de Téternité, Bor-
ges vai menos longe e não parece concebe: todo labirinto, a não ser como
Não haverá aí, no Aion, um labirinto bem diferente do de circalar ou ciclico). Entre os comentadores do pensamento estbico, Victor
Cronos, ainda mais terrível e que comanda um oufro eterno Goldschmidt analisou particalarmente a coexistência destas duas concepções do
tempo: uma, de presentes variáveis; a outra, de subdivisão ilimitada em passa-
Tetorno e uma outra ética (ética dos Efeitos)? Pensemos dofuturo (Le Systême sroicien et Vidée de temps, Vrin, 1953, pp. 3640.)
Ele mostra também nos estóicos a existência de dois métodos e de duas atitudes
morais. Mas a questão de saber se estas duas atítudes correspondem sos dois
2. 2 BORGES, J. L. Fictions. Gallimard, pp. §9-%0 (O “conflito com a tempos permanece obscura: não parece que assim seja, de acordo com o co-
Tartaruga” parece uma alusão não somente 40 paradoxo de Zenão, mas ao de mentário do autor. Com mais forte razão, a questão de dois eternos retornos
Lewis Carroll que vimos
Gallimard, p. 159). precedentemente e que Borges resume em Enquétes, muito diferentes, correspondendo aos dois tempos, não aparece (pelo menos
. “ diretamente) no pensamento estéico. Deveremos voltar a estes pontos.
passar, 20 mesmo tempo, nunca alguma coisa que se passa. estende-os e estira-0s por sobre toda a linha. Cada aconte-
O X de que sentimos que isto acaba de se passar, é o objeto cimento é adequado ao Alon inteiro, cada acontecimento
da novidade”; e o X que sempre vai se passar é o objeto comunica com todos os outros, todos formam um só e mes-
do “conto”. O acontecimento puro é conto e novidade, mo Acontecimento, acontecimento do Aion onde tém uma
jãmaig atualidade. É neste sentido que os acontecimentos verdade eterna. Eis o segredo do acontecimento: estando
são signos. sobre o Aion, ele, entretanto, ndo o preenche. Como o in-
Aos Estóicos ocorre dizer que os signos são sempre corporal preencheria o incorporal e o impenetrivel preen-
presentes e signos de coisas presentes: «daquele que se en- cheria o impenetrdvel? Somente os corpos se penetram, so-
contra mortalmente ferido, não podemos dizer que ele foi mente Cronos é preenchido pelos estados de coisas e os
ferido e que morrerá, mas que ele é tendo sido ferido e movimentos de objetos que mede. Mas, forma vazia e de-
que ele é devendo morrer. Este presente não contradiz o senrolada do tempo, o Aion subdivide ao infinito o que o
Aion: ao contrário, é o presente como ser de razão, que se acossa sem jamais habitd-lo, Acontecimento para todos os
subdivide ao infinito em alguma coisa que acaba de se acontecimentos; eis por que a unidade dos acontecimentos
passar e alguma coisa que vai se passar, sempre fugindo ou dos efeitos entre si é de um tipo completamente dife-
nos dois sentidos ao mesmo tempo. O outro presente, o rente da unidade das causas corporais entre si.
presente vivo, se passa e efetiva o acontecimento. Mas o O Aion é o jogador ideal ou o jogo. Acaso insuflado
acontecimento, nem por isso deixa de guardar uma verdade e ramificado. É ele a cartada única de que todos os lances
eterna, sobre o Aion que o divide eternamente em um pas- se distinguem em qualidade. Ele joga ou, se joga sobre
sado próximo e um futuro iminente e que não cessa de duas mesas pelo menos, na juntura das duas mesas. AÍ
subdividi-lo, repelindo a um e a outro sem nunca torná-los ele traga sua linha reta, bissetriz. Ele recolhe e reparte sobre
menos insistentes. O acontecimento é que nunca alguém todo o seu comprimento, as singularidades correspondendo
morre, mas sempre acaba de morrer ou vai morrer, no as duas. As duas mesas ou séries sdo como o céu e a
presente vazio do Aion, eternidade. Descrevendo um assas- terra, as proposições e as coisas, as expresses e as consu-
sínio tal como deve ser reproduzido por mímica, pura idea- mações — Carroll diria: a tábua (table) de multiplicagio e
lidade, Mallarmé diz: “Aqui avangando, aí rememorando, a mesa (feble) de comer. O Aion é exatamente a fronteira
no futuro, no passado, sob uma aparência falsa de presente das duas, a linha reta que as separa, mas igualmente super-
— assim opera o Mimo, jogo que se limita a uma alusão ficie plana que as articula, vidro ou espelho impenetrével.
perpétua sem quebrar o gelo” 4. Cada acontecimento é o Assim circula através das séries, que não cessa de refletir e
menor tempo, menor que o minimo de tempo continuo pen- de ramificar, fazendo de um só e mesmo acontecimento o
sável, porque ele se divide em passado préximo € futuro expresso das proposigdes, sob uma face, o atributo das coisas,
iminente. Mas é também o tempo mais longo, mais longo sob 2 outra face. É o jogo de Mallarmé isto é, o “livro”:
que o méximo de tempo continuo pensével, porque ele não com suas duas tdbuas (a primeira e a última folha num
cessa de ser subdividido pelo Aion que o torna igual a sua mesmo folheto dobrado), suas séries múltiplas interiores do-
linba ilimitada. Entendamos: cada acontecimento sobre o tadas de singularidades (folhas méveis permutéveis, cons-
Aion é menor que a menor subdivisio no Cronos; mas é telagbes-problemas), sua linha reta com duas faces que re-
também maior que o maior divisor de Cronos, isto ¢, o ciclo fletem e ramificam as séries (“central pureza”, “equação sob
inteiro. Por sua subdivisão ilimitada nos dois sentidos ao um deus Jano”), e sobre esta linha o ponto aleatério que
mesmo tempo, cada acontecimento acompanha o Aion em se desloca sem cessar, aparecendo como casa vazia de um
toda sua extensdo e torna-se coextensivo à sua linha reta nos lado, objeto extranumerério de outro (hino e drama ou então
dois sentidos. Sentimos então a aproximagdo de um eterno “um pouco de padre, um pouco de dangarina” ou ainda o
retorno que não tem mais nada a ver com o ciclo ou já a móvel envernizado com compartimentos e o chapéu sem lugar
entrada de um labirinto, tanto mais terrivel quanto mais ele para ocupar, como elementos arquitetdnicos do livro). Ora,
¢ o da linha única, reta e sem espessura? Q Aion é a linha nos quatro fragmentos um pouco elaborados do Livro de
Teta que traga o ponto aleatório; os pontos singulares de Mallarmé, algo ressoa no pensamento mallarmiano vagamen-
cada acontecimento se distribuem sobre esta linha, sempre te conforme às séries de Carroll. Um fragmento desenvolve
Telativamente ao ponto aleatério que os subdivide ao infi- a dupla série, coisas ou proposiges, comer ou falar, nu-
1ito e assim faz com que se comuniquem uns com os outros, trir-se ou ser apresentado, comer a senhora que convida ou
4. MALARME, “Mimique”. In: Oeuyres, Pléiade, Gallimard, p. 310. responder ao convite, Um segundo fragmento destaca a “neu-
tralidade firme e benevolente” da palavra, neutralidade do
LIGUITTIA F TINIGITA ocric.
sentido em relação à proposição,
expressa com relação àquele que a ouve.
assim como da ordem
Um outro frag-
Do Não-Senso
mento mostra em duas figuras femininas entrelaçadas a li-
nha única de um Acontecimento sempre em desequilíbrio,
que apresenta uma de suas faces como sentido das propo-
sigdes e a outra como atributo dos estados de coisas. Um
outro fragmento, finalmente, mostra o ponto aleatório que
se desloca sobre a linha, ponto de Igitur ou do Coup de dés,
duplamente indicado por um velho morto de fome e uma
crianga nascida da palavra — “pois morto de fome lhe dá
o direito de recomegar...” S,
Qi it E RTA )
estendamos nossa pele como um tambor, para que a “grande
Décima Segunda Série:
política” comece. Um casa vazia que não é nem para o Sobre o Paradoxo
homem e nem para Deus; singularidades que não são nem
da ordem do geral, nem da ordem do individual, nem pes-
soais, nem universais: tudo isto atravessado por circulações,
ecos, acontecimentos que trazem mais sentido e liberdade,
efetivados com o que nunca sonhou, ném Deus concebeu.
Fazer circular a casa vazia e fazer falar as singularidades
pré-individuais e não pessoais, em suma, produzir o sentido,
é a tarefa de hoje.
Sobre o Problema
Moral nos Estóicos
forma aguda da necessidade, aparece uma deformação não um o gue serd, eu não o serel. À expressio positiva desta forma € o futuro
menos profunda do tempo;
anterior: eu terei sido” (“Patologia da_hberdade, ensaio sobre a não-identifi-
desta vez é todo futuro que é cação”, Rechercies Philosophiques, VI, 1936-1937).
ração revolucio-
e a perda do dinheiro, a terra natal e sua perda. Ele é, minam são convertidas em meios de explo
escre ve sobre este ponto est.ran,has pági
ao mesmo tempo, o objeto, a perda do objeto e a lei desta narios. Burroughs
e Saúde, nossa
perda em processo concertado de demolição (“obviamente”). nas que dão testemunho desta busca da grand o que se
“Imag inai que tudo
A questão de saber se a fissura pode evitar encarnar- maneira de ser piedosos: outro s cami-
cas é acess? vel por
pode atingir por vias quími mutar o
Metralhamento da sl_lperfíge para trans
-se, efetuar-se no corpo sob esta ou outra forma, não é
evidentemente justificável a partir de regras gerais. A nhos...” ;
apunhalamento dos corpos, ó psicodelia.
fissura continua sendo apenas uma palavra enquanto o corpo
não estiver comprometido e enquanto o fígado e o cérebro,
os órgãos, não apresentem estas linhas a partir das quais se
prediz o futuro e que profetizam por si mesmas. Se
perguntamos por que não bastaria a saúde, por que a fissura
é desejável é porque, talvez, nunca pensamos a não ser
por ela e sobre suas bordas e que tudo o que foi bom e
grande na humanidade cntra e sai por ela, em pessoas
prontas a se destruir a si mesmas e que é antes a morte
do que a saúde que se nos propõem. Haverá uma outra
saúde, como um corpo que sobrevive tão longe quanto
possível à sua própria cicatriz, como Lowry sonhando em
reescrever uma “Fissura” que acabaria bem e jamais renun-
ciando à idéia de uma reconquista vital? É verdade que
a fissura não é nada se não compromete o corpo, mas
ela não cessa menos de ser e de valer quando confunde
sua linha com a outra linha, no interior do corpo. Não
se pode dizê-lo de antemão, é preciso arriscar permanecendo
o mais tempo possivel, não perder de vista a grande saúde.
Não se apreende a verdade eterna do acontecimento a não
ser que o acontecimento se inscreva também na carne; mas
cada vez devemos duplicar esta efetuação dolorosa por uma
contra-efetuação que a limita, a representa, a transfigura.
É preciso acompanhar-se a si mesmo, primeiro para sobre-
viver, mas inclusive quando morremos. A contra-efetuação
não é nada, é a do bufio quando ela opera só e pretende
valer para o que terig podido acontecer. Mas ser o mimico
do que acontece efetivamente, duplicar a efetuação com uma
contra-efetuagdo, a identificagio com uma distdncia, tal o
ator verdadeiro ou o dangarino, é dar à verdade do aconte-
cimento a chance tinica de ndo se confundir com sua inevi-
tével efetuagdo, à fissura a chance de sobrevoar seu campo
de superficie incorporal sem se deter na quebradura de cada
corpo e a nós de irmos mais longe do que terfamos acredita-
do poder. Tanto quanto o acontecimento puro se aprisiona
para sempre na sua efetuação, a contra-efetuação o libera
sempre para outras vezes. Não podemos renunciar a espe-
ranga de que os efeitos da droga ou do álcool (suas “revela-
ções”) poderdo ser revividos e recuperados por si mesmos
na superficie do mundo, independentemente do uso das
substancias, se as técnicas de alienação social que o deter-
Vigesima Terceira Série:
Do Aion
“ua 1ota 6 difícil de nenhuma dessas cadâncias; é alguma coisa de mais divino, fundo aparecia como fenda da superficie. Mas aprendemos
ífpíªãê.ºífm“ aqui acompreend er, mas enfim
dupla negação, tanto do elaciclose como
adianta e chegê no Fim”
de um conhecimento
que esta mudanga de orientagio, esta conquista da superficie,
implicava diferengas radicais sob todos os aspectos. É apro-
ximadamente a diferença entre a segunda e a terceira hipó- damenta a linguagem ou a expressio, isto é, a propriedade
tese <_io Parmênides, a do “agora” e a do “instante”. Não metafisica adquirida pelos sons de ter um sentido e secunda-
€ mais o futuro e o passado que subvertem o presente exis- riamente de significar, de manifestar, de designar, em lugar
tente, é o instante que perverte o presente em futuro e de pertencer aos corpos como qualidades fisicas. Tal é a
passado insistentes. A diferença essencial não é mais entre mais geral operação do sentido: é o sentido que faz existir
Cronos e Aion simplesmente, mas entre Aion das superfícies o que o exprime e, pura insisténcia, se faz desde entdo existir
e o conjunto de Cronos e do devir-louco das profundidades. no que o exprime. Pertence pois ao Aion, como meio dos
Entre os dois devires, da superficie e da profundidade, nio efeitos. de superficie ou dos acontecimentos, tragar uma
pode_mos nem mesmo dizer mais que há algo em comum, fronteira entre as coisas e as proposições: ele a traga com
esquivar o presente. Pois se a profundidade esquiva o pre- toda sua linha reta e sem esta fronteira os sons se abateriam
sente, é com toda a força de um “agora” que opde seu sobre os corpos, as proprias proposições ndo seriam “possi-
presente tresloucado 2o sábio presente da medida; e se a veis”. A linguagem é tornada possivel pela fronteira que a
superficie esquiva o presente, é com toda a poténcia de um separa das coisas, dos corpos e não menos daqueles que
“instante”, que distingue seu momento de todo presente falam, Podemos então retomar o detalhe da organizagdo
assinaldvel sobre ‘o qual cai e recai a divisdo. Nada sobe de superíície tal qual é determinada pelo Aion.
à superficic sem mudar de natureza. Aion não é mais de Em primeiro lugar, toda a linha do Aion é percorrida
ZeusA nem de Saturno, mas de Hércules. Enquanto Cronos pelo Instante, que não para de se deslocar sobre ela e faz
exprimia a ação dos corpos e a criação das qualidades cor- falta sempre em seu proprio lugar. Platão diz muito bem
porais, Aion é o lugar dos acontecimentos incorporais e dos que o instante é atopon, atdpico. Ele é a instancia paradoxal
atributos distintos das qualidades. Enquanto Cronos era ou o ponto aleatério, o ndo-senso de superfície ¢ a quase-
insepardvel dos corpos que o preenchiam como causas e causa, puro momento de abstragdo cujo papel é, primeiro,
matérias, Aion é povoado de efeitos que o habitam sem dividir ¢ subdividir todo presente nos dois sentidos ao mesmo
nunca preenché-lo. Enquanto Cronos era limitado e infini- tempo, em passado-futuro, sobre a linha do Aion. Em se-
to, Aion é ilimitado como o futuro e o passado, mas finito gundo lugar, o que o instante extrai assim do presente, como
como o instante. Enquanto Cronos era insepardvel da dos individuos e das pessoas que ocupam o presente, são
circularidade e dos acidentes desta circularidade como blo- as singularidades, os pontos singulares duas vezes projetados,
esta
queios ou precipitações, explosBes, desencaixes, endureci- uma vez no futuro, outra no passado, formando sob
mentos, Aion se estende em linha reta, ilimitada nos dois dupla equação os clementos constituintes do acontecimento
sepudos. Sempre já passado e eternamente ainda por vir, puro: & maneira de um saco que abandona seus esporios.
Aion ¢ a verdade eterna do tempo: pura forma vazia do simul-
Mas, em terceiro lugar, a linha reta de dupla direção
tempo, que se liberou de seu conteúdo corporal presente e os
tânea traga a fronteira entre os corpos © a linguagem,
por aí desenrolou seu circulo, se alonga em uma reta, talvez estados de coisas e as proposições. A linguagem ou sistema
tanto mais perigosa, mais labirintica, mais tortuosa por esta das proposições não existiria sem esta fronteira que a torna
razdo — este outro movimento de que falava Marco Aurélio, Eis pois que a linguagem não cessa de nascer, na
possivel.
aquele que não se faz nem no alto nem embaixo, nem cir- direção futura do Aion em que é fundada e como esperada,
o
cn}armenw, mas somente à superficie, o movimento da embora ela deva dizer também o passado, mas justamente
“virtude”... E se hd um querer-morrer também deste lado, que não cessam de
diz como aquele dos estados de coisas
é de uma maneira bem diferente.
aparecer e desaparecer na outra direção. Em suma, a linha
relacionada a estes dois contornos, que çla
. 2º) É este mundo novo, dos efeitos incorporais ou dos reta é agora
efeitos de superfície, que torna a linguagem possível. Pois separa mas também articula um ao outro como duas séries
é ele,_como veremos, que tira os sons de seu simples estado desenvolvíveis. Ela relaciona a elas ao mesmo tempo o
de ações e paixdes corporais; é ele que distingue a linguagem, ponto aleatório instantâneo que a percorre é os pontos
que a impede de se confundir com o barulho dos corpos, que singulares que aí se distribuem. Há pois duas faces, sempre
a abstrai de suas determinagdes orais-anais. Os aconteci- desiguais em desequilibrio, uma voltada para os estados de
mentos puros fundamentam a linguagem porque eles a espe- coisas, a outra voltada para as proposigbes. Mas elas não
Tam tanto quanto eles nos esperam e não tém existéncia pura, se deixam reduzir a isso. O acontecimento se relaciona aos
estados,
smgular', impessoal e pré-individual sendo na linguagem que estados de coisas, mas como atributo lógico destes
os exprime. É o expresso, na sua independéncia, que fun- completamente diferente de suas qualidades físicas, se bem
que ele lhes sobrevenha, neles se encarne ou neles se efetue. como o presente vasto ¢ profundo de Cropos: é o presente
O sentido é a mesma coisa que o acontecimento, mas desta espessura, o presente do ator, do dangarino ou do
sem
vez relacionado às proposicdes. E cle se relaciona às pro- mimico, puro “momento” perverso. É o presente da ope-
posições como seu exprimível ou seu expresso, completa- ragio pura ¢ não da incorporação. Não é o presente ~dx
mente distinto do que elas significam, do que elas manifestam subversio nem o da efetuagdo, mas da contra-efetuagio,
de se
e do que elas designam e mesmo de suas qualidades sonoras, que impede aquele de derrubar este, que impede este
embora a independência das qualidades sonoras relativamen- confundir com aquele e que vem redobra r a dobra.
te às coisas ou corpos seja unicamente assegurada pelo con-
junto desta organização do sentido-acontecimento. O con-
junto da organização nestes três momentos abstratos vai,
pois, do ponto à linha reta, da linha reta à superfície: O
ponto que traça a linha, a linha que faz fronteira, 2 superfície
que se desenvolve, se desdobra dos dois lados.
39) Muitos movimentos se cruzam, com scus mecanis-
mos frágeis e delicados: aquele pelo qual os corpos, estados
de coisas e misturas tomados em sua profundidade chegam
a produzir superfícies ideais ou malogram nesta produção;
aquele pelo qual, inversamente, os acontecimentos de super-
fície se efetuam no presente dos corpos, sob regras comple-
xas, aprisionando primeiro suas singularidades nos limites de
mundos, de indivíduos e de pessoas; mas também aquele
pelo qual o acontecimento implica algo de excessivo em
relação à sua efetuação, algo que revoluciona os mundos, os
indivíduos e as pessoas e os devolve à profundidade do fundo
que os trabalha e os dissolve. Assim a noção do presente
tem vários sentidos: o presente desmesurado, desencaixado,
como tempo da profundidade e da subversão; o presente
variável e medido como tempo da efetuação; e talvez ainda
um outro presente. Como, aliás, haveria uma efetuação
comensurável se um terceiro presente não o impedisse a cada
instante de cair na subversão e de se confundir com ela?
Sem dúvida, pareceria que o Aion não tem em absoluto
presente, pois que o instante não cessa nele de dividir em
futuro e passado. Mas não é senão uma aparéncia. O que
é excessivo no acontecimento é o que deve ser realizado, se
bem que não possa ser realizado ou efetuado sem ruina.
Entre os dois presentes de Cronos, o da subversio pelo
fundo ¢ o da efetuagdo nas formas, há um terceiro, deve
haver um terceiro pertencendo ao Aion. E, com efeito, o
instante como elemento paradoxal ou quase-causa que per-
corre toda a linha reta deve ser ele préprio representado.
É alids neste sentido que a representagdo pode envolver em
suas bordas uma expressdo, ainda que a expressdo cla pré-
pria seja de uma outra natureza e que o sdbio pode se
“identificar” à quase-causa, ainda que a quase-causa ela
propria faga falta à sua prépria identidade. Este presente
do Aion, que representa o instante, não é absolutamente
Vlgwªllllu WEVUI U WUIIV:
Da Comunicação
dos Acontecimentos
|
na proposição da designação, da manifestação e da signifi- tipos, assegurando ao mesmo tempo a separação, a cc_)orde—
cação). nação e a ramificação das séries. Assim toda a orggmzyi_‘o
/ Vimos
Como
qual
o
era
acontecimento
sua essência,
torna a linguagem possível? da linguagem apresenta as três figuras da superfície metafí-
sica ou transcendental, da linha incorporal abstrata ¢ do
puro efeito de superficie,
impassfvel incorporal, O acontecimento resulta dos corpos, ponto descentrado: os efeitostide superficic ou acontecimen-
de suas misturas, de suas ações e paixGes. Mas difere em
tos; na superficielVa linha do sentido imanente ao aconteci-
natureza daquilo de que resulta. Assim ele se atribui aos mento; sobre a linhdo ponto do ndo-sentido, ndo-sentido
-€orpos, aos estados de coisas, mas não como uma qualidade da superficie co-presente ao sentido. Pal
fisica: somente como um atributo muito especial, dialétic Os dois grandes sistemas antigos, epicurismo e estoicis- * Â
o
ou antes noemitico,_incorporal. Este atributo não existe mo, tentaram designar nas coisas o que torna a linguage.m
fora da proposição que o exprime. Mas difere em natureza possivel. Mas o fizeram de maneira muito diferente. Pois,
de sua expressio. Assim ele existe na proposigdo, mas não para fundamentar não somente a liberdade, mas a linguagem
como um nome de corpo ou de qualidade, nem como
um e seu emprego, os Epicuristas elaboraram um modelo que
sujeito ou predicado: somente como o exprimivel ou o ex- era a declinação do átomo, os Estéicos, ao contririo, a
presso da proposicdo, envolvido em um verbo. É a mesma conjugagdo dos acontecimentos. Não €, pois, surpreendente
entidade que é acontecimento sobrevindo aos estados de que o modelo epicurista privilegie os nomes e os adietivos,
coisas e sentido insistindo na proposição. Então, na medida os nomes sendo como 4tomos ou lingiifsticos que se
em que o acontecimento incorporal se constitui e constitui compdem por sua declinação e os adjetivos, qualidade_s des-
a superficie, ele faz subir a esta superficie os termos de sua tes compostos. Mas o_modelo estdico compreende a lingua-
dypla referéncia: os corpos aos quais remete como atributo gem a partir de termos “mais nobres”: os verbos e sua
noemético, as proposigdes as quais remete como exprimivel. conjugacio, em função dos lagos entre acontecimentos
E estes termos, cle os organiza como duas séries que separa, incorporais. A questdo de saber o que é primeiro na lin-
uma vez que é por e nesta separação que ele se distingue guagem, nomes ou verbos, não pode ser resolvida segundo
dos corpos de que resulta e das proposigdes que torna pos- a méxima geral “no comego hi a ação” e na medida em
siveis. Esta separação, esta linha fronteiriça entre as coisas que fazemos do verbo o representante da ação primeira e
¢ as proposições (comer-falar) passa também no “tornad
o da raiz o primeiro estado do verbo. Pois ndo é verdade
possível”, isto é, nas proposições mesmas, entre os nomes que o verbo represente uma ação; ele exprime um aconteci-
€ os verbos ou antes entre as designações e as expressões, mento, o que é completamente diferente. E nem a lingua-
as designações remetendo sempre a corpos ou objetos
con- gem se desenvolve a partir de raizes primeiras; ela se
sumíveis de direito, as expressões a sentidos exprimíveis. rganiza em torno de elementos formadores que determinam
Mas a linha fronteiriça não operaria esta separação das sé- seu todo. Mas se a linguagem não se forma progressiva-
ries na superfície se não articulasse enfim o que “mente segundo a sucessio de um tempo exterior, não
separa,
uma vez que opera de um lado e de outro por uma só ¢ acreditaremos, por isso, que sua totalidade seja homogénea.
mesma potência incorporal, aqui definida como sobrevindo É verdade que os “fonemas” asseguram toda distinção lin-
aos estados de coisas e lá como insistindo nas proposições. giifstica possivel nos “morfemas” e os “semantemas”, mas,
(É por isso que a própria linguagem não tem senão uma inversamente, são as unidades significantes e morfolégicgs
potência, embora tenha várias dimênsões). A linha fron- que determinam nas distingdes fonemiticas aquelas que são
teiriça faz pois convergir as séries divergentes; pertinentes para uma língua considerada. O todo não
mas assim
cla não suprime nem corrige sua divergência. pode pois ser descrito por um movimento simples, mas por
Pois as faz
convergir não nelas mesmas, o que seria impossí um movimento de ida e de volta, de ação e de reação
vel, mas
em torno .de um elemento paradoxal, ponto que
percorre a lingilísticas, que representa o circulo da proposição 1, E, se
linha ou circula através das séries, centro sempre
deslocado 1. Sobre este processo de volta ou de reação e a temporalidade interna
que implica, ef. a obra de Gustave Guillaume (e a análise que dela faz E.
a ação fônica forma um espaço aberto da linguagem, a
vigesima setima verie:
reação semântica forma um tempo interior sem o qual o
espaço não seria determinado em conformidade com tal ou
Da Oralidade
tal língua. - Ora, independentemente dos elementos e apenas
do ponto de vista do movimento, os nomes e sua declinação
encarnam a ação, enquanto que os verbos e sua conjugação
.encarnam a reação. O verbo não é uma imagem da ação
exterior, mas um processo de reação interior à linguagem.
Eis por que, na sua idéia mais geral, ele envolve a tempo-
ralidade interna da língua. É ele que constitui o anel da
proposição fazendo voltar a significagio sobre a designação
e o semantema sobre o fonema. Mas da mesma forma é
dele que inferimos o que o anel esconde ou enrola, o que
o anel revela uma vez fendido e desdobrado, desenrolado,
estendido em linha reta: o sentido ou o acontecimento
como expresso da proposição.
O verbo tem dois pólos: o presente, que marca sua
relação com um estado de coisas designável em função de
um tempo físico de sucessão;o infinítivo, que marca sua A linguagem é tornada possivel pelo que a distingue.
relação com o sentido ou o acontecimento em função ‘do O que separa os sons e os corpos, faz dos sons os elementos
tempo interno que envolve. O verbo inteiro oscila entre o para uma linguagem. O que separa falar e comer torna a
tivo que representa o círculo desdobrado da palavra possivel, o que separa as proposições e as coisas
Proposição inteira e o “tempo” presente, que fecha, ao torna as proposigdes possiveis. O que torna possivel é a
contrério, o círculo sobre um designado da proposição. superficie e o que se passa na superficie: o acontecimento
Entre os dois, o verbo dobra toda sua gagio em con- como expresso. O expresso torna possivel a expressdo.
formidade com as relações da designação, da manifestação Mas, entdo, encontramo-nos diante de uma última tarefa:
€ da significação — o conjunto dos tempos, das pessoas e retragar a histéria que libera os sons, torna-os independentes
dos modos. O infinitivo puro é o Ajon, a linha reta, a dos corpos. Não se trata majs de uma génese estitica que
forma vazia ou a distância; ele não comporta nenhuma iria do acontecimento suposto à sua efetuagdo em estados
distinção de momentos, mas não cessa de se dividir formal- de coisas e à sua expressio em proposigdes. Trata-se de
mente na dupla direção simultânea do passado e do futuro. uma génese dindmica que vai diretamente dos estados de
O infinitivo não implica um tempo interior & língua sem_ coisas aos acontecimentos, das misturas às linhas puras, da
exprimir o sentido ou o acontecimento, isto é, 6 conjunto profundidade a produgdo das superficies, ¢ que não deve
dos problemas que a língua se coloca. Ele põe a interio- nada implicar da outra génese. Pois, do ponto de vista
ridade da linguagem em contacto com a exterioridade do da outra génese, nós nos dévamos, de direito, comer e falar
ser. Assim, herda da comunicação dos acontecimentos entre como duas séries já separadas na superficie, separadas e
si; e à univocidade se transmite do ser à linguagem, da articuladas pelo acontecimento que resultava de uma e a
exterioridade do ser à interioridade da linguagem. A ela se referia como atributo noemdtico e que tornava a outra
equivocidade é sempre a dos nomes. O Verbo é a univoz” possivel e a ela se referia como sentido exprimivel. Mas
cidade. da_linguagem, sob a forma de um infinitivo não como falar se destaca efetivamentc de comer ou como a
determinado, sem pessoa, sem presente, sem diversidade de superficie ela prépria é produzida, como o acontecimento
- vozes. Assim a própria poesia. Exprimindo na linguagem incorporal resulta dos estados de corpos, é outra questdo.
todos os acontecimentos em um, o verbo infinitivo exprime Quando se diz que o som se torna independente, pretende-se
o acontecimento da linguagem, a linguagem como sendo dizer que deixa de ser uma qualidade especifica atinente
ela própria um acontecimento único que se confunde agora. aos corpos, ruido ou grito, para designar agora qualidades,
com o que a tor ível. manifestar corpos, significar sujeitos e predicados. Justa-
Ortigues em Le Discours et le symbole, Aubier, 1962). Guillaume tira daí mente, o som não toma um valor convencional na desig-
uma concepção origínal do infinitivo nas “ e níveis temporais no sistema nação — e um valor costumeiro na manifestagio, um valor
da’ conjugação francesa”, Cahiers de linguistique struciuraie, = 4, Universite
de Laval, artificial na significagio — sendo porque leva sua indepen-
dência à superfície de uma mais alta instância: a expressi- pulsdes destruidoras e a investir por “simbolizagio” dos
vidade. Sob todos os aspectos a distinção profundidade-su- objetos, interesses e atividades organizadas cada vez melhor.
perfície é primeira relativamente à natureza-convenção, na- As observagBes que propomos concernindo certos deta-
tureza-costume, natureza-artifício, Thes do esquema kleiniano tem somente como objetivo des-
Ora, a história das profundidades começa pelo mais tacar “orientações”. Pois todo o tema das posições implica
terrível: teatro do terror de que Mélanie Klein fez o bem a idéia de orientagdes da vida psiquica e de pontos
inesquecível quadro e em que o recém-nascido, desde o pri- cardeais, de organizagdes desta vida segundo coordenadas e
meiro ano de vida é ao mesmo tempo cena, ator e drama. dimensdes variáveis ou cambiantes, toda uma geografia, toda
A oralidade, a boca e o seio, são primeiramente profundi- uma geometria das dimensdes vivas. Aparece primeiro que
dades sem fundo. O seio e todo o corpo da mãe não são a posigdo parandide-esquizdide confunde-se com o desenvol-
somente divididos em um bom e um mau objeto, mas esva- vimento de uma profundidade oral-anal, profundidade sem
ziados agressivamente, retalhados, esmigalhados, feitos em fundo. Tudo comeca pelo abismo. Mas, a este respeito,
pedaços alimentares. AÀ introjeção destes objetos parciais neste dominio dos objetos parciais e dos pedagos que povoam
no corpo do recém-nascido é acompanhada de uma projeção a profundidade, não estamos seguros de que o “bom objeto”
de agressividade sobre estes objetos internos e de uma re- (o bom seio) possa ser considerado como introjetado
-projeção destes objetos no corpo materno: assim, os tal como o mau. Meélanie Klein mostra ela prépria
pedaços introjetados são também como substâncias vene- que a cisão do objeto em bom e mau na introjeção duplica-
nosas e persecutórias, explosivas e tóxicas, que ameaçam de -se por um despedacamento ao qual o bom objeto ndo
dentro o corpo da criança e não cessam de se reconstituir resiste, uma vez que ndo estamos nunca seguros de que
no corpo da mãe. De onde a necessidade de uma re-intro- ndo esconda um mau pedago. Bem mais, é mau por prin-
jeção perpétua. Todo o sistema da introjeção e da projeção cipio, isto é, a perseguir e perseguidor, tudo o que é pedago;
é uma comunicação dos corpos em profundidade, pela pro- só o integro, o completo é bom; mas, precisamente, a
fundidade. E a oralidade se prolonga naturalmente em um introjeção ndo deixa subsistir o integro2 Eis por que, de
canibalismo e uma analidade em que os objetos parciais são um lado, o equilibric préprio 2 posição esquizéide, de outro
excrementos capazes de fazer explodir tanto o corpo da lado sua relagio com a posição depressiva ulterior não
mãe quanto o corpo da criança, os pedaços de um sendo parecem poder resultar da introjecdo de um bom objeto
sempre perseguidores do outro e o perseguidor sempre como tal e devem ser revisados. O que a posição esqui-
perseguido nesta mistura abominável que constitui a Paixão zóide opGe aos maus objetos parciais introjetados e proje-
tados, tóxicos e excremenciais, orais e anais, não é um bom
do recém-nascido. Os corpos explodem e fazem explodir,
objeto mesmo parcial, é antes um organismo sem partes,
neste sistema da boca-ânus ou do alimento-excremento, a
um corpo sem órgãos, sem boca e sem anus, tendo renun-
universal cloaca!. Este mundo dos objetos parciais inter-
ciado a toda introjeção ou projecdo e completo gragas a
nos, introjetados e projetados, alimentares e excremen-
isso. É aqui que se forma a tensio do Id e do ego. O
ciais, nós o chamamos mundo dos simulacros. Mélanie
que se opde sdo duas profundidades, a profundidade vazia
Klein o descreve como posição paranóide-esquizóide da
em que giram ¢ explodem pedagos e a profundidade plena
criança. A isto sucede uma posição depressiva que marca — duas misturas, uma de fragmentos duros e sólidos, que
um duplo progresso, uma vez que a crianga se esforga por altera; a outra liquida, fluida e perfeita, sem partes nem
reconstituir um objeto completo no modo do bom e por se alteragdo, porque tem a propriedade de fundir e de soldar
identificar ela prépria a este bom objeto, por conquistar
(todos os ossos em um bloco de sangue). Nio parece
assim uma identidade correspondente, pronta neste novo neste sentido que o tema uretral possa ser posto no mesmo
drama a partilhar as ameagas e os sofrimentos, todas as plano que o tema anal; pois, se os excrementos são sempre
paixdes que o bom objeto sofreu. A “identificação” depres- órgãos e pedagos, ora temidos como substéncias téxicas, ora
siva, com sua confirmação do superego e sua formagdo do utilizados como armas para esmigalhar ainda outros pedacos,
ego, toma aqui o lugar da “introjegdo-projegdo” paranéide e a urina, ao contrario, da testemunho de um principio molha-
esquizéide. Tudo se prepara enfim para o acesso a uma do capaz de ligar todos os pedagos e de superar o esmiga-
posição sexual marcada por Edipo, através de novos perigos, lhamento na profundidade plena de um corpo agora sem
em que as pulsdes libidinosas tendem a se destacar das
2. Cf as observações de Mélanie Klein neste sentido e suas referéncias
à tese de W. Fairbain segundo 2 qual “no começo só o objeto mau é interna-
1. CE Mélanie Klein, La Psychanalyse des enfants, 1932, trad. Boulaoger, lizado” (mas M. Klein rocusa esta tese); Dévaloppements de la psychanalyse,
PUF.: por exemplo, a belissima descrigho à p. 159. 1952, trad. Baranger, P.U.F, pp. 277-279.
órgãos?. E ao supor que o esquizofrênico, com completo. Se manifesta a mais viva crueldade tanto quanto
toda a
ln_lguagem adquirida, regressa até esta posição esquizóide, amor e proteção, não é sob um aspecto parcial e dividido,
não nos espantamos de reencontrar na linguagem esquiz
ofrê- mas enquanto objeto bom e completo, cujas manifestações
nica a dualidade e a complementaridade das palavr emanam de uma alta unidade superior. Em verdade, o
as-pai-
xÕões, pedagos excremenciais explodidos e bom objeto tomou sobre si os dois pólos esquizóides, o dos
palavras-ações,
bloc_os soldados por um princípio de água ou de fogo., objetos parciais de que extrai a força e o do corpo sem
Enta_\o, tudo se passa em profundidade, sob órgãos de que extrai a forma, isto é, a completude ou a
o domínio do
sentido, entre dois não-sentidos do ruído puro, o não-sen- integridade. Ele mantém pois relações complexas com o
tido do corpo e da palavra explodidos, o não-sentido Id como reservatório de objetos parciais (introjetados e
do
bloco de_corpos ou de palavras inarticuladas — projetados em um corpo despedaçado) e com o ego (como
o “isto não
tem senndo." como processo positivo dos corpo completo sem órgãos). Enquanto é o princípio da
dois lados. A
mesma dua'lldade de pólos complementares se
reencentra na posição depressiva, o bom objeto não sucede à posição
esquizofrenia entre as reiteragdes e as persev esquizóide, mas se forma na corrente desta posição, com
eragies, por
exemplo, entre os trincamentos de maxila
res e as catatonias, empréstimos, bloqueios e impulsos que dão testemunho de
:ilmasdtestemunhando dos objetos internos e do corpo qué uma constante comunicação entre os dois. No limite, sem
espedaçam e que os despedaçam dúvida, o esquizóide pode reforçar a tensão de sua própria
ao
outros manifestando pelo cgrpoçsem ôrgãl:s pósição para se fechar às revelações da altura ou da verti-
e.smo fempo, os
Se o bom objeto não é como tal introjetado, calidade. Mas, de qualquer maneira, o bom objeto da
parece- altura mantém uma luta com os objetos parciais, cujo ganho
-nos, € porque desde o comego pertence a uma
outra dimen- é a forga em um afrontamento violento das duas dimensges.
são. É ele que tem uma outra “posição”, O bom objeto
eSt,ª em altura, ele se mantém em altura O corpo da crianga é como uma fossa cheia de animais
e não se deixa selvagens introjetados que se esforçam por tragar no ar o
Cair, sem mudar de natureza. Por altura não se deve
en.rz.nder uma profundidade invertida, bom objeto, o qual por sua vez se comporta diante deles
mas uma dimensão como uma ave de rapina sem piedade. Nesta situagdo, o
original que se distingue pela natureza
do objeto que a ego se identifica de um lado ao prdprio bom objeto, mode-
ocupa como da instância que a percorre. O superego não la-se a partir dele em um modelo de amor, participa ao
começa com os primeiros objetos introjetados
, como diz mesmo tempo de sua poténcia e de seu ódio contra os
Mélanie Klein, mas com este bom objeto que
permanece objetos internos, mas também de seus ferimentos, de seu
em .altum. Freud insistiu freqiientemente sobre sofrimento sob o golpe destes maus objetos *. E, de outro
a impor-
tância desta translação do profundo em lado, ele se identifica a estes maus objetos parciais que
alto, que marca
entre o Id e o superego toda uma mudança se esforgam por agarrar o bom objeto, ele lhes dá ajuda,
de orientação
e uma reorganização fundamental da vida alianga e mesmo piedade. Tal é o turbilhdo Id-ego-supe-
psiquica. En-
quanto a profundidade tem uma tensão interna determ
inada rego, em que cada qual recebe tantos golpes quantos
Pejas categorias dinâmicas de continente-conteúd
o, vazio- distribui e que determina a posição manfaco-depressiva.
-ple!w, gordo-magro etc., a tensão própria à altura é Com relagdo ao ego, o bom objeto enquanto superego exerce
a da
Yerticalidade, da diferença dos tamanhos, do grande todo o seu ódio na medida em que o ego é aliado dos
e do
Pequeno. Por oposição aos objetos parciais introjetados objetos introjetados. Mas lhe da ajuda e amor, na medida
,
que não exprimem a agressividade da criança sem em que o ego passa para seu lado e tenta a ele se identificar.
exprimir
também uma agressividade contra ela e que são Que o amor e o ódio não remetam a objetos parciais,
maus, peri-
80s0s por isso mesmo, o bom objeto como tal é um mas exprimam a unidade do bom objeto completo, isto se
Ã)bjeto deve compreender em virtude da “posição” deste objeto, de
3. Mélanie Klein não estabelece dife sua transcendéncia em altura. Para além de amar ou odiar,
ajudar ou bater, há “furtar-se”, “retirar-se” na altura. O
dência a negligenciar importincia ¢ o din amismo do ter bom objeto é por natureza um objeto perdido: isto é, ele
Nós o vimos preced entemente a Mme Pankow. Mas É ainda mal o
ccó
ãos.
iplo, Décelop pemento de la jchanaly em
um senho de cegueira e de roupa abotoada até o pescoçoé interpretado como 4. A
se aplica ao bom
divisio ferido-indene não se
objeto completo da posição
confunde com
depressiva:
parcial-
cf, Mélanie Klein,
mas
Do Pensamento
Da Ordem Primaria e da
Organizacdo Secundaria
& s:Apendico 1
condições em si mesma em série, mas
2 && forma serial. Sobre i cn
é
fonemas, morfemas e semantemas em sua relagdo origindria
com a sexualidade não formam ainda de maneira nenhuma
unidades de designação, de manifestação ou de significação. perversio à subversio. O prrt_)blema da perversio é bem
À sexualidade não é nem designada, nem manifestada, nem atestado pelo mecanismo essencial que lhe corresponde, o da
significada por eles; ela é, antes, assim como a superfície Verleugnung. Pois se trata, na _Verleugmfng. de manter a
que eles forram e eles são como o forro que edifica a super- imagem do falo, apesar da a\ls§ncna_ de pénis na ml&&)er: esta
ficie. Trata-se de um duplo efeito de superfície, avesso operagio supde uma dessexualizagdo como conseqiiéncia de:
e
direito, precedendo qualquer relação entre estados de coisas castração, mas também um reinvestimento do objeto sexua
€ proposições. Eis por que quando uma outra superfície enquanto sexual pela energia dmsexuxh'mdª_: eis por que a
se desenvolve com outros efeitos que fundam, enfim, Verleugnung não consiste em uma alucinagio, mas em um
as
designações, as manifestações e as significações sob o título saber esotérico?. Assim Carroll, perverso sem crime, per-
de unidades lingiiísticas ordenadas, os elementos como verso não-subversivo, gago e canhoto, serve-se da energia
os
fonemas, os morfemas e os semantemas parecem retomados dessexualizada do aparelho fotogrâ.fico como de_ um olho
neste novo plano, mas parecem perder toda sua ressonâ espantosamente especulativo para investir o objeto sexual
ncia
sexual, esta parece reprimida ou neutralizada e as séries por exceléncia, a menina-falo._ . o
de
base varridas pelas novas séries de amplitude. Tanto que a Tomado nas malhas do sistema da linguagem, há pois
sexualidade não existe mais senão como alusão, vapor
ou um co-sistema da sexualidade que imita o sentido, o não-
poeira que dá testemunho de um caminho pelo quel a lin- sentido e sua organização: simulacro para um fantasma.
guagem passou, mas que não cessa de jogar fora, de apagar Mais ainda, através de tudo o que a llfnguagem desxgnar_á,
como uma dentre tantas lembranças de infância, extrema
- manifestará, significará, haverá uma hlstom% se:x‘ual que não
mente incômodas. serd jamais designada, manifestada nem significada por si
É ainda mais complicado, todavia. Pois, se é verdade mesma, mas que coexistirá em todas as operacBes da
que o fantasma não se contenta em oscilar entre o extremo linguagem, recordando o pertencer sexual dos elementos
da profundidade alimentar e o outro extremo representado lingiiisticos formadores. É este estatuto da sexualidade que
pela superficie metafísica, se ele se esforça Por projetar sobre explica a repressdo. Não basta fllzer que o conceito _de
esta superfície metafísica o acontecimento que corresponde repressio em geral é topico: ele é topoldgico; a repressio
aos alimentos, como não desprenderia zambém os aconteci
- é a de uma dimensão por outra. É assim que a altu_ra,
mentos da sexualidade? Não somente “também”, mas de isto é, o superego de que vimos a prec(:cndade de fon{lagaf),
uma maneira toda particular. Pois, nós o vimos, o fantasma reprime a profundidade em que as pulsdes sexuais estdo tdo
não recomeça eternamente seu movimento intrínse
co de estreitamente ligadas com as pulsSes destruidoras. É mesmo
dessexualização sem se voltar sobre seu começo
sexual sobre este lago ou sobre os objetçs internos que o represen-
extrinseco. Este é um paradoxo de que não encontramos tam que recai a repressão dita primária. A repressão signi-
equivalente nos outros casos de projeção sobre
a superfície fica então que a profundidade é como que recoberta pela
metafísica: uma energia dessexualizada investe ou reinvest nova dimensão e que a pulsão assume uma nova figura em
e
um objeto de interesse sexval enquanto tal — e
se ressexua- conformidade com a instância repressora, pelo menos no
liza assim de um novo modo. Tal é o mecanismo mais começo (aqui isolamento das pulsões sexuais relativamente
geral da perversão, com a condição de distingui-la
como arte às pulsões destruidoras e piedosas intenções de depo)_. Q.ue
de superfície e a subversão como técnica da profundidade. a superfície, por sua vez, seja objeto de uma repressão dita
Assim como observava Paula Heimann, a maioria dos
crimes secundária e, por conseguinte, não seja de for_ma nenhumz?
“sexuais” são inadequadamente chamados de perversos; idêntica à consciência, explica-se de uma maneira complexa:
de-
Vem ser postos na conta da subversão das profundidades segundo a hipótese de Freud primeiro, o jogo das duas
que as pulsões sexuais estão ainda estreitamente intricadas séries distintas forma realmente uma condlçao. essencial da
com as pulsões devoradoras e destruidoras. Mas a perver- repressão da sexualidade e do caráter retroativo de_sta re-
são como dimensão de superfície ligada às zonas pressão. Porém, mais ainda, mesmo qu;ndo ela não poe
erógenas, ao
falo de concordância e de castração, à relação da superfíc em jogo senão uma série parcial ho'mtzgsnea ou uma série
ie
física e da superfície metafísica, coloca somente global continua, a sexualidade não dispde das cqndlgoes que
o problema
do investimento de um objeto sexual por uma energia tornariam possivel sua manutenção na .oonsméncm .(a_saber,
desse-
xvalizada como tal. A perversão é uma estrutura de a possibilidade de ser designada, manifestada e sngmficad:
super-
fície que se exprime como tal, sem se efetuar necessariamente pelos elementos lingiifsticos que lhe correspondem).
em comportamentos criminosos de natureza subversi
va; “saber” que Lacan e alguns de seus disctpulos
ermos do “saber” u
crimes podem sem dúvida daí decorrer mas por regressão da colocãin & ,‘,’.i‘?,u'..’.'; e perversão: cf. a coletânea ‘Le Désir et la Perversion,
Seuil, 1967. Ct. Apéndice IV.
terceira razão deve ser procurada do lado da superfície me- As condutas de perversio não sdo também separdveis de
tafísica, na maneira pela qual esta Teprime precisamente a um movimento da superficie metafisica que, ao invés de
superfície sexual ao mesmo tempo em que impõe à energia reprimir a sexualidade, serve-se da energia dessexualizada
de pulsão a nova figura da dessexualização. Que a superfície para investir um elemento sexual enquanto tal e ffxa-lo com
metafísica, por sua vez, não seja de forma nenhuma idêntica uma insustentável atenção (segundo sentido da fixação).
a uma consciência não tem nada de espantoso se considera- O conjunto das superficies constitui a organização dita
mos que as séries de amplitude que a caracterizam ultra- secundária. Esta se define, pois, muito bem pela “repre-
passam essencialmente o que pode ser consciente e formam sentação verbal”. E se a representação verbal deve ser
um campo transcendental impessoal e pré-individual. Fi- distinguida estritamente da “representação de cb]eto'_ª é por-
nalmente, a consciência ou antes o pré-consciente não tem que ela concerne a um acontecimento incorporal e não a um
outro campo além daquele das designações, manifestações e corpo, uma ação, paixão ou qualidade de corpo. A repre-
significações possíveis, isto é, a ordenação da linguagem que sentação verbal é esta representação da qual vimos que
decorre de tudo o que precede; mas o jogo do sentido e do envolvia uma expressio. Ela é composta de um expresso
não-senso e os efeitos de superfície tanto sobre a superfície e de um exprimente e se conforma segundo a torção de
metafísica como sobre a superfície física não pertencem à um no outro: ela representa o acontecimento como expresso,
consciência mais do que as ações e paixões da mais recôndita faz com que ele exista nos elementos da linguagem e, inver-
profundidade. O retorno do reprimido faz-se segundo o samente, conferc a estes um valor expressivo, uma função
mecanismo geral da regressão: há regressão desde que uma de “representantes” que não possufam por si mesmos. Toda
dimensão se abate sobre outra. Sem ddvida, os mecanismos a ordenação da linguagem daf decorrerd, com seu cddigo
de regressão são muito diferentes segundo os acidentes pré- de determinag@es tercidrias fundadas por sua vez em repre-
prios a esta ou aquela dimensdo, por exemplo, a queda da sentações “objetais” (designação, manifestação. significação:
altura ou os orificios da superficic. Mas o essencial está indivíduo, pessoa, conceito; mundo, ego e Deus). Mas,
na ameaça que a profundidade faz pesar sobre todas as outras o que conta aqui é a organização preliminar, fundadora ou
dimensGes; assim, ela é o lugar da repressio primitiva e poética: este jogo das superficics em que se desdobra somen-
das “fixações” como termos últimos das regressdes. Em te um campo acdsmico, impessoal, pré-individual, este exer-
regra geral há uma difercnca de natureza entre as zonas de cicio do nfo-senso e do sentido, este desdobramento de séries
* superficie e os estigios de profundidade; por conseguinte, que precedem os produtos elaborados da génese estdtica.
entre uma regressfo à zona anal erdgena, por exemplo, e Do ordenamento tercidrio é preciso, pois, remontar até à
Uma regressdo ao estágio anal como estégio digestivo-destrui- organizagdo secundária; depois remontar até à orflem pri-
dor. Mas os pontos de fixagdo, que são como fardis maria, segundo a exigéncia dindmica. Seja a tdbua n!as
atraindo os processos regressivos, esforgam-se sempre por categorias da génese em relação com os mor'nent_os da lin-
obter que a regressio ela prépria regresse, mudando de
guagem: paixdo-agio (ruide), possessfio—privagao (vo,z‘),
natureza ao mudar de dimensão até que alcance a profun-
didade dos estagios em que todas as dimensdes se abismam. intenção-resultado (palavra). AÀ organização seçundana
Resta uma última distinção entre a regressio como movi- (verbo ou representação verbal) resulta ela própria deste
mento pelo qual uma dimensão se abate sobre as precedentes longo percurso, surge quando o acontecimento soube clevar
€ este outro movimento pelo qual uma dimensdo reinveste a o resultado a uma segunda potência e o verbo dar às palavras
precedente a0 seu préprio modo. Ao lado da Tepressio e elementares o valor expressivo de que elas ainda estavam
do retorno do reprimido é preciso dar lugar a estes processos destituidas. Mas todo o percurso, todo o caminho é esca-
complexos pelos quais um elemento caracterfstico de uma lonado pela ordem primária. Na ordem primária as pal_a—
certa dimensdo recebe como tal um investimento de energia vras sdo diretamente ações ou paixdes do corpo, ou eqtao
completamente diferente correspondendo à outra dimensão: vozes retiradas. — São possessdes demoniacas ou então priva-
por exemplo, as condutas de subversio criminosas ndo sio ções divinas. As obscenidades e as injirias dão uma iq&ia,
separdveis de uma operação da voz do alto, que reinveste o por regressão, deste caos em que se combinfe\.m_respechv?-
processo destrutivo de profundidade como se fosse um dever mente a profundidade sem fundo e a altura ilimitada; pois,
para sempre fixado e o ordena a titulo do superego ou do por mais intima que seja sua ligação, a palavra obscena
bom objeto (assim, na histéria de lorde Arthur Savile) 2. figura antes a ação direta de um corpo sobre um outro que
3. Treud mostrava a oxisténcia de crimes inspirados pelo superego — mas sofre a paixdo, enquanto que a injiria ao mesmo tempo
não É forgosamente, 20 que nos parece, por intermédio de um . seotimento
de calpabilidade prelimings a0 ccime, T © persegue aquele que se retira, retira-lhe toda voz, é ela
terceira razão deve ser procurada do lado da superfície me- As condutas de perversio não sdo também separdveis de
tafísica, na maneira pela qual esta Teprime precisamente a um movimento da superficie metafisica que, ao invés de
superfície sexual ao mesmo tempo em que impõe à energia reprimir a sexualidade, serve-se da energia dessexualizada
de pulsão a nova figura da dessexualização. Que a superfície para investir um elemento sexual enquanto tal e ffxa-lo com
metafísica, por sua vez, não seja de forma nenhuma idêntica uma insustentável atenção (segundo sentido da fixação).
a uma consciência não tem nada de espantoso se considera- O conjunto das superficies constitui a organização dita
mos que as séries de amplitude que a caracterizam ultra- secundária. Esta se define, pois, muito bem pela “repre-
passam essencialmente o que pode ser consciente e formam sentação verbal”. E se a representação verbal deve ser
um campo transcendental impessoal e pré-individual. Fi- distinguida estritamente da “representação de cb]eto'_ª é por-
nalmente, a consciência ou antes o pré-consciente não tem que ela concerne a um acontecimento incorporal e não a um
outro campo além daquele das designações, manifestações e corpo, uma ação, paixão ou qualidade de corpo. A repre-
significações possíveis, isto é, a ordenação da linguagem que sentação verbal é esta representação da qual vimos que
decorre de tudo o que precede; mas o jogo do sentido e do envolvia uma expressio. Ela é composta de um expresso
não-senso e os efeitos de superfície tanto sobre a superfície e de um exprimente e se conforma segundo a torção de
metafísica como sobre a superfície física não pertencem à um no outro: ela representa o acontecimento como expresso,
consciência mais do que as ações e paixões da mais recôndita faz com que ele exista nos elementos da linguagem e, inver-
profundidade. O retorno do reprimido faz-se segundo o samente, conferc a estes um valor expressivo, uma função
mecanismo geral da regressão: há regressão desde que uma de “representantes” que não possufam por si mesmos. Toda
dimensão se abate sobre outra. Sem ddvida, os mecanismos a ordenação da linguagem daf decorrerd, com seu cddigo
de regressão são muito diferentes segundo os acidentes pré- de determinag@es tercidrias fundadas por sua vez em repre-
prios a esta ou aquela dimensdo, por exemplo, a queda da sentações “objetais” (designação, manifestação. significação:
altura ou os orificios da superficic. Mas o essencial está indivíduo, pessoa, conceito; mundo, ego e Deus). Mas,
na ameaça que a profundidade faz pesar sobre todas as outras o que conta aqui é a organização preliminar, fundadora ou
dimensGes; assim, ela é o lugar da repressio primitiva e poética: este jogo das superficics em que se desdobra somen-
das “fixações” como termos últimos das regressdes. Em te um campo acdsmico, impessoal, pré-individual, este exer-
regra geral há uma difercnca de natureza entre as zonas de cicio do nfo-senso e do sentido, este desdobramento de séries
* superficie e os estigios de profundidade; por conseguinte, que precedem os produtos elaborados da génese estdtica.
entre uma regressfo à zona anal erdgena, por exemplo, e Do ordenamento tercidrio é preciso, pois, remontar até à
Uma regressdo ao estágio anal como estégio digestivo-destrui- organizagdo secundária; depois remontar até à orflem pri-
dor. Mas os pontos de fixagdo, que são como fardis maria, segundo a exigéncia dindmica. Seja a tdbua n!as
atraindo os processos regressivos, esforgam-se sempre por categorias da génese em relação com os mor'nent_os da lin-
obter que a regressio ela prépria regresse, mudando de
guagem: paixdo-agio (ruide), possessfio—privagao (vo,z‘),
natureza ao mudar de dimensão até que alcance a profun-
didade dos estagios em que todas as dimensdes se abismam. intenção-resultado (palavra). AÀ organização seçundana
Resta uma última distinção entre a regressio como movi- (verbo ou representação verbal) resulta ela própria deste
mento pelo qual uma dimensão se abate sobre as precedentes longo percurso, surge quando o acontecimento soube clevar
€ este outro movimento pelo qual uma dimensdo reinveste a o resultado a uma segunda potência e o verbo dar às palavras
precedente a0 seu préprio modo. Ao lado da Tepressio e elementares o valor expressivo de que elas ainda estavam
do retorno do reprimido é preciso dar lugar a estes processos destituidas. Mas todo o percurso, todo o caminho é esca-
complexos pelos quais um elemento caracterfstico de uma lonado pela ordem primária. Na ordem primária as pal_a—
certa dimensdo recebe como tal um investimento de energia vras sdo diretamente ações ou paixdes do corpo, ou eqtao
completamente diferente correspondendo à outra dimensão: vozes retiradas. — São possessdes demoniacas ou então priva-
por exemplo, as condutas de subversio criminosas ndo sio ções divinas. As obscenidades e as injirias dão uma iq&ia,
separdveis de uma operação da voz do alto, que reinveste o por regressão, deste caos em que se combinfe\.m_respechv?-
processo destrutivo de profundidade como se fosse um dever mente a profundidade sem fundo e a altura ilimitada; pois,
para sempre fixado e o ordena a titulo do superego ou do por mais intima que seja sua ligação, a palavra obscena
bom objeto (assim, na histéria de lorde Arthur Savile) 2. figura antes a ação direta de um corpo sobre um outro que
3. Treud mostrava a oxisténcia de crimes inspirados pelo superego — mas sofre a paixdo, enquanto que a injiria ao mesmo tempo
não É forgosamente, 20 que nos parece, por intermédio de um . seotimento
de calpabilidade prelimings a0 ccime, T © persegue aquele que se retira, retira-lhe toda voz, é ela
própria uma voz que se retiraé, A estreita combinação equivocidade, da eminência e da analogia: como se houves-
das duas, das palavras obscenas e injuriosas, testemunha se uma eminência a mais, um equívoco excessivo, uma ana-
m a;
valores propriamente satíricos da linguagem; chamamos de logia supranumerária que, ao invés de se acrescentare
ao contrário, seu fechamento. Urx_l equi-
satírico o processo pelo qual a regressão ela própria regride, outras, asseguram,
isto é, não é nunca uma regressão sexual em superfície sem voco tal que ndo pode mais haver um outro “depois”; tal
ser também uma regressão alimentar digestiva em profundi- é o sentido da formula: há também a sexualidade. É O
dade, que não se detém senão na cloaca e não persegue a mesmo que acontece com estes personagens fle Dostoiéxfsk.\,
voz retirada senão descobrindo seu solo excremencial que que empregam toda sua voz para dizer: há também isto,
ela deixa, assim, atrás de si. Fazendo ele mesmo mil ruídos observai caro senhor e ainda isto e ainda aquilo, caro se-
e retirando ele próprio sua voz, o poeta satírico, o grande nhor... Mas, com a sexualidade chega-se a um _aimia gue
Pré-socrático em um só e mesmo movimento do mundo, fecha todos os ainda, a um equívoco que torna impossível
persegue Deus com injirias e chafurda no excremento. A a perseguição de equivocidades ou a continuação de analo-
sitira é wma arte prodigiosa das regressdes. gias ulteriores. Eis por que, ao mesmo tempo em que 2
se desdobra sobre a superfície física, ela nos
Contudo, a altura prepara para a linguagem novos va- sexualidade
lores, em que ela afirma sua independéncia, sua diferenga faz passar da voz à fala e enfeixa todas as palavras em um
radical da profundidade. A ironia aparece cada vez que a conjunto esotérico, em uma história sexual que não será
linguagem se desdobra segundo relagdes de eminéncia, de designada, manifestada nem significada por elas, mas que
equivocidade, de analogia. Estes trés grandes conceitos da Thes será estritamente coextensiva e consubstancial. O que
tradição são a fonte de onde todas as figuras da retérica representam então as palavras, todos os elemen tos forma-
reação
decorrem. Assim, a ironia encontrari uma aplicação natu- dores da língua que não existem senão em relação e
outros, fonema s, morfem as, semant emas, não
ral na ordenação tercidria da linguagem, com a analogia das uns com os
a
significagdes, a equivocidade das designações, a eminéncia formam sua totalidade senão do ponto de vista desta hxs‘ton
daquele que se manifesta — e todo o jogo comparado do idéntica a eles mesmos. Há, pois, um equivoco
jmanente
ego, do mundo ¢ de Deus na relagdo do ser e do individuo, 2 mais para a voz, com relagdo à voz: um equivoco que
algo
da representação e da pessoa, que constitui as formas clissica fecha a equivocidade e torna a linguagem madura para
e romantica da ironia. Mas, já no processo primério, a voz de diferente. Este algo de diferen te é o que vem da outra
quando
do alto libera valores propriamente irônicos; ela se retira por superficie, dessexualizada, da superficie metafisica,
trás de sua eminente unidade, faz valer a equivocidade de seu passamos, enfim, da palavra a0 verbo, quando compomos
as pa.}avras
tom e a analogia de seus objetos, em suma, ela dispde de um verbo único no puro infinitivo com todas
todas as dimensSes de uma linguagem antes de dispor do reunidas. Este algo de diferen te é a revelag do do univoco,
Univoc idade, isto é, o Aconte ciment o que
principio de organizagio correspondente. Assim, há uma o advento da
forma primordial de ironia platénica, reerguendo a altura, comunica a univocidade do ser 2 linguagem.
destacando-a da profundidade, reprimindo e combatendo a A univocidade do sentido apreende a linguagem em seu
sitira e os satiricos, colocando precisamente toda sua “iro- sistema completo, exprimente total para o tinico expresso,
nia” em perguntar se por acaso haveria uma Idéia da lama, o acontecimento. Assim, os valores de humor se distinguem
do pélo, da sujeira ou do excremento... E, contudo, o N dos da ironia: o humor é a arte das superficies, da relagdo
que faz calar a ironia não é um retorno reforçado dos valores complexa entre as duas superficies. A partir de um equi-
— A partir
satiricos, assim como um tornar a subir da profundidade - voco a mais, o humor constréi toda a univocidade.
sem fundo. Alids, nada volta a subir salvo a superficie; é equivo co propri amentc sexual que fec'ha toda equivaci-
do
xdage
preciso ainda que haja uma superficie. Quando a altura, dade, o humor isola um Univoco dessexualizado, umvof.
e da lingua gem; tqda a organi zacio
com efeito, torna possivel uma constituição das superficies, especulativa do ser
com o desprendimento correspondente das pulsões sexuais, secundéria, em uma palavraS. É preciso imaginar um outro
acreditamos que alguma coisa sobrevém, capaz de vencer a Lacan, pelo menos tal
ironia em seu proprio terreno, isto é, no terreno mesmo da X 105 seguir aqui a tese de éJacques em PE Tnconscient”,
S, julhoede 1961,
como a modemes, Tor Laplanche ss.).Leciaire com esta tese,
De acordo ento
4. Com efeito, aquele que injuria reclama a expulsfo de sua vitima, Temps p, 111 e um deslizam perpétao
proibe-ihe de responder, mas também se retira fingindo 0 miximo de desgosto. À ordem primária da O lingusge m definirse -ja por para cada
Tudo isto dá testemunho do fato da injiria Betencer à posição maniaço-de- te sobre outrassignificad
3o significanremeter o, supondo-se deum umúnicostriesentido
de equivalon tes
pressiva (frustração), enquanto que a obscenidade remete À posição esquizbide palavra e às palavras por meio
excremencial (ação-paixão alucinadas). À união íntima da injória e de obsce- Qque este sentido Ihe abre.m segundo que uma palavra fem vÁriosestável
Ao contrário, desdemetáfora,
Sentidos que se organiza ao mesmo tempo a lei da ela se toroa
nidade não se explica, pois somente, como o crê Ferenczi, pela repressão
objetos de prazer infantil que dariam “sob a forma de palavrões ¢ maldições”, do uma certa mancira, em que a linguagem escapa q20
mas pela fusão direta das duas posições fundamentais. processo primirio e funda o processo secundário. B pois a univocidade
ArciNwivLY
estóico, um outro Zen, um outro Carroll: com uma mão
masturbando-se, em um gesto excessivo, com a outra escre-
vendo sobre a arcia palavras mágicas do acontecimento
puro abertas ao unívoco, Mind — I believe — is Essence
— Ent — Abstract — that is — an Accident — which we
— that is to say — I meant —, fazendo assim passar a
energia da sexualidade ao assexual puro, não cessando,
contudo, de perguntar, “o que é uma garotinha?”, pronto
para substituir a esta questão o problema de uma obra de
arte por fazer, que unicamente responderá a ela. Assim,
Bloom na praia... Sem dúvida, a equivocidade, a analo-
gia, a eminéncia retomardo seus direitos com a ordenação
tercidria, nas designações, significagdes, manifestações da
linguagem quotidiana submetidas às regras do bom senso
e do senso comum. Considerando entdo o perpétuo entre-
lagamento que constitui a légica do sentido, aparece que
esta ordenacdo final retoma a voz do alto do processo pri-
mário, mas que a organizagio secunddria em superficie
retoma alguma coisa dos ruidos mais profundos, blocos e
elementos para a Univocidade do sentido, em suma, instante
para uma poesia sem figuras. E que pode a obra de arte
a não ser retomar sempre o caminho que vai dos ruidos à
voz, da voz & palavra, da palavra ao verbo, construir esta
1. Simulacroe -
Musik fiir ein Haus, para aí encontrar sempre a indepen-
déncia dos sons e aí fixar esta fulguragdo do univoco, acon-
tecimento recoberto depressa demais pela banalidade quo-
tidiana ou, ao contrério, pelos sofrimentos da loucura. Filosofia Antiga
,
os Corpos-Linguagem
O VISIVEL E O iNVISIVEL
M. Merleau-Ponty (Col. debates)
O SENTIDO E A MASCARA
Gerd A. Bornheim (Col. debates)
O que é o sentido?
Como a noção de fungdo logica pode ser aplicada &
Arte?
Qual a relagdo entre o sentido e a mascara?
Forma x Conteúdo
em Filosofia, Teoria Literária, Teatro
Forma x Conteúdo
um velho tema, uma colocação nova: vertentes