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LOGICA DO SENTIDO

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Sumário
© 1969 by Les Bditions de Minuit

Direitos em lingua portuguesa reservados à


EDITORA, PERSPECTIVA S.A.
Av. Brigadeiro Luis Antônio, 3025
Telefone: 288-8388
01401 Sio Paulo Brasil
1975

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>. Prólogo: de Lewis Carroll aos Estóicos ..........


Primeira Série de Paradoxos: Do Puro Devir
Distinção platônica entre as coisas medidas e o devu'
louco — À identidade infinita— As aventuras de Alice
on “acontecimentos”.
FICHA CATALOGRÁFICA
Segunda Série de Paradoxos: Dos Efeitos de Superfície
(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte, Distinção estóica dos corpos ou estados de coisas e dos
. CAMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP) efeitos incorporais ou acontecimentos — Corte da rela-
ção causal — Fazer subir 2 superfície... — Descoberta
da superfície em Lewis Carroll.
Deleuze, Gilles.
D3SL Lóglcn do Sentido; tradução de Luiz Roberto Sali- Terceira Série: Da Proposição ................. 13
nas Fortes. São Paulo, Perspectiva, Ed. da Universidade Designação, manifestação, significação: suas relações e
de São Paulo, 1974. sua circularidade — Haverá uma quarta dimensão da
(Estudos, 35) proposição? — Sentido, expressão e acontecimento —
Bibliografia. Dupla natureza do sentido: exprimível da proposição e
atributo do estado de coisas, insistência e extra-ser.
1. Paradoxo 2. Razdo 3. Semantica (Filosofia)
4. Significado (Filosofia) 1, Titulo. Quarta Série: Das Dualidades ................. 25
Corpo-linguagem, comer-falar — Duas espécies de pala-
CDD-165 vras — Duas dimensões da proposição: as designações e
-160 as expressões, as consumações ¢ o sentido — As duas
-149.94 séries.
74-0979
Quinta Série: Do Sentido ............. ... 31
A proliferação indefinida— O desdnbramenw estéril —
A peutralidade ou terceiro estado da esséncia — O absur-
Indice para o catálogo sistemitico:
do ou os objetos impossiveis.
1. Paradoxos: Légica 165
Sexta Série: Sobre a Colocação em Séries . ...... . 39
2. Razão: Légica 160 A forma serial e as séries heterogéneas — Sua consti-
3. Semantica: Filosofia 149,94 tuição — Para o que convergem estas séries? — O para-
doxo de Lacan: o estranho elemento (lugar vazio ou
4. Significado: Seméntica: Filosofia 149.94 ocupante sem lugar) — A loja da ovelha,
Sétima Série: Das Palavras Esotéricas .......:.. 45 Décima Sexta Série: Da Génese Estitica Ontolégica 113
Síntese de contração sobre uma série (conexão) — Sín- ‘Génese do individuo: Leibniz — Condigio da “com-
tese de coordenação de duas séries (conjunção) — Sín- possibilidade” de um mundo ou da convergéncia das
tese de disjunção ou de ramificação das séries: o proble- séries (continnidade) — Trensformagdo do aconteci-
ma das palavras-valise. mento em predicado — Do individuo à pessoa —
Pessoas, propriedades e classes.
Oitava Série: Da Estrutura .... 51
Paradoxo de Lévi-Sirauss — Condição de uma estrutura Décima Sétima Série: Da Génese Estatica Logica . . 123
— Papel das singularidades.
Passagem 2s dimensões da proposição — Sentido e pro-
posição — Neutralidade do sentido — Superficie e forro.
Nona Série: Do Problemático ............ ee 55
Singularidades e acontecimentos — Problema e aconte- Décima Oitava Série: Das Três Imagens de Filósofos 131
cimento — As matemáticas recreativas — Ponto aleató-
Tio & pontos singulares. Filosofia e altura — Filosofia e profundidade — Um
novo tipo de filósofo: o estóico — Hércules e as super-
fícies.
Décima Série: Do Jogo Ideal ......... e 61
Regras dos jogos ordindrios — Um jogo extraordinario Décima Nona Série: Do Humor ............... 137
— As duas leituras do tempo: Aion e Cronos — Mallar-
mé. Da significagiio à designagio— Estoicismo e Zen — O
discurso clássico e o individuo, o discurso romântico e
a pessoa: a ironia — O discurso sem fundo — O discur-
Décima Primeira Série: Do Não-Senso . . 69 so das singularidades: o humor ou a “quarta pessoa do
Caracteres do elemento paradoxal — Em que ele é não- si m»
senso; as duas figuras do não-senso — As duas formas
do absurdo (sem significagio) que dai decorrem— Co-
pmf:ençn do não-senso ao sentido — O sentido como sima Série: — Sobre o Problema Moral nos Estóicos 145
“efeito”. Os dois pólos da moral: adivinhação fisica das coisas
e uso lógico das representações — Representação, uso
e expressão — Compreender, querer, representar o acon-
Décima Segunda Série: Sobre o Paradoxo ........ 7 tecimento.
Natureza do bom senso e paradoxo — Natureza do
senso comum e paradoxo — Não-senso, sentido e orga-
nização da linguagem dita secundária. ima Primeira Série: Do Acontecimento .. ... 151
Verdade eterna do acontecimento — Efetuação e contra-
Décima Terceira Série: Do Esquizofrênico e da Menina 85 efetuação: o ator — Os dois aspectos da morte como
acontecimento — O que significa querer o aconteci-
Antonin Artaud e Lewis Carroll — Comer-falar e a lin- mento.
guagem esquizofrênica — Esquizofrenia e falência da
superficie — A palavra-paixão e seus valores literários
explodidos, a palavra-ação e seus valores tônicos inarti- Vigésima Segunda Série: Porcelana e Vulcão .... 157
culados — Distinção entre o não-senso de profundidade A “fissura” (Fitzgerald) — Os dois processos e o pro-
€ o não-senso de superfície, da ordem primária e da blema de sua distinção — Alcoolismo, mania depressiva
organização secundária da linguagem. — Homenagem & psicodelia.

Décima Quarta Série: Da Dupla Causalidade . ... 97 Vigésima Terceira Série: Do Aion 167
Os acontecimentos-efeitos incorporais, sua causa e sua
quase-causa — Impassibilidade e gênese — Teoria de As características de Cronos e sua reversão por um devir
Husser] — As condições de uma verdadeira gênese: um das profundidades — Aion e a superfície — A organiza-
campo transcendental sem Eu nem centro de individua- ção que decorre de Aion e suas diferenças com relação
ção. a Cronos,

Décima Quinta Série: Das Singularidades ........ 103 Vigésima Quarta Série: Da Comunicação dos Acon-
À batalha — O campo transcendental não pode conser- tecimentos 175
var a forma de uma consciência — As singularidades Problema das mcompa ibilidades alóglcas — Leibniz —
impessoais e pré-individuais — Campo transcendental ¢ Distância positiva e síntese afirmativa de disjunção — O
superficie — Discurso do indivíduo, discurso da pessoa, eterno retorno, o Aion e a linha reta: um labirinto mais
discurso sem fundo: haverá um quarto discurso? terrivel. . .
Vigésima Quinta Série: Da Univocidade ........ 183 Trigésima Quarta Série: Da Ordem Primiria e da
O individuo e o acontecimento — Seqiiéncia do eterno- Organizagio Secundiria 247
— As trés significagSes da univocidade, A estrutura pendular do fantasma: ressonncia e mo-
vimento forcado — Da palavra ao verbo — Fim da
Vigésima Sexta Série: Da Linguagem .......... 187 génese dindmica — Rejeigdo, primária e secundéria —
Satirica, irdnica, humoristica.
O que torna a linguagem possivel — Recapitulagio da
organizagio da linguagem — O verbo e o infinitivo.

Vigésima Sétima Série: Da Oralidade .......... 191 APENDICES


Problema da génese dindmica: das profundidades & su-
perficie — As “posigbes” segundo Mélanie Klein — 1. SIMULACRO E FILOSOFIA ANTIGA
Esquizofrenia e depressio, profundidade e altura. Si
mulacro e Idolo — Primeira etapa: do ruido à voz.
1. Platdo
e o simulacro ... ... 259
Vigésima Oitava Série: Da Sexualidade .......... 201 A dialética platdnica: significacfio da divisio — A se-
leção dos pretendentes.
As zonas erógenas »— Segunda etapa da génese dindmi- Cépias e simulacros — As caracterfsticas do simulacro.
ca: a formação das superficies e sua concordincia — Histéria da representação.
Imagem — Natureza do complexo de Édipo, papel da Reverter o platonismo: a obra de arte moderna e a des-
zona genital. forra dos simulacros— Conteúdo manifesto e conteúdo
latente do eterno retorno (Nietzsche contra Platão) —
Vigésima Nona Série: As Boas Intenções são For- Eterno retorno e simulagio — Modernidade.
çosamente Punidas ...... 209
2. Lucrécio e o simulacro 273
O empreendimento edipiano na sua relação com a cons-
tituição da superficie — Reparar e fazer vir — À cas- O diverso — A Natureza e a soma não-totalizável —
tração — A intenção como categoria — Terceira etapa Critica do Ser, do Um e do Todo.
da gênese: da superfície física à superfície metafísica Os diferentes aspectos do princípio de causalidade —
(a dupla tela). As duas figuras do método — O clinamen e a teoria do
tempo. O verdadeiro
e o falso infinito
— A pertur-
bação da alma— Emanações da pmflmdldade, simula-
Trigésima Série: Do Fantasma ................ 217 cros de superfície, fantasmas teológicos, oniricos e
Fantasma ¢ acontecimento — Fantasma, eu e singulari- eróticos — O Tempo e a unidade do método — Origem
dades — Fantasma, verbo e lingnagem. do falso infinito e da perturbação da alma.
O Naturalismo e a crítica dos mitos.
Trigésima Primeira Série: Do Pensamento ........ 225
Fantasma, passagem e comego — O casal e o pensamen- II. FANTASMA E LITERATURA MODERNA
to — A superficie metaffsica — A orientagho na vida
psignica, a boca e o cérebro. 3. Klossowski ou os corpos-linguagem .......... 289
O silogismo disjuntivo do ponto de vista do corpo ¢ da
Trigésima Segunda Série: Sobre as Diferentes Espé- lingnagem — Pornografia e teologia.
cies de Séries ... 231 Ver e falar — Reflexos, ressondncias, simulacros — À
dentincia — Flexdo do corpo e da linguagem.
As séries e a sexualidade: série conectiva e zona eróge- Troca e repetição — A repetição e o simulacro — Papel
Ta, série conjuntiva e concordincia — A terceira forma das cenas congeladas.
de série sexual, disjungdo e divergéncia — Fantasma e O dilema: corpo-linguagem — Deus e o Anticristo: as
ressoniincia — Sexualidade e linguagem: os trés tipos de duas ordens.
séries e as palavras correspondentes — Da voz à pala- Teoria kantiana do silogismo disjuntivo — O papel de
vra, Deus — Transformagio da teoria em Klossowski.
A ordem do Anticristo — A intencdo: intensidade e
Trigésima Terceira Séric: Das Aventuras de Alice 241 intencionalidade — O eterno retorno como fantasma,

Das trés espécies de palavras esotéricas em Lewis Car-


10l — Resumo comparado de Alice e de Do outro lado 4. Michel Tournier e o mundo sem outrem . ... .. 311
do espelho — Psicandlise e literatura, romance neuré- Robinson, os e¢lementos e os fins — Problema da per-
tico familiar e romance-obra de arte. versio.
O efeito de outrem na percepção — Outrem como estru- ;
, Prólogo:
tura a priori — O efeito de outrem no tempo — A
ausência de outrem — Os duplos e os elementos, De Lewis Carroll
Os três sentidos da perda de outrém — Do simulacro
ào fantasma.
Outrem e a perversão.
aos Estoicos
Zola e a fissura ..........
... ..ol 331
A fissura e a hereditariedade — Os instintos e seus
objetos. '
As duas hereditariedades — Instinto de morte e instintos.
A Besta Humana,
O objeto fantasmado — Trégico e épico.

A obra de Lewis Carroll tem tudo para agradar ao lei-


tor atual: livros para criangas, de preferéncia para meninas;
palavras espléndidas, insólitas, esotéricas; crivos, codigos e
decodificagdes; desenhos e fotos; um contefido psicanalitico
profundo, um formalismo lógico e lingiistico exemplar. E
para além do prazer atual algo de diferente, um jogo do
sentido e do não-senso, um caos-cosmos. Mas as núpcias
da linguagem ¢ do inconsciente foram já contraidas e cele-
bradas de tantas maneiras que é preciso procurar o que
foram precisamente em Lewis Carroll, com o que reataram
e o que celebraram nele, gragas a ele.
Apresentamos séries de paradoxos que formam a teoria
do sentido. Que esta teoria não seja separével de paradoxos
explica-se facilmente: o sentido é uma entidade não existen-
te, ele tem mesmo com o ndo-senso relações muito parti-
culares. O lugar privilegiado de Lewis Carroll provém do
fato dc que ele faz a primeira grande conta, a primeira
grande encenagdo dos paradoxos do sentido, ora recolhendo-
-0s, ora renovando-os, ora inventando-os, ora preparan-
do-os. O lugar privilegiado dos Est6icos provém de que
foram iniciadores de uma nova imagem do filésofo, em rup-
tura com os pré-socriticos, com o socratismo e o platonis-
mo; e esta nova imagem já estd estreitamente ligada à
constituigdo paradoxal da teoriz do sentido. A cada série
correspondem, por conseguinte, figuras que são ndo somente
histéricas, mas tépicas e l6gicas. Como sobre uma super~
ficie pura, certos pontos de tal figura em uma série reme-
tem a outros pontos de tal outra: o conjunto das constela-
¢Oes-problema com os lances de dados correspondentes, as
histérias e os lugares, um lugar complexo, uma “histéria
Primeira Série
embrulhada” — este livro é um ensaio de romance légico
e psicanalítico. de Paradoxos:
Apresentamos em apêndice cinco artigos já aparecidos.
Nós os retomamos meodificando-os, mas o tema permanece
Do Puro Devir
e se desenvolvem certos pontos que só são brevemente in-
dicados nas séries precedentes (marcamos a cada vez a liga-
ção por meio de uma nota). São: 1º9) “Reverter o plato-
nismo”, Revue de métaphysique et de morale, 1967; 29)
“Lucrécio e o naturalismo”, Érudes philosophiques, 1961;
39) “Klossowski e os corpos-linguagem”, Critique, 1965; 4º)
“Uma teoria do outro” (Michel Tournier), Critique, 1967;
59) “Introdugdo i Besta Humana de Zola”, Cercle précieux
du livre, 1967. Agradecemos aos editores que se dispuse-
ram a autorizar esta reprodução,

Alice assim como Do outro lado do espelho tratam


de uma categoria de coisas muito especiais: os aconteci-
mentos, os acontecimentos puros. Quando digo “Alice cres-
ce”, quero dizer que ela se torna maior do que era. Mas
por isso mesmo cla também se torna menor do que é agora.
Sem divida, ndo é ao mesmo tempo que ela é maior e
menor. Mas é a0 mesmo.tempo que ela se forna um e outro.
Ela é maior agora e era menor antes. Mas é ao mesmo
tempo, no mesmo lance, que nos tornamos maiores do que
éramos e que nos fazemos menores do que nos tornamos.
Tal é a simultaneidade de um devir cuja propriedade é fur-
tar-se ao presente. Na medida em que se furta ao presente,
o devir não suporta 2 separagio nem a distingdo do antes
e do depois, do passado e do futuro. Pertence à esséncia
do devir avangar, puxar nos dois sentidos ao mesmo tempo:
Alice ndo cresce sem ficar menor e inversamente. O bom
senso é a afirmagdo de que, em todas as coisas, há um
sentido determindve]; mas o paradoxo é a afirmação dos dois
sentidos ao mesmo tempo.
Platão convidava-nos a distinguir duas dimensdes: 19)
a das coisas limitadas ¢ medidas, das qualidades fixas, quer
sejam permanentes ou tempordrias, mas supondo sempre
freadas assim como repousos, estabelecimentos de presentes,
designagdes de sujeitos: tal sujeito tem tal grandeza, tal pe-
quenez em tal momento; 29) e, ainda, um puro devir sem
medida, verdadeiro devir-louco que não se detém nunca, nos
dois sentidos ao mesmo tempo, sempre furtando-se ao pre-
sente, fazendo coincidir o futuro e o passado, o mais e o
menos, o demasiado ¢ o insuficiente na simultaneidade. de
uma matéria indócil (“mais quente e mais frio vão sempre Alice. Inversão do crescer ¢ do diminuir: “em que senti-
para 2 frente e nunca permanecem, enquanto a quantidade do, em que sentido?” pergunta Alice, pressentindo que é
definida é ponto de parada e não poderia avançar sem deixar sempre nos dois sentidos ao mesmo tempo, de tal forma
de ser; “o mais jovem torna-se mais velho do que o mais que desta vez ela permanece igual, gragas a um efeito de
velho, e o mais velho, mais jovem do que o mais jovem, óptica. Inversão da véspera e do amanhd, o presente sen-
mas finalizar este devir é o de que eles não são capazes, pois do sempre esquivado: “geléia na véspera e mo dia seguinte,
se o finalizassem não mais viriam a ser, mas seriam. . .”)t. nunca hoje”. Inversio do mais e do menos: cinco noites
Reconhecemos esta dualidade platdnica. Nio &, em são cinco vezes mais quentes do que uma s6, “mas deveriam
absoluto, a do inteligivel e a do sensivel, da Idéia e da
ma- ser também cinco vezes mais frias pela mesma razio”. Do
téria, das Idéias e dos corpos. É uma dualidade mais pro- ativo e do passivo: “será que os gatos comem os morcegos?”
funda, mais secreta, oculta nos préprios corpos sensiveis e é 0 mesmo que “serd que OS morcegos comem os gaÉos'?”,
materiais: dualidade subterrinea entre o que recebe a ação Da causa e do efeito: ser punido antes de ter cnmeudo' a
da Idéia e o que se subtrai a esta ação. Não é a distinção falta, gritar antes de se machucar, servir antes de repartir.
do Modelo e da cópia, mas a das cópias e dos simulacros. Todas estas inversGes, tais como aparecem na identi-
O puro devir, o ilimitado, é a matéria do simulacro, na dade infinita têm uma mesma conseqiiéncia: a contestagio
medida em que se furta à ação da Idéia, na medida em da identidade pessoal de Alice, a perda do nome próprio.
que contesta ao mesmo tempo fanto o modelo como a cópia. A perda do nome préprio é a aventura que se repete através
As coisas medidas acham-se sob as Idéias; mas debaixo das de todas as aventuras de Alice. Pois o mome préprio ou
próprias coisas não haveria ainda este elemento louco que singular é garantido pela permanéncia de um saber. Este
subsiste, que “sub-vem”, aquém da ordem imposta pelas saber é encarnado em nomes gerais que designam paradas e
Tdéias e recebida pelas coisas? Ocorre até mesmo a Platão repousos, substantivos e adjetivos, com os quais o próprio
perguntar se este puro devir não estaria numa relação muito conserva uma relagdo constante. Assim, o eu pessoal tem
particular com a linguagem: tal nos parece um dos sentidos necessidade de Deus e do mundo em geral. Mas gquando
principais do Crdtilo. Não seria talvez esta relação essen- os substantivos e adjetivos comegam a fundir, quando os
cial à linguagem, como em um “fluxo” de palavras, um nomes de parada e repouso são arrastados pelos verbos de
.discurso enlouquecido que não cessaria de deslizar sobre puro devir e deslizam na linguagem dos acontecimentos,
aquilo a que remete sem jamais se deter? Ou então, não toda identidade se perde para 0 eu, o mundo e Deus. É
haveria duas linguagens e duas espécies de “nomes”, uns a provagio do saber e da declamação, em que as palavras
designando as paradas e repousos que recolhem a ação da vém enviesadas, empurradas de viés pelos verbos, o que des-
Tdéia e os outros exprimindo os movimentos ou os devires titui Alice de sua identidade. Como se os acontecimentos
rebeldes? ? Ou ainda, não seriam duas dimensões distintas desfrutassem de uma irrealidade que se comunica ao saber
interiores 4 linguagem em geral, uma sempre recoberta pela e às pessoas através da linguagem. Pois a incerteza pessoal
outra, mas continuando a “sub-vir” e a substituir sob a não é uma divida exterior ao que se passa, mas uma estru-
outra? tura objetiva do proprio acontecimento, na medida em que
O paradoxo deste puro devir, com a sua capacidade sempre vai nos dois sentidos a0 mesmo tempo e que esquar-
de furtar-se ao presente, é a identidade infinita: identidade teja o sujeito segundo esta dupla direcdo. O paradoxo €,
infinita dos dois sentidos ao mesmo tempo, do futuro e do em primeiro lugar, o que destréi o bom senso como sentido
passado, da véspera e do amanhi, do mais e do menos, do único, mas, em seguida, o que destr6i o senso comum como
demasiado e do insuficiente, do ativo e do passivo, da causa designação de identidades fixas.
e do efeito. É a linguagem que fixa os limites (por exem-
plo, o momento em que comega o demasiado), mas é ela
também que ultrapassa os limites e os restitui 3 equivalén-
cia infinita de um devir ilimitado (“não segure um tição
vermelho durante demasiado tempo, ele o queimaria; não
se corte demasiado profundamente, isso faria você san-
grar”). Dai as inversões que constituem as aventuras de
1. Puario. Filebo, 24 d; Parménides, 154-155.
2. Prazio. Crótilo. 437 o 55 Sobre tudo o que precede, cf. Apéndice 1,
Segunda Seérie
de Paradoxos:
Dos Efeitos de Superficie

——
Os Estoicos, por sua vez, distinguiam duas espécies
de coisas: 1) Os corpos, com suas tensdes, suas qualidades
fisicas, suas relações, suas ações e paixdes e os “estados de
coisas” correspondentes. Estes estados de coisas, ações e
paixdes, sdo determinados pelas misturas entre corpos. No
limite, há uma unidade de todos os corpos em função de
um Fogo primordial em que eles são absorvidos ¢ a partir
do qual se desenvolvem segundo sua tepsdo respectiva. O
único tempo dos corpos e estados de coisas é o presente.
Pois o presente vivo € a extensdo temporal que acompanha
o ato, que exprime ¢ mede a ação do agente, a paixdo do
paciente. Mas, na medida da unidade dos corpos entre si,
na medida da unidade do principio ativo e do principio
passivo, um presente cósmico envolve o universo intejro:
só 0s corpos existem no espago e só o presente no tempo.
Não há causas e efeitos entre os corpos: todos os corpos
são causas, causas uns com relação aos outros, uns para os
outros. À unidade da causas entre si se chama Destino,
na extensão do presente césmico.
2) Todos 0s corpos são causas uns para 0s outros,
uns com relagio aos outros, mas de que? São causas de
certas coisas de uma natureza completamente diferente.
Estes efeitos ndo sdo corpos, mas, propriamente falando,
“incorporais”. Não são qualidades e propriedades fisicas,
mas atributos l6gicos ou diaiéticos. Não são coisas ou es-
tados de coisas, mas acontecimentos. Não se pode dizer
que existam, mas, antes, que subsistem ou insistem, tendo
este minimo de ser que convém ao que ndo é uma coisa,
cntidade ndo existente. Não sdo substantivos ou adjetivos,
mas verbos. Não sdo agentes nem pacientes, mas resulta-
dos de ações e paixões, “impassiveis” — impassíveis resul- é de uma outra natureza: não mais estados de coisas ou
tados. Não são presentes vivos, mas infinitivos: Aion ili- — misturas no fundo dos corpos, mas acontecimentos incorpo-
mitado, devir que se divide ao infinito em passado e em rais na superficie, que resultam destas misturas. A drvore
futuro, sempre se esquivando do presente. De tal forma que verdeja. .. ? O génio de uma filosofia se mede em primeiro
o tempo deve ser apreendido duas vezes, de duas maneiras lugar pelas novas distribuicbes que impõe aos seres e aos
complementares, exclusivas uma da outra: inteiro como pre- conceitos. Os Estdicos estdo em vias de tragar, de fazer
sente vivo nos corpos que agem e padecem, mas inteiro passar uma fronteira onde nenhuma havia sido jamais vista:
também como instância infinitamente divisível em passado- neste sentido deslocam toda a reflexão.
-futuro, nos efeitos incorporais que resultam dos corpos, O que estão operando é, em primeiro lugar, uma cisão
de suas ações e de suas paixões. Só o presente existe no totalmente nova da relagdo causal. Eles desmembram esta
tempo e reúne, absorve o passado e o futuro, mas só o relagdo, sujeitos a refazer uma unidade de cada lado. Re-
passado e o futuro insistem no tempo e dividem ao infinito metem as causas às causas e afirmam uma ligação das causas
cada presente. Não três dimensões sucessivas, mas duas entre si (destino). Remetem os efeitos aos efeitos e colo-
leituras simultâneas do tempo. — “cam certos lagos dos efeitos entre si. Mas não o fazem,
Como diz Emile Bréhier na sua bela reconstituição do absolutamente, da mesma maneira: os efeitos incorporais
pensamento estdico: “Quando o escalpelo corta a carne, o não são jamais causas uns em relação aos outros, mas so-
primeiro corpo produz sobre o segundo não uma proprie- mente “quase-causas”, segundo leis que exprimem talvez em
dade nova, mas um atributo novo, o de ser cortado. O cada caso a unidade relativa ou a mistura dos corpos de
atributo não designa nenhuma qualidade real. .., é sempre que dependem como de suas causas reais. Tanto que a
ao contririo expresso por um verbo, o que quer dizer que liberdade se vê salva de duas maneiras complementares:
é não um ser, mas uma maneira de ser... Esta maneira
uma vez na interioridade do destino como ligagdo das causas,
de ser se encontra de alguma forma no limite, na superficie outra na exterioridade dos acontecimentos como lago dos
de ser e não pode mudar sva mnatureza: ela não é a bem efeitos. Eis por que os Est6icos podem opor destino e ne-
dizer nem ativa nem passiva, pois a passividade suporia uma
cessidade 3. Os Epicuristas operam uma outra cisdo da cau-
natureza corporal que sofre uma ação. Ela é pura e sim- salidade, que fundamenta também a liberdade: conservam
plesmente um resultado, um efeito não classificavel eatre os a homogeneidade da causa e do efeito, mas recortam a causa-
seres. .. (Os Estéicos distinguem) radicalmente, o que nin-
lidade segundo séries atémicas cuja independéncia respectiva
guém tinha feito antes deles, dois planos de ser: de um é garantida pelo clinamen — não mais destino sem necessi-
Jado o ser profundo e real, a forga; de outro, o plano dos dade, mas causalidade sem destino 4. Nos dois casos come-
fatos, que se produzem na superficie do ser e instituem uma ça-se por dissociar a relagdo causal, ao invés de distinguir
multiplicidade infinita de seres incorporais™ 1. tipos de causalidade, como fazia Aristételes ou como fard
No entanto, o que há de mais intimo, de mais essen- Kant. E esta dissociação nos remete sempre à linguagem,
cial ao corpo do que acontecimentos como crescer, diminuir, seja à existéncia de uma declinacdo das causas, seja, como
ser cortado? O que querem dizer os Estdicos quando veremos, à existéncia de uma conjugação dos efeitos.
opbem à espessura dos corpos estes acontecimentos incor- Esta dualidade nova entre os corpos ou estados de
porais que se dariam somente na superficie, como um vapor cojsas e os efeitos ou acontecimentos incorporais conduz
nos campos (menos até que um vapor, pois um vapor é um a uma subversdo da filosofia. Por exemplo, em Aristételes,
corpo)?
O que há nos corpos,na profundidade dos corpos, todas as categorias se dizem em fungdo do Ser; e a diferen-
sdo misturas: um corpo penetra outro e coexiste com ele
em todas as suas partes, como a gota de vinho no mar ou 2. Ci os comentirios de Bréhier sobre este exemplo, p. 20.
o fogo no ferro. Um corpo se retira de outro, como o 3.
que o
Sobre a distingdo das causas reais internas e das causas exteriores
em relações fimitadas de “confatalidade”, cf. Cícero, De faro,
liquido de um vaso. As misturas em geral determinam es- e 16,
tados de coisas quantitativos e qualitativos: as dimensões
4. Os Epicuristas têm também uma idéia do acontecimento muito próxima
da dos Estóicos: Epicuro, carta a Heródoto, 3940, 6873; e Lucrécio,
de um conjunto ou o vermelho do ferro, o verde de uma L 4490 s Lucrécio analisa o acontecimento: “a filha de Tindaro foi seques-
Hada.—” -Ele opõe os comia (servidio-besdade, pobreza-riqueza,
drvore. Mas o que queremos dizer por “crescer”, “dimi- concórdia) aos conjuncta (qualidades reais inseparáveis dos corpos). Os acom-
tos não parecem exatamente incorporais, mas são entretanto apresentados
nuir”,“avermelhar”, “verdejar”, “cortar”, “ser cortado” etc., como não existindo por si mesmos, impassiveis, puros resultados dos movimentos
da matéria, das ações e paixdes dos corpos, Entretanto, não parece que o3
1. Batmer. Emile. La Theorie des incorporels dans Pancien stoicisme. Epicuristas tenham desenvolvido esta teoria do acontecimento; talvez porque
Vria, 1928, pp. 11-18. a dobravam às exigências de uma causalidade homogénea e a faziam depender
de sua propria concepção do simulacro. Cf, Apêndice IL.
ça se passa no ser entre a substância como sentido primeiro O devir-ilimitado torna-se o próprio acontecimento,
e as outras categorias que lhe são relacionadas como aci- ideal, incorporal, com todas as reviravoltas que lhe são pró-
dentes. Para os Estóicos, ao contrário, os estados de coisas, prias, do futuro e do passado, do ativo e do passivo, da
quantidades e qualidades, não são menos seres (ou corpos) causa e do efeito. O futuro e o passado, o mais e o menos,
que a substância; eles fazem parte da substância; e, sob este o muito e o pouco, o demasiado e o insuficiente ainda, o já
título, se opõem a um extra-ser que constitui o incorporal e o não: pois o acontecimento, infinitamente divisível, é
como entidade não existente. O termo mais alto não é pois sempre os dois ao mesmo tempo, eternamente o que acaba
o Ser, mas Alguma coisa, aliquid, na medida em que sub- de se passar e O que vai se passar, mas nunca o que se
sume o ser é o não-ser, as existências e as imsisténcias 5. passa (cortar demasiado profundo mas não o bastante). O
Mais ainda, os Estóicos procedem & primeira grande revira- ativo e o passivo: pois o acontecimento, sendo impassível,
volta do platonismo, & reviravolta radical. Pois se os cor- troca-os tanto melhor quanto não é nem um nem outro,
pos, com seus estados, qualidades e quantidades, assumem mas seu resultado comum (cortar-ser cortado). À causa e
todos os caracteres da substincia ¢ da causa, inversamente, o efeito: pois os acontecimentos, não sendo nunca nada
os caracteres da Idéia caem do outro lado, neste extra-ser mais do que efeitos, podem tanto melhor uns com os outros
impassivel, estéril, ineficaz, 3 superficie das coisas: o ideal, entrar em funções de quase-causas ou de relações de quase-
o incorporal não pode ser mais do que um “efeito”. á -causalidade sempre reversíveis (a ferida e a cicatriz).
A conseqiiéncia é de uma importincia extrema. Pois, Os Estóicos são amantes de paradoxos e inventores.
em Platdo, um obscuro debate se processava na profundi- É preciso reler o admirável retrato de Crisipo, em algumas
dade das coisas, na profundidade da terra, entre o que se páginas, por Diógenes Laércio. Talvez os Estóicos se sir-
submetia & ação da Idéia e o que se subtraia a esta ação (as vam do paradoxo de um modo completamente novo: ao
cépias e os simulacros). Um eco deste debate ressoa quan- mesmo tempo como instrumento de análise para a linguagem
do Sécrates pergunta: haverd Idéia de tudo, mesmo do pélo, e como meio de sintese para os acontecimentos. A dialética
da imundicie e da lama — ou entdo haverd alguma coisa é precisamente esta ciência dos acontecimentos incorporais
que, sempre e cobstinadamente, esquiva-se à Xdéia? Só que tais como são expressos nas proposições e dos laços de
em Platão esta “alguma coisa” não se achava nunca sufi- acontecimentos tais como são expressos nas relações entre
cientemente escondida, recalcada, repelida na profundidade proposições. À dialética é realmente a arte da conjugação
dos corpos, mergulhada no oceano. Eis que agora tudo sobe (cf. as confatalia, ou séries de acontecimentos que depen-
a superficie. É o resultado da operagdo estéica: o ilimita- dem uns dos outros). Mas é próprio da linguagem, simul-
do torna a subir. O devir-louco, o devir-ilimitado não é taneamente, estabelecer limites e ultrapassar os limites esta-
mais um fundo que murmura, mas sobe à superficic das belecidos: por isso compreende termos que não param de
coisas € se torna impassivel. Não se trata mais de simu- deslocar sua extensão e de tornar possível uma reversão da
lacros que escapam do fundo e se insinuam por toda parte, ligação em uma série considerada (assim, demasiado e in-
mas de efeitos que se manifestam e desempenham scu papel. suficiente, muito e pouco).
Efeitos no sentido causal, mas também “efeitos” sonoros, O acontecimento é coextensivo ao devir e o devir, por
opticos ou de linguagem — ¢ menos ainda, ou muito mais. sua vez, é coextensivo à linguagem; o paradoxo é, pois,
uma vez que eles não têm mais nada de corporal ¢ são essencialmente “sorite” isto é, série de proposições interro-
agora toda a idéia... O que se furtava à Idéia subiu à gativas procedendo segundo o devir por adições e subtrações
superficie, limite incorporal, ¢ representa agora toda a idea- sucessivas. Tudo se passa na fronteira entre as coisas e as
lidade possivel, destituida esta de sua eficicia causal e es- proposições. Crisipo ensina: “se dizes alguma coisa esta
piritual. Os Estéicos descobriram os efeitos de superficic. coisa passa pela boca; ora, tu dizes uma carroga, logo uma
Os simulacros deixam de ser estes rebeldes subterrineos, carroga passa por tua boca”. Ha ai um uso do paradoxo
fazem valer seus efeitos (o que poderiamos chamar de “fan- que só tem equivalente no budismo Zen de um lado, e do
tasmas”, independentemente da terminologia estbica). O outro no non-sense inglés ou norte-americano. Por um lado
mais encoberto tornou-se o mais manifesto, todos os velhos o mais profundo é o imediato; por outro, o imediato está
paradoxos do devir reaparecerdo numa nova juventude — na linguagem. O paradoxo aparece como destituicdo da
transmutação. profundidade, exibição dos acontecimentos na superficie,
5y, f Plotino, VI, 1, 25: a exposição das cetegorias estóicas (Bróticr, desdobramento da linguagem ao longo deste limite. O hu-
p. 43). mor é esta arte da superficie, contra a velha ironia, arte
das profundidades ou das alturas. Os Sofistas e os Cinicos incorporal. É seguindo a fronteira, margeando a superficie,
já tinham feito do humor uma arma filosófica contra a que passamos dos corpos ao incorporal. Paul Valéry teve
ironia socrática, mas com os Estóicos o humor encontra uma expressdo profunda: o mais profundo é a pele. Des-
sua dialética, seu princípio dialético e seu Jugar natural, seu coberta est6ica, que supde muita sabedoria e implica toda
puro conceito filosófico. uma ética. É a descoberta da menina que só cresce e di-
Esta operação inaugurada pelos Estóicos, Lewis Carroll minui pelas bordas, superficie para enrubescer e verdejar.
a cfetua por conta própria. Ou então, por conta própria, Ele sabe que os acontecimentos concernem tanto mais os
ele a retoma. Toda a obra de Carroll trata dos aconteci- corpos, cortam-nos e mortificam-nos tanto mais quanto per-
mentos na sua diferença em relação aos seres, às coisas e correm toda sua extensio sem profundidade. Mais tarde
estados de coisas. Mas o começo de Alice (toda a primei- os adultos são aspirados pelo fundo, recaem e não com-
ta metade) procura ainda o segredo dos acontecimentos e preendem mais, sendo muito profundos. Por que os mes-
do devir ilimitado que eles implicam, na profundidade da mos exemplos do estoicismo continuam a inspirar Lewis
terra, poços e tocas que se cavam, que se afundam, mistura Carroll? A árvore verdeja, o escalpelo corta, a batalha
de corpos que se penetram e coexistem. À medida que serd ou ndo travada...? É diante das 4rvores que Alice
avançamos na narrativa, contudo, os movimentos de mer- perde seu nome, é para uma árvore que Humpty Dumpty
gulho e de soterramento dão lugar a movimentos laterais de fala sem olhar Alice. E as falas anunciam batalhas. E
deslizamento, da esquerda para a direita e da direita para por toda parte ferimentos, cortes. Mas serdo mesmo exem-
a esquerda. Os animais das profundezas tornam-se secun- plos? ‘Ou entdo serd que todo acontecimento ndo é deste
dários, dão lugar a figuras de cartas de baralho, sem espes- tipo, floresta, batalha e ferimento, sendo tudo tanto mais
sura. Dir-se-ia que a antiga profundidade se desdobrou na profundo quanto mais isso se passe na superficie, incorporal
superfície, converteu-se em largura. O devir ilimitado se de tanto margear os corpos? A histéria nos ensina que
desenvolve agora inteiramente nesta largura revirada. Pro- os bons caminhos não tém fundação, e a geografia, que a
fundo deixou de ser um elogio. Só os animais são pro- terra só é fértil sob uma ténue camada,
fundos; e ainda assim não os mais nobres, que são os ani- Esta redescoberta do sábio estéico ndo estd reservada
mais planos. Os acontecimentos são como os cristais, não 4 menina. É bem verdade que Lewis Carroll detesta em
'se transformam e não crescem a não ser pelas bordas, nas geral os meninos. Eles tém profundidade demasiada; logo
bordas. É realmente este o primeiro segredo do gago e do falsa profundidade, falsa sabedoria e animalidade. O bebé
canhoto: não mais penetrar, mas deslizar de tal modo que masculino em Alice se transforma em porco. Em regra ge-
a antiga profundidade nada mais seja, reduzida ao sentido ral, somente as meninas compreendem o estoicismo, têm o
inverso da superficie. De tanto deslizar passar-se-a para senso do acontecimento ¢ liberam um duplo incorporal. Mas
o outro lado, uma vez que o outro lado não é senão o sen- ocorre que um rapazinho seja gago e canhoto e conquista,
tido inverso. E se não há nada para ver por trás da cor- assim, o sentido como duplo sentido da superficie. O ódio
tina é porque todo o visivel, ou antes, toda a ciéncia possi- de Lewis Carroll com relagdo aos meninos não é devido a
vel, está ao longo da cortina, que basta seguir o mais longe, uma ambivaléacia profunda, mas antes a uma inversio su-
estreita e superficialmente possivel para inverter seu lado perficial, conceito propriamente carrolliano. Em Sílvia e
direito, para fazer com que a direita se torne esquerda e Bruno é o garoto que tem o papel inventivo, aprendendo as
inversamente. Não há, pois, aventuras de Alice, mas uma lições de todas as maneiras, pelo avesso, pelo direito, por
aventura: sua ascensio à superficie, sua desmistificagio da cima e por baixo, mas nunca “a fundo”. O grande roman-
falsa profundidade, sua descoberta de que tudo se passa na ce Silvia e Bruno conduz ao extremo a evolução que se es-
fronteira, Eis por que Carroll renuncia ao primeiro titulo bogava em Alice, que se prolongava em Do outro lado do
que havia previsto, “As aventuras subterraneas de Alice”. espelho. A conclusio admirdvel da primeira parte é pela
Com maior razão para Do outro lado do espelho. Af, gléria do Este, de onde vem tudo aquilo que é bom, “tan-
os acontecimentos, na sua diferenga radical em relagio às to a substincia das coisas esperadas como a existéncia das
coisas, ndo são mais em absoluto procurados em profundi- coisas invisiveis”. Mesmo o barômetro não sobe nem desce,
dade, mas na superficie, neste ténue vapor incorporal que mas vai em frente, de lado e dá o tempo horizontal. Uma
se desprende dos corpos, pelicula sem volume que os en- méquina de esticar aumenta até mesmo as cangdes. E a
volve, espetho que os reflete, tabuleiro que os torna planos. bolsa de Fortunatus, apresentada como anel de Mocbius, é
Alice não pode mais se aprofundar, ela libera o seu duplo feita de lengos costurados in the wrong way, de tal forma
. Terceira Série:
que sua superfície exterior está em continuidade com sua
superfície interna: ela envolve o mundo inteiro e faz com Da Proposicao
que o que está dentro esteja fora e o que está fora fique
dentro 6. Em Sílvia e Bruno a técnica da passagem do real
para o sonho, e dos corpos para o incorporal, é multipli-
cada, completamente renovada, levada à sua perfeição. Mas
é sempre contornando a superfície, a fronteira, que passa-
mos do outro lado, pela virtude de um anel. A continui- *
dade do avesso e do direito substitui todos os níveis de pro-
fundidade; e os efeitos e superfície em um só e mesmo
Acontecimento, que vale para todos os acontecimentos, fa-
zem elevar-se ao nível da linguagem todo o devir e seus
paradoxos ?. Como diz Lewis Carroll num artigo intitulado
The dynamics of a parti-cle, “superfície plana é o caráter de
um discurso. . .”

Entre estes acontecimentos-efeitos e a linguagem ou


mesmo a possibilidade da linguagem, há uma relagdo essen-
cial: é grggno aos acontecimentos o fato de serem expressos
ou exprimíveis, enunciáveis
enunciados ou por meio de pro-
pasições pelo menos possivels. Mas há muitas relagbes na
proposicdo; qual a que convém aos efeitos de superficie,
aos acontecimentos?
Muitos autores concordam em reconhecer trés relações. 4—
distintas na proposição. À primeira é chamada designa-
ção ou indicação: é a relação da proposição a um estado de
Coisas exteriores (datum). O estado de coisas é individual,
comporta tal ou tal corpo, misturas de corpos, qualidades !ºd
e quantidades, relagdes. A designagio opera pela associa- Q— y
ão das rias vras com imagens parti e\ R
vem “representar” o estado de coisas: entre todas aquelas W
que são associadas à palavra, tal ou tal palavra à proposição, S
é preciso escolher, selecionar as que correspondem ao com- ÃY
plexo dado. A intuição designadora exprime-se então sob a
forma: “é isto”, “não é isto”. A questdo de saber se a
associagdo das palavras e das imagens é primitiva ou deri-
6. Esta descrição da bolsa está entre s mais belas páginas de Lewis vada, necessária ou arbitréria, não pode ainda ser posta. O
Carroll: Sylvie and Bruno concluded, cap. VIL.
7. Esta descoberta da superíície, esta crítica da profundidade formam ! que conta, no momento, é que certas palavras na proposição,
uma constante da literatura moderna. Elas inspiram a obra de Robbe-Grillet. certas particulas lingiifsticas, servem como formas vazias
De uma ontra “mancira são oncontradas 6m By ma relação oot 4
cpiderme o a Iuva de Roberte: cf. as observações de Klossowski a éste mespeito, para a seleção das imagens em todo e qualquer caso, logo
das Leis da hospitalidade,pp. 335, 344, Ou então Michel Tour- para a designagio de cada estado de coisas: estariamos
Tt em Sexlafeira ou ox Iimbos do Pacifica, pn. S&-39: “Estranho preconceito,
lo, que valoriza cegamente a lado em detrimento de superfície errados se as tratdssemos como conceitos universais, já que
pretende que superfícial siguifica não de vasta dimensão, mas de pouca
profundidade, enquanto que profundo significa ao contrário de grande profun- são singulares formais, que tém o papel de puros “desig-
e não de fraca superfície. E, gutretanto, um sentiment: nantes”, ou, como diz Benveniste, indicadores. Estes indir
medb-se bem memor, 20 que me parece, É que
importâneia. de sua superfície do que pelo grau de profundidade...” CL. acold: ontem,—
Apéndicas M e . cadores formais sdo: isto, aquilo; ele; aqui,
agora etc. Os nomes próprios também são indicadores ou de cera, Descartes não busca de forma nenhuma o que per-
designantes, mas de uma importância especial porque são manece na cera, problema que nem mesmo chega a colo-
os únicos a formar singularidades propriamente materiais. car neste texto, mas mostra como o Eu manifestado no Co-
Logicamente, a designagdo tem como critério e como ele- gito fundamenta o juízo de designação segundo o qual a E
mento o verdadeiro e o falso. Verdadeiro significa que L&é identificada,
uma designacdo é efctivamente preenchida pelo estado de Devemos reservar o nome dº'iiª_&__ªãª a uma tergÊ=
coisas, que os indicadores são efetuados, ou a boa imagem ceira dimensão da proposição; trata-se desta vez da relação
selecionada. “Verdadeiro em todos os casos” significa que da palavra com conceitos universais ou gerais,_e das liga-
o preenchimento se faz para a infinidade das imagens parti- ções sintáticas com implicagdes_de_conceito. Do ponto de
culares associdveis às palavras, sem que haja necessidade de vista da significacdo, consideramos sempre os elementos da
selegdo. Falso significa que a designação não estd pre- proposição como “significante” das implicações de concei-
enchida, seja por uma deficiéncia das imagens selecionadas, tos gue podem remeter a outras proposições, capazes de ser-
seja por impossibilidade radical de produzir uma imagem vir de premissas & primeira. A significagdo se define por
a el às palavras. esta ordem de implicagdo conceitual em que a proposigio
Uma segunda relação da proposigdo é fregiientemente considerada ndo intervém senão como elemento de uma
aad-chamada de]ml:tanifestaâão. XW— “demonstração”, no sentido mais geral da palavra, seja como
ão ao sujeito que fala e que se exprime, manifestação premissa, seja como conclusio. Os significantes lingiiisti-
se apresenta pois como o enunciado dos desejos e das cren- cos são então essencialmente “implica e “Togo”. A impli-
ças que correspondem & proposição. Desejos e crenças são Cação é o signo que define a relagdo entre as premissas e a
inferências causais, não associações. Q_desejo é conclusdo; “logo” é o signo da assercdo, que define a pos-
sibilidade de afirmar a conclusio por si mesma no final das
implicagdes. Quando falamos de demonstragdo no sentido
mais geral, queremos dizer que 2 significação da proposi-
to sua existência deve ser produzida por uma ção se acha sempre assim no procedimento indireto que lhe
causalidad: Não concluiremos que a manifestação corresponde, isto é, na sua relação com outras proposigdes
.seja secundária relativamente à designação: ao contrário, das quais é concluida, ou, inversamente, cuja conclusdo ela
ela a torna possível e as inferências formam uma unidade torna possivel. A designação, ao contrário, remete ao pro-
sistemática da qual as associações derivam. Hume vira cedimento direto. A demonstragio não deve ser somente
isto profundamente: na associação de causa e efeito é “a entendida no sentido restrito, silogistico on matemético, mas
_inferg la também no sentido fisico das probabilidades, ou no sentido
moral das promessas e compromissos, sendo a asserção da
Pois há na proposição “manifestantes” conclusdo neste último caso representada pelo momento em

|
como partículas especiais: eu, tu; amanhã, sempre; alhur que a promessa é efetivamente cumprida? O valor légico
em toda parte etic. E da mesma forma que o nome pró- da significação ou demonstragio assim compreendida não é
prio é um indicador privilegiado, Eu é o manifestante de mais a verdade, como o mostra o modo hipotético das im-
base. Mas não são somente os outros manifestantes que plicagdes, mas a condição de verdade, o conjunto das con-
dependem do Eu, é o conjunto dos indicadores que se re- dições sob as quais uma proposi¢io “seria” verdadeira. A
ferem a ele!, A indicação ou designação subsumia os es- proposição condicionada ou concluida pode ser falsa, na me-
tados de coisas individuais, as imagens particulares e os dida em que designa atualmente um estado de coisas ine-
designantes singulares; mas os manifestantes, a partir do Eu, xistentes ou não é verificada diretamente. A significação

h
constituem o domínio do pessoal, que serve de principio a nio fundamenta a verdade, sem tornar ao mesmo tempo o
toda designação possível. Enfim, da designação à manifes- erro possivel. Eis por_que a condição de verdade
tação se produz um deslocamento de valores lógicos repre- opõe ao falso,mas ao absurdo: o gue é sem sij
sentado pelo Cogito: não mais o verdadeiro e o fal: s o que não pode ser verdadeiro nem falso.
a_veracidade e o engano. Na análise célebre do pedaço 2. Por exemplo, quando Brice Parain opõe a denominação (desigaagio)
e a demonstração (significação), ele entende demonstração de uma maneira
1. Cf. a teoria dos embrayewrs tal como é apresentada por Benveniste, que engloba o sentido moral de um programa a preencher, de uma promessa
Trobiêmes de inguistique , Gallimard, cap. 20. Separamos “amaohã” * comprir, de um possível a realizar, como em uma “demonstração de amor”
ontem ou agora, porque "“amanhã” é primeiramente expressão de crens ou em “eu te amarei sempre", Cf. Aecherches sur la nature et les fonctions du
& só tem um valor indicativo sesundário, ” e langage, Gallimard, cap. V-
A pergunta: a significação é, por sua vez, primeira forma de “não é isto, é isto”, ndo se explica a não ser pela
com relação à manifestação e à designação? deve receber constincia do conceito significado. Da mesma forma, os
uma resposta complexa. Pois se a própria manifestação descjos ndo formariam uma ordem de exigéncias ou mesmo
é primeira com relação à designação, se ela é fundadora, de deveres, distinta de uma simples urgéncia das necessida-
é de um ponto de vista muito particular. Para retomar des, e as crengas ndo formariam uma ordem de inferéncias
uma distinção clássica, digamos que é do ponto de vista distinta das simples opinies, se as palavras nas quais se
da fala, ainda que fosse uma fala silenciosa. Na ordem manifestam não remetessem primeiramente a conceitos e im-
da fala, é o Eu que começa e começa em termos absolutos. plicagdes de conceitos que tornam significativos estes dese-
Nesta ordem ele é pois primeiro, não só em relação a toda jos e estas crengas.
designação possível que fundamenta, mas com relação às sig- Contudo, o suposto primado da significagdo sobre a
nificações que envolve. Mas justamente deste ponto de vis- designagdo levanta ainda um problema delicado. Quando
ta, as significações conceituais não valem e não se desen- dizemos “logo”, quando consideramos uma proposicdo como
volvem por si mesmas: elas permanecem subentendidas pelo concluida, fazemos dela o objeto de uma assergdo, isto &,
Eu, que se apresenta, ele próprio, tendo uma significação deixamos de lado as premissas e a afirmamos por si mesma,
imediatamente compreendida, idêntica à sua própria mani- independentemente. Nés a relacionamos ao estado de coisas
festação. Fis por que Descartes pode opor a definição do que designa, independentemente das implicações que cons-
homem como animat racional à sua determinação como Co- tituem sua significagio. Mas, para isto sdo necessarias duas
gito: pois a primeira exige um desenvolvimento explícito condições. É preciso em primeiro lugar que as premissas
dos conceitos significados (que é animal? o que é racional?) sejam postas como efetivamente verdadeiras; o que nos forga
enquanto que a segunda é suscetivel de ser compreendida, desde já a sair da pura ordem de implicagdo para relacio-
no momento mesmo em que for proferida 3. nálas a um estado de coisas designado que pressupomos.
Este primado da manifestação, não somente com rel Em seguida, porém, mesmo supondo que as premissas A e
ção & designação mas com relação 2 significação, deve po B sejam verdadeiras, ndo podemos concluir dai a proposi-
ser entendido em uma ordem da “fala” em que as signifi- ção Z em questio, não podemos destacd-la de suas pre-
cações permanecem naturalmente implícitas. É só aí que missas e afirma-la independentemente da implicação a não
o Eu é primeiro em relação aos conceitos — em relação ser admitindo que ela é por sua vez verdadeira, se A e B
ao mundo e a Deus. Mas se existe uma outra ordem em são verdadeiras: o que constitui uma proposigio C que per-
manece na ordem da implicação, não chega a sair dela, uma
que as significações valem e se desenvolvem por si mesmas,
vez que remete a uma proposição D, que diz ser Z verdadei-
então elas são primeiras, nesta ordem, ¢ fundamentam a
ra se A, B ¢ C sdo verdadeiras... até o infinito. Este
manifestagdo. Esta ordem é precisamente a da lingua:
paradoxo, no coração da légica e que teve uma importincia
uma proposi¢do não pode aparecer ai a não ser como pre-
decisiva para toda a teoria da implicagdo e da significagao
missa ou conclusdo e como significante dos conceitos antes simbélica, é o paradoxo de Lewis Carroll, no texto célebre
de manifestar um sujeito ou mesmo de designar um estado “O que a tartaruga disse a Aquiles”4. Em suma: de um
de coisas. É deste ponto de vista que conceitos significa- lado, destacamos a conclusdo das premissas, mas com a con-
dos, tais como Deus ou o mundo, sdo sempre primeiros re- dição de que, de outro lado, acrescentemos sempre outras
lativamente ao Eu como pessoa manifestada e às coisas premissas das quais a conclusio não é destacivel. É o
como objetos designados. Em termos mais gerais, Benve- mesmo que dizer que a significação ndo é nunca homogê-
niste mostrou que a relação da palavra (ou antes, de sua nea; ou que os dois signos “implica” e “logo” são comple-
prépria imagem acústica) com o conceito era a unica ne- tamente heterogéncos; ou que a implicação não chega nun-
cessdria, ndo arbitriria. Somente a relagio da palavra com ca a fundamentar a designação a não ser que se dê a desig-
o comceito goza de uma necessidade que as outras relagbes nação já pronta, uma vez nas premissas, outra na conclusão.
não tém, uma vez que permanecem no arbitrdrio enquanto Da designação à manifestação, depois à significação,
as consideramos diretamente ¢ que só saem dele na medida mas também da significação à manifestação e à designa-
em que as referimos a esta primeira relação. Assim, a ção, somos conduzidos em um círculo que é o círculo da
possibilidade de fazer variar as imagens particulares associa-
4. CE in Logique sans peino, cd, Hermana, trad, Gattegao e Coumet
das à palavra, de substituir uma imagem por outra sob a Sobre a abundante bibKografia, lterária, lógica e cientítica, que conceme n
esse paradoxo de Carrol, nos reportaremos aos comentários de Ermest Commet,
3. Descantes, Principes, 1, 10. Pp. 281-288.
proposição. A questão de saber se devemos nos contentar das crencas ¢ dos desejos estava fundada na ordem das im-
com estas três dimensões, ou se é preciso acrescentar a plicagGes conceituais da significagdo e, até mesmo, que a
elas uma quarta que seria o sentido, é uma questão econd-| identidade do eu que fala ou diz Ex não era garantida a
mica ou estratégica. Não que devêssemos construir um mo- não ser pela permanéncia de certos significados (conceitos de
delo a posteriori que correspondesse a dimensões prelimina- Deus, do mundo...) O Bu não é primeiro e suficiente na
res. Mas, antes, porque o próprio modelo deve estar apto
ordem da fala senfio na medida em que envolve significa-
do interior a funcionar a priori, ainda que introduzisse uma
ções que devem ser desenvolvidas por si mesmas na ordem
dimensão suplementar que não tivesse podido, em razão de da lingua. Se estas significagdes se abalam, ou não são es-
sua evanescência, ser reconhecida na experiência. Trata-se
tabelecidas em si mesmas, a identidade pessoal se perde —
pois de uma questão de direito e não somente de fato. experiéncia dolorosa por que passa Alice — em condigGes
Contudo, há também uma questão de fato e é preciso co- em que Deus, o mundo e o eu se tornam os personagens
meçar por ela: pode o sentido ser localizado em uma des- indecisos do sonho de um alguém indeterminado. Eis por


tas três dimensões, designação, manifestação ou significa- que o último recurso parece ser o de identificar o sentido
ção? Responderemos primeiro que isto parece impossível com a significagdo.
no que se refere à designação. A designação é o que, sendo ‘Eis-nos jogados no circulo e reduzidos ao paradoxo de
preenchida, faz com que a proposição seja verdadeira; e Carroll, em que a significagio nfio pode nunca exercer seu
não preenchida, falsa. Ora, o sentido evidentemente não
papel de último fundamento e pressupe uma designagio
pode consistir naquilo que torna a proposição verdadeira irredutivel. Mas existe talvez uma razão muito geral pela
ou falsa, nem na dimensão onde se efetuam estes valores. qual a significação malogra e o fundamento faz circulo com
Além do mais, a designação não poderia suportar o peso o fundado. Quando definimos a significação como a con-
da proposição a não ser na medida em que se pudesse mos- digdo de verdade, nós lhe damos um caráter que lhe é co-
trar uma correspondência entre as palavras e as coisas ou mum com o sentido, que já é do sentido. Como, porém,
estados de coisas designados: Brice Parain fez a conta dos por sua propria conta a significagio assume este cariter,
paradoxos que tal hipótese faz surgir na filosofia gregas. E como é que ela faz uso dele? Falando de condição de ver-
como evitar, entre outras coisas, que uma carruagem passe
dade nés nos elevamos acima do verdadeiro e do falso, uma
pela boca? Mais diretamente ainda, Lewis Carroll pergun-
vez que uma proposição falsa tem um sentido ou uma sig-
ta: como os nomes teriam um “correspondente”? E que nificagdo. Mas, a0 mesmo tempo, definimos esta condigdo
significa para alguma coisa “responder” a seu nome? E se superior somente como a possibilidade para a proposigio de
as coisas não respondem a seu nome, que é que as impede
ser verdadeira’. A possibilidade para uma proposigio de
de perder seu nome? O que é que sobraria então, salvo o
ser verdadeira não é nada além do que a forma de possibili-
arbitrário das designações às quais nada responde e o vazio dade da proposição mesma. H4 muitas formas de possibi-
dos indicadores ou dos designantes formais do tipo “isto” — lidade de proposicdes: légica, geométrica, algébrica, fisica,
tanto uns como os outros destituídos de sentido? É certo sintática, . .; Aristóteles define a forma de possibilidade
que toda designação supde o sentido e que nos instalamos| lógica pela relação dos termos da proposição com “lugares”
de antemão no sentido para operar toda designação. que dizem respeito ao acidente, ao próprio, ao gênero ou
Identificar o sentido & manifestação tem maiores chan- 4 definição; Kant chega a inventar duas novas formas de
ces de Êxito, uma vez que os próprios designantes não têm possibilidade, a possibilidade transcendental e a possibilidade
sentido a não ser em função de um Eu que se manifesta na moral. Mas, seja qual for a manejra segundo a qual defi-
proposição. Este Eu é realmente primeiro, pois que faz nimos a forma, trata-se de um estranho empreendimento,
começar a fala: como diz Alice, “se falássemos somente que consiste em nos elevarmos do condicionado a condição
quando alguém nos fala, nunca ninguém diria nada”. Con- para conceber a condição como simples possibilidade do
cluir-se-á que o sentido reside nas crenças (ou desejos) da- condicionado. Eis que nos elevamos a um fundamento,
quele que se exprime . “Quando emprego uma palavra, diz mas o fundado continua a ser o que era, independentemente
também Humpty Dumpty, ela significa o que eu quero que da operagio que o funda, não afetado por ela: assim, a
¢la signifique, nem mais nem menos... A questdo é saber designacdo permanece exterior 4 ordem que a condiciona, o
quem é o senhor e isso é tudo.”Mas vimos que a ordem verdadeiro e o falso permanecem indiferentes ao principio
Panars, Brice. Op. cit. Cap. TM que ndo determina a possibilidade de um deles a não ser
219 281;4 CE. Russell, Signification et vérité, ed. Flammarion, trad. Devaux, pp. 7. Russell, op. cit, p. 198: “Podemos dizer que tudo o que é afirmado
por um emmeiado provido de sentido possui uma certa espécie de possibilidade”.
deixando-o substituir na sua antiga relação com o outro. Neufchiteau e Pierre d’Ailly contra Rimini, Brentano e
De tal forma que somos perpetuamente remetidos do condi- Russell contra Meinong). O fato é que a tentativa de fazer
cionado à condigdo, mas também da condigdo ao condi- aparecer esta quarta dimensdo é um pouco como 2 caga ao
cionado. Para que a condição de verdade escape a este Snark de Lewis Carroll. Ela é, talvez, esta prépria caga e
defeito, serd preciso que ela disponha de um clemento o sentido é o Snark. É dificil responder aqueles que jul-
próprio distinto da forma do condicionado, seria preciso gam suficiente haver' palavras, coisas, imagens e idéias. Pois
que ela tivesse alguma coisa de incondicionado, capaz de podemos
não do sentido, que
nem mesmo dizer, arespeito
assegurar uma génese real da designagdo e das outras ele exista: nem mas coisas, nem no espirito, nem como uma
dimensões da proposigdo: entdo a condigio
definida não mais como forma
de possibilidade conceitual,
de verdade seria NN existencia fisica, nem com uma existéncia mental. Diremos
que, pelo menos, ele é útil e que devemos admiti-lo por sua
mas como matéria ou “camada” ideal, isto é, não mais | t% vtilidade? Nem isso já que é dotado de um esplendor ine-
como significagio, mas como sentido. ;
O sentido é a quarta dimensdo da pmposxgao.
Estéicos a descobriram com o acontecimento: sentido
o é
o&à“f ficaz, impassivel e estéril. Eis por que diziam que, de fato,
não se pode inferi-lo a não ser indiretamente, a partir do
circulo a que nos conduzem as dimensdes ordindrias da
O expresso da proposição, este incorporal na supeúlcxe daskà proposição. É somente rompendo o circulo, como fazemos
coisas, entidade complexa irredutível, acontecimento pnro\) para o anel de Moebius, desdobrando-o no seu compri-
que insiste ou subsiste na proposição. Por uma segunda mento, revirando-o, que a dimensão do sentido aparcce por
vez, no século XIV, esta descoberta é feita na escola de % si mesma e pa sua irredutibilidade, mas também em scu
Ockham, por Gregório de Rimini e Nicolas d’Autrecourt. poder de gênese, animando então um mudelo interior a
Uma terceira vez, no fim do século XIX, pelo grande filó- priori da proposição **. A lógica do sentido é toda inspi-
sofo ¢ lógico Meinong 8. H4, sem dúvida, razdes para estes rada de empirismo; mas, precisamente, não há senão o em-
momentos: vimos como a descoberta estdica supunha uma pirismo que saiba ultrapassar as dimensões experimentais do
reviravolta do platonismo; da mesma forma a lógica ockha- visível, sem cair nas Idéias e encurralar, invocar, talvez pro-
miana reage contra o problema dos universais; e Meinong duzir um fantasma no limite extremo de uma experiência
contra a lógica hegeliana e sua descendéncia. A questão alongada, desdobrada.
é a scguinte: ha alguma coisa, aliguid, que não se confunde Esta dimensão última é chamada por Husserl expressão:
nem com a proposigdo ou os termos da proposigdo, mem ela se distingue da designação, da manifestação, da demons-
com o objeto ou o estado de coisas que ela designa, nem tração!!. O sentido é o expresso. Husserl, não menos que
com o vivido, a representagdo ou a atividade mental da- Meinong, reencontra as fontes vivas de uma inspiração es-
quele que se expressa na proposição, nem com os conceitos tóica. Quando Husserl se interroga, por exemplo, sobre
ou mesmo as esséncias significadas? O sentido, o expresso o “noema perceptivo” ou o “sentido da percepção”, ele o
da proposigdo, seria pois irredutível seja aos estados de distingue ao mesmo tempo do objeto físico, do vivido psico-
coisas individuais, às imagens particulares, às crengas pes- lógico, das representações mentais e dos conceitos lógicos.
soais e aos conceitos universais e gerais. Os Estdicos sou- Ele o apresenta como um impassível, um incorporal, sem
beram muito bem como dizé-lo: nem palavra, nem corpo, existência física nem mental, que não age nem padece, puro
nem representagio sensivel, nem representação racional o, resultado, pura “aparência”: a árvore real (o designado)
Mais do que isto: o sentido seria, talvez, “meutro”, indife- pode queimar, ser sujeito ou objeto de ação, entrar em mis-


rente por completo tanto ao particular como ao geral, ao turas; não o noema da árvore. Há muitos noemas ou sen-
singular como 2o universal, ao pessoal e ao impessoal. Ele tidos para um só e mesmo designado: estrela da noite e
seria de uma outra natureza. Será, preciso, porém, reconhe- estrela da manha são dois noemas, isto é, duas maneiras
cer uma tal instincia como suplemento — ou então deve- pelas quais um mesmo designado se apresenta em expressões.
mos nos arranjar com aquelas de que já dispomos, a desig- Mas, nestas condições, quando Husserl diz que o noema é o
nação, a manifestação e a significação? Em cada uma das 10. Cf. as observações de Albert Lautman sobre o anel de Moebius: ele
épocas referidas, a polêmica foi retomada (André de não tem senão “um só lado ¢ esta é uma propricdade essencialmente extrínseca,
pois que para nos darmos conta disso precisamos fender o anel e revirá-lo,
8. Hubert Elie, num belo livro (Le Compiexe significable, Vrin, 1936), © que supõe uma rsotação em toro de um cixo exterior & superfície do anel,
expõe e comenta as doutrinas de Gregório de Rimini e de Nícolas d'Autrecourt. £, entretanto, (Eossível caracterizar esta unilateralidade por uma proprisdade
Mostra a extrema semelhança das teorias de Meinong, e como uma mesma puramente intrínseca..,” ete, Essai sur les motions de structure et d'existence
Rolêmica se zeproduz nos séculos XIX e XIV, mas não indicn & origem estóica en mathématiques, ed. Hermano, 1938, t. 1, p. 51.
11. Não levamos em conta aqui o emprego particular que Husserl faz
9. Sobre a diferença estóica entre os incorporais e as representações ra- de “sx%râxliuçio“ na sua terminologia, seja para identificá-la, seja para ligh-la
a “sentido”
Cionais, compostas de traços corporais, cf. E. Bréhier, op. cif, pp. 16-18.
percebido tal como aparece em uma apresentação, o “per- partida: o sentido não existe fora da proposição... etc.
cebido como tal” ou a aparência, não devemos compreen- Mas aqui não se trata de um círculo. Trata-se, antes,
der que se trata de um dado sensível ou de uma qualidade, da coexistência de duas faces sem espessura, tal que passa-
mas, ao contrário, de uma unidade ideal objetiva como cor- mos de uma para a outra margeando o comprimento, _In.
relato intencional do ato de percepção. Um noema qual- separavelmente
quer não é dado em uma percepção (nem em uma lembran- roposição e o atributo do estado de coisas.
ça ou em uma imagem), ele tem um estatuto completa- face para as coisas, uma face para as proposições. Mas
mente diferente que consiste em não existir fora da propo- não se confunde nem com a proposição que o exprime nem
sição que o exprime, proposição perceptiva, imaginativa, de com o estado de coisas ou a qualidade que a proposição
lembranga ou de representação. Do verde como cor sen- designa. É, exatamente, a fronteira entre as proposições
sivel ou qualidade, distinguimos o “verdejar”
múática ou atributo. À árvore verdeja, não é isto, final-
como por noe-
insistência, este mínimo de ser que convém às LSRG
e as coisas. É este aliquid,
&
extra-ser e ao me: tempo
mente, o sentido de cor da árvore e a árvore arvorifica, seu teste senti ntecimento”: com a condiçãe
sentido global? O noema será outra coisa além de um
e =
ão confundir. o gco; ntecimento com sua efetuação espo-
de
confundir
não
acontecimento puro, o acontecimento de árvore (embora ço-temporal em um estado de roi. Não
perguntaremas,
‘4—
N.
Husserl assim não fale, por razões terminológicas)? E o ois, qual é o senti tecimento: o acontecimen-
que ele chama de aparência, que é senão um efeito de su- to é o próprio sentido. O acontecimento pertence essen-
perfície? Entre os noemas de um mesmo objeto ou mesmo cialmente inguagem, ele mantém uma relação essencial
de objetos diferentes se elaboram laços complexos análogos com a linguagem; mas a linguagem é o que se diz das coisas.
aos que a dialética estóica estabelece entre os acontecimen- Jean Gattegno marcou bem a diferença entre os contos de
tos. Seria a fenomenologia esta ciência rigorosa dos efeitos Carroll e os contos de fada clássicos: em Carroll tudo o que
de superficie? se passa, passa-se na linguagem e passa pela linguagem;
Consideremos statuto complexo do sentido ou do “não é uma história que ele nos conta, é um discurso que
expresso. De um lado, não existe fora da proposição que nos dirige, discurso em várias partes...!3. É exatamente
o exprime. O expresso não existe fora de sua expressão. neste mundo plano do sentido-acontecimento, ou do expri-
Daí por que o sentido não pode ser dito existir, mas so- mivel-atributo, que Lewis Carroll instala toda sua obra.
mente insistir ou subsistir. Mas, por outro lado, não se Disso decorre a relação entre a obra fantástica assinada
confunde de forma nenhuma com a proposição, ele tem Carroll e a obra matemático-lógica assinada Dodgson. Pa-
uma “objetividade” completamente distinta. O expresso Tece difícil aceitar que se diga, como já se fez, que a obra
não se parece de forma nenhuma com a expressão. O sen- fantástica apresente simplesmente a amostra das armadilhas
tido se atribui, mas não é absolutamente atributo da pro- e dificuldades nas quais caímos quando não observamos as
posição, é atributo da coisa ou do estado de coisas. O regras e leis formuladas na obra légica. Não somente por-
atributo da proposição é o predicado, por exemplo, um pre- que muitas das armadilhas subsistem na própria obra lógica,
dicado qualitativo como verde. Ele se atribui ao sujeito mas porque a partilha parece-nos outra. É curioso cons-
da proposição. Mas o atributo da coisa é o verbo verdejar, tatar que toda obra lógica diz respeito diretamente à sig-
por exemplo, ou antes, o acontecimento expresso por este nificação, & implicações e conclusões ¢ não se refere ao
verbo; e ele se atribui & coisa designada pelo sujeito ou sentido a não ser indiretamente — precisamente por inter-
ao estado de coisas designado pela proposição em seu con- médio dos paradoxos que a significação não resolve ou até
junto. Inversamente, este atributo lógico, por sua vez, não mesmo que ela cria. Ao contrário, a obra fantástica se re-
se confunde de forma alguma com o estado de coisas fisico, fere imediatamente ao sentido e relaciona diretamente a ele
nem com uma qualidade ou relagdo deste estado. O atri- a potência do paradoxo. O que corresponde aos dois esta-
dos do sentido, de fato e de direito, a posteriori e a priori,

‘buto não é um ser e não qualifica um ser; é um extra-ser.


um pelo qual o inferimos indiretamente do círculo da pro-
Verde designa uma qualidade, uma mistura de coisas, uma
mistura de árvore e de ar em que uma clorofila coexiste posição, outro pelo qual o fazemos aparecer por si mesmo
com todas as partes da folha. Verdejar, ao contrário, não desdobrando o círculo ao longo da fronteira entre as pro-
é uma qualidade na coisa, mas um atributo que se diz da posições e as coisas.
coisa e que não existe fora da proposição que o exprime . 12, Estes termos, insisténcia
minologia de Meinons, assim como na dos estéicos.
e extra-ser, tém scu correspondente na ter-

designando a coisa. E eis-nos de volta a nosso ponto de ¥ 18. Em Logique sans peine, op. cit., prefácio, pp. 19-20.
WKREUMGINLOA JULUIIC.

Das Dualidades

A primeira grande dualidade era a das causas e dos


efeitos, das coisas corporais e dos acontecimentos incorpo-
rais. Mas, na medida em que os acontecimentos-efeitos não
existem fora das proposições que os exprimem, esta duali-
dade se prolonga na das coisas e das proposições, dos corpos
e da linguagem. De onde a alternativa que atravessa toda a
obra de Lewis Carroll: comer ou falar. Em Sílvia e Bruno
a alternativa é: bits of things ou “bits of shakespeare”. No
jantar de cerimônia de Alice, comer o que se vos apresenta
ou ser apresentado ao que se come. Comer, ser comido, é o
modelo da operação dos corpos, o tipo de sua mistura em
profundidade, sua ação e paixdo, seu modo de coexisténcia
um no outro. Mas falar é o movimento da superficie, dos
atributos ideais ou dos acontecimentos incorporais. Pergun-
ta-se o que é mais grave: falar de comida ou comer as pa-
lavras. Em suas obsessGes alimentares, Alice é atravessada
por pesadelos que se referem a absorver, ser absorvido.
Ela constata que os poemas que ouve falam de peixes
comestiveis. E se falarmos de alimento, como evitar fa-
zê-lo diante daquele que deve servir de alimento? Assim,
temos as gafes de Alice diante do camundongo. Como evitar
comer o pudim ao qual se foi apresentado? Mais ainda, as
palavras vém de forma atravessada, como atrafdas pela pro-
fundidade dos corpos, com alucinagdes verbais, como vemos
nestas doengas em que as perturbagdes da linguagem sdo
acompanhadas por comportamentos orais desencadeados
(levar tudo à boca, comer qualquer objeto, ranger os dentes).
“Estou segura de que ndo sio as verdadeiras palavras”, diz
Alice resumindo o destino daquele que fala dg comida. Mas
BIBLICTECA SEICRIML BE CiclelÃ
SULIKID E livinmoiwnnd
comer as palavras é justamente o contrário: elevamos a ope- comestibilidade das coisas, a impenetrabilidade dos incor-
ração dos corpos à superfície da linguagem, fazemos subir porais sem espessura as misturas e penetragbes reciprocas
os corpos destituindo-os de sua antiga profundidade, prestes das substâncias, a resisténcia da superficie à moleza das pro-
a pôr em risco toda a linguagem neste desafio. Desta vez, as fundidades, em suma, a “dignidade” dos verbos às compla-
perturbações são de superfície, laterais, esparramadas da céncias dos substantivos e adjetivos. E impenetrabilidade
direita para a esquerda, À gagueira substituiu a gafe, os fan- quer dizer também a frontcira entre os dois — e quer dizer
tasmas da superfície substituíram a alucinação das profun- que aquele que estd sentado sobre a fronteira, exatamente
didades, os sonhos de deslizamento acelerado substituíram como Humpty Dumpty, estd sentado sobre o seu muro es-
os pesadelos de soterramento e absorção difíceis. Assim, a treito, dispde dos dois, semhor impenetrivel da articulação
menina ideal, incorporal e inapetente, o menino ideal, gago de sua diferenga (“eu posso, entretanto, me servir de todas
e canhoto, devem se desligar de suas imagens reais, vorazes, a meu bel-prazer”).
de glutões e de desastrados. O que não é ainda suficiente, A última palavra da
Mas esta segunda dualidade, corpo-linguagem, comer- dualidade não se acha neste retorno à hipétese do Crdtilo.
-falar, não é suficiente. Vimos como o senti ão A dualidade na proposicdo não é entre duas espécies de
exista fora da proposição que o exprime, é o atributo nomes, de repouso e momes de vir-a-ser, nomes de subs-
estados de coisas e não da proposição. O acontecimento tancias ou qualidades e nomes de acontecimentos, mas entre
subsiste na linguagem, mas acontece às coisas. As coisas e duas dimensões da prépria proposição: a designação e a
as proposições acham-se menos em uma dualidade radical do expressdo, a designagdo de coisas ¢ a expressdo de sentido.
que de um lado e de outro de uma fronteira representada pelo É como se fossem dois lados de um espelho: mas o que se
sentido. Esta fronteira não os mistura, não os reúne (não acha de um lado não se parece com o que se acha do outro
há monismo tanto quanto não há dualismo), ela é, antes, (“tudo o mais era tio diferente quanto possivel...”). Pas-
a articulação de sua diferença: corpo/linguagem. Se com- sar do outro lado do espelho é passar da relagdo de desig-
pararmos o acontecimento a um vapor nos prados, este vapor nagdo à relagio de expressio — sem se deter nos interme-
se eleva precisamente na fronteira, na dobradiça das coisas diarios, manifestagdo, significagdo. É chegar a uma dimen-
e das proposições. Tanto que a dualidade se reflete dos dois são em que a linguagem ndo tem mais relação com designa-
. lados, em cada um dos dois termos. Do lado da coisa, há dos, mas somente com expressos, isto é, com o sentido. Tal
as qualidades físicas e relações reais, constitutivas do estado é o último deslocamento da dualidade: ela passa agora para
de coisas; além disso, os atributos lógicos ideais que marcam o interior da proposição.
os acontecimentos incorporais. E, do lado da proposição, há O camundongo conta que, quando os senhores proje-
os nomes e adjetivos que designam o estado de coisas ¢, taram oferecer a coroa a Guilherme, o Congquistador, “o
além disso, os verbos que exprimem os acontecimentos ou arcebispo achou isto razodvel”. O pato pergunta: “Achou
atributos 16gicos. De um lado, os nomes préprios singula- o quê?” — “Achou isto, replicou o camundongo muito irri-
res, os substantivos e adjetivos gerais que marcam as me- tado, o senhor sabe muito bem o que isfo quer dizer. —
didas, as paradas e repousos, as presengas; de outro, os Sei muito bem o que isfo quer dizer quando encontro uma
verbos que carregam consigo o devir e seu cortejo de acon- coisa, diz o pato; em geral é uma rã ou um verme. A per-
tecimentos reversiveis e cujo presente se divide ao infinito gunta é: o que foi que o arcebispo encontrou?” É claro que
em passado e futuro. Humpty Dumpty distingue com vigor o pato emprega e compreende isto como um termo de de-
as duas espécies de palavras: “Algumas tém cariter, nota- signagdo para todas as coisas, estados de coisas e qualidades
damente os verbos: são as mais dignas. Com os adjetivos possiveis (indicador). Ele chega mesmo a precisar que o
podemos fazer o que quiser, mas não com os verbos. Eu designado é essencialmente o que se come ou se pode comer.
sou capaz, no entanto, de me servir de todas a meu bel- Todo designével ou designado é, por principio, consumivel,
-prazer! Impenctrabilidade! Eis o que digo”. E quando penetrével; Alice observa em algum outro lugar que não
Humpty Dumpty explica a palavra insélita “impenetrabi- pode “imaginar” a ndo ser alimentos. Mas o camundongo
lidade”, dá uma razio muito modesta (“quero dizer que empregava isto de maneira completamente diferente: como
tagarelamos bastante a este respeito”). Na realidade, im- o sentido de uma proposigdo preliminar, como o aconteci-
penetrabilidade quer dizer algo muito diferente. Humpty mento expresso pela proposigdo (ir oferecer a coroa a Gui-
Dumpty opõe a impassibilidade dos acontecimentos s ações lherme). O equivoco sobre isto se distribui, por conseguinte,
e paixdes dos corpos, a incomunicabilidade do sentido à segundo a dualidade da designagdo e da expressdo. As duas
dimensões da proposição se organizam em duas séries que Ele pensava ver um argumento
não convergem senão no infinito, em um termo tão ambíguo que provava que ele era o Papa,
olhou uma segunda vez e se deu conta de que era
quanto isto, uma vez que se encontram somente na fron- uma barra de sabão pintada.
teira que não cessam de bordejar. E uma das séries retoma Um acontecimento tão terrivel, disse com uma voz fraca,
à sua maneira “comer”, enquanto que a outra extrai a es- extingue toda esperanga.l
sência de “falar”. Eis por que em muitos poemas de Carroll
assiste-se ao desenvolvimento autônomo das duas dimensões
simultâneas, uma remetendo a objetos designados sempre
consumíveis ou recipientes de consumação, a outra a sen-
tidos sempre exprimíveis ou, pelo menos, a objetos porta-
dores de linguagem e de sentido, as duas dimensões conver-
gindo somente em uma palavra esotérica, em um aliquid
não identificável.. Assim, o refrão de Snark: “Você pode
persegui-lo com dedal e também persegui-lo com cuidado,
pode caçá-lo com garfos e esperança” — em que o dedal e o
garfo se referem a instrumentos designados, mas esperança
e cuidado, a considerações de sentido e de acontecimen-
tos (o sentido em Lewis Carroll é freqiientemente apresen-
tado como aquilo com o que se deve “tomar cuidado”, objeto
de um “cuidado” fundamental). A palavra rara, o Snark,
é a fronteira perpetuamente contornada, ao mesmo tempo
que traçada pelas duas séries. Mais tipica ainda é a admi-
rável canção do jardineiro em Silvia e Bruno. Cada estrofe
põe em jogo dois termos de gênero muito diferente que sê
oferecem a dois olhares distintos: “Ele pensava que via ...
Ele olhou uma segunda vez e se deu conta de que era...”
O conjunto das estrofes desenvolve assim duas séries hete-
rogéneas, uma feita de animais, de seres ou de objetos con-
sumidores ou consumiveis, descritos segundo qualidades fi-
sicas, sensiveis e sonoras; a outra, feita de objetos ou de
personagens eminentemente simbdlicos, definidos por atri-
butos lógicos ou, por vezes, apelagbes parentais e portadores
de acontecimentos, de moticias, de mensagens, de sentidos.
Na conclusão de cada estrofe, o jardineiro traga uma ala-
meda melancélica, margeada de uma parte e de outra pelas
duas séries; pois esta cangdo — é preciso que se saiba — é
sua prépria histéria.

Ele pensava ver um elefante


que se exercitava com uma flauta
olhou por uma segunda vez e se deu conta de que era
uma carta de sua mulher.
No final compreendo, disse ele,
o amargor da vida...
Ele pensava ver um albatroz
que batia em torno da limpada,
olhou uma segunda vez e se deu conta de que era 1. A canção do jardineiro, em Silvia e Bruno, é formada por nove estro-
um selo postal no valor de um penny. fes, das quais oito estio dispersas no primeiro tomo, a nona aparecendo em
Farias melhor se voltasses para casa, disse ele,
Sylvie and Bruno concluded (capítalo 20). Uma tradução do conjunto é dada
por Henri Parisot em Lewis Carroll, ed. Seghers, 52 e por Robert Benayoun em
as noites sio muito úmidas... sua Anthologie du nomsense, Pauvert, ed., 1957, pp. 180-182.
Quinta Série:
Do Sentido

Mas, já que o sentido ndo é nunca apenas um dos dois


termos de uma dualidade que opõe as coisas e as propo-
sigdes, os substantivos e os verbos, as designações e as
expressdes, já que é também a fronteira, o corte ou a ar-
ticulação da diferenga entre os dois, ja que dispde de uma
impenetrabilidade que lhe é prépria e na qual se reflete,
ele deve se desenvolver numa nova série de paradoxos, desta
vez interiores.
/fl (DParadoxo da regressão ou da_proliferagio_indefinida.
* Quando designo alguma coisa, suponho sempre que o sen-
tido é comprçqujdgl&sígr%le. Como diz Bergson.
não vamos dos sons às imagens e das imagens ao sentido:
instalamo-nos logo “de saída” em Ws%teíddeo
é como a esfera em que estou instalado para operar as desig-
nações possíveis e mesmo para pensar suas condições. O
sentido está sempre pressuposto desde que o eu começa a
; falar; eu não poderia começar sem ºªªºª”lªãº' Po
/ outras palavras: nunca digo o senti uilo que digo.
, Mas, em compensação, posso sempre tol i o
' que
qu digo como objeto de uma outra proposição,da qual, por
| sua vez, não digo o sentido. Entro então em uma regressão
infinitado pressuposto. Esta regressão dá testemunho, ao
mesmo tempo, da maior M%q%w e da
mais alta potência da linguagem: iã impotência em
dizer o sentido do que digo, em dizer ao mesmo tempo algu-
ma coisa e seu sentido, mas também o poder infinito da lin-
guagem de falar sobre as palavras. Em suma: sendo dada
uma proposição quê dêsigna um estado de coisas, podemos
sempre tomar seu sentido como o designado de uma outra
proposição. Se concordamos em considerar à proposição dade, que designa pois a canção ou que representa o que a
como um nome, é evidente que todo nome que designa um canção é chamada; o sentido deste nome, que forma um
objeto pode se tornar objeto de um novo nome que designa novo nome ou uma nova realidade; o nome que designa
seu sentido: n, sendo dado remete a n; que designa o sentido esta nova realidade, que designa pois o sentido do nome
de n,, n; a n; eto. IWWM& da canção ou que representa como o nome da canção é
gem deve conter um nome para o sentido deste nome, Esta chamado. Devemos fazer várias observações: em primeiro
proliferagao infinita das entidades verbais é conhecida como lugar, que Lewis Carroll se limitou voluntariamente, já que
paradoxo de Frege!. Mas é este também o paradoxo de não leva em conta nem mesmo cada estrofe em particular e
Lewis Carroll. Ele aparece rigorosamente do outro lado do


já que sua apresentação progressiva da série lhe permite
espelho, no encontro de Alice com o cavaleiro. O cavaleiro atribuir-se nela um ponto de partida arbitrário, “Olhos es-
anuncia o titulo da canção que vai cantar “O nome da can- bugalhados”. Mas é evidente que a série, tomada no seu
ção é chamado Olhos esbugalhados” — “Oh, é o nome da sentido regressivo, pode ser prolongada ao infinito na alter-
canção?” diz Alice. — “Não, vocé não compreendeu, diz néncia de um nome real e de um nome que designa esta
o cavaleiro. É como o nome é chamado. O verdadeiro realidade. Observar-se-á, por outro lado, que a série de
nome é: o Velho, o velho homem”. — “Entdo eu deveria Carroll é muito mais complexa do que aquela que indicá-

——
ter dito: é assim que a canção é chamada?’ corrigiu Alice. vamos há pouco. Antes tratava-se, com efeito, apenas do
— “Não, não deveria: trata-se de coisa bem diferente. A seguinte: um nome que designa uma coisa remete a outro
canção é chamada Vias e meios; mas isto é somente como ela nome que designa seu sentido, ao infinito. Na classificação
é chamada, compreendeu?” — “Mas entdo, o que é que ela de Carroll esta situação precisa é representada somente por
é — “Já chego ai, diz o cavaleiro, a canção é na realidade n; € N4: n, É o nome que designa o sentido de n.. Ora,
Sentado sobre uma barreira’, ) Lewis Carrol! aí acrescenta dois outros nomes: um primeiro,
Este texto, que só pudemos traduzir pesadamente, para porque ele trata a coisa primitiva designada como sendo ela
sermos fiéis 3 terminologia de Carroll, distingue uma série de própria um nome (a canção); um terceiro, porque trata o
entidades nominais. Ele ndo segue uma regressão infinita sentido do nome designador como sendo ele próprio um
mas, precisamente para se limitar, procede segundo uma nome, independentemente do nome que vai, por sua vez,
.progressiio convencionalmente finita. Devemos pois partir designá-lo. Lewis Carroll forma, pois, a regressio com
do fim, restaurando a regressão natural. 19) Carroll diz: a quatro entidades nominais que se deslocam ao infinito.
canção é, na realidade, “Sentado sobre uma barreira”. É Isto é: ele decompde cada par, fixa cada par, para tirar
que a canção é, ela rópria, uma proposição, um nome deste um par suplementar. Veremos por qué. Mas pode-
(seja n,). “Sentado sobre uma barreira” é este nome, este mos nos contentar com uma regressão de dois termos alter-
nome que é a canção e que aparece desde a primeira es- nanfes: o nome que designa alguma coisa € o mome que
trofe. 2º) Mas não é o nome da canção: sendo ela própria Jesigna o senfido deste primeiro nome. Esta regressão com
um nome, a canção é designada por um outro nome. Este dois termos é a condicao minima de proliferago indefinida.
segundo nome (seja nº), é “Vias e meios”, que forma o Esta expressdo mais simples aparece em um texto de
tema das 22, 32, 42 e 52 estrofes. Vias e meios é pois o Alice, em que a Duquesa encontra sempre a moral a ser
nome que designa a canção, ou o que a canção é chamada. extraida de toda e qualquer coisa. De toda coisa, com a
30) Mas o nome real, acrescenta Carroll, é o “Velho, velho condigdo, pelo menos, de que seja uma proposigdo. Pois
homem”, que aparece, com efeito, no conjunto da canção. É quando Alice não fala a duquesa fica desamparada: “Você
que o próprio nome designador tem um sentido que forma pensa em alguma coisa, querida, e isto faz esquecer de falar.
um novo nome (n;). 4º) Mas este terceiro nome, por sua Não posso lhe dizer, por enquanto, qual é a moral”. Mas,
vez, deve ser designado por um quarto. Isto é: o sentido assim que Alice fald, 2 duquesa encontra as morais: “Pa-
de ng, ou seja na,, deve ser designado por nu. Este quarto rece-me que agora o jogo anda muito melhor”, diz Alice —
nome é como o nome da canção é chamado: “Olhos esbu-
“E verdade, diz a duquesa, e a moral disto é: oh! é o amor,
galhados”, que aparcce na 6% estrofe. & o amor que faz girar o mundo” — “Alguém disse, mur-
Há quatro nomes na classificagio de Carroll: o nome murou Alice, que o mundo girava quando cada qual tratava
como
1.
realidade da
Cf. G. Frege,
canção;
Ueber Sinn und
o mome
Bedeutung,
que designa
Zeitschrift £, Ph.
esta reali-
und ph. Kr.
dos seus proprios problemas.” — “Pois &, quer dizer mais
1892. Esse principlo de uma proliferacho infinita das entidades suscitou em ou menos a mesma coisa, diz a duquesa, ... € a moral
muitos lógicos contemporaneos resisténcias pouco justificadas: assim Carnap, é: tome cuidado com o sentido e os sons tomardo
Meaning and necessity, Chicago, 1947, pp. 130-138. disto
outro. E se o primeiro nos forga a comjugar o mais alto
cuidado de si mesmos.” Não se trata de associações de
idéias, de uma para outra frase, em toda esta passagem: a poder e a maior impoténcia, o segundo nos impõe uma
moral de cada proposição tarefa andloga, que serd preciso cumprir mais tarde: con-
consiste numa outra proposição jugar a esterilidade do sentido com relação à proposição
que designa o sentido da primeira. entido o obje!
de uma nova proposição, é isto “cuidar bem do sentido”, em
de onde o extrafmos, com sua poténcia de génese quanto as
condições tais que as proposições proliferam, “os sons tomam
dimensSes da proposigdo. De qualquer maneira, parece que
conta de si mesmos”. Lewis Carroll está vivamente consciente de que os dois
Confirma-se a possibilidade de um
laço profundo entre a lógica do sentido e a ética, paradoxos formam uma alternativa, Em Alice, os perso-
a moral nagens só tém duas possibilidades para se secar do banho
ou a moralidade,
de légrimas em que cairam: ou escutar a histéria do ca-
@ Paradoxo do_desdobramento estéril ou da reiteracdo mundongo, a mais “seca” histéria que se comhece, já que
Seca. Há um meio de evitar esta regressio ao infinito: é ela isola o sentido de uma proposição em um isto fantasma-
fixar a proposigdo, imobilizá-la, justamente no momento de gbrico; ou se langar em uma corrida louca, em que giramos
extrair dela o sentido como esta ténue pelicula no limite das em circulo de proposição em proposição, parando quando
coisas e das palavras, (Daí o desdobramento que acabamos queremos, sem vencedor nem vencido, mo circuite de uma
de constatar em Carroll a cada etapa da regressio.) Mas proliferagdo infinita. De qualquir maneira, a secura é o
serd que é este o destino do sentido: não podemos dispen- que serd chamado mais tarde de impenetrabilidade. E os
sar esta dimensão, mas, ao mesmo tempo, não sabemos dois paradoxos representam as formas essenciais da gagueira,
o que fazer com ela quando a atingimos? Que fizemos a forma coréica ou clônica de uma proliferacio convulsiva
além de liberar um duplo neutralizado da proposigio, seco em circulo e a forma tetdnica ou tonica de uma imobili-
fantasma, sem espessura? Eis por que, sendo o sentido ex- zação sofreada. Como se diz em “Poeta fit non nascitur”,
Presso por um verbo na proposição, exprime-se este verbo espasmo ou assobio, as duas regras do poema.
sob uma forma infinitiva ou participial ou interrogativa: @ Paradoxo da_neutralidade oy do terceiro-estado daes-
Deus-ser ou o existente-azul do céu, ou o céu é azul? O O segundo paradoxo, por sua vez, nos joga nece:
seatido opera a suspensdo da afirmagdo assim como da ne- sariamente em um terceiro. Pois se o sentido como duplo
da proposigiio é indiferentc tanto & afirmagiio como à nega-
ção, se não é nem passivo e mem ativo, nenhum modo da
proposição é capaz de afeti-lo. O sentido permanece estri-
tamente o mesmo para proposicdes que se opõem seja do
ponto de vista da qualidade, seja do ponto de vista da quan-
tidade, scja do ponto de vista da relagdo, seja do ponto de
-acontecimento: somente os corpos agem e padecem, mas vista da modalidade. Pois todos estes pontos de vista con-
ndo os incorporais, que resultam das ações e das paixdes. cernem, & designagdo e aos diversos aspectos de sua efetua-
Este paradoxo podemos, pois, chamé-lo de paradozo dos ção ou preenchimento por estados de coisas e ndo ao sentido
Estóicos. Até em Husserl repercute a declaragio de uma ou à expressio. Primeiramente, a qualidade, afirmação e
espléndida esterilidade do expresso, que vem confirmar o negagdo: “Deus é” e “Deus não é” devem ter o mesmo sen-
estatuto do noema: “A camada da expressão — e af está sua tido, em virtude da autonomia do sentido com relagdo &
originalidade — a não ser, precisamente, que existéncia do designado. Tal é, no século XIV, o fantastico
confira uma
expressão a todas as outras intencionalidades, não é produ- paradozo de Nicolas d’Autrecourt, objeto de reprovagdo:
tiva. Ou, se quisermos: sua produtividade, sua ação noemd- contradictoria ad invicem idem significant 3.
tica, esgotam-se no exprimir” 2, Depois a quantidade: todo homem é branco, nenhum

<
. Extraído da proposição, o sentido é independente desta, homem não é branco, algum homem não é branco... E a
ois. del i a negação e, no_entanto, relação: o sentido deve permanecer o mesmo para a rela-
não é del escente: exatamente o sor- ção invertida, uma vez que a relagio com respeito a ele
riso sem gato de Carroll ou a chama sem vela. E os dois se estabelece sempre nos dois sentidos ao mesmo tempo, na
paradoxos — o da regresso infinita e o do desdobramento medida em que ele faz emergir todos os paradoxos do
estéril — formam os termos de uma alternativa: um ou o devir-louco. O sentido é sempre duplo sentido e exclui a
8. Cf Hobert Elie, op. cit, E. Maurice de Gandillac, Le Moucement
2. Husser, Idées $ 124: Ed. Gallimard, wad, Ricoeur, p. 421, Doctringl du 1Xº au XIVe sidele, Bloud e Gay, 1951.
possibilidade de que haja um bom sentida da relação. Os linguagem, uma das técnicas mais gerais de Carroll é a que:
linguagem,
pri-
acontecimentos nunca são causa uns dos outros, mas entram consiste na apresentação duas vezes do acontecimento:
em relações de quase-causalidade, causalidade real e fantas- meiro na proposição em que subsiste e, em seguida, no esta-
magórica que não cessa de assumir os dois sentidos. Não do de coisas ao qual, na superfície, ele advém. Uma vez na
é nem ao mesmo tempo nem relativamente à mesma coisa estrofe de uma canção que o relaciona à proposição, outra
que eu sou mais jovem e mais velho, mas é ao mesmo no efeito de superfície que o relaciona aos seres, às coisas e
tempo que me torno um e outro e pela mesma relação. De estados de coisas (por exemplo, a batalha de Tweedledum e
onde os exemplos inumeráveis disseminados na obra de de Tweedledee ou a do leão e a do unicórnio; e em Sílvia
Carroll, onde vemos que “os gatos comem os morcegos” € e Bruno, onde Carroll pede ao leitor para adivinhar se cons-
“os morcegos comem os gatos”, “digo o que penso” e truiu as estrofes da canção do jardineiro a partir dos acon-
“penso o que digo”, “amo o que me dão” e “dão-me o tecimentos ou os acontecimentos a partir das estrofes). Mas
que eu amo”, “respiro quando durmo” e “durmo quando será que devemos mesmo dizer duas vezes, pois é sempre ao
respiro” — têm um só e mesmo sentido. Até no exemplo mesmo tempo, pois são as duas faces simultâneas de uma
final de Sílvia e Bruno, em que a jóia vermelha que traz es- mesma superfície da qual o interior e o exterior, a “insis-
crita a proposição “Todo mundo amará Sílvia” e a jóia azul téncia” e o “extra-ser”, o passado ¢ o futuro, acham-se em
que traz a proposição “Sílvia amará todo mundo” são os continuidade sempre reversivel?
dois lados da mesma jóia que não podemos preferir senão Como poderiamos resumir estes paradoxos da neutrali-
a si mesmo segundo a lei do devir (to choose a thing from mostram, sem exceção, o sentido inafetado
dade, os quais
itself). distinguia
pelos modos da proposicdo? O filósofo Avicena
Finalmente, a modalidade: como a possibilidade, a rea- universal com relação ao inte-
trés estados da esséncia:
lidade ou a necessidade do objeto designado afetariam o relagdo às coisas
lecto que a pensa em geral; singular com
sentido? Pois o acontecimento, por conta prépria, deve ter
particulares em que se encarna. Mas nenhum destes dois
uma só e mesma modalidade, no futuro e no passado se-
estados é a esséncia em si mesma: Animal não é nada além
gundo os quais ele divide ao infinito sua presenca. E se o animal non est nisi animal fantum, indiferente
de animal,
acontecimento é possivel no futuro e real no passado, é pre-
tanto ao universal como ao singular, tanto ao particular como
ciso que seja os dois a0 mesmo tempo, pois ele então se divi-
a0 geral 5. O primeiro estado da esséncia ¢ a esséncia como
« de ai ao mesmo tempo. Isto significa que ele é necessario? na ordem do conceito e das im-
significada pela proposição,
Todos se lembram do paradoxo dos futuros contingentes e
plicações de conceito. O segundo estado é a esséncia en-
da importéncia de que gozou junto ao estoicismo. Ora, a
quanto designada pela proposigdo nas coisas particulares em
hipétese da necessidade repousa na aplicagdo do principio
que se empenha. Mas o terceiro é a esséncia como senti-
de contradigio à proposi¢do que enuncia um futuro. Os do, a esséncia como expressa: sempre nesta secura, animal
Estéicos fazem prodigios, colocados nesta perspectiva, para
tantum, esta esterilidade ou esta neutralidade espléndidas.
escapar à necessidade e para afirmar o “fatal”: não o ne- Indiferente ao universal e ao singular, ao geral e ao par-
cessário *. É preciso, preferencialmente, sairmos desta pers- ticular, ao pessoal e ao coletivo, mas também & afirmação e
pectiva, sujeitos a reencontrar a tese estdica em um outro à negação etc. Em suma: indiferente a todos os opostos.
plano. Pois o principio de contradigdo se refere, de um
Pois todos estes opostos são somente modos da proposição
lado, & impossibilidade de uma efetuação de designagic e,
considerada nas suas relações de designagdo e de significa-
de outro, ao minimo de uma condição de significagdo. Mas Será,
ção e não caracteristicas do sentido que ela exprime.
não concerne, talvez, ao sentido: nem possivel, nem real, pois, que o estatuto do acontecimento puro e do fatum que
nem necessirio, mas fatal... O acontecimento subsiste na o acompanha não é o de ultrapassar todas as oposigdes:
roposicdo que o exprime €. a0 mesmo tempo, advém às
nem privado, nem piiblico, nem coletivo, nem individual. . .,
coisas em sua superticie, no exterior do ser: & é isto, como tanto mais terrivel e poderoso nesta neutralidade, uma vez
veremos, “fatal”. É próprio também do acontecimento ser que é tudo ao mesmo tempo?
dito como futuro pela proposigic, mas não é menos préprio rdo ou dos objetos impossiveis. Deste
Paradoxo
à proposição dizer o acontecimento como passado. Preci- que s
de-
samente porque tudo passa pela linguagem e sc passa na paradoxo decorre ainda um outro: asproposicde
signam objetos contraditérios têm um sentido. Sua designa-
4. Sobre o paradoxo dos futuros contingentes e sua importincia mo pen-
;uón?nm leªstsâmo. É. o estudo de P. M. Schuhl, Le Dominateur et les possibles, 5. Cf. o5 comentirios de Etieane Gilson, FÊtre et Vessence, ed. Vrin, 1948,
pp. 120-123.
ção, entretanto, não pode em caso algum ser efetuada; e elas L Sexta Série:
Sobrea _ .


não têm nenhuma significação, a qual definiria o gênero de
possibilidade de uma tal efetuação. Elas são sem signifi-
cação, isto é, absurdas. Nem por isso deixam de ter um Colocacao em Séries
sentido e as duas noções de absurdo e de não-senso não
devem ser confundidas. É que os objetos impossíveis —
quadrado redondo, matéria inextensa, perpetuum mobile,
montanha sem vale etc. — são objetos “sem pátria”, no
exterior do ser, mas que têm uma posição precisa e distinta
no exterior: eles são “extra-ser”, puros acontecimentos ideais
inefetuáveis em um estado de coisas. Devemos chamar este
paradoxo de paradoxo de Meinong, que soube tirar dele
os mais belos e mais brilhantes efeitos. Se distinguimos
duas espécies de ser, o ser do real como matéria das desig-
nações e o ser do possível como forma das significações,
devemos ainda acrescentar este extra-ser que define um
mínimo comum ao real, ao possivel e ao impossivel. Pois
o princípio de contradição se aplica ao real e ao possível,
mas não ao impossível: os impossíveis são extra-existentes,
O paradoxo de que todos os outros derivam é o da
reduzidos a este mínimo e, enquanto tais, insistem na pro-
regressdo indefinida. Ora, a regressio tem necessariamente
posição.
a forma serial: cada nome designador tem um sentido
que deve ser designado por um outro nome, n, > 1 * n:
— mM ... Se consideramos somente a sucessio dos nomes, a
série opera uma sintese do homogéneo, cada nome distin-
gue-se do precedente apenas pela sua posigdo, seu grau ou
seu tipo: de acordo com a teoria dos “tipos”, com efeito,
cada nome que designa o sentido de um precedente é de um
grau superior a este nome e ao que ele designa. Mas se con-
sideramos não mais a simples sucessio dos momes, mas o
que alterna nesta sucessão, vemos que cada nome étomado
prifiieiro
designagdo
na que ópera e, em seguida,no sentido
que exprime, uma vez que é este sentido que serve de desig-
nado ao outro nome: a vantagem da apresentagio de Lewis
Carroll era, precisamente, a de fazer aparecer esta diferenga
de natureza. Desta vez, trata-se de uma sintese do hetero-
géneo; ou antes, flmm&m%fwia
simultaneidade de duas séries pelo menos. Toda sérle única,
cujos termos homogéneos se distinguem somente pelo tipo
ou pelo grau, subsume mecessariamente duas séries hetero-
géneas, cada série constituida por termos de mesmo tipo
ou grau, mas que diferem em natureza dos da outra série
(eles podem também, como é óbvio, diferir em grau).
forma serial €, pois, essencialmente multisserial. Já é assi
em matemética, onde uma série construida na vizinhanga de
um ponto ndo tem interesse a ndo ser em função de umal
outra série, construida em torno de outro ponto e que con-
verge ou diverge da primeira. Alice é a histéria de uma
regressdo oral; mas “regressdo” deve ser compreendido pri-
meiro em um sentido lógico, o da sintese dos nomes; e a designada ou o sujeito manifestado. Finalmente, o signifi-
forma de homogeneidade desta síntese subsume duas séries cante é a única dimensão da expressão, que possui com
heterogêneas da oralidade, comer-falar, coisas consumíveis- efeito o privilégio de não ser relativa a um termo independen-
-sentidos exprimíveis. É, assim, a forma serial que nos te, uma vez que o sentido como expresso não existe fora
remete aos paradoxos da dualidade que descrevêramos há da expnassãoi%l então o_significado é a designação, a ma-
pouco e nos força a retomá-los a partir deste novo ponto fifestação oú mesmo a significação, no sentido estrito, isto
de vista. & a proposição enQUENto 0 seniido ouo expresso dela-se
Com cfeito, as duas séries heterogêneas podem ser de- distingue. Ora, quando se estende o método serial, consi-
terminadas de maneiras diversas. Podemos considerar uma derando-se duas séries de acontecimentos ou duas séries de
série de acontecimentos e uma série de coisas em que estes coisas ou duas série de proposições ou ainda duas séries de
acontecimentos se efetuam ou não; ou então, uma série de expressões, a homogeneidade não é senão aparente: sempre
proposições designadoras e uma série de coisas designadas; uma tem um papel de significante e a outra um papel de
ou então, uma série de verbos e uma série de adjetivos e significado, mesmo que elas troquem estes papéis quando
substantivos; ou então, uma séric de expressdes e de senti- mudamos de ponto de vista.
dos ¢ uma série de designagdo e de designados. Estas va- Jacques Lacan pôs em evidéncia a existência de duas
riagbes não tém nenhuma importincia, já que representam séries em uma narrativa de Edgar Poe. Primeira série: o
apenas graus de liberdade para a organização das sérics he- rei que não vê a carta comprometedora recebida por sua
terogéneas: é a mesma dualidade, como vimos, que passa mulher; a rainha, aliviada por ter melhor escondido a carta
pelo lado de fora entre os acontecimentos ¢ os estados de justamente por ter deixado a carta em evidência; o ministro
coisas, na superficie entre as proposicdes e os objetos desig- que vê tudo e se apodera da carta. Segunda série: a polícia,
nados e no interior da proposição entre -as expressões e as que não acha nada em casa do ministro; o ministro que teve
designagdes. Mas, o que é mais importante é que podemos a idéia de deixar a carta em evidência para melhor escondê-
construir as duas séries sob uma forma aparentemente ho- -Ja; Dupin que vê tudo e retoma a cartal. É evidente que as
mogénea: podemos entdo considerar duas séries de coisas diferenças entre séries podem ser mais ou menos grandes
— muito grandes em alguns autores, muito pequenas em
ou duas séries de acontecimentos; ou duas séries de propo-
sições, de designagGes; ou duas séries de sentidos ou de ex- outros que não introduzem 2 não ser variações infinitesimais,
pressdes. Significa isto que a constituição das séries se faz mas não menos eficazes. É evidente também que a relação
entre as séries, o que se refere a significante à significada, o
de forma arbitraria?
que põe a significada em relação com a significante, pode ser
A lei das duas séries simultineas é que nfio são nunca
assegurada da manejra mais simples pela continuação de
iguais. Uma representa o significante, a outra o significado. uma história, a semelhança das situações, a identidade dos
Em razão de nossa terminologia estes dois termos adquirem,
personagens. Mas nada disto é essencial. O essencial apa-
porém, uma acepção particular. Chamamos de “significan-
rece, ao contrário, quando as diferenças pequenas ou grandes
te” todo signo enquanto apresentd em si mesmo um aspecto, superam as semelhanças, quando elas são primeiras, quando,
qualquer do sentido; “significado”, ao contrério, o que serve por conseguinte, duas histórias completamente distintas se
de correlativo a este aspecto do sentido, j É e
desenvolvem simultaneamente, quando as personagens têm
define em dualj ejati to. /O que é sig- uma identidade vacilante e maldeterminada.
mificado ndo €, por conseguinte, nunca o prépri ido. 0. O Podemos citar vários autores que souberam criar técni-
que ¢ significado, numa acepção restrita, é o conceito; e, em
cas seriais de um formalismo exemplar. Joyce assegura a
uma acepção larga, é cada coisa que pode ser definida pela
relação da série significante Bloom com a série significada
distinção que tal ou qual aspecto do sentido mantém com
Ulisses graças a muitiplas formas que comportam uma ar-
ela. Assim, o significan rimeiraments aconteciments
como atributo lógico ideal de um estado de coisas e o sig- queologia dos modos de narração, um sistema de correspon-
nificado é o e i i elações dência entre números, um prodigioso emprego de palavras
esotéricas, um método de perguntas-respostas, uma instau-
reais, Em seguida, o significante é a proposição em seu
ração de correntes de pensamento, de linhas de pensamento
conjunto, na medida em que ela comporta dimensões de de-
múltiplas (o double thinking de Carroll?). Raymond Roussel
signação, de manifestação, de significação no sentido estrito;
funda a comunicação numa relação fonemática (“les bandes
e o significado é o termo independente que corresponde a
1. LAcaN, Jacques. Ecrits. Ed. du Sevil, 1966, “Le Séminaire sur la
estas dimensões, isto é, o conceito, mas também a coisa tetire volée”,
significante, apresenta um excesso sobre outra; há sempre
du vieux pillard”, “les bandes du vieux billard” — um excesso de significante que se embaralha. Final-
P mente, o ponto mais importante, que assegura o desloca-
preenche toda diferença por uma história maravilhosa em mento relativo das duas séries e o excesso de uma sobre a
que a série significante p volta a se juntar com a série sig- outra, é uma instdncia muito especial e paradoxal que não
nificada b: história tão enigmática que, neste procedimento se deixa reduzir a nenhum termo das séries, a nenhuma
em geral, a série significada pode permanecer escondida2. relação entre estes termos. Por exemplo: a carta, segundo
Robbe-Grillet estabelece suas séries de descrições de esta- o comentirio que Lacan faz da narrativa de Edgar Poe.
dos de coisas, de designações rigorosas com pequenas dife- Ou ainda Lacan comentando o caso freudiano do “Homem
renças, fazendo—as girar em torno de temas fixos, mas pró- dos lobos”, colocando em evidéncia a existéncia de séries
prias a se modificarem e a se deslocarem em cada série de no inconsciente — no caso a série paterna significada e a
maneira imperceptível. Pierre Klossowski conta com o nome série filial significante — e mostrando nos dois o papel
próprio Roberte, não para designar uma personagem e ma- particular de um elemento especial: a dividaS. Em Finne-
nifestar sua identidade, mas ao contrário para exprimir uma gan's Wake, é também uma carta que faz comunicar todas as
“intensidade primeira”, para distribuir sua diferença e pro- séties do mundo em um caos-cosmos. Em Robbe-Grillet, as
duzir seu desdobramento segundo duas séries: a primeira, séries de designação são tanto mais rigorosas e rigorosa-
significante, que remete ao “marido que só imagina sua mente descritivas, quanto mais convergem na expressio de
mulher surpreendendo-se a si mesma a se deixar surpreen- objetos indeterminados ou sobredeterminados, tais como a
der”, a segunda, significada, que remete 3 mulher “langan- borracha, o corddozinho, a mancha do inseto. Segundo
do-se em iniciativas que devem convencê-la de sua liberda- Klossowski, o pome Roberte exprime uma “intensidade”,
de, quando nada mais fazem do que confirmar a visão do isto é, uma diferenca de intensidade, antes de designar ou
esposo” 3. Witold Gombrowicz estabelece uma série signi- de manifestar “pessoas”.
ficante de animais enforcados (mas significando o qué?) e Quais são os caracteres desta instdncia paradoxal? Ela
uma série significada de bocas femininas (mas significadas não para de circular nas duas séries. E é mesmo gragas a
em qué?), cada série desenvolvendo um sistema de signos, isto que assegura a comunicagdo eatre elas. É uma instancia
era por excesso, ora por falta, e comunicando com a outra de dupla face, ignalmente presente na série significante e na
por estranhos objetos que interfercm e pelas palavras eso- série significada. É o espelho. E, ao mesmo tempo, pala-
téricas que pronuncia Léon 4. vra e coisa, nome e objeto, sentido e designado, expressdo
Ora, trés caracteres permitem precisar a relagdo e a e designagdo etc. Ela assegura, pois, a convergéncia das
distribuição das séries em geral. Primeiro, os termos de duas séries que percorre, com a condição, porém, de fazé-las
cada série estio em perpétuo deslocamento relativo diante divergir sem cessar. É que ela tem como propriedade ser
dos da outra (assim, o lugar do ministro nas duas séries de sempre deslocada com relação a si mesma. Se os termos
Poe). Há um desnivel essencial. Este desnivel, este deslo- de cada série são relativamente deslocados, uns com relação
camento não é de forma nenhuma um disfarce que viria aos outros, é porque primeiramente, em si mesmos, elas tém
recobrir ou esconder a semelhanga das séries, nelas introdu- um Iugar absoluto, mas este lugar absoluto se acha sempre
zindo variações secundarias. Este deslocamento relativo &, determinado por sua disténcia deste elemento que ndo pára
a0 contrário, a variação priméria sem a qual cada série não de se deslocar relativamente a si mesmo nas duas séries.
desdobraria na cutra, constituindo-se neste desdobramento Da instancia paradoxal é preciso dizer que não estd nunca
e não se relacionando à outra a não ser por esta variação. onde a procuramos e, inversamente, que nunca a encon-
Há pois um duplo deslizamento de uma série sobre a outra tramos onde estd. Ela falta em seu lugar, diz Lacanb. Da
mesma forma, podemos dizer que ela falta a sua prépria
ou sob a outra, que as constitui ambas em perpétuo desequi-
librio uma com relação & outra. Em segundo lugar, este identidade, falta a sua propria semelhanga, falta a seu
desequilibrio deve, ele mesmo, ser orientado: o fato é que proprio equilibrio e a sua prépria origem. Das duas
uma das duas séries, precisamente a que é determinada como séries que ela anima não diremos, por conseguinte, que
uma seja origindria e outra derivada. Elas podem certa-
2. Cf. MicrEr FoucAutt, Raymond Roussel, Gallimard, 1963, Cap. 2 (¢
particularmente sobre as séries, p. 78 e s). 5., É o fexto de Lacan, esencisl para um mitodg serial, mas que não é
3. Krossowskr, Piome. Les lois de Uhospitalité. Gallimard, 1965, retomado nas Zerits: “Le Mythe individuel du névrosé, C.D.U.
Avertissement, p. 7. 6. Écrits, p. 25._ O pamdoxº que descrevemos aqui deve ser chamado
4. Gomprowicz, Witold. Cosmos. Denodl, 1966, Sobre tudo o que paradoxo de Lacan, Ele dá testemunho de uma inspiração carrolliana frequenr
preceden, cf. Apéndice L temente presente em seus escritos,
OELUITIA OETIE;:
mente,
outra.
ser originárias
Podem ser sucessivas.
ou derivadas
Mas
uma com relagio
são estritamente simul-
2
Das Palavras Esotéricas
tâneas com relação 2 instância em que comunicam. São
simultâneas sem nunca serem iguais, uma vez que a instância
tem duas faces, das quais uma sempre falta à outra. É
proprio desta instdncia, pois, estar em excesso em uma série
que ela constitui como significante, mas também em falta
na outra que ela constitui como significada: sem par, desem-
parelhada por natureza ou com relação a si. Seu excesso re-
mete sempre a sua propria falta e inversamente. De tal
forma que estas determinagGes são ainda relativas. Pois o
que é, em excesso de um lado, senão um lugar vazio extre-
mamente movel? E o que estd em falta do outro lado não
é um objeto muito mével, ocupante sem lugar, sempre extra-
numerdrio ¢ sempre deslocado?
Na verdade, não há elemento mais estranho do que
esta coisa de dupla face, de duas “metades” desiguais ou
impares. Como em um jogo, assiste-se à combinagdo da Lewis Carroll é o explorador, o instaurador de um mé-
casa vazia e do deslocamento perpétuc de uma peca. Ou, todo serial em literatura. Achamos nele vários processos de
antes, como na loja da ovelha: Alice comprova aí a com-
desenvolvimento em séries. Em primeiro lugar, duas séries
plementaridade da “prateleira vazia” e da “coisa brilhante de acontecimentos com pequenas diferenças internas, regu-
que se acha sempre acima”, do lugar sem ocupante e do ladas por um estranho objeto: assim em Sílvia e Bruno, o
ocupante sem lugar. “O mais estranho (oddest: o mais de- acidente de um jovem ciclista se acha deslocado de uma
semparethado) era que cada vez que Alice fixava com os série para a outra (Cap. 23). E não hd dúvida de que
olhos uma prateleira qualquer para fazer a conta exata do estas duas séries são sucessivas uma em relação à outra, mas
que nela havia, esta prateleira mostrava-se sempre absolu-
são simultâneas em relação ao estranho objeto, aqui um
tamente vazig, enquanto que as outras ao redor estavam re-
carrilhão com oito ponteiros e corda inversora, que não anda
pletissimas. Como as coisas esvanecem aqui, disse ela final- com o tempo, mas ao contrário, o tempo é que anda com
mente num tom queixoso, depois de ter passado cerca de um ele. Ele faz voltar os acontecimentos de duas maneiras,
minuto perseguindo inutilmente uma grande coisa brilhante seja de forma invertida em um devir-louco, seja com pe-
que se assemelhava, ora a uma boneca, ora a uma caixa quenas variações em um fatum estóico. O jovem ciclista,
e que se achava sempre spbre a prateleira acima daquela que cai sobre uma caixa na primeira série, agora passa
que ela olhava. .. Vou segui-la até à prateleira mais alta. indene. Mas quando os ponteiros reencontram sua posição,
Suponho que ela hesitará em atravessar o teto! Mesmo este ele jaz de novo ferido sobre o carro que o leva ao hospital:
plano, porém, malogrou: a coisa passou através do teto, tão como se o relógio tivesse sabido conjurar o acidente, isto
tranqgiiilamente quanto possivel, como se disto tivesse longo é, a efetuação temporal do acontecimento, mas não ó próprio
hábito”. Acontecimento, o resultado, o ferimento enquanto verdade
eterna... Ou então na segunda parte de Sílvia e Bruno
(Cap. 2) uma cena que reproduz uma outra da primeira
parte, com pequenas diferenças (o lugar variável do velho,
determinado pela “bolsa”, estranho objeto que se acha des-
locado em relação a si mesmo, uma vez que a heroína para
entregá-lo é forçada a correr numa velocidade feérica).
Em segundo lugar, duas séries de acontecimentos com
grandes diferenças internas aceleradas, reguladas por pro-
posições ou, ao menos, por ruídos, onomatopéias. É a lei
do espelho, tal como Lewis Carroll a descrevia: “Tudo
o que podia ser visto do antigo quarto era ordinário e
sem interesse, mas o resto era tão diferente quanto pos-
séries da oralidade, alimentar e semiológica ou das duas di-
sivel”. As séries sonho-realidade de Sílvia e Brimo sio mensões da proposição, designadora e expressiva. Sílvia e
construídas segundo esta lei de divergência, com os des- Bruno oferece outros exemplos: o Phlizz, fruto sem sabor
dobramentos de personagens de uma série para outra e seus ou o Azzigoom-Pudding. A variedade destes nomes expli-
redobramentos em cada uma, No prefácio da segunda parte, ca-se facilmente: nenhum é a palavra que circula, mas é,
Carroll desenha um quadro detalhado dos estados, humanos antes, um nome para designi-la (“o nome pelo qual a pa-
e feéricos, que garantem a correspondência das duas séries lavra é chamada”). A palavra circulante é de uma outra
segundo cada passagem do livro. As passagens entre séries, natureza: em principio é a casa vazia, a prateleira vazia, a
suas comunicações, são geralmente asseguradas por uma pro- palavra em branco, como ocorre a Lewis Carroll aconselhar
posição que começa em uma e acaba na outra por uma ono- os timidos a deixarem em branco certas palavras nas car-
matopéia, um ruído que participa das duas. (Não com- tas que escrevem. Esta palavra é também “chamada” por
preendemos por que os melhores comentadores de Carroll, nomes que marcam evanescéncias e deslocamentos: o Snark
especialmente os franceses, fazem tantas reservas e críticas é invisivel e o Phlizz é quase uma opomatopéia daquilo
levianas a Silvia e Bruno, obra-prima que dá testemunho de que se desvanece. Ou, entdo, é chamado por nomes total-
técnicas inteiramente renovadas em relação a Álice e ao mente indeterminados: aliquid, it, isto, coisa ou negécio (cf.
Espelho.) o isto na histéria do camundongo ou a coisa na loja da
da ovelha). Ou, finalmente, ela não é chamada por ne-
Em terceiro lugar, duas séries de proposições (ou então nhum nome, mas é nomeada pelo refrdo de uma canção
uma série de proposições e uma série de “consumações”, que circula através de suas estrofes e faz com que elas se
ou então uma série de expressões puras e uma série de comuniquem; ou, como na canção do jardineiro, por uma
designações) com forte disparidade, reguladas por uma pa- conclusdo de cada estrofe que faz com que se comuniquem
lavra esotérica. Primeiro devemos considerar, porém, que os dois géneros de premissas.
as palavras esotéricas de Carroll são de tipos muito dife-
rentes. Um primeiro tipo contenta-se em contrair os ele- Em quarto lugar, séries com forte ramificacio, regu-
mentos sildbicos de uma proposigio ou de vérias que se ladas por palavras-valise e constituidas, quando necessdrio,
Seguem: assim, em Silvia e Bruno (Cap. 1), “y'reince” no por palavras esotéricas de um tipo precedente. Com efeito,
lugar de Your royal Highness. Esta contração se propde as palavras-valise são elas préprias palavras esotéricas de
extrair o sentido global da proposição para nomeá-la por um novo tipo: podemos defini-las, em primeiro lugar dizen-
meio de uma só sílaba, “Impronunciável monossílabo”, como do que contraem vérias palavras e envolvem vários sen-
diz Carroll. Outros procedimentos são conhecidos, já em tidos (“furiante” — fumante + furioso). Mas todo o pro-
Rabelais e Swift: por exemplo, o alongamento silábico com blema é de saber quando é que se tornam necessérias estas
sobrecarga de consoantes ou entãoa simples desvocalização, palavras-valise. Pois é possivel sempre encontrar palavras-
sendo conservadas somente as consoantes (como se fossem -valise; quase todas as palavras esotéricas podem ser inter-
aptas para exprimir o sentido, ao passo que as vogais seriam pretadas assim. Com muita boa vontade, mas com muita
apenas elementos de designação) etc.!, De qualquer ma- arbitrariedade também. Mas, na verdade, uma palavra-va-
neira, as palavras esotéricas deste primeiro tipo formam lise só é necessariamente fundada e formada se coincide
uma conexdo, uma síntese de sucessão referidas a uma só com uma função particular da palavra esotérica que ela
série. pretende designar. Por exemplo, uma palavra esotérica com
As palavras esotéricas peculiares a Lewis Carroll são uma simples função de contragio sobre uma só série
de um outro tipo. Trata-se de uma síntese de coexistén- (y'reince) não é uma palavra-valise. Por exemplo, ainda, no
cia que se propõe assegurar a conjunção de duas séries de célebre Jabberwocky, um grande número de palavras dese-
proposições heterogêneas ou de dimensões de proposições nha uma zoologia fantdstica, mas não forma necessariamen-
(o que dá no mesmo, já que podemos sempre construir as te palavras-valise: assim, os foves (pincéis, lagartixas, saca-
groposiçõ'es de uma série encarregando-as de encarnar par- -rolhas), os borogoves (passaros-vassouras), os raths (por-
ticularmente uma determinada dimensão). Vimos que o cos verdes); ou o verbo ourgribe (mugir-espirrar-assobiar)2.
grande exemplo era a palavra Snark: circula através das duas
2. Henri Parisot e Jacques B. Brunius deram duss belas traducSes do
Jabberwocky. A de Parisot é reproduzida no seu Lewis Carroll, ed. Seghers; a
il Pons s Detores de Smih, Pleinipo guaso S 2 clasificsto do
1. Sobre os procedimentos de Rabelais f ificação de Brunjus, com comentirios sobre as palavras nos Cahiers du Sud, 1948, nº
Por exemplo, finalmente, uma palavra esotérica subsumindo de objetos portadores de sentido (seres simbdlicos ou fun-
duas séries heterogéneas não é necessariamente uma palavra- cionais do tipo “empregado de banco”, “selo”, “diligéncia”
-valise: acabamos de ver como esta dupla função de sub- ou mesmo “ação de estrada de ferro” como no Snark). É
sunção era suficientemente preenchida por palavras como possivel entdo interpretar o fim da primeira estrofe como
Phlizz, coisa, isto significando, de um lado, à maneira de Humpty Dumpty:
Já nestes niveis, no entanto, palavras-valises podem “os porcos verdes (raths), longe de casa (nome = from
aparecer. Snark é uma palavra-valise que designa um ani- home) mugiam-cspirravam-assobiavam (outgrabe)”; mas
mal fantdstico ou compésito: shark + snake, tubardo + também como significando, de outro lado: “as taxas, os
serpente. Não é uma palavra-valise, a não ser secundéria cursos preferenciais (rath — rate + rather) longe de seu
ou acessoriamente, pois seu teor não coincide com sua ponto de partida, estavam fora de alcance (outgrab)”. Deste
função como palavra esotérica. Por seu teor remete a um modo, porém, qualquer interpretacdo serial pode ser aceita
animal compésito, enquanto que por sua fungdo conota duas e não vemos como a palavra-valise se distingue de uma
séries heterogéneas, das quais uma somente se refere a um sintese conjuntiva de coexisténcia ou de uma palavra eso-
animal, ainda que compésito, e a outra diz respeito a um térica qualquer assegurando a coordenagio de duas ou mais
sentido incorporal. Não &, pois, por seu aspecto de “va- séries heterogéneas.
lise” que ela preenche sua função. Em compensagio, Jab- A solução é dada por Carroll no preficio de 4 Caga
berwock é sem divida um animal fantistico, mas é tam- ao Snark. “Colocam-me a questão: sob que rei, diga, seu
bém uma palavra-valise, cujo teor, desta vez, coincide com ordindrio? fale ou morre! Não sei se o rei era William ou
a função. Carroll sugere, com efeito, que é formada de Richard. Entdo respondo Rilchiam.” Revela-se como a pa-
wocer ou wocor que significa rebento, fruto, e de jabber, lavra-valise é fundada em uma estrita sintese disjuntiva. E,
que exprime uma discussdc volivel, animada, tagarela. É longe de nos encontrarmos diante de um caso particular,
pois enquanto palavra-valise que Jabberwock conota duas descobrimos a lei da palavra-valise em geral, com a con-
séries andlogas & do Snark, a série da descendéncia animal dição de pôr em cvidéncia a disjunção que poderia estar
ou vegetal que concerne a objetos designaveis e consumiveis escondida. Assim, no que se refere a “furiante” (furioso
e a série da proliferagdo verbal que concerne a sentidos ex- e fumante): “Se vossos pensamentos se inclinam por pouco
_primiveis, Estas duas séries podem, entretanto, ser cono- que seja do lado de fumante, direis fumante-furioso; se eles
tadas de outra forma e a palavra-valise não encontra aí o se voltam, ainda que com a espessura de um fio de cabelo,
fundamento da sua necessidade. A definição da palavra- do lado de furioso, direis furioso-fumante; mas se tendes
-valise, segundo a qual ela contrai vérias palavras e encerra este dom rarfssimo, ou scja, um espirito perfeitamente equi-
virios sentidos, não passa de uma definição nominal. librado, direis furiante”. A disjungdo necessdria não é, pois,
Comentando a primeira estrofe do Jabberwocky, entre fumante e furioso, pois podemos muito bem ser as
Humpty Dumpty apresenta como palavras-valise: slithy duas coisas ao mesmo tempo, mas entre fumantc-e-furioso,
“fluctuoso” — flexivel-untuoso-viscoso); minssy (“detriste”. de um lado e, de outro, furioso-e-fumante. Neste sentido,
= débil-triste)... Aqui o nosso embaraço redobra. Ve- a função da palavra-valise consiste sempre em ramificar a
mos como hd, a cada vez, vérias palavras e vérios sentidos série em que se insere. Eis por que ele nunca existe só:
contraidos; mas estes elementos se organizam facilmente em ela dá sinal a outras palavras-valise que a precedem ou a
uma só série para compor um sentido global. Não vemos, seguem e que fazem com que toda série seja já ramificada
pois, como a palavra-valise se distingue de uma contração em principio ainda ramificdvel. Michel Butor diz muito
simples ou de uma sintese de sucessio conectiva. Não há bem: “Cada uma destas palavras poderá se tormar como
divida de que podemos introduzir uma segunda série; o um desvio e iremos de uma a outra por uma multidio de
préprio Carroll explicava que as possibilidades de interpre- trajetos; de onde a idéia de um livro que ndo conta somente
tagdo eram infinitas. Por exemplo, podemos reduzir o uma histéria, mas um mar de histérias” 3. Podemos pois
Jabberwocky ao esquema da canção do jardineiro, com suas responder a questdo que colocdvamos no comego: quando
duas séries de objetos designdveis (animais consumiveis) e a palavra esotérica não tem somente por função conotar
ou coordenar duas séries heterogéneas, mas além disso in-
287. Ambos citam também versões do Jabberwocky em linguas diversas. To- troduzir nelas disjunções, então a palavra-valise é necessd-
mamos de empréstimo os termos de que nos servimos, ora de Parisot, ora de
Brunius. Deveremos considerar mais tarde a transcrição que Ántoain Artaud
fez da primeira estrofe: este texto admirivel coloca problemas que não são 3. Burom, Michel. Introduction aux fragments de “Finnegans Wake”.
mais os de Carroli, Gallimard, 1962. p. 12.
ria ou necessariamente fundada; isto é, a própria palavra Oitava Série:
esotérica é então “chamada” ou designada
-valise. A palavra esotérica remete em
por uma palavra-
geral, ao mesmo
Da Estrutura
tempo, à casa vazia e ao ocupante sem lugar. Mas deve-
mos distinguir trés espécies de palavras espgéricas em Car-
roll: as contraentes, que operam uma sinfése de sucessio
sobre uma só séric e recaem sobre os elementos sildbicos de
uma proposição ou de uma seqiiéncia de proposigdes para
daf extrair o sentido composto (“conexo™); as circulantes,
que operam uma sintese de coexisténcia e de coordenação
entre duas séries heterogéneas e que recaem diretamente,
de vez, sobre o sentido respectivo destas séries (“conjun-
ção”); as disjuntivas ou palavras-valise, que operam uma
ramificagdo infinita das séries coexistentes e recaem, a0 mes-
mo tempo, sobre as palavras e os sentidos, os elementos
sildbicos e semioldgicos (“disjungfio”). É a função ramifi-
cante ou a sintese disjuntiva que dá a defini¢do real da
palavra-valise,
Lévi-Strauss indica um paradoxo anilogo ao de Lacan
sob a forma de uma antinomia: dadas duas séries, uma
significante e outra significada, uma apresenta um excesso
€ a outra uma falta, pelos quais se relacionam uma a outra
em cterno desequilibrio, em perpétuo deslocamento. Como
diz o heréi de Cosmos: signos significantes, sempre exis-
tem em demasia. É que o significante primordial é da
ordem da linguagem; ora, seja qual for a maneira segundo
a qual é adquirida a linguagem, os elementos da lingua-
gem são dados todos em conjunto, de uma só vez, já que
não existem independentemente de suas relações diferenciais
possiveis. O significado em geral, porém, é da ordem do
conhecido; ora, o conhecido acha-se submetido à lei de um
movimento progressivo que vai por parte, partes extrapartes.
E sejam quais forem as totalizagbes operadas pelo conhe-
cimento, elas permanecem assintticas 2 totalidade virtual
da lingua ou da linguagem. A série significante organiza
uma totalidade preliminar, enquanto que a significada orde-
na totalidades produzidas. “O Universo significou bem an-
tes de termos comegado a saber o que ele significava. ..
O homem dispõe desde sua origem de uma integralidade de
significante que muito o embaraga quando se trata de atri-
buir um significado, dado como tal sem ser, no entanto,
conhecido. H4 sempre uma inadequacio entre os dois” 1.
Este paradozo poderia ser chamado de paradoxo de
eem
Robinson, pois, é evidente que Robinson em sua ilha de-

se1I0RIAL OE CIÊNCIAS serta não pode construir-um ,andlogo da sociedade a não


mBLIOTECA ADES
ser que dê a si mesmo, de um: vez; todas as regras e
| souiais € HUANID 1. Ltvi-Smmavss, C. Introdugfio à Sociologie
et Anthropologie de Marcel
Mauss. P.U.F., 1950, pp. 46-49.

BIBLIOTEC R SEIORIAL DE ctt_nms


NAaNtAIA E E .
leis que se implicam reciprocamente, mesmo quando ainda valor qualquer com a condição de que ainda faga parte da
não possuem objetos. À conquista da natureza, ao con- reserva disponivel...” É preciso compreender, a0 mesmo
trário, é progressiva, parcial, de parte a parte. Uma socie- tempo, que as duas séries estio marcadas uma por excesso
dade qualquer tem todas as regras ao mesmo tempo: jurí- outra por falta e que as duas determinagdes se trocam sem
dicas, religiosas, políticas, econômicas, do amor e do tra- nunca se equilibrar. Pois o que está em excesso na série
balho, do parentesco e do casamento, da servidão e da significante € literalmente uma casa vazia, um lugar sem
liberdade, da vida e da morte, enquanto que a conquista da ocupante, que se desloca sempre; e o que estd em falta na
natureza em que ela se empenha e sem a qual não seria série significada é um dado supranumerdrio e não colocado,
sociedade se faz progressivamente, de uma para outra fonte não conhecido, ocupante sem lugar e sempre deslocado. É
de energia, de objeto em objeto. Eis por que a lei pesa a mesma coisa sob duas faces, nas duas faces impares pelas
com todo o seu peso antes mesmo que saibamos qual é o quais as séries se comunicam sem perder sua diferenga. E
seu objeto e em que se possa jamais sabê-lo exatamente. a aventura que acontece na loja da ovelha ou a história
É este desequilíbrio que torna as revoluções possíveis; não contada pela palavra esotérica.
que as revoluções sejam determinadas pelo progresso téc- iPodemos, talvez, determinar certas condições mínimas
nico, mas elas se tornam possíveis por este abismo entre as de uma estrutura em geral: 19) São necessárias, pelo menos,
duas séries, que exige reorganizações da totalidade econô- duas séries heterogêneas, das quais uma será determinada
mica e política em função dos avanços do progresso téc- como “significante” e a outra como “significada” (nunca
nico. Há, por conseguinte, dois erros. O mesmo, na rea- uma Gnica série basta para formar uma estrutura). 2º)
lidade: o do reformismo ou da tecnocracia, que pretende Cada uma destas séries é constituida por termos que não
promover ou impor organizações parciais das relações so- existem a não ser pelas relagGes que mantém uns com os
ciais em função do ritmo das aquisições técnicas; o do tota- outros. A estas relagdes, ou antes, aos valores destas re-
litarismo, que pretende constituir uma totalização do signi- lagGes, correspondem acontecimentos muito particulares, isto
ficável e do conhecido em função do ritmo da totalidade é, singularidades designdveis na estrutura: exatamente como
social existente em tal momento. E por isso que o tecno- no calculo diferencial, onde repartigdes de pontos singulares
crata é o amigo natural do ditador, computadores e ditadura. correspondem aos valores das relagdes diferenciais2 Por
O revolucionário, porém, vive na distância que separa o exemplo, as relagbes diferenciais entre foncmas designal_n
progresso técnico e a totalidade social, aí inscrevendo seu singularidades em uma língua, na “vizinhança” das quais
sonho de revolução permanente. Ora, este sonho é ele pró- se constituem as sonoridades e significações características
prio ação, realidade, ameaça efetiva sobre toda a ordem da língua. Mais ainda, observa-se que singularidades ati-
estabelecida e torna possível aquilo com que ele sonha. nentes a uma série determinam de uma maneira complexa os
Voltemos ao paradoxo de Lévi-Strauss: dadas duas sé- termos da outra série. Uma estrutura comporta em todo
Ties, significante e significada, há um excesso natural da caso duas distribuições de pontos singulares correspondendo
série significante, uma carência natural da série significada. a séries de base. Eis por que é inexato opor a estrutura
Há necessariamente “um significante flutuante, que é a ser- e o acontecimento: a estrutura comporta um registro de
vidão de todo pensamento finito, mas também a caução de acontecimentos ideais, isto é, toda uma história que lhe é
toda arte, toda poesia, toda invenção mítica e estética” — interior (por exemplo, se as séries comportam “persona-
acrescentemos: toda revolução. Há, além disso, de outro gens”, uma histéria reúne todos os pontos singulares que
lado, uma espécie de significado flutuado, dado pelo signi- correspondem às posições relativas dos personagens entre
ficante “sem ser, por isso, conhecido”, sem ser, por isso, eles nas duas séries). 3º) As duas séries heterogêneas con-
fixado ou realizado. Lévi-Strauss propde que se interpre- vergem para um elemento paradoxal, que é como o seu
tem assim palavras como treco, “negdcio”, alguma coisa, “diferenciante”. Ele é o principio de emissão das singula-
aliquid, mas também o célebre mana (ou também o isto). ridades. Este elemento não pertence a nenhuma série, ou
Um valor “em si mesmo vazio de sentido e, pois, suscetivel antes, pertence a ambas ao mesmo tempo e não pára de
de receber qualquer sentido, cuja única função é de pre- 2. ÀA aproximação com o cálculo diferencial pode parecer arbitrária e
encher uma distdncia entre o significante ¢ o significado”, ultrapassada. Mas o que está ultrapassada é somente @ interpretação infinitista
do cálculo. Já no fim do século XIX Weierstrass dá uma interpretação finita,
“um valor simbélico zero, isto é, um signo marcando a ne- ordinal e estática, muito próxima de um estraturalismo matemático. E o tema
das singularidades continua sendo uma peça essencial da teoria das equações
cessidade de um conteddo simbélico suplementar aquele de diferenciais. O melhor estudo sobre a história do céleulo diferencial e sua
que já se acha carregado o significado, mas podendo ser um interpretação estrutural moderna é a de C. B. Bover, The Hirtory of the Cal-
culus and Irs Conceprual Development, Dover, N. York, 1959.
N NONA oerie:
circular através delas. Ele tem também como propriedade
o fato de estar sempre deslocado com relação a si mesmo, Do Problemático
de “estar fora do seu próprio Jugar”, de sua própria iden-
tidade, de sua própria semelhança, de seu próprio equilí-
brio. Ele aparece em uma série como um excesso, mas
com a condição de aparecer ao mesmo tempo na outra como
uma faltaa Mas se é excesso em uma é a título de casa
vazia; e se é falta na outra é a título de peão supranume-
rario ou de ocupante sem casa. Ele é ao mesmo tempo
palavra e objeto: palavra esotérica, objeto exotérico.
Ele tem por função: articular as duas séries uma à
outra, refleti-las uma na outra, fazê-las comunicar, coexistir
e ramificar; reunir as singularidades correspondendo às duas
séries em uma “história embaralhada”, assegurar a passa-
gem de uma repartição de singularidades à outra, em suma,
operar a redistribuição dos pontos singulares; determinar
como significante a série em que aparece como excesso,
como significada aquela em que aparece correlativamente
O que é um acontecimento ideal? É uma singularida-
como falta e, sobretudo, assegurar a doação do sentido nas
de. Ou melhor: é um conjunto de singularidades, de pon-
duas séries, significante e significada. Pois o sentido não
tos singulares que caracterizam uma curva matemática, um
se confunde com a significação mesma, mas ele é o que
estado de coisas físico, uma pessoa psicológica e moral. São
se atribui de maneira a determinar o significante como tal
pontos de retrocesso, de inflexão etc.; desfiladeiros, nós,
e o significado como tal. Concluimos que não há estrutu- núcleos, centros; pontos de fusão, de condensação, de ebuli-
ra sem séries, sem relações entre termos de cada série, sem ção etc.; pontos de choro e de alegria, de doença e de
pontos singulares correspondendo a estas relagdes; mas, so- saúde, de esperança e de angústia, pontos sensíveis, como
“bretudo, não há estrutura sem casa vazia, que faz tudo se diz. Tais singularidades não se confundem, entretanto,
funcionar. nem com a personalidade daquele que se exprime em um
discurso, nem com a individualidade de um estado de coisas
designado por uma proposição, nem com a generalidade ou
a universalidade de um conceito significado pela figura ou
a curva. AÀ singularidade faz parte de uma outra dimensão,
diferente das dimensões da designação, da manifestação ou
da significação. A singularidade é essencialmente pré-indivi-
dual, nfo-pessoal, aconceitual. Ela é completamente indife-
rente ao individual e ao coletivo, ao pessoal e ao impessoal,
ao particular e ao geral — e às suas oposigdes. Ela é
neutra. Em compensagdo, não é “ordiniria”: o ponto sin-
gular se opde ao ordindrio L.
Diziamos que um conjunto de singularidades correspon-
dia a cada série de uma estrutura. Inversamente, cada sin-
gularidade é fonte de uma série que se estende em uma di-
reção determinada até & vizinhanga de uma outra singulari-
dade. É neste sentido que há ndo somente várias séries di-
vergentes em uma estrutura, mas que cada série é, ela pró-
1. Precedentemente, o sentido como “neutro” parecis, para nés, opor-se
20 singular não menos do que às outras modalidades. É que a singularidade
era 2 somente em relagio à designagio e 4 manifestação, o singular
não era definido senão como individual ou pessoal, não como pomtual. Agora,
0 contririo, a singularidade faz parte do dominio meutro.
pria, constituída por várias subséries convergentes. Se con- O modo do acontecimento é o problemático. Não se
sideramos as singularidades que correspondem às duas gran- deve dizer que há acontecimentos problemáticos, mas que
des séries de base, vemos que elas se distinguem nos dois os acontecimentos concernem exclusivamente aos problemas
casos por sua repartição. De uma para a outra, certos pon- e definem suas condições. Em belas páginas em que opõe
tos singulares desaparecem ou se desdobram,«ou mudam de uma concepção teoremática e uma concepção problemática
natureza e de função. Ao mesmo tempo em que as duas da geometria, o filósofo neoplatônico Proclus define o pro-
séries ressoam e se comunicam, passamos de uma para outra blema pelos acontecimentos que vêm afetar uma matéria 16-
repartição. Isto é, ao mesmo tempo em que as séries são gica (secções, ablações, adjunções etc.), enquanto o teorema
percorridas pela instância paradoxal, as singularidades se concerne às propriedades que se deixam deduzir de uma
deslocam, se redistribuem, transformam-se uma nas outras, essência . O acontecimento por si mesmo é problemdtico
mudam de conjunto. Se as singularidades são verdadeiros e problematizante. Um problema, com efeito, não é deter-
acontecimentos, elas se comunicam em um só e mesmo minado sendo pelos pontos singulares gue exprimem suas
Acontecimento que não cessa de redistribuí-las e suas trans- condigdes. Não dizemos que, por isto, o problema é re-
formações formam uma histéria. Péguy viu profundamente solvido: ao contririo, ele é determinado como problema.
que a histéria e o acontecimento eram inseparáveis de tais Por excmplo, na teoria das equagdes diferenciais, a existên-
pontos singulares: “Há pontos críticos de acontecimento cia e a repartição das singularidades são relativas a um cam-
assim como há pontos críticos de temperatura, pontos de po problemático definido pela equação como tal. Quanto
fusão, de congelamento, de ebulição, de condensação; de à solução, ela só aparece com as curvas integrais e a forma
coagulação; de cristalização. E há mesmo no acontecimen- que elas tomam na vizinhança das singularidades no cam-
to estados de sobrefusão que não se precipitam, que não po dos vetores. Parece, pois, que um problema tem sempre
se cristalizam, que não se determinam a não ser pela intro- a solução que merece segundo as condições que o determi-
dução de um fragmento de acontecimento futuro”2 E nam enquanto problema; e, com efeito, as singularidades pre-
Péguy soube inventar toda uma linguagem, dentre as mais sidem à gênese das soluções da equação. Nem por isso deixa
patológicas e as mais estéticas que se possa imaginar, para de ser verdade, como dizia Lautman, que a instância-pro-
dizer como uma singularidade se prolonga em uma linha de blema e a instância-solução diferem em natureza S — como
pontos ordinários, mas também se retoma em uma outra sin- o acontecimento ideal e sua efetuação espaço-temporal. Deve-
gularidade, se redistribui em um outro conjunto (as duas mos, assim, romper com um longo hábito de pensamento
repetições, a má e a boa, a que encadeia e a que salva). que nos faz considerar o problemático como uma categoria
Os acontecimentos são ideais. Novalis chega a dizer subjetiva de nosso conhecimento, um momento empírico que
que há duas ordens de acontecimentos: uns ideais, os outros marcaria somente a imperfeição de nossa conduta, a triste
reais e imperfeitos, por exemplo o protestantismo ideal e o necessidade em que nos encontramos de não saber de ante-
luteranismo real 3. Mas a distinção não é entre duas espé- mão e que desapareceria com o saber adquirido. O proble-
cies de acontecimentos, mas entre o acontecimento, por na- ma pode muito bem ser recoberto pelas soluções, nem por
tureza ideal e sua efetuação espaço-temporal em um estado isso ele deixa de subsistir na Idéia que o refere às suas
de coisas. Entre o acontecimento € o acidente. Os aconte- condições e organiza a gênese das próprias soluções. Sem
cimentos são singularidades ideais que comunicam em um esta Idéia as soluções não teriam sentido. O problemático
só e mesmo Acontecimento; assim possuem uma verdade é ao mesmo tempo uma categoria objetiva do conhecimento
eterna e seu tempo não é nunca o presente que os efetua e e um gênero de ser perfeitamente objetivo. “Problemático”
os faz existir, mas o Aion ilimitado, o Infinitivo em que qualifica precisamente as objetividades ideais. Kant foi, sem
eles subsistem e insistem. Os acontecimentos são as únicas dúvida, o primeiro a fazer do problemático não uma incer-
idealidades; e reverter o platonismo é, em primeiro lugar, teza passageira, mas o objeto próprio da Idéia e com isto
destituir as essências para substituí-las pelos acontecimen-
tos como jatos de singularidades. Uma dupla luta tem por 4. PROCLUS. Commentaires sur le premier livre des Eléments d'Euclide,
Trad. Ver Eecke, Desciée de Brower. p. 68 ¢ ss.
objeto impedir toda confusão dogmática do acontecimento 5. Cf Albert Lautman, Essai sur les notions de structure et d'existence
com a essência, mas também toda confusão empirista do t. 11, pp. 148-149; e Nouvelles
en mathématiques, Hormana, des 1938,mathématiques, recherches
Hermann, 1939, pp. 13-15. E
das singulacidades, Essai, H, pp. 138-139; ¢ Le Problême du
sur la struciure dialectique
acontecimento com o acidente. Sobre o papel
Temps, Hermann, 1926, pp. 41-43. Péghy, § sua maneira, viu a relação esen
2. PEGuv. Clio, Gallimard. p, 269. cial do acontecimento ou da singularidade com as categorias de problema e
7 5, NOVALIS. L'Encyclopédie. Trad. Maurice de Gandillac, ed. de Minuit. salugao; cf. op. cit, p. 269: “e um problema de que não se via o fim, um
problema sem saída. ..” etc.
também um horizonte indispensável a tudo o que acontece singularidade que passam umas nas outras e se redistribuem
ou aparece. no curso de uma histéria embrulhada. Como diz Lewis
Pode-se entdo conceber de uma nova maneira a rela- - Carroll, “superficie plana é o cariter de um discurso em
¢80 entre as matemiticas e o homem: não se trata de quan- que, dados dois pontos quaisquer, aquele que fala é deter-
tificar nem de medir as propriedades humanas, mas, de um minado a se estender falsamente na diregio dos dois pon-
lado, de problematizar os acontecimentos humanos e, de tos” 6. É em The dynamics of a parti-cle que Carroll esboga
outro, de desenvolver como acontecimentos humanos as con- uma teoria das séries e dos graus ou poténcias das particulas
dições de um problema. As matematicas recreativas com ordenadas nestas séries (LSD, a function of great value. ..).
que sonhava Carroll apresentam este duplo aspecto. O pri- Não se pode falar dos acontecimentos a não ser nos pro-
meiro aparece justamente em um texto intitulado “Uma his- blemas cujas condigGes determinam. Não se pode falar dos
téria embrulhada”: esta histéria é formada por nds que en- acontecimentos senão como de singularidades que se desen-
volvem as singularidades correspondendo cada vez a um rolam em um campo problemitico e na vizinhanga das quais
problema; personagens encarnam estas singularidades e se se organizam as soluções. É por isso que todo um método
deslocam e se redistribuem de um problema a outro, sujei- de problemas e de soluções percorre a obra de Carroll, cons-
tos a se reencontrar no décimo nó, tomados na rede de tituindo 2 linguagem cientifica dos acontecimentos e de suas
suas relações de parentesco. O isto do camundongo, que efetuagdes. Mas, se as repartighes de singularidades que
remetia ou a objetos consumiveis ou a sentidos exprimiveis correspondem a cada série formam campos de problemas,
é agora substituido pelos data, que remetem ora a dons ali- como caracterizaremos o elemento paradoxal que percorre as
mentares, ora 2 dados ou condições de problemas. A se- séries, faz com que elas ressoem, se comumiquem e se ra-
gunda tentativa, mais profunda, aparece em The dynamics mifiquem e que comanda a todas as retomadas e transfor-
of a parti-cle: “Podiamos ver duas linhas seguir seu cami- magdes, a todas as redistribuigbes? Este elemento deve ele
nho monétono através de uma superficie plana. A mais préprio ser definido como o lugar de uma pergunta. O
velha das duas, gragas a uma longa prética, adquirira a arte, problema é determinado pelos pontos singulares que corres-
30 penosa para os lugares jovens e impulsivos, de se alon- podem às séries, mas a pergunta, por um ponto dleatdrio
gar equitativamente nos limites de seus pontos extremos; que corresponde à casa vazia ou ao elemento mével. As
. mas a mais jovem, em sua impetuosidade de moga, tendia metamorfoses ou redistribuices de singularidades formam
sempre a divergir e a se tornar uma hipérbole ou uma dessas uma historia; cada combinagdo, cada repartição é um acon-
curvas roménticas ilimitadas..., O destino e a superficie tecimento; mas a instdncia paradoxal é o Acontecimento
intermediaria haviam-nas, até aqui, mantido separadas, mas no qual todos os acontecimentos se comunicam e se distri-
isto não duraria mais muito tempo; uma linha as entrecor- ‘buem, o Unico acontecimento de que todos os outros não
tara de tal maneira que os dois ângulos interiores juntos passam de fragmentos e farrapos. Joyce saberd dar todo o
fossem menores do que dois &ngulos retos. ..” seu sentido a um método de perguntas-respostas que vem
'Não se deve ver neste texto — assim como não se deve duplicar o dos problemas, Inquisitéria que funda a Proble-
ver em um célebre texto de Silvia e Bruno: “Era uma vez matica. A pergunta se desenvolve em problemas e os pro-
uma coincidéncia que tinha saido para dar um passeio com blemas se envolvem em uma pergunta fundamental. E assim
um pequeno acidente. . .” — uma simples alegoria, nem uma como as solugdes ndo suprimem os problemas, mas af en-
maneira barata de antropomorfizar as matematicas. Quando contram, ao contrario, as condigdes subsistentes sem as quais
Carroll fala de um paralelograma que suspira por ângulos elas não teriam nenhum sentido, as respostas não suprimem
exteriores e que geme por não poder se imscrever em um de forma nenhuma a pergunta, nem a satisfazem e ela per-
circulo ou de uma curva que sofre com as “secgdes e abla- siste através de todas as respostas. H4, pois, um aspecto
ções” a que é submetida, precisamos nos lembrar antes de pelo qual os problemas permanecem sem solugdo e a per-
que as pessoas psicol6gicas e morais são também feitas de gunta sem resposta: é neste sentido que problema e per-
singularidades pré-pessoais e que seus sentimentos, seu gunta designam por si mesmos objetidades ideais e tém um
pathos se constituem na vizinhanga destas singularidades, pon- ser proprio, minimum de ser (cf. as “adivinhagGes” sem
tos sensiveis de crise, de retrocesso, de ebuligio, nés e nú- resposta de Alice). Já vimos como as palavras esotéricas
cleos (por exemplo, o que Carroll chama de plain anger ou lhes estavam essencialmente ligadas, De um lado, as pala-
right anger). As duas linhas de Carroll evocam as duas sé-
6. Por “estender-se em falso” (sétendre en faux), procuramos traduzir
ries ressoantes; e suas aspiracbes evocam as repartigdes de os dois sentidos do verbo to lie.
vras-valise são inseparáveis de um problema que se desen-
Décima Seéne:
rola em séries ramificadas e que não exprime absolutamen-
te uma incerteza subjetiva, mas, ao contrário, o equilíbrio Do Jogo Ideal
objetivo de um espirito situado diante do horizonte daquilo
que acontece ou aparece: será Richard ou William? será
que ele é fumante-furioso ou. furioso-fumante? com distri-
buição de singularidades a cada vez. De outro lado, as pa-
lavras em branco, ou antes, as palavras que designam a pa-
lavra em branco, são insepardveis de uma pergunta que se
envolve e se desloca através das séries; a este elemento
que nunca se encontra em seu préprio lugar, foge à sua
própria semethanga, à sua prépria identidade, cabe ser objeto
de uma pergunta fundamental que se desloca com ele: que é
o finark? e 0 Phlizz? E o Isto? Refrio de uma canção,
cujas estrofes formariam séries através das quais ele circula,
palavra mágica tal que todos os nomes pelos quais ela é
“chamada” não preenchem o seu branco, a instância para-
doxal tem precisamente este ser singular, esta “objetidade”
que corresponde 2 pergunta como tal e lhe corresponde
sem Não somente Lewis Carroll inventa jogos ou transfor-
jamais a ela responder.
ma as regras de jogos conhecidos (tênis, croquê), mas ele
invoca uma espécie de jogo ideal, cujo sentido e função é
difícil perceber à primeira vista: é o caso, em Alice, da
corrida à Caucus, na qual damos a partida quando quiser-
mos e na qual paramos de correr a nosso bel-prazer; e do
jogo de croquê no qual as bolas são ouriços, os tacos são
flamingos rosados, os arcos, por fim, soldados que não pa-
ram de se deslocar do comego ao fim da partida. Estes
jogos têm de comum o seguinte: sdo muito movimentados,
parecem ndo ter nenhuma regra precisa e não comportar
nem vencedor nem vencido. Não “conhecemos” tais jogos,
que parecem contradizer-se a si mesmos.
Nossos jogos conhecidos respondem a um certo nd-
mero de principios, que podem ser o objeto de uma teoria.
Esta teoria convém tanto aos jogos de destreza quanto aos
de azar; só difere a natureza das regras. 19) É preciso, de
qualquer maneira, que um conjunto de regras preexista ao
exercicio do jogo €, se jogamos, é necessirio que elas adqui-
ram um valor categérico; 29) estas regras determinam hi-
péteses que dividem o acaso, hipGteses de perda ou de ga-
nho (o que vai acontecer se...); 39) estas hipóteses orga-
nizam o exercicio do jogo em uma pluralidade de jogadas,
real e numericamente distintas, cada uma operando uma
distribuigdo fixa que cai sob este ou aquele caso (mesmo
quando temos uma só jogada, esta jogada ndo vale sendo
pela distribuicio fixa que opera e por sua particularidade
numérica); 4º) as conseqiiéncias das jogadas se situam na
alternativa “vitéria ou derrota”. Os caracteres dos jogos nor-
mais são, pois, as regras categéricas preexistentes, as hipó-
teses distribuintes, as distribuições fixas e numericamente dis- os outros, 20 mesmo tempo implicado pelos outros e impli-
e da
tintas, os resultados conseqiientes. Estes jogos são parciais cando-os no maior lançar. É o jogo dos problemas
por um duplo título: porque não ocupam a não ser uma pergunta, não mais do categóri co e do hipotéti co.
parte da atividade dos homens e porque, mesmo que os 49) Um tal jogo sem regras, sem vencedores nem
levemos ao absoluto, retêm o acaso somente em certos pon- vencidos, sem responsabilidade, jogo da inocência e corri-
tos ¢ abandonam o resto ao desenvolvimento mecânico das da à Caucus em que a destreza e o acaso não mais se dis-
conseqiiéncias ou 2 destreza como arte da causalidade. É tinguem, parece não ter nenhuma realidade. Aliás, ninguém
pois forgoso que, sendo mistos neles mesmos, remetam 2 um se divertiria com ele. Não é seguram ente o jogo do homem
outro tipo de atividade, o trabalho ou a moral, dos quais de Pascal, nem do Deus de Leibniz. Quanta trapaça na
eles são a caricatura ou a contrapartida, mas também cujos aposta moralizadora de Pascal, que má jogada na combina-
elementos integram em uma nova ordem. Seja o homem ção econômica de Leibniz. Com toda a certeza, isto tudo
que faz a aposta de Pascal, seja Deus que joga o xadrez não é o mundo como obra de arte. O jogo ideal de que
de Leibniz, o jogo não é tomado explicitamente como mo- falamos não pode ser realizado por um homem ou por um
delo a não ser porque ele préprio tem modelos implicitos deus. Ele só pode ser pensado e, mais ainda, pensado como
que não são jogos: modelo moral do Bem ou do Melhor, ndo-senso. Mas, precisamente: ele é a realidade do préprio
ãl.)delo econômico das causas e dos cfeitos, dos meios e dos pensamento. É o inconscientc do pensamento puro. E cada
s. pensamento que forma uma séric em um tempo menor que
Não basta opor um jogo “maior” ao jogo menor do o minimo de tempo continuo conscientemente pensavel. É
homem, nem um jogo divino a um jogo humano: é preciso cada pensamento que emite uma distribuição de singularida-
imaginar outros princípios, aparentemente inaplicáveis, mas des. São todos os pensamentos que comunicam em um
Braças aos quais o jogo se torna puro, 1º) Não há regras Longo pensamento, que faz corresponder ao seu deslocamento
preexistentes, cada lance inventa suas regras, carrega consi- todas as formas ou figuras da distribuição nômade, insu-
£0 sua prépria regra. 2°) Longe de dividir o acaso em um flando por toda parte o acaso e ramificando cada pensa-
número de jogadas realmente distintas, o conjunto das jo- mento, reunindo “em uma vez” o “cada vez” para “todas
gadas afirma todo o acaso e não cessa de ramificá-lo em as vezes”. Pois só o pensamento pnde afirmar todo o acaso.
cada !ogada. 39) As jogadas não são pois, realmente, fazer do acaso um objeto de afirmação. E, se tentamos jogar
numericamente distintas. São qualitativamente distintas, mas este jogo fora do pensamento, nada acontece e, se tentamos
todas são as formas qualitativas de um só e mesmo langar, produzir um resultado diferente da obra de arte, nada
ontologicamente uno. Cada lance é ele préprio uma série, se produz. É pois o jogo reservado ao pensamento e à arte,
mas em um fempo menor que o minimum de tempo conti- 14 onde não há mais vitórias para aqueles que souberam
nuo pensdvel; a este minimo serfal corresponde uma distri- jogar, isto é, afirmar e ramificar O acaso, ao invés de di-
buição de singularidades 1. Cada lance emite pontos singu- vidi-lo para dominá-lo, para apostar, para ganhar. Este jogo
largs, os pontos sobre os dados. Mas o conjuato dos lances que não existe a não ser no pensamento, e que não tem
¢std compreendido no ponto aleatério, único langar que não outro resultado além da obra de arte, é também aquilo pelo
péra de se deslocar através de todas as séries, em um tempo que o pensamento e a arte são reais e perturbam a realida-
maior que o maximum de tempo contfnuo pensivel. Os lan- de, a moralidade e a economia do mundo.
ces são sucessivos uns com relagdo aos outros, mas simul- Em nossos jogos conhecidos, o acaso é fixado em certos
tâneos em relação a este ponto que muda sempre a regra, pontos: nos pontos de encontro entre séries causais indepen-
que coordena e ramifica as séries correspondentes, insuftan- dentes, por exemplo, o movimento da roleta e da bola lan-
do o acaso sobre toda a extensio de cada uma delas. O çada. Uma vez realizado o encontro, as séries confundidas
único langar é um caos, de que cada lance é um fragmento. seguem um mesmo trilho, ao abrigo de qualquer nova inter-
Cada lance opera uma distribuicio de singularidades, cons-
ferência. Se um jogador se inclinasse bruscamente e asso-
telagio. Mas, ao invés de repartir um espago fechado entre prasse com todas as suas forças, visando precipitar ou con-
resultados fixos conforme as hipéteses, são os resultados
trariar o curso da bola, seria detido, expulso e o lance seria
méveis que se repartem no espago aberto do langar único O que é que ele teria feito, porém, além de rein-
anulado.
e não repartido: distribuicdo ndmade e não sedentéria, em É assim que J. L. Borges des-
que cada sistema de singularidades comunica e ressoa com
suflar um pouco o acaso?
creve a loteria em Babilônia: “Se a loteria é uma intensifi-
t Lapire a idéia de um tempo menor que o mínimo de tempo contíauo, cação do acaso, uma infusão periódica de caos no cosmos,
não seria conveniente que o acaso interviesse em todas as ainda nas palavras de Borges: “Conheço um labirinto grego
etapas da tiragem e não em uma só apenas? Não é eviden- que é uma linha única, reta... Da próxima vez que vos
temente absurdo que o acaso dite a morte de \alguém, mas matar, prometo-vos este labirinto que se compõe de uma só
que não estejam sujeitas ao acaso as circunstâncias dessa linha reta e que é invisível, incessante” 3.
morte: a reserva, a publicidade, o prazo de uma hora ou um Em um caso o presente é tudo e o passado ¢ o futuro
século?... Na realidade, o número de tiragem é infinito. não indicam sendo a diferença relativa entre dois presentes,
Nenhuma decisão é final, todas se ramificam. Os ignoran- um de menor extensio, o outro cuja contração recai sobre
tes supõem que infinitas tiragens necessitam um tempo in- uma extensdo major. No outro caso, o presente não é
finito; basta, na realidade, que o tempo seja infinitamente nada, puro instante matemdtico, ser de razdo que exprime
subdivisível, como o mostra a famosa parábola do Conflito o passado ¢ o futuro nos quais cle se divide. Em suma:
com a Tartaruga”2 A pergunta fundamental que nos colo- dois tempos, dos quais um não se compée sendo de presen-
ca este texto: que tempo é este que não tem necessidade de tes encaixados e o outro não faz mais do que se decompor
ser infinito, mas somente “infinitamente subdivisível”? Este em passado e futuro alongados. Dois quais um é sempre
tempo é o Aion. Vimos que o passado, o presente e o definido, ativo ou passivo e o outro, eternamente Infinitivo,
futuro não eram absolutamente três partes de uma mesma cternamente neutro. Dos quais um é ciclico, mede o movi-
temporalidade, mas formavam duas leituras do tempo, cada mento dos corpos e depende da matéria que o limita e
uma completa e excluindo a outra: de um lado, o presente preenche; e o outro é pura linha reta na superficie, incorpo-
sempre limitado, que mede a ação dos corpos como causas ral, ilimitado, forma vazia do tempo, independente de toda
€ o estado de suas misturas em profundidade (Cronos); matéria. Uma das palavras esotéricas do Jabberwocky
de outro, o passado e o futuro essencialmente ilimitados, que contamina os dois tempos: wabe deve ser compreendida a
recolhem à superfície os acontecimentos incorporais enquan- partir do verbo swab ou soak e designa a relva molhada pela
to efeitos (Aion). A grandeza do pensamento estóico está chuva que envolve um quadrante solar: é o Cronos fisico e
em mostrar, ao mesmo tempo, a necessidade das duas lei- ciclico do vivo presente varidvel. Mas, em um outro sen-
turas e sua exclusão recíproca. Ora diremos que só o pre- tido, é a alameda que se estende para frente ¢ para trds,
sente existe, que cle reabsorve ou contrai em si o passado way-be “a long way before, a long way behind”: é o Aion
.¢ o futuro e, de contração em contração cada vez mais pro- incorporal que se desenrolou, tornou-se auténomo desemba-
fundas, ganha os limites do Universo inteiro para se tornar ragando-se de sua matéria, fugindo nos dois sentidos ao mes-
um presente vivo cósmico. Basta então proceder segundo a mo tempo do passado e do futuro, e onde mesmo a chuva
ordem das descontrações para que o Universo recomece e é horizontal, segundo a hipétese de Silvia e Bruno. Ora, este
que todos os seus presentes sejam restituídos: o tempo do Aion em linha reta e forma vazia é o tempo dos aconteci-
presente é pois sempre um tempo limitado, mas infinito mentos-efeitos. Na medica mesma em que o presente mede
porque cíclico, animando um eterno retorno físico como re- a cfetuação temporal do acontecimento, isto é, sua encarna-
torno do Mesmo, e uma eterna sabedoria moral como sa- ção na profundidade dos corpos agentes, sua incorporagio
bedoria da Causa. Ora, ao contrário, diremos que só o pas- em um estado de coisas, na mesma medida o acontecimento
sado e o futuro subsistem, que eles subdividem ao infinito por si mesmo e na sua impassibilidade, sua impenetrabilida-
cada presente, por menor que ele seja e o alongam sobre de, ndo tem presente mas recua e avança em dois sentidos
sua linha vazia. A complementaridade do passado e do fu- ao mesmo tempo, perpétuo objeto de uma dupla questio:
turo aparece claramente: é que cada presente se divide em 0 que é que vai se passar? o que é que acabou de se passar?
passado c em futuro, ao infinito. Ou melhor, um tal tempo E o angustiante do acontecimento puro estd, justamente, em
não é infinito, já que não volta jamais sobre si, mas é ili- que ele é alguma coisa que acaba de ocorrer e que vai se
mitado, porque pura linha reta cujas extremidades não ces- N d e o

sam de se distanciar no passado, de se distanciar no futuro. 3. Bomoms. Fictions. pp. 187-188. (No seu Histoire de Téternité, Bor-
ges vai menos longe e não parece concebe: todo labirinto, a não ser como
Não haverá aí, no Aion, um labirinto bem diferente do de circalar ou ciclico). Entre os comentadores do pensamento estbico, Victor
Cronos, ainda mais terrível e que comanda um oufro eterno Goldschmidt analisou particalarmente a coexistência destas duas concepções do
tempo: uma, de presentes variáveis; a outra, de subdivisão ilimitada em passa-
Tetorno e uma outra ética (ética dos Efeitos)? Pensemos dofuturo (Le Systême sroicien et Vidée de temps, Vrin, 1953, pp. 3640.)
Ele mostra também nos estóicos a existência de dois métodos e de duas atitudes
morais. Mas a questão de saber se estas duas atítudes correspondem sos dois
2. 2 BORGES, J. L. Fictions. Gallimard, pp. §9-%0 (O “conflito com a tempos permanece obscura: não parece que assim seja, de acordo com o co-
Tartaruga” parece uma alusão não somente 40 paradoxo de Zenão, mas ao de mentário do autor. Com mais forte razão, a questão de dois eternos retornos
Lewis Carroll que vimos
Gallimard, p. 159). precedentemente e que Borges resume em Enquétes, muito diferentes, correspondendo aos dois tempos, não aparece (pelo menos
. “ diretamente) no pensamento estéico. Deveremos voltar a estes pontos.
passar, 20 mesmo tempo, nunca alguma coisa que se passa. estende-os e estira-0s por sobre toda a linha. Cada aconte-
O X de que sentimos que isto acaba de se passar, é o objeto cimento é adequado ao Alon inteiro, cada acontecimento
da novidade”; e o X que sempre vai se passar é o objeto comunica com todos os outros, todos formam um só e mes-
do “conto”. O acontecimento puro é conto e novidade, mo Acontecimento, acontecimento do Aion onde tém uma
jãmaig atualidade. É neste sentido que os acontecimentos verdade eterna. Eis o segredo do acontecimento: estando
são signos. sobre o Aion, ele, entretanto, ndo o preenche. Como o in-
Aos Estóicos ocorre dizer que os signos são sempre corporal preencheria o incorporal e o impenetrivel preen-
presentes e signos de coisas presentes: «daquele que se en- cheria o impenetrdvel? Somente os corpos se penetram, so-
contra mortalmente ferido, não podemos dizer que ele foi mente Cronos é preenchido pelos estados de coisas e os
ferido e que morrerá, mas que ele é tendo sido ferido e movimentos de objetos que mede. Mas, forma vazia e de-
que ele é devendo morrer. Este presente não contradiz o senrolada do tempo, o Aion subdivide ao infinito o que o
Aion: ao contrário, é o presente como ser de razão, que se acossa sem jamais habitd-lo, Acontecimento para todos os
subdivide ao infinito em alguma coisa que acaba de se acontecimentos; eis por que a unidade dos acontecimentos
passar e alguma coisa que vai se passar, sempre fugindo ou dos efeitos entre si é de um tipo completamente dife-
nos dois sentidos ao mesmo tempo. O outro presente, o rente da unidade das causas corporais entre si.
presente vivo, se passa e efetiva o acontecimento. Mas o O Aion é o jogador ideal ou o jogo. Acaso insuflado
acontecimento, nem por isso deixa de guardar uma verdade e ramificado. É ele a cartada única de que todos os lances
eterna, sobre o Aion que o divide eternamente em um pas- se distinguem em qualidade. Ele joga ou, se joga sobre
sado próximo e um futuro iminente e que não cessa de duas mesas pelo menos, na juntura das duas mesas. AÍ
subdividi-lo, repelindo a um e a outro sem nunca torná-los ele traga sua linha reta, bissetriz. Ele recolhe e reparte sobre
menos insistentes. O acontecimento é que nunca alguém todo o seu comprimento, as singularidades correspondendo
morre, mas sempre acaba de morrer ou vai morrer, no as duas. As duas mesas ou séries sdo como o céu e a
presente vazio do Aion, eternidade. Descrevendo um assas- terra, as proposições e as coisas, as expresses e as consu-
sínio tal como deve ser reproduzido por mímica, pura idea- mações — Carroll diria: a tábua (table) de multiplicagio e
lidade, Mallarmé diz: “Aqui avangando, aí rememorando, a mesa (feble) de comer. O Aion é exatamente a fronteira
no futuro, no passado, sob uma aparência falsa de presente das duas, a linha reta que as separa, mas igualmente super-
— assim opera o Mimo, jogo que se limita a uma alusão ficie plana que as articula, vidro ou espelho impenetrével.
perpétua sem quebrar o gelo” 4. Cada acontecimento é o Assim circula através das séries, que não cessa de refletir e
menor tempo, menor que o minimo de tempo continuo pen- de ramificar, fazendo de um só e mesmo acontecimento o
sável, porque ele se divide em passado préximo € futuro expresso das proposigdes, sob uma face, o atributo das coisas,
iminente. Mas é também o tempo mais longo, mais longo sob 2 outra face. É o jogo de Mallarmé isto é, o “livro”:
que o méximo de tempo continuo pensével, porque ele não com suas duas tdbuas (a primeira e a última folha num
cessa de ser subdividido pelo Aion que o torna igual a sua mesmo folheto dobrado), suas séries múltiplas interiores do-
linba ilimitada. Entendamos: cada acontecimento sobre o tadas de singularidades (folhas méveis permutéveis, cons-
Aion é menor que a menor subdivisio no Cronos; mas é telagbes-problemas), sua linha reta com duas faces que re-
também maior que o maior divisor de Cronos, isto ¢, o ciclo fletem e ramificam as séries (“central pureza”, “equação sob
inteiro. Por sua subdivisão ilimitada nos dois sentidos ao um deus Jano”), e sobre esta linha o ponto aleatério que
mesmo tempo, cada acontecimento acompanha o Aion em se desloca sem cessar, aparecendo como casa vazia de um
toda sua extensdo e torna-se coextensivo à sua linha reta nos lado, objeto extranumerério de outro (hino e drama ou então
dois sentidos. Sentimos então a aproximagdo de um eterno “um pouco de padre, um pouco de dangarina” ou ainda o
retorno que não tem mais nada a ver com o ciclo ou já a móvel envernizado com compartimentos e o chapéu sem lugar
entrada de um labirinto, tanto mais terrivel quanto mais ele para ocupar, como elementos arquitetdnicos do livro). Ora,
¢ o da linha única, reta e sem espessura? Q Aion é a linha nos quatro fragmentos um pouco elaborados do Livro de
Teta que traga o ponto aleatório; os pontos singulares de Mallarmé, algo ressoa no pensamento mallarmiano vagamen-
cada acontecimento se distribuem sobre esta linha, sempre te conforme às séries de Carroll. Um fragmento desenvolve
Telativamente ao ponto aleatério que os subdivide ao infi- a dupla série, coisas ou proposiges, comer ou falar, nu-
1ito e assim faz com que se comuniquem uns com os outros, trir-se ou ser apresentado, comer a senhora que convida ou
4. MALARME, “Mimique”. In: Oeuyres, Pléiade, Gallimard, p. 310. responder ao convite, Um segundo fragmento destaca a “neu-
tralidade firme e benevolente” da palavra, neutralidade do
LIGUITTIA F TINIGITA ocric.
sentido em relação à proposição,
expressa com relação àquele que a ouve.
assim como da ordem
Um outro frag-
Do Não-Senso
mento mostra em duas figuras femininas entrelaçadas a li-
nha única de um Acontecimento sempre em desequilíbrio,
que apresenta uma de suas faces como sentido das propo-
sigdes e a outra como atributo dos estados de coisas. Um
outro fragmento, finalmente, mostra o ponto aleatório que
se desloca sobre a linha, ponto de Igitur ou do Coup de dés,
duplamente indicado por um velho morto de fome e uma
crianga nascida da palavra — “pois morto de fome lhe dá
o direito de recomegar...” S,

Resumamos os caracteres deste elemento paradoxal,


Derpetuum mobile etc.: ele tem por função percorrer as séries
heterogêneas e, de um lado, coordená-las, fazê-las ressoar
e convergir e, de outro, ramificá-las, introduzir em cada uma
delas disjunções múltiplas. Ele é ao mesmo tempo para-
vra = X e coisa — X. Ele tem duas faces, já que perten-
ce simultaneamente às duas séries, mas que não se equili-
bram, não se juntam, não se emparelham nunca, uma vez
que ele se acha sempre em desequilíbrio com relação a si
mesmo. Para dar conta desta correlação e desta dissime-
tria, utilizamos pares varidveis: ele é ao mesmo tempo
excesso e falta, casa vazia e objeto supranumerário, lugar
sem ocupante e ocupante sem lugar, “significante flutuante”
e significado flutuado, palavra esotérica e coisa exotérica,
palavra branca e objeto negro. Eis por que ele é sempre
designado de duas maneiras: “pois o Snark era um Boujoum,
imaginem vocés”. Evitaremos imaginar que o Boujoum e
uma espécie particularmente temível de Snark: a relação
de gênero a espécie não convém aqui, mas somente as duas
metades dissimétricas de uma instância última. Da mesma
forma como Sexto Empírico nos ensina que os Estóicos
dispunham de uma palavra destituída de sentido, Blituri,
mas a empregavam junto com um correlato: Skindapsos 1.
Pois Blituri era um Skindapsos, vejam. Palavra = x em
uma série, mas ao mesmo tempo coisa = x na outra série;
é preciso talvez, como veremos, acrescentar ao Aion um
sobre 8. a estratura
Le “Licre” de Mallarmé, Gallimard: cf. o estudo de Jacques Scherer
do “livro” e notadsmente terceiro aspecto, o da ação — X, na medida em que as
130-188). Nio parece, apesar dos pontos de sobre os quatro fragmentos (pp.
encontro entre as duas obras e séries comunicam e ressoam e formam uma “história em-
certos problemas corauns, que Mallarmé tenha conhecido Lewis Carroll: mesmo
os Nursery Rhymes de M laliarmé, À que se referem a Humpty Dumpty, dependem
Wursery Rlym 1, Cf Sexto Empírico, Adversus Logicos, VIIL, 133. Blituri é uma
onomatopéia que exprime um som como o da lira; skindapsos designa a máquina
ou o instrumento.
brulhada”. O Snark é um nome inaudito, mas também um sentido. Mas esta não &, em absoluto, a nossa hipótese.
monstro invisível e remete a uma ação formidável, a caça Quando supomos que o ndo-senso diz seu préprio sentido,
em cujo desfecho o caçador se dissipa e perde sua identi- queremos dizer, ao contrário, que o sentido e o sem-sentido
dade. O Jabberwock é um nome inaudito, um animal fantás- tém uma relação especifica que ndo pode ser decalcada da
tico, mas também o objeto da ação formidável ou do gran- relagio entre o verdadeiro e o falso, isto &, não pode ser
de homicídio. concebida simplesmente como uma relagdo de exclusdo, É
Em primeiro lugar a palavra em branco é designada exatamente este o problema mais geral da lógica do sentido:
por palavras esotéricas quaisquer (isto, coisa, Snark etc.); de que serviria elevarmo-nos da esfera do verdadeiro & do
esta palavra em branco ou estas palavras esotéricas de pri- sentido, se fosse para encontrar entre o sentido e o não-senso
meira potência têm por função coordenar as duas séries he- uma relação andloga à do verdadeiro e do falso? Já vimos
terogêneas. Em seguida, as palavras esotéricas podem, por quanto era vão elevarmo-nos do condicionado à condição,
sua vez, ser designadas por palavras-valise, palavras de se- para conceber a condição 4 imagem do condicionado, como
gunda poténcia que tém por função ramificar as séries. A simples forma de possibilidade. A condigdo ndo pode ter
estas duas poténcias correspondem duas figuras diferentes. com seu negativo uma relagdo do mesmo tipo que o condi-
Primeira figura. O elemento paradoxal é, ao mesmo tempo, cionado tem com o seu. A lógica dos sentidos vé-se neces-
palavra e coisa. Isto é: a palavra em branco que o designa sariamente determinada a colocar entre o sentido e o não-
ou a palavra esotérica que designa esta palavra em branco, -senso um tpo original de relação intrinseca, um modo de
tem também como propriedade exprimir a coisa. E uma pa- co-presenga, que, por enquanto, podemos somente sugerir,
lavra que designa exatamente o que exprime e exprime o tratando o não-senso como uma palavra que diz seu proprio
que designa. Ela exprime seu designado, assim como de- sentido.
signa seu proprio sentido. Em uma só e mesma vez, ela O elemento paradoxal é ndo-senso sob as duas figuras
diz alguma coisa e diz o sentido do que diz: ela diz seu precedentes. Mas as leis normais não se opdem exatamente
proprio sentido. Por tudo isto, ela é completamente anor- a estas duas figuras. Estas figuras, ao contrério, submetem
mal. Sabemos que a lei normal de todos os nomes dotados as palavras normais dotadas de sentido a estas leis que não
de sentido é, precisamente, que seu sentido não pode ser se aplicam a elas: todo nome normal tem um sentido que
designado a não ser por um outro nome (nl > n2 —>n3...).
deve ser designado por um outro nome e que deve determi-
O nome que diz seu próprio sentido só pode ser um não- nar disjungGes preenchidas por outros nomes. Na medida
-senso (Nn). O ndo-senso não faz senfio uma só coisa com em que estes nomes dotados de sentido. são submetidos a
a palavra “ndo-senso” ¢ a palavra “não-senso” confunde-se estas leis, eles recebem determinagdes de significação. A
com as palavras que ndo tém sentido, isto é, as palavras determinagdo de significagdo não é a mesma coisa que a
convencionais de que nos servimos para designi-lo. — lei, mas dela decorre; ela relaciona os nomes, isto é, as
Segunda figura. A prépria palavra-valise é o principio de
palavras e proposigdes a conceitos, propriedades ou classes.
uma alternativa de que ela forma também os dois termos
Assim, quando a lei regressiva diz que o sentido de um nome
(fumioso — fumante e furioso ou furioso ¢ fumante). Cada
deve ser designado por um outro nome, estes nomes de
parte virtual de uma tal palavra designa o sentido da outra graus diferentes remetem do ponto de vista da significação
ou exprime a outra parte que, por sua vez, o designa. Sob a classes ou propriedades de “tipos” diferentes: toda pro-
esta forma, além disso, a palavra no seu conjunte diz seu priedade deve ser de um tipo superior às propriedades ou
préprio sentido e é ndo-senso sob este novo titulo. A se- individuos sobre os quais ela recaj e toda classe deve ser
gunda lei normal dos momes dotados de sentido é, com de um tipo superior aos objetos que contém; nestas condi~
efeito, que seu sentido não pode determinar uma alterna- ções, um conjunto não pode se conter como elemento, nem
tiva na qual cles préprios entram. O não-senso tem pois conter elementos de diferentes tipos. Da mesma forma, con-
duas figuras, uma que corresponde à sintese regressiva, outra forme a lej disjuntiva, uma determinagio de significagio
à sintese disjuntiva. emuncia que a propriedade ou o termo com relagio aos
Pode-se objetar: tudo isto não quer dizer nada. Seria quais se faz uma classificação não pode pertencer a nenhum
um mau jogo de palavras supor que ndo-senso diga seu dos grupos de mesmo tipo classificados com relação a ele:
préprio sentido, já que, por defini¢do, ele não o possui. um clemento não pode fazer parte dos subconjuntos que
Esta objeção é infundada. O que é jogo de palavras é determina, nem do conjunto cuja existdncia ele pressupde.
dizer que não-senso tem um sentido, que é o de ndo ter As duas figuras do ndo-senso correspondem pois duas for-
mas do absurdo, definidas como “destituídas de significa- vido de significação nem por isso deixava de ter um sentido
ção” e constituindo paradoxos: o conjunto que se compreen- e que o próprio sentido ou o acontecimento eram indepen-
de como elemento, o elemento que divide o conjunto que dentes de todas as modalidades que afetam as classes e as
supõe — o conjunto de todos os conjuntos e o barbeiro propriedades, neutras com relação a todos estes caracteres.
do regimento. O absurdo é, pois, ora confusão de níveis O acontecimento difere em natureza das propriedades e das
formais na síntese regressiva, ora circulo vicioso na sintese classes. O que tem um sentido tem também uma significa-
disjuntiva 2. O interesse das determinações de significação ção, mas por razões diferentes das que fazem com que te-
é o de engendrar os princípios de não-contradição e de ter- nha um sentido. O sentido não é, pois, separável de um
ceiro excluído, ao invés de dá-los já feitos; os próprios pa- novo gênero de paradoxos, que marca a presença do não-
radoxos operam a gênese da contradição ou da inclusão nas -senso no sentido, como os paradoxos precedentes marca-
proposições desprovidas de significação. É preciso, talvez, vam a presença do não-senso na significação. Desta vez,
considerar a partir deste ponto de vista certas concepções são os paradoxos da subdivisão ao infinito, de um lado e,
estóicas sobre a ligação das proposições, Pois quando os de outro, da repartição de singularidades. Nas séries, cada
estóicos se interessam tanto pela proposição hipotética do termo não tem sentido a não ser por sua posição relativa
gênero de “se faz dia, está claro”, ou de “se esta mulher a todos os outros termos; mas esta posição relativa depende
tem leite, ela deu à luz”, os comentadores têm certamente ela própria da posição absoluta de cada termo em função
razão de lembrar que não se trata aí de uma relação de con- da instância — x determinada como não-senso e que circula
seqiiéncia física ou de causalidade no sentido moderno da sem cessar através das séries. O sentido é efetivamente
palavra, mas eles se enganam, talvez, ao ver af uma simples produzido por esta circulação, como sentido que volta ao
conseqiiéncia 16gica sob um lago de identidade. Os estóicos significante, mas também sentido que volta ao significado.
numeravam os membros da proposição hipotética: podemos Em suma, o sentido é sempre um efeito. Não somente um
considerar “fazer dia” ou “ter dado 2 luz” como significan- efeito no sentido causal; mas um efeito no sentido de “efei-
do propriedades de um tipo superior aquilo sobre o que re- to óptico”, “efeito sonoro”, ou melhor, efeito de superfície,
caem (“estar claro”, “ter leite”). A ligagdo das proposi- efeito de posição, efeito de linguagem. Um tal efeito não
ções não se reduz nem a uma identidade analitica, nem a é em absoluto uma aparência ou uma ilusão; é um produto
uma sintese empirica, mas pertence ao dominio da signifi- que se estende ou se alonga na superfície e que é estrita-
cação — de tal mancira que a contradicio seja engendrada, mente co-presente, coextensivo à sua própria causa e que
não na relagdo de um termo a seu oposto, mas na relação determina esta causa como causa imanente, inseparável de
do oposto de um termo com o outro termo. De acordo com seus efeitos, puro nikil ou x fora de seus efeitos. Tais efei-
a transformagio do hipotético em conjuntivo “se faz dia, tos, um tal produto, são habitualmente designados por
está claro” implica que não é possivel que faga dia e não um nome próprio ou singular. Um nome próprio não pode
esteja claro: talvez porque “fazer dia” deveria então ser ser considerado plenamente como um signo a não ser na
clemento de um conjunto — que ele suporia — e pertencer medida em que remeta a um efeito deste gênero: assim
a um dos grupos classificados em relação a cle. é que a física fala em “efeito Kelvin”, “efeito Seebeck”,
Não menos do que uma determinação de significação, “efeito Zeemann” etc., ou que a medicina designa as doen-
o não-senso opera uma doação de sentido. Mas não da ças pelos nomes dos médicos que souberam desenhar o
mesma maneira. Pois, do ponto de vista do sentido, a lei seu quadro de sintomas. Nesta mesma via, a descoberta do
regressiva não relacionz mais ou menos os nomes de graus sentido como efeito incorporal, sempre produzido pela cir-
diferentes a classes ou a propricdades, mas os reparte em culação do elemento — x nas séries de termos que percorre,
séries heterogéneas de acontecimentos. Não hd divida de deve ser chamado “efeito Crisipo”, ou “efeito Carroll”,
que estas séries são determinadas, uma como significante e a Os autores que se costuma, atualmente, chamar de es-
outra como significada, mas a distribuigdo do sentido em uma truturalistas, não têm, talvez, outro ponto em comum —
e na outra é completamente independente da relação precisa porém cssencial — além do seguinte: o sentido, não como
de significagio. Eis por que vimos que um termo despro- aparência, mas como efeito de superfície e de posição, pro-
2. Esta distinção comesponde às duas formas do nfão-senso segundo duzido pela circulação da casa vazia nas séries da estrutura
Russell. Sobre estas duas formas, cf. Franz Crahay, Le Formalisme logico-ma-
thémarique et le problême du non-sens, ed. ks Belles Letires, 1957. À distinção (lugar do morto, lugar do rei, mancha cega, significante
Tusselliana parecenos preferível 3 distinção muito seral que Husserl faz entre flutvante, valor zero, cantonada ou causa ausente etc.). O
“pão-senso” e “contra-senso” nas Investigações Lógicas e ma qual se inspira estruturalismo, conscientemente ou n#o, celebra novos acha-
Koyré em Epiménide le menteur (Hermano, p. 8 e s.).
dos de inspiração estóica ou carrolliana, A estrutura é ver- subterrâneo, que é profundamente rasurado, desviado, alie-
dadeiramente uma máquina de produção de sentido incorpo- nado. Mas tanto sob a rasura como sob o véu, o apelo é
ral (skindapsos). E quando o estruturalismo mostra, desta no sentido de reencontrar ou restaurar o sentido, seja em
maneira, que o sentido é produzido pelo não-senso e sew um Deus que não teríamos compreendido suficientemente,
perpétuo deslocamento e que nasce da posição respectiva de seja em um homem que não teríamos sondado o bastante.
elementos que não são, por si mesmos, “significantes”, não É, pois, agradável, que ressoe hoje a boa nova: o sentido
veremos aí, em compensação, nenhuma aproximação com o não é nunca princípio ou origem, ele é produzido. Ele não
que foi chamado de filosofia do absurdo: Lewis Carroll sim, é algo a ser descoberto, restaurado ou re-empregado, mas
Camus não. Pois, para a filosofia do absurdo o não-senso algo a produzir por meio de novas maquinações. Não per-
é o que se opõe ao sentido em uma relação simples com tence a nenhuma altura, não está em nenhuma profundida-
este; tanto que o absurdo se define sempre por uma defi- de, mas é efeito de superfície, insepardvel da superfície como
ciência de sentido, por uma falta (não bhá bastante...). Do de sua dimensão própria.
ponto de vista da estrutura, ao contrário, há sempre sen- Não é que ao sentido falte profundidade ou altitude,
tido demais: excesso produzido e superproduzido pelo não- é antes a altitude e a profundidade que carecem de super-
-senso como privação de si mesmo. Assim como Jakobson fície, que carecem de sentido ou que não o têm a não ser
define um fonema zero que não possui nenhum valor foné- por um “efeito” que supõe o sentido. Não perguntamos
tico determinado, mas que se opõe à ausência de fonema mais se o “sentido originário” da religião está em um Deus
e não ao fonema, da mesma forma o não-senso não possui que os homens traíram ou em um homem que se alienou
nenhum sentido particular, mas se opõe à ausência de sen- na imagem de Deus. Por exemplo: não procuramos em
tido e não ao sentido que ele produz em excesso sem nunca Nietzsche um profeta da reviravolta nem da superação. Se
manter com seu produto a relação simples de exclusão à há um autor para o qual a morte de Deus, a queda em altu-
qual gostaríamos de reduzilo?. O não-senso é ao mesmo ra do ideal ascético não tem nenhuma importância enquanto
tempo o que não tem sentido, mas que, como tal, opõe-se é compensada pelas falsas profundidades do humano, má
à ausência de sentido, operando a doação de sentido. E consciência e ressentimento, é sem dúvida Nietzsche: ele
é isto que é preciso entender por non-sense. conduz suas descobertas alhures, no aforismo e no poema,
Finalmente, a importância do estruturalismo em filoso- que não fazem falar nem Deus nem o homem, máquinas de
fia, e para o pensamento em geral, mede-se por isto: por produzir sentido, de medir a superficie instaurando o jogo
ele deslocar as fronteiras. Quando a noção de sentido tomou ideal efetivo. Não procuramos em Freud um explorador da
o lugar das Essências desfalecentes, a fronteira filosófica pa- profundidade humana e do sentido origindrio, mas o prodi-
receu instalar-se entre aqueles que ligavam o sentido a uma gioso descobridor da maquinaria do inconsciente por meio
nova transcendência, novo avatar de Deus, céu transforma-
da qual o sentido é produzido, sempre produzido em função
do e aqueles que encontravam o sentido no homem e seu
abismo,
do não-senso*. E como poderiamos deixar de sentir que
profundidade novamente cavada, subterrânea.
Novos teólogos de céu brumoso (o nossa liberdade e nossa efetividade encontram seu lugar, não
céu de Koenigsberg) e
no universal divino nem na persopalidade humana, mas
novos humanistas das cavernas, ocuparam à cena em nome
nestas singularidades que não são mais nossas que nós
do Deus-homem ou do Homem-Deus como segredo do sen-
mesmos, mais divinas que os deuses, animando no concreto
tido. Era por vezes difícil distinguir entre eles. Mas, o que
o poema ¢ o aforismo, a revolugdo permanente e ação par-
torna hoje a distinção impossivel é primeiramente a lassi-
dão em que nos encontramos diante deste discurso intermi- cial? O que há de burocritico nestas méquinas fantasmas
nável em que se pergunta se é o asno que carrega o homem que 530 os povos ¢ os poemas? Basta que nos dissipe-
mos um pouco, que saibamos estar na superficie, que
ou se é o homem que carrega o asno e que carrega a si
mesmo. Em seguida, temos a impressão de um contra-senso 4. Em piginas que estão de acordo com as teses principais de Louis
puro operado sobre o sentido; pois, de qualquer maneira, Althusser, J. P. Osier propõe a distinção seguinte: entre aqueks para os quais
o sentido & algo & ser reencontrado em uma origem mais ou menos perdida
céu ou subterrâneo, o sentido é apresentado como Princípio, (seja essa origem divina ou humana, ontolégica ou antropolégica) e aqueles
Reservatório, Reserva, Origem. Princípio celeste, dizemos para os quais a origem é um ndo-senso e o sentido sempre produzido como
um cfeito de superficie, epistemolégico. Aplicando a Freud e a Morx este
que ele é fundamentalmente esquecido e velado; princípio critério, J. P. Osier estina que o problema da interpretacdo não consiste de
forma nenhuma a passar do “derivado” ao “origindrio”, mas a compreender
©os mecanismos de produção do sentido em duas séries: o sentido é re
3., Cf. as observações de Lévi-Strauss sobre o “fonema z2ero” ma “Tntro- efeito. Cf. Prefácio a L'Essence du christianisme de Feuert: 0,
dução à Obra de Marcel Mauss” (Mauss, Sociologie et Anthropologle, p. 50). 1968, mxwmm m “

Qi it E RTA )
estendamos nossa pele como um tambor, para que a “grande
Décima Segunda Série:
política” comece. Um casa vazia que não é nem para o Sobre o Paradoxo
homem e nem para Deus; singularidades que não são nem
da ordem do geral, nem da ordem do individual, nem pes-
soais, nem universais: tudo isto atravessado por circulações,
ecos, acontecimentos que trazem mais sentido e liberdade,
efetivados com o que nunca sonhou, ném Deus concebeu.
Fazer circular a casa vazia e fazer falar as singularidades
pré-individuais e não pessoais, em suma, produzir o sentido,
é a tarefa de hoje.

Não nos desembaraçamos dos paradoxos dizendo que


eles são dignos de Lewis Carroll mais do que dos Principia
Mathematica. O que é bom para Carroli é bom para a
lógica. Não nos desembaraçamos deles dizendo que o bar-
beiro do regimento não existe, tanto quanto o conjunto
anormal. Pois, em compensação, eles insistem na linguagem
e todo o problema é saber se a própria linguagem poderia
funcionar sem fazer insistirem tais entidades. Não diremos
também que os paradoxos dão uma falsa imagem do pensa-
mento, inverossímil e inutilmente complicada. Seria preciso
ser muito “simples” para acreditar que o pensamento é um
ato simples, claro para si mesmo, que não põe em jogo todas
as potências do inconsciente e do não-senso no inconscien-
te. Os paradoxos só são recreações quando os consideramos
como iniciativas do pensamento; não quando os conside-
ramos como “a Paixão do pensamento”, descobrindo o que
não pode ser senão pensado, o que não pode ser senão fa-
lado, que é também o inefável e o impensável, Vazio mental,
Aion. Não invocaremos, enfim, o caráter contraditório das
entidades insufladas, não diremos que o barbeiro não pode
pertencer ao regimento etc. A força dos paradoxos reside
em que eles não são contraditórios, mas nos fazem assistir
à gênese da contradição. O princípio de contradição se
aplica ao real e ao possível, mas não ao impossivel do qual
deriva, isto é, aos paradoxos ou antes ao que representam
os paradoxos.
Os paradoxos de significação são essencialmente o con-
junto anormal (que se compreende como elemento ou que
compreende elementos de diferentes tipos) e o elemento
rebelde (que faz parte de um conjunto cuja existência ele
estendamos nossa pele como um tambor, para que a “grande
Décima Segunda Série:
política” comece. Um casa vazia que não é nem para o Sobre o Paradoxo
homem e nem para Deus; singularidades que não são nem
da ordem do geral, nem da ordem do individual, nem pes-
soais, nem universais: tudo isto atravessado por circulações,
ecos, acontecimentos que trazem mais sentido e liberdade,
efetivados com o que nunca sonhou, ném Deus concebeu.
Fazer circular a casa vazia e fazer falar as singularidades
pré-individuais e não pessoais, em suma, produzir o sentido,
é a tarefa de hoje.

Não nos desembaraçamos dos paradoxos dizendo que


eles são dignos de Lewis Carroll mais do que dos Principia
Mathematica. O que é bom para Carroli é bom para a
lógica. Não nos desembaraçamos deles dizendo que o bar-
beiro do regimento não existe, tanto quanto o conjunto
anormal. Pois, em compensação, eles insistem na linguagem
e todo o problema é saber se a própria linguagem poderia
funcionar sem fazer insistirem tais entidades. Não diremos
também que os paradoxos dão uma falsa imagem do pensa-
mento, inverossímil e inutilmente complicada. Seria preciso
ser muito “simples” para acreditar que o pensamento é um
ato simples, claro para si mesmo, que não põe em jogo todas
as potências do inconsciente e do não-senso no inconscien-
te. Os paradoxos só são recreações quando os consideramos
como iniciativas do pensamento; não quando os conside-
ramos como “a Paixão do pensamento”, descobrindo o que
não pode ser senão pensado, o que não pode ser senão fa-
lado, que é também o inefável e o impensável, Vazio mental,
Aion. Não invocaremos, enfim, o caráter contraditório das
entidades insufladas, não diremos que o barbeiro não pode
pertencer ao regimento etc. A força dos paradoxos reside
em que eles não são contraditórios, mas nos fazem assistir
à gênese da contradição. O princípio de contradição se
aplica ao real e ao possível, mas não ao impossivel do qual
deriva, isto é, aos paradoxos ou antes ao que representam
os paradoxos.
Os paradoxos de significação são essencialmente o con-
junto anormal (que se compreende como elemento ou que
compreende elementos de diferentes tipos) e o elemento
rebelde (que faz parte de um conjunto cuja existência ele
pressupõe e pertence aos dois subconjuntos que determina). as fontes vivas do bom senso: não somente como fatos que
Os paradoxos de sentido são essencialmente a subdivisão ao surgem em tal época, mas como arquétipos emjnos; e não
infinito (sempre passado-futuro ¢ jamais presente) e a dis- por simples metáfora, mas de maneira a reunir todos os
tribuição nômade (repartir-se em um espaço aberto ao invés sentidos dos termos “propriedades” e “classes”. Os caracte-
de repartir um espaço fechado). Mas, de qualquer ma- res sistemáticos do bom senso são pois: a afirmação de
neira, têm por característica o fato de ir em dois sentidos uma só direção; a determinação desta direção como indo do
ao mesmo tempo e tornar impossível uma identificação, co- mais diferenciado ao menos diferenciado, do singular ao
locando a ênfase ora num, ora no outro desses efeitos: tal regular, do notável ao ordinário; a orientação da flecha do
é a dupla aventura de Alice, o devir-louco e o nome-per- tempo, do passado ao futuro, de acordo com e_sta det/::mil-
dido. É que o paradoxo se opõe à doxa, aos dois aspectos nação; o papel diretor do presente nesta orientação; a fupga‘a
da doxa, bom senso e senso comum. Ora, o bom senso se de previsão que assim se torna possível; o tipo de distri-
diz de uma direção: ele é senso único, exprime a existên- buição sedentária, em que todos os caracteres precedentes
cia de uma ordem de acordo com a qual é preciso escolher se reúnem.
uma direção e se fixar a ela. Esta direção é facilmente O bom senso desempenha papel capital na determina-
determinada como a que vai do mais diferenciado ao menos ção da significação. Mas não desempenha nenhum na doa-
diferenciado, da parte das coisas à parte do fogo. Segundo ção de sentido; e isto porque o bom senso vem sempre em
ela, orientamos a flecha do tempo, uma vez que o mais di- segundo lugar, porque a distribuição sedentária que ele
ferenciado aparece necessariamente como passado, na me- opera pressupõe uma outra distribuição, como o prohlem.a
dida em que ele define a origem de um sistema individual dos cercados supde um espago primeiro livre, aberto, ilimi-
€ o menos diferenciado como futuro e como fim. Esta ordem tado, flanco de colina ou encosta. Bastaria entdo dizer que
do tempo, do passado ao futuro, é pois instaurada com o paradoxo segue a outra direção oposta à do bom senso e
relagdo a0 presente, isto & com relação a uma fase deter- vai do menos diferenciado ao mais diferenciado, por um
minada do tempo escolhida no sistema individual conside~ capricho que seria somente ufn divertimento do espirito?
rado. O bom senso se dá assim a condigdo sob a qual ele Para retomar exemplos célebres, é certo que se a tempe-
preenche sua função, que é essencialmente a de prever: é ratura fosse se diferenciando ou se a viscosidade se fizesse
<laro que a previsão seria impossivel na outra diregdo,
se acelerante, ndo poderiamos mais “prever”. Mas por qué?
fossemos do menos diferenciado ao mais diferenciado, por Não porque as coisas se passariam no outro sentido. O outro
exemplo, se temperaturas primeiramente indiscerniveis fossem sentido seria ainda um senso único. Ora, o bom senso não
se diferenciando. Eis por que o bom senso pôde se reencon- se contenta em determinar a direção particular do senso
trar tdo profundamentc na termodinimica. Mas na origem único, ele determina primeiro o principio de um sentido
¢le se vale de modelos mais altos. O bom senso é essen- único em geral, reservando-se o direito de mostrar que este
cialmente repartidor; sua formula é “de um lado e de outro principio, uma vez dado, nos forga a escolher tal d.i.(egfio
lado”, mas a repartição que ele opera se faz em tais condi- de preferência a outra. De tal forma que a potência do
ções que a diferenca é posta no comego, tomada em um paradoxo não consiste absolutamente em seguir a outra di-
movimento dirigido incumbido de cumuls-la, iguala-la, reção, mas em mostrar que o sentido toma sempre os dois
anuld-la, compensé-la. É exatamente o que quer dizer: da sentidos ao mesmo tempo, as duas direções ao mesmo tempo.
parte das coisas & parte do fogo, ou da parte dos mundos O contrário do bom senso não é o outro sentido; o outro sen-
(sistemas individuais) a parte de Deus. Uma tal repartição tido é somente a recreação do espírito, sua iniciativa amena.
implicada pelo bom senso se define precisamente como dis- Mas o paradoxo como paixão descobre que não podemos se-
tribuição fixa ou sedentária. A essência do bom senso é de parar duas direções, que não podemos instaurar um senso
se dar uma singularidade, para estendê-la sobre toda a linha único, nem um senso único para o sério do pensamento, para
dos pontos ordinários e regulares que dela dependem, mas o trabalho, nem um senso invertido para as recreações e
que a conjuram ¢ a diluem. O bom senso é completamente os jogos menores. Se a viscosidade se fizesse acelerante, ela
combustivo e digestivo. O bom senso é agrícola, inseparáve! arrancaria os móveis ao repouso, mas em um sentido impre-
do problema agrário e da instalação de cercados, insepará- visível. Em que sentido, em que sentido? pergunta Alice.
vel de uma operação das classes médias em que as partes se A pergunta não tem resposta, porque é próprio do sentido
compensem, se regularizem. Máquina a vapor e criação em não ter direção, não ter “bom sentido”, mas sempre as duas
terrenos cercados, mas também propriedades c classes, são ao mesmo tempo, em um passado-futuro infinitamente sub-
dividido e alongado. O físico Boltzmann explicava que a comum. O bom senso não poderia fixar nenhum começo
flecha do tempo, indo do passado para o futuro, só valia e nenhum fim, nenhuma direção, não poderia distribuir
nos mundos ou sistemas individuais e com relagio a um nenhuma diversidade, se ndo se superasse em direção a uma
presente determinado em tais sistemas: “para o Universo instancia capaz de referir este diverso à forma de identi-
inteiro, as duas diregdes do tempo são pois impossiveis de dade de um sujeito, à forma de permanéncia de um objeto
distinguir, da mesma forma como no espago não hi nem ou de um mundo, que supomos estar presente do comego
acima, nem abaixo (isto ¢, nem altura, nem profundidade)!. ao fim. Inversamente, esta forma de identidade no senso
Reencontramos a oposição do Aion e do Cronos. Cronos comum permaneceria vazia se ndo se superasse em direção
é o presente que só existe, que faz do passado e do futuro a uma jnstdncia capaz de determini-la por esta ou aquela
suas duas dimensdes dirigidas, tais que vamos sempre do diversidade comegando aqui, acabando ali ¢ que supomos
passado ao futuro, mas na medida em que os presentes se durar todo o tempo que é preciso para igualagio de suas
sucedem nos mundos ou sistemas parciais. Ajon é o pas- partes. É preciso que a qualidade seja a0 mesmo tempo
sado-futuro em uma subdivis3o infinita do momento abstra- parada e medida, atribuida e identificada. E nesta comple-
10, que não cessa de se decompor mos dois sentidos ao mentaridade do bom senso e do senso comum que se es-
mesmo tempo, esquivando para sempre todo presente. Pois tabelece a alianga do eu, do mundo e de Deus — Deus
nenhum presente é fixável no Universo como sistema de como saida última das direções e principio supremo da iden-
todos os sistemas ou conjunto anormal. A linha orientada tidade. Da mesma forma, o paradoxo ¢ a subversdo simul-
do presente, que “regulariza” em um sistema individual cada ténea do bom senso e do sepso comum: ele aparece de um
ponto singular que recebe, opde-se a linha de Aion, que salta lado como os dois sentidos a0 mesmo tempo do devir-louco,
de uma singularidade pré-individual a outra e as rctoma imprevisivel; de outro lado, com o não-senso da identidade
todas uma nas outras, retoma todos os sistemas segundo as perdida, irreconhecivel. Alice é aquela que vai sempre nos
figuras da distribuigdo nômade em que cada acontecimento dois sentidos ao mesmo tempo: o pais das maravilhas (Won-
é já passado e ainda futuro, mais e menos ao mesmo tempo, derland) tem uma dupla direção sempre subdividida. Ela é
sempre véspera e amanhd na subdivisio que os faz co- também aquela que perde 2 identidade, a sua, a das coisas
‘municar. e a do mundo: em Silviz e Bruno, o pais das fadas (Fairy-
* No senso (sentido) comum, “sentido” não se diz mais land) se opõe a Lugar-comum (Common-place). Alice se
de uma diregdo, mas de um órgão. Nós o dizemos comum, submete e fracassa em todas as provas do senso comum:
porque é um órgão, uma função, uma faculdade de identi- a prova da consciéncia de si como órgão — “Quem sois
ficagdo, que relaciona uma diversidade qualquer a forma do v6s?” —, a prova da percepgdo de objeto como reconhe-
Mesmo. O senso comum identifica, reconhece, não menos cimento — o bosque que se furta a qualquer identificagdo
quanto o bom senso prevé. Subjetivamente, o senso comum —, a prova da memória como recitagio — “é falso do co-
subsume faculdades diversas da alma ou órgãos diferencia- mego ao fim” — a prova do sonho como unidade de mundo
dos do corpo ¢ os refere a uma unidade capaz de dizer — em que cada sistema individual se desfaz em proveito de
Eu: é um só e mesmo eu que perccbe, imagina, lembra-se,
um universo no qual somos sempre um elemento no sonho
sabe etc.; e que respira, que dorme, que anda, que come. ..
de um outro — “ndo gosto de pertencer ao sonho de uma
A linguagem não parece possivel fora de um tal sujeito que
se exprime ou se manifesta nela e que diz o que ele faz. outra pessoa”. Como é que Alice poderia ainda ter senso
Objetivamente, o senso comum subsume a diversidade dada comum, uma vez que não tem mais bom senso? A lingua-
e a refere à unidade de uma forma particular de objeto ou gem parece, de qualquer maneira impossivel, não tendo mais
de uma forma individualizada de mundo: é o mesmo objeto sujeito que se exprima ou se manifeste nela, nem objeto a
que eu vejo, cheiro, saboreio, toco, o mesmo que percebo, ima- designar, nem classes e propriedades a significar segundo
gino e do qual me lembro... e é no mesmo mundo que uma ordem fixa.
respiro, ando, fico em vigilia ou durmo, indo de um objeto É contudo aí que se opera a doagdo de sentido, nesta
para outro segundo as leis de um sistema determinado. Aí região que precede todo bom semso € senso comum. Af, a
ainda a linguagem não parece possivel fora de tais identi- linguagem atinge sua mais alta poténcia com a paixão do
dades que designa. Vemos muito bem a complementari- paradoxo. Para além do bom senso, as parelhas de Lewis
dade entre as duas forgas, a do bom senso e a do senso Carroll representam os dois sentidos, ao mesmo tempo, do
1. Bovtaaws. Legons sur la théoric des gaz. Trad. fr. Gauthier-Villars, devir-louco. Primeiro em Alice, o chapeleiro e a lebre de
ed, £ 1, p. 253,
março: cada um habita em uma direção, mas as duas di- quando objeta que no despertar de Crisipo tudo recomeca
reções são inseparáveis, cada uma se subdivide na outra,
e a mesma pergunta se coloca. Crisipo se faz mais expli-
tanto que as encontramos ambas em cada uma. É preciso cito: podemos sempre puxar dos dois lados, frear os cava-
ser dois para ser louco, somos sempre loucos em dupla, los quando a descida se acentua ou diminuir com uma mão
ambos se tornam loucos no dia em que “massacraram o quando aumentamos com a outra® Pois, se se trata de
tempo”, isto é, destruíram a medida, suprimiram as paradas saber “por que em tal momento de preferéncia a outro
e os repousos que referem a qualidade a alguma coisa qualquer”, “por que é que a água muda de qualidade a zero
de fixo. Eles mataram o presente, que não sobrevive mais graus”, a questio estard mal colocada enquanto zero graus
entre eles a não ser na imagem adormecida do arganaz, seu
for considerado como um ponto ordindric na escala das
companheiro supliciado, mas também que não mais subsiste
temperaturas. E se, ao contrério, ele for considerado como
a não ser no momento abstrato, na hora do chá, infinita-
um ponto singular, ndo é separdvel do acontecimento que
mente subdivisivel em passado e em futuro. Tanto que agora se passa nele, sempre chamado zero com relação à sua
eles não cessam de mudar de lugar, sempre em atraso e
efetuação sobre a linha das ordinérias, sempre por vir e já
sempre adiantados, nas duas direções ao mesmo tempo, mas
passado.
nunca na hora certa. Do outro lado do espelho, a lebre e
Podemos, a partir dai, propor um quadro do desenvol-
o chapeleiro são retomados nos dois mensageiros, um para
vimento da linguagem em superficie e da doação do sentido
ir, outro para vir, um para procurar, outro para relatar, se-
na fronteira das proposigdes ¢ das coisas. Tal quadro repre-
gundo as duas direções simultâneas do Aion. Mais ainda, senta a organizagio dita secundéria, prépria à linguagem.
Tweedledum e Tweedledee dão testemunho da indiscerni- Ele ¢ animado pelo elemento paradoxal ou ponto aleatório
bilidade das duas direções e da infinita subdivisão dos dois 20 qual demos duplos-nomes diversos. E dá na mesma apre-
sentidos em cada direção sobre a estrada bifurcante que sentar este elemento como percorrendo as duas séries, na
indica sua casa. Mas, assim como os pares tornam impos- superficie, ou como tragando entre as duas a linha reta do
stvel toda medida do devir, toda parada da qualidade e, por Aion. Ele é não-senso e define as duas figuras verbais do
conseguinte, todo exercicio do bom senso, Humpty Dumpty ndo-senso. Mas, justamente porque o não semso-se acha em
é a simplicidade real, o Senhor das palavras, o Doador do uma relação interior original com o sentido, ele é também
sentido, que destrói o exercicio do senso comum, distribuin- o que prové de sentido os termos de cada série: as posições
do as diferengas de tal maneira que nenhuma qualidade fixa, relativas destes termos uns com relação aos outros dependem
nenhum tempo medido se relacionam a um objeto identi- de sua posição “absoluta” com relagdo a ele. O sentido é
ficável ou reconhecivel: ele, cujo porte e pescogo, gravata sempre um efeito produzido nas séries pela instancia que as
e cinto se confundem — carecendo tanto de sentido comum pecorre. Eis por que o sentido, tal como é recothido sobre
quanto de órgãos diferenciados, unicamente feito de singu- o Aion, tem ele proprio duas faces que correspondem
laridades méveis e “desconcertantes”. Humpty Dumpty ndo às faces dissimétricas do elemento paradoxal: uma, vol-
reconhecerd Alice, pois cada singularidade de Alice lhe pa- tada para a série determinada como significante; a outra
rece tomada no conjunto ordindrio de um órgão (othos, na- voltada para a série determinada como significada. O sentido
iz, boca) e fazer parte do Lugar-comum de um semblante insiste em uma das séries (proposigdes): ele é o exprimivel
muito regular, organizado como o de todo mundo. Na sin- das proposigdes, mas ndo se confunde com as proposigdes
gularidade dos paradoxos nada comega ou acaba, tudo vai que o exprimem. O sentido advém 4 outra série (estados de
no sentido do futuro e do passado 2o mesmo tempo. Como coisas): ele é o atributo dos estados de coisas, mas não se
diz Humpty Dumpty, podemos sempre nos impedir de cres- confunde com os estados de coisas aos quais ele se
cer a dois, um crescendo apenas com o outro diminuindo. atribui, com as coisas e qualidades que o efetuam. O que
Não é de surpreender que o paradoxo seja a poténcia do permite, pois, determinar tal série como significante e tal
inconsciente: ele se passa sempre no entre-dois das cons- outra como significada, são precisamente estes dois aspectos
ciéncias, contra o bom senso ou às costas da consciéncia, do sentido, insisténcia e extra-ser e os dois aspectos do não-
contra o senso comum. A pergunta: quando é que a gente -senso ou do elemento paradoxal do qual eles derivam, casa
fica careca? ou quando é que existe uma porção? — Crisipo vazia e objeto supranumerério — lugar sem ocupante em
respondia que seria melhor parar de contar, que podiamos uma série e ocupante sem lugar na outra. É por isso que o
mesmo ir dormir e o verificariamos certamente mais tarde.
Carnéades não parece compreender muito bem esta resposta, 2, Cf Cicero, Primeiros académicos, § 29. Cf. também as observagles
de Kierkegaard nas Migalhas, que dá razão a Carnéades arbitrariamente,
sentido em si mesmo é objeto de paradoxos fundamentais Décima Terceira Série:
que retomam as figuras do não-senso. Mas a doação de
sentido não se faz sem que sejam também determinadas
Do Esquizofrénico
condições de significação às quais os termos das séries, uma e da Menina .
vez providos de sentido, serão nlteriormente submetidos em
uma organização terciária que os refere às leis das indica-
ções e das manifestações possíveis (bom senso, senso co-
mum). Este quadro de um desdobramento total na super-
fície é necessariamente afetado, em cada um destes pontos,
por uma extrema e persistente fragilidade.

Nada de mais frágil do que a superficie. A organiza-


ção secunddria ndo estard ameagada por um monstro muito
mais poderoso do que o Jabberwock — por um ndo-senso
informe e sem fundo, bem diferente daqueles que vimos pre-
cedentemente com duas figuras ainda inerentes ao sentido?
A ameaca é primeiramente imperceptivel; mas bastam alguns
passos para nos apercebermos de uma falha aumentada e
que toda organização de superficie j4 desapareceu, jogada
em uma ordem primdria terrivel. O não-senso não dá mais
o sentido: ele devorou tudo. Acreditavamos primeiro perma-
necer no mesmo clemento ou em um elemento vizinho. Per-
cebemos agora que mudamos de elemento, que entramos em
uma tempestade. Acreditivamos ainda estar entre as ga-
rotinhas e as criangas: já nos encontramos em uma lou-
cura irreversivel. Acreditdvamos estar no ponto culminante
de pesquisas literdrias, na mais alta invengdo das lingua-
gens e das palavras; j4 nos achamos nos debates de uma
vida convulsiva, na noite de uma criação patolégica concer-
nente aos corpos. É por isso que o observador deve per-
manecer atento: é pou té
palavras-valise, por exemplo, ver misturar as
_fantis, as experimentagBes poéticas e as exper
loucura. Um grande poeta pode escrever numa relação
reta com a criança que ele foi e as criangas que ama; um
louco pode carregar consigo a mais imensa obra poética,
numa relação direta com o poeta que ele foi ¢ que não
deixou de ser. Isto não justifica de forma nenhuma a gro- - -
tesca trindade da crianga, do poeta e do louco. Com toda a
força da admiragdo, da veneração, devemos estar atentos
aos dedlizes que revelam uma diferenca profunda sob seme-
parecem ter uma outra função, tomadas em sincopes e sobre-
lhanças grosseiras. Devemos estar atentos às funções e aos carregadas de guturais. edi is-
abismos muito diferentes do não-senso, à heterogeneidade tancia que separa a linguagem de Carroll, emiti -
das palavras-valise que não autorizam nenhum amálgama _ficie a linguagem de Artaud, talhada na_profundi s
entre os que inventam e mesmo os que os empregam. Uma corpés adiferênça
— de seus-problemas. Damos entdo todo
menina pode cantar “Pimpanicalho”, um artista escrever o seu alcance as declarações de Artaud na carta de Rodez:
“fumioso”, um esquizofrênico dizer “perspendicaz”!: não “Não fiz tradução do Jabberwocky. Tentei traduzir um
temos nenhuma razão para acreditar que o problema seja o fragmento mas isto me aborreceu. Jamais gostei deste
mesmo por trás de resultados grosseiramente análogos. Não poema, que sempre me pareceu de um infantilismo afetado...
é sério confundir a canção de Babar e os gritos-sopros de Não gosto dos poemas ou das linguagens de superficie e que
Artaud, “Ratara ratara ratara Atara tatara rana Otara otara respiram ócios felizes e êxitos do intelecto, mesmo que este
Kkatara. . .” Acrescentemos que o erro dos lógicos, quando se apóie no ânus, mas sem que se empenhe nisso a alma ou
falam do nao-semso, é o de dar exemplos desencarnados, o coragdo. O ânus é sempre terror e não admito que perca-
“laboriosamente construidos por eles mesmos e para as neces- mos um excremento sem nos dilacerarmos com a possibi-
sidades de sua demonstragdo, como se ndo tivessem nunca lidade de que ai percamos também nossa alma e ndo há
ouvido uma menina cantar, um grande poeta dizer, um alma no Jabberwocky... Podemos inventar nossa prdpria
squizofrénico falar, Miséria dos exemplos ditos logicos lingua e fazer falar a lingua pura com um sentido extra-
(salvo em Russell, sempre inspirado em Lewis Carroll). gramatical, mas é preciso que este sentido seja vilido em
Mas ai ainda a insuficiéncia do lógico não nos autoriza a si, isto é, que venha do pavor... Jabberwocky é a obra de
refazer, contra ele, uma trindade. Ao contririo. O pro- um aproveitador que quis intclectualmente saciar-se, ele,
blema é o da clinica, isto &, do deslize de uma organizagio
farto de uma refeigdo bem servida, saciar-se com a dor de
para outra ou da formação de uma desorganizagio pro-
gressiva ¢ criadora. O problema é também o da critica, outrem... Quando escavamos o excremento do ser ¢ de
sua linguagem, o poema deve cheirar mal e Jabberwocky é
isto é, da determinagdo dos niveis diferenciais em que o
nio-senso muda de figura, a palavra-valise de natureza, a
um poema que o autor evitou manter no ser uterino do
sofrimento em que todo grande poeta mergulhou e onde,
linguagem inteira de dimensdo.
Ora, as semelhangas grosseiras langam primeiramente ao ser parido, cheira mal. Há no Jabberwocky passagens
de fecalidade, mas se trata de fecalidade de um esnobe inglés,
sua armadilha. Gostarfamos de considerar dois textos com
que frisa o obsceno como cachos frisados a ferro quente.
estas armadilhas de semelhanga. Ocorre a Antonin Artaud
E a obra de um homem que comia bem e percebemos isto
confrontar-se com Lewis Carroll: primeiro, em uma trans-
no que ele escreve...”3. Fagamos um resumo: Artaud
crigio do capitulo Humpty Dumpty, depois em uma carta
considera Lewis Carroll como um perverso, um pequeno
de Rodez em que julga Carroll. Ao ler a primeira estrofe
tal como é apresentada por Artaud, tem-se perverso, que se restringe & instauração de uma linguagem
do Jabberwocky,
de superficie e não sentiu o verdadeiro problema de uma
a jmpressio de que os dois primeiros versos correspondem
ainda aos critérios de Carroll e se conformam a regras de linguagem em profundidade — problema esquizofrénico do
tradução bastante andlogas às dos outros tradutores france-
sofrimento, da morte e da vida. Os jogos de Carroll The
Mas desde a \’nlt.ima.pa]avra do parecem pueris, sua alimentagio muito mundana e até mesmo
ses, Parisot ou Brunius.
segundo verso, desde o terceiro verso, um de.shzameum se sua fecalidade hipócrita e bem educada.
produz e mesmo um desabamento central e criador, que faz Longe do génio de Artaud, consideremos um outro
com que estejamos em um outro mundo e em uma outra texto cuja beleza e densidade permanecem clinicas 4. Aque-
linguagem?. Com espanto, reconhecemos sem esforço:ª é le que chama a si mesmo de doente ou esquizofrénico “es-
a linguagem da esquizofrenia. Mesmo as palavras-valise tudante de linguas” experimenta a existéncia e a disjunção
das duas séries da oralidade: é a dualidade coisas-palavras,
À e s B e do e Cporpendieniares) consumages — expressbes, objetos consumiveis — pro-
e que são muito perspicazes: citado por Georges Dumas, Le sumaturel et les
Gieux d'aprês les maladies mentales, P.UF.,L'Aume,
1946, p.tentative
303. Ú
asnti-grammaticale posigdes exprimiveis. Esta dualidade entre comer e falar
2. ARTAUD, Ântonin LArve of pode se exprimir mais violentamente: pagar-falar, defecar-
contre Lewis Carroll. L'Arbalête, nº 12, 1947:
“I1 ótait roparant, et les vliqueux tarands
Allaient en gibroyant et en brimbulkdriquant
Jusque 1à oà la rourghe est & rouarghe a rangmbde et rangmbdo a 3. Carta a Henri Parisot, Lettres do Rodez, G.L.M., 1946.
zouarghambde:
4. Worrsox, Louis Le Schizo et les langues ou la phonétique chez le
Tous les falomitards étaient Jes chats-buants psychotique. Les Temps Modernes, nº 218, julho de 1984,
Et les Ghoré Uk'hatis dans le Crabugeument.”
~falar. Mas ela se transporta e se reencontra, também, so-
bretudo entre duas espécies de palavras, de proposições, duas toda a obra de Carroll). Da mesma forma, quando Antonin
Artaud desenvolve suas próprias séries antinômicas, “ser e
espécies de linguagem: a língua materna, o inglds, essencial-
mente
obedecer, viver e existir, agir e pensar, matéria e alma, corpo
alimentar e excremencial; as línguas estrangeiras,
essencialmente expressivas, que o doente se esforga por ad- e espírito”, ele próprio tem a impressão de uma extraordi-
quirit.
nária semelhança com Carroll. O que ele traduz dizendo
A mãe o ameaga de duas maneiras equivalentes para
que para além dos tempos, Carroll o pilhou e plagiou, a ele,
impedi-lo de progredir nestas linguas: seja brandindo diante Antonin Artaud, tanto no que se refere 2o poema .de
dele alimentos tentadores mas indigestos, encerrados em Humpty Dumpty sobre os peixes, quanto no que diz respeijto
caixas; seja surgindo para lhe falar bruscamente em inglés,
ao Jabberwocky. E, entante ue A te
antes que cle tenha tido o tempo de tapar os ouvidos. Ele
que não tem nada a ver com Carroll? Por que a extraordi-
enfrenta a ameaça por meio de um conjunto de procedimen- naária Tamiliaridade
também-uma-radical
é e definitiva es-
tos cada vez mais aperfeicoados. Em primeiro Tugar, ele tranheza? Basta perguntar uma vez mais como e em que
come com gula, empanturra-se, sapateia sobre as caixas, mas Tugar se organizam as séries de Carroll: as duas séries se
repetindo para si mesmo, sem parar, algumas palavras es- articulam em superficie. Sobre esta superficie, uma _hnha é
trangeiras. Mais profundamente, cle assegura uma resso- como a fronteira das duas séries, proposições e coisas ou
néncia entre as duas séries e uma conversio de uma para dimensões da proposição. Ao longo desta linha se a!a‘rzora
a outra, traduzindo as palavras inglesas em palavras estran- o sentido, a0 mesmo tempo como expresso da proposição e
geiras segundo os elementos fonéticos (as consoantes sendo atributo das coisas, “exprimível” das expressões e “atnbu!-
o mais importante): por exemplo, 4rvore, free em inglés, vel” das designações. As duas séries se encontram pois
é convertida gracas ao R que se encontra também no vo- articuladas por sua diferença e o sentido percorre toda a
cdbulo francés, depois gragas ao T que se cncontra também superfície, embora permaneça sobre sua própria linha. Não
no termo hebreu; e como o russo diz, derevo, árvore, pode-
há dúvida de que este sentido ímag:ria.l é o.nª,sultaudª;)X õd;s
mos igualmente transformar tree em tere, T transforman- isas corporais, de suas misturas, suas ações e p À
do-se então em D. Este procedimento já complexo dá lugar :Aºàss o mrª%adc; é de uma natureza completamente dnfe'rente
a um procedimento generalizado, quando o doente tem da causa corporal. Eis por que, sempre na superficie, o
a
idéia de fazer intervir associações: early (cedo), cujas con- sentido como efeito remete a uma quase-causa ela propria
* soantes R e L colocam problemas particularmente delicados, incorporal: o não-senso sempre mével, expresso nas palavras
transforma-se nas locuções francesas associadas “suR-Le. esotéricas e nas palavras-valise e que distribui o s‘cnuglo
-champ”, “de bomme heuRe”, “matinalement”, “i la dos dois lados simultaneamente. É tudo isto a organizagio
paRole”, “dévoRer L’espace”, ou mesmo em uma palavra de superficie em que opera a obra de Carroll como efeito
esotérica e ficticia de consonancia alemã, wurlich. (Lembra de espelho.
-
mo-nos de que Raymond Roussel, nas técnicas que inven- Www
tava para constituir e converter séries no interior do francés, que vai animar o gênio de Artaud, o ínfimo
mais dos esqui-
distinguia um primeiro procedimento restrito e um segundo “zofténicos a conhece e vive também à.sua maneira: para ele
procedimento generalizado na base de associagdes.) Acon- não há, não existe mais superfície. Como entãg Carroll não
tece que palavras rebeldes resistem a todos os procedimen- fria parecer-lhe uma menina afetada, ao abr.lgo de _todoª
tos, animando insuportiveis paradoxos: assim ladies, que se os problemas de fundo? A primeira evidência esquizofrê-
aplica apenas & metade do género humano, mas que não nica é que a snpefiit;iw"&qg_hmsj\rgg—
pode ser transcrito a não ser por leutte ou loudi, que de- ‘teita entre as coisas « p:oposições,,pxemsa.menw—pesque
signam, 2o contrário, a totalidade do género humano. hão há mais superficie dos corpos. O primeiro aspecto do
Aqui ainda temos primeiramente a impressio de uma córpo esquizofrênico é uma espécie de corpo-coador: Freud
certa semelhanga com as séries carrollianas. A grande duali- sublinhava esta aptidão do esquizofrênico para captar a su-
dade _oral comer-falar, também em Lewis Carroll, ora se perfície e a pele como perfuradas por uma infinidade de
deslocae passa entre éci: osiçou õesduas. pequenos buracos °. A conseqiiéncia é que o corpo no seu
dimensões das proposições, ora se endurece e se torna pagar-
Tfalar, excremento-linguagem (Alice deve _comprar o ovo na
da ovelha e Humpty Dumpty paga aspalavras; quanto
gy S e 0% i
g, T
tétapsyc! 3 .
DOS
M. Bona-

calidade, como diz Artaud


quends buracos due corremo risco de perpétio alareamento, Freud mostra due
existe aí um sintoma propriamente esquizofrênico que não poderia convir nem
ela se ,
acha subjacente em a0 histérico nem ao obsessivo.
todo não é mais que profundidade e leva, engole todas as venenosos, ruidosos ¢excrement oss.s.
_encaixado As partes
coisas nesta profundidade escancarada que representa uma do corpo, órgãos, determinam-se em função dos elementos
involução fundamental. Tudo é c ral. - Tudo é decompostos que os afetam e os agridem 7. Ao efeito de
linguagem se substitui uma pura linguagem-afeto, neste pro-
física, como cedimento da paixdo: “Toda escrita é PORCARIA” (isto
“has, atrave: &, toda palavra detida, tragada se decompde em pedagos
esforço dos pés ao se levantarem, a resisténcia ao abandono, ruidosos, alimentares e excremenciais).
formam caixas ao se unirem umas as outras” 6. Uma 4rvore, Trata-se menos, portanto, para o esquizofrénico, de
uma coluna, uma flor, uma vara crescem através do corpo; recuperar o sentido que de destruir a palavra, de conjurar
sempre outros COrpos penetram em nosso corpo e coexistem o afeto ou de transformar a paixdo dolorosa do corpo em
com suas partes, Tudo é diretamente caixa, alimento em ação triunfante, com a obediência em comando, sempre
caixa e excremento. Como não há superficie, o interior e nesta profundidade abaixo da superficie cavada. O estu-
dante de linguas dá o exemplo de meios pelos quais as ex-
o exterior, o continente e o conteúdo não têm mais limite
plosdes dolorosas da palavra pa lingua materna são conver-
preciso e se afundam em uma universal profundidade ou
giram no circulo de um presente cada vez mais estreito, na tidas em ações relativas as linguas estrangeiras. E da mesma
forma como aquilo que feria, há pouco, estava nos elemen-
medida mesma em que ele é cada vez mais repleto. De onde
tos fonéticos que afetam as partes do corpo encaixado ou
a maneira esquizofrênica de viver a contradição: seja na
desencaixado, o triunfo ndo pode ser obtido agora a não
fenda profunda que atravessa o corpo, seja nas partes que
ser pela instaurago de palavras-sopros, de palavras-gritos
se encaixam e giram. Corpo-coador, corpo-despedaçado e em que todos os valores literais, sildbicos e fonéticos são
corpo-dissociado formam as três primeiras dimensões do substituidos por valores exclusivamente ténicos e nio-escri-
corpo esquizofrênico. tos, aos quais corresponde um corpo glorioso como nova
Nesta falência da superfície, a palavra no seu todo perde dimensdo do corpo esquizofrénico, um organismo sem partes
o sentido. Ela conserva talvez um certo poder de designa- que faz tudo por insuflagdo, inspiração, evaporagdo, trans-
ção, mas apreendido como vazio; um certo poder de mani- missdo fluidica (o corpo superior ou corpo sem órgãos de
festação, apreendido como indiferente; uma certa significa- Antonin Artand)3. E sem dúvida esta determinagdo do
ção, apreendida como “falsa”. Mas ela perde, em todos os procedimento ativo, por oposição ao procedimento da paixdo,
casos, seu sentido, isto é, sua capacidade de recolher ou de parece em primeiro lugar insuficiente: os fluidos não pa-
exprimir um efeito incorporal distinto das ações e das paixdes recem, com efeito, menos maléficos do que os pedagos. Mas
do corpo, um acontecimento ideal distinto de sua própria isto em virtude da ambivaléncia ação-paixão. É ai que a
efetuação presente. Todo acontecimento é efetuado, ainda contradição vivida na esquizofrenia encontra seu verdadeiro
que sob uma forma alucinatéria. Toda palavra é fisica, afeta ponto de aplicagdo: se a paixdo e a agdo sio os pólos
imediatamente o corpo. O procedimento é do seguinte gê- inseparéveis de uma ambivaléncia é porque as duas lingua-
nero: uma palavra, freqiientemente de patureza alimentar, gens que elas formam pertencem inseparavelmente ao corpo,
6 aparecc em maiúsculas impressas como em uma colagem a profundidade dos corpos. Nunca se estd seguro, por
que a fixa e a destitui de seu sentido; mas ao mesmo tempo conseguinte, de que os fluidos ideais de um organismo sem
em que perde seu sentido, a palavra afixada explode em partes ndo carreguem vermes parasitas, fragmentos de órgãos
pedaços, decompde-se em silabas, letras, sobretudo consoan- e de alimentos s6lidos, restos de excrementos; estamos mesmo
tes que agem diretamente sobre o corpo, penetrando-o e mor- seguros de que as poténcias maléficas se servem efetiva-
tificando-o. Foi o que vimos a respeito do esquizofrénico mente dos fluidos e das insuflagdes para fazer passar nos
estudante de linguas: é ao mesmo tempo, que a lingua ma- corpos os pedagos da paixio. O fluido é mecessariamente
terna é destituida de seu sentido e que seus elementos foné- corrompido, não por si mesmo, mas pelo outro pólo do
ticos se tornam singularmente contundentes. ‘_(A_‘P@!_G)EB_ deixou qual é inseparavel. Nio é menos certo que ele representa
de exprimir um atributo de. estado..de coisas,seus pedaços o pólo ativo ou estado de mistura perfeito, por oposição
se confundem com qualidades sonoras insuportáveis, fazem ao atrito e à contusio das misturas imperfeitas, polo
_efragdo no corpo em que. formam uma mistura, um novo 7. Sobre as letrasórgãos, of. Antonin Artand, “Le Rite du peyotl”, em
_estado de coisas, como.
se eles próprios fossem alimentos Les Tarahumaras, ed. YArbalête, pp. 26-02. Ú
8. Cf. em 84, 1948: “Nada de boca, de lingua, de dentes, de laringe,
de esófago, de estômago, de ventre, de ânus. Eu Teconstruirei o homem que
6. ARTAUD, Antonin, La Tour de few. Abril de 1961. sou”. (O corpo sem órgãos é feito só de assa e de sangue.)
passivo. Há na esquizofrenia uma maneira de viver a (rota a ser regulada), a que acrescentaremos Rouergue, país
distinção estóica entre duas misturas corporais, a mistura de Rodez em que Artaud se encontrava. Da mesma forma,
parcial, que altera, a mistura total e liquida que deixa o quando ele diz Uk'hatis, com apóstrofe interior, ele indica
corpo intacto. Há, no elemento fluido, um liquido insuftado, ukhase (ukase), háre (pressa) e abruti (embrutecido) e
o segredo não-escrito de uma mistura ativa que é como o acrescenta “solavanco noturno sob Hécate, que significa os
“princípio do Mar”, por oposição às misturas passivas das porcos da lua postos para fora do caminho reto”. Ora, no
partes encaixadas. É neste sentido que Artaud transforma momento mesmo em que a palavra se apresenta como uma
o poema de Humpty Dumpty sobre o mar e os peixes, sobre palavra-valise, sua estrutura e o comentário que a ela se
o problema de obedecer e de comandar. acrescenta nos persuadem de algo totalmente diferente; os
Esta segunda linguagem, este procedimento de ação se Ghoré Uk'hatis de Artaud não são um equivalente dos
define praticamente por suas sobrecargas consonânticas, gu- porcos perdidos, dos mome raths de Carroll ou dos verchons
turais e aspiradas, suas apóstrofes e seus acertos interiores, fourgus de Parisot. Eles não rivalizam neste plano. É
seus sopros e sua escansões, sua modulação que substitui que, longe de assegurar uma ramificação de séries segundo
o sentido, operam ao contrário uma cadeia de associações
todos os valores silábicos ou mesmo literais. Trata-se de
entre elementos tônicos e consonantais, em uma região de
fazer da palavra uma ação tornando-a indecomponivel, im-
infra-sentido, segundo um princípio fluido e incandescente
possível de desintegrar: linguagem sem articulação. Mas o
que absorve, reabsorve efetivamente o sentido à medida que
cimento aqui é um princípio molhado, a-orgânico, bloco ou ele se produz: Uk'hatis (ou os porcos da lua extraviados),
massa de mar. A propósito da palavra russa, a árvore dere- é K'H (solavanco), K'T (noturno) H'KT (Hécate)
vo, o estudante de línguas se regozija com a existência de Não se marcou bastante a dualidade da palavra esq
um plural — derevya — em que a apóstrofe interior Ihe mfigmmm
parece assegurar a fusão das consoantes (o signo mole dos Jonéticos contundentes, a palavra-agio que solda valores
lingiiistas). Ao invés de separar as consoantes e de torná-las tonicos inarticolados. Estas duas palavras se desenvolvem
pronuncidveis, dir-se-ia que a vogal reduzida ao signo mole em relação com a dualidade do corpo, corpo feito em peda-
torna as consoantes indissoci4veis, molhando-as, deixa-as ile- ¢os e corpo sem órgãos. Elas remetem a dois teatros, teatro
giveis e mesmo impronuncidveis, mas faz delas gritos ativos do terror ou da paixdo, teatro da crueldade essencialmente
em um sopro continuo®. Os gritos juntos são soldados no ativo. Elas remetem a dois ndo-sensos, passivo ¢ ativo: o
SOpro, como as consoantes no signo que molha, como os da palavra privada de sentido que se decompde em elemen-
peixes na massa do mar ou os ossos NO sangue para o corpo tos fonéticos, o dos elementos tônicos que formam uma
sem órgãos. Signo de fogo, também, onda que “hesita entre palavra indecomponivel ndo menos privada de sentido. Tudo
O gis e a 4gua”, dizia Artaud: os gritos são como crepita- se passa aqui, age e padece abaixo do sentido, longe da su-
ções no sopro. perficie. Subsentido, infra-sentido, Untersinn, que deve ser
Quando Antonin Artaud diz no seu Jabberwocky: “Jus- distinguido do não-senso de superficie. Segundo a palavra
que 1a ol la rourghe est 4 rouarghe a rangmbde et rangmbde de Hélderlin, “um signo vazio de sentido”, tal é a linguagem
a rouarghambde™, trata-se de ativar, de insuflar, de molhar sob seus dois aspectos, um signo, de qualquer forma, mas
ou de fazer flamejar a palavra para que ela se torne a ação que se confunde com uma ação ou uma paixdo do corpo 1°.
de um corpo sem partes, em lugar da paixão de um orga- Eis por que parece muito insuficiente dizer que a lingua-
nismo feito em pedagos. Trata-se de fazer da palavra um
gem esquizofrénica se define por um deslizamento, inces-
consolidado de consoantes, um indecomponivel de conso-
sante e enlouquecido, da série significante sobre a série sig-
antes, com signos moles. Nesta linguagem podemos sempre
encontrar equivalentes de palavras-valise. Para rourghe e 0. No seu belissimo_estudo Structuration dynamique dans la schizophré-
rouarghe, o préprio Artaud indica ruée (monte de palha) nie (Veriag Hans Huber, Berna, 1956), Gisela Pankow levou muito longe o
extme do pepel dos sigads na esquizofrenia, Relativemente aos casos relatados
roue (roda), route (rota), régle (regra), route à régler por Mme Pankow, consideraremos notadamente: a análise das palavras alimen-
tares tornadas imóveis que explodem em pedaços fonéticos, assim como CARA-
9. Cf Wolfson, op. cit,, p. 53: em derev'ya, “a virgula entre o o molhado MELS, p. 22; a dialética do continente e do conteúdo, a descoberta da oposição
© o y representa o signo dito mole, o qual nesta palavra faz ma verdade com polar, o tema da água c do fogo que se acha a isso ligado, pp. 57-60, 64, 67,
um y, consoante completa, se pronuncie após o v (molhado) o qual fonema de T0; à curiosa invocação do peixe como signo de revolta ativa e da úágua
alguina forma seria molhado sem o signo mole é por causa da vogal mole quente como signo de liberagdo, pp. 74-79; a distinção de dois corpos, o corpo
seguinte, representada aqui foneticamente por ya e escrevendo-se em russo com aberto e dissociado do homem-flor e a cabeca em órgãos que serve de
uma só letra, tendo a forma de um R maiúsculo ao inverso (pronunciar diréoya: complemento, pp. 69-72. Parece-nos, entretanto, que a interpretação de Mme
© acento de intensídade reeai sobre a segunda silaba; o i aberto e breve; O Pankow minimiza o papel da cabeça sem órgãos. E que o Tegime dos signos
d oreov molhados ou como fundidos com um yod)”. Da mesma vividos na esquizofrenia não se compreende, abaixo do sentido, a não ser pela
P 73, os comentários do esquizofrênico sobre a palavra russa louD'Mi. forma, distinção entre os signos-paíxões do como e dos signos-ações corporais.
nificada. Na realidade, não há mais séries absolutamente,
as duas séries desapareceram. O não-senso deixou de dar o sição dos pólos no presente físico dos corpos. Mesmo as
sentido à superfície; ele absorve, engole todo sentido, tanto palavras-valise têm funções totalmente heterogêneas.
ao lado do significante quanto do significado. Artaud diz
Podemos encontrar na criança uma “posição” esquizóide
que o Ser, que é não-senso, tem dentes. Na organização de antes de ela ter se elevado ou conquistado a superfície. Na
superfície mesmo podemos sempre encontrar pedaços esqui-
superfície que chamávamos de secundária, os corpos físicos
zóides, uma vez que ela tem precisamente por sentido or-
e as palavras sonoras são separados e articulados ao mesmo
ganizar e estender elementos vindos das profundidades. Nem
tempo por uma fronteira incorporal, a do sentido que repre-
por isso é menos execrável e deplorável misturar tudo, seja
senta de um lado o expresso puro das palavras, de outro, o
a conquista da superfície na criança, seja a falência da su-
atributo lógico dos corpos. Tanto que o sentido pode muito perfície no esquizofrênico e o controle das superfícies na-
bem resultar das ações e das paixdes do corpo: é um
quele que chamamos — por exemplo — perverso. Podemos
resultado que difere em natureza, nem ação nem paixão por sempre fazer da obra de Lewis Carroll uma espécie de conto
si mesmo e que garante a linguagem sonora de toda confu- esquizofrénico. Imprudentes psicanalistas ingleses o fize-
são com o corpo físico. Ao contrário, nesta ordem primá- ram: o corpo-telescópio de Alice, seus encaixes e desen-
ria da esquizofrenia, não há mais dualidade a não ser entre caixes, suas obsessões alimentares manifestas e excremen-
as ações e as paixões do corpo; e a linguagem é os dois ao ciais latentes; os pedaços que designam tanto pedaços de
mesmo tempo, inteiramente reabsorvida na profundidade es- alimento como “trechos escolhidos”, as colagens e etiquetas
cancarada. Nada mais impede as proposições de se abate- de palavras alimentares prontas para se decompor; as perdas
Tem sobre os corpos e de confundir seus elementos sonoros de identidade, os peixes e o mar... Podemos ainda per-
com as afecções do corpo, olfativas, gustativas, digestivas. tar & de loucura_representam clinicamenteo
Não somente não há mais sentido, mas não há mais gramá- cEapel 0, 2 lebre de março e o arganaz. E na oposição de
tica ou sintaxe e, em última instância, nem mesmo elementos Alice e Humpty Dumpty, podemos Seémpre reconbecer os
silábicos, literais ou fonéticos articulados. Antonin Artaud dois pélos ambivalentes “órgãos em pedagos — corpos sem
pode intitular sewr ensaio de “Tentativa antigramatical contra órgãos”, corpo coador e corpo glorioso. O préprio Artaud
Lewis Carroll”. Carroll tem necessidade de uma gramática não tinha outra razdo para se confrontar com o texto de
muito estrita, encarregada de recolher a flexão e a articula- Humpty Dumpty. Mas, neste momento preciso, repercute a
ção das palavras, como separadas da flexão e da articulação adverténcia de Artaud: “Eu não fiz tradugdo... jamais
dos corpos, ainda que fosse apenas pelo espelho que as gostei deste poema... ndo gosto dos poemas ou das lin-
reílete e lhes devolve um sentido . Eis por que podemos guagens de superficie”. Uma psicandlise má tem duas ma-
opor ponto por ponto Artaud e Carroll — a ordem pri- neiras de se enganar ou por acreditar descobrir matérias idên-
mária e a organização secundária. As séries de superficie ticas que forgosamente se encontram em toda parte ou formas
do tipo “comer-falar” não têm realmente nada de comum andlogas que fazem falsas diferengas. É ao mesmo tempo
com os pólos em profundidade aparentemente semelhantes, que se deixa assim escapar o aspecto clinico psiquidtrico e
As duas figuras do não-senso na superfície, que disttibuem o aspecto critico literdrio. O estruturalismo tem razão em
o sentido entre as séries, não têm nada a ver com os dois Jembrar que forma e matéria não tém alcance a não ser nas
mergulhos de não-senso que o arrastam, o engolem e o estruturas originais e irredutiveis em que elas se organizam.
reabsorvem (untersinn), Às duas formas da gagueira, clô- Uma psicandlise deve ser de dimensdes geométricas, antes
nica e tônica, não têm senão grosseiras analogias com as duas de ser de anedotas histéricas. Pois a vida, a própria sexuali-
linguagens esquizofrênicas. O corte de superfície não tem dade, estão na organizagdo e orientagdo dessas dimensdes,
nada de comum com a Spaltung profunda. À contradição antes de estar nas matérias geradoras e nas formas engen-
captada em uma subdivisão infinita do passado-futuro sobre dradas. A psicandlise nfio pode se contentar em designar
a linha incorporal do Aion não tem nada a ver com a opo- casos, manifestar histérias ou significar complexos. A psica-
nilise é psicandlise do sentido. Ela é geogréfica antes de ser
11. É neste sentido que, em Carroll, a invenção é essencialmente de histérica. Ela distingue paises diferentes. Artaud não é
vocabulário e não sintáxico ou gramatical. Desde então, as palavras-valise
podem abrir uma infinidade de interpretações possíveis, ramificando ns séries; Carroll nem Alice, Carroll não é Artaud, Carroll não é
Tesulta que o rigor sintáxico elimina, de fato, um certo número destas possibi- nem mesmo Alice. Antonin Artaud aprofunda a crianga
lidades. O mesmo ocorre em Joyce, como o mostrou Jean Paris (Tel Quel,
nº 30, 1967, p. 64). Ao contrário, em Ártaud; mas porque não há mais pro- em uma alternativa extremamente violenta, conforme às duas
blema de sentido, propriamente falando.
linguagens em profundidade, de paixdo e ação corporais:
Decima Quarta oserie:
Da Dupla Causalidade
corpo fluídico e glorioso, flamejante, sem órg
(como aquelas que Artaud chamava de suas
nascer). Carroll ao contrário espera a criança,
a sua linguagem do sentido incorporal
ponto € no momento em q

“didade do seu próprio corpo, curto momento de superfície


em que a menina aflora à água, como Alice na baciade

des, as quais, pelo fato de nãe


_de qualguer maneira, garras e tragar
mesmo fazer-nos recair no abismo que acred
jurado. Carroll e Artaud não se reencontram; só o comen- -
tador pode mudar de dimensão
e ,
eis a sua grande fraqueza, A fragilidade do sentido se explica facilmente. O atri-
.9darfamo
sinal de quê não habifa nenhuma. Por todo Carfoll,não buto é de uma outra patureza que as qualidades corporais.
s uma página de Antonin Artaud; Artaud é o único O acontecimento, de uma outra natureza que as agdes c
a ter sido profundidade absoluta na literatura e a ter desco- paixdes do corpo. Mas ele resulta delas: o sentido é o efeito
'E)eno um corpo vital e a linguagem prodigiosa deste corpo, de causas corporais ¢ de suas misturas. Tanto que ele estd
à custa de sofrimento, como ele diz. Ele explorava sempre correndo o risco de ser tragado por sua causa. Ele
o
infra-sentido, hoje ainda desconhecido. Mas Carroll con- não se salva, não afirma sua irredutibilidade a não ser na
Unua.slendo o senhor ou o agrimensor das superficies, medida em que a relagdo causal compreende a heterogenei-
que
acreditivamos tio bem conhecidas a ponto de não mais dade da causa ¢ do efeito: elo das causas entre si e ligação
exploré-las e onde se processa, contudo, toda a 16gica dos efeitos entre si. O que é o mesmo que dizer que o sen-
do
sentido. tido incorporal, como resultado das ações e das paixdes do
corpo, não pode preservar sua diferenca relativamente à causa
corporal a não ser na medida em que se prende em super-
ficie a uma quase-causa, ela mesma incorporal. Foi o que
os Estóicos viram muito bem: o acontecimento é submetido
a uma dupla causalidade, remetendo de um lado às mistu-
ras de corpos que são 2 sua causa, de outro lado, a outros
acontecimentos que são a sua quase-causal, Ao contrério,
se os Epicuristas não chegam a desenvolver sua teoria dos
envelopes e das superficies, se não chegam 2 idéia de efeitos
incorporais, é talvez porque os “simulacros” continuam sen-
do submetidos à causalidade exclusiva dos corpos em pro-
fundidade. Mas, mesmo do ponto de vista de uma pura
fisica das superficies, a exigéncia de uma dupla causalidade
se manifesta: os acontecimentos de uma superficie liquida
remetem, de um lado, às modificações intermoleculares dos
quais dependem como de sua causa real, mas, de outro lado,
as variações de uma tensdo dita superficial, da qual depen-
dem como de uma quase-causa, ideal ou “ficticia”. Temos
tentado fundamentar esta segunda causalidade de uma ma-
neira que convém ao caráter incorporal da superfície e do ao que preenche estas dimensões, a tal ou tal grau ou de tal
acontecimento: pareceu-nos que o acontecimento, isto é, o ou tal maneira: isto é, com relação aos estados de coisas
sentido, relacionava-se a um elemento paradoxal intervindo designados, aos estados do sujeito manifestados, aos con-
como não-senso ou ponto aleatório, operando como quase- ceitos, propriedades e classes significadas. Como conciliar
-causa e assegurando a plena autonomia do efeito. (É ver- estes dois aspectos contraditérios? De um lado, a impas-
sibilidade em relação aos estados de coisas ou a neutra-
dade que esta autonomia não desmente a fragilidade prece-
lidade em relagéio as proposições, de outro lado a poténcia
dente, uma vez que as duas figuras do não-senso na super-
de génese tanto em relação às proposicies quanto em re-
ficie podem, por sua vez, transformar-se nos dois não-sensos
lação aos préprios estados de coisas. Como conciliar o prin-
profundos de paixdo e de agfio e assim o efeito incorperal
cipio lógico segundo o qual uma proposição falsa tem um
ser reabsorvido na profundidade dos corpos. Inversamente, sentido (de tal modo que o sentido como condigdo do ver-
esta fragilidade não desmente a autonomia enquanto o sen- dadeiro permanece indiferente tanto ao verdadeiro como ao
tido dispde de sua dimensão prépria.)
falso) e o principio transcendental, não menos certo, se-
A autonomia do efeito se define pois em primeiro lugar gundo o qual uma proposigdo tem sempre a verdade, a parte
por sua diferenca de natureza com relação à causa, em se- e o género de verdade, que ela merece e que lhe cabe con-
gundo lugar, por sua relagio com a quase-causa. Só que forme seu scntido? Não bastaria dizer que esses dois aspec-
estes dois aspectos dão ao semtido caracteres muito dife- tos se explicam pela dupla figura da autonomia e vém do
rentes e mesmo, aparentemente, opostos. Pois, na medida fato de que, em um caso, consideramos somente o efeito
em que afirma sua diferenga de natureza diante das causas como diferindo em natureza de sua causa real e no outro
corporais, estados de coisas, qualidades ¢ misturas fisicas, o caso como ligado & sua quase-causa ideal. Pois são estas
sentido como efeito ou acontecimento se caracteriza por uma duas figuras da autonomia que nos precipitam na contradi-
espléndida impassibilidade (impenetrabilidade, esterilidade, ção, sem contudo resolvé-la.
ineficicia, nem ativo nem passivo). E esta impassibilidade Esta oposição entre a lógica formal simples e a lógica
ndo marca somente a diferenca do sentido com relzgdo aos transcendental atravessa toda a teoria do sentido. Conside-
estados de coisas designados, mas também sua diferenga rela-
ramos o exemplo de Husserl nas Idéias. Lembremo-nos de
tivamente às proposições que o exprimem: deste lado, ela que Husser] descobrira o sentido como noema de um ato ou
aparece como neutralidade (dobra extraida da proposicdo, expresso de uma proposição. Nesta via, como os Estdicos,
suspensão das modalidades da proposição). Ao contrário, tinha reencontrado a impassibilidade do sentido na expres-
desde que o sentido é captado na sua relagio com a quase- são gracas aos métodos redutores da fenomenologia. Pois
~causa que o produz e o distribui na superficie, ele herda, ndo somente o noema, desde os seus primeiros momentos,
participa, mais ainda, envolve e possui a poténcia desta implicava um duple neutralizado da tese ou da modalidade
causa ideal: vimos como esta não era mada fora de seu da proposição expressiva (o percebido, o lembrado, o ima-
efeito, que ela-tragava este efeito, que mantinha com ele ginado); mas possuia um nicleo completamente indepen-
uma relagio imanente que faz do produto alguma coisa de
dente dessas modalidades da consciéncia e desses caracte-
produtor, a0 mesmo tempo em que é produzido. Não há res téticos da proposição, completamente distinto também das
mais por que voltar a insistir sobre o cardter essencialmente qualidades fisicas do objeto posto como real (assim, os puros
produzido do sentido: jamais originério, mas sempre causado, predicados, como a cor noemática, em que ndo intervém
derivado. Resta que esta derivagdo é dupla e que, em nem a realidade do objeto nem a maneira segundo a qual
relagio com a imanéncia da quase-causa, ela cria os ca- temos consciéncia dele). Ora, eis que, no niicleo do sentido
minhos que traga e faz bifurcar. E este poder genético, noemético, aparece alguma coisa de ainda mais intima, um
nestas condições, devemos sem divida compreendé-lo com “centro supremamente” ou transcendentalmente intimo, que
relação à propria proposigdo, na medida em que o sentido não é nada além da relagéo do préprio sentido 20 objeto na
expresso deve engendrar as outras dimensões da proposição sua realidade, relagdo e realidade que devem agora ser en-
(significagdo, manifestagdo, designagdo). Mas devemos gendrados ou constituidos de maneira transcendental. Paul
compreendé-lo também com relagdo & maneira pela qual estas
Ricoeur, após Fink, sublinhou muito bem esta virada na
dimenses se acham preenchidas e até mesmo com relagio quarta secção das Idéias: “Não somente a consciéncia se
1 Gi. Clément d'Alexandrie, Stromates VIIT, 9: “Os estéicos dizem supera em um sentido visado, mas este sentido visado se
o e orpo é causa no sentido próprio, mas o incorporal do um modo metafó- supera em um objeto. O sentido visado não era mais do
rico e 2 maneira de uma causa”,
que um conteúdo, conteúdo intencional, certamente, e não sofia que sente muito bem que não seria filosofia se não
real... (Mas agora) a relação do noema ao objeto deveria rompesse ao menos provisoriamente com os conteúdos par-
ela própria ser constituída pela consciência transcendental ficulares e as modalidades da doxa, mas que dela con-
como última estrutura do noema” 2. No coração da lógica o essencial, isto é: a forma, e que se contenta com
serva
do sentido, reencontramos sempre este problema, esta elevar ao transcendental um exercício apenas empírico em
imaculada concepção como passagem da esterilidade à uma imagem do pensamento apresentada como “originária”?
gênese. Não é somente a dimensão de significação que se da ja
Mas a gênese husserliana parece operar um passe de pronta no sentido concebido como predicado geral; e não
mágica. Pois o núcleo foi bem determinado como atributo; é somente, também, a dimensdo de designação, que se dá
mas o atributo é compreendido como predicado e não como ma relação suposta do sentido com um objeto qualquer deter-
verpo, isto é, como conceito e não como acontecimento (é minável ou individualizével; é ainda toda a dimensio de
assim que a expressão, de acordo com Husserl, produz uma manifestagio, no posicionamento de um sujeito transcenden-
forma do conceitual ou que o sentido é inseparável de um tal que conserva a forma da pessoa, da consciéncia pessoal
tipo de generalidade, se bem que esta generalidade não se e da identidade subjetiva e que sc contenta em decalcar o
confunda com a da espécie). Daí, então, a relação do sen- transcendental a partir dos caracteres do empirico. O que é
tido ao objeto decorre naturalmente da relação dos predi- evidente em Kant, quando infere diretamente as três sínte-
cados noemáticos a alguma coisa — X capaz de lhes servir ses transcendentais de sínteses psicológicas correspondentes,
de suporte ou de principio de unificação. Esta coisa = X não o é menos em Husserl, quando infere um “Ver” origi-
não é, pois, em absoluto, como um não-senso interior e co- nário e transcendental a partir da “visão” perceptiva.
rpresente ao sentido, ponto zero que não pressuporia nada E assim, não somente nos damos na noção de sentido
daquilo que é preciso engendrar; é muito mais o objeto tudo o que era preciso engendrar por ela, mas, o que é mais
= X de Kant, em que X significa somente “qualquer”, es- grave, embaralhamos toda a noção confundindo sua expres-
tando com o sentido em uma relação racional extrínseca de são com outras dimensões das quais pretendíamos distin-
transcendência e que se dá, já pronta, a forma de designa- guila — nós a confundimos transcendentalmente com estas
ção, exatamente como o sentido enquanto generalidade dimensões das quais queríamos distingui-la formalmente. As
predicável se dava já pronta a forma de significação. Ocor- metáforas de núcleo são inquictantes; clas envolvem o que
re que Husserl pensa a gênese, não a partir de uma ins- está em questão. Sem dúvida a doação de sentido husser-
tância necessariamente “paradoxal” e não “identificavel” liana toma de empréstimo a aparência adequada de uma
apropriadamente falando (faltando à sua própria identidade série regressiva homogénea de grau em grau, depois de uma
como à sua própria origem), mas ao contrário a partir de organização de séries heterogêneas, a da noese e a do noema,
uma faculdade origindria de senso comum encarregada de dar percorridas por uma instância de dupla face (Urdoxa e
conta da identidade do objeto qualquer e mesmo de uma objeto qualquer)*. Mas trata-se somente da caricatura ra-
faculdade de bom: senso encarregada de dar conta do proces- cional ou racionalizada da verdadeira génese, da doação de
so de identificação de todos os objetos quaisquer ao infi- sentido que deve determind-la ao efetivar-se nas séries, €
nito?à. Nós o vemos muito bem na teoria husserliana da do duplo não-senso que deve presidir a esta doagdo, agindo
doxa, em que os diferentes modos de crença são engendra- como quase-causa. Em verdade, a doação do sentido a partic
dos em função de uma Urdoxa a qual age como uma faculda- da quase-causa imanente e a génese estitica que se segue
de de senso comum com relação às faculdades especificadas. para as outras dimensões da proposigdo não podem se rea-
O que aparecia já tão claramente em Kant vale também para lizar sendo em um campo transcendental que responderia
Husserl: a impotência desta filosofia em romper com a às condições que Sartre punha em seu artigo decisivo de
forma do senso comum. Que dizer, então, de uma filo- 1937: um campo transcendental impessoal ndo tendo a
forma de uma consciéncia pessoal sintética ou de uma
2. Paul Ricoeur, em Idées de Husserl, Galimard, pp. 431432, identidade subjetiva — o sujeito ao contrério sendo sempre
3. HUSSERL, op. cit., p. 456; “O x dotado nos diferentes atos ou
noemas de atos de um estatuto de determinação diferente é necessariamente Nunca o fundamento pode se parecer com o
constituido 5.
atingldp pela consciência como sendo o mesmo...”; p. d78: “À todo objelo
que existe verdadeiramente corresponde por princípio, no a priori da generalidade
condicionada das essências, a idéia de uma Consciência possívelna qual o 4. Husserl, op. cit, 6$ 100-101 e $$ 102 ¢ s.
próprio objeto pode ser tomado de maneira otiginária e portanto perfeitâmente 5. CE Sartre, “La Transcendance de FEgo”, em Recherchos Philosophiques,
adequada...”; p. 480: “Este contínuo é mais exatamente determinado como 103621937, depois ed. Viin, A idéia de um campo transcendental “impessoal
infinito em todas as direções; composto em todas estas fases de aparências do o pré-pessoal”, produtor do Eu assim como do Ego, é de uma grande impor-
mesmo x determinável...” tincia. O que impede esta tese de desenvolver todas 85 suas consequências
BIBLIOTECA SETCRI®L DE CÊSCIAS
SOGIAES É huismaivuirs
que funda; e, do fundamento, não basta dizer que é uma
Décima Quinta Série:
outra história, e também uma outra geografia, sem ser um
outro mundo. E não menos que a forma do pessoal, o
Das Singularidades
campo transcendental do sentido deve excluir a do geral e
a do individual; pois a primeira caracteriza somente um
sujeito que se manifesta, mas a segunda, somente classes e
propriedades objetivas significadas e a terceira, sistemas
designaveis individualizados de maneira objetiva, remetendo
a pontos de vista subjetivos eles mesmos individuantes e
designantes. Assim, não nos parece que o problema avance
realmente, na medida em que Husserl inscreve no campo
transcendental centros de individuagdo e sistemas individuais,
monadas e pontos de vista, vários Eu à maneira de Leibniz,
antes que uma forma de Bu à maneira kantiana®. Há,
contudo, como veremos, uma mudanga muito importante.
Mas o campo transcendental ndo é mais individual do que
pessoal — e mais geral do que universal. Devemos dizer
que é um pogo sem fundo, sem figura nem diferença,
abismo esquizofrénico? Tudo o desmente, a comegar pela
Os dois momentos do sentido, impassibilidade e génese,
organizagio de superficic de um tal campo. A idéia de
singularidades, logo de antigeneralidades, que são entretanto neutralidade e produtividade, não são tais que um possa
impessoais ¢ pré-individuais, deve agora nos servir de passar pela aparéncia do outro. A neutralidade, a impassi-
hipétese para a determinagio deste dominio e de sua bilidade do acontecimento, sua indiferenga às determina-
poténcia genética. ções do interior e do exterior, do individual e do coletivo,
do particular e do geral etc., sdo mesmo uma constante sem
a qual o acontecimento nfio teria verdade etcrna c não se
distinguiria de suas efetuagdes temporais. Se a batalha não
é um exemplo de acontecimento entre outros, mas o Acon-
tecimento na sua esséncia, é sem dúvida porque ela se efetua
de muitas maneiras ao mesmo tempo e que cada participante
pode capti-la em um nivel de efetuagdo diferente no seu
presente varidvel: vejamos as cldssicas comparagdes entre
Stendhal, Hugo, Tolstói, tal como eles “viam” a batalha e
faziam-na ser vista pelos seus heréis. Mas é sobretudo
porque a batalha sobrevoa seu préprio campo, neutra com
relação a todas as suas efetuagdes temporais, neutra e im-
passivel com relação aos vencedores e vencidos, com rela-
ção aos covardes e aos bravos, ¢ por isso tanto mais terrivel,
nunca presente, sempre ainda por vir e já passada, ndo po-
dendo então ser captada sendo pela vontade que ela prépria
em Sarve € que o campo transcendental impessoal é ainda determinado como inspira ao andnimo, vontade que é preciso sem dúvida chamar
© de uma consciência, que deve, então, unificar-se por si mesma ¢ sem Eu, “de indiferen¢a” em um soldado mortalmente ferido, que não
através de um jogo de intencionafidades ou retengdes puras. é mais nem bravo nem covarde e não pode mais ser ven-
6. Nas Méditations cartériennes, as ménadas, centros de visão ou pontos
de vista, tomam um lugar importante 20 lado do Eu com unidade sintética cedor nem vencide, de tal forma além, mantendo-se 14 onde
da apercepção. Entre 03 comentadores de Husserl, coube o mérito a Gaston se dá o Acontecimento, participando assim de sua terrivel
Berger o insistic sobre este deslize; assim, cle podia objetar a Sartre que a
consciência pré-pessoal não tinka talvez nocessidade do Eu, mas que ndo podia impassibilidade. “Onde” está a batalha? Eis por que o sol-
dispensar pontos de vista ou centros de individuação (cl, Berger, Le Cogito
dans la philosophic de Husserl, Aubler, 1941, p. 154; e Recherches sur dado se vê fugir quando foge, saltar quando salta, determi-
conditions de la_connaissance, P.U.F., 1941, pp. 190-193). A objeção é per-
tinente na medida em que o campo transcendental é ainda determinado como nado a considerar cada efetuação temporal do alto da ver-
© de wma “consciéncia” constituinte. dade eterna do acontecimento que se encarna nela e, infe-
lizmente, na sua própria carne. Ainda é preciso
uma longa um dos lados de uma disjunção na própria consciência: ou
conquista ao soldado para chegar a este além
da coragem e a posição-mãe do cogito real sob a jurisdição da razão ou
da covardia, a esta apreensio pura do acontecimento por
a neutralização como “contrapartida”, “cogito impróprio”,
uma “intuição volitiva”, isto &, pela vontade que faz para ele
“sombra ou reflexo” inativo e impassível, subtraído à juris-
© acontecimento, distinta de todas as intuições empiricas que
dição racional 2. O que é assim apresentado como um corte
correspondem ainda a tipos de efetuagdo ?. Assim, o
maior radical da consciência corresponde aos dois aspectos do sen-
livro sobre o acontecimento, maior neste aspecto do que
tido, neutralidade e potência genética com respeito aos
Stendhal, Hugo e Tolstói, é o de Stephen Crane,
The Red modos. Mas a solução que consiste em repartir os dois as-
Badge of Courage, em que o heréi se design
a a si mesmo pectos em uma alternativa não é mais satisfatória dq que
anonimamente como “o jovem” ou “o jovem soldado”.
É aquela que tratava um destes aspectos como uma aparência.
um pouco como nas batalhas de Lewis Carroll em que um Não somente a gênese é então uma falsa gênese, mas a neu-
grande ruido, uma imensa nuvem negra e neutra, um corvo tralidade, uma pseudoneutralidade. Vimos ao contrério que
barulhento, sobrevoa os combatentes e ndo os separa ou
a mesma coisa devia ser captada como efeito de superfície
não os dispersa a ndo ser para tornd-los ainda mais indis-
neutro e como princípio de produção fecundo com relação
tintos. Há certamente um deus da guerra, mas
de todos os às modificações do ser e às modalidades da proposição, não
deuses ele é o mais impassivel, o menos permeave] às preces,
segundo uma disjunção da consciência mas segundo o des-
“Impenetrabilidade”, céu vazio, Aion. dobramento e a conjunção das duas causalidades,
Com relagdo aos modos Pproposicionais em geral, a neu- Procuramos determinar um campo transcendental im-
tralidade do sentido aparece de virios pontos de vista. Do pessoal e pré-individual, que não se parece com os campos
ponto de vista da quantidade, o sentido não é nem particular
empíricos correspondentes e que não se confunde, entretan-
nem geral, nem universal nem pessoal. Do ponto de vista da
to, com uma profundidade indiferenciada. Este campo não
qualidade, cle é completamente independente da afirma- pode ser determinado como o de uma consciência: apesar
ção e da negagdo. Do ponto de vista da modalidade, ele não
da tentativa de Sartre, não podemos conservar a consciên-
€ nem assert6rico, nem apodftico, nem mesmo interr cia como meio ao mesmo tempo em que recusamos a forma
ogativo
(modo de incerteza subjetiva ou de possibilidade objetiva). da pessoa e o ponto de vista da individuação. Uma cons-
Do ponto de vista da relação, cle não se confunde na pro- ciéncia não é nada sem sintese de unificação, mas não há
posição que o exprime nem com a designação, nem
com a sintese de unificação de consciéncia sem forma do Eu ou
manifestagdo, nem com a significaggo. Do ponto de vista
do ponto de vista da individualidade (Ego). O que nf"ao_é nem
tipo, enfim, ele não se confunde com nenhuma das intuiçõ individual nem pessoal, ao contrário, são as emlss,oçs vde
es,
das “posições” de consciência que podemos determinar em- singularidades enquanto se fazem sobre uma superfície in-
Piricamente graças ao jogo dos caracteres proposicionais pre- consciente e gozam de um princípio móvel imanente de auto-
cedentes: intuições ou posições de percepção, de imagin -unificagio por distribuição nômade, que se distingue ra-
a-
ção, de memória, de entendimento, de vontade empírica etc. dicalmente das distribuições fixas e sedentárias como condi-
Husserl mostrou realmente a independência do sentido com ções das sinteses de consciência. As singularidades são os
relação a um certo número desses modos ou desses Pontos de verdadeiros acontecimentos transcendentais: o que Ferlin-
vista, conforme às exigências dos métodos de redução feno- ghetti chama de “a quarta pessoa do singular”. ange de
menológicos. Mas, o que o impede de conceber o sentido serem individuais ou pessoais, as singularidades presidem à
como uma plena (impenetrável) neutralidade é o cuidado em génese dos indivíduos e das pessoas: elas se repartem em
conservar no sentido o modo raciónal de um bom senso ¢ de um “potencial” que não comporta por si mesmo nem Ego
um senso comum, que ele apresenta erradamente como uma (Moi) individual, nem Eu (Je) pessoal, mas que os Qroduz
matriz, uma “forma-mãe não-modalizada” (Urdoxa). É esta atualizando-se, efetuando-se, as figuras desta atualização
mesma preocupação que o faz conservar a forma da cons- não se parecendo em nada ao potencial efetuado. É somen-
ciência no transcendental. Ocorre então que a plena neu- te uma teoria dos pontos singulares que se acha apta a ultra-
tralidade do sentido não pode ser atingida a não ser como passar a síntese da pessoa e a análise do individuo tais como
1. Georges Gurvitch empregava a palavra “intuíção volitiva” para de- elas são (ou se fazem) na consciência. Não podemos acei-
tar a alternativa que compromete inteiramente ao mesmo
que a &lhvn convém antes a uma vontade estéica, vontade de acontecimento,
no sentido do genitivo. 2. CFf uas Idéias, o extraordinário § 114 (e sobre a jurisdição da razão,
§ 11
tempo a psicologia, a cosmologia e a teologia: ou singula- terioridade não significa somente estar dentro mas estar do
ridades já tomadas em indivíduos e pessoa
s ou o abismo lado interno do limite.. . Ao nível da membrana polarizada
indiferenciado. Quando se abre o mundo
pululante das sin- se enfrentam o passado interior e o futuro exterior...”?
gl'zlandadcs anônimas e nômades, impess
oais, pré-individuais, Diremos, pois, como quarta determinação, que a super-
pisamos, afinal, o campo do transcendent
al. No curso das fície é o lugar do sentido: os signos permanecem desprovi-
séries precedentes, cinco caracteristicas princi
pais de um tal dos de sentido enquanto não entram na organização de su-
mundo se esbogaram.
perfície que assegura a ressonância entre duas séries (duas
Em primeiro lugar, as singularidades-acontecimentos imagens-signos, duas fotos ou duas pistas etc.). Mas este
corre§pondem a séries heterogéneas que se organizam em mundo do sentido não implica ainda nem unidade de direção
um sistema nem estivel nem instavel,
estavel”, mas “meta nem comunidade de órgão, os quais exigem um aparelho
provido de uma energia potencial em que
se distribuem as receptor capaz de operar um escalonamento sucessivo dos
dlferengas enire séries. (A energia potencial € a energia do planos de superfície segundo uma outra dimensão. Mais
acontecimento puro, enquanto que as formas de atualiza. ainda, este mundo do sentido com seus acontecimentos-
ção correspondem às efetuagdes do acontecime
nto.) Em -singularidades apresenta uma neutralidade que lhe é es-
segundq _lugr, as singularidades gozam
de um processo de sencial. Não somente porque ele sobrevoa as dimensões se-
auto-unificação, sempre móvel e deslo
cado na medida em gundo as quais se ordenará de maneira a adquirir significa-
que um elemento paradoxal percorre e faz
ressoar as séries, ção, manifestação e designação; mas porque ele sobrevoa
envolvendo os pontos singulares correspondentes
em um as atualizações de sua energia como energia potencial,
mesmo ponto aleatório e todas as emissões, todos
os lances, isto é, a efetuação de seus acontecimentos, que pode ser
em uma mesma jogada. Em terceiro lugar as singularidad tanto interior quanto exterior, coletiva e individual, segundo
es
ou potenciais freqgilentam a superficie. Tudo a superfície de contacto ou o limite superficial neutro
se passa na
superficie em um cristal que não se desenvolve que transcende as distâncias e assegura a continuidade
a não ser
pelas burqas. Sem dúvida, não é o mesmo que sobre suas duas faces. Eis por que, em quinto lugar,
se dá com
um organismo; este não cessa de se recolher em este mundo do sentido tem por estatuto o problemático:
um espaço
interior, como de se expandir no espaço 2s singularidades se distribuem em um campo propriamente
exterior, de assimi-
}ar e de exteriorizar. Mas as membranas não são aí menos problemático e advêm neste campo como acontecimentos
importantes: elas carregam os potenciais topológicos aos quais não está ligada nenhuma direção.
e Têgeneram as po-
la.ndades., clas põem precisamente em contac Um pouco como acontece para os elementos químicos
to o espago
ext.eríur independentemente da distância. dos quais sabemos onde estão antes de saber o que
O interior e o ex-
terior, o profundo e o alto, não têm valor biológ eles são, nós conhecemos a existência e a repartição dos
ico a não ser
por esta superfície topológica de contacto. pontos singulares antes de conhecer a sua natureza (garga-
E, pois, até
mesmo biologicamente que é preciso compreender los, nós, núcleos, centros.. .). O que permite, como vimos,
que “o
mais .profundo é a pele”. A pele dispõe de uma dar a “problemático” e 4 indeterminação que comporta uma
energia
potencial vital propriamente superficial. E, da mesma forma definição plenamente objetiva, uma vez que a natureza das
como os acontecimentos não ocupam a singularidades dirigidas de um lado, e sua existência e repar-
a superficie, mas
freqiientam, a energia superficial não esté tição sem direção, de outro, dependem de instâncias obje-
localizada na su-
perficie, mas ligada à sua formagdo e reformação. Gilbert tivamente distintas*,
Simondon diz muito bem: “O vivo vive no limite de
si mesmo, sobre seu limite... A polaridade caracteristica 3. SIMONDON, Gilbert. L'Individu et sa genêse physico-biologique. P.UF.,
1964. pp. 260-264. Todo o Kivro de Simondon nos parece de uma grande im-
da vida estd ao nivel da membrana; é neste terreno que portância, porque apresenta & primeira teoria racionalizada das singularidades
vida existe de maneira essencial, como um aspecto de
a impessoais e Dréindiviânais Éle se propõs explicitamente, a partir, destas
uma singularidades, a fazer a gênese tanto do indivíduo vivo como do sufeito cog-
tipologia dindmica que mantém ela propria a metaestabi moscente. Astim, trata-se de uma nova concepção do transcendental. E as cinco
lidade características pelas quais tentamos definir o campo transcendental: energia
pela qual cla existe... Todo o conteúdo do espago interior potencial do campo, ressonância interna das séries, superfície topológica das
estd topologicamente em contacto com o contetido Tnembranas, organização do sentido, estatuto do problemático, são todos analisa-
do espago dos por Simondon. Tanto que a matéria deste parágrafo e do seguinte depende
e)_(tenor sobre os limites do vivo; não há, estreitamente deste livro, de que divergimos somente nas conclusões.
com efeito, distân- 4. Cf Albert Loutman, Le Probléme du Temps, Hermann, 1946, pp.
cla em topologia; toda a massa de matéria 41-42: “Á joterpretação geométrica da teoria das equações diferenciais coloca
viva que está no
espaço interior está ativamente presen bem em evidência duas realidades nhsnlmme!um distintas: há o campnltn d:
te ao mundo exte- direções ¢ os acidentes topolégicos que podem lhe advir, como por exempl
tior sobre o limite do vivo... Fazer parte do meio de in- existéncia no plano de pontos singulares aos quais não é conferida_menhuma
direção e há curvas integrais com a forma que elas tomam ma vizichanga das
Então aparecem as condições da verdadeira génese. É
mo sem diferenças e sem propriedades — ou então um Ser
exato que o sentido é a descoberta própria da filosofia
trans- soberanamente individuado, uma forma fortemente persona-
cendental e vem substituir as velhas Essências metafís
icas. lizada. Fora deste Ser ou desta Forma, não tereis senão o
(Ou antes, o sentido foi primeiro descoberto uma vez, sob caos... Em outros termos, a metafísica e a filosofia trans-
seu aspecto de neutralidade impassível, por uma lógica
em- cendental se entendem a fim de não conceberem singularida-
pirica das proposições que rompia com o aristot
elismo; des determináveis a não ser já aprisionadas em um Ego indi-
dep()){s, uma segunda vez, sob seu aspecto de vidual (Moi) supremo ou um Eu pessoal (Je) superior.
produtividade
genética, pela filosofia transcendental em ruptura’ Parece então absolutamente natural à metafísica determinar
com a me-
tafisica.) Mas a questdo de saber como o campo transcen- este Ego supremo como aquele que caracteriza um Ser
_dental deve ser determinado é muito complexa. Parece-nos infinita e completamente determinado por seu conceito e
impossive! lhe dar, à maneira kantiana, a forma pessoal por isso mesmo possuindo toda a realidade originária.
de
um El_l, de uma unidade sintética de apercepgdo, mesmo Este Ser, com efeito, é necessariamente individuado, uma
se
conferimos a esta unidade um alcance universal; vez que ele rejeita no não-ser ou no abismo do sem-fundo
sobre este
ponto as objegdes de Sartre são decisivas. Mas não todo predicado ou toda propriedade que não exprimiria
é, igual-
mente, possivel conservar-lhe a forma de uma absolutamente nada de real e delega às suas criaturas,
consciéncia,
mesmo se definimos esta consciéncia impessoal isto €, às individualidades finitas, o cuidado de receber
por imencio:
D.ªl'ldªdeã e retenções puras que supõem ainda centros de in- os predicados derivados que não exprimem senão reali-
dividuagdo. O erro de todas as determinagdes do transcen- dades limitadas 5. No outro pólo, a filosofia transcen-
dental como consciéncia é de conceber o transcendental à dental escolhe a forma sintética finita da Pessoa, de prefe-
imagem e 4 semelhanga daquilo que está incumbido de fun- rência ao ser analítico infinito do individuo; e lhe parece
dar. Então, ou nos damos ji feito o que pretendiamos natural determinar este Eu superior do lado do homem e
engendrar por um método transcendental: nós no-lo damos operar a grande permutação Homem-Deus com que a filoso-
já feito no sentido dito “originário” que supomos pertencer fia se contentou durante tanto tempo. O Eu é coextensivo
à consciência constituinte. Ou então, conforme o próprio à representação, como há pouco o indivíduo era coextensivo
Kant, renunciamos à génese ou à constituição para ao Ser. Mas, em um caso como no outro, permanecemos na
nos
atermos a um simples condicionamento transcendental; alternativa do sem-fundo indiferenciado e das singularidades
* mas nem por isso escapamos ao círculo vicioso de acordo aprisionadas: é forçoso, desde então, que o não-senso e o
com o qual a condição remete ao condicionado do qual sentido estejam em uma oposição simples e que o sentido
ela decalca a imagem. É verdade que esta exigência de ele próprio apareça ao mesmo tempo como originário €
definir o transcendental como consciência origindria é justi- como confundido com primeiros predicados, seja predicados
ficada, afirma-se, uma vez que as condições dos objetos considerados na determinação infinita da individualidade do
reais do conhecimento devem ser as mesmas que as Ser supremo, seja predicados considerados na constituição
condições do conhecimento; sem esta cláusula a filosofia formal finita do sujeito superior. Humanos ou divinos,
transcendental perderia todo sentido, devendo instaurar para como dirá Stirner, trata-se de fato dos mesmos predicados,
os objetos condições autônomas que ressuscitariam as Essên- quer pertençam analiticamente ao ser divino ou sejam
cias e o Ser divino da antiga metafisica. A dupla série do sinteticamente ligados à forma humana. E enquanto o
condicionado, isto é, da consciência empírica e de seus obje- sentido é posto como originário e predicável, importa pouco
tos, deve pois ser fundada numa instância origindria saber se é um sentido divino esquecido pelo homem ou
que
retém a forma pura da objetividade (objeto = X) e a forma então um sentido humano alienado em Deus.
pura da consciéncia e que constitui aquela a partir desta. Foram sempre momentos extraordinários aqueles em
. Mas esta exigéncia não parece de forma nenhuma legi-
que a filosofia fez falar o Sem-fundo € encontrou a lingua-
tima. O que é comum & metafisica e a filosofia transcen-
gem mistica de seu furor, de sua informidade, de sua ce-
dental é primeiramente esta alternativa que elas nos impdem
ou um fundo indiferenciado, sem-fundo, ndo-set informe, abis- 5. A mais bela exposição didática da metafísíca tradicional é apresen-
tada por Kant desta maneim, na Critica da Razão Pura, “Do Ideal Transcen-
dental”. Kant mostra como a idéia de um confunto de toda possibilidade
exclui todo outro predicado além de predicados “originários” e por aí cons-
titui 0 conceito completamente determinado de um Ser individual (“é neste
caso que um conceito universal em si de uma coisa é determínado completa-
mente e é conhecido como a representação de um indivíduo”). Então ¢ uni-
€ menos verdadeiro que
q o campo de vetores de um |: lado, as curvas i versal não é mais do que 2 forma de comunicação no pensamento entre €sta
Outro, são duas realidade s matemáticas essencialmente cistiatasmo S individualidade suprema e as individualidades finitas; o universal pensado re-
% mete de todas as maneitas ao individuo.
gueira: Boehme, Schelling, Schopenhauer. Nictzs de discernir nele mil vozes, de fazer falar todas es_tas vozes,
che esteve
primeiramente entre estes, discípulo de Schopenhauer correndo o risco de ser tragado por esta profundidade que
, no
Nascimento da Tragédia, quando ele fez falar Dionísio interpretava e povoava como nunca havm ocorrido. Ele
sem
fundo, opondo-o à individuação divina de Apolo não suportava permanecer na superficie fragil, de que havia,
e não me-
nos à pessoa humana de Sécrates. Eis o
problema funda- entretanto, feito o tragado através dos homens e dos deuses.
mental de “Quem fala em filosofia?” ou qual Reganhar um sem-fundo que ele renovava, que ele reapro-
é o “sujeito”
do discurso filosófico? Mas, mesmo fazendo fundava, foi ai que Nietzsche, ã sua maneira, ãere_ceu(., pSS“
falar o fundo
informe ou o abismo indiferenciado, com ão “quase pereceu”; pois a doença e a morte são -
toda sua
voz de
embriaguez e cólera, não saímos da alternativa Éit:oaoo%teciml;mo, comg tal justificivel de uma dupla causa-
imposta pela
filosofia transcendental tanto quanto pela metafí lidade: a dos corpos, dos estados de coisas e das misturas,
sica: fora da
pessoa e do indivíduo, não distinguireis mas também a da quase-causa que representa erstado de
nada... Assim a
descoberta de Nietzsche está alhures, organizagio ou de desorganização da superficie 1x}qorpora}.
quando, tendo se li-
vrado de Schopenhauer e de Wagner, explor Nietzsche se tornou pois demente ¢ morreu de paralisia geral,
a um mundo de
singularidades impessoais e pré-individuais, 20 que parece, mistura corporal sifilitica. Mas o encami-
mundo
ele que
chama agora de dionisfaco ou da vontade de nhamento que seguia este acontecimento, desta vez com re-
potência, ener-
gia livre e não ligada. Singularidades némades que ndo são lagiio à quase-causa inspirando toda a obra e co-x.ngpuando
mais aprisionadas na individualidade a vida, tudo isto não tem nada a ver com a parahs'm geral,
fixa do Ser infinito
(a famosa imutabilidade de Deus) nem com as dores oculares e os vômitos de_ que 'ele sofria, salvo
nos limites seden-
térios do sujeito finito (os famosos limites para lhe dar uma nova causalidade, isto é, uma verdade
do conhecimen-
to). Alguma coisa que não é nem individual nem eterna independentemente de sua efetuação corporal, um es-
no entanto, que é singular, não abismo
pessoa
l e,
indiferenciado, mas tilo em uma obra em lugar de uma mistura no corpo. Não
saltando de uma singularidade Para vemos outra maneira de colocar o problema das re}a;oes
a outra, sempre emitin-
do um lance de dado que faz parte de da obra e da doenga a ndo ser sob esta dupla causalidade.
um mesmo Jangar
sempre fragmentado e reformado em cada lance.
dionisíaca de produzir
Máquina
o sentido e em que o não-senso e o
sentido não estão mais numa oposição simple
s, mas co-pre-
” sentes um ao outro em um novo discurso.
Este novo dis-
curso não é mais o da forma, mas nem muito menos
o do
informe: ele é antes o informal puro.
“Sereis um monstro
€ um caos”... Nietzsche responde: “Nós realizamos esta
profecia” . E o sujeito deste novo discur
so, mas não há
mais sujeito, não é o homem ou Deus,
muito menos o ho-
mem no Iugar de Deus. É esta singularidad
e livre, anônima
¢ nômade que percorre tanto os homens
, as plantas e os
animais independentemente das matérias de sua
individuação
e das formas de sua personalidade: super-homem
não quer
dizer outra coisa, o tipo superior de tudo aquilo
que é. Es-
tranho discurso que devia renovar a filosofia
e que trata o
sentido, enfim, nZo como predicado, como propriedade, mas
como acontecimento.
Na sua prépria descoberta, Nietzsche entrev
iu como
em
um sonho o meio de pisar a terra, de rogd-la, de
dangar e
de trazer de volta à superficic o que restava
dos monstros
do fundo e das figuras do céu. Mas é verdade que ele foi
tomado por uma ocupag3o mais profunda, mais grandiosa,
mais perigosa também: na sua descoberta ele vin
um novo
meio de explorar o fundo, de levar a ele um
olho distinto,
6. Nietziche. Ed, Krôner, XV, $ 83.
DEeclihha SCAla ocolic.
Da Génese "
Estática Ontológica

O campo transcendental real é feito desta topologia de


superfície, destas singularidades nômades, impessoais e
pré-individuais. Como o indivíduo deriva daí para fora do
campo, constitui a primeira etapa da gênese. O indivíduo
não é separável de um mundo, mas o que chamamos de
mundo? Em regra geral, como vimos, uma singularidade
pode ser compreendida de duas maneiras: na sua existên-
cia ou sua repartição, mas também na sua natureza, con-
forme a qual ela se prolonga ou se estende em uma direção
determinada sobre uma linha de pontos ordinários. Este
segundo aspecto representa já uma certa fixação, um co-
meço de efetuação das singularidades. Um ponto singu-
lar se prolonga analiticamente sobre uma série de ordiná-
Tios, até à vizinhança de uma outra singularidade etc.: um
mundo é assim constituído, com a condição de que as sé-
ries sejam convergentes (um “outro” mundo começaria
na vizinhança dos pontos em que as séries obtidas diver-
giriam). Um mundo envolve já um sistema infinito de
singularidades selecionadas por convergéncia. Mas, neste
mundo, constituem-se indivíduos que selecionam e envolvem
um número finito de singularidades do sistema, que as com-
binam com aquelas que seu próprio corpo encarna, que as
estendem sobre suas próprias linhas ordinárias e mesmo são
capazes de reformá-las sobre as membranas que colocam
em contacto o interior e o exterior. Leibniz tem razão
em dizer que a mônada individual exprime um mundo se-
gundo a relação dos outros corpos ao seu e exprime esta
própria relação segundo a relação das partes de seu corpo
entre elas. Um indivíduo está pois sempre em um mundo
como círculo de convergência e um mundo não pode ser
A extraordinária noção de
formado c pensado senão em torno de indivíduos que o compossível com o primeiro.
ocupam ou o preenchem. À questão de saber se o pró- compos sibili dade se define pois como um continuum de
continuidade tendo por critério ideal a
prio mundo tem uma superfície capaz de reformar um po- singularidades, a
tçncxal de singularidades é geralmente resolvida pela nega- convergência das séries. Também a noção da incompossi-
a con-
tiva. Um mundo pode ser infinito em uma ordem de con- bilidade não será redutível à de contradição; é antes
vergência e, no entanto, ter uma energia finita, e esta ordem tradição que dela decorre de uma certa maneira: a contra-
da
ser limitada. Reconhecemos aqui ogprobleuª da entrocll)ia' dição entre Adão-pecador e Adão-não-pecador decorre
em que Adão peca e não
pois é da mesma maneira que uma singularidade se pro: incompossibilidade dos mundos
longa sobre uma linha de ordinários e que uma energia po- peca. Em cada mundo, as mônadas individuais exprimem

tencial se atualiza e cai ao seu nivel mais baixo. O poder todas as singularidades deste mundo — uma infinidade
to; mas
de reformagio não é concedido sendo aos individuos no como em -um murmúrio ou em um desvanecimen
e “clara mente” senão
mundo e por um tempo: justamente o tempo de seu pre- cada uma não envolve ou não exprim
sente vivo em fungdo do qual o passado e o futuro do um certo número de singularidades, aquelas na vizinhança
mundo circundante recebem ao contrdrio uma direção fixa das quais ela se constitui e que se combinam com seu corpo.
irreversivel. Vemos que o continuum de singularidade é completamen-
de cla-
O complexo individuo-mundo-interindividualidade de- te distinto dos indivíduos que o envolvem em graus
e complementares: as singularidades são pré-
fine um primeiro nivel de efetuagdo do ponto de vista de reza variáveis
não exis-
uma gênese estitica. Neste primeiro nivel, singularidades _individuais. Se é verdade que o mundo expresso
se efetuam a0 mesmo tempo em um mundo e nos indivi- individ uos e af existe como predica do, ele
te senão nos como
e diferen te,
duos que Çazem parte deste mundo. Efetuar-se ou ser efe- subsiste de uma maneira completament à
tuado significa: prolongar-se sobre uma série de pontos or- acontecimento ou verbo, nas singularidades que presidem
ecador, mas
d.mános; ser selecionado segundo uma regra de convergên- constituição dos indivíduos: não mais Adão-p
cia; encarnar-se em um corpo, tornar-se estado de um cor- pecou. .. É arbitrá rio privilegiar
o mundo em que Adão
Pois a
po; reformar-se localmente para novas efetuações e novos 2 inerência dos predicados na filosofia de Leibniz.
iva supõe pri-
prolongamentos limitados. Nenhuma destas características inerência dos predicados na mônada express
c esta por sua
pert.enue às singularidades como tais, mas somente ao mun- meiro a compossibilidade do mundo cxpresso
do individuado e aos indivíduos mundanos que os envolvem; de puras singula ridades segundo
vez supõe a distribuição
pertencem
eis por que a efetuação é sempre ao mesmo tempo coletiva as regras de convergência e de divergência, que
o, não a
e individual, interior e exterior etc. ainda a uma lógica do sentido e do aconteciment
. Leibniz foi muito
Efetuar-se é também ser expresso. Leibniz sustenta uma lógica da predicação e da verdade
uma tese célebre: cada mônada individual exprime o mun- longe nesta primeira etapa da gênese: o indivíduo consti-
do. Mas esta tese não é suficientemente compreendida en- centro de envolvimento, como envolvendo sin-
tuido como
quanto a interpretamos como significando a ineréncia dos gularidades em um mundo e sobre seu corpo.
predicados na monada expressiva. Pois é bem verdade que O primeiro nível de efetuação produz correlativamente
um
o _mundo expresso não existe fora das monadas que o ex- mundos individuados e eu individuais que povoam cada
primem, logo existe nas mônadas como a série dos predi- Os indivíduos se consti tuem na vizinh anga
destes mundos.
mundos
cados que lhe são inerentes. Não é menos verdade, en- de singularidades que eles envolvem; e exprimem
tretanto, que Deus cria o mundo antes que as mdnadas géncia das séries depend endo destas
como circulos de conver
€ que O expresso ndo se confunde com sua expressdo, mas . Na medida em que o express o não existe
singularidades o
insiste ou subsiste 1. O mundo expresso é feito de relagBes dos individ uos que
fora de suas expressdes, isto é, fora
diferenciais e de singularidades adjacentes. Ele forma pre- o “perte ncer” do sujeito,
exprimem, o mundo é realmente analitico
cisamente um mundo na medida em que as séries que de- o acontecimento se tornou predicado, predicado
pendem de cada singularidade convergem com aquelas que de um sujeito. Verdejar indica uma singularidade-aconte-
ui; ou pecar,
gependem das outras: é esta convergência que define a cimento na vizinhanga da qual a arvore se constit
‘compossibilidade” como regra de uma síntese de mundo. constit ui; mas ser verde, ser
na vizithanga da qual Addo se
Lá onde as séries divergem começa um outro mundo, in- 08 predic ados analiti cos de sujeito s cons-
pecador, são agora
Como todas as monadas indi-
1. Tema constante das carfas Armauld: i não
criou, titnidos , a árvore e Addo.
embora
exetamente Adão-pecador, mas o mn::n’::";: Adty P”;_,_Dm viduais exprimem a totalidade de seu mundo —
dele não exprimam claramente senão uma parte seleciona- cendência imanente” do primeiro nível?? Mas a solução
da —, seus corpos formam misturas e agregados, associa- aqui não pode ser a da fenomenologia, uma vez que o Ego
ções variáveis com as zonas de clareza e de obscuridade: não é menos constituído que a mônada individual. Esta
eis por que mesmo as relações são aqui predicados analíticos mônada, este indivíduo vivo, era definido em um mundo
de misturas. (Adão comeu do fruto da árvore.) Aliás como continuum ou circulo de convergências; mas o Ego
mais ainda, contra certos aspectos da teoria leibniziana, é como sujeito cognoscente aparece quando alguma coisa é
preciso dizer que a ordem analítica dos predicados é uma identificada nos mundos, entretanto, incompossíveis, através
ordem de coexistência ou de sucessão, sem hierarquia ló- de séries no entanto divergentes: então o sujeito está “em
gica nem caráter de generalidade. Quando um predicado é face” do mundo, em um sentido novo da palavra mundo
atribuído a um sujeito individual, ele não goza de nenhum (Welt), enquanto que o individuo vivo estava no mundo e
grau de generalidade; ter uma cor não é mais geral do que o mundo nele (Umwelt). Não podemos pois seguir Hus-
ser verde, ser animal não é mais geral do que ser racional. serl quando ele faz trabalhar a mais alta sintese de identi-
As generalidades crescentes ou decrescentes não aparece- ficação no elemento de um continuum de que todas as li-
rão senão a partir do momento em que um predicado é de- nhas são convergentes ou concordantes 3. Não ultrapassa-
terminado em uma proposição para servir de sujeito a um mos assim o primeiro nfvel. É somente quando alguma
outro predicado. Enquanto os predicados se relacionam a coisa é identificada entre séries divergentes, entre mundos
indivíduos, é preciso lhes reconhecer uma igual imediatez incompossiveis, que um objeto = X aparece, transcendendo
que se confunde com seu caráter analítico. Ter uma cor os mundos individuados ao mesmo tempo que o Ego que
não é mais geral do que ser verde, pois é somente esta o pensa transcende os individuos mundanos, dando desde
cor que é o verde e este verde que é esta nuança que se entio ao mundo um novo valor em face do novo valor do
referem ao sujeito individual. Esta rosa não é vermelha sujeito que se funda.
sem ter o vermelho desta rosa. Este vermelho não é uma Para ver como se faz esta operação é preciso sempre
cor sem ter a cor deste vermelho. Podemos deixar o voltar ao teatro de Leibniz — e ndo às pesadas maqui-
predicado indeterminado, nem por isso ele adquire uma de- narias de Husserl. De um lado, sabemos que uma singu-
terminação de generalidade. Em outros termos, não há laridade não é separivel de uma zona de indeterminacio
ainda nenhuma ordem de conceitos e de mediações, mas perfeitamente objetiva, espago aberto de sua distribuição
somente uma ordem de mistura em coexistência e sucessão. nômade: pertence com efeito ao problema o relacionar-se a
Animal e racional, verde e cor, são dois predicados igual- condições que constituem esta indeterminação superior e
mente imediatos que traduzem uma mistura no corpo do positiva, pertence ao acontecimento o subdividir-se sem
sujeito individual ao qual um não se atribui menos ime- cessar como reunir-se em um só e mesmo Acontecimento,
diatamente que o outro. A razão é um corpo, como dizem pertence aos pontos singulares o distribuir-se de acordo com
os Estóicos, que penetra e se estende em um corpo animal. figuras móveis comunicantes que fazem de todas as jogadas
A cor é um corpo luminoso que absorve ou reflete um um só e mesmo langar (ponto aleatério) e do langar uma
outro corpo. Os predicados analíticos não implicam ainda muftiplicidade de jogades. Ora, embora Leibniz não tenha
nenhuma consideração lógica de gêneros ou de espécies, de atingido o livre principio deste jogo, porque não soube nem
propriedades nem de classes, mas implica somente a estru- quis insuflar aí bastantc acaso, nem fazer da divergéncia
tura e a diversidade físicas atuais que os tornam possíveis um objeto de afirmação como tal, ele recolheu, entretanto,
nas misturas de corpos. Eis por que identificamos, no li- todas as consegiiéncias ao nivel de efetuação que nos ocupa
mite, o domínio das intuições como representações imedia- agora. Um problema, diz cle, tem condições que compor-
tas, predicados analíticos de existência e descrições de mis- tam necessariamente “signos ambiguos”, ou pontos aleató-
turas ou de agregados. rios, isto €, repartigdes diversas de singularidades s quais
Mas, sobre o terreno desta primeira efetuação, se fun- corresponderão casos de soluções diferentes: assim, a equa-
da e se desenvolve um segundo nível. Reencontramos o ção das secções cOnicas exprime um só e mesmo Aconteci-
problema husserliano da 5º Meditação cartesiana: o que mento que seu signo ambiguo subdivide em acontecimentos
é que no Ego ultrapassa a mônada, suas pertinências e diversos, circulo, elipse, hipérbole, paribola, reta, que for-
predicados? ou, mais precisamente, o que é que dá ao mun- orienta imediatamente este
cartesiongs, 6 48 (Husserl
do “um sentido de transcendência objetiva propriamente
2. Cf Meditagoes
problema para uma feoria transcendental de Outrem. Sobre o papel de Outrem
dita, segunda na ordem da constituição, distinta da “trans- em làm: génese estitica,
Tdéias, $ 148.
cf. nosso Apéndice 1V).
operar a descrição destes individuos. Ao contrárvo,.são pre-
mam casos correspondendo ao problema e determinando a dg.:dos que dífinem sinteticamente pessoas e ahpndo«lhes
ls ou pos-
gênese das soluções. É preciso pois conceber que .os mun- diferentes mundos e individualidades como varláye
dos incompossíveis, apesar de sua incompossibilidade, com- primei ro homem e viver em um
sibilidades: assim, “ser o
dado
portam alguma coisa em comum e de objetivamente comum jardim” para Adão, “deter um segredo e ser incomo
que representa o signo ambíguo do elemento genético com intruso ” para Fang. Quanto ao objeto qualqu er
por um
relação ao qual vários mundos aparecem como casos de so- absolutamente comum e de que todos os mundo s são :s
Jugdo para um mesmo problema (todos os lances, resulta- por predicado s os primei ros possíve is ou
variáveis, ele tem
dos para um mesmo lance). Nestes mundos há pois, por categorias. Ao i.nvg: depr:a da mundo ser predic ado analíti co
exemplo, um Adão objetivamente indeterminado, isto é, po- indivíduos descritos em séries, são os mundos incom-
de
sitivamente definido por algumas singularidades somente, possíveis que são predicados sintéticos de pessoas 'def_mndas
que
que podem se combinar e se completar de maneira muito com relação a sinteses disjuntivas. Quanto as variavels
devemo s trati-la s
diferente em diferentes mundos (ser o primeiro homem, vi- efetuam as possibilidades de uma pessoa,
clas.ses e pro-
ver em um jardim, fazer nascer uma mulher de si etc.) 4. como conceitos significando necessariamente
Os mundos incompossíveis tornam-se as variantes de uma priedades, logo afetadas essenc ialmen te de gen_er ahdadç cres-
uada
mesma história: Sextus por exemplo ouve o oráculo... ou cente ou decrescente em uma especificação contin
conter uma
então, como diz Borges, “Fang detém um segredo, um des- sobre fundo categorial: com efeito, o jardim pode
conhecido bate 4 sua porta... Ha vários desfechos possi- vermelha, mas há em outros mundos ou em _our.r?s
rosa
são
veis: Fang pode matar o intruso, o intruso pode matar Fang, jardins rosas que ndo são vermelhas, flores que ndo
ambos podem escapar, ambos podem morrer, etc. Todos os is são propri edades e classes . Elas são
rosas. As varidve
do pri-
desfechos se produzem, cada um é o ponto de partida de completamente distintas dos agregados individuais
na
outras bifurcagdes” 5. meiro nivel: as propriedades e as classes são fu_xíldadals
Não nos encontramos mais diante de um mundo indi- É que as propria s pessoa s são primei-
ordem da pessoa.
pro-
viduado constituido por singularidades já fixas e organiza- ramente classes de um só membro, e seus predicados
das em séries convergentes, nem diante de individuos de- priedades com uma constante. Cada pessoa é único mem-
constituída
terminados que exprimem este mundo. Encontramo-nos bro de sua classe e, no entanto, é uma classe
agora diante do ponto aleatério dos pontos singulares, diante pelos mundos, possibilidades e indivíduos que lhe ca]:lem'. As
do signo ambiguo das singularidades, ou antes diante do que classes como multiplos e as propriedades como variaveis de-
representa este signo ¢ que vale para vários desses mundos rivam destas classes de um só membro e.datas proprfeda-
e, no limite, para todos, para além de suas divergéncias e des com uma constante. Acreditamos pois que o conjunto
2º) as.classes
dos individuos que os povoam. Há pois um “Adão vago”, da dedução se apresenta assim: 19) as pessoas;
isto é, vagabundo, nômade, um Adão — X, comum a vérios que elas consti tuem € as propriedades
com um só membro
mundos. Um Sextus = X, um Fang = X. No limite, uma constan te que lhes perten cem; 39) as classes exten-
com uma
gerais que
qualquer coisa = X comum a todos os mundos. Todos os sivas e propriedades variáveis, isto é, os conceitos fun-
que interp retamo s o laço
objetos == X são “pessoas”. Elas são definidas por pre- dela derivam. É neste sentido
o ¢ o Ego. O Ego um_vers al é exa-
dicados, mas estes predicados não são mais os predicados damental entre o conceit co-
analiticos de individuos determinados em um mundo e a pessoa corres ponden do a alguma coisa = X
tamente a
os mundos, como 08 outros ego sa? as pessoas
mum a todos
mundos.
4. Distinguimos pois trés seleções, conforme a0 tema leibniziano: uma
que define um mundo por convergência, uma outra que define neste mundo correspondendo a tal coisa = X comum 2 vários
orizad amente toda esta de-
individuos completos, uma outra, enfim, que define elementos incompletos ou Não podemos seguir pormen
antes_ambiguos, comuns & vários mundos e aos individuos come: ntes. somente fixar as duas etapas da génes.e
Scbre esta terceira seleção qu sobre o Addo “vago” comstituido por um dução. Importa
pequeno número de predicados (ser o primeiro homem etc.) que devem ser
passiva. Primeiro, 2 partir das singularidades-acontect-
completados diferentemente em diferentes mundos, of. Leibniz, "Observações um primeiro
sobre a carta de M. Amauld” (Janet, I, p. 522 e ss.). É verdade que neste mentos que o constituem, o sentido engendra
texto Addo vago não tem existência por si mesmo, vale somente com relagio que organiza as
20 nosso entendimento fínito, seus predicados não são mais do que generalidades, complexo no qual ele se efetua: Umwelf
Mas, ao contrário, no texto célebre da Teodicéia (§§ 414-416); os diferentes idades em círculos de convergência, indivíduos que
Sextus nos mundos diversos tém uma unidsde objetiva muito especial que corpos, misturas ou
xepousa sobre a natureza ambigua da noção de singularidade e sobre & cate- exprimem estes mundos, estadofs' de
goria de problema do ponto de vista de um chleulo infinito. Muito cedo Leibuiz
havia_elaborado uma teoria dos “‘signos ambiguos” em relagfio com as pontos agregados destes indivíduos, predicados analíticos que des-
lares, tomando por exemplo as secções cônicas: of. “Do Método da Uni-
Versalidade”. (Opúscidos, Couturat). º crevem estes estados. Mais um segundo complexo aparece,
5. Bomoes. Fictions, Gellimard, p. 130.
em que ela melig‘ul;l:s, :zs_
muito diferente, construído sobre o primeiro: Welt comum superficie a partir de um mundo
lhe impõe a dura lei dos i3
a vários mundos ou a todos, pessoas que definem estes “al- também que se envolve nela e
s como as peswa§d vag: rí
guma coisa de comum”, predicados sintéticos que definem turas; Silvia e Bruno seriam ante ença ao senti oda pã :
sua pres
estas pessoas, classes e propriedades que daf derivam. Da que descobrem o não-senso e mundo do:
a” com um a varios mundos,
mesma forma como o primeiro estágio da gênese é a ope- tir de “alguma cois
ração do sentido, o segundo é a operação do não-senso homens ¢ mundo das fadas.
sempre co-presente ao sentido (ponto aleatório ou signo
ambíguo): eis por que os dois estágios e sua distinção são
necessariamente fundados. De acordo com o primeiro, ve-
mos formar-se o princípio de um “bom senso”, ou de uma
organização já fixa e sedentária das diferenças. De acordo
com o segundo, vemos formar-se o princípio de um “senso
comum” como função de identificação. Mas seria um erro
conceber estes princípios produzidos como se eles fossem
transcendentais, isto é, conceber à sua imagem o sentido e
o não-senso de que eles derivam. É no entanto o que ex-
plica que Leibniz, por mais longe que tenha ido em uma
teoria dos pontos singulares e do jogo, não pôs verdadei-
ramente as regras de distribuição do jogo ideal e não con-
cebeu o pré-individual senão no mais próximo dos indivi-
duos constituídos, em regiões já formadas pelo bom senso
(cf. a vergonhosa declaração de Leibniz quando ele atribui
à filosofia a criação de novos conceitos, com a condição
de não subverter os “sentimentos estabelecidos”). É tam-
bém o que explica que Husserl, em sua teoria da consti-
tuição, se dê já feita a forma do senso comum, conceba o
transcendental como Pessoa ou Ego e não distinga o X
como forma de identificação produzida e o X instância
completamente diferente, não-senso produtor que anima o
jogo ideal e o campo transcendental impessoal . Em ver-
dade, a pessoa é Ulisses, ela não é pessoa propriamente
falando, forma produzida a partir deste campo transcenden-
tal impessoal. E o indivíduo é sempre um qualquer, nas-
cido, como Eva, de uma costela de Adão, de uma singulari-
dade prolongada sobre uma linha de ordinários a partir do
campo transcendental pré-individual. O indivíduo e a pessoa,
o bom senso e o senso comum são produzidos pela gênese
passiva, mas a partir do sentido e do não-senso que não
lhes parecem e dos quais vimos o jogo transcendental pré-
-individual e impessoal.. Da mesma forma o bom senso e o
senso comum são minados pelo princípio de sua produção e
derrubados de dentro pelo paradoxo. Na obra de Lewis
Carroll, Alice seria antes como o indivíduo, a mônada que
descobre o sentido e já pressente o não-senso, remontado à
6. Observaremos, no entanto, as curiosas alusões de Husserl a um fiat
ou 2 um ponto móvel originário mo campo transcendental determinado como
Ego: cf. Jdéias, § 192,
vecima oetima oerie:
Da Génese Estatica Logica

Os individuos são proposigdes analiticas infinitas: in-


finitas no que exprimem, mas finitas na sua expressdo clara,
na sua zona de expressdo corporal. As pessoas são pro-
posições sintéticas finitas: finitas na sua defini¢do, mas in-
definidas na sua aplicagio. Os individuos e as pessoas são
em si mesmos proposições ontolégicas, as pessoas estando
fundadas sobre os individuos (mas inversamente os indivi-
duos estando fundados pela pessoa). Todavia, o terceiro
elemento de génese ontolégicas, isto &, as classes múltiplas
e as propriedades varidveis que dependem por sua vez das
pessoas, não se encarna em uma terceira proposição ela
prépria ontologica. Ao contrário, este elemento nos faz
passar a uma outra ordem de proposi¢do, constitul a con-
dição ou forma de possibilidade da proposigdo lógica em
geral. E com relação a esta condição, e a0 mesmo tempo
que ela, os individuos e as pessoas desempenham agora o
papel, ndo mais de proposicdes ontolégicas, mas de instân-
cias materiais que efetuam a possibilidade e que determi-
nam na proposigio légica as relagdes necessdrias à existén-
cia do condicionado: a relagdo de designagio como rela-
ção com o individual (o mundo, o estado de coisas, o agre-
gado, corpos individuados), a relação de manifestagio como
relação com o pessoal — a forma de possibilidade definin-
do, de seu lado, a relagdo de significagdo. Compreendemos
melhor entdo a complexidade da questdio: o que é primeiro
da ordem da proposigdo 16gica? Pois, se a significagdo é
primeira como condição ou forma de possibilidade, ela re-
mete, no entanto, à manifestacio, na medida em que as
classes múltiplas e as propriedades varidveis que definem
a significagdo se fundam sobre a pessoa na ordem ontológica
e a manifestação remete & designação na medida em que ciado de um sem-fundo que não comporta mais do que a
a
pessoa se funda por sua vez sobre o indivíduo. pulsação de um corpo monstruoso, Eis por que, para aléx_n
Muito mais, da génese 16gica à génese ontoldgica, não da ordenagdo terciéria da proposição e mesmo da orgami-
há paralelismo, mas antes uma mudanga que comporta todo zação secunddria do sentido, pressentiamos terrivel ordem
tipo de desniveis e de misturas. É pois muito simples fazer priméria onde toda a linguagem involui.
corresponder o individuo e a designagio, a pessoa e a ma- Parece que o sentido, na sua organizagdo de pontgs
nifestago, as classes multiplas ou propriedades varidveis aleatérios e singulares, de problemas e de questões, de sé-
e
a significação. É verdade que a relação de designagfio não ries e de deslocamentos, é duplamente gerador: ‘ele não
pode se estabelecer senfio em um mundo submetido aos di- engendra somente a proposição lógica com suas dimensões
versos aspectos da individuagdo; mas não ¢ determinadas (designação, manifestação, significação), mas
suficiente: a
designação exige além da continuidade a posição também os correlatos objetivos desta proposição que fçrf.m
de uma
identidade que depende da ordem manifesta da pessoa primeiramente cles proprios produzidos como proposições

o que traduzimos precedentemente dizendo que a designa- ontoldgicas (o designado, o manifestado, o slgmfi:iado). 5)
ção pressupbe a manifestagdo. Inversamente, se a pessoa desnivel ou a mistura entre os dois aspectos da génese dão
se manifesta ou se exprime na proposigio, ndo é indepen- conta de um fenémeno como o do erro, uma vez que um
dentemente dos individuos, dos estados de coisas designado, por cxemplo, pode ser fornecido em uma pro-
ou dos
estados de corpos, que não se contentam em ser designad posição ontolégica que não se corresponde com a propo-
os,
mas que formam casos e possibilidades relacionados aos de- sição lógica considerada. Mas o erro é uma noção muito
sejos, crengas ou projetos constitutivos da pessoa. Enfim, artificial, um conceito filosófico abstrato, porqne_nno.afeta
a significacio supõe a formação de um bom senso senão a verdade de proposigbes que se supdem já fenas. e
que se
faz com a individuação, como a de um senso comum que isoladas. O elemento genético só é descoberto na me(:llda
encontra sua fonte na pessoa; e ela implica todo em que as noções de verdadeiro e de falso são !.rªnsfendas
um jogo
de designação e de manifestagdo, tanto no poder de afirmar das proposições ao problema que estas proposições estão
as premissas quanto de destacar a conclusão. Há pois, nés supostamente encarregadas de resolver e mudam comple-
o vimos, uma estrutura extremamente complexa segundo tamente de sentido nesta transferência. Ou antes é a cate-
a qual cada uma das três relações da proposicao 16gica em goria de sentido que substitui a de verdade, quando o ver-
- geral é primeira por sua vez. Esta estrutura no seu con- dadeiro e o falso eles préprios qualificam o problema e não
junto forma a ordenação tercidria da linguagem. Precisa- mais as proposições que a ele respondem. Deste ponto de
mente porque cla é produzida pela génese ontolégica e 16-
vista sabemos que o problema, longe de indicar um estado
gica, ela depende do sentido como daquilo que constitui subjetivo e provisorio do conhecimento empirico, remete ac
Ppor si mesmo uma organizagio secundiria, muito diferent
e contrário a uma objetividade ideal, a um complexo consti-
e diversamente distribuida (assim a distinção entre
os dois tutivo do sentido ¢ que funda a0 mesmo tempo]o conh;;cx—
X, o X do elemento paradoxal informal que falta à sua
mento e o conhecido, a proposigio e seus correlatos. a
prépria identidade no sentido pure e o X do objeto qual-
relagio do problema com suas condições que define o sen-
quer que caracteriza somente a forma de identidade produ- tido como verdade do problema enquanto tal. Pode acon-
zida no senso comum). Se pois consideramos esta estru- deter-
tecer que as condições permanecam msufic:entgmente
tura complexa da ordenação tercidria, em que cada relagio minadas ou, ao contrério, sejam sobredeterminadas de tal
da proposi¢io deve se apoiar nas outras em uma espécie maneira que o problema seja um falso problema. A deter-
de circularidade, vemos que o conjunto e cada uma um espaco de
de minação das condições implica de um lado
suas partes podem se desmoronar se perdem esta complemen- distribuicio nômade em que se repartem smgl.thndads
tariedade: não somentc porque o circuito da proposigdo (Topos); de outro lado, um tempo de decomposição pelo
lógica pode sempre ser desfeito, assim como se fende qual este espaço se subdivide em subespaços, cada um suces-
um
anel, para fazer aparecer o sentido organizado de outra for- sivamente definido pela adjunção de novos pontos que asse-
ma, mas também e sobretudo porque o sentido, tendo cle guram a determinação progressiva e completa do domínio
préprio uma fragilidade que pode fazé-lo oscilar em dire- considerado (Aion). Há sempre um espaço que condensa
ção ao ndo-senso, as relagdes da Proposição 16gica correm e precipita as singularidades, como um tempo que completa
o tisco de perder toda medida e a significação, progressivamente o acontecimento por fragmentos de acon-
a manifes-
tação, a designação se desmoronarem no abismo indifere tecimentos futuros e passados. Há pois uma autodetermi-
n-
nação espaço-temporal do problema,
no curso da qual o
problema avança Preenchendo a falta
e prevenindo o exces- bilidade”, confundimos o sentido com a significação e não
so de suas próprias condições. É aí que o verdadeiro concebemos a condição senão à imagem do condicionado.
torna sentido e produtividade. se
As soluções são precisa- De fato, são os dominios de resolubilidade que são relativos
mente engendradas ao mesmo tempo que o problema se ao processo de autodeterminação do problema. É a sin-
determina. Eis aí por que acreditamos tão
freqiientemente tese do próprio problema com suas próprias condições que
que a solução não deixa subsistir o problema
e lhe dá retros- constitui alguma coisa de ideal ou de incondicionado, deter-
pecti
vamente o estatuto de um momento subje
tivo necessa- minando ao mesmo tempo a condição e o condicionado,
riamente ultrapassado desde que a soluç
ão é encontrada. No isto é, o domínio de resolubilidade e as soluções neste do-
en.tanto, é exatamente o contrário. É Por um
processo pró- mínio, a forma das proposições e sua determinação sob
Prio que o problema se determina ao mesm
o tempo no esta forma, a significação como condição de verdade e a
espaç o e no'tempo e, determinando-se, determina as solu- proposição como verdade condicional. Jamais o problema
ções nas quais persiste. É a síntese do problema com suas
condições se parece às proposições que ele subsume, nem às relações
que engendra as proposições, suas dimensões e que engendra na proposição: ele não é proposicional, em-
seus correlatos.
bora não exista fora das proposições que o exprimem, Assim
o Sel"lll‘do É pois expresso como o problema não podemos seguir Husserl, quando pretende que a ex-
ao qual
as proposições correspondem enquanto indicam respostas pressão não é senão um duplo e tem forçosamente a mes-
particulares, significam os casos de uma soluç ma “tese” do que aquilo que a recebe. Pois o problemático,
ão geral, .ma-
míestam_ atos subjetivos de resolução. Eis por que ’ames então, não é mais do que uma tese proposicional entre outras
de SXprimir o sentido sob uma forma infini e a “neutralidade” recai de um outro lado, opondo-se a toda
tiva ou parti-
qpxal (a- neve-ser-branco, o existente-branco da neve), tese em geral, mas somente para representar uma outra
pare-
cia desejável exprimi-lo sob forma interrogativ maneira de conceber ainda o expresso como o duplo da
a. É )verda-
de que a forma interrogativa é decalcada proposição correspondente: reencontramos a alternativa da
numa solugdo que
se supõe possa ser dada ou já dada e consciência segundo Husserl, constituindo o “modelo” e a
que ela é somente o
duplo neutralizado de uma resposta supostamen “sombra” as duas maneiras do duplo2 Parece ao contrá-
te detida por
aquele que interroga (de que cor é a neve, que horas rio que o problema, enquanto tema ou sentido expresso,
Pe}o menos ela tem a vantagem de nos sib?).
colocar na via da- possui uma neutralidade que lhe pertence essencialmente,
quilo que procuramos: o verdadeiro problema, mas também que não é nunca modelo nem sombra, nunca
que não se
parece com as proposições que subsume, o duplo das proposições que o exprimem.
mas que as engen-
dra det_ern}xpaudo suas prprias condiges Ele é neutro com relação a todos os modos da propo-
e que assinala a
ordem individual de permutacio das sição. Animal tantum... Circulo enquanto circulo somen-
s engendra- proposigde
das no quadfo das significações gerais te: nem circulo particular, nem conceito representado em
e das Mmanifestações
pessoais. A interrogação não é senão uma equação cujos termos gerais devem ainda receber um
a sombra do problema
projetado ou antes reconstituído a valor particular em cada caso, mas sistema diferencial ao
partir das proposições
empíricas; mas o Problema em si mesmo qual corresponde uma emissão de singularidades. Que o
a realidade do é
e%emeuto genético, o zema complexo que problema não exista fora das proposições que o exprimem
ndo se deixa redu-
zir a nenhuma fese de proposigiol. como seu sentido, significa que ele não é, falando-se pro-
É uma só e mesma
ilusão que, sob um aspecto empírico, priamente: cle insiste, subsiste ou persiste nas proposições
decalca o problema
nas proposições que lhe servem e se confunde com este extra-ser que encontramos preceden-
de “respostas” e que, sob
um aspecto filoséfico e cientifico, temente. Mas este não-ser não é o ser do negativo, é o ser
define o problema pela
forma de possibilidade das proposiges do problemático, que é preciso escrever (não)-ser ou ?-ser.
dentes”. “correspon
Esta fOrmP e possibilidade pode ser lógica
trica,
ou então geomé- 2. Tdéios, § 114, § 124
algébrica, fisica, transcendental,
importa; enquanto
moral etc. Pouco 3. Bordas-Demoulin, mo seu belo livro sobre o Cartesianismo (1843),
definimos o problema por sua “resolu- mostra bem a diferença entre estas duas expressões da circunferência;
F 4y - R =0,eyly + xdx = 0. Na prímeira, posso sem dúvida
atribuif a cada termo valores diversos, mas devo lhes ntribuir um em parti-
dede 1.filosóf
. No No prefhcio da da Fenome
ica (ou científ P não nologigia, Hegel mostr
lerrogação. simpiesica)
, do tipoconsí
cular 2 cada caso. No segundo, dy e dx 530 independentes de todo valor
stiaem wma proposiçomão Ve Particular e sua relação semete somente às singularidades que definem a tan-
TV, ee “quando César
© Problema ou tema & a proposição, cf. mascen t” Sy ÁR & gente trigonométrica do ângulo que a tangente à curva faz com o eixo das
Leibniz, Novos Ensalos, dx y
abscissas [ —— = - — ).
& x
O problema é independente do ne;
ativo como irmativo; ções, toda esta ordenação supõe o sentido e o campo neutro,
nem por isso ele deixa de ter umga
positivídadio;í:en:::jrg-' pré-individual e impessoal em que cle se desdobra. É pois
ponde à sua posição
como problema. Da mesma forma, o de uma outra maneira que o próprio sentido é produzido
acoaãmmenlo puro acede a esta
positividade que ultrapa;sa pelos corpos. Trata-se desta vez de corpos tomados na
a _mação € a negação, tratando-as ambas como
casos de sua profundidade indiferenciada, na sua pulsação sem me-
soluçaotpara um problema que define qelo que
ocorre e dida. E esta profundidade age de uma maneira original: por
gelas singularidades que “põe” ou
Ceytas proposições õe”. “dep
Evenit seu poder de organizar superfícies, de se envolver em super-
são depositivas (abdicativae): fícies. Esta pulsação age ora pela formação de um mínimo de
destltuem,_ elas demegam um Élia.s
objeto de alguma coisa. Ãssi superfície para um máximo de matéria (assim, a forma
quando dxzemqs que o prazer não m
é um bem, destituímos o esférica), ora pelo acréscimo das superficies e sua multi-
prazer da quahdade_ de bem. Mas
os Estóicos estimam que plicação segundo diversos procedimentos (estiramento, frag-
mesmo esta proposição é positiva (dedicativa), Porque
cl_zzem: gles mentação, trituração, secura e umidade, adsorção, musgo,
0corre a certo prazer não ser um bem
siste ;m PÔr o que ocorre a este praz o que con- emulsdo). É deste ponto de vista que é preciso reler todas
er. . .” 4, 1 as aventuras de Alice: suas diminuigSes e seus crescimentos,
omos levados a dissociar as duas
neutmlldad'e,u O sentido é neutro noçõe s ¢ e suas obsessGes alimentares e enuréticas, seus encontros com
mas nããuésncllengaulªodz 'lj; as esferas. A superficie não é nem ativa nem passiva, ela é o
das Proposições que o exprimem,
nem dos estados de ooi:as produto das ações e das paixGes dos corpos misturados. Per-
aos quais ele ocorre e que são desi
gnados pelas proposições. tence à superficie o sobrevoar seu préprio campo, impassivel,
Eis por que enquanto ficamos no
circuito da proposição, scà indivisivel, como estas laminas finas e continuas de que fala
podemas,xnfmr indiretamente o
que é o sentido: mas, Plotino, que um liquido impregna e atravessa de uma a outra
que cle é diretamente, vimos que
não podiamos ;abé-lé a face 5. Recepticulo de camadas monomoleculares, ela assegu-
nao ser quebrando o circuito,
em uma operagdo análo; . ra a continuidade e a coesdo lateral das duas camadas sem
Aquela que fende e desdobra o
anel de Mocbius. Não g2_l espessura, interna e externa. Puro efeito, ela é no entanto
demos conceber a condição à imagem do condicionado; p?.lt:- o lugar de uma quase-causa, pois uma energia superficial, sem
ser da superficie mesma, é devida a toda formagdo de su-
perficie; ¢ uma tensdo superficial ficticia dai decorre, como
forca que se exerce sobre o plano da superficie, à qual sc
atribui o trabatho gasto em fazé-la crescer. Teatro para brus-
cas condensagbes, fusdes, mudangas de estados das cama-
das expostas, distribuigdes e remanejamentos de singulari-
dades, a superficie pode crescer indefinidamente, como
como uma dobra, não era
do
quando dois liquidos se dissolvem um no outro. Ha pois
quanto o sentido dispõe de i & toda uma fisica das superficies enquanto efeitc das mistu-
urrI:º :tocã:reggãío%ª f;%?ãà ed':
qua;:e-causg, era de um pont ras em profundidade, que recolhe sem cessar as variagdes,
o de vista diferente, sendo
sentido primeiro considerado como efeito prod as pulsagGes do universo inteiro e as envolve nestes limites
Éausas corporais: efeito de ;xzído po: méveis. Mas à fisica das superficies corresponde necessa-
superfície, impassível e estér
omo manter ao mesmo tempo que o sentido il. riamente uma superficic metafisica. Chamarcmos de super-
produz mesmo ficie metafisica (campo transcendental) a fronteira que se
instaura entre os corpos tomados juntos e nos limites que
os envolvem, de um lado e as proposições quaisquer, de outro
ção. â um—xã;im de gênese lado. Esta fronteira, nés o veremos, implica certas proprie-
estática dissipa a
ão d “CIOS que05 corpos e suas misturascontradi- dades do som com relação à superficie, que tornam possi-
0 sentido, não é em virtude de uma produ- vel uma repartição distinta da linguagem e dos corpos, da
pr_essupona.. A individuagio
indi
viduação que o
nos Corpos, à medida nas suas profundidade corporal e do continuum somoro. De todas
misturas, o jogo das pessoas e estas maneiras a superficie é o campo transcendental ele
dos conceitos nas suas varia-
propric e o lugar do sentido ou da expressdo. O sentido é
tivusy4. PPV De Vinterprétation
i
(o par terminológico abdicativus-dedica-
5. Prormo IL 7, 1.
o que se forma e se desdobra na superfície.
Décima Uitava d>erie:
Mesmo a fron-
teira não é uma separação, mas o elemento de uma articula- Das Trés
ção tal que o sentido se apresenta ao mesmo tempo como
O que Ocorre aos corpos e o que insiste nas proposições. Imagens de Filósofos
Também devemos manter que o sentido é um forro, e que a
neutralidade do sentido é inseparável de seu estatuto de
duplo. Só que o forro não significa mais uma semelhança
evanescente e desencarnada, uma imagem esvaziada de carne,
como um sorriso sem gato. Ela se define agora pela pro-
dução das superficies, sua multiplicação e sua consolidação,
A dobra é a continuidade do avesso e do direito, a arte de
instaurar esta continuidade, de tal maneira que o sentido
na superfície se distribui dos dois lados ao mesmo tempo,
como expresso subsistindo nas proposições e como aconteci-
mento sobrevindo aos estados de corpos. Quando esta pro-
dugdo abre faléncia, quando a superficie é dilacerada por
explosdes e rasgdes, os corpos recaem na sua profundidade,
tudo recai na pulsação andnima em que as propria palavras
não são mais do que afecgdes do corpo: a ordem priméria A imagem do filésofo, tanto popular como cientifica,
que murmura sob a organizagio secundiria do sentido. Ao parece ter sido fixada pelo platonismo: um ser das ascen-
contrdrio, enquanto a superficie se mantém, não somente o sões que sai da caverna eleva-se e se purifica na medida em
sentido af se desdobra como efeito, mas participa da quase- que mais se eleva. Neste “psiquismo ascensional”, a moral
-causa que af se acha ligada: ele produz por sua vez a indi- e a filosofia, o ideal ascético e a idéia do pensamento esta-
viduação e tudo o que se segue em um processo de determi- beleceram lagos muito estreitos. Deles dependem a imagem
nação dos corpos e de suas misturas medidas, a significagio popular do filésofo nas nuvens, mas também a imagem cien-
€ tudo o que se segue em um processo de determinagdo das tifica segundo a qual o céu do fildsofo é um céu inteligivel
proposigdes e de suas relações assinaladas — toda a orde- que nos distrai menos da terra do que compreende sua lei.
nagdo tercidria ou o objeto da génese estitica. Mas nos dois casos tudo se passa em altitude (ainda que
fosse a altura da pessoa no céu da lei moral). Quando per-
guntamos “que é orientar-se no pensamento?”’, aparece que
o pensamento pressupde ele préprio eixos e orientagdes se-
gundo as quais se desenvolve, que tem uma geografia antes
de ter uma histéria, que traga dimensões antes de construir
sistemas. A altura é o Oriente propriamente platônico. A
operagdo do filósofo é entdo determinada como ascensdo,
como conversdo, isto é, como o movimento de se voltar
para o principio do alto do qual ele procede e de se deter-
minar, de se preencher e de se conhecer gragas a uma tal
movimentagdo. Não vamos comparar os filósofos e as doen-
cas, mas há doengas propriamente filoséficas. O idealismo &
a doenga congénita da filosofia platdnica ¢, com seu cortejo
de ascensdes e de quedas, a forma manfaco-depressiva da
propria filosofia. A mania inspira e guia Platdo. _A Çlalé-
tica é a fuga das Idéias, a Ideenflucht; como Platão diz da
Tdéia, “ela foge ou ela perece...” E mesmo na morte de
Sócrates há algo de um suicídio depressivo.
Nietzsche duvidou desta orientação pelo alto e se per-
guntou se, longe de representar a realização da filosofia, ela
uav Tia, ao contrario, a degenerescência e o desvio começan- cratismo é a esquizofrenia propriamente filosofica, a pro-
do com Sócrates. Por aí Nietzsche recoloca em questão todo fundidade absoluta cavada nos corpos e no pensamento e
o problema da orientação do pensamento: não é segundo que faz com que Holderlin, antes de Nietzsche, saiba en-
outras dimensões que o ato de pensar se engendra no pen- contrar Empédocles. Na célebre alternincia empedocliana,
samento e que o pensador se engendra na vida? Nietzsche na complementaridade do 6dio e do amor, reencontramos
dispõe de um método que ele inventa: não devemos nos de um lado o corpo de édio, o corpo-coador e, em pedagos,
contentar nem com biografia nem com bibliografia, é pre- “cabeças sem pescogo, bragos sem ombros, olhos sem testa”,
ciso atingir um ponto secreto em que a mesma coisa é de outro lado o corpo glorioso e sem órgãos, “forma de
anedota da vida e aforismo do pensamento. É como o sen- uma só pega”, sem membros, Sem VOZ nem sexo. Da mesma
tido que, em uma de suas faces, se atribui a estados da vida forma, Dionisio nos mostra seus dois semblantes, seu corpo
e, na outra, insiste nas proposições do pensamento. Há aí aberto e lacerado, sua cabega impassivel e sem órgãos, Dio-
dimensões, horas e lugares, zonas glaciais ou tórridas, nunca nisio desmembrado, mas também Dionisio impenetrdvel.
moderadas, toda a geografia exótica que caracteriza um modo Este reencontro da profundidade, Nietzsche não o tinha
de pensar, mas também um estilo de vida. É possível que feito a ndo ser conquistando as superficies. Mas ele ndo fica
Diógenes Laércio, em suas melhores páginas, tivesse um na superficie; esta lhe parece antes o que deve ser julgado
pressentimento deste método: encontrar aforismos vitais que do ponto de vista Tenovado do olho das profundidades.
sejam também Anedotas do pensamento — a gesta dos fi- Nietzsche se interessa pouco sobre o que se passa depois de
lósofos. Empédocles e o Etna, eis uma anedota filosófica. Platão, estimando que é necessariamente a seqiiéncia de uma
Ela vale tanto como a morte de Sócrates, mas precisamen- longa decadéncia. No entanto, conforme 20 método mesmo,
te opera em uma outra dimensão. O filósofo pré-socrático temos a impressdo de que se levanta uma terceira imagem
não sai da caverna, ele estima, ao contrário, que não estamos de filésofos. E que é a eles que a palavra de Nietzsche se
bastante engajados nela, suficientemente engolidos. O que aplica particularmente: de tanto serem superficiais, como
ele recusa em Teseu é o fio: “Que nos importa vosso ca- esses gregos eram profundos! ? Estes terceiros gregos ndo
minho que sobe, vosso fio que leva fora, que Jeva à felici- são mesmo mais completamente gregos. A salvacdo, eles
dade e 2 virtude... Quereis nos salvar com a ajuda deste não a esperam mais da profundida de da terra ou da autocto-
fio? E nés, nés vos pedimos encarecidamente: enforcai-vos nia, muito menos do céu e da Idéia, eles a esperam lateral-
neste fiol” Os pré-socriticos instalaram o pemsamento nas mente do acontecimento, do Leste — onde, como diz Car-
cavernas, a vida na profundidade. Eles sondaram a água roll, se levantam todas as boas coisas. Com os Megdricos,
e o fogo. Eles fizeram filosofia a golpes de martelo, como os Cínicos e os Estdicos comegam um novo filésofo e um
Empédocles quebrando as estituas, o martelo do geólogo, do novo tipo de anedotas. Que se leiam novamente os mais
espelcdlogo. Em um dilivio de dgua e de fogo, o vulcão belos capítulos de Diógenes Laércio, aquele sobre Diógenes
cospe de volta em Empédocles uma só coisa, sua sandilia de o Cínico, aquele sobre Crisipo o Estóico. Vemos aí desen-
chumbo. As asas da alma platdnica opõe-se a sandalia de volver-se um curioso sistema de provocações. De um lado o
Empédocles, que prova que ele era da terra, sob a terra e filósofo come com a última das gulas, ele se empanturra;
autéctone. Ao golpe de asas platonico, o golpe de martelo ele se masturba na praça pública, lamentando que não se
pré-socritico. À conversdo platbnica, a subversdo pré-so- possa fazer o mesmo com relação à fome; ele não condena
critica. As profundidades encaixadas parecem a Nietzsche o incesto, com mãe, irmã ou filha; ele tolera o canibalismo
a verdadeira orientação da filosofia, a descoberta pré-socra- e a antropofagia — c, evidentemente, ele é sóbrio e casto no
tica a retomar em uma filosofia do futuro, com todas as mais alto grau. De outro lado, ele se cala quando The colo-
forgas de uma vida que é também um pensamento ou de camos questões ou então responde brandindo o seu bastão,
uma linguagem que é também um corpo. “Atrds de toda ou ainda, quando lhe colocamos uma questão abstrata e
caverna, há um outra mais profunda, deve haver uma outra difícil, responde designando um alimento ou mesmo dando
mais profunda, um mundo mais vasto, mais estranho, mais
rico sob a superficie, um abismo abaixo de todo fundo, além de rapina não sobe, salvo acidentalmente:
profundidade e descida. A ave preciso serve
de toda fundagdo” . No comego, a esquizofrenia: o pré-so- Ela sobrevoa e "mergulha”. É mesmo dizer que a profundidade altura
a Nietzsche para denunciar a idéia e o ideal de ascenslo; a
de altura
1. É estranho que Bachelard, procurando caracterizar a imaginaglo mietzs- não é mais do que mistificação, um efeito de superfície, que não engana àso
chiana, apresente-2 Como um “psiquismo ascensional” (L'Air et les Somges, olho das profundidades e se desfaz sob seu olhar. Cf. a este respeito
Cap. V). Não somente Bachelard reduz 20 mínimo o papel da terra e da observagdes de Michel Foncauk, “Nisusche, Freud, Marx,” em Nietziche,
superficie em Nietzsche, mas interpreta 2a “verticalidade™ mietzschiana como Cahiers de Royaumont, ed. de Minuit, 1967, pp. 186-187.
sendo antes de tudo altura e ascensão, No entanto, ela é, de preferéncia, 2. Nietzsche contre Wagner, epilogo $ 2.
uma caixa de alimentos que ele quebra em seguida, sempre má: boa na ordem do todo, mas imperfeita, má e até mesmo
com um golpe de bastão — e no entanto também ele man- execrével na ordem dos encontros parciais. Como condenar
tém um discurso novo, novo logos animado de paradoxos, o incesto e o canibalismo, neste dominio em que as paixdes
de valores e de significações filosóficas novas. Sentimos sdo elas préprias corpos que penetram outr0s corpos € a
perfeitamente que estas anedotas não são mais platônicas nem vontade particular um mal radical? Que se tome o exemplo
pré-socráticas. das tragédias extraordindrias de Séneca. Nés nos pergunta-
É uma reorientação de todo o pensamento e do que mos qual é a unidade do pensamento estéico com este pen-
significa pensar: não há mais nem profundidade nem altura. samento frigico que põe em cena pela primeira vez seres
As zombarias cínicas e estóicas contra Platão são incontá- consagrados ao mal, prefigurando tão precisamente o teatro
veis: trata-se sempre de destituir as Idéias e de mostrar que elisabetano. Não bastam alguns coros estoicizantes para fazer
o incorporal não está na altura, mas na superfície, que a unidade. O que é verdadeiramente estGico, aqui, é a des-
não é a mais alta causa, mas o efeito superficial por exce- coberta das paixdes-corpos e das misturas infernais que or-
lência, que ele não é Essência, mas acontecimento. Na outra ganizam ou sofrem, venenos fumegantes, festins pedéfagos.
frente, mostraremos que a profundidade é uma ilusão diges- A refeição trégica de Thyestes não é somente o assunto per-
tiva, que completa a ilusão óptica ideal. Com efeito, que dido de Dibgenes, mas o de Séneca, felizmente conservado.
significam esta gula, esta apologia do incesto, esta apologia As timicas envenenadas comecam por queimar a pele, devo-
do canibalismo? Como este último tema é comum a Crisipo rar a superficie; depois clas atingem ao mais profundo, em
e a Diógenes o Cínico, Laércio não dá nenhuma explicação um trajeto que vai do corpo perfurado ao corpo despeda-
para Crisipo, mas havia proposto uma para Diógenes, par- gado, membra discerpta. Por toda parte na profundidade
ticularmente convincente: “Ele não achava tão odioso comer dos corpos borbulham misturas venenosas, elaboram-se abo-
carne humana, como o fazem povos estrangeiros, dizendo minéveis necromancias, incestos e alimentagBes. Procure-
que, em sã consciéncia, tudo está em tudo e por toda parte. mos o antidoto ou a contraprova: o heréi das tragédias de
Fá carne 10 pão e pão nas ervas; estes corpos e tantos outros Séneca como de todo o pensamento estdico é Hércules. Ora,
entram em todos os corpos por condutos escondidos e se Hércules se situa sempre com relagio aos trés reinos: o
evaporam juntos, como o demonstra na sua peça intitulada abismo infernal, a altura celeste e a superficie da terra. Na
Thyestes, se é verdade, todavia, que as tragédias que a ele profundidade ele ndo encontrou sendo espantosas misturas;
se atribuem são mesmo dele. . .” Esta tese, que vale também no céu ele só encontrou o vazio, ou mesmo monstros celes-
Dara o incesto, estabelece que na profundidade dos corpos tes que duplicavam os infernais. Mas ele é o pacificador e o
tudo é mistura; ora, não há regras segundo as quais uma agrimensor da terra, ele pisa mesmo sobre a superficie das
mistura e não outra pode ser considerada má. Contraria- dguas. Ele sobe ou volta a descer à superficic por todos os
mente ao que acreditava Platão, não há para as misturas uma meios; traz para ai o cão dos infernos e o cdo celeste, a
medida em altura, combinações de Idéias que permitiriam serpente dos infernos e a serpente do céu. Não mais Dioni-
definir boas e más misturas. Contrariamente aos pré-socrá- sio no fundo, ou Apolo Iá em cima, mas o Hércules das su-
ticos, não há mais medida imanente capaz de fixar a ordem perficies, na sua dupla luta contra a profundidade ¢ a altu-
€ a progressão de uma mistura nas profundidades da Physis; ra: tedo o pensamento reorientado, nova geografia.
toda mistura vale o que valem os corpos que se penetram e Apresenta-se por vezes o estoicismo como operando
as partes que coexistem. Como o mundo das misturas não para além de Platdo uma espécie de retorno ao pré-socratis-
seria o de uma profundidade negra em que tudo é permitido? mo, ao mundo heraclitiano, por exemplo. Trata-se antes de
, Crisipo distinguia duas espécies de misturas: as mistu- uma reavaliagio total do mundo pré-socrdtico interpretan-
ras imperfeitas que alteram Os corpos e as misturas perfeitas do-o conforme uma fisica das misturas em profundidade, os
que os deixam intactos e os fazem coexistir em todas as Cinicos ¢ os Estoicos o abandonam por um lado a todas as
suas partes. Sem dúvida, a unidade das coisas corporais desordens locais que se conciliam somente com a Grande mis-
entre elas define uma mistura perfcita e liquida, em que tudo tura, isto é, a unidade das causas entre si. É um mundo do
€ justo no presente cósmico. Mas os corpos tomados na terror e da crueldade, do incesto ¢ da antropofagia. E sem
particularidade de seus presentes limitados não se encontram davida há uma outra parte: o que, do mundo heraclitiano,
diretamente segundo a ordem de sua causalidade, que só pode subir à superficie e vai receber um estatuto completa-
vale para o todo, observadas todas as combinações ao mes- mente novo — o acontecimento na sua diferenca de natu-
mo tempo. Eis por que toda mistura pode ser dita boa ou Teza COm as causas-corpos, o Aion na sua diferenca de na-
tureza com o Cronos devorante. Paralelamente, o platonis-
Décima Nona Série:
mo sofre uma reorientação total andloga: ele que pretendia
aprofundar ainda mais o mundo pré-socrético, reprimi-lo
Do Humor
ainda mais, se vê destituido de sua prépria altura e a Idéia
recai na superficie como simples efeito incorporal. É a
grande descoberta estóica, ao mesmo tempo contra os pré-
-socráticos e contra Platão: a autonomia da superfície, in-
dependentemente da altura e da profundidade, contra a al-
tura e a profundidade; a descoberta dos acontecimentos in-
corporais, sentidos ou efeitos, que são irredutíveis aos corpos
profundos assim como às Idéias altas. Tudo o que acontece
¢ tudo o que se diz acontece e se diz na superficie. Esta
não esti menos para ser explorada, mais desconhecida, mais
ainda talvez que a profundidade e a altura que são nao-sen-
so. Pois a fronteira principal é deslocada. Ela não passa
mais em altura entre o universal e o particular. Ela não
passa mais em profundidade entre a substincia e os aciden-
tes. Talvez seja a Antistenes que é preciso glorificar pelo
novo tragado: entre as coisas e as proposições mesmas. Parece em primeiro lugar que a linguagem não possa
Entre a coisa tal qual ela é, designada pela proposigio ¢ o encontrar um fundamento suficiente nos estados daquele que
expresso, que não existe fora da proposição (a substancia
se exprime, nem nas coisas sensíveis designadas, mas so-
não é mais do que uma determinação secundéria da coisa e
mente nas Idéias que lhe dão uma possibilidade de verdade,
o universal, uma determinagdo secundaria do expresso). assim como de falsidade. É difícil imaginag, no entanto, por
A superfície, a cortina, o tapete, o casaco, eis onde o meio de que milagre as proposições participariam às Idéias
Cínico e o Estóico se instalam e aquilo de que se cercam. de uma forma mais segura do que os corpos que _falam"ou
O duplo sentido da superfície, a continuidade do avesso e dos corpos de que se fala, a menos que as préprias Idéias
do direito, substituem a altura e a profundidade. Nada atrás ndo sejam “nomes em si’. E os corpos, no outro pólo,
da cortina, salvo misturas inomináveis. Nada acima do poderiam eles melbor fundar a linguagem? Quandg 05 sons
tapete, salvo o céu vazio. O sentido aparece e atua na su- se abatem sobre os corpos e se tornam ações e paixdes gos
perfície, pelo menos se soubermos convenientemente, de ma- corpos misturados, não são mais portadores senão de ndo-
neira a formar letras de poeira ou como um vapor sobre o sensos dilacerantes. Denuncia-se, cada uma por sua vez, a
vidro em que o dedo pode escrever. A filosofia das basto- impossibilidade de uma linguagem platén*’ca e de uma lin-
nadas nos Cínicos ¢ nos Estóicos substitui a filosofia das guagem pré-socritica, de uma linguagem }dzallsta e de uma
marteladas. O filósofo não é mais o ser das cavernas, nem linguagem fisica, de uma linguagem maniaca e de uma 'lm-
a alma ou o pássaro de Platão, mas o animal chato das su- guagem esquizofrénica. Impde-se a altemargva sem saida:
perfícies, o carrapato, o piolho. O símbolo filosófico não é ou nada dizer ou incorporar, comer o que dizemos. Como
mais a águia de Platão, nem a sandália de chumbo de Em- diz Crisipo, “se dizes a palavra carroga, uma Carroça passa
pédocles, mas o manto duplo de Antístenes e de Diógenes. por tua boca” e ndo é nem melhor nem mais comodo se
O bastão e o manto, como Hércules com seu porrete e sua se tratar da Idéia de carroga. .
pele de leão. Como nomear a nova operação filosófica en- A linguagem idealista é feita de significagdes h.ip:ost?sm:
quanto ela se opõe ao mesmo tempo à conversão platônica
das. Mas, a cada vez que nos, interrogam sobre tais signi-
e à subversão pré-socrática? Talvez pela palavra perversão, ficados — “o que é o Belo, o Justo etc., que é o Homem?
que convém pelo menos ao sistema de provocações deste
—, responderemos designando um corpo, mostrando um olz-
novo tipo de filósofos, se é verdade que a perversão implica
jeto imitável ou mesmo consumivel, dando-se, Caso necessá-
uma estranha arte das superficies.
rio, um golpe de bastão, o bastão sendo consnderlado como
instrumento de toda designagdo possivel. Ao “bipede sem
plumas” como significado do homem segundo Platdo, Dió-
genes o Cinico responde atirando-nos um galo com plumas.
E ao que pergunta sobre “o que é a filosofia”, Diógenes substância que os subtende independentemente de sua efe-
responde fazendo passear um arenque na ponta de um cor- tnação espaço-temporal no seio de um estado de coisas. Ou
del: o peixe é o animal mais oral, que coloca o problema da então, o que dá no mesmo, de puras singularidades tomadas
mudez, da consumabilidade, da consoante no elemento mo- no seu elemento aleatório, independentemente dos indivíduos
Ihado, o problema da linguagem. Platio ria daqueles que e das pessoas que os encarnam e os efetuam. Esta aventu-
se contentavam em dar exemplos, em mostrar, em designar ra do humor, esta dupla destituição da altura e da profundi-
a0 invés de atingir as Esséncias: Eu não te pergunto (dizia dade em proveito da superfície, é primeiro a aventura do
ele) o que é justo, mas o que é o justo etc. Ora, é fAcil sábio estóico. Mas, mais tarde e em um outro contexto, é
fazer com que Platdo desca de novo o caminho que ele também aquela do Zen — contra as profundidades bramâ-
pretendia nos fazer escalar. A cada vez que nos interroga nicas e as altitudes búdicas. Os célebres problemas-provas,
das
sobre uma significagdo, respondemos por uma designação, as perguntas-respostas, os koan, demonstram o absurdo
uma mostração puras. E para persuadir o espectador de significações, mostram o não-senso das designaçõe s. O bas-
que não se trata de simples “exemplo” e que o problema de tão é o universal instrumento, o mestre das questões, o mimo
Platão está mal colocado, imitaremos aquilo que designamos, e o consumo são a resposta. Reenviado à superfície o sábio
nós o mimetizaremos, ou então poderemos comé-lo ou que- descobre aí os objetos-acontecimentos, todos comunicantes
eles se
brar aquilo que mostramos. O importante é fazer tudo isso no vazio que constitui sua substância, Aion, em que
* o
depressa: encontrar logo alguma coisa a designar, a comer desenham e se desenvolvem sem jamais preenchê-lo.
ou a quebrar, que substitui a significagio (a Idéia) que nos acontecimento é a identidade da forma e do vazio. O acon-
como
convidavam a procurar, E isso tanto mais rápido e tanto tecimento não é o objeto como designado, mas o objeto
melhor que não há e não deve haver semelhanca entre expresso ou exprimível, jamais presente, mas sempre já pas-
a vir, assim em Mallarmé, valendo por sua
aquilo que se mostra e o que nos pediam: somente uma re- sado e ainda
lação em dentes de serra, que recusa a falsa dualidade pla- própria ausência ou sua abolição, porque esta abolição
tonica esséncia-exemplo. Para este exercicio, que consiste (abdicatio) é precisamente sua posição no vazio como Ácon-
em substituir as significagbes por designagGes, mostrações, tecimento puro (dedicatio), “Se tu tens um bastão, diz o
çonsumações e destruições puras, é preciso uma estranha Zen, eu te dou um, se não o tens, eu te tomo” (ou, como
inspiração, é preciso saber “descer” — o humor, contra a dizia Crisipo: “se não perdestes alguma coisa, vós a tendes;
A negação
ironia socrática ou a técnica da ascensão. ora, não perdestes cornos, logo tendes cornos”).
so-
Mas para onde nos precipita semelhante descida? Até não exprime mais nada de negativo, mas torna patente
com suas duas metades ímpares, das
ao fundo dos corpos e ao sem-fundo de suas misturas; pre- mente o exprimível puro
uma vez
cisamente porque toda designação se prolonga em consuma- quais, para todo o sempre, uma faz falta & outra,
como a ialtalpor
ção,. trituração e destruição, sem que se possa deter este que ela excede por sua propria falta, assim
X para uma coisa = X. Nés o
movimento, como se o bastão quebrasse tudo o que ele seu excesso, palavra —
vemos muito bem nas artes do Zen, não somente a arte do
mostra, vemos bem que a linguagem não pode se fundar não al:_»olado
mais na designação do que na significação. Que as signk desenho onde o pincel dirigido por um punho
as singulanfi ades
f'lcações nos precipitem em puras designações que as subs- equilibra a forma com o vazio e distribui
séries de toques fortuitos e
tituem e as destituem, é o absurdo como sem-significação. de um puro acontecimento em
mas também as artes do jardim, do
Mas que as designações se precipitem por sua vez no fundo de “linhas cabeludas”,
onde o
destruidor e digestivo, é o não-senso das profundidades como buquê e do chá e a do tiro com arco, a da espada,
a vacuida-
subsenso ou Untersinn. Qual é então a saída? É preciso “desabrochar do ferro” surge de uma maravilhos
de. Através das significagdes abolidas e das designações
que, pelo mesmo movimento graças ao qual a linguagem cai ento
perdidas, o vazio é o lugar do sentido ou do acontecim
do alto, depois se afunda, sejamos reconduzidos à superficie, não
14 onde não há mais nada a designar, nem mesmo a signifi- que se compdem com o seu próprio não-senso, 14 onde
é ele próprio o
há mais lugar a não ser o lugar. O vazio
car, mas onde o sentido puro é produzido: produzido na sua de superfície, o ponto alea-
elemento paradoxal, o não-senso
r&ílação essencial com um terceiro elemento, desta vez o
não-senso da superficie. E, aqui também, o que importa é 1. Os Estóicos jáe tinham Vazio, so mesmo
elaborado uma bela teoria s do incorporais
t como extra-ser insistência, Se os acontecimento são S
ir depressa, é a velocidade. itubutos lógicos dos emseresnatureza é como a substância nãodestesse
e dos corpos, o vazio corporal
O que é que o sábio encontra na superfície? Os puros Atributos, que difere da substância 20 ponto que
pode mesmo dizer que o mundo está “no vazio”, Cf. Brébier, La théorie des
acontecimentos tomados na sua verdade eterna, isto é, na incorporels dans Vancien stoicisme, Cap. IIL
tório sempre deslocado de onde jorra o acontecimento como se- purifica até formar um conceito completamente determi-
sentido. “Não há ciclo do nascimento e da morte ao qual é nado a priori, tornando-se assim, por isso mesmo, o con-
preciso escapar, nem conhecimento supremo a atingif”": ceito de uma série singular”2. A ironia cléssica age como
o
céu vazio recusa ao mesmo tempo os mais altos pensamentos a instância que assegura a coextensividade do ser ¢ do indi-
do espírito, os ciclos profundos da natureza, Trata-se me- viduo no mundo da representagio. Assim, não somente o
nos de atingir ao imediato do que de determinar este lugar universal da Idéia, mas o modelo de uma pura linguagem
em que o imediato se mantém “imediatamente” como não- racional em relação as primeiras possiveis, tornam-se meios
atingível: a superfície em que se faz o vazio e
todo aconte- de comunicação natural entre um Deus supremamente indi-
cimento com cle, a fronteira como o corte acerado
de uma viduado e os individuos derivados que ele cria; e é este Deus
espada ou o fio tenso do arco. Assim pintar sem pintar, que torna possivel um acesso do individuo à forma universal.
não-pensamento, tiro que se torna não-tiro, falar sem falar: Mas, após a critica kantiana, aparecia uma terceira fi-
em absoluto não o inefável em altura ou profundidade,
mas gura da ironia: a ironia romântica determina aquele que
esta fronteira, esta superfície em que a linguagem se torna fala como a pessoa e não mais como o individuo. Ela se
possivel e, ao fazê-lo, não importa mais do que uma funda na unidade sintética finita da pessoa e ndo mais na
co-
municagio silenciosa imediata, pois que ela não poderia identidade analitica do individuo. Ela se define pela coex-
ser
dita a não ser ressuscitando todas as significagbes e desig- tensividade do Eu e da representagdo mesma. Há aí muito
nações mediatas abolidas. mais do que uma mudanga de palavra (para determina_r toda
Tanto quanto o que torna a linguagem possivel, per- sua importéncia, seria preciso avaliar por exemplo a diferen-
gunta-se quem fala. Virias respostas diversas foram dadas ¢a entre os Ensaios de Montaigne, que se inscrevem já no
a semelhante pergunta. Chamamos de resposta “cldssica” mundo cldssico enquanto exploram mais diversas as figuras
aquela que determina o individuo como aquele que fala. da individuagdo e as Confissdes de Rousseau, que anunciam
O de que ele fala é de preferéncia determinado como parti- o romantismo enquanto são a primcira manifestaggo de uma
cularidade, e o meio, isto é, a prépria linguagem, como ge- pessoa ou de um Eu). Não somente a Idéia unlYerga! ea
neralidade de convengio. Trata-se entdo, em uma triplice particularidade sensivel, mas os dois extremos da individua-
operagio conjugada, de revelar uma forma universal do lidade e os mundos correspondendo aos individuos tornam-se
individuo (realidade), ao mesmo tempo em que extraimos agora as possibilidades proprias da pessoa. Estas p.OSSlbl-
uma pura Idéia sobre aquilo de que se fala (necessidade) e lidades continuam a se repartir em originarias e em derivadas,
que confrontamos a linguagem a um modelo ideal, suposto mas 2 originiria não designa mais do que os prgdicados
primitivo, natural ou puramente racional (possibilidade). constantes da pessoa para todos os mundos possíveis (cate-
É
precisamente esta operagiio que anima a ironia socritica gorias) e o derivado, as variáveis individuais em que a pes-
co-
mo ascensão ¢ the dá por tarefas a0 mesmo tempo arranca
r soa se encarna nestes diferentes mundos. Segue-sedaí uma
o individuo a sua existéncia imediata, ultrapassar a particu- profunda transformação tanto do universal da Idéia como
laridade sensivel em direção à Idéia e instaurar leis de lin- da forma da subjetividade e do modelo da linguagem en-
guagem conformes ao modelo. Tal é o conjunto “dialético” quanto função do possível. A posição da pessoa como
de uma subjetividade memorante e falante. Todavia, para classe ilimitada e, no entanto, de um só membro (Eu), tal
que a operação seja completa, é preciso que o individuo não é a ironia romântica. E não há dúvida de que já há ele-
seja somente ponto de partida e trampolim, mas que ele se mentos precursores no cogito cartesiano e sobretudo na pes-
reencontre igualmente no fim e que o universal da Idéia seja soa leibniziana; mas estes elementos permanecem subordina-
antes como um meio de troca entre os dois. Este fecha- dos às exigéncias da individuagdo, enquanto que eles se
mento, este afivelamento da ironia faz falta ainda em liberam e se exprimem por si mesmos no romantismo após
Platão
ou ndo aparece a não ser sob as espécies do cômico Kant, invertendo a subordinação. “Esta fagnosa liherdade
ou da
derrisdo, como no confronto Sécrates-Alcibiades. A ironia poética ilimitada se exprime de uma maneira positiva no
clissica, a0 contrdrio, adquire este estado perfeito quando fato de que o indivíduo percorreu sob a forma da possibili-
chega a determinar não somente o todo da realidade mas dade toda uma série de determinações diversas e lhes deu
o
conjunto do possivel como individualidade suprema origind- uma existência poética antes de se abismar no nada. A al
ria. Kant, nós o vimos, desejoso de submeter à critica o ma que se abandona à ironia parece aquela que atravessa o
mundo clássico da representagio, comeca por descrevé-lo mundo da doutrina de Pitágoras: ela está sempre em viagem,
com exatiddo: “A idéia do conjunto de toda possibilidade 2. Kanv. Critica da Razão Pura. “Do idesl transcendental”.
mas não tem mais necessidade de uma tão longa duração... modelo ideal e sua inversdo esotérica, como entre a ironia e
que lado
Como as crianças que sorteiam aquele que paga, o ironista o fundo tragico, ao ponto de não sabermos mais de
conta em seus dedos: príncipe encantado ou mendigo etc. está o máximo de ironia. Eis por que é vão procurar uma
ns
Todas estas encarnações só têm, a seus olhos, o valor de férmula única, um conceito único para todas as hnguage
puras possibilidades; ele pode por isso percorrer a gama, , h.teral e
esotéricas: assim para a grande síntese fonética
tão rápido quanto as crianças no seu jogo. Em compensa- silábica de Court de Gibelin que fecha o mundo clássico e 2
ção, o que toma o tempo ao ironista é o cuidado que ele grande síntese tônica evolutiva de Jean-Pierre Brisset, que
pde em se paramentar exatamente, conforme ao papel poé- acaba o romantismo (vimos da mesma forma que nao havia
.
tico assumido por sua fantasia... Se a realidade dada uniformidade das palavras-valises).
perde seu valor para o ironista, não é enquanto é uma rea- A pergunta: quem fala?, responderemos ora pelo indivi-
lidade ultrapassada que deve deixar o lugar a uma outra duo, ora pela pessoa, ora pelo fundo que dissolve tanto um
mais autêntica, mas porque o ironista encara o Eu funda- como a outra. “O eu do poeta lirico eleva a voz do t_m}’do
mental, para o qual não existe realidade adequada ”?, do ser, sua subjetividade é pura imaginação 4,
do abismo
recusa
O que há de comum a todas as figuras da ironia é que Mas repercute ainda uma última resposta: aquela que
como as formas' Éo
elas encerram a singularidade nos limites do indivíduo ou tanto o fundo primitivo indiferenciado
da pessoa. Por esse motivo, a ironia não é vagabunda se- indivíduo e da pessoa e que recusa tanto sua çontmdl çgo
não em aparência. Mas, sobretudo, é porque todas estas como sua complementaridade. Não, as singularidades não
figuras estão ameaçadas por um íntimo inimigo que as tra- são aprisionadas em indivíduos e pessoas; e muito menos
balha de dentro; o fundo indiferenciado, o sem-fundo de que caímos em um fundo indiferenciado, profundidade sem fun-
falávamos precedentemente e que representa o pensamento do, quando desfazemos o indivíduo e a pessoa. O‘ que é
trágico, o tom trágico com o qual 2 ironia mantém as mais impessoal e pré-individual são as singularidades, livres e
ambivalentes relações. É Dionísio sob Sécrates, mas é tam- némades. O que é mais profundo do que todo o fundo é a
bém o demônio que estende a Deus assim como as suas superficie, a pele. Aqui se forma um novo tipo de lingua-
criaturas o espelho em que se dissolve a universal individua- gem esotérica, que é para si mesma seu proprio modelo e
lidade e ainda o caos que desfaz a pessoa. O indivíduo e sua realidade. O tornar-se louco muda de figura quando
. pronunciava o discurso clássico, a pessoa, o discurso romén- sobe a superfic ie, sobre a linha reta do Aion, e'termda(.le; do
tico. Mas, sob estes dois discursos e invertendo-os de ma- mesmo modo, o “mim” dissolvido, o Eu fendldo,_ a identi-
neiras diversas é agora o Fundo sem face que fala rosnando. dade perdida, quando param de se afundar para liberar, ao
o
Vimos que esta linguagem do fundo, a linguagem confun- contrério, as singularidades de superficie. O nao-senso e
dida com a profundidade dos corpos, tinha uma dupla po- sentido acabam com sua relação de oposicd o dindmic a, para
tência, a dos elementos fonéticos explodidos, a dos valores -
entrar na co-presenca de uma génese estatica, como não.-sen
tônicos inarticulados. É antes a primeira que ameaça e so da superfície e sentido que desliza sobre ela. O trágico e
inverte de dentro o discurso clássico e a segunda, o discurso a ironia dão lugar a um novo valor, o humor. Pois se a
romintico. Também devemos em cada caso, para cada tipo do ser com
ironia é a coextensividade o individuo, ou do
de discurso, distinguir trés linguagens. Primeiro uma Jin- Eu com a representação, o humor é a do sensoe do não-
guagem real correspondendo à assignação completamente senso; o humor é a arte das superfícies e das dobras, das
ordindria daquele que fala (o individuo ou a pessoa...). E singularidades nômades e do ponto aleatório sempre de?lçcg-
depois uma linguagem ideal, que representa o modelo do
do, aarte da gênese estática, o saber-fazer do acontecimen-_
discurso em fungdo da forma daquele que o pronuncia (por
to puro ou a “quarta a do si suspendendo-se
exemplo, o modelo divino do Crdtilo com relagdo 3 subjeti- e manifestagdo, abolindo-se
toda significagdo, designagdo
vidade socrdtica, o modelo racional leibniziano com relação
toda profundidade e altura.
à individualidade cldssica, o modelo evolucionista com rela-
ção à pessoa romantica). Enfim, a linguagem esotérica,
que representa em cada caso a subversdo, pelo fundo, da
linguagem ideal e a dissolugio daquele que detém a lingua-
gem real. Há alids de cada vez relações internas entre o
3. Kierkegaard, “O Conesito de Ironia” (Prerez Miwano, Kietkegaord,
sa vie, son oeutre, pp. 57-50). 4. Nmrascum. Nascimento da tragédia. § 5.
v IUGQII 11G 9CIIG.

Sobre o Problema
Moral nos Estóicos

Diógenes Laércio conta que os estóicos comparavam a


filosofia a um ovo: “A casca é a lógica, a clara é a moral
e a gema, bem no centro, é a física”. Sentimos perfeita-
mente que Diógenes racionaliza. É preciso reencontrar o
aforismo-anedota, isto é, o koan. É preciso imaginar um
discipulo colocando uma questão de significação: que é a
moral, ó mestre? Então o sábio estóico tira um ovo duro
de seu manto dobrado e com seu bastão designa o ovo.
(Ou então, tendo tirado o ovo, ele dá um golpe de bastão
no discípulo e o discípulo compreende que ele próprio deve
responder. O discipulo toma, por sua vez, o bastão, quebra
o ovo, de tal maneira que um pouco de clara permanece
ligado & gema e um pouco i casca. Ou entio o mestre
deve fazer ele mesmo tudo; ou o discipulo só terd compreen-
dido ao término de numerosos anos.) Em todo caso, a
situação da moral está bem exposta, entre os dois pólos da
casca lógica superficial e da gema fisica profunda. O mes-
tre est6ico não é o préprio Humpty Dumpty? E a aventura
do discfpulo, a aventura de Alice, que consiste em remontar
da profundidade dos corpos à superficie das palavras, fazen-
do a experiéncia perturbadora de uma ambigiidade da mo-
ral, moral dos corpos ou moralidade das palavras (a “mo-
ral daquilo que se diz...”) — moral da nutrição ou moral
da linguagem, moral do comer ou moral do falar, moral da
gema ou da casca, moral dos estados de coisas ou moral do
sentido.
Pois devemos voltar sobre o que diziamos há pouco,
pelo menos para ai introduzir variantes. Seria ir muito
depressa apresentar os Estdicos como recusando a profundi-
dade e não encontrando ai senão misturas infernais corres-
pondendo'.às paixões-corpos e às vontades do mal. O sis- unidade de um presente cosmico, para daí tirar a adivinhação
tema estóico comporta toda uma física, com uma moral dos acontecimentos que resultam. Mas, de outro lado, em
desta fisica. Se é verdade que as paixões e as vontades más compensagdo, trata-se de querer o acontecimento, qualquer
são corpos, as boas vontades, as ações virtuosas, as repre- que ele seja, sem nenhuma interpretagdo, gragas a Um “uso
sentações verdadeiras, os assentimentos justos são também das representagdes” que acompanha desde o comego a efe-
corpos. Se é verdade que tais ou tais corpos formam mis- tuação do acontecimento mesmo atribuindo-lhe o mais limi-
turas abomináveis, canibais e incestuosas, o conjunto dos tado presentel. Em um caso, vamos do prescnte césmico
corpos tomado na sua totalidade forma necessariamente uma a0 acontecimento ainda não efetuado; no outro caso, do
mistura perfeita, que não é nada além do que a unidade das acontecimento puro à sua mais limitada efetuação presente.
causas entre elas ou o presente cósmico, com relação ao E, sobretudo, em um caso ligamos o acontecimento a suas
qual o próprio mal pode ser tão-só um mal de “conseqiién- causas corporais e a sua unidade fisica; no outro caso, liga-
cia”. Se ha corpos-paixões, há também corpos-ações, cor- mos o acontecimento a sua quase-causa incorporal, causali-
pos unificados do grande Cosmos. A moral estóica concerne dade que ele recolhe e faz ressoar na produção de sua pré-
ao acontecimento; ela consiste em querer o acontecimento pria efetuagdo. Este duplo pólo j4 estava compreendido no
como tal, isto é, em querer o que acontece enquanto acon- paradoxo da dupla causalidade e nos dois caracteres da gé-
tece. Não podemos ainda avaliar o alcance destas fórmulas. impassibilidade e produtividade, indiferenga e
nese estatica,
Mas, de qualquer maneira, como o acontecimento poderia eficicia, imaculada concepção que caracteriza agora o sébio
ser captado e querido sem ser relacionado & causa corporal estGico. A insuficiéncia do primeiro pólo provém, entdo,
de onde ele resulta e, através dela, à unidade das causas do scguinte: que os acontecimentos, sendo efeitos incorporais,
como Physis? É pois a adivinhação, aqui, que funda a diferem em natureza das causas corporais de que eles resul-
moral. AÀ interpretação divinatória, com efeito, consiste na tam; que eles têm leis diferentes das que as regem e são
relação entre o acontecimento puro (não ainda efetuado) e determinados somente por sua relação com a quase-causa
a profundidade dos corpos, as ações e paixões corporais de incorporal. Cícero diz com razão que a passagem do tempo
onde ele resulta. E podemos dizer precisamente como pro- é semelhante ao desenrolar de um cabo (explicatio)?. Mas,
cede esta interpretação: trata-se sempre de cortar na espes- justament e, os acontecim entos não existem sobre a linha reta
sura, de talhar superficies, de orientá-las, de acrescê-las e do cabo desenrolado (Ajon), da mesma maneira que as
de multiplicá-las, para seguir o traçado das linhas e dos causas na circunferéncia do cabo enrolado {Cronos).
cortes que se desenham sobre elas. Assim, dividir o céu Em que consiste o uso lógico das representagdes, esta
em secções e nele distribuir as linhas dos vôos de pássaros, arte levada ao mais alto ponto por Epiteto e Marco Aurélio?
seguir sobre o solo o mapa que traça o focinho de um porco, São conhecidas as obscuridades da teoria estica da repre-
jogar o figado para a superfície e observar as linhas e as sentação tal como nos foi legada: o papel e a natureza do
fissuras. A adivinhação é, no sentido mais geral, a arte das assentimento na representagdo sensivel corporal enquanto
SI_Iperfícies, das linhas e pontos singulares que nela aparecem; impressão; a maneira pela qual as representagdes racionais,
eis por que dois adivinhos não se olham sem se rir, com um que são elas mesmas ainda corporais, decorrem das repre-
riso humoristico. (Seria sem dúvida preciso distribuir duas sentações sensiveis; mas, sobretudo, o que constitui o caráter
operagdes, a Pmdução de uma superfície física para linhas da representação de ser “compreensiva” ou não; enfim, o
ainda corporais, imagens, impressões ou representações e a alcance da diferença entre as representaçóes-corpos ou im-
tradução destas numa superfície “metafísica” em que não pressões e os acontecimentos-efeitos incorporais (entre as
Jjogam mais do que as linhas incorporais do acontecimento representações e as expressoes) 3. São estas duas últimas
puro, que constitui o sentido interpretado destas imagens.) dificuldades que concernem essencialmente ao nosso assunto,
Mas, certamente, não é por acaso que a moral estóica uma vez que as representações sensíveis são designações, as
nunca pôde nem quis se confiar a métodos fisicos de adivi- representagdes racionais significações, mas somente os acon-
nhação e se orientou para um outro pólo, se desenvolveu tecimentos incorporais constituem o sentido expresso. Esta
segundo um outro método, légico. Victor Goldschmidt diferenga de naturcza entre 2 expressic e a represent agio,
mostrou muito bem esta dualidade de pólos entre os quais
a u!og-al estbica oscila: de um lado tratar-se-ia pois de 1. Cf Vicron GorpscumimT, Le systéme stoicien et Pidée de temps, Vrin,
participar tanto quanto possivel de uma visio divina reu- %* Ciícero. Da adivinhação, 56,
A respeito dn irredutibilidade do exprimivel incorporal à representação,
nindo em profundidade todas as causas fisicas entre si na mesmo racional, cf. as piginas definitivas de Brébier, op. Cif., pp. 16-19.
nós a encontrávamos por toda parte cada vez que marcáva- ela chegue a se estender até este ponto, que ela consiga este
mos a especificidade do sentido ou do acontecimento, sua forro ou esta barra, eis a operação que define o uso vivo,
irredutibilidade ao designado como ao significado, sua neu- tal que a representação, quando aí não atinge, fica sendo só
tralidade com relação ao particular como ao geral, sua sin- letra morta em face de seu representado, estúpida no seio
gularidade impessoal e pré-individual. Esta diferença culmina de sua representatividade.
com a oposição do objeto = X como instância identitária O sábio estóico “se identifica” à quase-causa: ele se
da representação no senso comum e da coisa = X como ele- instala na superficie, sobre a reta que a atravessa, no ponto
mento não-identificável da expressão do paradoxo. Mas, aleatório que traga ou percorre esta linha. Ele é,ªassu_n,
ainda que o sentido não seja nunca objeto de representação como o arqueiro. Todavia, esta relação com o arqueéiro não
possível, nem por isso deixa de interferir na representação deve ser compreendida sob a espécie de uma metáfora moral
como o que confere um valor muito especial à relação que da intenção, como Plutarco à isso nos convida dizendo que
ela mantém com seu objeto. Por ela mesma, a representação o sábio estóico é considerado capaz de tudo fazer, não por
é abandonada a uma relação somente extrínseca de semelhan- atingir o fim, mas por ter feito tudo o que dependia dele
ça ou de similitude. Mas seu caráter interno, pelo qual ela para atingi-lo. Uma racionalização dessa natureza 1mpl|fa
é intrinsecamente “distinta”, “adequada” ou “compreensiva”, uma interpretação tardia e hostil ao estoicismo. A relação
provém da maneira segundo a qual ela compreende, segundo com o arqueiro está mais próxima do Zen: o arqueiro deve
a qual ela envolve uma expressão, embora não possa repre- atingir ao ponto em que o visado é também o não-visado,
sentá-la. A expressão que difere em natureza da represen- isto é, o próprio atirador e em que a flecha desliza sobre
tação não age menos como o que está envolvido (ou não) sua linha reta criando seu próprio fim, em que a superfície
na representação. Por exemplo, a percepção da morte como do alvo é também a reta e o ponto, o atirador, o tiro e o
estado de coisa e qualidade ou o conceito de mortal como atirado. Tal é a vontade estóica oriental, como pro-airesis.
predicado de significação, permanecem extrínsecos (destituí- Aí o sábio espera o acontecimento. Isto é: ele compreende
dos de sentido) se não compreendem o acontecimento de 0 acontecimento puro na sua verdade eterna, independente-
morrer como o que se efetua em um e se exprime no outro. mente de sua efetuação espaço-temporal, como ao mesmo
A representação deve compreender uma expressão que ela tempo eternamente a vir e sempre já passado segundo a
não representa, mas sem a qual ela não seria ela mesma linha do Aion. Mas, também e ao mesmo tempo, em um
“compreensiva”, e não teria verdade senão por acaso e de mesmo lance, ele quer a encarnação, a cfetuagdo do aconte-
fora. Saber que somos mortais é um saber apoditico, mas cimento puro incorporal em um estado de coisas e em seu
vazio e abstrato, que as mortes efetivas e sucessivas não préprio corpo, em sua propria carne: tendo se identificado
bastam certamente para preencher adequadamente, enquanto à quase-causa, o sábio quer “corporalizar” seu efeito incor-
não aprendermos o morrer como acontecimento impessoal poral, pois que o efeito herda da causa (Goldschmidt diz
provido de uma estrutura problemática sempre aberta (onde muito bem, a propósito de um acontecimento como passear:
e quando?). Distinguiu-se freqiientemente dois tipos de “Q passeio, incorporal enquanto maneira de ser, toma corpo
saber, um indiferente, que permanece exterior a seu objeto, sob o efeito do principio hegemdnico que aí se manifesta” 4.
© outro concreto e que vai buscar seu objeto onde ele estiver. E isso é verdade tanto de um passeio quanto do ferimento
A representação não atinge a este ideal tópico a não ser pela ou do tiro com arco). Como poderia, porém, o sábio ser
expressão oculta que ela compreende, isto é, pelo aconteci- quase-causa do acontecimento incorporal e por ai querer sua
mento que ela envolve. Há pois um “uso” da representação, encarnagio se o acontecimento já ndo estivesse em vias de
sem o qual a representação permanece privada de vida e de se produzir por e na profundidade das causas corporais? Se
sentido; e Wittgenstein e seus discipulos têm razão em definir a doenga não se preparasse no mais profundo dos corpos?
o sentido pelo uso. Mas tal uso não se define por uma A quase-causa não cria, ela “opera” e não quer sendo aquilo
função da representação com relação ao representado, nem que acontece. Tanto que é ai que intervém a representagio
mesmo pela representatividade como forma de possibilidade. e seu uso: enquanto as causas corporais agem e padecem
Ai como alhures, o funcional se ultrapassa para uma tópica por uma mistura césmica, universal, presente que prodçz o
€ 0 uso está na relação da representação a algo de extra-re- acontecimento incorporal, a quase-causa opera de maneira a
presentativo, entidade não representada e somente expressa. dobrar esta causalidade física, ela encarna o acontecimento
Que a representação envolva o acontecimento de uma outra no mais limitado presente, o mais preciso, o mais instanti-
natureza, que ela chegue a envolvê-lo em suas bordas, que 4. V. Goldschmidt, op. cif., p. 107.
neo, puro instante captado no ponto em que vigesima Primeira Seérie:
se subdivide em
futuro e passado e não mais presente do mund
em si o passado e o futuro.
o que reuniria
O ator fica no instante, en-
Do Acontecimento
quanto o personagem que ele desempenha
espera ou teme
no futuro, rememora-se ou se arrepende no passado: é
neste
sentido que o ator representa. Fazer corresponder o mínimo
de tempo desempenhável no instante ao máxi
mo de tempo
pensável segundo o Ajon. Limitar a efetuação do aconte-
cimento 2 um presente sem mistura, tornar o instan
te tanto
mais intenso e tenso, tanto mais instanténe
o quanto mais
ele exprime um futuro e um passado ilimitados, tal é o uso
da representagdo: o mimico, ndo mais o adivinho. Cessamos
de ir do maior presente para um futuro e um
passado que
se dizem somente de um presente MENOr,
vamos, ao contra-
tio, do futuro e do passado como ilimitados até
a0 menor
presente de um instante puro que não cessa
de se subdividir.
assim que o sábio estéico não somento
compreende e quer
o acontecimento, mas o representa e por af o
seleciong e
que uma ética do mimo prolonga necessaria
mente a l6gica do
sentido. A partir de um acontecimento Puro
o mimo dirige
€ duplica a efetuação, ele mede as misturas
com a ajuda de
um instante sem mistura e os impede de trans
bordar,

Ou a moral não tem sentido nenhum ou entdo é isto


que ela quer dizer, ela não tem nada além disso a d_nzer: não
ser indigno daquilo que nos acontece. Ao_contrano, captar
0 que acontece como injusto e não merecido (€ sempre a
i de Joe Bo toda ela uma meditagio sobre a
midnl,' oAWmP“moºh: a fi:’;...g."..’.‘,‘"‘;. os dois artigos essenciais dos
Cahiere du Sud, nº 303, 1950; René Nell, “Joe Bousquet
Ferdinand Alquié, “Joe Bousquet et la morale du langage”. et son double”,
culpa de alguém), eis o que torna nossas chagas repugn O que os homens captam como passado ou futuro, o deus o
antes,
o r_essem.unento em pessoa, o ressentimento contra o acon- vive no seu eterno presente. O deus é Cronos: o presente
tecimento. Não há outra vontade má. O que é verdadei divino é o circulo inteiro, enquanto que o passado e o futuro
ramente imoral é toda utilização das noções são dimensdes relativas a tal ou tal segmento que deixa o
morais, justo,
injusto, mérito, faltas. Que quer dizer então querer
o resto fora dele. Ao contrario, o presente do ator é o mais
acontecimento? Será que é aceitar a guerra quando ela estreito, o mais cerrado, o mais instantineo, o mais pontual,
chega, o ferimento e a morte quando chegam? É muito ponto sobre uma linha reta que não cessa de dividir a linha
Rrovável que a resignação seja ainda uma figura do ressen- e de se dividir a si mesmo em passado-futuro. O ator é do
timento, ele que, em verdade, tantas figuras possui. Aion: no lugar do mais profundo, do mais pleno presente,
Se
querer o acontecimento significa primeiro captar-lhe a ver- presente que se espalha e que compreende o futuro e o
dade eterna, que é como o fogo no qual se alimenta, este passado, eis que surge um passado-futuro ilimitado que se
querer atinge o ponto em que a guerra é travada reflete em um presente vazio não tendo mais espessura que
contra a
guerra, o ferimento, traçado vivo como a cicatriz de todas o espelho. O ator representa, mas o que ele representa é
as feridas, a morte que retorna querida contra todas sempre ainda futuro ¢ já passado, enquanto sua representa-
as mor-
tes. Intuição volitiva ou transmutação. “A meu gosto da ção é impassivel e se divide, se desdobra sem se romper, sem
morte, diz Bousquet, que era falência da vontade, eu subs- agir nem padecer. É neste sentido que há um paradoxo do
tituirei um desejo de morrer que seja a apoteose da vontade”. comediante: ele permanece no instante, para desempenhar
Deste gosto a este desejo, nada muda de uma certa maneira, alguma coisa que ndo para de se adiamtar e de se atrasar,
salyo.uma mudanga de vontade, uma espécie de de esperar e de relembrar. O que ele desempenha não é
salto no
proprio lugar de todo o corpo que troca sua vontade orga- nunca um personagem: é um tema (o tema complexo ou
nica por uma vontade espiritual, que quer agora nio exata- o sentido) constituido pelos componentes do acontecimento,
mente o que acontece, mas alguma coisa no que acontece, singularidades comunicantes efetivamente liberadas dos limi-
aguma coisa a vir de conformidade ao que acontece, se- tes dos individuos e das pessoas. Toda a sua personalidade,
gundo as leis de uma obscura conformidade humoristica: o ator a mantém em um instante sempre ainda mais divisi-
o Acontecimento. É neste sentido que o Amor fati não vel, para se abrir ao papcl impessoal e pré-individual.
faz sendo um com o combate dos homens livres. Que haja Assim, ele está sempre na situagio de desempenhar um papel
em todo acontecimento minha infelicidade, mas também que desempenha outros papéis. O papel estd na mesma
um
esplendor e um brilho que seca a infelicidade e que faz com relagdo com o ator que o futuro e o passado com o presente
que, desejado, o acontecimento se efetue em sua ponta mais instantineo que lhes corresponde sobre a linha do Ajon. O
estreitada, sob o corte de uma operação, tal é o efeito da ator efetna pois o acontecimento, mas de uma maneira bem
gênese esttica ou da imaculada concepção. O brilho, o diferente daquela segundo a qual o acontecimento se efetua
esplendor do acontecimento, é o sentido. O acontecímàuw na profundidade das coisas. Ou antes, esta efetuação cós-
não é o que acontece (acidente), ele é no que acontece o mica, fisica, ele a duplica com uma outra, à sua maneira,
puro expresso que nos dá sinal e nos espera. Segundo as singularmente superficial, tanto mais nitida, cortante e pura
três dgtermuações precedentes, ele é o que deve por isso mesmo, que vem delimitar a primeira, dela, libera
ser com-
preendido, o que deve ser querido, o que deve ser represen- uma linha abstrata e ndo guarda do acontecimento sendo o
tado no que acontece. Bousquet diz ainda: “Torna-te o contorno ou o esplendor: tornar-se o comediante de seus
ho-
mem de tuas infelicidades, aprende a encarnar tua perfei
gio proprios acontecimentos, contra-efetuacdo.
e teu brilho”. Não se pode dizer nada mais, nunca se disse Pois a mistura fisica só estd certa ao nivel do todo,
nada mais: tornar-se digno daquilo que nos ocorre, por con- no circulo inteixo do presente divino. Mas, para cada parte,
seguinte, querer e capturar o acomtecimento, tornar-se o quantas injusticas e ignominias, quantos processos parasita-
filho de seus préprios acontecimentos e por ai renascer, re-
rios canibais que inspiram também o nosso terror diante do
fazer para si mesmo um nascimento, romper com seu nasci- que nos acontece, nosso ressentimento contra o que acontece.
mento de carne. Filho de seus acontecimentos e nio mais
‘O humor é insepardvel de uma forga seletiva: no que acon-
de suas obras, pois a prépria obra nio é produzida
sendo tece (acidente) ele seleciona o acontecimento puro. No
pelo filho do acontecimento.
comer ele seleciona o falar. Bousquet assinalava as pro-
O ator não é como um deus, antes seja como
um con- priedades do humor-ator: aniquilar os rastros cada vez que
tradeus. Deus e o ator se opõem por sua leitura do tempo. se torna necessário; “erigir entre os homens ¢ as cbras seu
ser de antes do amargor”; “ligar às pestes, às tiranias, às mais Como este a gente difere daquele da banalidade co-
espantosas guerras a chance cômica de ter reinado por nada”; tidiana. É o om das singularidades impessoais e pré-indivi-
em suma, liberar para cada coisa a “porção imaculada”, duais, o on do acontecimento puro em que morre é como
linguagem e querer, Amor fati?, chove. O esplendor do on é a do acontecimento mesmo ou
Por que todo acontecimento é do tipo da peste, da da quarta pessoa. É por isso que não hd acontecimentos
guerra, do ferimento e da morte? Bastaria apenas dizer que privados e outros coletivos; como não há individual e uni-
há mais acontecimentos infelizes que felizes? Não, pois que versal, particularidades e generalidades. Tudo é singular e
se trata da estrutura dupla de todo acontecimento. Em todo por isso coletivo e privado ao mesmo tempo, particular e
acontecimento existe realmente o momento presente da efe- geral, nem jndividual pem universal. Qual guerra nio é
tuação, aquele em que o acontecimento se encarna em um
assunto privado, inversamente qual ferimento não é de guer-
estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa, aquele que ra e oriundo da sociedade inteira? Que acontecimento pri-
designamos dizendo: eis ai, o momento chegou; e o futuro vado não tem todas as suas coordenadas, isto é, todas as
e o passado do acontecimento não se julgam senão em
função deste presente definitivo, do ponto de vista daquele
suas singularidades impessoais sociais? No entanto, há
bastante ignominia em dizer que a guerra concerne a todo
que o encarna. Mas há, de outro lado, o futuro e o passado
do acontecimento tomado em si mesmo, mundo; não é verdade, ela não concerne aqueles que dela
que esquiva todo se servem ou que a servem, criaturas do ressentimento. E
presente, porque ele é livre das limitações de um estado de
coisas, sendo impessoal e pré-individual, neutro, nem geral, há tanta jgnominia em dizer que cada uma tem sua guerra,
nem particular, eventum tanium. . .; ou melhor, que não há sua ferida particulares; tampouco é verdade acerca daqueles
outro presente além daquele do instante móvel que o repre- que cogam a chaga, também criaturas de amargor e de ressen-
senta, sempre desdobrado em passado-futuro, formando o timento. É somente verdadeiro a respeito do homem livre,
que é preciso chamar a contra-efetuagio. Em porque ele captou o préprio acontecimento e porque não o
um caso, é
minha vida que parece muito fraca, que escapa em um ponto deixa efetnar-se como tal sem nele operar, ator, a contra-cfe-
tornado presente em uma relagio assinalavel
tuagdo. Só o homem livre pode entao compreender todas as
comigo. No
outro caso, eu é que sou muito fraco para a vida, é a vida violgncias em uma só violéncia, todos os acontecimentos
muito grande para mim, jogando por toda parte suas singu- mortais em um só Acontecimento que não deixa mais lugar
laridades, sem relação comigo, e sem um momento determi- ao acidente e que denuncia e destitui tanto a poténcia do
nével como presente, salvo com o instante impessoal que se ressentimento no individuo que a da opressdo na sociedade.
desdobra em ainda-futuro ¢ jé-passado. Que esta ambigiii- É propagando o ressentimento que o tirado faz aliados, isto
dade seja essencialmente a da ferida e da morte, do ferimento é, escravos ¢ servos; só o revoluciondrio se liberou do ressen-
mortal, ninguém o mostrou como Maurice Blanchot: a morte timento, pelo qual participamos e aproveitamos sempre de
€ 20 mesmo tempo o que estd em uma relação extrema ou uma ordem opressora. Mas um só e mesmo Acontecimento?
definitiva comigo e com meu corpo, o que é fundado em mim, Mistura que extrai e purifica e mede tudo no instante sem
mas também o que é sem relagdo comige, o incorporal e o mistura, em lugar de tudo misturar: entdo, todas as violén-
infinitivo, o impessoal, o que não ¢ fundado senfio em si cias e todas as opressões se reúnem neste único acontecimen-
mesmo. De um lado, a parte do acontecimento que se to, que denuncia todas denunciando uma (a mais préxima
realiza e se cumpre; do outro lado, “a parte do acontecimen- ou o último estado da questio). “A psicopatologia que
to que seu cumprimento ndo pode realizar”, Ha pois duas reivindica o poeta não é um sinistro pequeno acidente do
concretizaces, que são como a efetuação e a contra-efetua- destino pessoal, um estrago individual. Nzo foi o caminhdo
ção. por al que a morte e seu ferimento não são um de leite que passou por cima de seu corpo e que o deixou
acontecimento entre qutros. Cada acontecimento é como enfermo, foram os cavaleiros dos Cem Negros pogromizan-
a morte, duplo e impessoal em seu duplo. “Ela é o abismo do seus ancestrais nos guetos de Vilno... Os golpes que
do presente, o tempo sem presente com o qual eu não tenho recebeu na cabega não foi em uma rixa de malandros na
relação, aquilo em direção ao qual não posso me lançar, rua, mas quando a policia disparava sobre os manifestan-
pois nela ex não morro, sou destituído do poder de morrer, tes... Se ele grita como um doido de génio é que as
nela a gente morre, não se cessa e não se acaba mais de bombas de Guernica e de Hanói o ensurdeceram...”* É
morrer”?, í
2.
3.
CF Joe Bousquet, Les Cepitales, Le cercle du livre, 1055, p. 103,
BranoHoT, Maurice. L'Espace littéraire. Gallimard, 1955. p. 160
4. Antigo de Claude Roy a propósito do poeta Ginsberg, Nouvel Observa-
teur, 1968.
no ponto móvel e preciso em que todos os acontecimentos
vigesima oeyuiua ocic.
se reúnem assim em um só que se opera a transmutação: o
ponto em que à morte se volta contra a morte,
Porcelana e Vulcão
em que o
morrer é como a destituição da morte, em que a impessoali-
dade do morrer não marca mais somente o momento em que
me perco fora de mim, ¢ a figura que toma a vida mais sin-
gular para se substituir a mim5.

“Toda vida é, obviamente, um processo de demoli~


¢30”1. Poucas frases ressoam tanto em nossa cabega com
este ruido de martelo. Poucos textos têm este caráter irre-
medidvel de obra-prima e de impor siléncio, de forgar uma
aquiescéncia atemorizada, tanto como a curta novela de
Fitzgerald. Toda a obra de Fitzgerald é o desenvolvimento
único desta proposição e sobretudo de seu “cbviamente”.
Eis um homem ¢ uma muther, eis casais (por que casais, a
não ser porque já se trata de um movimento, de um
processo definido como o da diada?) que têm tudo para
serem felizes, como se diz: belos, encantadores, ricos,
superficiais e cheios de talento. E depois alguma coisa se
passa, fazendo com que eles se quebrem exatamente como
um prato ou um copo. Terrivel téte-a-téte da esquizo-
frénica ¢ do alcodlatra, a mepos que a morte os apanhe a
ambos. Será isto a famosa autodestrui¢io? E o que foi
que aconteceu exatamente? Eles ndo tentaram nada de
especial que estivesse acima de suas forgas; no entanto,
despertam como se safssem de uma batalha grande demais
para eles, o corpo quebrado, os músculos pisados, a alma
morta: “eu tinha o sentimento de estar de pé ao crepisculo
em um campo de tiro abandonado, um fuzil vazio na mão
e os alvos abatidos. Nenhum problema para resolver,
simplesmente o siléncio e o ruido de minha respiragdo. . .
Minha imolação de mim mesmo era um rojão sombrio e
molhado”. Certamente, muitas coisas se passaram tanto no
exterior como no interior: a guerra, a bancarrota financeira,
5. Cf. Maurice Blanchot, op. cif, p. 155: “Este esforco para
morte a si mesma, para fazer coincidir
aqueleem que me perco fors de mim, nãoo ponto em que ela se nerde elevar
nela
a um certo envelhecimento, a depressão, a doenga, a fuga do
implica 2mA imensa
é um simplos assunto interior, mase
implica uma imensa responsal
rvesponsabi le a Tespeit
xespeito das coisas e não é possível 1. FirzeenatD, F.S. “A Fissura”(The Grack Up), In: La Félure, trad. fr,
Gallimard, 1936, p. 341.
talento, Mas todos estes acidentes ruidosos já produz
iram
os seus efeitos de imediato; e eles não seriam suficie dilacerada... Em um esforço acima de sua natureza de
ntes
por si sós se não cavassem, se não aprofundassem algo pedra ela se aproximava da outra, se derramava em preces,
de
uma outra natureza e que, ao contrário, só é revelado por
em ligrimas apaixonadas, oferecia todo o seu perdão—. 2
eles à distância e quando já é muito tarde: a fissura outra impassivel ficava. Tudo isto está muito bem, dlpa
silenciosa. “Por que perdemos a paz, o amor, a saúde, ela, mas acontece que é por sua culpa e quanto a mim
um após o outro?” Havia uma fissura silenciosa, imper- pretendo desintegrar-me a meu bel-prazer” 2.) o
ceptível, na superfície, único Acontecimento de superfície, Por mais estreita que seja a sua jungdo, há aí dois
como suspenso sobre si mesmo, planando sobre si, sobre- elementos, dois processos que diferem em natureza: a fissura
voando seu próprio campo. A verdadeira diferença não é que prolonga sua linha reta incorporal e silenciosa na super-
entre o interior e o exterior. A fissura não é nem interior ficie, e os golpes exteriores ou os impulsos internos ruidosos
nem exterior, ela se acha na fronteira, insensível, incorporal, que a fazem desviar, que a aprofundam e a inscrevem ou
ideal. Assim, ela tem com o que acontece no exterior e a efetuam na espessura do corpo. Não são estes os dois
no interior relações complexas de interferência e de cruza- aspectos da morte que, ainda há pouco, Blanchot distinguia:
mento, junção saltitante, um passo para um, um passo para a morte como acontecimento, inseparavel do passado e do
o outro, em dois ritmos diferentes: tudo o que acontece futuro nos quais ela se divide, nunca prefente, a morte
de ruidoso acontece na borda da fissura c não seria nada impessoal que é “a inapreensivel, o que eu não posso captar,
sem ela; inversamente, a fissura não prossegue em
que ndo estd ligada a mim por nenhuma relagéo de nen_hunfi
seu
caminho silencioso, não muda de direção segundo linhas espécie, que não vem nunca, para a qual eu não me )il o”
de
menor resisténcia, não estende sua teia a não ser. sob
e a morte pessoal que acontece e se efetua no mais duro
os golpes daquilo que acontece. Até o momento presente, “que tem como extremo horizonte a ,ªxberdade de
em que
os dois, em que o ruido e o siléncio se esposam morrer e o poder de se arriscar mortalmente”. Podemos
estrejta-
mente, continzamente, no desmantelamento
e na explosão do
citar várias maneiras bastante diversas pelas quais se faz a
fim que significam agora que todo o jogo da fissura junção dos dois processos: o suicí_dm, a loui_:ura, o uso
se
encarnou na profundidade do corpo, a0 mesmo
tempo em
das drogas ou do álcool. Estes dois meios são t'alv,ez os
que o trabalho do interior e do exterior lhe distendeu mais perfeitos, pelo tempo que eles tomam, ao invés de
bordas, as
confundir as duas linhas em um ponto fatal. Mas em todos
(O que poderiamos responder ao amigo que nos os casos há alguma coisa de ilusório. Quando Blanchot
consola: “Por Deus, se eu me fendesse, eu faria explodir considera o suicídio como vontade de fazer coincidir os
0 mundo comigo. Vejamos! O mundo não existe & não dois semblantes da morte, de prolongar a morte 'un;‘;c'ssoal
ser pela maneira segundo a qual o apreendeis, entdo pelo ato o mais pessoal, ele mostra bem a meynabflxdade
é muito
methor dizer que não é em vós que se encontra desta concordéncia, desta tentação de concordância, mas .cle
a falha,
mas sim no Grande Cafion”. Este consolo à americana, por tenta também definir sua ilusão?. Subsiste, com efeito,
projecdo, não é bom para aqueles que sabem que toda a diferença de natureza entre o que se esposa ou se
a fissura
não era mais interior do que exterior e que prolonga estreitamente. .
sua projeção
para o exterior não marca menos a aproximagio Mas o problema não está af. Para quem subsiste esta
do fim
do que a introjeção mais pura. E se a fissura diferença de natureza senão para o pensador abstrato? E
se torna a
do Grande Cafion ou de um rochedo na Sierra Madre; como poderia o pensador, em relação a este problema, não
se
as imagens cósmicas de ravina, de montanha ser ridículo? Os dois processos diferem em natureza, certa-
e de vulcio
substituem a porcelana intima e familiar, o que é que mente. Mas como fazer para que um não prolongqe o
muda
e como impedir-nos de experimentar uma outro natural e necessariamente? Como o traçado SllEl:l-
insuportavel
piedade pelas pedras, uma identificagéio petrifi cioso da fissura incorporal na superficie ndo se tormaria
Lowry faz dizer, por sua vez, o componente
cante? Como
de um outro PRV
2. Lowar, M.
e ¥
Acima do vulcão,
casal, “admitindo-se que ela se tivesse fendido
, ndo teria
havido nenhum meio, antes que a desintegragd
o total se
tivesse produzido, de salvar-lhe pelo menos
as metades
separadas?... Oh!, mas por que, por alguma fantdstica
taumaturgia geoldgica, não se poderia soldar de novo estes
fragmentos? Yvonne descjava ardentemente curar a rocha
também seu aprofundamento na espessura de um corpo aprofundé-la irremediavelmente? Para onde quer que nos
ruidoso? Como o corte de superfície não se tornaria uma voltemos, tudo parece triste. Em verdade, como ficar na
Spaltung profunda e o não-senso de superfície um não-senso superficie sem permanecer à margem? Como salvar-se, sal-
das profundidades? Se querer é querer o acontecimento, vando a superficie e toda a organização de superficie,
como não haveríamos de querer também sua plena efetua- inclusive a linguagem e a vida? Como atingir esta politica,
ção em uma mistura corporal e sob esta vontade trágica esta guerrilha completa? (Quantas lições a receber ainda
que preside a todas as ingestões? Se a ordem da superfície do estoicismo. . .)
é por si mesma fendida, como não haveria ela mesma de O alcoolismo não aparece como a busca de um prazer,
se quebrar, como nos impedirmos de precipitar a sua des- mas de um efeito. Este efeito consiste principalmente
truição, com o risco de perder todas as vantagens a ela nisto: um extraordindrio endurecimento do presente. Vive-
ligadas, a organização da linguagem e a própria vida? -se em dois tempos simultaneamente, vive-se dois momentos
Como não haveríamos de chegar a este ponto em que nada simultaneamente, mas ndo à maneira proustiana. O outro
mais se pode além de soletrar ¢ gritar, em uma espécie de momento pode remeter a projetos tanto quanto a lembrangas
profundidade esquizofrênica, mas não mais, absolutamente, da vida sobria; mas nem por isso ele deixa de existir de
falar? Se existe a fissura na superfície, como evitar que a um modo completamente diferente, profundamente modifi-
vida profunda se transforme em empresa de demolição e cado, apreendido neste presente endurecido que o cerca
se torne tal, “obviamente”? Será possível manter a insis- como um tenro botão em uma carpe endurecida. Neste
tência da fissura incorporal evitando, ao mesmo tempo, centro mole do outro momento, o alcodlatra pode, pois,
fazê-la existir, encarná-la na profundidade do corpo? Mais identificar-se aos objetos de seu amor, “de seu horror e
precisamente, será possível ater-se à contra-efetuação de um de sua compaixdo”, enquanto que a dureza vivida e que-
acontecimento, simples representação plana do ator ou do rida do momento presente lhe permite manter à distancia
dançarino, evitando ao mesmo tempo a plena efetuação que a realidade®. E o alcodlatra não ama menos esta rigidez
caracteriza a vitima ou verdadeiro paciente? Todas estas que o ganha do que a dogura que cla envolve e encerra.
questões acusam o ridículo do pensador: sim, sempre, os Um dos momentos estd no outro, e o presente nio se
dois aspectos, os dois processos diferem em natureza. Mas endureceu tanto, não se tetanizou a não ser para investir
quando Bousquet fala da verdade eterna do ferimento, é este ponto de moleza prestes a estourar. Os dois momentos
em nome de um ferimento pessoal abominável que ele simultdneos se compõem estranhamente: o alcodlatra ndo
carrega em seu corpo. Quando Fitzgerald ou Lowry falam vive pada no imperfeito ou no futuro, ele não tem sendo
desta fissura metafísica incorporal, quando nesta encontram, um passado composto. Mas um passado composto muito
ao mesmo tempo, o lugar e o obstáculo de seu pensamento, especial. De sua embriaguez ele compde um passado
a fonte e o estancamento de seu pensamento, o sentido e o imaginario, como se a dogura do participio passado viesse
não-sentido, é com todos os litros de álcool que eles bebe- se combinar com a dureza do auxiliar presente: eu tenho
ram, que efetuaram a fissura no corpo. Quando Artaud amado (j'ai aimé), eu tenho feito (fai fait), eu tenho visto
fala da erosão do pensamento como de alguma coisa de (jai vu) — eis o que exprime a copulação dos dois
essencial e de acidental ao mesmo tempo, radical impotência momentos, a maneira pela qual o alcodlatra experimenta um
e, entretanto, autopoder, já o faz partindo do fundo da no outro desfrutando de uma onipoténcia manfaca. Aqui
esquizofrenia. Cada qual arriscava alguma coisa, foi o mais ve Ay 67A b deprina d mífen,,
longe neste risco e tira dai um direito imprescritivel. Que 4. FrrzerRaro Op. cit, pp. 353-354: “Eu queria somente a tran-
quilidade absoluta para decidir por que dera para me tomar triste diante por da
resta ao pensador abstrato quando da conselhos de sabedoria fristeza, melancólico diante da melancolia e trágico diante da tragédia;
e de distinção? Então, falar sempre do fermento de Bous- que me pusera a me identificar nos objetos de meu homor ou de minha
compaixão... . Uma identificação deste gênero equivale à morte de toda
quet, do alcoolismo de Fitzgerald e de Lowry, da loucura Teslização. É algo deste gênero que impede os loucos de trabalhar. LêninGeorgenão
suportava de boa vontade o sofrimento de seu proletariado, nem
de Nietzsche e de Artaud, ficando a margem? Transfor- Washinglon de suas tropas, nem Dickens de seus pobres londrinos. E quando
confundirse assim com 0os objetos de sua atenção acabou
mar-se no profissional destas conversacdes? Desejar apenas chegando tentou
Tolstéi a uma trapaça e a um malogro...” Este texto é uma notável
que aqueles que foram atingidos não se afundem demais? ilustração das toorias psicanalíticas e notadamente kleinianas sobre os estados
maniaco-depressivos. No entanto, como veremos no que se segue, dois pontos
Fazer subscrições e números especiais? Ou então irmos constituem problemas nesta teoria: a mania é nelas apresentada mais frequen-
nés mesmos Provar um pouco, sermos um pouco alcoblatras, temente como tma reação ao estado depressivo, quando ela parece, ao conirdrio,
determiná-lo, pelo menos na estratura alcoólatra; por outro lado, a identificação
um pouco loucos, um pouco suicidas, um pouco guerrilheiros, é mais freqilentemente apresentada como uma reação & perda de objeto,
quando cla parece também determinar esta perda, provocá-la e mesmo “de-
apenas o bastante para aumentar a fissura, mas não para sejá-la”,
o passado composto não exprime absolutamente uma dis- vivido como um futuro anterior, com uma terrível precipi-
tância ou um acabamento. O momento presente é o do tação ainda aqui deste futuro composto, um efeito do efeito
verbo ter, enquanto que todo o ser é “passado” no outro que vai até 3 morte)5. Para os heróis de Fitzgerald, o
momento simultdneo, no momento da participação, da iden- alcoolismo é o proprio processo de demoligio enquanto
tificação do particípio. Mas que estranha tensão quase determina o efeito de fuga do passado: não somente do
insuportável, este amplexo, esta maneira pela qual o pre- passado sébrio de que eles se separaram (“Meu Deus,
sente envolve e investe, encerra outro momento. O pre- bébado durante dez anos”), mas não menos o passado
sente se fez circulo dé cristal ou de granito, em torno do préximo em que acabam de beber e o passado fantastico
centro mole, lava, vidro líquido ou pastoso. Entretanto, do primeiro efeito. Tudo se tornou igualmente Jonginguo e
esta tensão desata-se em proveito de outra coisa ainda. determina a necessidade de beber de novo, ou antes de ter
Pois pertence ao passado composto o tornar-se um j'ai-bu de novo bebido, para triunfar deste presente endurecido e
(eu tenho bebido). O momento presente não é mais o descolorido que subsiste só e significa a morte. É por isso
do efeito alcoólico, mas o do efeito do efeito. E agora o que o alcoolismo é exemplar. Pois este efeito-dlcool, muitos
outro momento compreende indiferentemente o passado outros acontecimentos podem produzi-lo à sua maneira: a
próximo (o momento em que eu bebia), o sistema das perda de dinheiro, a perda de amor, a perda da terra natal,
identificações imaginárias que este passado próximo encerra a perda do sucesso. FEles o produzem independentemente
e os elementos reais do passado sóbrio mais ou menos do álcool e de maneira exterior, mas eles se parecem com a
distanciado. Assim o endurecimento do presente mudou “safda” do 4lcool. O dinheiro, por exemplo, Fitzgerald o
completamente de sentido; o presente na sua dureza tornou- vive como um “eu fui rico”, que o separa tanto do momento
-se sem força e descolorido, não encerra mais nada e põe em que ele não o era ainda quanto do momento em que
igualmente à distância todos os aspectos do outro momento. ele se tornou rico e das identificações aos “verdadeiros ricos”
Dir-se-ia que o passado próximo, mas também o passado às quais ele se entregava entdo. Consideremos, por exem-
de identificações que se constituiu nele, e enfim o passado plo, a grande cena amorosa de Gatsby: no momento em
sóbrio que fornecia uma matéria, tudo isto fugiu rapida- que ele ama e é amado, Gatsby na sua espantosa sentimen-
mente, tudo isto está igualmente longe, mantido à distância talidade se conduz come um homem bébado. Ele endurece
por uma expansão generalizada deste presente descolorido, este presente com todas as suas forgas, e quer fazé-lo
pela nova rigidez deste novo presente em um deserto cres- encerrar a mais texna identificagdo, aquela que se faz com
um passado composto em que ele teria sido amado por uma
cente. Os passados compostos do primeiro efeito são subs-
tituídos pelo exclusivo j'ai-bu (eu tenho bebido) do segundo
mesma mulher, absolutamente, exclusivamente e sem parti-
efeito, em que o auxiliar presente não exprime mais do que lha (os cinco anos de auséncia como os dez anos de embria-
a distância infinita de todo particípio e de toda participação. guez). É neste cume da identificagdo — de que Fitzgerald
O endurecimento do presente (eu tenho) está agora em dizia: ele equivale “à morte de toda realização” — que
rTelação com um efeito de fuga do passado “bebido”. Tudo Gatsby se quebra como vidro, perde tudo, tanto seu amor
culmina em um has been. Este efeito de fuga do passado, préximo como seu antigo amor e seu amor fantdstico. O
esta perda do objeto
que dá ao alcoolismo um valor exemplar, entretanto, entre
em todos os sentidos, constitui o
aspecto depressivo do alcoolismo. E este efeito de fuga &, todos estes acontecimentos do mesmo tipo, é que o alcool
talvez, o que faz a maior força da obra de Fitzgerald, o € a0 mesmo tempo o amor e a perda do amor, o dinheiro
que ele exprimiu o mais profundamente. 5. Em Lowry, também o alcoolismo & inseparivel das identificações que
O curioso é que Fitzgerald não apresenta, ou o faz toma possivel e da faléncia destas ideotificacdes: O zomance perdido de
Lowry, em Ballast to the White Sea, tinha por tema a identificação e a chance
raramente, seus personagens bebendo ou procurando beber. de uma salvação por identificagdo: cf. Choix de Leitres, Denoel, p. 265 e ss.
Encontrariamos em todo ceso no futuro anterior uma precipitagio andloga
Fitzgerald não vive o alcoolismo sob a forma da falta e da âquela que vimos para o passado composto.
necessidade: talvez pudor, ou então ele pôde sempre beber, Em um artigo bem interessante, Guother Stein analisava os caracteres do
foturo anteríor; o foturo prolongado, como o passado composto, deixa de
ou então há várias formas de alcoolismo, um voltado para pertencer 20 homem. "“A oste tempo não convém mem mesmo mais a direção
específica do tempo, o Sentido positivo: ele se reduz o alguma coisa que não
seu passado mesmo o mais próximo. (Lowry ao con- Será mais futuro, a um Aion imrelevante para o cu; o homem certamente podo
trário... Mas, quando o alcoolismo é vivido sob esta ainda pensar e indicar a existéncia deste Aion, mes de
sem compreendê-lo e sem realizi-lo... O eu sereise converteu doravante em
uma maneira estéril,

forma aguda da necessidade, aparece uma deformação não um o gue serd, eu não o serel. À expressio positiva desta forma € o futuro
menos profunda do tempo;
anterior: eu terei sido” (“Patologia da_hberdade, ensaio sobre a não-identifi-
desta vez é todo futuro que é cação”, Rechercies Philosophiques, VI, 1936-1937).
ração revolucio-
e a perda do dinheiro, a terra natal e sua perda. Ele é, minam são convertidas em meios de explo
escre ve sobre este ponto est.ran,has pági
ao mesmo tempo, o objeto, a perda do objeto e a lei desta narios. Burroughs
e Saúde, nossa
perda em processo concertado de demolição (“obviamente”). nas que dão testemunho desta busca da grand o que se
“Imag inai que tudo
A questão de saber se a fissura pode evitar encarnar- maneira de ser piedosos: outro s cami-
cas é acess? vel por
pode atingir por vias quími mutar o
Metralhamento da sl_lperfíge para trans
-se, efetuar-se no corpo sob esta ou outra forma, não é
evidentemente justificável a partir de regras gerais. A nhos...” ;
apunhalamento dos corpos, ó psicodelia.
fissura continua sendo apenas uma palavra enquanto o corpo
não estiver comprometido e enquanto o fígado e o cérebro,
os órgãos, não apresentem estas linhas a partir das quais se
prediz o futuro e que profetizam por si mesmas. Se
perguntamos por que não bastaria a saúde, por que a fissura
é desejável é porque, talvez, nunca pensamos a não ser
por ela e sobre suas bordas e que tudo o que foi bom e
grande na humanidade cntra e sai por ela, em pessoas
prontas a se destruir a si mesmas e que é antes a morte
do que a saúde que se nos propõem. Haverá uma outra
saúde, como um corpo que sobrevive tão longe quanto
possível à sua própria cicatriz, como Lowry sonhando em
reescrever uma “Fissura” que acabaria bem e jamais renun-
ciando à idéia de uma reconquista vital? É verdade que
a fissura não é nada se não compromete o corpo, mas
ela não cessa menos de ser e de valer quando confunde
sua linha com a outra linha, no interior do corpo. Não
se pode dizê-lo de antemão, é preciso arriscar permanecendo
o mais tempo possivel, não perder de vista a grande saúde.
Não se apreende a verdade eterna do acontecimento a não
ser que o acontecimento se inscreva também na carne; mas
cada vez devemos duplicar esta efetuação dolorosa por uma
contra-efetuação que a limita, a representa, a transfigura.
É preciso acompanhar-se a si mesmo, primeiro para sobre-
viver, mas inclusive quando morremos. A contra-efetuação
não é nada, é a do bufio quando ela opera só e pretende
valer para o que terig podido acontecer. Mas ser o mimico
do que acontece efetivamente, duplicar a efetuação com uma
contra-efetuagdo, a identificagio com uma distdncia, tal o
ator verdadeiro ou o dangarino, é dar à verdade do aconte-
cimento a chance tinica de ndo se confundir com sua inevi-
tével efetuagdo, à fissura a chance de sobrevoar seu campo
de superficie incorporal sem se deter na quebradura de cada
corpo e a nós de irmos mais longe do que terfamos acredita-
do poder. Tanto quanto o acontecimento puro se aprisiona
para sempre na sua efetuação, a contra-efetuação o libera
sempre para outras vezes. Não podemos renunciar a espe-
ranga de que os efeitos da droga ou do álcool (suas “revela-
ções”) poderdo ser revividos e recuperados por si mesmos
na superficie do mundo, independentemente do uso das
substancias, se as técnicas de alienação social que o deter-
Vigesima Terceira Série:
Do Aion

Vimos desde o comego como se opunham duas leituras


do tempo, a de Cronos e a de Ajon: 1º) De acordo com
Cronos, só o presente existe no tempo. Passado, presente
e futuro não são trés dimensdes do tempo; só o presente
preenche o tempo, o passado e o futuro são duas dimensdes
relativas ao presente no tempo. É o mesmo que dizer que
o que é futuro ou passado com relação a um certo presente
(de uma certa extensdo e duragdo) faz parte de um presente
mais vasto, de uma maior extensdo ou duragdo. Há sempre
um mais vasto presente que absorve o passado ¢ o futuro.
A relatividade do passado e do futuro com relação ao pre-
sente provoca pois uma relatividade dos préprios presentes
uns com relagdo aos outros. O deus vive como presente o
que é futuro ou passado para mim, que vivo sobre presentes
mais limitados. Um encaixamento, um enrolamento de pre-
sentes relativos, com Deus por circulo extremo ou envelope
exterior, tal é Cronos. Sob inspiragdes estéicas, Boécio diz
que o presente divino complica ou compreende futuro e
passado 1.
29) O presente em Cronos é de alguma maneira cor-
poral. O presente é o tempo das misturas ou das incorpo-
ragdes, é o processo da propria incorporagio. Temperar,
temporalizar, é misturar. O presente mede a agdo dos cor-
pos ou das causas. O futuro e o passado sdo, antes, o que
resta de paixdo em um corpo. Mas, justamente, a paixdo
de um corpo remete à ação de um corpo mais poderoso.
Assim, o maior presente, o presente divino, é a grande mis-
tura, a unidade das causas corporais entre si. Ele mede a
atividade do periodo césmico em que tudo é simuitineo:
1. Botcro, Consolagdo da filosofie prosa 6.
ração revolucio-
e a perda do dinheiro, a terra natal e sua perda. Ele é, minam são convertidas em meios de explo
escre ve sobre este ponto est.ran,has pági
ao mesmo tempo, o objeto, a perda do objeto e a lei desta narios. Burroughs
e Saúde, nossa
perda em processo concertado de demolição (“obviamente”). nas que dão testemunho desta busca da grand o que se
“Imag inai que tudo
A questão de saber se a fissura pode evitar encarnar- maneira de ser piedosos: outro s cami-
cas é acess? vel por
pode atingir por vias quími mutar o
Metralhamento da sl_lperfíge para trans
-se, efetuar-se no corpo sob esta ou outra forma, não é
evidentemente justificável a partir de regras gerais. A nhos...” ;
apunhalamento dos corpos, ó psicodelia.
fissura continua sendo apenas uma palavra enquanto o corpo
não estiver comprometido e enquanto o fígado e o cérebro,
os órgãos, não apresentem estas linhas a partir das quais se
prediz o futuro e que profetizam por si mesmas. Se
perguntamos por que não bastaria a saúde, por que a fissura
é desejável é porque, talvez, nunca pensamos a não ser
por ela e sobre suas bordas e que tudo o que foi bom e
grande na humanidade cntra e sai por ela, em pessoas
prontas a se destruir a si mesmas e que é antes a morte
do que a saúde que se nos propõem. Haverá uma outra
saúde, como um corpo que sobrevive tão longe quanto
possível à sua própria cicatriz, como Lowry sonhando em
reescrever uma “Fissura” que acabaria bem e jamais renun-
ciando à idéia de uma reconquista vital? É verdade que
a fissura não é nada se não compromete o corpo, mas
ela não cessa menos de ser e de valer quando confunde
sua linha com a outra linha, no interior do corpo. Não
se pode dizê-lo de antemão, é preciso arriscar permanecendo
o mais tempo possivel, não perder de vista a grande saúde.
Não se apreende a verdade eterna do acontecimento a não
ser que o acontecimento se inscreva também na carne; mas
cada vez devemos duplicar esta efetuação dolorosa por uma
contra-efetuação que a limita, a representa, a transfigura.
É preciso acompanhar-se a si mesmo, primeiro para sobre-
viver, mas inclusive quando morremos. A contra-efetuação
não é nada, é a do bufio quando ela opera só e pretende
valer para o que terig podido acontecer. Mas ser o mimico
do que acontece efetivamente, duplicar a efetuação com uma
contra-efetuagdo, a identificagio com uma distdncia, tal o
ator verdadeiro ou o dangarino, é dar à verdade do aconte-
cimento a chance tinica de ndo se confundir com sua inevi-
tével efetuagdo, à fissura a chance de sobrevoar seu campo
de superficie incorporal sem se deter na quebradura de cada
corpo e a nós de irmos mais longe do que terfamos acredita-
do poder. Tanto quanto o acontecimento puro se aprisiona
para sempre na sua efetuação, a contra-efetuação o libera
sempre para outras vezes. Não podemos renunciar a espe-
ranga de que os efeitos da droga ou do álcool (suas “revela-
ções”) poderdo ser revividos e recuperados por si mesmos
na superficie do mundo, independentemente do uso das
substancias, se as técnicas de alienação social que o deter-
Vigesima Terceira Série:
Do Aion

Vimos desde o comego como se opunham duas leituras


do tempo, a de Cronos e a de Ajon: 1º) De acordo com
Cronos, só o presente existe no tempo. Passado, presente
e futuro não são trés dimensdes do tempo; só o presente
preenche o tempo, o passado e o futuro são duas dimensdes
relativas ao presente no tempo. É o mesmo que dizer que
o que é futuro ou passado com relação a um certo presente
(de uma certa extensdo e duragdo) faz parte de um presente
mais vasto, de uma maior extensdo ou duragdo. Há sempre
um mais vasto presente que absorve o passado ¢ o futuro.
A relatividade do passado e do futuro com relação ao pre-
sente provoca pois uma relatividade dos préprios presentes
uns com relagdo aos outros. O deus vive como presente o
que é futuro ou passado para mim, que vivo sobre presentes
mais limitados. Um encaixamento, um enrolamento de pre-
sentes relativos, com Deus por circulo extremo ou envelope
exterior, tal é Cronos. Sob inspiragdes estéicas, Boécio diz
que o presente divino complica ou compreende futuro e
passado 1.
29) O presente em Cronos é de alguma maneira cor-
poral. O presente é o tempo das misturas ou das incorpo-
ragdes, é o processo da propria incorporagio. Temperar,
temporalizar, é misturar. O presente mede a agdo dos cor-
pos ou das causas. O futuro e o passado sdo, antes, o que
resta de paixdo em um corpo. Mas, justamente, a paixdo
de um corpo remete à ação de um corpo mais poderoso.
Assim, o maior presente, o presente divino, é a grande mis-
tura, a unidade das causas corporais entre si. Ele mede a
atividade do periodo césmico em que tudo é simuitineo:
1. Botcro, Consolagdo da filosofie prosa 6.
Zeus é tanto Dia, como o A-través ou o que se mistura mulacros. O passado e o futuro como forgas desencadea-
, o
Incorporador 2. O maior presente nio é pois de forma das se vingam em um só e mesmo abismo que ameaga o
ne-
nhuma ilimitado: pertence ao prescnte delimitar, ser o limite presente e tudo o que existe. Vimos como Platdo exprimia
ou a medida da ação dos corpos, ainda que fosse este devir, no fim da segunda hipdtese do Parménides: poder
o maior
dos corpos ou a unidade de todas as causas (Cosmos). de esquivar o presente (pois ser presente seria ser e ndo
Mas
cle pode ser infinito sem ser ilimitado: circular no sentido mais devir). E, no entanto, Platio acrescenta que “esqui-
de que engloba todo o presente, ele recomega e mede um var o presente” é o que o devir não pode (pois cle se torna
novo periodo cósmico após o precedente, idéntico ao prece- agora e não pode saltar por cima do “agora”). Os doissão
dente. Ao movimento relativo pelo qual cada presente re- verdadeiros: a subversdo interna do presente no tempo, o
mete a um presente relativamente mais vasto, é preciso juntar tempo não tem sendo o presente para exprimi-la, precisa-
um movimento absoluto préprio a0 mais vasto presente, que mente porque ela é interna e profunda. A desforra do
se contrai e se dilata em profundidade para absorver ou futuro e do passado sobre o presente, Cronos deve ainda
restituir no jogo dos perfodos césmicos os presentes relativos exprimi-la em termos de presente, os Gnicos termos que ele
que ele envolve (abragar-embrasar). compreende e que o afetam. É a sua maneira prépria de
3º) Cronos é o movimento regulado dos presentes querer morrer. É pois ainda um presente terrificante, des-
vastos e profundos. Mas, justamente, de onde retira ele sua mesurado, que esquiva e subverte o outro, o bom presente.
medida? Os corpos que o preenchem tém suficiente unida- De mistura corporal, Cronos tornou-se corte profundo. É
de, sua mistura suficiente justica e perfeigdo, para que o neste sentido que as aventuras do presente se manifestaram
presente disponha assim de um principio de medida imanen- em Cronos e conforme aos dois aspectos do presente cronico,
te? Talvez ao nível do Zeus cosmico. Mas, e para os movimento absoluto e movimento relativo, presente global e
€Orpos a0 acaso e para cada mistura parcial? Não há uma presente parcial: com relação a si mesmo em profundidade,
perturbagdo fundamental do presente, isto €, um fundo que enquanto explode ou se contrai (movimento da esquizofre-
derruba e subverte toda medida, um devirlouco das pro- nia); e com relagdo a sua extensdo mais ou menos vasta, em
fundidades que se furta ao presente? E este algo de des- fungdo de um futuro e de um passado delirantes (movimento
medido é somente local e parcial ou então, Pouco à pouco, da mania depressiva). Cronos quer morrer, mas ja não é
não ganha ele o universo inteiro, fazendo reinar por toda dar Jugar a uma outra leitura do tempo?
parte sua mistura venenosa, monstruosa, subversão de Zeus
ou 1º) Segundo Aion, somente o passado e o futuro in-
do próprio Cronos? Não existe já nos estóicos esta sistem ou subsistem no tempo. Em lugar de um presente
dupla atitude face ao mundo, confiança e desconfiança, cor-
respondendo aos dois tipos de mistura, a branca mistura que que absorve o passado e o futuro, um futuro e um passado
conserva estendendo, mas também a mistura negra e confusa que dividem a cada instante o presente, que o subdividem
que altera? E nos Pensamentos de Marco Aurélio repercute ao infinito em passado e futuro, nos dois sentidos ao mesmo
tempo. Ou antes, é o instante sem espessura e sem extensio
freqitentemente a alternativa: será esta a boa ou a má mistu-
ra? Questão que não encontra
que subdivide cada presente em passado e futuro, em lugar
sua resposta senão na me-
dida em de presentes.vastos e espessos que compreendem uns com
que os dois termos acabam por ser indiferentes,
devendo o estatuto da virtude (isto é, da saúde) ser relação aos ouiros o futuro e o passado. Que diferenca há
buscado entre este Aion e o devir-louco das profundidades que der-
al%lures, em uma outra direção,em um
outro elemento — rubava já Cronos no seu préprio dominio? No comego
Aion contra Cronos3,
O devir-louco da profundidade é pois um mau Cronos deste estudo, podfamos fingir que os dois se prolongavam
que se opõe ao presente vivo do bom Cronos. estrejtamente: opunham-se ambos ao presente corporal e
Saturno ruge medido, tinham até mesmo poder de esquivar o presente,
no fundo de Zeus. O devir puro e desmesurado das quali-
dades ameaga de dentro a ordem dos corpos qualifi desenvolviam as mesmas contradigdes (da qualidade, da
cados. quantidade, da relagio, da modalidade). Quando muito,
Os corpos perderam sua medida e não são mais do que
si- havia entre eles uma mudanga de orientagio: com o Aion,
2. Cf Dibgenes Laércio, VII, 147, o devir-touco das profundidades subia à superficie, os simu-
. 3.
drovlarmente,
Mamco Avmério, Pensamentos, X1I, 14. E VI, lacros convertiam-se por sua vez em fantasmas, o corte pro-
em seu movimenté o asim
7: “No
que os clementos se movem. A virtudealto, a2âo segue 1b:

“ua 1ota 6 difícil de nenhuma dessas cadâncias; é alguma coisa de mais divino, fundo aparecia como fenda da superficie. Mas aprendemos
ífpíªãê.ºífm“ aqui acompreend er, mas enfim
dupla negação, tanto do elaciclose como
adianta e chegê no Fim”
de um conhecimento
que esta mudanga de orientagio, esta conquista da superficie,
implicava diferengas radicais sob todos os aspectos. É apro-
ximadamente a diferença entre a segunda e a terceira hipó- damenta a linguagem ou a expressio, isto é, a propriedade
tese <_io Parmênides, a do “agora” e a do “instante”. Não metafisica adquirida pelos sons de ter um sentido e secunda-
€ mais o futuro e o passado que subvertem o presente exis- riamente de significar, de manifestar, de designar, em lugar
tente, é o instante que perverte o presente em futuro e de pertencer aos corpos como qualidades fisicas. Tal é a
passado insistentes. A diferença essencial não é mais entre mais geral operação do sentido: é o sentido que faz existir
Cronos e Aion simplesmente, mas entre Aion das superfícies o que o exprime e, pura insisténcia, se faz desde entdo existir
e o conjunto de Cronos e do devir-louco das profundidades. no que o exprime. Pertence pois ao Aion, como meio dos
Entre os dois devires, da superficie e da profundidade, nio efeitos. de superficie ou dos acontecimentos, tragar uma
pode_mos nem mesmo dizer mais que há algo em comum, fronteira entre as coisas e as proposições: ele a traga com
esquivar o presente. Pois se a profundidade esquiva o pre- toda sua linha reta e sem esta fronteira os sons se abateriam
sente, é com toda a força de um “agora” que opde seu sobre os corpos, as proprias proposições ndo seriam “possi-
presente tresloucado 2o sábio presente da medida; e se a veis”. A linguagem é tornada possivel pela fronteira que a
superficie esquiva o presente, é com toda a poténcia de um separa das coisas, dos corpos e não menos daqueles que
“instante”, que distingue seu momento de todo presente falam, Podemos então retomar o detalhe da organizagdo
assinaldvel sobre ‘o qual cai e recai a divisdo. Nada sobe de superíície tal qual é determinada pelo Aion.
à superficic sem mudar de natureza. Aion não é mais de Em primeiro lugar, toda a linha do Aion é percorrida
ZeusA nem de Saturno, mas de Hércules. Enquanto Cronos pelo Instante, que não para de se deslocar sobre ela e faz
exprimia a ação dos corpos e a criação das qualidades cor- falta sempre em seu proprio lugar. Platão diz muito bem
porais, Aion é o lugar dos acontecimentos incorporais e dos que o instante é atopon, atdpico. Ele é a instancia paradoxal
atributos distintos das qualidades. Enquanto Cronos era ou o ponto aleatério, o ndo-senso de superfície ¢ a quase-
insepardvel dos corpos que o preenchiam como causas e causa, puro momento de abstragdo cujo papel é, primeiro,
matérias, Aion é povoado de efeitos que o habitam sem dividir ¢ subdividir todo presente nos dois sentidos ao mesmo
nunca preenché-lo. Enquanto Cronos era limitado e infini- tempo, em passado-futuro, sobre a linha do Aion. Em se-
to, Aion é ilimitado como o futuro e o passado, mas finito gundo lugar, o que o instante extrai assim do presente, como
como o instante. Enquanto Cronos era insepardvel da dos individuos e das pessoas que ocupam o presente, são
circularidade e dos acidentes desta circularidade como blo- as singularidades, os pontos singulares duas vezes projetados,
esta
queios ou precipitações, explosBes, desencaixes, endureci- uma vez no futuro, outra no passado, formando sob
mentos, Aion se estende em linha reta, ilimitada nos dois dupla equação os clementos constituintes do acontecimento
sepudos. Sempre já passado e eternamente ainda por vir, puro: & maneira de um saco que abandona seus esporios.
Aion ¢ a verdade eterna do tempo: pura forma vazia do simul-
Mas, em terceiro lugar, a linha reta de dupla direção
tempo, que se liberou de seu conteúdo corporal presente e os
tânea traga a fronteira entre os corpos © a linguagem,
por aí desenrolou seu circulo, se alonga em uma reta, talvez estados de coisas e as proposições. A linguagem ou sistema
tanto mais perigosa, mais labirintica, mais tortuosa por esta das proposições não existiria sem esta fronteira que a torna
razdo — este outro movimento de que falava Marco Aurélio, Eis pois que a linguagem não cessa de nascer, na
possivel.
aquele que não se faz nem no alto nem embaixo, nem cir- direção futura do Aion em que é fundada e como esperada,
o
cn}armenw, mas somente à superficie, o movimento da embora ela deva dizer também o passado, mas justamente
“virtude”... E se hd um querer-morrer também deste lado, que não cessam de
diz como aquele dos estados de coisas
é de uma maneira bem diferente.
aparecer e desaparecer na outra direção. Em suma, a linha
relacionada a estes dois contornos, que çla
. 2º) É este mundo novo, dos efeitos incorporais ou dos reta é agora
efeitos de superfície, que torna a linguagem possível. Pois separa mas também articula um ao outro como duas séries
é ele,_como veremos, que tira os sons de seu simples estado desenvolvíveis. Ela relaciona a elas ao mesmo tempo o
de ações e paixdes corporais; é ele que distingue a linguagem, ponto aleatório instantâneo que a percorre é os pontos
que a impede de se confundir com o barulho dos corpos, que singulares que aí se distribuem. Há pois duas faces, sempre
a abstrai de suas determinagdes orais-anais. Os aconteci- desiguais em desequilibrio, uma voltada para os estados de
mentos puros fundamentam a linguagem porque eles a espe- coisas, a outra voltada para as proposigbes. Mas elas não
Tam tanto quanto eles nos esperam e não tém existéncia pura, se deixam reduzir a isso. O acontecimento se relaciona aos
estados,
smgular', impessoal e pré-individual sendo na linguagem que estados de coisas, mas como atributo lógico destes
os exprime. É o expresso, na sua independéncia, que fun- completamente diferente de suas qualidades físicas, se bem
que ele lhes sobrevenha, neles se encarne ou neles se efetue. como o presente vasto ¢ profundo de Cropos: é o presente
O sentido é a mesma coisa que o acontecimento, mas desta espessura, o presente do ator, do dangarino ou do
sem
vez relacionado às proposicdes. E cle se relaciona às pro- mimico, puro “momento” perverso. É o presente da ope-
posições como seu exprimível ou seu expresso, completa- ragio pura ¢ não da incorporação. Não é o presente ~dx
mente distinto do que elas significam, do que elas manifestam subversio nem o da efetuagdo, mas da contra-efetuagio,
de se
e do que elas designam e mesmo de suas qualidades sonoras, que impede aquele de derrubar este, que impede este
embora a independência das qualidades sonoras relativamen- confundir com aquele e que vem redobra r a dobra.
te às coisas ou corpos seja unicamente assegurada pelo con-
junto desta organização do sentido-acontecimento. O con-
junto da organização nestes três momentos abstratos vai,
pois, do ponto à linha reta, da linha reta à superfície: O
ponto que traça a linha, a linha que faz fronteira, 2 superfície
que se desenvolve, se desdobra dos dois lados.
39) Muitos movimentos se cruzam, com scus mecanis-
mos frágeis e delicados: aquele pelo qual os corpos, estados
de coisas e misturas tomados em sua profundidade chegam
a produzir superfícies ideais ou malogram nesta produção;
aquele pelo qual, inversamente, os acontecimentos de super-
fície se efetuam no presente dos corpos, sob regras comple-
xas, aprisionando primeiro suas singularidades nos limites de
mundos, de indivíduos e de pessoas; mas também aquele
pelo qual o acontecimento implica algo de excessivo em
relação à sua efetuação, algo que revoluciona os mundos, os
indivíduos e as pessoas e os devolve à profundidade do fundo
que os trabalha e os dissolve. Assim a noção do presente
tem vários sentidos: o presente desmesurado, desencaixado,
como tempo da profundidade e da subversão; o presente
variável e medido como tempo da efetuação; e talvez ainda
um outro presente. Como, aliás, haveria uma efetuação
comensurável se um terceiro presente não o impedisse a cada
instante de cair na subversão e de se confundir com ela?
Sem dúvida, pareceria que o Aion não tem em absoluto
presente, pois que o instante não cessa nele de dividir em
futuro e passado. Mas não é senão uma aparéncia. O que
é excessivo no acontecimento é o que deve ser realizado, se
bem que não possa ser realizado ou efetuado sem ruina.
Entre os dois presentes de Cronos, o da subversio pelo
fundo ¢ o da efetuagdo nas formas, há um terceiro, deve
haver um terceiro pertencendo ao Aion. E, com efeito, o
instante como elemento paradoxal ou quase-causa que per-
corre toda a linha reta deve ser ele préprio representado.
É alids neste sentido que a representagdo pode envolver em
suas bordas uma expressdo, ainda que a expressdo cla pré-
pria seja de uma outra natureza e que o sdbio pode se
“identificar” à quase-causa, ainda que a quase-causa ela
propria faga falta à sua prépria identidade. Este presente
do Aion, que representa o instante, não é absolutamente
Vlgwªllllu WEVUI U WUIIV:

Da Comunicação
dos Acontecimentos

Uma das maiores audácias do.pensamenio estóico é a


Tuptura da relação causal: as causas são remetidas em pro-
fundidade a uma unidade que lhes é própria, e os efeitos
mantêm na superfície relações especificas de um outro tipo.
O destino é primeiramente a unidade ou o laço das causas
físicas entre si; os efeitos incorporais são evidentemente sub-
metidos ao destino, na medida em que são o efeito destas
causas. Mas na medida em que diferem por natureza destas
causas, entram uns com os outros em relações de quase-
causalidade e em conjunto entram em relação com uma
quase-causa ela própria incorporal, que lhes assegura uma
independência muito especial, não exatamente com relação
ao - destino, mas com relação à necessidade que deveria
normalmente decorrer do destino. O paradoxo estóico é
afirmar o destino, mas negar a necessidade!, É que o
sábio é livre de duas maneiras, de conformidade com os dois
pólos da moral: uma vez porque sua alma pode atingir a
interioridade das causas físicas perfeitas, uma outra porque
seu espírito pode jogar com relações muito especiais que se
estabelecem entre os efeitos em um elemento de pura exte-
rioridade. Dir-se-ia que as causas corporais são inseparáveis
de uma forma de interioridade, mas os efeitos incorporais,
de uma forma de exterioridade. De um lado, os aconteci-
mentos-efeitos têm realmente com suas causas físicas uma
relação de causalidade, mas esta relação não é de necessida-
de, é de expressão; de outro lado, têm entre si ou com sua
quase-causa ideal uma relação que não é mesmo mais de
causalidade, mas ainda e somente de expressão.
A questão torna-se: quais são estas relações expressivas
dos acontecimentos entre si? Entre acontecimentos parecem
1. Tema geral do De Fato de Cicero.
se formar relações extrínsecas de compatibilidade e de in (envigorar). Entre estas duas determinagdes, cada
vigor
oon.lpatibxlidade silenciosas, de conjunção e de disjunção, com sua vantagem, hd, primeiramente, uma relagdo de
muito difíceis de apreciar. Em virtude de que um awn(e: incompatibilidade primeira, evenemencial¥, que a causali-
cimento é compatível ou incompatível com outro? Não dade fisica não faz mais do que inscrever secundariamente
podemos nos servir da causalidade, uma vez que se trata de na profundidade do corpo e que a contradigdo lógica não
do do con-
uma 'relação dos efeitos entre si. E o que faz um destino faz mais do que traduzir, em seguida, no conteú
suma, as relaçõ es dos aconte ciment os entre si, do
ao nível dos acontecimentos, o que faz com que um acon- ceito. Em
tecimento repita outro apesar de toda sua diferença, o que ponto de vista da quase-causalidade ideal ou noemática, ex-
faz com que uma vida seja composta de um só e mesmo primem, em primeiro lugar, conseqiiéncias não-causais, com-
Acontecimento, apesar de toda a variedade daquilo que lhe patibilidades ou incompatibilidades alogicas. A forga dos
ocorre, que seja atravessada por uma só e mesma fissura, Estéicos foi engaja r-se nesta via: de acordo com que crité-
inconfata-
que toque uma só e mesma melodia em todos os tons possi- rios acontecimentos são copulata, confatalia (ou
veis com todas as palavras possíveis, não são relações de Aqui ainda a astrol ogia foi
lia), conjuncta ou disjuncta?
causa e efeito, mas um conjunto de correspondências não- talvez a primeira grande tentativa por estabelecer uma teoria
causais, f.ormando um sistema de ecos, de retomadas e de destas incompatibilidades alógicas e destas correspondéncias
ressonéncias, um sistema de signos, em suma, uma quase- não-causais.
causalidade expressiva, ndo uma causalidade necessitante. No entanto, parece mesmo, a partir dos textos parciais
Quandc_: Crisipo reclama a transformagdo das proposigdes
e decepcionantes que nos restam, que os Estóicos não tenham
hlPOtéthaS em conjuntivas e disjuntivas, mostra muito bem podido conjurar a dupla tentação de voltar à simple
s causa-
a uppossibi]idade para os acontecimentos de exprimirem suas lidade fisica ou à contradição lógica. O primei ro tedrico
ro grande
das incompatibilidades alógicas, e por isto 0 primei
conjungdes e disjungdes em termos de causalidade bruta 2.
. Será preciso então invocar a identidade é a contradição?
tebrico do acontecimento, foi Leibniz. Pois o que ele chama
r ao idén-
de compossivel e incompossivel ndo se deixa reduzi
Do!s acontecimentos seriam incompatíveis porque contradi-
tórios? Mas não é aplicar aos acontecimentos regras que soment e o possiv el e o
tico e ao contraditério, que regem a
valem somente para os conceitos, os predicados e as classes? A compos sibili dade não supõe nem mesmo
impossível.
Mesmo a respeito da proposição hipotética (se faz dia, está dual ou môna-
inerência dos predicados em um sujeito indivi
* claro), os Estóicos observam que a contradição não pode ser
da. É o inverso , e soment e são determ inados como predi-
definida em um só nível, mas entre o próprio principio e a em a aconte cimentos
cados inerentes aqueles que correspond
nçgação da conseqiiência (se faz dia, não está claro). Esta r
em primeiro lugar compossíveis (a mônada de Adão pecado
diferença de nível na contradição, nós o vimos, faz com que forma predic ativa senão os aconte ciment os
não contém sob
esta resulte sempre de um processo de uma outra natureza. compossíveis com o pecado de Adão).
futuros e passados
Os acontecimentos ndo são como os conceitos: é sua con- viva consciência da anterioridade e
Leibniz tem, pois, uma
tl'ªd.l'ǪO suposta (manifestada no conceito) que resulta de
da originalidade do acontecimento com relação ao predica-
sua incompatibilidade e não o inverso. Diz-se, por exemplo, compossibilidade deve ser definida de uma maneira
do. A
géncia das
original, a um nivel pré-individual, pela conver
que uma espécie de borboleta ndo pode ser, a0 mesmo tem-
po, cinzenta e vigorosa: ora os representantes sio cinzentos es de aconte ciment os es-
séries que formam as singularidad
¢ fracos, ora vigorosos e negros?. Podemos sempre registrar ordind rias. A incomp ossibi lidade
tendendo-se sobre linhas
um mecanismo causal fisico que explica esta incompatibili- outro
deve ser definida pela divergéncia de tais séries: se um
d?de, por cxemplo, um hormônio de que dependeria o pre- difere nte daquel e que conhe cemos é incomp ossive l
Sextus
dicado cinzento, mas que amoleceria; enfraqueceria a classe deria a uma singul a-
com nosso mundo é porque ele respon
obtidas
ridade cuja séric divergiria das séries de nosso mundo
cor_respondente. E podemos sob esta condigdo causal con-
cluir por uma contradi¢do lógica entre cinzento e vigoroso. de Leibniz etc., que
em torno de Addo, de Judas, de Cristo, o
Mas se isolamos os acontecimentos puros, vemos que o
conhecemos. Dois acontecimentos são compossiveis quand
acinzentar não é menos positivo que o enegrecer: cle exprime singularidades
as séries que se organizam em torno de suas
um aumento de seguranca (esconder-se, confundir-se com o outras em todos as diregd es, incom-
se prolongam umas às sin-
tronco de árvore), tanto quanto o enegrecer um aumento de
possiveis quando as séries divergem na vizinhanga das
2. De fato, 8. fatual por ser de uso
mao,ªp. G, Gsonces CancuImEM, Le Normal et le pathologique, PUF., * Conservamos o termo evenemencial em vez de
comente nos estudos filosóficos. (N. do E)
glxlaxidads,s componentes. AÀ convergéncia e a divergéncia
sdo relagSes completamente revelar a natureza de sua diferenca seguindo a disténcia que
originais que cobrem o rico do- lhe corresponde. A idéia de distincia positiva é topológica
minio das compatibilidades e incompatibilidades alégicas c
com isso formam uma peça ¢ de superficie e exclui toda profundidade ou toda elevação
essencial da teoria do sentido. que reuniriam o negativo com a identidade. Nietzsche da
Mas _desta regra de incompossibilidade, Leibniz se serve
o exemplo de um tal procedimento, que não deve em caso
para excluul 0s acontecimentos uns dos outros: da divergên
- algum ser confundido com não se sabe que identidade dos
cia ou da disjunção, ele faz um uso negativo ou de exclusão
. contrdrios (como torta de creme da filosofia espiritualista e
Orfl, isto não é justificado senão na medida em
que os acon- dolorista), Nietzsche nos exorta a viver a saúde e a doenga
tecimentos j4 são apreendidos sob a
hipétese de um Deus de tal maneira que a saúde seja um ponto de vista vivo
que calcula e escolhe, do ponto de vista de
sua efetuagdo em sobre a doenga e a doenga um ponto de vista vivo sobre a
mundo_s ou indivíduos distintos. Não ¢,
em absoluto, a mes- satide. Fazer da doenga uma exploragio da saúde, da saide
in⪠lcmsz_z se considerarmos os acontecimentos
Puros o jogo uma investigagio da doenga: “Observar enquanto doente
eal cujo principio Leibniz não pdde apreen: conceitos mais sadios, valores mais sdos, depois, inversamen-
que estava'pelas exigéncias i i
da te%logía.p Poigeràelsªpâgg te, do alto de uma vida rica, superabundante e segura de si,
ponto de vista, a divergência das séries ou a áísjunção dos mergulhar os olhares no trabalho secreto do instinto da
membros .(membra disjuncta) cessam de ser Tegras negativas decadéncia, eis a pritica à qual eu me adestrei mais longa-
de e‘xcl}!saq segundo as quais os acontecimentos são incom- mente, eis o que faz minha experiéncia particular e em que
Ppossivels, incompativeis. A divergéncia, fui aprovado como mestre, se é que existe alguma matéria
a disjungio são,
ao conu:áno, afirmadas como tais, Mas, em que o seja. Agora sei a arte de inverter as perspecti-
o que quer dizer
isso, a divergência ou a disjunção como vas...”5 Não identificamos os contrarios, afirmamos toda
objetos de afirmação?
Em regra geral, dqas coisas não sio sua distdncia, mas como o que os relaciona um ao outro. A
simultaneamente afimm‘-
dqs sendo na medida em que sua diferenga saúde afirma a doenga quando ela faz de sua distincia com
é negada, supri-
mida de dentro, mesmo se o nivel desta a doenga um objeto de afirmagdo. A distancia €, na medida
supressao é supos-
tamente incumbido de regulamentar a Produção da diferenç de um braço, a afirmação daquilo que ela distancia. Não
tanto quanto seu desvanecimento. a
Sem dúvida, a identidade é precisamente a Grande Saúde (ou a Gaia Ciéncia), este
mioéaia da indiferenca, mas é geralmente pela identida procedimento que faz da saúde uma avaliagdo da doenga e
que os opostos são afirmados a0 mesmo tempo, de
quer apro- da doenga uma avaliagdo da saúde? O que permite a
fundemos um dos opostos para af encontrar Nietzsche fazer a experiéncia de uma saúde superior, no
o outro,. quer
pfOcedamOs a uma sintese dos dois. Falamos, momento mesmo em que estd doente. Inversamente, não é
ao contrá-
Tio, de_ uma operação a partir da qual duas coisas quando está doente que perde a saúde, mas quando não pode
ou duas
dstermlpag(‘)es sdo afirmadas por sua diferenca, mais afirmar a distdncia, quando não pode mais por sua
isto 4, não
são ob‘etgs de afirmagdo simultinea senão na medida saúde fazer da doenga um ponto de vista sobre a saúde
em
que sua gxfereuga é ela prépria afirmada, ela prépria (entdo, como dizem os Estóicos, o papel terminou, a peça
afirma-
tiva. Não se trata mais, em absoluto, de uma identida acabou). Ponto de vista não significa um juizo teérico. O
de
dos contrarios, como tal inseparavel ainda de um movime “procedimento” é a vida mesma. Já Leibniz nos ensinara
nto
do _pegativo e da exclusão*. Trata-se de uma distincia que não há pontos de vista sobre as coisas, mas que as coisas,
positiva dos diferentes: não mais identificar dois contrari os seres, eram pontos de vista. Só que submetia os pontos
os
a0 mesmo, mas afirmar sua distincia como o que os rela- de vista a regras exclusivas tais que cada um não se abria
clona um 20 outro enquanto “diferentes”. A idéia de uma sobre os outros senfio na medida em que convergiam: os
disténcia positiva enquanto distincia (e não distdncia anu- pontos de vista sobre a mesma cidade. Com Nietzsche, ao
ladaou vencida) parece-nos o essencial, porque ela permite contrério, o ponto de vista é aberto sobre uma divergéncia
5ned1r os contrdrios por sua diferenca finita em lugar de que ele afirma: é uma outra cidade que corresponde a cada
igualar a diferenga a uma contrariedade desmedida e a con- ponto de vista, cada ponto de vista é uma outra cidade, as
trariedade a uma identidade ela prépria infinita. Nio é a cidades não sendo unidas sendo por sua distdncia e não
diferenga que deve “ir até” à contradigiio, como pensa Hegel ressoando sendo pela divergéneia de suas séries, de suas
no seu voto de acolher o negativo, é a contradição que deve casas e de suas ruas. E sempre uma outra cidade pa cidade.
Cada termo torna-se um meio de ir até ao fim do outro,
o ot
4. Sobre oAPIRA
papel daS8 exclusão ¢ da expulsão, of. Hegel, capino sobre
exclusãe

5. Nmmzscuz, Ecce Homo. Gallimard, trad. Vialatte, p. 20.


seguindo toda sua distância. A perspectiva —
perspecti- o dição de continuidade. Ora, já todo o sentido das palavras
vismo — de Nietzsche é uma arte
mais profunda que o esotéricas era o de voltar atrás: a disjunção tornada síntese
ponto de vista de Leibniz; pois a diver
géncia cessa de ser introduzia por toda parte suas ramificações, tanto que a
um prmcíp:o de exclusão, a disjunção
deixa de ser um meio conjunção coordenava já globalmente séries divergentes,
de separação,o incompossível é agora
um meio de comuni- heterogêneas e disparatadas e que, no detalhe, a conexão
cação.
. _Nao que a disjunção seja reduzida
contraía já uma multidão de séries divergentes na aparência
a uma simples con- sucessiva de uma só.
junção. Distinguem-se três espécies de síntese:
e a síntes É uma nova razão para distinguir o devir das profun-
oonecuya (ge. -, então) que recai sobre
a construgio de didades e o Aion das superficies. Pois ambos, à primeira
uma só séx:xe, a sintese conjuntiva(e),
como procedimento vista, pareciam dissolver a identidade de cada coisa no seio
de construção de séries convergentes; a sintes
e disjuntiva(ou) da identidade infinita como identidade dos contrários; e, de
que reparte as séries divergentes. Os conexa, os conjuncta, todos os pontos de vista, quantidade, qualidade, relação,
os dx.vluncta._ Mas, justamente, toda
a questão é de sabe;
em que cnqd.lgfies a disjunção é uma verda modalidade, os contrários pareciam se esposar em superfície
deira sintese e não tanto quanto em profundidade e ter o mesmo sentido não
um procedimento de análise que se contenta
em excluir menos que o mesmo infra-sentido. Mas, uma vez majs,
predicados de uma coisa em virtude da ident
idade do seu tudo muda de natureza elevando-se à superfície. E é preciso
conceito (uso negativo, limitativo ou exclusivo
A resposta é dada na medida em que a divergênci
da disjunção)
. distinguir duas maneiras pelas quais a identidade pessoal é
a ou o perdida, duas maneiras pelas quais a contradição se desen-
deseentra_mento determinados pela disjunção torna
m-se obje- volve. Em profundidade, é pela identidade infinita que os
tos de afirmação como tais. A disjunção não é, em absolu-
to, reduzida a uma conjunção; ela continua contrários comunicam e que a identidade de cada um se
sendo disjunção acha rompida, cindida: tanto que cada termo é ao mesmo
uma vez que recai e continua recaindo sobre uma
divergéncia tempo o momento e o todo, a parte, a relação e o todo,
enquanto tal. Mas esta divergéncia é afirm
ada de modo o eu, o mundo e Deus, o sujeito, a cópula e o predicado.
que o ou torna-se ele préprio afirmação pura.
Em lugar Mas na superfície onde não se desdobram a não ser os
deA um certo número de predicados
serem excluidos de uma acontecimentos infinitivos, as coisas se passam diferentemen-
coisa em vu_-tufie da identidade de sen
conceito, cada “coisa” te: cada um comunica com o outro pelo cardter positivo de
se abre ao infinito dos predicados pelos quais
ela passa, ao sua distância, pelo caráter afirmativo da disjunção, tanto
mesmo tempo em que ela perde seu centro
, isto é, "sua
1dcn§1dade como conceito ou como que o eu se confunde com esta própria disjunção que libera
eus. A excl\lsa'u; dos para fora dele, que põe fora dele as séries divergentes como
pr_edu:ados se substitui a comunicação dos acont
mecs.qual ecimentos tantas singularidades impessoais e pré-individuais. Tal é já
era o procedimento desta disju
afirmativa: ngdo sintética a contra-efetuação: distância infinitiva, em lugar de identi-
consiste na ereção de uma instância parad
ponto glearono com duas faces oxal dade infinita. Tudo se faz por ressonância dos disparates,
fmpares, que percorre aé
séries r'ilvetgenws como divergentes
e as faz ressoar Por sua
ponto de vista sobre o ponto de vista, deslocamento da
dlSÍâflCllª, na sua distincia. Assim, perspectiva, diferenciação da diferenga e não por identidade
o centro ideal de con-
vergência é Por natureza perpetuamente dos contrérios. É verdade que a forma do eu assegura
descentrado, não
Serve mais senão para afirmar a diver ordinariamente a conexdo de uma série, a forma do mundo,
gência. Eis po’r que
pareceu que um caminho esotérico, a convergéncia das séries prolongdveis e continuas e que a
excentrado, abria-se a
nós: completamente diferente forma de Deus, como Kant viu muito bem, assegura a dis-
do caminho ordindrio, Pois
ol:dmflnamente a disjunção, junção tomada no seu uso exclusivo ou limitativo. Mas,
para se falar com propriedade,
não ¢ uma ‘sintese, mas somente uma quando a disjunção acede ao principio que lhe dá um valor
a andlise reguladora
servigo das sinteses conjuntivas, pois separ sintético e afirmativo nela mesma, o eu, o mundo e Deus
a umas das outras
as séries ndo-convergentes; ¢ cada sintes conhecem uma morte comum, em proveito das séries diver-
e conjuntiva, por
sua vez, tende ela própria a se subordinar gentes enquanto tais, que transbordam agora de toda exclu-
sintese de cone- são, toda conjunção, toda conexão. É a forca de Klossowski
Xao, uma vez que organiza as séries conve
rgentes sobre as ter mostrado como as trés formas tinham sua sorte ligada,
quass recai em prolongamento umas das outras
sob uma con- não por transformação dialética ou identidade dos contrarios,
6. Sobre as liçõe s la mas por dissipação comum na superficie das coisas. Se o
afirmátiva mudando qeiSÕes ;g_“ so e se torma uma sínteso
eu é o principio de manifestagdo com relação à proposição,
vigesima Quinta Serie:
o mundo é o da designação, Deus, o da significação.
o sentido expresso como acontecimento é de uma outra na-
Mas
Da Univocidade
tureza, ele que emana do não-senso como da instância para-
doxal sempre deslocada, do centro excêntrico eternamente
descentrado, puro signo cuja coerência exclui somente, mas
supremamente, a coeréncia do eu, a do mundo e a de Deus 7.
Esta quase-causa, este não-senso de superfície que percorre
o divergente como tal, este ponto aleatório que circula atra-
vés das singularidades, que as emite como pré-individuais e
impessoais, ndo deixa subsistir, ndo suporta que subsista
Deus como individualidade originria, nem o eu como Pes-
soa, nem o mundo como elemento do eu e produto de Deus.
A divergéncia das séries afirmadas forma um “caosmos” e
ndo mais um mundo; o ponto aleatéric que os percorre
forma um contra-eu e não mais um eu; a disjungdo posta
como sintese troca seu principjo teológico contra um princi-
pio diabélico. Este centro descentrado € que traga entre
as séries e para todas as disjungdes a impiedosa linha reta
caminho,
do Aion, isto é, a distincia em que se alinham os despojos Parece que o nosso problema, no decorrer do
do eu, do mundo e de Deus: grande Cafion do mundo, fenda mudou completamente. Perguativamos qual era a natureza
a§ entre
do eu, desmembramento divino. Assim, hd sobre a linha das compatibilidades e das incompatibilidades al§g\c
reta um eterno retorno como o mais terrivel labirinto de que Mas, na medida em que a dfl{ef genqa é
acontecimentos.
falava Borges, muito diferente do retorno circular ou mono- afirma da, em que a disjun ção torna- se síntese , positiv a, pare-
centrado de Cronos: eterno retorno que não é mais o dos mes!:uo co,nf.rªnqs, são cqm—
ce que todos os acontecimentos,
individuos, das pesscas e dos mundos, mas o dos aconteci- patíveis entre si e que se “entre-exprimem”. O incompatível
mentos puros que o instante deslocado sobre a linha não não nasce senão com os indiví duos, as pessoa s e os mundos
cessa de dividir em ji passados e ainda por vir. Mais nada em que os acontecimentos se efetuam, mas não entre os
subsiste além do Acontecimento, o Acontecimento só Even- próprios acontecimentos ou suas singulagdªdef acósmicas,
tum tantum para todos os contririos, que comunica consigo impessoais e pré-individuais. O incompatível não está entre
por sua propria distdncia, ressoando através de todas suas dois acontecimentos, mas entre um acontecimento e o mundo
disjunções. ou o indivíduo que efetuam um outro acf:ntecimçnto como
divergente. Aí existe alguma coisa que não se deixa reduz.l.r
a uma contradição lógica entre predicados e que é, no
entanto, uma incompatibilidade, mas uma incompatibilidade
como uma incompatibilidade, de _“h\_xmur” à qual
alógica,
devemos aplicar os critérios originais de Leibniz. A pessoa,
tal como a definimos na sua difere nça com o indiví duo,
pretende manejar com ironia estas íncompatibilidades como
tais, precisamente porque são alógicas. E, de uma outra
maneira, vimos como as palavras-val ises expri miam sentidos
todos compativeis, ramificiveis e ressoa ntes entre_sl‘ do
ponto de vista do léxico, mas entravam em incompatibilida-
des com esta ou aquela forma sintética. .
7. Cf Apêndico IN. Klossowski fala deste “pensamento tão perfeita- saber como o indivi duo poderi a
mente coerente que me exclui no instante mesma em que o penso” (“Esqueci- O problema é pois
Tmento ¢ anamnese na experiência Yivida do eterno retorno do mesmo”. Níerzs ultrapassar sua forma ¢ seu laço sintdtico com um mundo
che, Cabiers de Royaumont, cd, de Minuit, p. 234). Cf. também Posfácio às
Leis da hospitalidade. Klossowski desenvelve nestos tertos uma teoria do sigoo, para atingir à universal comunicação d(_)s gcnntecunent?s,
isto é, a afirmação de uma síntese disjuntiva para al ém
do sentido e do nãosentido e uma interpretação profundamente original do
eterno retormo nietzschiano, concebido como potência excêntrica de afirmar
a divergência e à disjunção, que não deixa subsistir a identidade do eu nem não somente das contradições lógicas, mas mesmo das
a do mundo, nem a de Deus.
incompatibilidades alógicas. Seria preciso que o individuo árvore, percorre toda a dístâuc:xa com o envígon-zr'do negro
se apreendesse a si mesmo como acontecimento. E que e faz ressoar o outro acontecimento como indivíduo, mas
© acontecimento que se efetua nele fosse por ele apreendido no seu próprio indivíduo como ªCOntÉClanÍU,. como caso
da mesma forma como um outro indivíduo nele enxertado. fortuito. Meu amor é uma exploração da dx'stâncxa, um
Então, este acontecimento, ele não o compreenderia,
não o longo percurso que afirma meu .ónÉlo pelo amigo em um
desejaria, não o representaria sem compreender e
querer outro mundo e em um outro mquuo e faz ressoar uma
também todos os outros acontecimentos como indivíduos, na outra as séries bifurcantes e ramificadas — solução go
sem representar todos os outros individuos como aconteci- humor, completamente diferente.da ironia roméntica 'osª
mentos. Cada indivíduo seria como um espelho para a pessoa ainda fundada sobre a identidade dos contrários.
condensação das singularidades, cada mundo uma distância “Você chega à minha casa, mas em um dos passadosop?;s!:—
no espelho. Tal é o sentido dltimo da contra-efetuação. veis, você é meu injmigo, em outro meu amlgcá. e futurosr
Mas, mais ainda, é a descoberta nietzschiana do indivíduo po bifurca perpetuamente em direção a inumeraveis 1 ! ma;
como caso fortuito, tal qual é retomada e reencontrada por em um deles eu sou seu inimigo. .. O futuro já exist ee "
Klossowski em uma relação essencial com o eterno retorn
o: eu sou seu amigo. . Ele me v_oltpu as costas u%ª xâ'Aon;xr:x e:
assim “as veementes oscilações que revolucionam um indivi- eu preparara meu revólver, atirei com um cuidado
duo enquanto só procura seu próprio centro e não vê o cir- 2
ol}w}oj
culo de que faz parte, pois se estas oscilações o revolucionam mo A filosofia se confunde com a ontologia, mas a
é que cada qual responde a uma individualidade outra da a uuivocidgde do ser (a anal?agé: g
gia se confunde com
que ele acredita ser, do ponto de vista do centro não en- sempre uma visão teolóãica, gaoelflx)losóíc:;ni Í'?)ªcgdade -
contrével; dai, que uma identidade é essencialmente fortuita s, do mundo e do . : €
€ que uma série de individualidades deva ser percorrida por ígí"?lªãso (sifpup;:a,que haja um só & mesmo ser: ao mdn:zz;ggs,
widos
cada uma, para que a fortuidade desta ou daquela as torpe os existentes são múltiplos e diferentes, sempre pro
todas mecessrias” !. Não elevamos ao infinito qualidades por uma sintese disjuntiva , eles proprios disjuntos e lj;çêª
contririas para afirmar sua identidade; elevamos cada acon- gentes, membra disjuncta. A umvocndz,ide do ser“mgl:; dlo”
A
tecimento a poténcia do eterno retorno para que o individuo, que o ser é Voz, que ele se diz em um só e mesmod‘ se:io
nascido daquilo que ocorre, afirme sua distdncia de todo de que sc diz. Aqu119 de que se ‘azra tudà
de tudo aquilo
outro acontccimento e, afirmando-a, siga-a e espose-a, pas- o mesmo. Mas ele é o mesmo p n
em absoluto,
sando por todos os outros individuos implicados pelos outros aquilo de que se diz. Ele ocorre, pois, como um aconmais
acontecimentos em
e dela extraia um único Acontecimento que mento único para tudo o que ocorre as coisas
dis:
não é senão ele mesmo de novo ou a universal liberdade. diversas, Eventum tantum para todos os acomecclgum
O eterno retorno ndo é uma teoria das qualidades e de suas forma extrema para todas as formas que permanc em g
transformagBes circulares, mas dos acontecimentos puros que fazem repercutir e ramificar a s
e juntas nela, mas
de sua condensagdo linear ou superficial. Assim, A univocidade do ser se confunde com º ete?n "
o eterno junção.
retorno guarda um sentido seletivo e permanece a mais al_ta afumaçao.. o e
ligado a sitivo da sintese disjuntiva,
uma incompatibilidade, precisamente aquela que ele apre- retorno em pessoa, ou — COMO o Vimos para o jogo I "
senta com as formas que impedem sua constituigio e seu — a afirmação do acaso em uma 'vez, o único lançar pars
funcionamento. Contra-efetuando cada acontecimento, o todos os lances, um só Ser para todas as formasfe :a?nexa:
ator-dangarino extrai o acontecimento puro que comunica uma só insisténcia para tudo o que existe, um só fan s
com todos os outros e se volta sobre si mesmo através de para todos os vivos, uma só voz para toflo o n%mor. e
:
todos os outros, com todos os outros. Ele faz da disjunção as gotas do mar. O erro seria confundir a u{uvof:ldaded o
uma síntese que afirma o disjunto como tal e faz ressoar ser enquanto ele se diz, com uma pseudo-univocidade sa—
cada série na outra, cada uma voltando em si pois que quilo de que ele se diz. Mas, da, mesma forma, se o Ser
a
outra volta nela e voltando para fora de si quando a outra não se diz sem ocorrer, se o Ser é o único Aoont_zcm_lenm
volta em si: explorar todas as disténcias, mas sobre uma mes-
em que todos os acontecimentos comunicam, a umvocldã;*lze
ma linha e correr muito depressa para ficar no mesmo lugar. remete ao mesmo tempo ao que ocorre e ao que se diz.
A borboleta cinza compreende tanto o acontecimento escon- A univocidade significa que é a mesma coisa que o:ª;)rrede
der-se que, ficando no mesmo lugar colada no tronco da que se diz: o atribuível de todos os corpos ou estados de
1: Krossowsa. “La Période turinoise de Nitusche”. L'Ephémire, mº 5. 2. Bonces. Op. cit. pp. 130-134.
coisa
¢ s é o o exprimívelv deI todas as Proposigiçõ:
cidade sxggxfigea 2 identidade do des. AÀ univi
Vigésima Sexta Série:
expresso lingiifstico: aconteciment
atributo noemitico e dnlí
o e sentido, Assim ela
Da Linguagem

Puro dizer e purouro : acontecim: ento, a univ


contato a superficie interior da Ívoci
ocidade põôs
linguagem (insistêncig)ec:g

São os acontecimentos que tornam a linguagem possível.


Mas tornar possível não significa fazer começar. Começa-
aliquid para2 o que se passa e o que mos sempre na ordem da palavra, mas não na da linguagem,
se diz;
i um só e mesmo
Ser para o impossível, o possivel e o em que tudo deve ser dado simultaneamente, em um golpe
real.
único. Há sempre alguém que começa a falar; aquele que
fala é o manifestante; aquilo de que se fala é o designado;
o que se diz são as significações. O acontecimento não é
nada disto: ele não fala maisdo que dele se fala ou do que
se o diz. E, no entanto, ele pertence de tal forma à lingua-
gem, habita-a tanto que não existe fora das proposições que
o exprimem. Mas ele não se confunde com elas, o expres-
so não se confunde com a expressão. Não lhe preexiste,
mas lhe pré-insiste, assim, the dá fundamento e condição.
Tornar a linguagem possível significa isto: fazer com que
08 sons não se confundam com as qualidades somoras das
coisas, com o burburinho dos corpos, com suas ações e
paixões. O que torna a linguagem possível é o que separa
os sons dos corpos é os organiza em proposições, torna-os
livres para a função expressiva. É sempre uma boca que
fala; mas o som cessou de ser o ruído de um corpo que
come, pura oralidade, para tornar-se a manifestação de um
sujeito que se exprime. É sempre dos corpos e de suas
misturas que falamos, mas os sons cessaram de ser qualida-
des atinentes a estes corpos para entrar com eles em uma
nova relação, a de designação e exprimir este poder de falar
mento,3. ef. Sobre a importâncis
B. Groethooí ncia do ” “tempo vazio” ” na e de ser falado. Ora, a designação e a manifestagdo não
losoptiaues, V, 1935-1936): — cIddo TaconneBesia du elaboração do aconteci-
temps” (Recherehes phi” fundam a linguagem, clas ndo se tornam possiveis sendo
'que
o cidade s do estava o j nm IO o probl com ela. Elas supSem a expressdo. A expressdo se funda
Tnivo éma da linguagem em função d no acontecimento como entidade do exprimivel ou do ex-
Buns Escoto. presso. O que torna a linguagem possivel i-
mento, enquanto não se confunde, nem com a proposição
Ue o exprime, nem com o estado daquele que a pronuncia, que não constitui um circulo de convergéncia sendo para o
nem com o estado de coisas designado pela proposição.
E, que diverge enquanto tal (poténcia de afirmar a disjunção).
em verdade, tudo isso não seria senão barulho sem o acon- Este elemento, este ponto é a quase-causa à qual os efeitos
tecimento e barulho indistinto. Pois não somente o acon- de superfície se prendem, enquanto precisamente diferem
tecimento torna possível e separa o que torna possível, mas em natureza de suas causas corporais, É este ponto que é
distingue naquilo que torna possível (cf. a tríplice distinção expresso na linguagem pelas palavras esotéricas de diversos

|
na proposição da designação, da manifestação e da signifi- tipos, assegurando ao mesmo tempo a separação, a cc_)orde—
cação). nação e a ramificação das séries. Assim toda a orggmzyi_‘o
/ Vimos
Como
qual
o
era
acontecimento
sua essência,
torna a linguagem possível? da linguagem apresenta as três figuras da superfície metafí-
sica ou transcendental, da linha incorporal abstrata ¢ do
puro efeito de superficie,
impassfvel incorporal, O acontecimento resulta dos corpos, ponto descentrado: os efeitostide superficic ou acontecimen-
de suas misturas, de suas ações e paixGes. Mas difere em
tos; na superficielVa linha do sentido imanente ao aconteci-
natureza daquilo de que resulta. Assim ele se atribui aos mento; sobre a linhdo ponto do ndo-sentido, ndo-sentido
-€orpos, aos estados de coisas, mas não como uma qualidade da superficie co-presente ao sentido. Pal
fisica: somente como um atributo muito especial, dialétic Os dois grandes sistemas antigos, epicurismo e estoicis- * Â
o
ou antes noemitico,_incorporal. Este atributo não existe mo, tentaram designar nas coisas o que torna a linguage.m
fora da proposição que o exprime. Mas difere em natureza possivel. Mas o fizeram de maneira muito diferente. Pois,
de sua expressio. Assim ele existe na proposigdo, mas não para fundamentar não somente a liberdade, mas a linguagem
como um nome de corpo ou de qualidade, nem como
um e seu emprego, os Epicuristas elaboraram um modelo que
sujeito ou predicado: somente como o exprimivel ou o ex- era a declinação do átomo, os Estéicos, ao contririo, a
presso da proposicdo, envolvido em um verbo. É a mesma conjugagdo dos acontecimentos. Não €, pois, surpreendente
entidade que é acontecimento sobrevindo aos estados de que o modelo epicurista privilegie os nomes e os adietivos,
coisas e sentido insistindo na proposição. Então, na medida os nomes sendo como 4tomos ou lingiifsticos que se
em que o acontecimento incorporal se constitui e constitui compdem por sua declinação e os adjetivos, qualidade_s des-
a superficie, ele faz subir a esta superficie os termos de sua tes compostos. Mas o_modelo estdico compreende a lingua-
dypla referéncia: os corpos aos quais remete como atributo gem a partir de termos “mais nobres”: os verbos e sua
noemético, as proposigdes as quais remete como exprimivel. conjugacio, em função dos lagos entre acontecimentos
E estes termos, cle os organiza como duas séries que separa, incorporais. A questdo de saber o que é primeiro na lin-
uma vez que é por e nesta separação que ele se distingue guagem, nomes ou verbos, não pode ser resolvida segundo
dos corpos de que resulta e das proposigdes que torna pos- a méxima geral “no comego hi a ação” e na medida em
siveis. Esta separação, esta linha fronteiriça entre as coisas que fazemos do verbo o representante da ação primeira e
¢ as proposições (comer-falar) passa também no “tornad
o da raiz o primeiro estado do verbo. Pois ndo é verdade
possível”, isto é, nas proposições mesmas, entre os nomes que o verbo represente uma ação; ele exprime um aconteci-
€ os verbos ou antes entre as designações e as expressões, mento, o que é completamente diferente. E nem a lingua-
as designações remetendo sempre a corpos ou objetos
con- gem se desenvolve a partir de raizes primeiras; ela se
sumíveis de direito, as expressões a sentidos exprimíveis. rganiza em torno de elementos formadores que determinam
Mas a linha fronteiriça não operaria esta separação das sé- seu todo. Mas se a linguagem não se forma progressiva-
ries na superfície se não articulasse enfim o que “mente segundo a sucessio de um tempo exterior, não
separa,
uma vez que opera de um lado e de outro por uma só ¢ acreditaremos, por isso, que sua totalidade seja homogénea.
mesma potência incorporal, aqui definida como sobrevindo É verdade que os “fonemas” asseguram toda distinção lin-
aos estados de coisas e lá como insistindo nas proposições. giifstica possivel nos “morfemas” e os “semantemas”, mas,
(É por isso que a própria linguagem não tem senão uma inversamente, são as unidades significantes e morfolégicgs
potência, embora tenha várias dimênsões). A linha fron- que determinam nas distingdes fonemiticas aquelas que são
teiriça faz pois convergir as séries divergentes; pertinentes para uma língua considerada. O todo não
mas assim
cla não suprime nem corrige sua divergência. pode pois ser descrito por um movimento simples, mas por
Pois as faz
convergir não nelas mesmas, o que seria impossí um movimento de ida e de volta, de ação e de reação
vel, mas
em torno .de um elemento paradoxal, ponto que
percorre a lingilísticas, que representa o circulo da proposição 1, E, se
linha ou circula através das séries, centro sempre
deslocado 1. Sobre este processo de volta ou de reação e a temporalidade interna
que implica, ef. a obra de Gustave Guillaume (e a análise que dela faz E.
a ação fônica forma um espaço aberto da linguagem, a
vigesima setima verie:
reação semântica forma um tempo interior sem o qual o
espaço não seria determinado em conformidade com tal ou
Da Oralidade
tal língua. - Ora, independentemente dos elementos e apenas
do ponto de vista do movimento, os nomes e sua declinação
encarnam a ação, enquanto que os verbos e sua conjugação
.encarnam a reação. O verbo não é uma imagem da ação
exterior, mas um processo de reação interior à linguagem.
Eis por que, na sua idéia mais geral, ele envolve a tempo-
ralidade interna da língua. É ele que constitui o anel da
proposição fazendo voltar a significagio sobre a designação
e o semantema sobre o fonema. Mas da mesma forma é
dele que inferimos o que o anel esconde ou enrola, o que
o anel revela uma vez fendido e desdobrado, desenrolado,
estendido em linha reta: o sentido ou o acontecimento
como expresso da proposição.
O verbo tem dois pólos: o presente, que marca sua
relação com um estado de coisas designável em função de
um tempo físico de sucessão;o infinítivo, que marca sua A linguagem é tornada possivel pelo que a distingue.
relação com o sentido ou o acontecimento em função ‘do O que separa os sons e os corpos, faz dos sons os elementos
tempo interno que envolve. O verbo inteiro oscila entre o para uma linguagem. O que separa falar e comer torna a
tivo que representa o círculo desdobrado da palavra possivel, o que separa as proposições e as coisas
Proposição inteira e o “tempo” presente, que fecha, ao torna as proposigdes possiveis. O que torna possivel é a
contrério, o círculo sobre um designado da proposição. superficie e o que se passa na superficie: o acontecimento
Entre os dois, o verbo dobra toda sua gagio em con- como expresso. O expresso torna possivel a expressdo.
formidade com as relações da designação, da manifestação Mas, entdo, encontramo-nos diante de uma última tarefa:
€ da significação — o conjunto dos tempos, das pessoas e retragar a histéria que libera os sons, torna-os independentes
dos modos. O infinitivo puro é o Ajon, a linha reta, a dos corpos. Não se trata majs de uma génese estitica que
forma vazia ou a distância; ele não comporta nenhuma iria do acontecimento suposto à sua efetuagdo em estados
distinção de momentos, mas não cessa de se dividir formal- de coisas e à sua expressio em proposigdes. Trata-se de
mente na dupla direção simultânea do passado e do futuro. uma génese dindmica que vai diretamente dos estados de
O infinitivo não implica um tempo interior & língua sem_ coisas aos acontecimentos, das misturas às linhas puras, da
exprimir o sentido ou o acontecimento, isto é, 6 conjunto profundidade a produgdo das superficies, ¢ que não deve
dos problemas que a língua se coloca. Ele põe a interio- nada implicar da outra génese. Pois, do ponto de vista
ridade da linguagem em contacto com a exterioridade do da outra génese, nós nos dévamos, de direito, comer e falar
ser. Assim, herda da comunicação dos acontecimentos entre como duas séries já separadas na superficie, separadas e
si; e à univocidade se transmite do ser à linguagem, da articuladas pelo acontecimento que resultava de uma e a
exterioridade do ser à interioridade da linguagem. A ela se referia como atributo noemdtico e que tornava a outra
equivocidade é sempre a dos nomes. O Verbo é a univoz” possivel e a ela se referia como sentido exprimivel. Mas
cidade. da_linguagem, sob a forma de um infinitivo não como falar se destaca efetivamentc de comer ou como a
determinado, sem pessoa, sem presente, sem diversidade de superficie ela prépria é produzida, como o acontecimento
- vozes. Assim a própria poesia. Exprimindo na linguagem incorporal resulta dos estados de corpos, é outra questdo.
todos os acontecimentos em um, o verbo infinitivo exprime Quando se diz que o som se torna independente, pretende-se
o acontecimento da linguagem, a linguagem como sendo dizer que deixa de ser uma qualidade especifica atinente
ela própria um acontecimento único que se confunde agora. aos corpos, ruido ou grito, para designar agora qualidades,
com o que a tor ível. manifestar corpos, significar sujeitos e predicados. Justa-
Ortigues em Le Discours et le symbole, Aubier, 1962). Guillaume tira daí mente, o som não toma um valor convencional na desig-
uma concepção origínal do infinitivo nas “ e níveis temporais no sistema nação — e um valor costumeiro na manifestagio, um valor
da’ conjugação francesa”, Cahiers de linguistique struciuraie, = 4, Universite
de Laval, artificial na significagio — sendo porque leva sua indepen-
dência à superfície de uma mais alta instância: a expressi- pulsdes destruidoras e a investir por “simbolizagio” dos
vidade. Sob todos os aspectos a distinção profundidade-su- objetos, interesses e atividades organizadas cada vez melhor.
perfície é primeira relativamente à natureza-convenção, na- As observagBes que propomos concernindo certos deta-
tureza-costume, natureza-artifício, Thes do esquema kleiniano tem somente como objetivo des-
Ora, a história das profundidades começa pelo mais tacar “orientações”. Pois todo o tema das posições implica
terrível: teatro do terror de que Mélanie Klein fez o bem a idéia de orientagdes da vida psiquica e de pontos
inesquecível quadro e em que o recém-nascido, desde o pri- cardeais, de organizagdes desta vida segundo coordenadas e
meiro ano de vida é ao mesmo tempo cena, ator e drama. dimensdes variáveis ou cambiantes, toda uma geografia, toda
A oralidade, a boca e o seio, são primeiramente profundi- uma geometria das dimensdes vivas. Aparece primeiro que
dades sem fundo. O seio e todo o corpo da mãe não são a posigdo parandide-esquizdide confunde-se com o desenvol-
somente divididos em um bom e um mau objeto, mas esva- vimento de uma profundidade oral-anal, profundidade sem
ziados agressivamente, retalhados, esmigalhados, feitos em fundo. Tudo comeca pelo abismo. Mas, a este respeito,
pedaços alimentares. AÀ introjeção destes objetos parciais neste dominio dos objetos parciais e dos pedagos que povoam
no corpo do recém-nascido é acompanhada de uma projeção a profundidade, não estamos seguros de que o “bom objeto”
de agressividade sobre estes objetos internos e de uma re- (o bom seio) possa ser considerado como introjetado
-projeção destes objetos no corpo materno: assim, os tal como o mau. Meélanie Klein mostra ela prépria
pedaços introjetados são também como substâncias vene- que a cisão do objeto em bom e mau na introjeção duplica-
nosas e persecutórias, explosivas e tóxicas, que ameaçam de -se por um despedacamento ao qual o bom objeto ndo
dentro o corpo da criança e não cessam de se reconstituir resiste, uma vez que ndo estamos nunca seguros de que
no corpo da mãe. De onde a necessidade de uma re-intro- ndo esconda um mau pedago. Bem mais, é mau por prin-
jeção perpétua. Todo o sistema da introjeção e da projeção cipio, isto é, a perseguir e perseguidor, tudo o que é pedago;
é uma comunicação dos corpos em profundidade, pela pro- só o integro, o completo é bom; mas, precisamente, a
fundidade. E a oralidade se prolonga naturalmente em um introjeção ndo deixa subsistir o integro2 Eis por que, de
canibalismo e uma analidade em que os objetos parciais são um lado, o equilibric préprio 2 posição esquizéide, de outro
excrementos capazes de fazer explodir tanto o corpo da lado sua relagio com a posição depressiva ulterior não
mãe quanto o corpo da criança, os pedaços de um sendo parecem poder resultar da introjecdo de um bom objeto
sempre perseguidores do outro e o perseguidor sempre como tal e devem ser revisados. O que a posição esqui-
perseguido nesta mistura abominável que constitui a Paixão zóide opGe aos maus objetos parciais introjetados e proje-
tados, tóxicos e excremenciais, orais e anais, não é um bom
do recém-nascido. Os corpos explodem e fazem explodir,
objeto mesmo parcial, é antes um organismo sem partes,
neste sistema da boca-ânus ou do alimento-excremento, a
um corpo sem órgãos, sem boca e sem anus, tendo renun-
universal cloaca!. Este mundo dos objetos parciais inter-
ciado a toda introjeção ou projecdo e completo gragas a
nos, introjetados e projetados, alimentares e excremen-
isso. É aqui que se forma a tensio do Id e do ego. O
ciais, nós o chamamos mundo dos simulacros. Mélanie
que se opde sdo duas profundidades, a profundidade vazia
Klein o descreve como posição paranóide-esquizóide da
em que giram ¢ explodem pedagos e a profundidade plena
criança. A isto sucede uma posição depressiva que marca — duas misturas, uma de fragmentos duros e sólidos, que
um duplo progresso, uma vez que a crianga se esforga por altera; a outra liquida, fluida e perfeita, sem partes nem
reconstituir um objeto completo no modo do bom e por se alteragdo, porque tem a propriedade de fundir e de soldar
identificar ela prépria a este bom objeto, por conquistar
(todos os ossos em um bloco de sangue). Nio parece
assim uma identidade correspondente, pronta neste novo neste sentido que o tema uretral possa ser posto no mesmo
drama a partilhar as ameagas e os sofrimentos, todas as plano que o tema anal; pois, se os excrementos são sempre
paixdes que o bom objeto sofreu. A “identificação” depres- órgãos e pedagos, ora temidos como substéncias téxicas, ora
siva, com sua confirmação do superego e sua formagdo do utilizados como armas para esmigalhar ainda outros pedacos,
ego, toma aqui o lugar da “introjegdo-projegdo” paranéide e a urina, ao contrario, da testemunho de um principio molha-
esquizéide. Tudo se prepara enfim para o acesso a uma do capaz de ligar todos os pedagos e de superar o esmiga-
posição sexual marcada por Edipo, através de novos perigos, lhamento na profundidade plena de um corpo agora sem
em que as pulsdes libidinosas tendem a se destacar das
2. Cf as observações de Mélanie Klein neste sentido e suas referéncias
à tese de W. Fairbain segundo 2 qual “no começo só o objeto mau é interna-
1. CE Mélanie Klein, La Psychanalyse des enfants, 1932, trad. Boulaoger, lizado” (mas M. Klein rocusa esta tese); Dévaloppements de la psychanalyse,
PUF.: por exemplo, a belissima descrigho à p. 159. 1952, trad. Baranger, P.U.F, pp. 277-279.
órgãos?. E ao supor que o esquizofrênico, com completo. Se manifesta a mais viva crueldade tanto quanto
toda a
ln_lguagem adquirida, regressa até esta posição esquizóide, amor e proteção, não é sob um aspecto parcial e dividido,
não nos espantamos de reencontrar na linguagem esquiz
ofrê- mas enquanto objeto bom e completo, cujas manifestações
nica a dualidade e a complementaridade das palavr emanam de uma alta unidade superior. Em verdade, o
as-pai-
xÕões, pedagos excremenciais explodidos e bom objeto tomou sobre si os dois pólos esquizóides, o dos
palavras-ações,
bloc_os soldados por um princípio de água ou de fogo., objetos parciais de que extrai a força e o do corpo sem
Enta_\o, tudo se passa em profundidade, sob órgãos de que extrai a forma, isto é, a completude ou a
o domínio do
sentido, entre dois não-sentidos do ruído puro, o não-sen- integridade. Ele mantém pois relações complexas com o
tido do corpo e da palavra explodidos, o não-sentido Id como reservatório de objetos parciais (introjetados e
do
bloco de_corpos ou de palavras inarticuladas — projetados em um corpo despedaçado) e com o ego (como
o “isto não
tem senndo." como processo positivo dos corpo completo sem órgãos). Enquanto é o princípio da
dois lados. A
mesma dua'lldade de pólos complementares se
reencentra na posição depressiva, o bom objeto não sucede à posição
esquizofrenia entre as reiteragdes e as persev esquizóide, mas se forma na corrente desta posição, com
eragies, por
exemplo, entre os trincamentos de maxila
res e as catatonias, empréstimos, bloqueios e impulsos que dão testemunho de
:ilmasdtestemunhando dos objetos internos e do corpo qué uma constante comunicação entre os dois. No limite, sem
espedaçam e que os despedaçam dúvida, o esquizóide pode reforçar a tensão de sua própria
ao
outros manifestando pelo cgrpoçsem ôrgãl:s pósição para se fechar às revelações da altura ou da verti-
e.smo fempo, os
Se o bom objeto não é como tal introjetado, calidade. Mas, de qualquer maneira, o bom objeto da
parece- altura mantém uma luta com os objetos parciais, cujo ganho
-nos, € porque desde o comego pertence a uma
outra dimen- é a forga em um afrontamento violento das duas dimensges.
são. É ele que tem uma outra “posição”, O bom objeto
eSt,ª em altura, ele se mantém em altura O corpo da crianga é como uma fossa cheia de animais
e não se deixa selvagens introjetados que se esforçam por tragar no ar o
Cair, sem mudar de natureza. Por altura não se deve
en.rz.nder uma profundidade invertida, bom objeto, o qual por sua vez se comporta diante deles
mas uma dimensão como uma ave de rapina sem piedade. Nesta situagdo, o
original que se distingue pela natureza
do objeto que a ego se identifica de um lado ao prdprio bom objeto, mode-
ocupa como da instância que a percorre. O superego não la-se a partir dele em um modelo de amor, participa ao
começa com os primeiros objetos introjetados
, como diz mesmo tempo de sua poténcia e de seu ódio contra os
Mélanie Klein, mas com este bom objeto que
permanece objetos internos, mas também de seus ferimentos, de seu
em .altum. Freud insistiu freqiientemente sobre sofrimento sob o golpe destes maus objetos *. E, de outro
a impor-
tância desta translação do profundo em lado, ele se identifica a estes maus objetos parciais que
alto, que marca
entre o Id e o superego toda uma mudança se esforgam por agarrar o bom objeto, ele lhes dá ajuda,
de orientação
e uma reorganização fundamental da vida alianga e mesmo piedade. Tal é o turbilhdo Id-ego-supe-
psiquica. En-
quanto a profundidade tem uma tensão interna determ
inada rego, em que cada qual recebe tantos golpes quantos
Pejas categorias dinâmicas de continente-conteúd
o, vazio- distribui e que determina a posição manfaco-depressiva.
-ple!w, gordo-magro etc., a tensão própria à altura é Com relagdo ao ego, o bom objeto enquanto superego exerce
a da
Yerticalidade, da diferença dos tamanhos, do grande todo o seu ódio na medida em que o ego é aliado dos
e do
Pequeno. Por oposição aos objetos parciais introjetados objetos introjetados. Mas lhe da ajuda e amor, na medida
,
que não exprimem a agressividade da criança sem em que o ego passa para seu lado e tenta a ele se identificar.
exprimir
também uma agressividade contra ela e que são Que o amor e o ódio não remetam a objetos parciais,
maus, peri-
80s0s por isso mesmo, o bom objeto como tal é um mas exprimam a unidade do bom objeto completo, isto se
Ã)bjeto deve compreender em virtude da “posição” deste objeto, de
3. Mélanie Klein não estabelece dife sua transcendéncia em altura. Para além de amar ou odiar,
ajudar ou bater, há “furtar-se”, “retirar-se” na altura. O
dência a negligenciar importincia ¢ o din amismo do ter bom objeto é por natureza um objeto perdido: isto é, ele
Nós o vimos preced entemente a Mme Pankow. Mas É ainda mal o
ccó
ãos.
iplo, Décelop pemento de la jchanaly em
um senho de cegueira e de roupa abotoada até o pescoçoé interpretado como 4. A
se aplica ao bom
divisio ferido-indene não se
objeto completo da posição
confunde com
depressiva:
parcial-
cf, Mélanie Klein,
mas

Dé de lo_psychanalyse, p. 201. Não mos cspantaremos de que


o superego seja “bom™ ‘e, no entanto, cruel e também Inerável etc.; Freud
falava já de um superego bom e consolador em relação com 9 humor, acrescen-
tando que nos faltava muito a aprender sobre a essência do superego.
não se mostra e não aparece desde a primeira vez senão estes objetos e o corpo sem órgãos e sem mecan?syn_os
como já perdido, tendo sido perdido. Está aí sua eminente denunciando a projegdo como a intro]eçã_o. A chylsao
unidade. É enquanto perdido que dá seu amor aquele que depressiva está entre os dois pólos da identiflcaçãq, a_xden-
não pode encontrá-lo pela primeira vez a não ser como tificagdo do ego aos objetos internos e sua 1d.entlflc‘agao' 20
“reencontrado” (o ego que se identifica com ele) objeto das alturas. Na posição esquizofrénica, “parcial’
e seu
ódio àquele que o agride como algo de “descoberto”, mas qualifica objetos internos e opde-se a “completo” que quali-
enquanto já presente — o ego tomando o partido fica o corpo sem órgãos reagindo contra estes objetos e o
dos
objetos internos. Sobrevindo no decorrer da posição esqui- despedaçamento a que o submetem. Na prmgao_depresslva,
zóide, o bom objeto se pde como Ppreexistente, preexistente “completo” qualifica agora o objeto e subsume não someate
desde sempre, nesta outra dimensio que interfere agora com indene e ferido, mas presente e ausente, como o duplo movi-
a profundidade. Eis por que, mais alto do que o movi- mento pelo qual este objeto mais alto dá para fqn_'a de si
mento pelo qual dá amor e golpes, há a esséncia pela qual, ¢ se retira em si mesmo. É por isso que a experiéncia dg
na qual, ele se retira e nos frustra. Ele se retira sob seus frustração, do bom objeto que se retira em si ou que está
ferimentos, mas também no seu amor e em seu 6dio. Ele essencialmente perdido, pertence à posição depnjesslva. Com
não dé seu amor sendo como devolvido, como perdoando, a posição esquizdide, tudo é agressividadç exercida ou sof}'uja
não dá seu 6dio senão como lembrando ameaças e adver- nos mecanismos de introjeção e de projeção, tudo é paixdo
tências que não tiveram lugar. E pois a partir da frustração e ação na relação tensa das partes despedagadas e do corpo
que o bom objeto, como objeto perdido, distribui o amor sem órgãos; tudo é comunicação dos corpos em profundi-
e o ódio, Se odeia é enquanto bom objeto, não menos dade, ataque e defesa. Não há lugar para a privação, para
quanto ama. Se ama o ego que se identifica a ele, se a situação frustrante. Esta aparece no curso da posição
odeia o ego que se identifica aos objetos parciais, retira-se esquizóide, mas emana da outra posição. Eis por que a
mais ainda, frustra o ego que hesita entre os posição depressiva prepara-nos para alguma coisa que não
dois e
que suspeita de um duplo jogo. A frustração, de acordo é nem ação nem paixão, mas o impassível retraimento. Eis
com a qual a primeira vez não pode ser senão uma segunda por que também a posição maniaco-depressiva pareceu-nos
vez, é a fonte comum do amor e do 6dio. O bom objeto ter uma crueldade que se distingue da agressividade
é cruel (crueldade do superego) na medida em que reúne paranóide-esquizóide. A crueldade implica todos estes
todos estes momentos em um amor e um ódio dados do momentos de um amor e de um ódio dados do alto, por
alto, com uma instância que se desvia e que não apresenta um bom objeto, mas objeto perdido que se retira e não
seus dons sendo como redistribuidos. Após o pré-socra- faz senão dar de novo o que dá. O masoquismo pertence
tismo esquizofrênico vem, pois, o platonismo depressivo: à posição depressiva não somente nos sofrimento% que
o Bem não é apreendido senão como objeto de uma remi- suporta, mas naqueles que gosta de distribuir por identi-
niscéncia, descoberto como essencialmente velado; o Um ficação & crueldade do bom objeto como tal -— enquanto
não dá senão o que não tem porque é superior ao que dá, que o sadismo depende da posição esquizóide, não somente
retirado na sua altura; e da Idéia, Platão diz: “ela foge nos sofrimentos que inflige, mas nos que se faz infligir por
ou perece” — ela perece sob o golpe dos objetos projeção e interiorização de agressividade. De um outro
internos,
mas foge com relação ao ego, pois que ela o precede, ponto de vista, vimos como ¢ alcoolismo convinha à posição
retirando-se à medida que avança e não lhe deixando depressiva, desempenhando ao mesmo tempo o papel do
senão um pouco de amor ou de ódio. Tais são, nós mais alto objeto, de sua perda e da lei desta perda no
© vimos, todas as características do passado composto passado composto, substituindo enfim o princípio molhado
depressivo. da esquizofrenia nos seus presentes tragicos. L
AÀ posição manífaco-depressiva determinada pelo bom Entdo aparece a primeira etapa da génese dinamica.
objeto apresenta, pois, todas as espécies de características
A profundidade é ruidosa: os estalos, os esta.ljdos, os
novas, ao mesmo tempo em que se insere na posição para-
rangidos, crepitações, explosões, os ruídos exgloda(‘:los dos
nóide-esquizóide. Este não é mais o mundo profundo dos objetos internos, mas também os gritos-sopros mgruculados
simulacros, mas o do idolo em altura. Não são mais meca-
do corpo sem órgãos que lhes correspondem, tudo isto forma
nismos de introjeção e projeção, mas o da identifi
cação. um sistema sonoro testemunhando da voracidade oral-anal.
Não é mais a mesma Spaltung ou divisão do ego.
A divisão E este sistema esquizéide é insepardvel da terrivel predição:
esquizofrénica est4 entre os objetos internos explosivos, falar serd talhado em comer e em defecar, a l%nguagem
introjetados e projetados, ou antes, o corpo despeda
çado por serd talhada na merda, a linguagem e sua univocidade. ..
(Artaud fala do “cocô do ser e de sua linguagem”). Mas,
precisamente, o que assegura o primeiro esboço desta escul- linguagem. Ela deixou de ser um ruido, mas não é ainda
tura, a primeira etapa de uma formação da linguagem, é o uma linguagem. Pelo menos podemos medir o progresso do
bom objeto da posição depressiva em altura. Pois é ele vocal sobre o oral, ou a originalidade desta voz depressiva
que, de todos os ruídos da profundidade, extrai uma Voz. com relação ao sistema sonoro esquizdide. A voz não se
Se consideramos os caracteres do bom objeto, de não poder opde menos aos ruidos quando ela cvsfaz calar c_lo que
ser apreendido senão como perdido, de aparecer pela pri- quando geme ela prépria sob sua agressio ou faz siléncio.
meira vez como já presente etc., parece que estes caracteres A passagem do ruido a voz, nés a revivemos constantemente
se refinem necessariamente em uma voz que fala e que em sonho; os observadores notaram muito bem como os
vem do alto . Freud insistia na origem acistica do super- ruidos chegando a0 dormente se organizam em voz prestes
€go. Para a crianga, a primeira aproximagio da lingua- a acordé-loS. Somos esquizofrénicos dormindo, mas ma-
gem consiste realmente em apreendé-la como o modelo nfaco-depressivos aproximando-nos d(z despertar. Quando
daquilo que se pde como preexistenite, como remetendo a o esquizóide se defende contra a posição depressn_/a, quando
todo o dominio daquilo que já se acha ai, voz familiar o esquizofrênico regressa aquém, é que a voz não ameaça
que carrega a tradigdo, em que já se trata da crianga menos o corpo completo graças ao qual ele age do que
sob
a espécie de seu nome e em que ela deve se inserir antes os objetos internos de que padece. Como no caso do esqui-
mesmo de compreender. De uma certa maneira, esta voz zofrênico estudante de línguas, a voz nªlatern_a de_ve urgente-
dispõe mesmo de todas as dimensdes da linguagem organi- mente ser decomposta em ruídos fonÉucos literais e recom-
zada: pois designa o bom objeto como tal ou, ao contrdrio, posta em blocos inarticulados. Não fazem senão um
os objetos introjetados; significa alguma coisa, a saber, os roubos do corpo, do pensamento e da palavra que
todos os conceitos e classes que estruturam o dominio da experimenta o esquizofrénico em seu enfrentamento da
preexisténcia; e manifesta as variagdes emocionais da posição depressiva. Não é preciso perguntar se os ecos,
pessoa completa (voz que ama e dá seguranga, que ataca constrangimentos e roubos são primeiros ou somente segun-
e repreende, que se lamenta por estar ferida, ou que se dos com relação a fenômenos automáticos. ?ª,um falso
retira e se cala). problema, pois o que é roubado ao esquizofrênico não é
Mas a voz apresenta assim as dimensdes
a voz, é, ao contrário, pela voz glo alto, todo 2 sistema
de uma linguagem organizada sem poder tornar apreensivel
ainda o principio de organizagio segundo o qual ela seria, sonoro pré-vocal de que tinha sabido fazer seu “autômato
ela prépria, uma linguagem. Assim, ficamos fora do sen-
espiritual”.
tido e longe dele, desta vez em um pré-sentido das alturas:
a voz não dispõe ainda da univocidade que dela faria uma
linguagem e, não tendo unidade sendo por sua eminéncia,
permanece engastalhada na_equivocidade de suas designa-
ções, na analogia de suas significagdes, na ambivaléncia de
suas manifestagdes. Pois, em verdade, como ela designa o
objeto perdido, não se sabe o que ela designa; não se
sabe o que ela significa, uma vez que significa a ordem
das preexisténcias; não se sabe o que ela manifesta, uma
vez que manifesta o retirar-se em seu principio ou o siléncio.
Ela é a0 mesmo tempo o objeto, a lei da perda e a
perda. Ela é realmente a voz de Deus como superego,
aquela que proíbe sem que saibamos o que é proibido,
pois que não a apreenderemos senão pela sanção. Tal &
o paradoxo da voz (que marca, ao mesmo tempo, a insufi-
ciéncia de todas as teorias da analogia e da equivocidade) :
ela tem as dimensdes de uma linguagem sem ter a sua
condição, ela espera o acontecimento que fari dela uma
5. Robert Pujol observa, na terminologia de Lacan: “O objeto perdido
não pode mals ser senão significado e não mais reencontrado,..” (“Approche
théorique du fantasme”, La Psychanalyse , nº 8, 1964, p. 15).
6. CL Bergson, L'Energie spirituelle, P.UF., pp. 101-102.
vigesima ultava serie:
Da Sexualidade ’

Parcial tem dois sentidos: designa primeiro o estado


dos objetos introjetados e o estado correspondente das pul-
sões que se prendem a estes objetos. Mas designa, por
outro lado, zonas eletivas do corpo e o estado das pulsões
que nelas encontram uma “fonte”. Estas têm um objeto
que pode, mesmo ele, muito bem ser parcial: o seio ou
o dedo para a zona oral, os excrementos para a zona anal.
Os dois sentidos, entretanto, ndo se confundem. Observou-
-se freqiientemente que as duas noções psicanaliticas de
estagio e de zona não coincidiam. Um estagio caracteriza-
-se por um tipo de atividade que assimila a si outras ativi-
dades e realiza deste ou daquele modo uma mistura das
pulsdes -— assim, a absorgdo no primeiro estdgio oral, que
assimila também o ânus ou então a excregio no estigio
anal que o prolonga e que recupera também a boca. Ao
contrério, as zonas representam um certo isolamento de um
territério, das atividades que o investem e das pulsdes que
nele encontram agora uma fonte distinta. O objeto parcial
de um estagio é posto em pedacos pelas atividades às quais
é submetido; o objeto parcial de uma zona é, antes, sepa-
rado de um conjunto pelo territério que ocupa e que o
limita. Sem dúvida, a organização das zonas e a dos
estágios se faz mais ou menos ao mesmo tempo, uma vez
que todas as posições se elaboram no primeiro ano da vida,
cada qual se encavalando sobre a que a precede e intervindo
no seu curso. Mas a diferença essencial é esta: as zonas
são dados de superfície e sua organização implica a consti-
tuição, a descoberta ou o investimento de uma terceira
dimensão que não é mais a profundidade nem a altura.
Poder-se-ia dizer que o objeto de uma zona é “projetado”,
mas projeção não significa mais um mecanismo das profun-
BIBLICICOA s:ta::n BE cttuclns
i
didades e indica agora uma operação de superfície, sobre um orifício local envolvido, cercado de superfície. Sem
uma superfície. -. dúvida, a fixação ou a regressão à posição esquizóide implica
Conforme à teoria freudiana das zonas erógenas e de uma resistência à posição depressiva tal que a superfície
sua rf,lação com a perversão, define-se, pois, uma terceira não poderá se formar: cada zona é então perfurada por
posição, sexual-perversa, que funda sua autonomia na dimen- mil orificios que a anulam ou, ao contrário, o corpo sem
são que ];he é própria (a perversão sexual como distinta órgãos se fecha sobre uma profundidade plena sem limites
da ascensão ou conversão depressiva e da subversão esqui- e sem exterioridade. Mais ainda, a posição depressiva não
zofrênica). As zonas erógenas são recortadas na superfície constitui, certamente, ela própria, uma superficie; ela pre-
do corpo, em torno de orificios marcados por mucosas. cipita, antes, no orifício o imprudente que perto dele se
Quando se observa que os órgãos internos podem se tornar aventurasse, como vemos no caso de Nietzsche que não
tzimbém zonas erbgenas, parece que é somente sob a condi- descobre a superfície do alto, de seis mil pés de altura
ção da topologia espontinca do corpo segundo a qual, como senão para ser engolido pelo orifício subsistente (cf. os
dizia Simondon a propdsito das membranas, “todo o con- episódios de aparência manfaco-depressiva antes da crise de
teúdo do espaco interior estd topologicamente em contacto demência de Nietzsche). Resta que a altura torna possível
com o conteiido do espago exterior nos limites do ser vivo” 1, uma constituição das superficies parciais, como os campos
Não basta nem mesmo dizer que as zonas erógenas sio coloridos se desdobram sob a asa do avião — e que o
recortadas na superficie. Esta não lhes preexiste. Com superego, apesar de toda sua crueldade, não deixa de ter
efeito, cada zona é a formagdo dinimica de um espago de complacéncia para com a organizagho sexual das zonmas
superficie em torno de uma singularidade constituida pelo superficiais, na medida em que pode supor que as pulsoes
orificio e prolongdvel em todas as direções até a vizinhança libidinosas aí se separam das pulsdes destruidoras das
de uma outra zona dependendo de uma outra singularidade. profundidades *.
Nosso corpo sexuado é primeiro um traje de Arlequim. Certamente, as pulsdes sexuais ou libidinosas já esta-
Cada zona erégena é pois insepardvel: de um ou vários vam trabathando nas profundidades. Mas o importante é
pontos singulares; de um desenvolvimento serial definido saber qual era o estado de sua mistura, de um lado com
em torno da singularidade; de uma pulsdo investindo este as pulsdes de conservagdo, de outro com as pulsdes de
. territério; de um objeto parcial “projetado” sobre o terri- morte. Ora, em profundidade, as pulsGes de conservação
tério como objeto de satisfação (imagem); de um obser- que constituem o sistema alimentar (absorgio e mesmo
vador ou de um eu ligado ao territério e experimentando excregio) tém de fato objetos reais e metas mas, em razio
a satisfagdo; de um modo de concordancia com as outras da impoténcia do recém-nascido, não dispõem de meios para
satisfazer ou possuir o objeto real. Eis por que o que
zonas. A superficie no seu conjunto é o produto desta
concordancia e veremos como ela coloca problemas espe- podemos chamar de pulses sexuais se modela estreitamente
cificos. Mas, justamente, porque o conjunto da superficie sobre as pulsdes de comservagdo, não nasce sendo por
ndo preexiste, a sexualidade sob seu primeiro aspecto ocasido destas, substituindo aos objetos fora de alcance
(pré-genital) deve ser definida como uma verdadeira pro- objetos parciais introjetados e projetados: há estrita com-
dugdo das superficies parciais ¢ o auto-erotismo que lhe plementaridade das pulsdes sexuais e dos simulacros. Mas
então a destruigio não designa um certo cardter da relagdo
corresponde deve ser caracterizado pelo objeto de satisfagdo
projetado sobre a superficie e pelo pequeno eu narcisico com o objeto real formado, ela qualifica todo o modo de
que o contempla ¢ com ele se regala. formagdo do objeto parcial interno (os pedagos) e a totali-
dade da relação com ele, pois que ele é ao mesmo tempo
Como se faz esta produgéo, como se forma esta posição
sexual? E preciso evidentemente procurar seu principio nas destruido e destruidor e serve para destruir o ego tanto
posicbes precedentes e notadamente na reação da posigio
quanto o outro, a tal ponto que destruir-ser destruido ocupa
depressiva sobre a posigdo esquizéide. A altura, com efeito,
toda a sensibilidade interna. É neste sentido que as três
pulsdes se misturam em profundidade, em tais condições
tem um estranho poder de reagdo sobre a profundidade.
Parece que, do ponto de vista da altura, a profundi- 2. E um tema constante na obra de Mélanie Klein: 0 superogo resesva
mas somente. pulsões
primeiro sua repressão não às pulsdes libidinosas,
d?de gira, orienta-se de uma nova maneira e se estende: La
destraidoras que as acompanham (cf., por exemplo,à culpabilidade não nascem
vista do alto pela ave de rapina ela não é mais do que a angústia e
fants, pp. 148-149). Eis por queincestuosas,
mesmo
das pulsões libidinosas, repressão: das Dulsões
mas primeiramenteincestuosas
uma dobra mais ou menos facilmente desdobrável ou então destridoras e de sua “Não seriam as tendênciaso temor do incestoque
de culpabilidade;
desencadeariam primeiramente o sentimento pulsões destruidoras associadas de
Tesultaria cle próprio, em definitivo, das incestuosos ”,
1. StmoNDON, Gilbert. Op. cit, p. 263. maneira permanente 40s primeiros desejos
energia super-
que 2 conservação fornece antes a pulsão, a sexualidade, o lamente liberada como uma verdadeira
mos acredi tar tod_ªv ia que as outras pulsajo;s
objeto substitutivo e a destruição, a relação inteira rever- ?i:gzl. Não pode seu trabalho
conti nuem
sivel. Mas precisamente, como a conservação é, no fundo, tenham desaparecido e que elas não uma
ameaçada por este sistema em que ela entra, comer tornan- ou sobr_etudo que não encontrem
em profundidade
.
do-se ser comido, vemos todo o sistema se deslocar; e a ição original no novo sistema.
o conjunto da posição
morte se recupera como pulsão no corpo sem órgãos, ao posqgoi aing‘da devemos fazer intervir
sivos , mas que se enca-
mesmo tempo que este corpo morto se conserva e se ali- sexual, com seus elementos suces não É
O precedente
menta eternamente e se faz sexualmente nascer de si mesmo. valam tão bem uns nos outros que
por seu enfre ntame nto com o seguinte
O mundo da profundidade oral-anal-uretral é o de uma determinado senão OU superfíuâs
mistura móvel, que podemos verdadeiramente chamar sem ou sua prefiguração do seguinte. As Zonas
separ áveis do problema de
fundo, e que dá testemunho de uma subversão perpétua. erógenas pré-genitais não são se opera
Quando ligamos a sexualidade à constituição das super- Ora, é certo que este acorc}o
sua concordância. em que
fícies ou das zonas, queremos pois dizer que as pulsões de vérias manciras: por contigliidade, na medida
é prolongada em uuâa
libidinosas encontram a ocasião de uma dupla liberação, ao a série que se desenvolve sobre uma
que uma zona po e
menos aparente, que se exprime precisamente no auto- outra série; 2 distância, na medida em
e fornecer a imagem
erotismo. De um lado elas se destacam do modelo alimen- ser redobrada ou projetada sobre outra nle: no
tar das pulsões de conservação, pois que elas encontram se satisfaz; e sobretudo 1ndu'etême
de que a outra
nas zonas erógenas novas fontes e novos objetos nas imagens estágiodo espelho de Lacan. Resta que a função de m:—
geral é normal-
projetadas sobre estas zonas: assim o ato de chupar que gração direta e global ou de concordancia ligar todas
que deve
se distingue da sucção. Por outro lado, elas se liberam mente atribuida à zona genital. É ela a este res-
s ao falo. Ora,
do constrangimento das pulsões destruidoras na medida em as outras zonas parciais, graga mas O
ha o papel de um órgão
que se engajam no trabalho produtivo das superfícies e nas peito, o falo não desempen pnvnle gac}'a ,
zona
novas relações com estes novos objetos peliculares. É por de imagem particular projetada sobre esta o órgão
meain o. E que
isso que, ainda uma vez, é tão importante distinguir por tanto para a menina como para O
às posições esqui-
exemplo o estágio oral das profundidades e a zona oral da do pênis já tem toda uma histf)rla'llg_ada
superficie; o objeto parcial interno, introjetado e projetado zóide e depressiva. Como todo órgão, o pemis conhece a
é feito em pedi:gos,
(simulacro) e o objeto de superficie projetado sobre uma aventura das profundidades em que
e no corpo da_cr ianga, agredido e
zona segundo um mecanismo diferente (imagem): depen- posto no corpo da mãe
nto venenoso, 2
dendo a subversdo das profundidades e a perversdo insepa- agressor, assimilado a um pedago de alime menos a aven-
rável das superficies 3. Devemos pois, considerar a libido um excremento explosivo; e ele não conhece
e ‘bom, dá amor
tura da altura onde, como órgão completo
3. O primeiro ponto — as pulsdes sexuais se liberam dos pulsões de se a0 mesm o tempo para íf)rmaf a
e sangdo, retirando-
conservação ou de alimentação — é bem marcado por J. Laplanche e J. B. à voz, isto é, O
Pontalis: Vocabulaire de la psychanalyse, P.UF., 1967, p. 43 (¢ “Fantasma pessoa inteira ou o órgão correspondente
originério, fantasmas das origens, origem do fantasma”, Temps Modemes, (Para lelam ente, o coito
e ige
n9 215, 1964, pp. 1866-1867). Mas não basta definir esta liberação dizendo ídolo combinado dos dois pais.
puro ruido, furor e
aue as pulsões de conservação tém um objeto exterior e que as pulsões sexvais parental, primeiro interpretado como
abandomam este objeto em proveito de uma espécie de “promominal”, . Com torna-se uma voz organizada, mesmo e inclusive
efeito, as pulsões sexuais Hiberadas têm realmente ginda um objeto projetado em agressão,
cngnça). E
superficie: assim, o dedo chupado como projeção do seio (mo limite, projeção
de uma zona erógena sobre óutra), O que Laplanche e Pontalis reconhecom em sua poténcia de calar-se e de fimgra:_a
Mélanie Klein mostra
perfeitamente, , sobretudo, as pulsões sexuais, na medida em que espo- de todos estes pontos de vista que
savam as pulsões alimentares em profundidado, tinham já objetos particulares cem os elemen-
distintos do objeto destas pulsões: os objetos parciais intermos. O que é que as posigdes esquizdide e depressiva forne ag'enã
ã,-quu' a(pass
preciso separar é pois dois estados das pulsões sexuais, duas espécies de objetos
gara estas pulsões, dois mecanismos de projeção. E o que deve ser ericado tos precoces do complexo de Ed.l’po; isto
ção mfdlspensalve
uma noção como a de objeto alucinatório, que se aplica indistintamente ao do mau pénis para um bom Éé a condi
Gbjeto intemo, ao cbjeto perdido, ao objeto de superfície. sentido estrito,
De onde a importância de outio ponto — as sexuais se liberam para O acesso a0 complexo de Édipo em seu
emas correspon-
das pulsões destruidoras. Mélanie Klein insiste nisso constantemente. Há em à organização genital e aos novos probl
toda a escola de M. Klein uma tentativa justificada de desculpar a sexualidade
problemas, nós sabemos em que
s de lberála das pulsões destruidoras às quais não está lgada senão dentes*. Estes novos
em profundidade, É neste sentido que à moção de crime sexual é discutida
por Paula Heimann em Développements de la psychanglyse, p. 308. £ bem
verdade que a semalidade é perversa, mas a perversão se define antes de
tudo pelo papel das zonas erógenas parciais e de superfície, O “crime sexual”
pertence & um outro domínio, em que a sexualidade não atua senão em Mólanieassina
às, cf. Kleia por exemplo, Lo
Klein, com nfase que o
> Pr .bga,p:êg. M. inar la
mistura de profundidade com as pulsões destruidoras (subversão de preferência o z::}m;uoefiamm‘“
implica a posição prelim de um “bom
a perversio). — Em todo caso não se deve confundir dois tipos de regressão
bastante diferentes sob o tema muito geral de um retorao ào “pré-genital”;
Complexo de fdipo
uma nítida cisão
irado. É nesta fase fálica edipiana que
o aspecto de um
consistem: organizar superfícies e operar sua concordância. ãe(:;n:ggs pais se opera, a mãe ass!lmindo
de um Pom objeto a=
Justamente, como as superficies implicam uma liberagdo das corpo ferido por reparar & o pal, ca pers?êígq
pulsGes sexuais relativamente às pulsões alimentares e as tudo, é ai que a crian
fazer voltar; mas, sobre :ê!l:
pulsões destruidoras, a crianca pode acreditar que deixa aos sobre seu proprio corpo à constltulça'oªde_llma sn;%:rd
graças ao privilégio bem ET
pais o alimento e a poténcia e, em compensagdo, esperar e a integração das zonas,
que o pénis, como órgão bom e completo, virá se pôr e se da zona genital.
projetar sobre sua propria zona genital, tornar-se o falo que
“duplica” seu próprio órgão e lhe permite ter relagdes
sexuais com a mãe sem ofender o pai.
Pois é isto que é essencial: a precaugdo e a modéstia
da reivindicagdo edipiana, no ponto de partida. O falo,
como imagem projetada sobre a zona genital não é de forma
nenhuma um instrumento agressivo de penetração e de dila-
ceramento. Ao contririo, é um instrumento de superficie,
destinado a reparar os ferimentos que as pulses destrui-
doras, os maus objetos internos ¢ o pénis das profundidades
fizeram suportar ao corpo materno ¢ a trangiilizar o bom
objeto, a convencé-lo a não se desviar (os processos de
“reparação” sobre os quais insiste Mélanje Klein nos pare-
cem, neste sentido, pertencer à constituicdo de uma super-
ficie ela mesma reparadora). A angústia e a culpabilidade
não derivam do desejo edipiano de incesto; elas se forma-
ram bem antes, uma com a agressividade esquizéide, a outra
com a frustragdo depressiva. O desejo edipiano seria antes
de natureza a conjurd-las. Edipo é um herdi pacijicador
_do tipo hercileo. É o ciclo tebano. Edipo conjurou a
poténcia infernal das profundidades, comjurou a poténcia
celeste das alturas e reivindica somente um terceiro império,
a superficie, nada além da superficie — de onde sua con-
vicgdo de não ser faltoso ¢ a certeza em que estava de ter
tudo organizado para escapar i predicio. Este ponto, que
deveria ser desenvolvido pela interpretagdo do conjunto do
mito, encontra uma confirmagdo na natureza prépria do
falo: este não deve se introduzir, mas, tal como a relha do
arado se destina à ténue camada fértil da terra, ele traga
uma linha na superficie. Esta linha, emanada da zona
genital, é a que liga todas as zonas erGgenas entre si, logo
assegura sua emenda ou sua dobra ¢ faz de todas as super-
ficies parciais uma só e mesma superficie sobre o corpo da
crianga. Bem mais, ela é tida como devendo refazer uma
superficie para o corpo da propria mãe e fazer voltar o pai
“E somente quando um jovem acredita fortemente na bondade do órgão genital
masculino, o de Seu pai como o seu próprio, que ele Pode se permitr sentir
seus desejos genitais relativamente a sua mic..., ele pode fazer face a0 ódio
e à rivalidade que faz nascer nele o complexo de 8dipo” (Essais de Psycha-
nalyse, trad. M. Derrida, Payot, p. 415). O que não quer dizer, nós o veremos,
quê à posição sexual e a sitiação edipiana não comportem suas angústias e
seus perigos novos; assim, um medo específico da castração. E se é verdade
que, nos estágios precoces de Edipo, o superego dirige antes de tudo sua
severidade contra as pulsões destruidoras, “a defesa contra as pulsões libidinosas
faz sua aparição nas últimas fases” (La Psychanalyse des enfanis, pp. 148-149).
| vigesima nNnona oviie.
As Boas Intenções são
Forcosamente Punidas

É preciso, pois, imaginar Edipo não somente inocente,


mas pleno de zelo e de boas intengGes: Hércules segundo,
que vai conhecer uma experiéncia dolorosa semelhante. Mas
por que suas boas intenções parecem se voltar contra ele?
Primeiramente, em razão da delicadeza do empreendimento,
a fragilidade propria das superficies. Nunca estamos
seguros de que as pulsdes destruidoras, continuando a agir
sob as pulsdes sexuais, ndo dirijam seu trabalho. O falo
como imagem na superficie corre o risco, a cada instante,
de ser recuperado pelo pénis da profundidade ou o da
altura; e assim de ser castrado como falo, uma vez que o
pénis da profundidade é ele préprio devorante, castrante e
o da altura é frustrante. Há, pois, uma dupla ameaga de
castragdo por regressdo pré-edipiana (castragio-devoragio,
castração-privação). E a linha tragada pelo falo corre o
risco de se precipitar na profunda Spaltung; e o incesto,
de voltar ao estado de um estripamento que seria tanto o
da mãe como o da crianga, a uma mistura canibalesca em
que o comedor é também comido. Em suma, a posi¢do
esquizéide e mesmo a posição depressiva, a angistia de uma
e a culpabilidade da outra, não cessam de ameagar o com-
plexo de Édipo; como diz Mélanje Klein, a angistia e a
culpabilidade ndo nascem do empreendimento incestuoso,
elas, antes, o impedem de se formar e o comprometem
constantemente.
Contudo, esta primeira resposta não é suficiente. Pois
a constituigio das superficies não tem menos por principio
e intenção separar as pulsGes sexuais das pulsdes destrui-
doras em profundidade e reencontra, a este respeito, uma
complacéncia certa da parte do superego ou do bom objeto
das s alturas. . Os perigoperj, s do empreendimento
g:lªsêã?làem 2
prcmf’ de uma evoluç edip; -ferido, presente-ausente, a criança começa por extrair o
e
| Tis ão inf.er :;? lal;l:mdevem
e confusão, de mistur negativo e dele se serve para qualificar uma imagem de
a corporal, inv,'ocad
os n;;llsa mãe e uma imagem de pai. De um lado, identifica a mãe
ao corpo ferido como primeira dimensão do bom objeto
completo (corpo ferido que não se deve confundir com o
corpo explodido e despedaçado da profundidade); e, por
culpabilidade, uma outro lado, identifica o pai com a última dimensão, o bom
nova castração que
ndo se reduz às dua objeto como retirado na sua altura. E o corpo ferido da
s
mãe, a criança pretende repará-lo com seu falo reparador,
torná-lo indene, pretende refazer para este corpo uma super-
fície, ao mesmo tempo em que faz uma superfície para seu
próprio corpo. E o objeto retirado, ela pretende fazê-lo
voltar e torná-lo presente, com seu falo evocador.
Cada qual, no inconsciente, é o filho de divorciados,
que sonha em reparar a mãe e fazer vir o pai, tirá-lo de
seu esconderijo: tal nos parece a base daquilo que Freud
chamava de “romance familiar”, que ligava ao complexo
de Edipo. Jamais a criança teve melhores intenções na sua
confiança narcísica, jamais sentir-se-á tão boa e, longe de
langar-se em um empreendimento angustiante e culpável,
jamais nesta posição acreditou-se tão próxima de conjurar
“au
Masto—éio
ele xn!::’na n oegde conquista a angústia ou a culpabilidade das posições precedentes. É
i r uma independência
com as superfícies par senão no verdade que ela toma o lugar do pai e a mãe como objeto
ciais e todos os
do seu desejo incestuoso. Mas a relação de incesto como
a de procuração não implica aqui a violência: nenhum
estripamento nem usurpação, mas ao contrário uma relação
de superficic, um processo de reparação e de evocação em
POU
o1 CO o pressentí
I amos, esta que o falo opera uma dobra na superficie. Não enegre-
ficies e dç próprio ego conc, ordânciai £4i
na superfície, aoompanl’ cemos, não endurecemos o complexo de Édipo senão negli-
lll ac:edges ã:g:; - genciando o horror dos estágios precedentes em que o pior
se passou e esquecendo que a situação edipiana não é atin-
gida a não ser na medida em que as pulsões libidinosas
puderam se destacar das pulsões destruidoras. Quando
Freud observa que o homem normal não é somente mais
imoral do que crê, mas mais moral do que suspeita, isto
é verdade antes de tudo com relação ao complexo de Édipo.
Édipo é uma tragédia, mas é o caso de se dizer que se
deve imaginar o héroi trágico alegre e inocente e partindo
com o pé direito, O incesto com a mãe por reparação, a
substituição do pai por evocação, não são somente boas
intenções (pois é com o complexo de Édipo que nasce a
intenção, noção moral por excelência). A titulo de inten-
ções, são os prolongamentos inseparáveis da atividade a
seio. mais inocente aparentemente, aquela que consiste para a
Agora,2, acreditam;
das duas disjunçõe
108 nós,ó a seppar
araaçã
çã o se f:faz assim criança em se fazer uma superfície de conjunto de todas as
s subslnníd;as Pelo im: suas superfícies parciais, utilizando o falo projetado pelo
bom objeto, índene
s - bom pênis a partir do alto e fazendo beneficiar-se as imagens
capi‘Pit
tul1.wo é C£esseFreu
nciaial l parapara uma
d, P além
parentais desta projeção. Édipo é hercúleo, porque ele
oo prin
tes
ci,
biapsm i ic? aes razer ,
mp%i-f(x;e'& 4 Todo este também, pacificador, quer constituir para si mesmo um
reinado de seu porte, reinado das superfícies e da terra.
Ele acreditou conjurar os monstros da profundidade fícies parciais, não é mais do que o traçado da castração
e fazer
suas aliadas as potências do alto. E, inseparável de seu em que o falo se dissipa ele próprio e o pénis com ele.
empreendimento, há reparar a mãe e fazer vir
o pai: Esta castração, que merece com exclusividade o nome espe-
o
verdadeiro complexo de Édipo. cífico de “complexo”, distingue-se em princípio das duas
. Mas por que tudo acaba tão mal? Por que a nova outras castrações, a da profundidade por devoração-absor-
angústia e a nova culpabilidade como produzidas? ção, a da altura por privação-frustração. É uma castração
Por
que é que já Hércules encontrava em Juno uma
madrasta
por adsorção, fenômeno de superfície: assim, os venenos
cheia de ódio, resistindo a toda oferta de reparação superficiais, os venenos da túnica e da pele que queimam
e em
Zeus um pai cada vez mais retirado, esquivando-se cada Hércules, assim os venenos sobre imagens ainda que apenas
vez mais após ter favorecido? Dir-se-ia que a empresa das contempladas, como estas camadas venenosas sobre um
superfícies (a boa intenção, o reinado da terra) não encon- espelho ou sobre um quadro, que inspiram o teatro elisabe-
tra somente um inimigo esperado, vindo das profundidades tano. Mas, justamente, é em virtude de sua especificidade
!nfe.rnais que se tratava de vencer, mas também um inimigo que esta castração reencontra as duas outras e que, fenômeno
inesperado, o da altura, o qual, contudo, tornava a empresa da superfície, parece marcar seu malogro ou a doença, o
possivel e não pode mais caucioná-la. O Superego como bolor prematuro, a maneira pela qual a superfície apodrece
bom objeto se pde a condenar as pulsdes libidinosas nelas prematuramente, cuja linha na superfície reencontra a pro-
mesmas. Com efeito, no seu desejo de incesto-reparagdo, funda Spaltung e o incesto das superfícies a mistura caniba-
Edipo viu. O que ele viu (a cisdo uma vez feita) e lesca em profundidade — conforme à primeira razão que
que
ele não devia ver é que o corpo ferido da mãe não o é invocávamos há pouco.
somente pelos pénis internos que contém, mas enquanto Contudo, a histéria não se detém ai. O isolamento,
carecendo de pénis em sua superficie, como corpo castrado. com Édipo, da categoria ética de intenção é de uma impor-
O falo enquanto imagem projetada, que dava uma forca tância positiva considerável. À primeira vista, só há nega-
nova a0 pênis da crianga, designa, ao contrário, uma tivo na boa intengio que acaba mal: a ação querida é
falta
na mãe, Ora, esta descoberta ameaga essencialmente a como negada, suprimida pelo que é realmente feito; e da
crianga; pois ela significa (do outro lado da cisdo) mesma forma a ação realmente feita é denegada por aquele
que
o pénis é a propriedade do pai e que, ao pretender fazer que a fez e que recusa sua responsabilidade (não fui eu,
com que ele volte, ao pretender torná-lo Ppresente, a crianga eu não quis isto, “matei sem saber”). Mas seria um erro
trai a esséncia paterna que consistia no retraimento e que pensar a boa intenção e sua perversidade essencial no
não podia ser encontrada a não ser como reencontrada, quadro de uma simples oposição de duas ações determinadas,
reencontrada na auséncia e no esquecimento, mas
jamais a que é querida e a que é feita. De um lado, com efeito,
dada numa simples presenca de “coisa” que dissipa a ação querida é uma imagem de ação, uma ação projetada;
ria o
esquecimento 2. Torna-se, pois, verdadeiro, neste momento, e não falamos de um projeto psicológico da vontade, mas
que descjando reparar a mãe a crianga castrou-a e estripo do que o torna possível, isto é, de um mecanismo de proje-
u-a
¢, querendo fazer vir o pai, a crianga traiu-o, matou-
o, trans-
ção ligado às superfícies físicas. É neste sentido que
formou-o em caddver. A castração, a morte por castragio, podemos compreender Édipo como a tragédia da Aparência.
torna-se entdo o destino da crianga, refletida pela Longe de ser uma instância das profundidades, a intenção
mée nesta
angistia que a crianga sente agora, infligida pelo pai é o fenômeno de conjunto da superfície, o fenômeno que
nesta
culpabilidade que suporta agora como signo de vingan corresponde adequadamente à concordância das superfícies
ga.
Toda a histéria comegava pelo falo como imagem físicas. A noção mesma de Imagem, após ter designado o
projetada
sobre a zona genital e que dava ao pênis da criang
a a força objeto superficial de uma zona parcial, depois o falo proje-
de empreender. Mas tudo parece terminar com a imagem tado sobre a zona genital, depois as imagens parentais
que se dissipa e que provoca o desaparecimento do pênis peliculares saídas de uma cisão, designa enfim a ação em
da crianca. A “perversidade” é o Ppercurso das superficies geral, que concerne à superfície, não tal ação particular,
€ cis que se revela algo de falso neste percurso. A linha mas toda ação que se estende em superfície e que pode
que o falo tragava na superficie, através de todas as super- habitá-la (reparar e evocar, reparar a superfície e fazer vir
à superficic). Mas, de outro lado, a ação efetivamente
Sleménio s tomsdosà insis
pressiva: assim, %ãáâ'â â&fªãi á?&f%ãâfâf?? feita não é uma ação determinada que se oporia à outra,
de Hylderlia 20 retraimento ou mo desvioí remete nem uma paixão que seria o contragolpe da ação projetada.
@ uma posição pré-edipina, aimento
É alguma coisa que acontece, que representa por sua vez
tudo o que pode acontecer, ou melhor ainda alguma coisa — independente do outro em uma certa medida,
processo
que resulta necessariamente das ações e das paixões
, mas pois que não é diretamente proporcional ao êxito ou ao
que é de uma outra natureza, nem ação nem paixão
em si malogro da liquidação de Édipo — corresponde_ no seu
mesma; acontecimento, puro acontecimento, Eventum tan- primeiro aspecto ao que chamamos de sublimacdo, e no
tum (matar o pai e castrar a mãe, ser castrado e
morrer). seu segundo aspecto ao que chamamos de simbolzzacgo.
Eo mesmo que dizer que a ação feita não é menos que
a Devemos, pois, admitir que as metamorfoses não se detém
ouira projetada sobre uma superficie. Só que se trata
de com a transformagio da linha fálica em tracado de castragio
uma outra superficie, metafisica ou transcendental. sobre a superficie fisica ou corporal e que o traçado da
Dir-se-
la que a ação inteira projetou-se sobre uma dupla castração corresponde, ele préprio, a uma fissura sobre uma
tela,
uma constituida pela superficie sexual e fisica, a outra por
outra superficie metafisica incorporal que opera sua trans-
uma superficie já metafisica ou “cerebral”. Em suma, a Esta mudanga coloca todo tipo de problemas
mutagio.
intenção como categoria edipiana não opõe em absolut relativos à energia dessexualizada que forma a nova super-
o uma
ação determinada a uma outra, tal ação querida a tal ação mesmos da sublimação e da simboli-
ficie, aos mecanismos
feita. Ao contrário, ela toma o conjunto de toda agdo zação, ao destino do ego neste novo plano, enfim, ao duplo
possivel e o divide em dois, projeta-o sobre duas
telas e pertencer do assassinio ou da castração ao antigo e a0 novo
determina cada lado conforme 3s exigéncias mecessdrias de sisttma ?. Esta fissura do pensamento na superficie incor-
cada tela: de um lado, toda a imagem da ação sobre uma poral, nela reconhecemos a linha pura do Aionou o instinto
superficie fisica, em que a ação mesma aparece como forma especulativa. Mas, justamente, €
de morte sob sua
querida e se encontra determinada sob as espécies da preciso tomar ao pé da letra a idéia freudiana de que o
reparação e da evocagio; de outro lado, todo o resulta
do instinto de morte é caso de especulagdo. Ao mesmo tempo,
da ação sobre uma superficie metafisica, em que a ação
lembraremos que esta última metamorfose incorre nos
mesma aparece como produzida e não querida, determinada mesmos perigos que as outras e talvez de uma maneira
sob as espécies do assassinio e da castragdo. O célebre ainda mais aguda: a fenda corre singularmenteo tisco‘ de
mecanismo de “denegagio” (não foi o que eu quis...), quebrar a superficie de que ela é, no entanto, inseparável,
com toda sua importancia para a formação do Dpensamento, de ir se juntar ao simples tragado da castração na outra
deve então ser interpretado como exprimindo a passagem de superficie ou, pior ainda, de mergulhar na Spaltung das
uma superficie & outra. profundidades ou das alturas, levando todos os destrogos de
F7 vamos ainda muito depressa. É evidente que o superficie nesta debandada generalizada em que o fim
assassinio e a castracdo que resultam da ação concernem reencontra o ponto de partida ¢ o instinto de morte as
aos corpos, que não constituem por si mesmos uma superficie pulsões destruidoras sem fundo — segunde a confusio que
metaffsica e nem mesmo lhe pertencem. No entanto, estão vimos precedentemente entre as duas figuras da morte:
no caminho, uma vez lembrado que se trata de um longo ponto central de obscuridade que não cessa de colocar o
camm_ho balizado de etapas. Com efeito, com a “ferida problema das relações do pensamento com a esquizofrenia
narcisica”, isto é, quando a linha fálica se transfo e a depressio, com a Spaltung psicótica em geral e também
rma em
tragado da castragdo, a libido que investia na superficie neurótica, “pois toda vida, bem entendido, é
o a castração
ego do narcisismo secundério conhece, por sua vez, demolição”, inclusive a vida especulativa.
uma um processo de
transmutação particularmente importante: aquela que Freud
chama dessexualizagdo, a energia dessexualizada parecendo-
-the 20 mesmo tempo alimentar o instinto de morte
e
co?dlglona( o mecanismo do pensamento. Devemos, pois,
airibuir aos temas da morte e da castração um duplo valor:
aquele que tem na perseveração ou na liquidação 3. A teoria da energia dessexualizada é esboçada por Freud em O Ego e o
do com-
plexo de Edipo e na organização da sexualidade genital 14, capítulo 4. Divergimos da exposição freudiana em dois pontos. De um lado,
Freud exprime-se_freqiientemente como se a libido narcísica implicasse como
definitiva, tanto sobre sua superfície própria quanto nas tal uma dessexualização da energia. O que não pode ser mantidona medida
suas relações com as dimensões precedentes (posições em que o eu fálico do marcisismo secundário dispõe ainda de relações objetais
como as imagens dos Dais (reparar, fazer vir); então, a dessexualização não
esquizóide e depressiva); mas, igualmente, o valor que eles pode se produzir senão com o complexo de castração definido na sua especi-
tomam como origem da energia dessexualizada e a maneira ficidade — De outro lado, Froud chama “noutra” esta, energia dessexualizada;
ele entende com isso que ela é deslocável e suscetível de passar de Eros
original pela qual esta energia os reinveste sobre sua nova a Tânatos. Mas, se € verdade que ela não se contenta em se juntar a Tânatos
au instinto de morte, se é verdade que ela o constitui pelo menos sob a
superfície metafísica ou de pensamento puro. Este segundo figura especulativa que ele toma na superficie, “peutra” deve ter um outro
sentido, que veremos nos parágrafos seguintes.
1ngesilia OUIIO:
Do Fantasma

O fantasma tem três características principais. 1º)


Fle não representa uma ação nem uma paixão, mas um
resultado de ação e de paixão, isto é, um puro acontecimento.
A questão: tais acontecimentos são reais ou imaginários?
não está bem colocada. A distinção não é entre o imagi-
nário e o real, mas entre o acontecimento como tal e o
estado de coisas corporal que o provoca ou no qual se
efetua. Os acontecimentos são efeitos (assim, o “efeito”
castração, o “efeito” assassínio do pai...). Mas, precisa-
mente, enquanto efeitos eles devem ser ligados a causas não
somente endógenas, mas exógenas, estados de coisas efetivos,
ações realmente empreendidas, paixões e contemplações
realmente efetuadas. Eis por que Freud tem razão de
manter os direitos da realidade na produção dos fantasmas,
no momento mesmo em que Teconhece estes como produtos
que ultrapassam a realidade!. Seria completamente deplo-
rável esquecer ou fingir esquecer que as crianças observam
realmente o corpo da mãe, do pai e o coito parental, que
são realmente o objeto de empreendimentos de sedução por
parte do adulto, que sofrem ameaças de castração precisas
e detalhadas etc. Não são também os assassínios de pais,
os incestos, os envenenamentos e estripamentos que faltam
na história pública e privada. Resta que os fantasmas, no
momento em que são efeitos e porque são efeitos, diferem
em natureza de suas causas reais. Falamos das causas
endógenas (constituição hereditária, herança filogenética,
evolução interna da sexualidade, ações e paixões introje-
tadas) não menos que causas exógenas. É que o fantasma,
à maneira do acontecimento que representa, é um “atributo
noemático” que se distingue não somente dos estados de
1. CL Freud, Cing Psychanalyses — L'Homme aux loups, S.
coisas e de suas qualidades, mas do vivido psicolégico um só e mesmo fantasma: distinto de sua efetuação como
e
dos conceitos lógicos. Ele pertence como tal a uma super- das causas que o produzem, fazendo valer esta eterna parte
ficie ideal sobre a qual é produzido como efeito e que de excesso com relação a estas causas, esta parte de inaca-
transcende o interior e o exterior, pois que ela tem
como bado com relação 2 suas efetuações, sobrevoando seu pró-
propriedade topológica o fato de colocar em contacto prio campo, fazendo-nos filhos dele mesmo. E se é bem
“seu”
lado interior e “seu” lado exterior para desdobrá-los nesta parte que a efetuação não pode se cumprir, nem a
em
um só lado. Eis por que o fantasma-acontecimento é sub- causa produzir, que o acontecimento reside por inteiro, é aí
metido à dupla causalidade, remetendo de um lado às causas também que ele se oferece à contra-efetuação e que reside
externas e internas de que resulta em profundidade, nossa mais alta liberdade, pela qual nós o desenvolvemos e
mas
de outro lado à quase-causa que o “opera” na superfíc o levamos a seu termo, à sua transmutação e tornamo-nos
ie e
o faz comunicar com todos os outros acontecimentos- senhores, enfim, das efetuações e das causas. Como ciência
-fantasmas. Em duas ocasiões vimos como o Tugar estava dos acontecimentos puros, à psicanálise é ta;nbém uma arte
Preparado para tais efeitos diferindo em natureza daquilo das contra-efetuacdes, sublimagdes e símbohzaçõf:s. .
de que resultam: uma primeira vez desde a posição depres- 29) A segunda característica do fant_asma é sua situa-
siva, quando a causa se retira em altura e deixa o campo ção com relação ao eu, ou antes a situagdo do eu no pro-
livre ao desenvolvimento de uma superfície a vir; depois prio fantasma. É bem verdade que o fantasma encontra
na situação edipiana, quando a intenção deixa o campo seu ponto de partida (ou seu autor) no eu falico do narci-
livre para um resultado de uma outra natureza, em que sismo secundério. Mas se o fantasma tem a propriedade
o
falo desempenha o papel de quase-causa. de se voltar sobre seu autor, qual é o lugar do eu no
Nem ativos nem passivos, nem internos nem externos, fantasma, levando-se em conta o desearolar ou o descnvo}-
nem imaginários nem reais, os fantasmas têm realmente a vimento que dele sdo insepardveis? Laplanche e Pontalis
impassibilidade e a idealidade do acontecimento. Diante colocaram, particularmente, este problema cm condições
desta impassibilidade, eles nos inspiram uma espera insupor- tais que recusam de antemão toda resposta fácil: embora
tável, a espera daquilo que vai resultar, daquilo que já se o eu possa aparecer no fantasma a tal ou tal momento
2cha em vias e não acaba mais de resultar, E de que nos como atuante, como sofrendo uma ação, çomo tel:celm
fala a psicandlise com a grande trindade, assassinio-incesto- observante, ele não é nem ativo, nem passivo e não se
-castracdo, devoragio-estripamento-adsorgio — senão de deixa, em nenhum momento, fixar a um lugar, ainda que
acontecimentos puros? Todos os acontecimentos em Um, reversível.. O fantasma originário “caracterizar-se-ja por
como no ferimento? Totem e Tabu é a grande teoria do uma avusência de subjetivação paralela à presença do sujeito
acontecimento e a psicanálise em geral a ciência dos acon- na cena”; “toda repartição do sujeito e do ob]eto. se acha
tecimentos: com a condição de não se tratar o acontecimento abolida”, “o sujeito não visa o objetq ou seu signo, el?
como alguma coisa de que é preciso procurar e isolar o sen- figura a si mesmo tomado na seqgiiéncia de imagens..., é
tido, pois que o acontecimento é o proprio sentido, na me- representado participando da cena sem que, nas formas
dida em que se isola ou se distingue dos estados de coisas mais próximas do fantasma originário, um lugar possa lhe
que o produzem e em que se efetua, Sobre os estados de ser atribuído”. Estas observações têm duas vantagens: Ée
coisas e sua profundidade, suas misturas, suas ações e pai- um lado, elas sublinham que o fantasma não é representagio
xÕes, a psicanálise lança a mais viva luz; mas para chegar de ação nem de paixdo, mas pertence a um outtp glomlmf);
à emergência daquilo que daí resulta, o acontecimento de de outro lado, mostram que, se o eu af se dissipa, não
uma outra natureza, como efeito de superfície. Assim, qual- pode ser em virtude de alguma identidade dos contrérios,
quer que seja a importância das posições precedentes ou a de uma inversic em que o ativo tornar-se-ia passivo —
necessidade de ligar sempre o acontecimento a suas causas, como isto acontece no devir das profundidades e na identi-
a psicanálise tem razão de lembrar o papel de Edipo como dade infinita que ele implica 2.
“complexo nuclear” — fórmula da mesma importância que
o “núcleo noemático” de Husserl. Pois é com Édipo que 2. Cf. J. Loplanche e J. B. Pontalis,is, * “Fantasme originaire,
iginai fantasme des
© acontecimento se destaca de suas causas em profundidade, origines, origil{e E fantasme”, op. cit., pp. 1861-1868: " “Um pai seduza
filha, tal seria por exemplo a formulação resumida do fantasma da_sedugio:
se. estende na superficie e se prende a sua quase-causa do À marea do processo primário não é aqui a ansência de organização, como
se costuma dizer, mas este caráter particular da estrutura; ela é um cenário
ponto de vista de uma gênese dinâmica. Crime perfeito, com entradas múltiplas, mo quel nada diz que o sujeito encontrará de uma
verdade eterna, esplendor real do acontecimento, dos quais 56 vez seulugar no termo filha; podemos vê-lo fixarse em paí ou mesmo
em seduz”. É isto, alids, o essencial da crítica que Laplanche e Pontalis
cada qual comunica com todos os outros nas variantes de dirigem à tese de Susan Isaacs (“Natureza e função do fantasma”, em Déve-
loppements de la Psychanalyse”): esta, modelando o fantasma sobre a pulsão,
Todavia, não podemos seguir esses autores quando o eu dissolvido. O fantasma é, assim, inseparável dos lances
procuram este além do ativo e do passivo em um modelo de dados ou dos casos fortuitos que coloca em cena. E
do pronominal que faz ainda apelo ao eu e se relaciona as célebres transformações gramaticais (comnias do presi-
mesmo explicitamente a um aquém auto-erótico. O valor dente Schreber, ou as do sadismo ou do voyeurismo marcam
do pronominal — punir-se em lugar de Punir ou de ser cada vez assumpções de singularidades repartidas em disjun-
punido, ou melhor ainda, ver a si mesmo ao invés de ver e ções, todas as comunicantes no acontecimento para cada
de ser visto — é realmente atestado por Freud, mas não pa- caso, todos os acontecimentos comunicando em um como
rece ultrapassar o ponto de vista de uma identidade dos os lances de dado em um mesmo lançar. Reencontramos
contrérios, seja por aprofundamento de um deles, seja por aqui a ilustração de um princípio da distância positiva, com
sintese dos dois. Que Freud tenha ficado preso a um tal as singularidades que a escalonam e de um uso afirmativo
ponto de vista “hegeliano” não é duvidoso, como se vê no da síntese disjuntiva (e não síntese de wntradição)..
domínio da linguagem a propósito de uma tese sobre as 3º) Não é um acaso se o desenvolvimento inerente
palavras primitivas providas de um sentido contraditório 3. ao fantasma se exprime em um jogo de transformações
Em verdade, o ultrapassamento do ativo e do passivo € a gramaticais. O fantasma-acontecimento se distingue do
dissolução do eu que lhe corresponde, não se fazem na estado de coisas correspondente, real ou possível; o fantasma
diregio de uma subjetividade infinita ou refletida. O que representa o acontecimento segundo sua essência, _isto é,
estd além do ativo e do passivo não é pronominal, mas o como um atributo noemático distinto das ações, paixões e
resultado — resultado de ações e paixdes, o efeito de super- qualidades do estado de coisas. Mas o fantasma representa
ficie ou o acontecimento. O que aparece no fantasma é o também o outro aspecto, não menos essencial, segundo o
movimento pelo qual o cu se abre à superficic e libera as qual o acontecimento é o exprimível de uma proposição
singularidades acosmicas, impessoais e pré-individuais que (o que Freud marca dizendo que o material fantasmático,
aprisionava. Ao pé da letra, ele as abandona como espórios por exemplo, na representação do coito parental, estê em
e explode neste deslastre. É preciso interpretar a expressão afinidade com as “imagens verbais”). Aí ainda, não é que
“energia neutra” neste sentido: neutro significa então pré- o fantasma seja dito ou significado; o acontecimento apre-
-individual e impessoal, mas não qualifica o estado de uma senta tantas diferenças com as proposições que o exprimem
energia que viria juntarse a um sem-fundo, remete, ao quanto com o estado de coisas ao qual sobrevém. Resta
contrario, às singularidades liberadas do eu pelo ferimento que não existe fora de uma proposição pelo menos possível,
narcisico. Esta neutralidade, isto é, este movimento pelo mesmo se esta proposição tem todos os caracteres de um
qual singularidades são emitidas ou antes restituidas por um paradoxo ou de um não-senso; e que ele insiste em um
€u que se dissolve ou se adsorve na superficie, pertence elemento particular da proposição. Este elemento é o verbo
essencialmente ao fantasma: assim em “Uma crianca e o verbo no infinitivo. O fantasma é inseparável do
apanha” (ou ainda “Um pai seduz a filha”, segundo o verbo infinitivo e dá testemunho assim do acontecimento
exemplo invocado por Laplanche e Pentalis). Entio, a puro. Mas, em virtude da relação e do contacto complexos
individualidade do eu se confunde com o acontecimento do entre a expressão e o expresso, entre a interioridade do
préprio fantasma; desde que o acontecimento representado exprimente e a exterioridade do expresso, entre o verbo tal
no fantasma seja apreendido como um outro individuo ou como aparece na linguagem e tal como subsiste no ser,
antes como uma série de outros individuos pelos quais passa devemos conceber um infinitivo que não é tomado ainda no
jogo das determinações gramaticais, independente não
dé 20 sujeito um lugar detorminado ativo, mesmo se o ativo vira passivo e
inversamente. Ao que eles objetam: “Basta reconhecer mo fantasma de incor- somente de toda pessoa, mas de todo tempo, de todo modo
Boração a equivaléntia de comer e ser comido? Enquanto é mantida a idéia e de toda voz (ativa, passiva ou reflexiva): infinitivo neutro
de um lugar do sujeito,
estrutura do fantasma maismesmo se este pode aí ser apassivado, estamos na
fundamental?” para o puro acontecimento, Distância, Aion, que representa
Sobre o laço da inversão dos contrários
9 valor do pronominal a este respeito, cf. Freud, e “Asdo pulsões
retomo contra si e sobre
e seus destinos”, o extraproposicional de todas as proposições possíveis ou o
em Métapsychologie. conjunto dos problemas e questões ontclég;lca_s que corres-
1O, texto de Freud sobre os sentidos opostos nas palacras primitivas foi
Griticado por Emile Benveniste (“Remarques sur la fonction du langage dans la pondem com a linguagem. É a partir deste infinitivo puro
découverte freudienne”, Problêmes de Linguistique gênênie). — Benveniste não determinado que se faz o engendramento das vozes, dos
mostia_que uma língua pode muito bem não comportar tal ou tal categoria,
mas não lhe dar uma expressão contraditória. (Todavia, ao ler Benveniste, modos, dos tempos ¢ das pessoas, cada um dos termos
Yemse a impressão de que uma língua se confunde necessariamente com puros
Processos de racionalização; a linguagem não implica, no entanto, procedi- engendrados nas disjunções representando no seio do fan-
meatos paradoxais com relação a sua Organização manifesta, embora estes tasma uma combinação variável de pontos singulares e cons-
Procediment
fumentas não se deixem do forma nenhuma seduzic à identificação dos
t truindo em torno destas singularidades um caso de solução
para o problema especificado — problema do nascimento, abandonam “todo objeto matural” (de onde a imgcrtâncna
da diferença dos sexos, da morte. . Luce Irigaray, em um que atribuem ao pronominal e o sentido que dão às trans-
breve artigo, após ter marcado a relação essencial do fan- formações gramaticais como tais na posição nao-loca.\xzév:el
tasma com o verbo infinitivo, analisa exemplos de uma tal do sujeito). Mélanie Klein, enh.x_n, faz uma observagio
gênese: um infinitivo sendo determinado em um fantasma jmportante, apesar de seu uso muito extensivo da palavra
(assim “viver”, “absorver”, “dar”) ela pergunta qual o tipo fantasma: ocorre a ela freqiientemente dizer que o simbo-
de conexão sujeito-objeto, o tipo de conjunção ativo-pas- lismo está na base de todo fantasma e que o desenvolvi-
sivo, o tipo de disjunção afirmação-negação, o tipo de tem- mento da vida fantasmatica é impedido pela persisténcia das
poralização de que cada um destes verbos é capaz (“viver”, posições esquizdide e depressiva. Precisamente, parece-nos
por exemplo, tem um sujeito, mas que não é agente e não que o fantasma, propriamente falando, não encontra sua
tem objeto diferenciado). Ela pode, pois, classificar estes origem senfio no eu do parcisismo secundé‘no, com o feri-
verbos em uma ordem que vai do menos determinado ao mento narcisico, com a neutralização, a simbolizacio e a
mais determinado, como se um infinitivo geral supostamente sublimação que se seguem. Neste sgnt'ido não é somente
puro se especificasse progressivamente a partir da diferencia- inseparável das transformações gramaticais, mas_do infinitivo
neutro, como matéria ideal destas trapsformagBes. O fan-
ção das relações formais gramaticais*. É assim que o
Aion se povoa de acontecimentos ao nível das singularidades tasma é um fendmeno de superficie, muito mais um íenq—
distribuídas por sobre sua linha infinitiva. Tentamos mos- meno que se forma em um certo momentono desenvolvi-
trar de uma maneira análoga que o verbo ia de um infinitivo mento das superfícies. Eis por que preferimos a palavra
puro, aberto sobre uma questão como tal, a um indicativo simulacro para designar os objetos das pr.oíundl.dades (que
presente fechado sobre uma designação de estado de coisas já não são mais “objetos naturais”), assim como o devir
ou casos de solução: um, abrindo e desdobrando o anel da que thes corresponde e as inversões que Os caracterizam.
Proposição, o outro fechando-o e entre os dois todas as Idolo, para designar o objeto das alturas ¢ suas aventuras.
vocalizações, as modalizações, as temporalizações, as perso- Imagem, para designar o que concerne às superficies pm:cxa}S
nalizações, com as transformações próprias a cada caso corporais, inclusive o problema inicial de sua concordancia
segundo um “perspectivismo” gramatical generalizado. falica (a boa intengdo).
Mas, então, uma tarefa mais simples se impõe, a de
determinar o ponto de nascimento do fantasma e a partir
dai sua relação real com a linguagem. Esta questão é
nominal ou terminológica na medida em que concerne ao
emprego da palavra fantasma. Mas ela empenha outras
coisas também, pois que fixa este emprego com relação a
tal momento considerado capaz de torná-lo necessário no
curso da gênese dinimica. Por exemplo, Susan Isaacs, em
seguida a Mélanie Klein, emprega já a palavra fantasma
para indicar a relação com os objetos internos introjetados
e projetados na posição esquizóide, em um momento em
que as pulsões sexuais estão vinculadas às alimentares; é
então forçoso que os fantasmas não tenham com a linguagem
senão uma relação indireta e tardia e que, quando são
posteriormente verbalizados, isto ocorra sob as espécies de
formas gramaticais já feitasS. Laplanche e Pontalis fundam
o fantasma com o auto-erotismo e o ligam ao momento em
que as pulsSes sexuais se destacam do modelo alimentar e
4. Imcanay, Luce, Du Fantasme et du Verbe. L’Arc, n® 4, 1965,
Uma tal tentativa dove cvidentemente apoiar-se muma génese lingiifstics das
Telações gramaticals no verbo (voz, modo, tempo, pessoa). Como exempios de
tais gêncses, lembraremos a de Custave Guilloume (fpoques et miveaus tem-
porels dans le systéme de la conjugaison française) e a de Damourette e
FPichon (Essai de e , t V). Pichon, ele próprio, sublinhiva
a importância de tais estudos para a patologia.
' Tsaacs, Susan, — Nature et fonction du phantasme. Développements
de la psychanalyse p. 85e s. >
L llgeãlllld FIMIGINITA oerie:

Do Pensamento

Insistiu-se freqiientemente sobre a extrema mobilidade


do fantasma, sua capacidade de “passagem”, um pouco
como os envelopes e as emanações epicurianas que percor-
rem a atmosfera com agilidade. A esta capacidade se ligam
dois tragos fundamentais: de um lado, que ele franqueic
tdo facilmente a distincia entre sistemas psiquicos, indo da
consciéncia ao inconsciente e inversamente, do sonho
noturno ao devaneio diurno, do intcrior ao exterior e inver-
samente, como se pertencesse a uma superficie que domina
e articula o inconsciente e o comsciente, a uma linha que
reúne e distribui sobre duas faces o interior e o exterior;
de outro lado, que se volte tio bem sobre sua prépria origem
e que, como “fantasma origindrio”, integre tdo bem a origem
do fantasma (isto é, uma questdo, a origem do nascimento,
da sexualidade, da diferenca dos scxos, da morte...)L É
que cle é insepardvel de um deslocamento, de um desen-
rolar, de um desenvolvimento no qual arrasta sua prépria
origem; e nosso problema precedente; “onde comega o
fantasma, propriamente falando”, implica já o outro pro-
blema, “em que direção vai o fantasma, para onde carrega
seu começo”. Nada é finalizado como o fantasma, nada
se finaliza tanto.
O comego do fantasma, tentamos determini-lo como
sendo o ferimento narcisico ou o tragado da castração. Com
efeito, conforme i natureza do acontecimento, € a1 que
aparcce um resultado da ação completamente diferente da
prépria agio. A intengdo (edipiana) era reparar, fazer vir
e colocar em acordo suas préprias superficies fisicas; mas
tudo isso pertencia ainda ao domfnio das Imagens, com a
1. Cf. Laplanche e Pontalis, “Fantasme originaire.,.” p, 1853; Voca-
butaire de la Peychanalyse, pp. 158-159.
libido narcísica e o falo como projeção de superfície. O sexual à diferenga de intensidade constitutiva do pensamento,
resultado é castrar a mãe e ser castrado, matar o pai e ser intensidade primeira que marca para o peasamento o ponto
morto, com transformação da linha fálica em traçado da zero de sua energia, mas a partir do qual também ela investe
castração e dissipação correspondente de todas as imagens a nova superficie?. Sempre extrair o pensamento de um
(a mãe-mundo, o pai-deus, o eu-falo). Mas se fazemos, casal, pela castracdo, para operar uma espécie de acasala.—
assim, começar o fantasma a partir de um tal resultado, é mento, do pensamento pela fenda. E o casal de Klossowski,
claro que este exige para se desenvolver uma superfície de Roberte-O ctave, tem seu correspon dente de uma outra
um outro tipo que a superficie corporal em que as imagens maneira no casal de Lowry e no casal último de Fitzgerald,
se desenvolviam segundo sua lei propria (das zonas parciais a esquizofrénica e o alcodlatra. É que não apeénas o con-
à concordancia genital). O resultado não se desenvolverá junto da superfície sexual, partes e todo, é levado a se
sendo sobre uma segunda tela; logo, o comego do fantasma projetar sobre a superfície metafisica de pensamento, mas
não terd seqtiéncia senão alhures. O tragado da castragio também a profundidade e seus objetos, a altura e seus
não constitui, ndo desenha por si mesmo este alhures ou fenômenos. O fantasma se volta sobre seu começo que
esta outra superficie: ele concerne sempre apenas à super- lhe permanecia exterior (castração); mas como es_te começo
ficie fisica do corpo e não parece desqualifics-la sendo em ele próprio resulta, ele se volta também para aquilo de que
proveito das profundidades e das alturas que conjurava. É o começo resulta (sexualidade das superfícies corporais);
o mesmo que dizer que o comego está verdadeiramente no enfim, cada vez mais ele se volta sobre a origem absoluta
vazio, suspenso no vazio. Ele é withour. A situação de onde tudo procede (as profundidades). Dir-se-ia agora
paradoxal do comego, aqui, é que ele é em si mesmo um que tudo, sexualidade, oralidade, analidade, reccbe uma
resultado, de um lado, e de outro, permanece exterior ao nova forma sobre a nova superficie, que não recupera e
que faz comegar. Esta situagdo seria sem saida se a não integra somentc as imagens, mas mesmo os idolos,
castra¢do não mudasse ao mesmo tempo a libido narcisica mesmo os simulacros.
em cnergia dessexualizada. É esta cnergia neutra ou desse- Mas que significa recuperar, integrar? Chamévamos
xualizada que constitui a segunda tela, superficie cerebral de sublimação a operagdo pela qual o tragado da castragio
ou metafisica em que o fantasma vai se desenvolver, torna-se linha do pensamento, logo também a operação pe!a
re-comegar de um comego que o acompanha agora a cada qual a superficie sexual e o resto se projgtam na superfigle
passo, correr até sua prépria finalidade, representar os do pensamento. Chamdvamos de simbohzagfio' a operagio
acontecimentos puros que são como um só e mesmo Resul- pela qual o pensamen to reinveste com sua propria energia
tado no segundo grau. tudo O que acontece e se projeta sobre sua superficie. o
Há, pois, um salto. O tragado da castragio como simbolo não é evidentemente menos irredutivel que o simbo-
sulco morta! torna-se esta fenda do pensamento, que marca lizado, a sublimagdo não é menos jrredutivel que o subli-
sem divida a impoténcia em pensar, mas também a linha mado, Há muito tempo que ndo hd nada de estranho em
e o ponto a partir dos quais o pensamento investe sua nova uma relagio suposta entre o ferimento da castragdo e a
superficie. E, precisamente porque a castragio estd como fenda constitutiva do pensamento; entre a sexualidade.e o
entre as duas superficies, ela não sofre esta transmutação pensamento como tal. Nada de estranho (nem de triste)
sem carregar também a metade a que pertence, sem abaixar nos caminhos obsessivos pelos quais passa um pensador.
de alguma forma ou projetar toda a superficie corporal da Não se trata de causalidade, mas de geografia e de
sexualidade sobre a superficie metafisica do pensamento. topologia. Isto não quer dizer que o pensamento pensa na
A férmula do fantasma é: do casal sexuado ao pensamento sexualidade, nem o pensador no casamento. É o pensa-
por intermédio de uma castragdo. Se é verdade que o pensa- mento que é a metamorfose do sexo, o pensador a
dor das profundidades é celibatario e o pensador depressivo metamorfose do casal. Do casal ao pensamento, mas O
sonha com niipcias perdidas, o pensador das superficies é pensamento reinveste o casal como djade e acasalamento.
casado ou pensa o “problema” do casal. Ninguém tanto Da castragdo ao pensamento, mas o pensamento reinveste a
como Klossowski soube destacar este encaminhamento do castragio como fissura cerebral, linha abstrata. Precisa-
fantasma, porque é o de toda sua obra. Em termos mente, o fantasma vai do figurativo ao abstrato: ele comega
bizarros em aparéncia, Klossowski diz que seu problema é pelo figurativo, mas deve prosseguir no abstrato. [e]
saber como um casal pode se “projetar” independentemente fantasma é o processo de constituição do incorporal, a
de criangas, como podemos passar do casal ao pensamento e Posfacio às Lois de Phospitalitd,
2. Kuossowsss, Pieme. Prefácio
erigido em casal em uma comédia mental, da diferenga op. cit.
máqum:a para extrair um pouco de pensamento, repartir do espirito. Mas cada vez se destacou um verbo orgulhoso
de
uma diferença de potencial nas bordas da fissura, para e brilhante, distinto das coisas e dos corpos, dos estados
paixdes:
polarizar o campo cercbral. Ao mesmo tempo em que se coisas e de suas qualidades, de suas ações e de suas
r distinto da drvore e de seu verde, um
volta sobre seu comeco exterior {a castragio mortal), ele como o verdeja
e de suas quali-
não cessa de recomegar seu comego interior (o movimento comer (ser comido) distinto dos alimentos
corpos e de
da_ dessexualizagdo). É nisso que o fantasma tem a pro- dades consumiveis, um acasalar-se_distinto dos
pnec!ade de colocar em contacto o exterior e o interior e de s eternas . Em suma, a metamo rfose
seus sexos — verdade
reuni-los em um só lado. Eis por que é o lugar do eterno o isolam ento da entidad e ndo existen te para cada estado
é
qualidade, cada
retorno. Ele não cessa de mimetizar o nascimento de um de coisas, o infinitivo para cada corpo e
pensamento, de recomegar a dessexualizagio, a sublimagao, sujeito e predicado, cada ação e paixdo. A metamorfose
coisa no
a simbolizagdo tomadas ao vivo, operando este nascimento. (sublimação e simbolização) consiste para cada
tempo O scu
E, sem este recomeço intrinseco, ele não integraria seu outro isolamento de um aliquid que é ao mesmo
, eterna verdade ,
comego. E, sem este recomego intrinseco, ele ndo inte- atributo noemático e o exprimível noético
corpos. É aí
graria seu outro comego, extrinseco. O risco evidentemente sentido que sobrevoa e plana por cima dos
reparar
é o de que o fantasma recaia sobre o mais pobre pensa- somente que morrer e matar, castrar e ser castrado,
e ser devorado, introjetar
n?emo, puerilidade e retorno insistente de um devaneio e fazer vir, ferir e retirar, devorar
diurno “sobre” a sexualidade, cada vez que perde seu e projetar, tornam-se acontecimentos puros, sobre a super-
que os transforma, onde seu infinitivo se
impulso e malogra no salto, isto &, cada vez que recai no fície metafísica
entre—dv;ms superficies. Mas o caminho de gléria do fan- E todos os acontecimentos, todos os verbos, todos
extrai.
tasma é aquele que Proust indicava, da questdo “esposarei estes exprimíveis-atributos comunicam em um nesta extra-
Albertina?’ ao problema da obra de arte por fazer — mesma linguagem que os exprime, sob um
ção, para uma
operar o acasalamento especulativo a partir de um casal “ser” em que são pensados. E, do mesmo modo
mesmo
plano do aconte-
sexlfado, refazer o caminho da criagdo divina. Por que a como o fantasma retoma tudo neste novo
glórla?v Em que consiste a metamorfose quando o pensa- cimento puro, nesta parte simbóli ca e sublim ada do inefe-
mento mveste_(ou reinveste) de sua energia dessexualizada, tuável, ele retira também desta parte a forga para dirigir a
a sua contra-
o que se projeta sobre sua superficie? É que ele o faz efetuagio, para duplici-la, para conduzir
então, sob as espécies do Acontecimento: com esta pam; efetuação concreta. Pois o acontecimento não se inscreve
a vontade e a liberdade que
do acontecimento que é preciso chamar de inefetudvel, bem na carne, nos corpos, com
da parte
precisamente porque é pensamento, não pode ser realizado convém ao paciente pensador senão em virtude
é, o princip io, a
a ndo ser por ele e ndo se realiza senfio nele. Então incorporal que contém o seu segredo, isto
elevam-se agressões e voracidades que ultrapassam tudo o verdade e finalidade, a quase-causa.
lar
que se passava no fundo dos corpos; desejos, amores, A castragio tem pois uma situagdo muito particu
acasalamentos e copulagdes, intengSes que ultrapassam tudo de que resulta e o que faz comecar . Mas nio
entre aquilo
a superficie
o que acontecia na superficie dos corpos; e impoténcias e é somente a castragio que estd no vazio, entre
pensa-
mortes que ultrapassam tudo o que podia sobrevir. Esplen- corporal da sexualidade e a superficie metafisica do
dor incorporal do acontecimento como entidade que se forma é toda a superfi cie sexual que é
mento. Da mesma
a superfí cie
dirige a0 pensamento ¢ que somente ele pode investir, intermediária entre a profundidade física e
Extra-ser. dade pode tudo
metafísica. Em uma direção a sexuali
, Fizemos como se fosse possivel falar de acontecimento abater: a castração reage sobre a superficie sexual de onde
ainda por seu traçado; ela
assim que um resultado se destacava, se distinguia das agdes ela resulta e à qual pertence
¢ paixdes de que resultava, dos corpos em que se efetuava. profun-
quebra esta superfície, fá-la alcançar os pedaços da
Isto ndo é exato: € preciso esperar pela segunda tela, a sublim ação bem sucedid a,
didade, bem mais, impede toda
superficie metafisica. Antes não há sendo simulacros todo desenvolvimento da superfície metafísica e faz com que
corpos,
idolos, imagens, mas não fantasmas como representagdes dé a fissura incorporal se efetue no mais profundo dos
e que o
acontecimentos. Os acontecimentos puros são resultados, se confunda com a Spaltung das profundidades
mas resultados de segundo grau. É verdade que o fanmm; em seu ponto de impotên cia, na
pensamento se desmorone
reintegra, retoma tudo na retomada de seu prépric movi- de erosão. Mas na outra direção a sexuali dade
sua linha
mento. Mas tudo mudou. Nio que os alimentos se a castração prefigu ra a superfí cie
pode tudo projetar:
tenham tornado alimentos espirituais, as copulagdes gestos r e à qual ela pertenc e já pela
metafísica que faz começa
energia dessexualizada que desprende; ela projeta não Trigésima Segunda verie:
somente a dimensão sexual, mas as
profundidade e da altura sobre esta nova superfície em que
outras dimensões da
Sobre as Diferentes
se inscrevem as formas de sua metamorfose. A primeira
direção deve ser determinada como a da psicose, a segunda
Espécies de Séries
como a da sublimação bem sucedida; e entre as duas toda
a neurose, no caráter ambíguo de Édipo e da castração.
O mesmo se dá com a morte: o eu narcísico olha-a de dois
lados, segundo as duas figuras descritas por Blanchot — a
morte pessoal e presente, que dilacera e “contradiz” o eu,
abandona-o às pulsões destruidoras das profundidades tanto
quanto aos golpes do exterior; mas também a morte impes-
soal e infinitiva, que “distancia” o eu, fá-lo largar as
singularidades que retinha, eleva-o ao instinto de morte
sobre a outra superfície em que “se” morre, em que não
se cessa e não se acaba mais de morrer. Toda a vida
biopsíquica é uma questão de dimensões, de projeções, de
eixos, de rotações, de dobras. Em que sentido, em qual
sentido iremos? De que lado tudo vai pender, dobrar-se
ou desdobrar-se? Já sobre a superfície sexual as zonas Mélanie Klein observa que entre os sintomas e as
erógenas do corpo entram em combate, combate que a zona sublimagSes deve haver uma série intermedidria que corres-
genital deveria arbitrar, pacificar. Mas ela é em si mesma ponda aos casos de sublimação menos bem sucedida. Mas
o lugar de passagem de um mais vasto combate, na escala é toda a sexualidade que, já de si mesma, é uma sublimagio
das espécies e da humanidade inteira: o da boca e do “menos bem sucedida”: ela é intermedidria entre os sinto-
cérebro. À boca, não somente como uma zona oral mas de profundidade corporal ¢ as sublimações de superficie
superficial, mas como o órgão das profundidades, como incorporal e se organiza em séries precisamente neste estado
boca-ânus cloaca introjetando e projetando todos os pedagos; de intermedidrio, sobre sua prépria superficic intermedidria.
o cérebro não somente como órgão corporal, mas como A prépria profundidade não se organiza em séries; o despe-
indutor de uma outra superfície invisível, incorporal, meta- dagamento de seus objetos disto a impede no vazio, tanto
física onde todos os acontecimentos se inscrevem e simbo- quanto a plenitude indiferenciada do corpo que ela opde aos
lizam?. É entre esta boca e este cérebro que tudo se objetos em pedagos. De um lado, ela apresenta bloces de
passa, hesita e se orienta. Somente a vitória do cérebro, coexisténcia, corpos sem órgãos ou palavras sem articulagdo;
se cla se produz, libera a boca para falar, libera-a dos de outro, seqiiéncias de objetos parciais que não são
alimentos excremenciais e das vozes retiradas e a nutre uma ligados entre si a não ser pela comum propriedade de
vez com todas as palavras possiveis. serem destacdveis e despedacéveis, introjetaveis e projetdveis,
3. Edmond Perier é que, em uma perspectiva evolucionista, fazia uma de explodir e de fazer explodir (assim, a célebre seqgiiéncia
teoria bastante bela sobre o “conflito entre a boca ¢ O cérebro”; mostrava seio-alimentos-excrementos-pénis-crianga). Estes dois aspec-
como o desenvolvimento do sistema nervoso nos vertebrados leva a extremidade
cesebral & tomar o lugar que a boca ocupa nos vermes anélados. Ele clsborava tos, seqiiéncia e bloco, representam as formas que tomam
o conceito de atítude para dar conta destas orientagdes, destas mudangas respectivamente o deslocamento e a condensagio em pro-
Posição 6 de dimensão, - Servia-se de um método Terdada ds Geoffroy S
Jaire, o das dobras ideais, que combinava de maneira complexa o espaço e o fundidade na posição esquizéide. É com a sexualidade,
igine des embmcnemnu du rêgne animal”, Scientia, maio de
biológica do cérebro sempre Jevou em conta seu carfier3 esseneial isto é, com o isolamento das pulsGes sexuais, que comega
‘mente superficial (origem ectodérmica, matureza & fonção de superfície). - Ereud a série, porque a forma serial é uma organizagic de
Tecorda-o e daí tira grande partido em Além do Pri de st, “Cap. 4.
As pesquisas modemas insistem sobre a relação das áreas e projecao corticais superficie.
com um espago topolégico: "A projeção converte de fato um espaço euchi-
Siano &m espaço topolégioo, tamto que o córtex não pode ser representado Ora, nos diferentes momentos da sexualidade que
adequadamente de maneira euclidiana, rigor, ndo deveríamos falar de consideramos precedentemente, devemos distinguir espécies
projeção para o cortex, embora haja no et geométrico do termo projeção
para_pequenas regiões; deveriamos dizer: conversão do espaco euclidiano em de séries bastante diferentes. Em primeiro lugar, as zonas
espaço topológico”, um sistema mediato de relagdes restituindo as estruturas erégenas na sexualidade pré-genital: cada uma se organiza
euclidianas _(Simondon,op. cit, p. 262). E neste sentido que falamos de
Uma conversão da superfície fíica em superticio metafísica o de um em uma série, que converge em torno de uma singularidade
indução desta aquela. Podemos então identificar superfície cerebral e
Superfície metafísica; trata-se menos de materializar a superfície metafísica do Tepresentada o mais freqiientemente pelo orificio envolvido
que seguir a projeglo, a conversão, a índução do próprio cérebro. de mucosa. A forma serial é fundada na zona erdgena de
superficie na medida em que esta se define pela extensão de ou duas séries coexistentes, materna e paterna: assim,
uma singularidade ou, o que dá no mesmo, pela repartição mie ferida, reparada, castrada, castrante; pai retirado,
de uma diferença de potencial ou de intensidade, com evocado, morto, matando. Mais ainda, esta ou estas séries
maximum e minimum (a série se detém em torno dos pontos edipianas entram em relação com as séries pré-genitais, com
que dependem de uma outra). A forma serial sobre as as imagens que correspondiam a estas últimas e mesmo com
zonas erégenas é, pois, igualmente fundada numa matems- os conjuntos e as pessoas de que estas imagens eram
tica dos pontos singulares ou numa fisica das quantidades extraidas. É, alids, nesta relagio entre imagens de origem
intensivas. Mas é ainda de uma outra maneira que cada diferente, edipianas e pré-genitais, que se elaboram as condi-
zona erógena traz uma série: desta vez trata-se da série ções de uma “escolha de objeto” exterior. Nunca seria
de imagens projetadas sobre a zona, isto é, objetos susce- demasiado insistir sobre a importincia deste nove momento
tiveis de assegurar 2 zona uma satisfagio auto-erdtica. ou relação, pois que anima a teoria freudiana do aconteci-
Seja, por exemplo, os objetos a chupar cu imagens da zona mento, ou antes, das duas séries de acontecimentos: esta
oral: cada qual, por conta prépria, faz-se coextensivo a teoria consiste primeiro em mostrar que um fraumatismo
toda a extensdo da superficie parcial e percorre, explora supde pelo menos a existéncia de dois acontecimentos inde-
seu oriffcio e seu campo de intensidade, do maximum ao pendentes, scparados no tempo, um infantil e o outro pés-
minimum & inversamente; eles se organizam em série -pubertário, entre os quais se produz uma espécie de resso-
segundo a maneira pela qual se tornam assim coextensivos nancia. Sob uma segunda forma, os dois acontecimentos
(por exemplo, o bombom cuja superficie é multiplicada por sdo antes apresentados como duas séries, uma pré-genital, a
mordidas e o chewing-gun por estiramento), mas também outra edipiana e sua ressondncia como o processo do
segundo sua origem, isto é, segundo o conmjunto de que fantasma?. Na terminologia que empregamos trata-se, pois,
sdo extrafdos (outra região do corpo, pessoa exterior, objeto não de acontecimentos, propriamente falando, mas de duas
exterior ou reprodução de objeto, brinquedo ctc.) e segundo séries de imagens independentes, destacando-se o Aconteci-
seu grau de distanciamento com relagdo aos objetos primi- mento apenas por sua ressonincia no fantasma. E se a
tivos das pulsGes alimentares e destruidoras de que as primeira série não implica uma “compreensdo” do aconteci-
pulsdes sexuais acabam de se desprender!. Em todos mento em questão, é porque se constréi segundo a lei das
estes sentidos, uma série ligada a uma zona erógena parece zonas parciais pré-genitais e que só v [antasma enquanto
ter uma forma simples, ser homogénea, dar lugar a uma faz ressoar as duas séries juntamente atinge a uma tal
sintese de sucessdo que pode se contrair como tal e de qual- compreensdo, não sendo o acontecimento a compreender
quer maneira constitui uma simples conexdo. Mas, em diferente da prépria ressondncia (deste ponto de vista ele
segundo lugar, é claro que o problema da concérdia falica não se confunde com nenhuma das duas séries). Em todo
das zonas erégenas vem complicar a forma serial: sem caso, o essencial estd na ressonância das duas séries inde-
davida, as séries se prolongam umas às outras e convergem pendentes, temporalmente disjuntas.
em torno do falo como imagem sobre a zona genital. Esta Achamo-nos aqui diante de uma terceira figura da
zona genital tem ela propria sua série. Mas não é separdvel forma serial. Pois as séries consideradas agora são bem
de uma forma complexa que subsume agora séries hetero- heterogéneas, mas não respondem mais em absoluto as
géneas, uma condição de continuidade ou de convergéncia condigbes de continuidade e de convergéncia que asscgura-
tendo substituido a homogeneidade; ela dá lugar a uma vam sua conjungio. De um lado elas são divergentes e
sintese de coexisténcia e de coordenagdo e constitui uma não ressoam sendo sob esta condição; de outro, elas consti-
conjunção das séries subsumidas. tuem disjungdes ramificadas e dão lugar a uma sfntese
Em terceiro lugar, sabemos que a concordéncia falica disjuntiva. A razio deve ser buscada nas duas extremi-
das superficies é acompanhada pecessariamente por empre- dades desta forma serial. Com efeito, ela põe em jogo
endimentos edipianos que se referem, por sua vez, a imagens imagens; mas, qualquer que seja a heterogencidade das
parentais. Ora, no desenvolvimento próprio a Edipo, estas 2. Observarse-á já o emprego por Frend da palawia “séric”, seja a
imagens entram, por sua conta, em uma ou vérias séries propésito de sua apresentagio do complexo de Édipo completo, com guatro
3); seja a propósito de suada teona
clementos (O Ego ¢ o Id, Cap.em Três da escolha
— uma série heterogénea com termos alternantes, pai e mãe de objeto (as “séries sexuais”, ensdios sobre a teoria sexudlidade, 111).
obre & concepção dos dois acontecimentos ou “Fantasme
das duas originaire...”,
séries
nos-emos nos comentrios de Laplanche o Pontalis,
1. O objeto pode ser aparentemente o mesmo: por exemplo, o seio, Ele pp. 18391842, 1848-1849, essencial que a primeirado cena, a cena pré-genital
pode parecer também o mesmo para zonas diferentes, por_exemplo, o dedo. {por cxemplo, no Homem dos Lobos, a observação coito com um ano €
Todavia, não confudiremos munca o seio como objeto parcial interno (sucção) meio) ndo seja compreendida como tal. Pois como dizem Laplanche fragmen- e Pon-
€ como Imagem de superficie (0 ato de chupar); nem o dedo como imagem talis, a primcira cena e as imagens pré-genitais correspondentes são
projetada sobre a zona oral ou sobre à zona anal etc. tadas “na série dos momentos de passagem 30 auto-erotismo”.
imagens', desde as imagens pré-genitais das zonas parciais textos célebres. É ele o elemento paradoxal ou o
em
seu proprio equilibrio,
a
até às imagens parentais de Édipo, vimos que a origem objeto = X, faltando sempre
tempo, jamais igual, faltand o a
comum está no idolo, ou no bom objeto perdido, retirado excesso e falta ao mesmo
em a]tlira: é ele primeiramente que torna possível uma semelh anga, & sua prépria identid ade, à sua
sua prépria
com
conversão da profundidade em superfícies parciais, um propria origem, ao seu próprio lugar, sempre deslocado
desgrendl.mento destas superfícies e das imagens q:le as relagio a si mesmo: significante flutuando e significado
habitam; mas é ele também, como bom pênis, que projeta flutuado, lugar sem ocupan te e ocupante sem lugar, casa
por este
o falo a titulo de imagem sobre a zona genital; é ele enfim vazia (que constitui da mesma forma um excesso
(que consf itui da mesma
que .fornece a matéria ou a qualidade das imagens parentais vazio) e objeto supranumerário faz
este número a mais). É ele que
edlp!auas. Poder-se-ia pois dizer, pelo menos, que as séries forma uma falta por
consideradas aqui convergem para o bom objeto das alturas. duas séries, que chamáv amos há pouco pré-gen ital
ressoar as
No entanto, não é nada disso: o bom objeto (ídolo) não mas que devem também receber outras qualifi-
e edipiana,
cações
age senão como perdido, retirado nesta altura que constitui cações, sendo dito que através de todas as suas qualifi
como
a sua dimensão própria. E, sob este prisma, em todas as possíveis uma é determinada como significada, a outra
vezes
ocasiões, ele não age senão como fonte de disjunções, significante 3. É ele, o não-senso de superfície, duas
i o sentido às duas
emissão ou lançamento de alternativas, tendo ele próprio não-senso como vimos, que distribu
car_fcgado no seu retirar-se o segredo da unidade superior como sobrevindo a uma e como insis-
séries, repartindo-o
eminente. É já desta maneira que se define: ferido-indene, tindo na outra (é pois forçoso que a primeira série não
presente-ausente; e é neste sentido que, desde a posíção, implique ainda uma compreensio daquilo que estd em
maniaco-depressiva, impõe ao ego uma alternativa, modelar- questdo).
-se sobre ele ou identificar-se aos maus objetos. Mas, mais Mas todo o problema é: de que maneira o falo como
amd.a,' quando torma possivel um desdobramento das’zonas objeto = X, isto é, como agente da castração, faz ressoar
e de
parciais, ele não as funda senão como disjuntas e separadas as séries? Não se trata mais de uma convergéncia
quando consid erdvam os as séries
—a tal ponto que elas não encontrardo sua convergéncia uma continuidade, como
senão com o falo. E quando ele determina as imagens nelas mesmas eaquanto o falo ainda intacto
pré-genitais
o
parentais, é dissociando de novo seus próprios aspectos. colocava-as de acordo em torno da zona genital. Agora de
distribuindo-os em alternativas que fornecem os t.emm; série, com uma pré-co mpreen sio
pré-genital forma uma
é uma outra
alternantes da série edipiana, repartindo-os em imagens de imagens parentais infantis; a série edipiana
as diferentemente.
mãe (ferida e a tornar indene) e imagem de pai (retirado série, com outras imagens parentais formad
e a tornar presente). Não restaria pois mais do que o falo As duas são descontinuas e divergentes. O falo não asse-
como instância de convergência e de coordenação; mas ele absoluto, um papel de convergência, mas,
gura mais, em
próprio se compromete com as dissociações edipianas. E, ao contrário, enquanto excesso-falta, um papel de resso-
sobretudo, vemos muito bem que ele se furta a seu papeí nância para séries divergentes enquanto tais. Pois, por
não é, em
se póã nos reportamos à outra extremidade da cadeia, não mais semelhantes que sejam as duas séries,
mais à origem das imagens, mas à sua dissipação comum sua semelh ança que elas ressoam , mas ao
absoluto, por
diferen ça a cada vez
por ocasião da evolução de Edipo. contrário por sua diferença, sendo a
este deslo-
Pois, na sua evolução e na linha que traça, o falo não regulada pelo deslocamento relativo dos termos e
cessa fie marcar um excesso e uma falta, de oscilar entre 5. As duas séries a podem sempre descon
ser bastante variáveis,jogo masnão sãosomente
tínuas. B, sobretudo , Série pré-gonitalimsgens põe em as zonas
os dois e mesmo de ser os dois ao mesmo tempo. Ele trógenas parciais e suas imagens, mas parentais pré-cdipi anas fabriz
Cadás de maneira complet amente diferente do implica, que o serão mais iamente, tarde é
é essencialmente um excesso, que se projeta sobre a zona pois, necessar
sem que a criança série, g0 contririo, é de?
ender”
série
'gem.tal da crianga da qual vem duplicar o pénis ¢ ao qual
fragmentadas
s
segundo as zonas.
com relação A criança,
Esta
possa “compre
oo é que se trata que(série parental), Na segunda
inspira o empreendmiento edipiano. Mas é essencialmente Adança qu o jovem se conduz como um dosadulto (série fitial). Por exemplo,
pal quo
fqlta ou privação quando designa, no coração do empreen- na análise que Lacan faz do “Homem satos” há a série doa-amig o
mu-
Tomoveu a criança muito e cedo e faz parte da lenda familiar (dívid
d}menf.o, a auséncia de pénis na mãe. E é com relagio a Ther rica-mulher pobre)ra maisa série nos mesmos termos (adisfarça dos e deslocados
que o sujeito reenconi tarde por conta prépria dívida desempe nhando
si mesmo que é privagdo e excesso, quando a linha fálica fazendo ressoar as duas
O Papel de objetoel = duX, nborost, séries). CE, Jacques Lacan,e
se cºrf]unde com o tragado da castração e que a imagem Le Mythe individu passa por uma série de experiências amorosasna Rochorch
C.D.U. Seja um outro exemplo: com su%
de Proust, o herói pró-genital; depois, uma outra série com Albertina; mas 2
excessiva nf"m_ designa mais do que sua própria falta, carre- e, de um tipo colocava já em jogo, em um modo misterioso não-compreea
gando o pênis da criança, Não há por que insistir sobre série pré-genital
Sivo Ou pré-compreensivo , o meodelo adulto do amor = de X Swann por Odete
os caracteres do falo tais como foram destacados por Lacan (o tema comum de la Prisonniêre indicando o cbjeto
camento sendo regulado pelo deslocamento
objeto = X nas duas séries.
absoluto do da posição sexual — e não é menos fundado por eles. Em-
O fantasma não é outra bora os trabalhos de Lacan tenham um alcance muito mais
coisa, pelo menos em seu ponto de comego: a ressondncia vasto, tendo renovado completamente o problema ggral Qas
interna entre as duas séries sexuais indep
endentes, na relações sexualidade-linguagem, comportam também in-
medida em que esta ressonância prepara
o surgimento do dicações aplicáveis à complexidade desta segunda etapa —
acontecimento ¢ anuncia a sua compreen
sdo. Eis por que, indicações seguidas e desenvolvidas de maneira original por
na sua terceira espécie, a forma serial se apres
enta sob uma alguns de seus discípulos. Se a criança se depara com xàma
forma irredutivel às precedentes: sintese disju
ntiva de séries linguagem preexistente que não pode ainda compreender,
heterogéneas, pois que as séries heterogéne
as são agora talvez, inversamente, apreenda o que não sabeulos fmms
divergentes; mas da mesma forma uso posit
ivo e afirmativo apreender em nossa linguagem possuida: as relagdes fone-
(ndo mais negativo e limitativo) da disju
nção, pois que as miticas, as relagdes diferenciais de fonemas 5.. Obsefvouãse
séries divergentes ressoam enquanto tais; e ramificacio freqiientemente a extrema sensibilidade da crianca 2s dis-
continuada destas séries, em fungio do objeto
= X que tinções fonemdticas da lingua materna e sua indiferenca a
não cessa de se deslocar e de percorré-las .
Se conside- variagBes por vezes mais consxderavçns pertencendo a um
Tamos o conjunto das trés espécies seriais, sintes
e conectiva outro sistema. É, aliás, isso que dá a _cadª sistema uma
sobre uma só série, sintese conjuntiva de convergéncia, forma circular e um movimento retroativo de direito, os
sintese disjuntiva de ressonância, vemos que a terceira se fonemas não dependendo menos d'os morfemas e semante-
Tevela ser a verdade e a destinação das outras, na medida mas que o inverso. É justamente isso que a criança extãz;x
em que a disjungio atinge seu uso positivo afirmativo; a da voz, no desfecho da posição depressiva: uma aprendi-
conjunção das zonas deixa ver então a divergéncia já pre- zagem dos clementos formadores antes de toda compreen-
sente nas séries que coordenava globalmente e
a conexio são das unidades lingiiisticas formadas. No fluxo continuo
de uma zona a multiplicidade de detalhe que
continha já da voz que vem do alto a criança recorta os elemfnwg nge
na série que homogeiniza aparentemente. diferentes ordens arriscando-se a dar-lhes uma função ainda
A teoria de uma origem sexual da linguagem pré-lingiifstica em relação ao conjunto e aos diferentes as-
(Sperber)
é bem conhecida. Mas mais precisamente devemos sição sexual. . .
derar consi-
a posigio sexual enquanto intermedidria e enquanto peº!ºêâgºg: lâs três elementos estejam em jogo cn'culalr-
Produz sob seus diferentes aspectos (zonas erdgenas, estig
filico, complexo de castragdo) os diver io mente, é tentador fazer corresponder cada um a umAaspecersy
sos tipos de séries: da posigio sexual, como se a roda se d_envesse três vlã.z :
qual sua incidéncia, qual a incidéncia delas
sobre a génese de maneira diferente. Mas em que medida podemos liga
dinâmica ¢ a evolução dos sons? Mais ainda
do da linguagem nao é ele Próprio suposto
, um certo esta- assim os fonemas com as zonas erógenas, os morfemas com
pela organizagiio o estágio fálico, os semantemas com a evoh_lçaq de Édipo e
serial? Tinhamos visto que a primeira etapa
Pposigio esquizéide à Posico depressiva, fa dos
da génese, da o complexo de castração? Quanto ao primeiro ponto, o
ruidos à livro recente Serge Leclaire, Psychamzlyser), propõe uma tese
voz: dos ruidos como qualidades, ações e paixões extremamente interessante: uma zona erógena ()5!.0 e;f)n_n
dos corpos
em profundidade à voz como instancia das altura movimento libidinoso do corpo enquanto ocorre à superficie
s, retirada
nesta altura, exprimindo-se em nome daquilo distinguindo-se das pulsdes de conservagio e d(:,’ dest.rul;
que preexiste
ou antes colocando-se como preexistente, ção) seria essencialmente man::ada por uma letra” que, a
E certamente a
criança desperta para uma linguagem que não mesmo tempo, tragaria seu limite e subsumiria as imagens ou
pode apren-
der ainda como linguagem, mas somente objetos de satisfagio. O que é preciso entender aqm'pã)x
rumor como voz,
familiar que j4 fala dela. Este fator & de uma “letra” não supõe nenhum domínio da linguagem, ainda
importéncia
considerdvel para a avaliagio do fato segui menos a posse da escrita: trata-se de uma diferenca tonex:ta—
nte: que, nas
séries da sexualidade, alguma coisa comega por tica em relação com a diferenca de intensidade que cara â;
ser captada,
pressentida antes de ser compreendida; pois Tiza a zona erógena. Todavia, o exemplo ?,remfo invocad
esta pré-com-
preensio se relaciona ao que se encontra já por Leclaire, o do V no “Homem dos lobos”, não parece ir
presente. Per-
guntamos então o que na linguagem corre
sponde à segunda
etapa da génese dinamica, o que funda os Pujol,j “Approche théorique du fantasme” " (La Psychana~
diferentes aspectos e, 50 G ey e b o enqvanto funclona sm
Telação com um Outro fonema “escapa ao adulto na med.xdx em que S
b gy contrário, ma origem da comente, quando as disjundes cutendimento é doravaate —atento ao sentido que se destls da sonoridade ¢
Télicionadas senão não são
co bom objeto da posição depressiva, a sintee. disfuati Dão mais à própria sonoridade. — Afirmamos que o sejeito ínfans mão ve
tem somente um uso limitativo
e negativo,
va com um mesmo ouvido e que só é sensivel & oposição fonemática da corrent
significante. . .
divergentes como tais e ramifica-as 7. À palavra esotérica
inteira desempenha agora o papel de um semantema, con-
n cas K de preferência a obi jetos
máti forme à tese de Lacan segundo a qual o falo de Édipo e
ciso e.ntao ccmpteel?der que
de satiisfaç
sfagãio 6, Se; - da castração é um significante que não anima a série cor-
um fonema selfdo, ele ;ãip respondente sem sobrevir à série precedente, onde ele
"
" lg; . :
circula também pois que “condiciona os efeitos de signifi-
cado por sua presença de significante”. Vamos por con-
seguinte da letra fonemática à palavra esotérica como mor-
fema, depois deste à palavra-valise como semantema.
Da posição esquizóide de profundidade à posição de-
pressiva de altura, passava-se dos ruídos à voz. Mas, com
a posição sexual de superficie, passa-se da voz à palavra.
Resta que a zona | oral É que a organização da superficie fisica sexual tem três
oral não
na perseguiria
iri sua liberaçã momentos que produzem três tipos de sínteses ou de séries:
Seu progresso na aquisiçã
o da linguagem senão zonas erógenas e sínteses conectivas recaindo sobre uma
na ª::
série homogênea; concordância fálica das zonas e síntese
conjuntiva recaindo sobre séries heterogêneas, mas conver-
gentes e contínuas; evolução de Édipo, transformação da
linha fálica em traçado da castração e síntese disjuntiva re-
caindo sobre séries divergentes e ressoantes. Ora, estas
séries ou estes momentos condicionam os três elementos
formadores da linguagem, tanto quanto são condicionados
por eles em uma reação circular, fonemas, morfemas e se-
mantemas. E, no entanto, ainda não há linguagem, estamos
ainda em um domínio pré-lingilístico. É que estes elemen-
tos não se urganizam em unidades lingiísticas formadas que
poderiam designar coisas, manifestar pessoas e significar
conceitos 8. É por isso mesmo que estes elementos não têm
outra referéncia além da sexual, como se a crianga apren-
desse a falar sobre seu préprio corpo, os fonemas remeten-
do as zonas erógenas, os morfemas ao falo de concordéncia,
os semantemas ao falo de castragdo. Esta referéncia não
se deve interpretar como uma designagio (os fonemas não
7. Sobre a palavra “Poord’jeli’, seu primeiro aspecto ou a primeira
série que subsume, of. S. Leclaire, op. cit., pp. 112-115. Sobre o segundo
aspecto ou a segunda séde, pp. 151-153. Leclaire insiste, com razão, sobre
a necessidade de considerar antes o primeiro aspocto por si mesmo, sem ai
colocar já o sentido que só aparecerd com o segundo, Ele lembra a este
Tespeito uma regra Jacaniana essencial, que é a de não nos apressarmos em
climinar o náo-senso em uma mistura das séries que se pretenderia prematu-
ramente significativa, Aliás, as distinções a fazer são de vários domínios: não
somente entre as séries de superfície da sexulidade, mas entre uma série de
superficie e uma seqiência de profundidade. Por exemplo, os fonemas ligados
às zonas erógenas c as palavras complexas lizadas a sua concordincia poderiam
Ser confundidos respectivamente com os valores literais da palavra explodida
e com os valores lônicos da palavra-bloco, ma esquizoírenia (letras-órgãos e
galavra inarticulada). Contudo, não bá aí senão uma correspon-
lência entre uma organização de superficio e a ordem de
€la conjura, entre o não-sentido ¢ superfície e o infra-sentido.
dá em um outro texto um exemplo deste gênero:
eindidade queque
seja um barulho oral das
profundidades do tipo “kroc”; é muito diferente da representação verbal
fcroque”. Esta faz parte, necessariamente, de uma série de superfície ligada
4 zona oral e associável a outras séries, enquanto que aquele se insere em
óprio > "” uma seqiência esquizóide do tipo “croque, trotte, crotte...” (Cf. “Note sur
pr rsm 1Ldo Sujeito e a de Lili) Tobjet de la psychanalyse™, Cahiers pour Vanalyse, nº 2, p. 165).
, faz ressoar as duas séries 8. A voz do alto, ao contrário, dispõe de designações, manifestações,
; TrGHAMF, Sergo, Pychanalyser. Le Sevil, e significações, mas sem elementos formadores, distibuídos e perdidos ma
1968, sobretudo Pp: 90-95. simples entonação.
1rigesima 1erceira oUUe:
e
Das Aventuras de Alic
“designam” zonas erógenas), como uma manifestação, nem
como uma significação: trata-se de um complexo “condi-
cionante-condicionado”, trata-se de um efeito de superfi-
cie, sob seu duplo aspecto sonoro e sexual ou, se preferi-
Iem, ressonância e espelho. A este nivel a palavra começa:
ela começa quando os elementos formadores da linguagem
são extraídos à superfície, do curso da voz que vem do alto.
É o paradoxo da palavra remeter, de um lado, à linguagem
como a alguma coisa de retirado que preexiste na voz do
alto e de outro remeter à linguagem como alguma coisa que
deve resultar, mas que não ocorrerá senão com as unidades
formadas. A palavra não é nunca igual a uma linguagem.
Ela espera ainda o resultado, isto é, o acontecimento, que
tornará a formação efetiva. Ela domina os elementos for-
madores, mas em branco e a história que conta, a história
sexual, não é nada além dela mesma ou sua própria dobra.
Assim, não estamos ainda no domínio do sentido. O barulho
da profundidade era um infra-sentido, um subsentido, Un-
éricas que encontramos
tersinn; a voz da altura era um pré-sentido. E agora po- Os três tipos de palavras esot
às três espécies de séries:
deríamos acreditar, com a organização da superfície, que o em Lewis Carroll correspondem
que opera a síntese conecti-
não-senso atingiu este ponto em que se torna sentido, em “o impronunciável monossílabo”
:narl f que assegura a.codgver_;
que toma um sentido: o falo como objeto = X não é pre- va de uma série; o phlizz ou o
sua sintese con]unuvaà, ooll,;li-
cisamente este ndo-senso de superficie que distribui o sen- géncia de duas séries e opera
palavra = X de que aessínme
tido as séries que percorre, ramifica e faz ressoar e de que a palavra-valise, o jabberwock,
outras € que Opera aa
determina uma como significante e a outra como signifi- mos que já atuava nas duas A
fazendo-as ressoar
cada? Mas repercute em nós o consclho, a regra do método: disjuntiva de séries divergentes, sob esta orga!
não nos precipitarmos em reduzir o não-senso, em confe- tais. Mas, quais as aventuras
car como
rir-lhe um sentido. Ele guardaria seu segredo e a maneira 507
real segundo a qual produz o sentido. A organização da partes marcadas pelas m.udanças el(â
EL窺Álice: tem três
superficie fisica não é ainda sentido; cla é, ou antes, cla serd (Caps. 1-3) banhg àntmªedªointer-
lugares. A prim eira
ir da quec e
co-sentido. Isto é: quando o semtido for produzido sobre
ment o esqu izóide da pmfxmdn"lade, a part slã; Ahcé
uma outra superficie havera também este sentido. De acordo
mindvel de Alice. Tudo é alimento, excremeuto,'
com o dualismo freudiano, a sexualidade é o que é também venenosa . _A prodp e a
objeto parcial interno, mistura
— e por toda parte e durante todo o tempo. Nio há nada
cujo sentido não seja também sexual, segundo a lei da dupla
é um destes ORÍSIOS aam
identifica a seus receptáculos
. e -
e.
freientemente
cmente
superficie. Convém ainda esperar por este resultado que ral desta part
não acaba, esta outra superficic, para que a sexualidade se re o cardter oral, anal, uret ux::d::;fgng:
r?rdrea;r‘ne:tewu:a
faga seu concomitante, co-sentido do sentido e que possamos :sº:ªunda (4-7) parece ?ost 3
rientação. Sem dúvida, ainda ha
dizer “por toda parte”, “em todos os tempos”, “verdade nchida por A.hce,.elm ;\: e_âlt:
?enovaãa o tema da casa pree
eterna”. qual expulsa vmc?elmemo).
impede o coelho de entrar€ da cr'xef.uga:peflxs-e_x emento)
ide
o lagarto (seqiiéncia esquiz
oons idar ?vei s m?\dh!f::ag:::fi;;r]‘::nagora ”
Mas observamos d o
.
é enquanto grande demais que a, crescer € o
objeto interno. Mais aind
à um terc eiro termc t)I :ªs ªãa
ls’:p;l'oizssazln mais em relação
chav e a ser atin gida e à porta a ser a a
fundidade (a si mesmos aoha‘a umé;
m por
na primeira parte), mas atua Que haj
o, isto &, em altura.
um com relação ao outr
mudança, Carroll tomou o cuidado de indicá-lo, uma vez mãe no curso de um processo: “Disseram-me que a tínheis
que agora é beber que faz crescer e comer que diminui (era visto, a Ela — e que falastes a Ele' Mas Alice pms-l
éana
O inverso na primeira parte). E, sobretudo, fazer crescer sente os perigos do novo elemento: a maneira pel'fa
ou fazer diminuir estão reunidos em um mesmo objeto, o suas boas intengdes correm o risco de produng abominá veis
cogumelo que funda a alternativa sobre sua própria circu- resultados e cujo falo representado pela Rainha corre o‘
laridade (Cap. 5). Evidentemente, esta impressão não risco de acabar em castragdo (“que lhe cort?‘m a cabeçã.
é confirmada a não ser que o cogumelo ambíguo dê lugar a A superficic se rompe: "0 pacote de
berrou a rainha”).
um bom objeto, explicitamente apresentado como objeto das cartas voou, depois recaiu sobre Alice”, a
alturas. Não basta, a este respeito, a lagarta que se instala, Dir-se-ia que Do outro lada do espelho recomega é
contudo, no topo do cogumelo. Precisamente, o gato de mesma histéria ou a mesma tentativa, mas deslçcada, su;_y:xc-
Chester desempenha este papel: ele é o bom objeto, o bom o teceiro.
mindo o primeiro momento, desenvolvendo muito oe_
pénis, o idolo ou a voz das alturas. Ele encarna as disjun- Ao invés do gato de Chester ser a boa voz para Alice,
iva, am >
ções desta nova posição: indene ou ferido, já que apresenta
Alice a boa voz para seus gatos reais, voz reprecns eêpel]ãº
edo
rosa e retirada. E, de sua altura, Alice apreend
ora seu corpo inteiro, ora sua cabeça decapitada; presente
ou ausente, já que desaparece deixando apenas o seu sorriso superfície pura, continm.dade do fora e dtã
& en] a%b
como
onde o aa
ou se forma a partir deste sorriso de bom objeto (compla-
em cima e do embaixo, do direito e do avesso,
tempol.)_ wpoo“
wocky se estende nos dois sentidos ao mesmo
céncia proviséria no que diz respeito à liberação das pulsdes
sexuais). Em sua esséncia, o gato é aquele que se retira, ter se comportado ainda, brevemente, como bom objef o
se desvia. E a nova alternativa ou disjunção que impde a todog os C.:Il e
voz retirada, diante das pegas de xadrez (com ce
Alice, conforme a esta esséncia, aparece duas vezes: primeiro, teres terrificantes deste objeto ou desta voz), a Pr I‘n'm
tabul elméer?di—
ser crianga ou porco, como na cozinha da duquesa; em se- entra no jogo: ela pertence 2 superficie do
guida, como o arganaz adormecido que está entre a lebre € o no en;x)pt; endi
tomou o lugar do espelho e se lança agora
chapeleiro, isto é, entre o animal dos terreiros e o artesio
mento de tornar-se rainha. Os quadriláteros do tabuleiro :
das cabegas, ou tomar o partido dos objetos internos ou atravessados representam, evidentemente, as tzâ.;lu?a
serem
identificar-se 20 bom objeto das alturas — em suma, escolher como nnsbl ãa
erógenas e tornar-se rainha remete ao falo
entre a profundidade e a altural. A terceira parte de Alice Torna-se logo aparente que oyxã) ea[a
de concordância. pm_
(8-12) muda ainda de elemento: tendo brevemente reen- de ser o da voz Gnica e retirada
correspondente deixou qu: a
contrado o primeiro lugar, ela passa em um jardim de se tornar o das palavras miltiplas: que se deve pagar,
superficie habitado por cartas sem espessura, figuras planas. to é preciso pagar para poder falar? perguntam-se
mals“mª
É como se Alice se tivesse suficientemente identificado ao s, a galavra remeten do ora ã -.
menos todos os capítulo
gato, que ela declara seu amigo, a ponto de ver a antiga 'comxm o Zn ¢
só série (como o nome próprio de tal forma -
profundidade se desdobrar e os animais que o povoavam se a duas séries convertg
dele não nos lembramos mais), ora
tornarem escravos ou instrumentos inofensives. convlex:gend_l :er-
E sobre tes (como Tweedledum e T?veedledc_e, tão
esta superficie que ela distribui suas imagens de pai e de não as disting uimos mais), ora a ses;::hs s
contínuas que :
Dumpty , %
1. O gato está presento gentes e ramificadas (como Humpty
vez, na cozinha da duquess, e, mosem dois casos, já que aparece, pela primeira
seguida, aconselha Alice a ir ver a lebre semantemas e pagador das palavras , fazendo -as rami lcarã
“ou” o chapeleiro. AÀA posicio do gato de Chester mªll*slí que :x t:
em cima da árvere ou mo
céu, todas as suas características, inclusive o terrificantes, identificim-n ressoar tão bem que não as compreendemos
superego como “bom™ objeto das alturas ({dolo): “Ele parece ter um o bomao distinguimos mais seu direito e sen avesso)-
” las, (1)1
caréter, pensou Alice: contudo, possufa longas unhas e muitos dentes e ela e das sup:; icies, Ap:í
julgou que seria melhor tratá-lo com respeito”, organizagdo simultanea das pal_avras
altoras que se furta ou se retira, mas também queO tema da instincia das
combate e captura os tigo já indicado em Alice precisa- se e desenvol v&saí. qda
objetos internos, é constante em Carroll: encontrá-lo-e mos com
dade nos poemas ¢ narrativas em que intervém a pesca com toda sua cruel- ao longo &
de novo Alice distribuiu suas imagens parentais
em inglês.. (Cf. por exemplo o poema The Two Brothers, em linha, que
fo anele
o imão superfície: a rainha branca, n]ãe chorosa e fer,xda,
o rei I;
mais jovem serve de isca). E sobretudo em Sílvia ¢ Bruno, o bom pai retirado
no reinado das fadas, escondido atrás da voz do cachomo, é essendal: seria desde o Capitul o 4 as,
preciso um longo comentário desta obra-prima, que também coloca em jogo melho, pai retirado, adormecido
idade e 2 altura, é a rainha ver-
o tema das duas superfícies, a superfície comurm é a superficie maravilhosa através de toda a profund
ou feérica. Enfim, em ioda a obra de Carroll, o poema trágico The Three melha que chega, falo convertido na instdncia
de castragdo.
Voices tem uma importância particular: a primeira “voz” é a de uma mulber vez rematad a volunta-
dura e barulhenta que foz um quadro terrorista De novo é a debandada final, desta
continua terrivel, mas tem todas as característicasdo daalimento; a segunda voz dc%sª
#az balbuciar e gaguejar o herói; a terceira
boa Voz do alto que
é uma voz edipiana de culpabilidade, riamente pela prépria Alice. “Atencdol... alguma
que canta o terror do resultado apesar da
pureza das intenções (“And when vai ocorrer!”,. mas o quê? — regressã o às profund idades
at Eve the unpitying sun Smiled grimly on the solemm fun, Alack, h= sighed, ou então
what have 1 done orais-anais, a tal ponto que tudo recomeçaria,
desprendimento de uma outra superfície, gloriosa e neutra- causa da obra, — é o objeto do romance como obra de arte
lizada? & 0 que o distingue do romance familial 2. Em outros termos,
O diagnóstico psicanalítico fregiientemente formulado o cardter positivo, altamente afirmativo, da dessexualizagdo,
sobre Lewis Carroll é: impossibilidade de enfrentar a situa- consiste nisto: que o investimento especulativo subx{itua a
ção edipiana, fuga diante do pai e remincia à mãe, projeção regressão psiquica. O que não impede que o investimento
sobre a garotinha ao mesmo tempo como identificada ao especulativo Tecaia sobre um objeto sexual, já que deste
falo e como privada de pénis, regressdo oral-anal que a isso destaca o acontecimento e coloca o objeto como concomi-
se segue. Todavia, tajs diagnésticos têm muito pouco inte- tante do acontecimento correspondente: o que é uma garo-
resse e sabe-se muito bem que não é assim que a psicandlise tinha? — e toda uma obra não para responder a esta questdo,
e a obra de arte (ou a obra literdrio-especulativa) podem mas para evocar e compor o único acontecimento que disso
estabelecer seu encontro. Não &, certamente, tratando, faz uma questio. O artista não é somente o doente e o
através da obra, o autor como um doente possivel ou real, médico da civilizagio, é também o seu pervertido.
mesmo se lhe atribuimos o beneficio da sublimagio. Nio é, Sobre este processo da dessexualizagdio, sobre este salto
certamente, “fazendo a psicandlisc” da obra. Pois os autores, de uma superficie para outra, ndo dissemos quase nada.
se são grandes, estdo mais préximos de ser médico do que É só em Lewis Carroll que aparece sua poténcia: a forga
doente. Queremos dizer que eles préprios são admirdveis mesma com a qual as séries de base (aquelas que subsumem
diagnosticistas, admirdveis sintomatologistas. Há sempre as palavras esotéricas) são dessexualizadas, em proveito dç
muita arte em um agrupamento de sintomas, em um guadro comer-falar; e, no entanto, também a força com a qual é
em que tal sintoma é dissociado de um outro, aproximado mantido o objeto sexual, a garotinha. O mistério está de
de um outro ainda e forma a nova figura de uma perturbagdo fato neste salto, nesta passagem de uma superfície à outra
ou de uma doenga. Os clinicos que sabem renovar um e o que se torna a primeira, sobrevoada pela segunda. Pu
quadro sintomatolégico fazem uma obra artistica; inversa- tabuleiro fisico ao diagrama lógico. Ou entdo da superficie:
mente, os artistas são clinicos, ndo de seu préprio caso, nem sensivel à placa ultra-sensivel: é neste salto que Carroll,
mesmo de um caso em geral, mas clinicos da civilizagdo. grande fotégrafo, experimenta um prazer que podemos supor
Não podemos seguir aqueles que pensam que Sade não tem perverso ¢ que declara inocentemente (wqo ele diz a Amé-
nada de essencial a dizer sobre o sadismo ou Masoch sobre lia em uma “jrresistivel excitagdo...: Vir a vés por um
‘0 masoquismo. Mais ainda, parece que uma avaliagio de negativo. . . Amélia, tu és minha”).
sintoma não pode ser feita a não ser através de um romance.
Não é por acaso que o neurdtico fabrica um “romance fa-
miliar” e que o complexo de Edipo deve ser encontrado nos
meandros deste romance. Com o génio de Freud, não é o
complexo que nos ensina sobre Edipo e Hamlet, mas Edipo
e Hamlet que nos ensinam sobre o complexo. Objetar-se-4
que não ha necessidade do artista e que o doente basta para
fazer, ele préprio, o romance e o médico para avalid-lo.
Mas isto seria negligenciar a especificidade do artista, ao 2. Gostaríamos de citar um exemplo que nos parece importante para
um problema tão obscuro. Ch. Lasdgue é um psiquiatra que, em 1877,
mesmo tempo como doente e médico da civilização: a dife- “isola” o exibicionismo (e cria a palavra); t. com isfo, cle faz obra de clinico,
de sintomatologista: cof, Etudes m es, 1, pp. 692-700. Ora, quando so
renga entre seu romance como obra de arte e o romance do começa por
trata de apresentar sua_descoberta em um breve artigo, ele ndo
neurdtico. É que o neurdtico ndo pode nunca sendo cfetuar citar casos de exibicionismo manifesto. Comega caso de um homem que
se coloca diaríamente na passagem de uma mulher ¢ a segue por toda parie
os termos e a histéria de seu romance: os sintomas são esta sem uma só palavra, sem um gesto (“scu papel se limita a implicitamente fazer função de
efetuação mesma e o romance não tem outro sentido. Ao sombra”...). Lasêgue comeca pois por fazer compreender 20
Jeitor que este homem se identifica inteiramente2 um pênis; e é somente em
contrário, extrair dos sintomas a parte inefetnavel do acon- seguida que ele cita casos manifestos, O procedimento de é Lasêgue é artístico:
tecimento puro — como diz Blanchot, elevar o visivel ao ele começa por um romance. Sem dúvida, o romance primeiramente feito
pelo sujeito; mas seria preciso um clínico-artista para reconhecê-lo. Nio é
invisivel —, levar ações e paixdes quotidianas como comer, Senão um Tomance meurótico porque o sujeito se contenta em encamar um
objeto parcial que elo efetua em toda sua pessoa. Qual é, pois, a diferença
cagar, amar, falar, morrer até o seu atributo noemético, entre esse romance vívido, neurótico e “familial” e o romance como obra de
Acontecimento puro correspondente, passar da superficie fi- anmte? O sintoma é sempre tomado em um romance, mas este determina sua
efetuação, ora, ao contrário, isola seu acontecimento que contra-efetua em
sica onde atuam os sintomas e se decidem as efetuações para personagens fictícios (o importante não é o caráter ficticio dos personageps,
a superficie metafisica em que se desenha, desempenha o
mas o que explica a ficção, a saber, a natureza do acontecimento puro e o
mecanismo da contra-efetuação), Por exemplo, Sade ou Masoch fazem o
acontecimento puro, passar da causa dos sintomas a quase- romance-ubra de arte daquilo que os sádicos ou os masoquistas fazem como
neurótico ¢ “familial”, mesmo que o escrevam.
ITIYESIA HKUGINtA WGt v

Da Ordem Primaria e da
Organizacdo Secundaria

Se é verdade que o fantasma é comstruido sobre duas


séries sexuais divergentes, pelo menos, se ele se confunde
com sua ressondncia, dai ndo resulta menos que as duas
séries de base (com o objeto — X que as percorre e as
faz ressoar) conmstituem somente o comego extrinseco do
fantasma, Chamemos de comego intrinseco a propria res-
sondncia. O fantasma se desenvolve na medida em que a
ressonância induz um movimento forçado que ultrapassa e
varre as séries de base. O fantasma tem uma estrutura
pendular: as séries de base percorridas pelo movimento do
objeto — X; a ressonéncia; o movimento forgado de ampli-
tude maior que o primeiro movimento. O primeiro movi-
mento, nés o vimos, é o de Eros que opera sobre a superficie
fisica intermedidria, a superficie sexual, o lugar destacado
das pulsGes sexuais. Mas o movimento forçado que repre-
senta a dessexualizagdo é Ténatos ou a “compulsio”, ope-
rando entre dois extremos que sdo a profundidade original
e a superficie metafisica, as pulsões destruidoras canibais das
profundidades e o instinto de morte especulativo. Sabemos
que o maior perigo deste movimento forgado é a confusio
dos extremos ou antes a perda de todas as coisas na profun-
didade sem fundo, ao preco de uma debandada generalizada
das superficies. Mas, inversamente, a maior sorte do mo-
vimento forcado é, para além da superficie metafisica, a
constituigdo de uma superficie metafisica de grande amplitu-
de em que se projetam mesmo os objetos devorantes-devo-
rados da profundidade: tanto que podemos entdo chamar de
instinto de morte o conjunto do movimento forgado e
superficie metafisica sua amplitude inteira. Em todo caso,
o movimento forgado não se estabelece entre as séries sexuais
de base, mas entre duas novas séries infinitamente mais
:glr;;ãasd, comer, de um lado
e pensar, de outro, a segunda
orre B lo sempre o Tisco de O não-senso então é como o ponto zero do pensamento, o
se afundar na primeira, mas
g im mad or:rrendo 0 risco, ao a ponto aleatório da energia dessexualizada, Instinto pontual
contrério, de projetar-se sobr
1 segunda !. Quatro séries e dois moviment e
os sdo necessá- da morte; o Aion ou a forma vazia, Infinitivo puro, é a
Tios a0 fantasma. O movimento linha traçada por este ponto, fissura cerebral nos limites da
de ressondncia das duas
qual aparece o acontecimento; e o acontecimento tomado na
univocidade deste infinitivo se distribui às duas séries de
t“::z?;ds; u:laass cl::nl;::: mab;mlão-se
sobre uma superfície mental, amplitude que constituem a superficic metafisica. O Acon-
s duas novas séries en tecimento se refere a uma como atributo noematico, à outra
se trava toda) a luta que tentamos i
descrever&:;recãieenízm%:ªs como sentido noético, tanto que as duas séries, comer-falar
O que é que ocorre se a superficie formam o disjunto para uma sintese afirmativa ou a equivo-
leva a melhor neste movimento pend mental ou metafisica
ular? Tnscreve-se entdo cidade daquilo que é para um Ser ¢le mesmo univoco, em
o verb_o sobre esta superficie, isto um ser univoco. É todo este sistema ponto-linha-superficie
é, o acontecimento glorioso
Qque ndo se confunde com um esta que representa a organizagdo do sentido com o não-senso:
do de cojsas mas simboliza
com ele — o atributo noemitico o sentido sobrevindo aos estados de coisas e insistindo nas
brilhante q\’le não se con-
funde com uma qualidade, a — mas
o orgulhoso sublima- proposigdes, variando seu puro infinitivo univoco segundo a
Resultado que não se confunde série dos estados de coisas que sublima e do qual resulta
com uma açáo ougaixão
mas delas extrai uma verdade cter e a séric das proposigdes que simboliza ¢ torna possivel.
na — o que Carrollpcham?;
Imyengtrabflidade ou também Radiancy
. É o verbo na sua Como sai daí a ordenagdio da linguagem em suas unidades
univocidade que conjuga devorar
e Pensar, comer e pensar, formadas — isto é, com designag3es e seus preenchimentos
comer que ele projeta sobre a superfície metafísi por coisas, manifestages e suas efetuagdes por pessoas,
que nela desenha. ca ep ensar
E porque comer não é mais umap significagdes e suas realizagdes por conceitos —, nds o vimos,
?em ser comido uma paixão, mas somente ação
o atributo noemz’u-’ era precisamente o objeto da génese estitica. Mas, para
ico que Thes corresponde no verb chegar até ai, era preciso passar por todas as etapas da génese
o,a boca fica como que
liberada para o pensamento
que a preenche com todasqas dindmica. Pois a voz só nos dava designações, manifesta-
palavras possiveis. O verbo &, pois, falar, que ções e significacbes vazias, puras intengdes suspensas na
comer-pensar na superficie meta significa
fisica e que 'faz com Eluc o tonalidade; as primeiras palavras ndo nos davam mais do
aconteciment o sobrevenha às coisas que elementos formadores, sem chegar até as unidades for-
exprimivel da linguagem e que consumíveis cogm o
o sentido insista na linguagem madas. Para que houvesse linguagem e pleno uso da pala-
como a expressão do pensamento. vra conforme às trés dimensões da linguagem, era preciso
da mesma forma comer-falar, come Pensar significa, pois,
r como “resultado”, ?ala; passar pelo verbo e seu siléncio, por toda a organizagdo do
como “tornado possível”. É aí sentido e do não-sentido sobre a superficie metafisica, última
que termina a luta da boca
e do cérebro: esta luta pela inde etapa da génese dinâmica.
pendência dos sons, nés a
Vimos pros seguir a partir dos ruidos alim Ora, é certo que, assim como a superficie fisica é uma
clals que entares exéremeu—
ocupavam a boca-fnus em prof preparagio da superficie metafisica, a organizagdo sexual é
com o isolamento de uma voz undidade; depois,
em altura: depoisy cogzo a uma pré-figuragio da organizagdo da linguagem. O falo
Primeira formação das superfícies desempenha um grande papel nas etapas do conflito boca-
e das pala(cra& Mas falar, , cérebro, a sexualidade mesma é intermedidria entre comer-
falar e, a0 mesmo tempo em que as pulsdes sexuais se
preencl'le com os acontecimentos ideais desta destacam das pulses alimentares destruidoras, elas inspiram
Ve_rbo éa “representação verb superficie:
al” inteira e o mais alto as primeiras palavras feitas de fonemas, morfemas e seman-
afirmativo da disjunção (univoci D'dc? temas. A organizagdo sexual já nos apresenta todo um
dade para o que divg- e)
Contudq, o verbo é silencioso; sistema ponto-linha-superficie; e o falo como objeto = X e
e é preciso levar ao 'gda-
Içtfa a idéia de que Eros é sonoro palavra = X tem o papel do nfo-sentido distribuindo o
sllencxo‘.l Mas é nele, no verb instinto de rªeorte e o
o, que se faz a organizac 50’ sentido as duas séries sexuais de base, pré-genital e edipiana.
secunddria da qual decorre toda Contudo, todo este dominio intermediéric parece neutraliza-
a ordenagio da linguaggm.
do pelo movimento da dessexualizagdo, como as séries de
1. À profundidade base no fantasma pelas séries de amplitude. E que os
s do fântasmado, fanta
nas não é Cconstituída

& s:Apendico 1
condições em si mesma em série, mas
2 && forma serial. Sobre i cn
é
fonemas, morfemas e semantemas em sua relagdo origindria
com a sexualidade não formam ainda de maneira nenhuma
unidades de designação, de manifestação ou de significação. perversio à subversio. O prrt_)blema da perversio é bem
À sexualidade não é nem designada, nem manifestada, nem atestado pelo mecanismo essencial que lhe corresponde, o da
significada por eles; ela é, antes, assim como a superfície Verleugnung. Pois se trata, na _Verleugmfng. de manter a
que eles forram e eles são como o forro que edifica a super- imagem do falo, apesar da a\ls§ncna_ de pénis na ml&&)er: esta
ficie. Trata-se de um duplo efeito de superfície, avesso operagio supde uma dessexualizagdo como conseqiiéncia de:
e
direito, precedendo qualquer relação entre estados de coisas castração, mas também um reinvestimento do objeto sexua
€ proposições. Eis por que quando uma outra superfície enquanto sexual pela energia dmsexuxh'mdª_: eis por que a
se desenvolve com outros efeitos que fundam, enfim, Verleugnung não consiste em uma alucinagio, mas em um
as
designações, as manifestações e as significações sob o título saber esotérico?. Assim Carroll, perverso sem crime, per-
de unidades lingiiísticas ordenadas, os elementos como verso não-subversivo, gago e canhoto, serve-se da energia
os
fonemas, os morfemas e os semantemas parecem retomados dessexualizada do aparelho fotogrâ.fico como de_ um olho
neste novo plano, mas parecem perder toda sua ressonâ espantosamente especulativo para investir o objeto sexual
ncia
sexual, esta parece reprimida ou neutralizada e as séries por exceléncia, a menina-falo._ . o
de
base varridas pelas novas séries de amplitude. Tanto que a Tomado nas malhas do sistema da linguagem, há pois
sexualidade não existe mais senão como alusão, vapor
ou um co-sistema da sexualidade que imita o sentido, o não-
poeira que dá testemunho de um caminho pelo quel a lin- sentido e sua organização: simulacro para um fantasma.
guagem passou, mas que não cessa de jogar fora, de apagar Mais ainda, através de tudo o que a llfnguagem desxgnar_á,
como uma dentre tantas lembranças de infância, extrema
- manifestará, significará, haverá uma hlstom% se:x‘ual que não
mente incômodas. serd jamais designada, manifestada nem significada por si
É ainda mais complicado, todavia. Pois, se é verdade mesma, mas que coexistirá em todas as operacBes da
que o fantasma não se contenta em oscilar entre o extremo linguagem, recordando o pertencer sexual dos elementos
da profundidade alimentar e o outro extremo representado lingiiisticos formadores. É este estatuto da sexualidade que
pela superficie metafísica, se ele se esforça Por projetar sobre explica a repressdo. Não basta fllzer que o conceito _de
esta superfície metafísica o acontecimento que corresponde repressio em geral é topico: ele é topoldgico; a repressio
aos alimentos, como não desprenderia zambém os aconteci
- é a de uma dimensão por outra. É assim que a altu_ra,
mentos da sexualidade? Não somente “também”, mas de isto é, o superego de que vimos a prec(:cndade de fon{lagaf),
uma maneira toda particular. Pois, nós o vimos, o fantasma reprime a profundidade em que as pulsdes sexuais estdo tdo
não recomeça eternamente seu movimento intrínse
co de estreitamente ligadas com as pulsSes destruidoras. É mesmo
dessexualização sem se voltar sobre seu começo
sexual sobre este lago ou sobre os objetçs internos que o represen-
extrinseco. Este é um paradoxo de que não encontramos tam que recai a repressão dita primária. A repressão signi-
equivalente nos outros casos de projeção sobre
a superfície fica então que a profundidade é como que recoberta pela
metafísica: uma energia dessexualizada investe ou reinvest nova dimensão e que a pulsão assume uma nova figura em
e
um objeto de interesse sexval enquanto tal — e
se ressexua- conformidade com a instância repressora, pelo menos no
liza assim de um novo modo. Tal é o mecanismo mais começo (aqui isolamento das pulsões sexuais relativamente
geral da perversão, com a condição de distingui-la
como arte às pulsões destruidoras e piedosas intenções de depo)_. Q.ue
de superfície e a subversão como técnica da profundidade. a superfície, por sua vez, seja objeto de uma repressão dita
Assim como observava Paula Heimann, a maioria dos
crimes secundária e, por conseguinte, não seja de for_ma nenhumz?
“sexuais” são inadequadamente chamados de perversos; idêntica à consciência, explica-se de uma maneira complexa:
de-
Vem ser postos na conta da subversão das profundidades segundo a hipótese de Freud primeiro, o jogo das duas
que as pulsões sexuais estão ainda estreitamente intricadas séries distintas forma realmente uma condlçao. essencial da
com as pulsões devoradoras e destruidoras. Mas a perver- repressão da sexualidade e do caráter retroativo de_sta re-
são como dimensão de superfície ligada às zonas pressão. Porém, mais ainda, mesmo qu;ndo ela não poe
erógenas, ao
falo de concordância e de castração, à relação da superfíc em jogo senão uma série parcial ho'mtzgsnea ou uma série
ie
física e da superfície metafísica, coloca somente global continua, a sexualidade não dispde das cqndlgoes que
o problema
do investimento de um objeto sexual por uma energia tornariam possivel sua manutenção na .oonsméncm .(a_saber,
desse-
xvalizada como tal. A perversão é uma estrutura de a possibilidade de ser designada, manifestada e sngmficad:
super-
fície que se exprime como tal, sem se efetuar necessariamente pelos elementos lingiifsticos que lhe correspondem).
em comportamentos criminosos de natureza subversi
va; “saber” que Lacan e alguns de seus disctpulos
ermos do “saber” u
crimes podem sem dúvida daí decorrer mas por regressão da colocãin & ,‘,’.i‘?,u'..’.'; e perversão: cf. a coletânea ‘Le Désir et la Perversion,
Seuil, 1967. Ct. Apéndice IV.
terceira razão deve ser procurada do lado da superfície me- As condutas de perversio não sdo também separdveis de
tafísica, na maneira pela qual esta Teprime precisamente a um movimento da superficie metafisica que, ao invés de
superfície sexual ao mesmo tempo em que impõe à energia reprimir a sexualidade, serve-se da energia dessexualizada
de pulsão a nova figura da dessexualização. Que a superfície para investir um elemento sexual enquanto tal e ffxa-lo com
metafísica, por sua vez, não seja de forma nenhuma idêntica uma insustentável atenção (segundo sentido da fixação).
a uma consciência não tem nada de espantoso se considera- O conjunto das superficies constitui a organização dita
mos que as séries de amplitude que a caracterizam ultra- secundária. Esta se define, pois, muito bem pela “repre-
passam essencialmente o que pode ser consciente e formam sentação verbal”. E se a representação verbal deve ser
um campo transcendental impessoal e pré-individual. Fi- distinguida estritamente da “representação de cb]eto'_ª é por-
nalmente, a consciência ou antes o pré-consciente não tem que ela concerne a um acontecimento incorporal e não a um
outro campo além daquele das designações, manifestações e corpo, uma ação, paixão ou qualidade de corpo. A repre-
significações possíveis, isto é, a ordenação da linguagem que sentação verbal é esta representação da qual vimos que
decorre de tudo o que precede; mas o jogo do sentido e do envolvia uma expressio. Ela é composta de um expresso
não-senso e os efeitos de superfície tanto sobre a superfície e de um exprimente e se conforma segundo a torção de
metafísica como sobre a superfície física não pertencem à um no outro: ela representa o acontecimento como expresso,
consciência mais do que as ações e paixões da mais recôndita faz com que ele exista nos elementos da linguagem e, inver-
profundidade. O retorno do reprimido faz-se segundo o samente, conferc a estes um valor expressivo, uma função
mecanismo geral da regressão: há regressão desde que uma de “representantes” que não possufam por si mesmos. Toda
dimensão se abate sobre outra. Sem ddvida, os mecanismos a ordenação da linguagem daf decorrerd, com seu cddigo
de regressão são muito diferentes segundo os acidentes pré- de determinag@es tercidrias fundadas por sua vez em repre-
prios a esta ou aquela dimensdo, por exemplo, a queda da sentações “objetais” (designação, manifestação. significação:
altura ou os orificios da superficic. Mas o essencial está indivíduo, pessoa, conceito; mundo, ego e Deus). Mas,
na ameaça que a profundidade faz pesar sobre todas as outras o que conta aqui é a organização preliminar, fundadora ou
dimensGes; assim, ela é o lugar da repressio primitiva e poética: este jogo das superficics em que se desdobra somen-
das “fixações” como termos últimos das regressdes. Em te um campo acdsmico, impessoal, pré-individual, este exer-
regra geral há uma difercnca de natureza entre as zonas de cicio do nfo-senso e do sentido, este desdobramento de séries
* superficie e os estigios de profundidade; por conseguinte, que precedem os produtos elaborados da génese estdtica.
entre uma regressfo à zona anal erdgena, por exemplo, e Do ordenamento tercidrio é preciso, pois, remontar até à
Uma regressdo ao estágio anal como estégio digestivo-destrui- organizagdo secundária; depois remontar até à orflem pri-
dor. Mas os pontos de fixagdo, que são como fardis maria, segundo a exigéncia dindmica. Seja a tdbua n!as
atraindo os processos regressivos, esforgam-se sempre por categorias da génese em relação com os mor'nent_os da lin-
obter que a regressio ela prépria regresse, mudando de
guagem: paixdo-agio (ruide), possessfio—privagao (vo,z‘),
natureza ao mudar de dimensão até que alcance a profun-
didade dos estagios em que todas as dimensdes se abismam. intenção-resultado (palavra). AÀ organização seçundana
Resta uma última distinção entre a regressio como movi- (verbo ou representação verbal) resulta ela própria deste
mento pelo qual uma dimensão se abate sobre as precedentes longo percurso, surge quando o acontecimento soube clevar
€ este outro movimento pelo qual uma dimensdo reinveste a o resultado a uma segunda potência e o verbo dar às palavras
precedente a0 seu préprio modo. Ao lado da Tepressio e elementares o valor expressivo de que elas ainda estavam
do retorno do reprimido é preciso dar lugar a estes processos destituidas. Mas todo o percurso, todo o caminho é esca-
complexos pelos quais um elemento caracterfstico de uma lonado pela ordem primária. Na ordem primária as pal_a—
certa dimensdo recebe como tal um investimento de energia vras sdo diretamente ações ou paixdes do corpo, ou eqtao
completamente diferente correspondendo à outra dimensão: vozes retiradas. — São possessdes demoniacas ou então priva-
por exemplo, as condutas de subversio criminosas ndo sio ções divinas. As obscenidades e as injirias dão uma iq&ia,
separdveis de uma operação da voz do alto, que reinveste o por regressão, deste caos em que se combinfe\.m_respechv?-
processo destrutivo de profundidade como se fosse um dever mente a profundidade sem fundo e a altura ilimitada; pois,
para sempre fixado e o ordena a titulo do superego ou do por mais intima que seja sua ligação, a palavra obscena
bom objeto (assim, na histéria de lorde Arthur Savile) 2. figura antes a ação direta de um corpo sobre um outro que
3. Treud mostrava a oxisténcia de crimes inspirados pelo superego — mas sofre a paixdo, enquanto que a injiria ao mesmo tempo
não É forgosamente, 20 que nos parece, por intermédio de um . seotimento
de calpabilidade prelimings a0 ccime, T © persegue aquele que se retira, retira-lhe toda voz, é ela
terceira razão deve ser procurada do lado da superfície me- As condutas de perversio não sdo também separdveis de
tafísica, na maneira pela qual esta Teprime precisamente a um movimento da superficie metafisica que, ao invés de
superfície sexual ao mesmo tempo em que impõe à energia reprimir a sexualidade, serve-se da energia dessexualizada
de pulsão a nova figura da dessexualização. Que a superfície para investir um elemento sexual enquanto tal e ffxa-lo com
metafísica, por sua vez, não seja de forma nenhuma idêntica uma insustentável atenção (segundo sentido da fixação).
a uma consciência não tem nada de espantoso se considera- O conjunto das superficies constitui a organização dita
mos que as séries de amplitude que a caracterizam ultra- secundária. Esta se define, pois, muito bem pela “repre-
passam essencialmente o que pode ser consciente e formam sentação verbal”. E se a representação verbal deve ser
um campo transcendental impessoal e pré-individual. Fi- distinguida estritamente da “representação de cb]eto'_ª é por-
nalmente, a consciência ou antes o pré-consciente não tem que ela concerne a um acontecimento incorporal e não a um
outro campo além daquele das designações, manifestações e corpo, uma ação, paixão ou qualidade de corpo. A repre-
significações possíveis, isto é, a ordenação da linguagem que sentação verbal é esta representação da qual vimos que
decorre de tudo o que precede; mas o jogo do sentido e do envolvia uma expressio. Ela é composta de um expresso
não-senso e os efeitos de superfície tanto sobre a superfície e de um exprimente e se conforma segundo a torção de
metafísica como sobre a superfície física não pertencem à um no outro: ela representa o acontecimento como expresso,
consciência mais do que as ações e paixões da mais recôndita faz com que ele exista nos elementos da linguagem e, inver-
profundidade. O retorno do reprimido faz-se segundo o samente, conferc a estes um valor expressivo, uma função
mecanismo geral da regressão: há regressão desde que uma de “representantes” que não possufam por si mesmos. Toda
dimensão se abate sobre outra. Sem ddvida, os mecanismos a ordenação da linguagem daf decorrerd, com seu cddigo
de regressão são muito diferentes segundo os acidentes pré- de determinag@es tercidrias fundadas por sua vez em repre-
prios a esta ou aquela dimensdo, por exemplo, a queda da sentações “objetais” (designação, manifestação. significação:
altura ou os orificios da superficic. Mas o essencial está indivíduo, pessoa, conceito; mundo, ego e Deus). Mas,
na ameaça que a profundidade faz pesar sobre todas as outras o que conta aqui é a organização preliminar, fundadora ou
dimensGes; assim, ela é o lugar da repressio primitiva e poética: este jogo das superficics em que se desdobra somen-
das “fixações” como termos últimos das regressdes. Em te um campo acdsmico, impessoal, pré-individual, este exer-
regra geral há uma difercnca de natureza entre as zonas de cicio do nfo-senso e do sentido, este desdobramento de séries
* superficie e os estigios de profundidade; por conseguinte, que precedem os produtos elaborados da génese estdtica.
entre uma regressfo à zona anal erdgena, por exemplo, e Do ordenamento tercidrio é preciso, pois, remontar até à
Uma regressdo ao estágio anal como estégio digestivo-destrui- organizagdo secundária; depois remontar até à orflem pri-
dor. Mas os pontos de fixagdo, que são como fardis maria, segundo a exigéncia dindmica. Seja a tdbua n!as
atraindo os processos regressivos, esforgam-se sempre por categorias da génese em relação com os mor'nent_os da lin-
obter que a regressio ela prépria regresse, mudando de
guagem: paixdo-agio (ruide), possessfio—privagao (vo,z‘),
natureza ao mudar de dimensão até que alcance a profun-
didade dos estagios em que todas as dimensdes se abismam. intenção-resultado (palavra). AÀ organização seçundana
Resta uma última distinção entre a regressio como movi- (verbo ou representação verbal) resulta ela própria deste
mento pelo qual uma dimensão se abate sobre as precedentes longo percurso, surge quando o acontecimento soube clevar
€ este outro movimento pelo qual uma dimensdo reinveste a o resultado a uma segunda potência e o verbo dar às palavras
precedente a0 seu préprio modo. Ao lado da Tepressio e elementares o valor expressivo de que elas ainda estavam
do retorno do reprimido é preciso dar lugar a estes processos destituidas. Mas todo o percurso, todo o caminho é esca-
complexos pelos quais um elemento caracterfstico de uma lonado pela ordem primária. Na ordem primária as pal_a—
certa dimensdo recebe como tal um investimento de energia vras sdo diretamente ações ou paixdes do corpo, ou eqtao
completamente diferente correspondendo à outra dimensão: vozes retiradas. — São possessdes demoniacas ou então priva-
por exemplo, as condutas de subversio criminosas ndo sio ções divinas. As obscenidades e as injirias dão uma iq&ia,
separdveis de uma operação da voz do alto, que reinveste o por regressão, deste caos em que se combinfe\.m_respechv?-
processo destrutivo de profundidade como se fosse um dever mente a profundidade sem fundo e a altura ilimitada; pois,
para sempre fixado e o ordena a titulo do superego ou do por mais intima que seja sua ligação, a palavra obscena
bom objeto (assim, na histéria de lorde Arthur Savile) 2. figura antes a ação direta de um corpo sobre um outro que
3. Treud mostrava a oxisténcia de crimes inspirados pelo superego — mas sofre a paixdo, enquanto que a injiria ao mesmo tempo
não É forgosamente, 20 que nos parece, por intermédio de um . seotimento
de calpabilidade prelimings a0 ccime, T © persegue aquele que se retira, retira-lhe toda voz, é ela
própria uma voz que se retiraé, A estreita combinação equivocidade, da eminência e da analogia: como se houves-
das duas, das palavras obscenas e injuriosas, testemunha se uma eminência a mais, um equívoco excessivo, uma ana-
m a;
valores propriamente satíricos da linguagem; chamamos de logia supranumerária que, ao invés de se acrescentare
ao contrário, seu fechamento. Urx_l equi-
satírico o processo pelo qual a regressão ela própria regride, outras, asseguram,
isto é, não é nunca uma regressão sexual em superfície sem voco tal que ndo pode mais haver um outro “depois”; tal
ser também uma regressão alimentar digestiva em profundi- é o sentido da formula: há também a sexualidade. É O
dade, que não se detém senão na cloaca e não persegue a mesmo que acontece com estes personagens fle Dostoiéxfsk.\,
voz retirada senão descobrindo seu solo excremencial que que empregam toda sua voz para dizer: há também isto,
ela deixa, assim, atrás de si. Fazendo ele mesmo mil ruídos observai caro senhor e ainda isto e ainda aquilo, caro se-
e retirando ele próprio sua voz, o poeta satírico, o grande nhor... Mas, com a sexualidade chega-se a um _aimia gue
Pré-socrático em um só e mesmo movimento do mundo, fecha todos os ainda, a um equívoco que torna impossível
persegue Deus com injirias e chafurda no excremento. A a perseguição de equivocidades ou a continuação de analo-
sitira é wma arte prodigiosa das regressdes. gias ulteriores. Eis por que, ao mesmo tempo em que 2
se desdobra sobre a superfície física, ela nos
Contudo, a altura prepara para a linguagem novos va- sexualidade
lores, em que ela afirma sua independéncia, sua diferenga faz passar da voz à fala e enfeixa todas as palavras em um
radical da profundidade. A ironia aparece cada vez que a conjunto esotérico, em uma história sexual que não será
linguagem se desdobra segundo relagdes de eminéncia, de designada, manifestada nem significada por elas, mas que
equivocidade, de analogia. Estes trés grandes conceitos da Thes será estritamente coextensiva e consubstancial. O que
tradição são a fonte de onde todas as figuras da retérica representam então as palavras, todos os elemen tos forma-
reação
decorrem. Assim, a ironia encontrari uma aplicação natu- dores da língua que não existem senão em relação e
outros, fonema s, morfem as, semant emas, não
ral na ordenação tercidria da linguagem, com a analogia das uns com os
a
significagdes, a equivocidade das designações, a eminéncia formam sua totalidade senão do ponto de vista desta hxs‘ton
daquele que se manifesta — e todo o jogo comparado do idéntica a eles mesmos. Há, pois, um equivoco
jmanente
ego, do mundo ¢ de Deus na relagdo do ser e do individuo, 2 mais para a voz, com relagdo à voz: um equivoco que
algo
da representação e da pessoa, que constitui as formas clissica fecha a equivocidade e torna a linguagem madura para
e romantica da ironia. Mas, já no processo primério, a voz de diferente. Este algo de diferen te é o que vem da outra
quando
do alto libera valores propriamente irônicos; ela se retira por superficie, dessexualizada, da superficie metafisica,
trás de sua eminente unidade, faz valer a equivocidade de seu passamos, enfim, da palavra a0 verbo, quando compomos
as pa.}avras
tom e a analogia de seus objetos, em suma, ela dispde de um verbo único no puro infinitivo com todas
todas as dimensSes de uma linguagem antes de dispor do reunidas. Este algo de diferen te é a revelag do do univoco,
Univoc idade, isto é, o Aconte ciment o que
principio de organizagio correspondente. Assim, há uma o advento da
forma primordial de ironia platénica, reerguendo a altura, comunica a univocidade do ser 2 linguagem.
destacando-a da profundidade, reprimindo e combatendo a A univocidade do sentido apreende a linguagem em seu
sitira e os satiricos, colocando precisamente toda sua “iro- sistema completo, exprimente total para o tinico expresso,
nia” em perguntar se por acaso haveria uma Idéia da lama, o acontecimento. Assim, os valores de humor se distinguem
do pélo, da sujeira ou do excremento... E, contudo, o N dos da ironia: o humor é a arte das superficies, da relagdo
que faz calar a ironia não é um retorno reforçado dos valores complexa entre as duas superficies. A partir de um equi-
— A partir
satiricos, assim como um tornar a subir da profundidade - voco a mais, o humor constréi toda a univocidade.
sem fundo. Alids, nada volta a subir salvo a superficie; é equivo co propri amentc sexual que fec'ha toda equivaci-
do
xdage
preciso ainda que haja uma superficie. Quando a altura, dade, o humor isola um Univoco dessexualizado, umvof.
e da lingua gem; tqda a organi zacio
com efeito, torna possivel uma constituição das superficies, especulativa do ser
com o desprendimento correspondente das pulsões sexuais, secundéria, em uma palavraS. É preciso imaginar um outro
acreditamos que alguma coisa sobrevém, capaz de vencer a Lacan, pelo menos tal
ironia em seu proprio terreno, isto é, no terreno mesmo da X 105 seguir aqui a tese de éJacques em PE Tnconscient”,
S, julhoede 1961,
como a modemes, Tor Laplanche ss.).Leciaire com esta tese,
De acordo ento
4. Com efeito, aquele que injuria reclama a expulsfo de sua vitima, Temps p, 111 e um deslizam perpétao
proibe-ihe de responder, mas também se retira fingindo 0 miximo de desgosto. À ordem primária da O lingusge m definirse -ja por para cada
Tudo isto dá testemunho do fato da injiria Betencer à posição maniaço-de- te sobre outrassignificad
3o significanremeter o, supondo-se deum umúnicostriesentido
de equivalon tes
pressiva (frustração), enquanto que a obscenidade remete À posição esquizbide palavra e às palavras por meio
excremencial (ação-paixão alucinadas). À união íntima da injória e de obsce- Qque este sentido Ihe abre.m segundo que uma palavra fem vÁriosestável
Ao contrário, desdemetáfora,
Sentidos que se organiza ao mesmo tempo a lei da ela se toroa
nidade não se explica, pois somente, como o crê Ferenczi, pela repressão
objetos de prazer infantil que dariam “sob a forma de palavrões ¢ maldições”, do uma certa mancira, em que a linguagem escapa q20
mas pela fusão direta das duas posições fundamentais. processo primirio e funda o processo secundário. B pois a univocidade
ArciNwivLY
estóico, um outro Zen, um outro Carroll: com uma mão
masturbando-se, em um gesto excessivo, com a outra escre-
vendo sobre a arcia palavras mágicas do acontecimento
puro abertas ao unívoco, Mind — I believe — is Essence
— Ent — Abstract — that is — an Accident — which we
— that is to say — I meant —, fazendo assim passar a
energia da sexualidade ao assexual puro, não cessando,
contudo, de perguntar, “o que é uma garotinha?”, pronto
para substituir a esta questão o problema de uma obra de
arte por fazer, que unicamente responderá a ela. Assim,
Bloom na praia... Sem dúvida, a equivocidade, a analo-
gia, a eminéncia retomardo seus direitos com a ordenação
tercidria, nas designações, significagdes, manifestações da
linguagem quotidiana submetidas às regras do bom senso
e do senso comum. Considerando entdo o perpétuo entre-
lagamento que constitui a légica do sentido, aparece que
esta ordenacdo final retoma a voz do alto do processo pri-
mário, mas que a organizagio secunddria em superficie
retoma alguma coisa dos ruidos mais profundos, blocos e
elementos para a Univocidade do sentido, em suma, instante
para uma poesia sem figuras. E que pode a obra de arte
a não ser retomar sempre o caminho que vai dos ruidos à
voz, da voz & palavra, da palavra ao verbo, construir esta

1. Simulacroe -
Musik fiir ein Haus, para aí encontrar sempre a indepen-
déncia dos sons e aí fixar esta fulguragdo do univoco, acon-
tecimento recoberto depressa demais pela banalidade quo-
tidiana ou, ao contrério, pelos sofrimentos da loucura. Filosofia Antiga
,

defintria o primário ¢ a equivocidade n possibilidade do secundário (p 112).


Mas a univocidade é considerada aqui como a da palaera, não como & do
Ser que se diz em um só mesmo sentido para todas as coisas, nem igual-
ments da linguagem que 0 diz. Supomos que o unívoco é a palavra, prontos
para concluir que tal pelavra não cxiste, não tendo menhuma estabilidade o
sendo uma “ficção”. “Parece-nos, ao contrário, que à equivocidade caracte-
propriamente a voz no processo primário; e ‘e há uma relação essencial
entre a sexnalidade e a equivocidade é sob a forma deste limite a0 equívoco,
desta totalização que vai tormar possivel o unívoco como verdadeiro caráter da
organizagho secundáris inconsciente.
L Flawau E U giinuiavi v

Que significa “reversio do platonismo”? Nietzsche


assim define a tarefa de sua filosofia ou, mais geralmente,
a tarefa da filosofia do futuro. Parece que a férmula quer
dizer: a abolição do mundo das esséncias e do mundo das
aparéncias. Tal projeto, todavia, ndo seria préprio 2
Nietzsche. A dupla recusa das esséncias e das aparéncias
remonta a Hegel e, melhor ainda, a Kant. É duvidoso que
Nietzsche pretenda dizer a mesma coisa. Bem mais, tal
férmula — “reversdo” — tem o inconveniente de ser abstra-
ta; ela deixa na sombra a motivagio do platonismo. Re-
verter o platonismo deve significar, ao contrario, tormar
manifesta à luz do dia esta motivagio, “encurralar” esta
motivagio — assim como Platio encurrala o sofista.
Em termos muito gerais, o motivo da teoria das Idéias
deve ser buscado do lado de uma vontade de selecionar,
de filtrar. Trata-se de fazer a diferenga. Distinguir a
“coisa” mesma e suas imagens, o original e a cópia, o modelo
e o simulacro. Mas estas expressdes todas serdo equiva-
lentes? O projeto platdnico só aparece verdadeiramente
quando nos reportamos ao método da divisio. Pois este
método não é um procedimento dialético entre outros. Ele
reúne toda a poténcia da dialética, para fundi-la com uma
outra poténcia e representa, assim, todo o sistema. Dir-
se-fa primeiro que ele consiste em dividir um género em
espécies contrrias para subsumir a coisa buscada sob a
a espécie adequada: assim, o processo da especificação
continuada na busca de uma definicio da pesca. Mas este
é somente o aspecto superficial da divisdo, seu aspecto irô-
nico. Se tomdssemos a sério este aspecto, a objegdo de
Aristételes procederia plenamente: a divisão seria um mau
silogismo, ilegitimo, pois que faltaria um termo médio capaz,
co como “pa§tor'
por exemplo, de nos fazer concluir que a pesca está do lado mito circular mostra que a definição do po_l_ili o;
deus arcaic
das artes de aquisição e de aquisição por captura etc, dos homens” não convém literalmente sendo ao
a, qe'ac ordo com o
O objetivo real deve ser buscado alhures, No Político, mas um critério de seleção daf se destac
s da Cidad e parti cipam dgflgfl:?—
chegamos a uma primeira definigdo: o politico é o pastor qual os diferentes homen
do modelo mitico. Em suma, uma _participagao
dos homens. Mas toda espécie de rivais surge, o médico, o mente
comerciante, o trabalhador, para dizer: “O pastor dos ho- eletiva responde ao problema do método seletivo.
é, na melhor das hipétese:s,_te( em seguqdf)
mens sou eu”. No Fedro trata-se de definir o delirio e Participar
o lmp’art.m(—’
precisamente de distinguir o delirio bem fundado ou o ver- lugar. De onde a célebre triade neoplatnica:
ipante . Dir-se -ia tambem:
dadeiro amor. - Aí também muitos pretendentes surgem para pavel, o participado, o partic
o preten d'ente ; o pai, 2
dizer: “O Inspirado, o amante, sou eu”. O objetivo da fundamento, o objeto da pretensdo,
divisdo ndo é, pois, em absoluto, dividir um género em O funda mento é o que possui algum a coisa
filha e o noivo.
espécies, mas, mais profundamente, selecionar linhagens: que lhe da a partic ipar, que lhe dé a0
em primeiro lugar, mas
distinguir os pretendentes, distinguir o puro ¢ o impuro, o na medld? .emdqu%
pretendente, possuidor em segundo lugar,
auténtico e o inauténtico. De onde a metifora constante,
soube passar pela prova do fundamento . O participado É
que aproxima a divisdo da prova de ouro. O platonismo é O impar-
o que 0 imparticipável possui em primeiro lugar.
a Odisséia filosófica; a dialética platdnica não é uma dialé- ele dá o pamcll _:ado aos partic ipan-
ticipavel dá a participar, precxãu
tica da contradição nem da contrariedade, mas uma dialética a justiça, a qualidade de justo, o0s justos. E é
tes:
da rivalidade (amphisbetesis), uma dialética dos rivais ou
distinguir, sem dúvida, todo um conjunto de graus, toda
dos pretendentes. A esséncia da divisdo ndo aparece em não Pavefla_ x,m
uma hierarquia, nesta participação eletiva:
largura, na determinagio das espécies de um género, mas lugar, em quarto etc., até o infinito
possuidor em terceiro
em profundidade, na seleção da linhagem. Filtrar as pre- do. que
tensdes, distinguir o verdadeiro pretendente dos falsos. de uma degradagdo, até aquele que não possui mais
simulacro, uma miragem, ele próprio miragem e simu-
um
Para realizar este objetivo, Platão procede uma vez deiro pp_h—
mais com ironia. Pois, quando a divisdo chega a esta lacro? O Politico distingue em detalhe: o verda
do, depois parent es, auxilia-
tico ou o pretendente bem funda
verdadeira tarefa seletiva, tudo se passa como se ela renun-
até aos simul acros e contra facgde s. A mf\ld}-
ciasse em cumpri-la ¢ se deixasse substituir por um mito. res, escravos,
eles encarnam a má potéucia
Assim, no Fedro, o mito da circulagdo das almas parece ção pesa sobre estes últimos;
falso pretendente.
interromper o esforco da divisio; da mesma forma, no
@ Assiã o mito constrói o modelo imanente ou o funda-
Politico, o mito dos tempos arcaicos. Tal é a segunda ar- ndentes deye_’m
madilha da divisio, sua segunda ironia, esta escapada, esta mento-prova de acordo com o qual os Erete
ser julgados e sua pretensdo .medida. Eé sob esta condição
aparéncia de escapada ou de reniincia. Pois na realidade, que é não a espe-
que a divisão prossegue e atinge seu fun',
o mito não interrompe nada; ele é, ao contriric, elemento
cificação do conceito mas a auten ticaç ão da Idéia, não a
integrante da prépria divisão. É préprio da divisio ultra- linha gem. Co;n‘o
determinação da espéci e, mas a seleçã o da
passar a dualidade entre o mito e a dialética e reunir a divi-
em si a poténcia dialética e a poténcia mitica. O mito, explicar, contudo, que, dos trés grandes textos sobre
aprese nte este último
com sua estrutura sempre circular, é realmente a narrativa são, o Fedro, o Politico ¢ 0 Sofista, não
A razão disso é simple s. É que,
de uma fundagdo. É ele que permite erigir um modelo nenhum mito fundador?
segundo o qual os diferentes pretendentes poderdo ser jul- no Sofista, o método de divisão é paradoxalmente empreg,av%o
avaliar os justos pretendentes, mas ao contrário
gados. O que deve ser fundado, com efeito, é sempre uma não para def{mr
tal, ;')ar?
pretensdo. É o pretendente que faz apelo a um fundamento para encurralar o falso pretendente como
O préprio sofista
e cuja pretensdo se acha bem fundada ou mal fundada, não o ser (ou antes o ndo-ser) do simulacro.
ou centau ro, o Proteu que se
fundada. Assim, no Fedro, o mito da circulação expde o é o ser do simulacro, o sitiro
parte. Mas, neste senl_ld?,
que as almas puderam ver das Idéias antes da encarnagdo: imiscui e se insinua por toda
rdmda—
por isso mesmo nos dá um critério seletivo segundo o qual é possivel que o fim do Sofista contenha a mais extrao
b\fscar do la_do o
o delirio bem fundado ou o amor verdadeiro pertence as ria aventura do platonismo: à força de
almas que viram muito e que têm muitas lembrangas ador- simulacro e de se debruçar sobre seu abismo, Platão, no
mecidas, mas ressuscitdveis — as almas sensuais, de fraca clarão de um instante, descobre que não é simp%esn.lente uma
memoria e de vista curta, são, ao contrdrio, denunciadas falsa cópia, mas que põe em questão as próprias noções
como falsos pretendentes. O mesmo ocorre no Politico: o de copia. .. e de modelo. A definição final do sofista nos
leva a um ponto em que não mais podemos distingui-lo
do
própnoASócrates: o ironista operando, em conversas privad
as, são, “contra o pai” e sem passar pela Tdéia?. Pretensão
Por meio de argumentos breves. Não seria necessário
mes- não fundada, que recobre uma dessemelhança assim como
mo levar a ironia até aí? E também que tivesse sido
Platão um desequilíbrio interno.
© primeiro a indicar esta direção da reversão do platon
ismo? Se dizemos do simulacro que é uma cópia de cópia,
_Partiriamos de uma primeira determinação do motivo um ícone infinitamente degradado, uma semelhança infinita-
platônico: distinguir a essência e a aparência, o intelig
ível mente afrouxada, passamos à margem do essencial: a dife-
© o sensível, a Idéia e a imagem, o original e a rença de natureza entre simulacro e cópia, o aspecto pelo
cópia, o
m.odelo e o simulacro. Mas já vemos que estas expressêes qual formam as duas metades de uma divisão. A cópia é
não são equivalentes. A distinção se desloca entre duas uma imagem dotada de semelhança, o simulacro, uma
espécies de imagens. As cdpias são possuidoras em segundo imagem sem semelhança, O catecismo, tão inspirado no
lugar, pretendentes bem fundados, garantidos pela semelh platonismo, familiarizou-nos com esta noção: Deus fez o
an-
ça; os simulacros são como os falsos pretendentes homem à sua imagem e semelhança, mas, pelo pecado, o
, construi-
dos a partir de uma dissimilitude, implicando uma homem perdeu a semelhança embora conservasse a imagem.
perversio,
um desvio essenciais. É neste sentido que Platão divide Tornamo-nos simulacros, perdemos a existéncia moral para
em
dois o domínio das imagens-idolos: de um lado, as entrarmos na existéncia estética. A observagio do cate-
cdpias-
iom_1es, de outro os simulacros-fantasmas'. Podemos então cismo tem a vantagem de enfatizar o cardter demonfaco do
definir melhor o conjunto da motivação platônica: simulacro. Sem duvida, ele produz ainda um efeito de
trata-se
df ;elecxona: os pretendentes, distinguindo as boas semelhanca; mas é um efeito de conjunto, exterior, e produ-
e as mas
cópias ou antes as cópias sempre bem fundadas e os simu- zido por meios completamente diferentes daqueles que se
lacros sempre submersos na dessemelhança. Trata-se de acham em ação no modelo. O simulacro é construido sobre
assegurar o triunfo das cópias sobre os simulacros, uma disparidade, sobre uma diferenga, ele interioriza uma
de
recqlcar os simulacros, de manté-los encadeados no fundo, dissimilitude. Eis por que não podemos nem mesmo defini-
de impedi-los de subir à superficie e de se “insinuar” -lo com relagic ao modelo que se impde às cópias, modelo
por
toda parte. do Mesmo do qual deriva a semelhanca das copias. Se o
_ A grande dualidade manifesta, a Idéia e a imagem, não simulacro tem ainda um modelo, trata-se de um outro
estd af sendo com este objetivo: assegurar a distingdo latente modelo, um modelo do Outro de onde decorre uma desse~
entre as duas espécies de imagens, dar um critério concre
to. melhanga interiorizada 3.
Pois, se as cdpias ou icones são boas imagens e bem funda- Seja a grande trindade platénica:: o usudrio, o pro-
das, é porque são dotadas de semelhanga. Mas a semelhan- dutor, o imitador. Se o usuério está no alto da hierarquia
sa não deve ser entendida como uma relação exterior:
ela é porque julga sobre fins e dispde de um verdadeiro saber
vai menos de uma coisa a outra do que de uma coisa a
uma
que é o do modelo ou da Idéia. A cópia pederia ser
Tdéia, uma vez que é a Idéia que compreende as relações e chamada de imitagdo na medida em que reproduz o modelo;
proporgdes constitutivas da essência interna. Interior e , contudo, como esta imitagdo é noética, espiritual e interior,
espirítual, a semelhança é a medida de uma pretensão: a ela é uma verdadeira producio que se regula em função
cópia não parece verdadeiramente a alguma coisa senão das relagbes e proporções constitutivas da esséncia. Há
na
medida em que parece & Idéia da coisa. O pretendente não sempre uma operagdo produtiva na boa cdpia e, para corres-
é conforme ao objeto senão na medida em que se modela ponder a esta operagdo, uma opinido justa ou até mesmo
(interiormente e espiritualmente) sobre a Idéia. um saber. Vemos, pois, que a imitagic é determinada a
Ele não
merece a qualidade (por exemplo, a qualidade de justo) tomar um sentido pejorativo na medida em que não conse-
senão na medida em que se funda sobre a essência (a gue passar de uma simulagio, que não se aplica senão ao
justiça). Em suma, é a identidade superior da Ydéia que simulacro e designa o efeito de semelhanca somente exterior
funda a boa pretensão das cópias e funda-a sobre uma
se- 2. Analisando a relação entre a escritura e o logos, Jacques Derrida
me]hquça i:ªtema ou derivada. Consideremos agora a outra reencontra realmente esta figura do platonismo: o pai do logos, o próprio
espécie de imagens, os simulacros: aquilo a que pretendem, logos, a escritura, A escritura é um simulacro, um falso pretendente, ma
medida em que pretende se apoderar do logos por violência e por ardil ou
o objeto, a qualidade etc., pretendem-no por baixo do pano, mesmo suplanti-lo sem passar pelo psi. Cf. “La Pharmacie de Flaton”,
gragas a uma agressdo, de uma insinuagio, de uma Tel Quel, 70 32, p. 12 e 5. e nº 33, p. 38 e s. À mcsma figura se enconira
subver- ainda no Politico: o Bem como pai da lei, a lei ela prépria, as constituições,
As boas constituigoes são coplas; mas se fornam simulacros assim que violam
1. Sofista, 236b, 264c. ou usurpam a ki, esquivando-se ao Bem.
3.0 Outro, com efeito, não é somente uma deficiência que afeta as
imagens; ele próprio aparece como um modelo possivel, que se opõe ao bom
modelo do Mt ¥ Teereto Trée, Timeis 280 '
e improdutivo, obtido por ardil ou subversão. Lá não cional de especificagdo que não tinha em Platdo. Podemos
existe mais nem mesmo opinião justa, mas uma espécie de designar um terceiro momento quando, sob a influéncia do
refrega irônica que faz as vezes de modo de conhecimento, Cristianismo, não se procura mais somente fundar a repre-
uma arte da refrega exterior ao saber e à opinião*. Platão sentação, torná-la possivel, nem especifici-la ou determind-
precisa o modo como este efeito improdutivo é obtido: o -la como finita, mas tornd-la infinita, fazer valer para
simulacro implica grandes dimensões, profundidades e dis- ela uma pretensdo sobre o ilimitado, fazé-la conquistar o
tâncias que o observador não pode dominar. É porque infinitamente grande assim como o infinitamente pequeno,
não as domina que ele experimenta uma impressão de seme- abrindo-a sobre o Ser além dos géneros maiores e sobre
lhança. O simulacro inclui em si o ponto de vista dife- o singular aquém das menores espécies.
rencial; o observador faz parte do próprio simulacro, que Leibniz ¢ Hegel marcaram com seu génio esta tentativa,
se transforma e se deforma com seu ponto de vistaS. Em Contudo, se ainda assim não saímos do clemento da repre-
suma, há no simulacro um devir-louco, um devir ilimitado sentação é porque permanece a dupla exigéncia do Mesmo
como o do Filebo em que “o mais e o menos vão sempre & e do Semelhante. Simplesmente, o Mesmo encontrou um
frente”, um devir sempre outro, um devir subversivo das principio incondicionade capaz de fazé-lo reinar no ilimi-
profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, o Mesmo tado: a razio suficiente; e o Semelhante encontrou uma
ou o Semelhante: sempre mais e menos ao mesmo tempo, condição capaz de aplici-lo ao ilimitado: a convergéncia
mas nunca igual. Impor um limite a este devir, ordená-lo ou a continuidade. Com efeito, uma nogdo tão rica como
ao mesmo, torná-lo semelhante — e, para a parte que per- a de compossibilidade, de Leibniz, significa que, sendo as
maneceria rebelde, recalcá-la o mais profundo possível, monadas assimiladas a pontos singulares, cada série que
encerrá-la numa caverna no fundo do Oceano: tal é o converge em torno de um destes pontos se prolonga em
objetivo do platonismo em sua vontade de fazer triunfar os outras séries convergindo em torno de outros pontos; um
icones sobre os simulacros. outro mundo comega na vizinhanga dos pontos que fariam
O platonismo funda assim todo o domfnio que a filo- divergir as séries obtidas. Vemos pois como Leibniz exclui
sofia reconhecerd como seu: o dominio da representagdo a divergéncia distribuindo-a em “incompossiveis” e conser-
preenchido pelas cOpias-icones e definido não em uma rela- vando o máximo de convergéncia ou de continuidade como
ção extrinseca a um objeto, mas numa relagio intrinseca critério do melhor mundo possivel, isto é, do mundo real.
ao modelo ou fundamento. O modelo platônico é o Mesmo: (Leibniz apresenta os outros mundos como “pretendentes”
no sentido em que Platão diz que a Justica não é nada menos bem fundados.) Da mesma forma, para Hegel,
além de justa, a Coragem, corajosa etc. — a determinagdo mostrou-se recentemente até que ponto os circulos da dialé-
abstrata do fundamento como aquilo que possui em primeiro tica giravam em torno de um só centro, repousavam num
lugar. A cópia platônica é o Semelhante: o pretendente só centro®. Monocentragem dos circulos ou convergéncia
que recebe em segundo lugar. À identidade pura do modelo das séries, a filosofia ndo deixa o elemento da representação
ou do original corresponde a similitude exemplar, & pura quando parte à conquista do infinito. Sua embriaguez é
semelhanga da cópia corresponde a similitude dita imitativa. fingida. Ela persegue sempre a mesma tarefa, Iconologia e
Nio se pode dizer, contudo, que o platonismo desenvolve adapta-a às exigéncias especulativas do Cristianismo (o infi-
ainda esta poténcia da representagdo por si mesma: ele se nitamente pequenc e o infinitamente grande). E sempre
contenta em balizar o seu dominio, isto é, em funda-lo, a seleção dos pretendentes, a exclusdo do excéntrico ¢ do
seleciond-lo, excluir dele tudo o que viria embaralhar seus divergente, em nome de uma finalidade superior, de uma
limites. Mas o desdobrar da representagio como bem fun- realidade essencial ou mesmo de um sentido da histdria.
dada e limitada, como representação finita, é antes o objeto A estética sofre de uma dualidade dilacerante. Designa
de Aristóteles: a representagdo percorre e cobre todo o de um lado a teoria da sensibilidade como forma da expe-
dominio que vai dos mais altos géneros às menores espécies riéncia possivel; de outro, a teoria da arte como reflexdo
e o método de divisio toma entdo seu procedimento tradi- da experiéncia real. Para que os dois sentidos se juntem é
preciso que as préprias condigdes da experiéncia em geral
4. Cf Républica, X, 602a e Sofista, 268a. se tornem condições da experiéncia real; a obra de arte,
5. X. Audousrd mostrou muito bem este aspecto: os simulacros “são
construções que incluem o &ngulo do observador, para que a ilusio se produza
do ponto mesmo em que o observador se encontra... Não é na realidade o 6. Touis Althusser escreve a propésito de Hegel: “Circulo de circulos,
estatuto do nloser que & enfatizado, mas este pequeno desvio, da imagem 4 consciência só tem um único centro que a determina: seriam precisos
xeal, que se prende ao ponto de vista ocupado pelo observador ¢ que constitui círculos tendo um outro centro do que ela, círculos descentrados, para, que
a vpossibilidade de construir o simulacro, obra do sofista” (“Le Simulacre”, ela fosse afetada em seu centro por sua eficácia, em suma, que sua essência
Cahiers pour Lanalyse, nº 3). fosse sobredeterminada por eles...” (Pour Marx, ed. Maspéro, p. 101.)
de seu lado, aparece então realmente como experimentação. É verdade, todavia, que as séries que os bordejam perma-
Sabe-se por exemplo que certos procedimentos literários necem exteriores; por isso mesmo, também as condições de
(as outras artes têm equivalentes) permitem contar várias sua reprodução permanecem exteriores aos fenômenos.
histórias ao mesmo tempo. Não há dúvida de que é este Para falar de simulacro, é preciso que as séries heterogéneas
o caráter essencial da obra de arte moderna. Não se trata sejam realmente interiorizadas no sistema, compreendidas ou
de forma nenhuma de pontos de vista diferentes sobre uma complicadas no caos, é preciso que sua diferença seja
história que se supõe ser a mesma; pois os pontos de vista incluida. Sem dúvida, há sempre uma semelhança entre
permanecem submetidos a uma regra de convergéncia. séries que ressoam. Mas o problema não está aí, está
Trata-se, ao contrário, de histórias diferentes e divergentes, antes no estatuto, na posição desta semelhança. Conside-
como se uma paisagem absolutamente distinta correspon- remos as duas fórmulas: “só o que se parece difere”,
desse a cada ponto de vista. Há realmente uma unidade “somente as diferenças se parecem”. Trata-se de_duas
das séries divergentes enquanto divergentes, mas é um caos leituras do mundo, na medida em que uma nos convida a
sempre excentrado que se confunde ele próprio com a pensar a diferença a partir de uma similitude ou d.e uma
Grande Obra. Este caos informal, a grande letra de identidade preliminar, enquanto a outra nos _wnvnda ao
Finnegar's wake não é qualquer caos: é potência de afir- contrário a pensar a similitude e mesmo a identidade como
mação, potência de afirmar todas as séries heterogêneas, o produto de uma disparidade de fundo. A primeira define
ele “complica” em si todas as séries (de onde o interesse exatamente o mundo das cópias ou das representagdes;
que Joyce tem por Bruno, como teórico da complicatio). coloca o mundo como icone. A segunda, contra a pri-
Entre estas séries de base se produz uma espécie de resso- meira, define o mundo dos simulacros. Ela colucaA o
nância interna; esta ressonância induz um movimento préprio mundo como fantasma. Ora, do ponto de vista
forçado, que transborda das próprias séries. Todos estes desta segunda férmula, importa pouco que a dx_spandade
caracteres são os do simulacro, quando rompe suas cadeias original, sobre a qual o simulacro é construido, seja grande
e sobe à superfície: afirma então sua potência de fantasma, ou pequena; ocorre que as séries de base não tenham senão
sua potência recalcada. Lembramo-nos de que Freud já uma pequena diferenca. Basta, contudo, que a dxspandade
mostrava como o fantasma resulta de duas séries pelo constituinte seja julgada nela mesma, não se prejulgue a
menos, uma infantil e a outra pós-pubertária. A carga partir de nenhuma identidade preliminar e que tenha o
afetiva ligada ao fantasma explica-se pela ressonância dispars como unidade de medida e de comunicação. Então
interna da qual os simulacros são portadores e a impressão a semelhança não pode ser. pensada senão como o produto
de morte, de ruptura ou de desmembramento da vida desta diferença interna. Importa pouco que o sistema seja
explica-se pela amplitude do movimento forçado que as de grande semelhança externa e pequena diferença interna,
arrasta. Reúnem-se assim as condições da experiência real ou o contrário, a partir do momento em que a semelhança
e as estruturas da obra de arte: divergência das séries, é produzida sobre a curva e que a diferença, pequena ou
descentramento dos círculos, constituição do caos que os grande, ocupe o centro do sistema assim descentrado. .
compreende, ressonância interna e movimento de amplitude, Reverter o platonismo significa então: fazer subiros
agressão dos simulacros 7. simulacros, afirmar seus direitos entre os fcones ou as copias.
Tais sistemas, constituídos pela colocação em comuni- O problema não concerne mais à distinção Esséncia-Apa-
cação de elementos díspares ou de séries heterogêneas, são réncia, ou Modelo-copia. Esta distinção opera no mundo
bastante ordinários em um sentido. São sistemas sinal- da representação; trata-se de i.nt.roduz.ir a subve{séo neste
-signo. O sinal é uma estrutura em que se repartem dife- mundo, “creptisculo dos idolos”. O su-nulacrvo' não é uma
renças de potencial e que assegura a comunicação dos cópia degradada, ele encerra uma potência positiva que nega
díspares; o signo é o que fulgura entre os dois níveis da tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a repro-
orla, entre as duas séries comunicantes. Parece realmente dução. Pelo menos das duas séries divergentes interiori-
que todos os fenômenos respondem a estas condições na zadas no simulacro, nenhuma pode ser designada como o
medida em que encontram sua razão em uma dissimetria, original, nenhuma como a cópia?. Não basta nem mesmo
em uma diferença, uma desigualdade constitutivas: todos invocar um modelo do Outro, pois nenhum modelo resiste
Os sistemas físicos são sinais, todas as qualidades são signos.
. Ci Blanchot, “Le Rire des diewx”, La Nouvelle reoue française,
7. Sobre a obra de arte modema e notadamente Joyce, cf. Umberto ,mhosag 1965: “um universo em que a imagem àdeixa de ser segunda com
relagio ao modelo, em que & impostura pretende verdade, em que, enfim,
não há mais original, mas uma etema cintilaçãoem que se dispersa, no
Eco, d Obra aberta. No prefácio de seu romance Cosmas, Gombrowicz faz
bservagdes profundas sobre a constituição das séries divergentes, sobre à
maneira pela qual ressoam e se comenicam no seio de um caos. clarão do desvio é do retorno, a ausência de origem” (p. 103).
à vertigem do simulacro. Não há mais ponto de vista de “costume” ou antes de mdscara, exprimindo um processo
privilegiado do que objeto comum a todos os pontos de de disfarce em que, atrds de cada mdscara, aparece outra
vista. Não há mais hierarquia possível: nem segundo, nem ainda... A simulagio assim compreendida ndo é separd-
terceiro. .. A semelhança subsiste, mas é produzida como vel do eterno retorno; pois é no eterno retorno que se
o efeito exterior do simulacro, na medida em que se cons- decidem a reversio dos icones ou a subversdo do mugdo
trói sobre as séries divergentes e faz com que ressoem. AÀ representativo. Aí, tudo se passa como se um conteúdo
identidade subsiste, mas é produzida como a lei que com- latente se opusesse ao conteúdo manifesto. O conteúdo
e
plica todas as séries, faz com que todas voltem em cada manifesto do eterno retorno pode ser determinado conform
uma no curso do movimento forçado. Na reversão do ao platonismo em geral: ele represen ta então a maneira
e
platonismo, é a semelhança que se diz da diferença interio- pela qual o caos é organizado sob a ação do demiurgo
rizada, e a identidade do Diferente como potência primeira. sobre o modelo da Idéia que lhe impõe o mesmo é O
O mesmo e o semelhante não tém mais por esséncia sendo semelhante. O eterno retorno, neste sentido, éo 1_:lev1r—
ser simulados, isto é, exprimir o funcionamento do simulacro. Jouco controla do, monocentrado, determinado a copiar o
Nio hd mais seleção possivel. A obra não-hierarquizada é eterno. E é desta mancira que ele aparece no mito fun-
um condensado de coexisténcias, um simultineo de aconte- Ele instaura a copia na imagem, subordina a
dador.
cimentos. E o triunfo do falso pretendente. Ele simula nga. Mas, longe de represen tar a verdade
imagem à semelha
sua
tanto o pai como o pretendente e a noiva numa superposição do eterno retorno, este conteúdo manifesto marca antes
de miéscaras. Mas o falso pretendente não pode ser dito utilização e sua sobrevivéncia mitica em uma ideologia que
falso com relação a um modelo suposto de verdade, muito não o suporta mais e que perdeu O seu segredo. É justo
em
menos que a simulagio não pode ser dita uma aparéncia, lembrar quanto a alma grega em geral e o platonismo
em sua
uma ilusdo. A simulação é o proprio fantasma, isto é, o particular repugnam ao eterno retorno t?mado
h'e
efeito do funcionamento do simulacro enquanto maquinaria, significação latente 1°. É preciso dar razão à I:I_;etzsc
máquina dionisiaca. Trata-se do falso como poténcia, quando trata o eterno retorno como sua própria 1d'eza. verti-
Psendos, no sentido em que Nietzsche diz: a mais alta ginosa, que não se alimenta senão em fonte_s dionisíacas
poténcia do falso. Subindo à superficie, o simulacro faz esotéricas, ignoradas ou recalcadas pelo platonismo. Certa-
ficam
cair sob a poténcia do falso (fantasma) o Mesmo ¢ o Seme- mente, as raras expusições que Nietzsche faz a respeito
lhante, o modelo e a copia. Ele torna impossivel a ordem no conteúdo manifesto: o eterno retorno como o Mesmo
das participações, como a fixidez da distribuição e a deter- que faz voltar o Semelhante. Mas como ndo ver a despro-
sa
minação da hierarquia. Instaura o mundo das distribuições porção entre esta trivial verdade natural, que não ultrapas
ndémades e das anarquias coroadas. Longe de ser um novo uma ordem generalizada das estações e a emoção de Zara-
fundamento, engole todo fundamento, assegura um univer- tustra? Bem mais, a exposição manifesta não existe senão
sal desabamento (effondrement), mas como acontecimento para ser refutada secamente por Zaratustra: uma vez para
por
positivo e alegre, como effondement. “Atrds de cada o ando, uma outra a seus animais, Zaratustra reprova-a
caverna uma outra que se abre, mais profunda ainda e transformar em vacuidade algo que é singularmente profundo,
abaixo de cada superficie, um mundo subterrdneo mais vasto, em uma “cantilena” o que é de uma misica diferente, em
mais estrangeiro, mais rico e sob todos os fundos, sob todas
simplicidade circular o que é diferentemente tortuoso. No
as fundagBes, um subsolo mais profundo ainda”?. Como
eterno retorno, é preciso passar pelo conte\’xdo.mamfesu_), mas
poderia Sócrates se reconhecer nestas cavernas que não são somente para atingir ao conteúdo latente situado m]{
pés
mais a sua? Com que fio, uma vez que o fio se perdeu? de toda caverna. . .) _Entao, o
abaixo (caverna por trás
Como sairia dai e como poderia ainda ser distinguido do
que parecia a Platão não ser mais do que um efeito estéril
sofista?
revela em si a inalterabilidade das máscaras, a impassibili-
Que o Mesmo e o Semelhante sejam simulados não dade dos signos. .
significa que scjam aparéncias e ilusGes. A simulação O segredo do eterno retorno é que não exprime de
designa a poténcia para produzir um efeito. Mas não é forma nenhuma uma ordem que se opde ao caos ¢ que O
somente no sentido causal, uma vez que a causalidade conti- submete. Ao contrério, ele não é nada além do que o caos,
nuaria completamente hipotética e indeterminada sem a poténcia de afirmar o caos. Há um ponto no qual Joyce
intervengdo de outras significagdes. É no sentido de
“signo”, saído de um processo de sinalizagdo; e é no sentido 10. Sobre a reticência dos gregos e motadamente Platio com relagio
9. Para além do bem ¢ do mal, $ 289, a0 eterno retoro, cf. Charles Mugler, Deux thémes de la cosmologie grecque,
ed. Klincksieck, 1953.
ve no que há
elabora, mas nas cidades e nas ruas, inclusi
o nelas. O intemp estivo se est_ab e&we com
é nietzschiano: quando mostra que o vicus of recirculation de mais factici
não pode afetar e fazer girar um “caosmos”. À coerência relação ao mais longínguo passado, na reversão do pãcâ—
da representação, o eterno retorno substitui outra coisa, sua nismo, com relação ao presente, no .slmu!.acm concebido
própria cao-errância. É que, entre o eterno retorno e o como o ponto desta modernidade crítica, com relação ao
do futuro.
simulacro, há um laço tão profundo, que um não pode ser futuro no fantasma do eterno retorno como crença
a mesma Coisa. ,A'te
compreendido senão pelo outro. O que retorna são as O facticio ¢ o simulacro não são cópia,
O factici o é seníbr e uma cópia de
séries divergentes enquanto divergentes, isto é, cada qual mesmo se opdem.
za
enquanto desloca sua diferença com todas as outras e todas que deve ser levada até ao ponto em que muda df nature
da PopArt ).. o
enquanto complicam sua diferença no caos sem começo nem e se reverte em simulacro (momento
no coraçã o da moderm dax.le ,
fim. O circulo do eterno retorno é um círculo sempre factício e o simulacro se opõem
contas, assim
excêntrico para um centro sempre descentrado. Klossowski no ponto em que esta acerta todasas suas
tem razão de dizer do eterno retorno que é “um simulacro se opõem dois modos de destru ição: os dois niilismos.
como
r para ognserà:ar
de doutrina”: ele é realmente o Ser, mas somente quando Pois há uma grande diferenca entre destrui
entagdes, dos
o “ente” é simulacro !, O simulacro funciona de tal maneira e perpetuar a ordem restabel_ecnda das repres para
copias e destrui r os modelo s e as cópias
que uma semelhanga é retrojetada necessariamente sobre modeios e das cros &
suas séries de bases, e uma identidade necessariamente pro- cria, que faz_ m.archar os simula
instaurar o caos que
fantasma — a mais inocente de todas as
jetada sobre o movimento forgado. O eterno retorno &, levantar um
pois, efetivamente o Mesmo e o Semelhante, mas enquanto destruições, a do platonismo.
simulados, produzidos pela simulagdo, pelo funcionamento
do simulacro (vontade de poténcia). É neste sentido que
ele subverte a representagdo, que destrói os icones: ele não
pressupde o Mesmo e o Semelhante, mas, ao contririo,
constitui o único Mesmo daquilo que difere, a única seme-
lhança do desemparelhado. Ele é o fantasma único para
todos os simulacros (o ser para todos os entes). É poténcia
para afirmar a divergéncia e o descentramento. Faz deles
0 objeto de uma afirmação superior. É sob a poténcia do
falso pretendente que ele faz passar e repassar o que é.
Assim, não faz retornar tudo. É ainda seletivo, faz a dife-
renca, mas não à maneira de Platio. O que seleciona são
todos os procedimentos que se opdem à selegio. O que
exclui, o que não faz retornar, é o que pressupde o Mesmo
e o Semelhante, o que pretende corrigir a divergéncia,
recentrar os circulos ou ordenar o caos, dar um meodelo e
fazer uma copia. Por mais longa que seja sua histéria, o
platonismo não ocorre senão uma só vez e Sécrates cai sob
o cutelo. Pois o Mesmo e o Semelhante tornam-se sjmples
ilusões, precisamente a partir do momento em que deixam
de ser simulados.
Definimos a modernidade pela poténcia do simulacro.
Cabe à filosofia ndo ser moderna a qualquer prego, muito
menos intemporal, mas destacar da modernidade algo que
Nietzsche designava como o intempestivo, que pertence &
modernidade, mas também que deve ser voltada contra ela
— “em favor, eu o espero, de um tempo por vir*. Não é
nos grandes bosques nem nas veredas que a filosofia se
11. Krossowssy, Pierre, Un si funeste désir. Gallimard, p. 326, E
Eã 7‘.’1‘:-2218, em que Klossowski comenta as palavras da Gaia Ciência, $ 361:
er da simulação, explodindo como potência, recalcando o assim cha-
mado caráter, submergindo-o por vezes té extingui-lo, ..”
&1 LUVIGLIU G U VINHIUWUIAVIV

Depois de Epicuro, Lucrécio soube determinar o objeto


especulativo e prático da filosofia como “naturalismo”. AÀA
importância de Lucrécio em filosofia está ligada a essa dupla
determinação.
Os produtos da Natureza não são separáveis de uma
diversidade que lhes é essencial.. Mas pensar o diverso como
diverso é uma tarefa difícil em que, segundo Lucrécio,
todas as filosofias precedentes fracassaram!. Em nosso
mundo a diversidade natural aparece sob três aspectos que
se recortam: a diversidade das espécies, a diversidade dos
indivíduos que são membros de uma mesma espécie, a diver-
sidade das partes que compõem um individuo. A especi
cidade, a individualidade e a heterogeneidade. Não há
mundo que não se manifeste na variedade de suas partes,
de seus lugares, de suas margens e das espécies que os povoa.
Não há indivíduo que seja absolutamente idêntico a outro
indivíduo; não há bezerro que não seja reconhecível para
sua mãe, nem conchas ou grãos de trigo que sejam indis-
cerniveis. Nem há corpo que seja composto de partes
homogéneas; nem uma erva, nem um curso d'água que não
impliquem uma diversidade de matéria, uma heterogeneidade
de elementos, onde cada espécie animal, por sua vez, não
possa encontrar o alimento que lhe convém. Infere-se daí
a diversidade dos próprios mundos sob estes três pontos de
vista: os mundos são inumeráveis, fregiientemente de espé-
cies diferentes, às vezes semelhantes, sempre compostos de
elementos heterogéneos.

1. Em toda a parte crítica do Livro I, Lucrécio reclama sem cessar


uma razio do diverso. Os diferentes aspectos da diversidade são descritos
no Livro I, 342-376, 581-588, 661-681, 1052-1086.
Com que direito esta inferência? A Natureza deve ser
pensada como o princípio do diverso e da sua produç de se transformar uns nos outros: outra forma de dizer
ão. que uma coisa produz uma outra mudando de natureza,
Mas um princípio de produção do diverso só tem sentido e que qualquer coisa nasce do nada. Porque os fildsofos
desde que não reúna seus próprios elementos num todo.
Não se verd nessa exigéncia antinaturalistas não quiseram levar em conta o vazio, o
um circulo, como se Epicuro
€ Luc'recw quisessem apenas dizer que o principio do diverso vazio se apoderou de tudo. Seu Ser, seu Uno, seu Todo
d;vena ser ele mesmo diverso. sdo sempre artificiais e não mnaturais, sempre corruptiveis,
A tese epicuriana é bem
dlversa:_ a Natureza como produgdo do diverso evaporados, porosos, inconsistentes e quebradigos. Eles
não pode prefeririam dizer: “o ser é nada”, a reconhecer: há seres
ser sendo uma soma infinita, isto é, uma soma
que não e há o vazio, há seres simples no vazio e vazio nos
totaliza seus préprios elementos. Não há combinação capaz
de abranger todos os elementos da Natureza seres compostos2. A diversidade do diverso os filésofos
ao mesmo substitufram a identidade ou o contraditério, muitas vezes
tempo, não há mundo único ou universo total.
Physis não
é uma determinagio do Uno, do Ser oz do os dois ao mesmo tempo. Nem identidade nem contradição,
Todo. A mas semelhangas e diferengas, composições e decomposicdes,
Natureza não é coletiva, mas distributiva; as leis
da Natu- “conextes, densidades, choques, encontros, movimentos
Teza ([oedera naturai, por oposição às pretens
as foedera
fati) distribuem partes que não se totalizam. gracas aos quais se forma toda coisa”3. Coordenagdes e
A Natureza disjunções, gal é a Natureza das coisas.
não-é atributiva, mas conjuntiva: ela se exprime em “e”
e não em “é”. Isto e aquilo: alternâncias e entrelaça- O naturalismo necessita de um principio de causalidade
mentos, semelhanças e diferenças, atrações e fortemente estruturado que dé conta da produgio do
distrações,
nuanças e arrebatamentos. À Natureza é capa de Arlequimy diverso, mas que o faga como composição, combinagSes
toda feita de cheios e vazios; cheios e vazio, seres e não-
diversas e não totalizdveis entre clementos da Natureza,
-set, cada um dos dois se apresentando como ilimita 19) O átomo é aquilo que deve ser pensado, aquilo que
do e ao
mesmo tempo limitando o outro. Adição de indivisíveis, nio pode ser sendo pensado. O 4tomo é para o pensamento
ora semelhantes ora diferentes, a Natureza é bem o que o objeto sensivel é para os sentidos: o objeto que
mais um;
soma, mas não um todo. Com Epicuro e Lucrécio come- se destina essencialmente ao pensamento, objeto que se da
¢am os verdadeiros atos de nobreza do pluralismo 20 pensar, da mesma forma como o objeto sensivel se dá
em
filosofia. Não veremos mais contradição entre o hino 3 aos sentidos. O 4tomo é a realidade absoluta daquilo que
Natureza-Vénus e o pluralismo essencial a esta filosofia ¢ pensado, como o objeto sensivel, a realidade absoluta
da Natureza. A Natureza é precisamente a poténcia, mas daquilo que é percebido. Que o 4tomo ndo seja sensivel
poténcia em nome da qual as coisas existem uma a e nem o possa ser, que ele seja essencialmente oculto, é o
uma
sem pos§1§ilidade de se reunirem fodas de efeito de sua prépria natureza e não da imperfeição de
uma vez, nen;
de se unificar numa combinação que lhe fosse adequada ou nossa sensibilidade. Em primeiro lugar, o método epicu-
se exprimisse inteira de uma só vez. O que Lucrécio cen- riano é um método de analogia: o objeto sensivel é dotado
Sura aos predecessores de Epicuro é terem acredit de partes sensfveis, mas há um minimo sensivel que repre-
ado no
Ser,‘ 10 Uno e no Todo. Estes conceitos são as manias do senta a menor parte do objeto; da mesma forma, o átomo
espirito, as formas especulativas da crenga no é dotado de partes pensadas, mas há um minimo pensado
fatum, as
formas teológicas de uma falsa filosofia. que representa a menor parte do átomo. O átomo indivi-
'
Os predecessores de Epicuro identificaram o principio sivel é formado de minima pensados, como o objeto divisivel
ao U}m ou ao Todo. Mas o que é um, senão é composto de minima sensíveis*. Em segundo lugar, o
tal objeto
perecivel e corruptível que se considera arbitrariamente método epicuriano é um método de passagem ou de transi-
isolado de todo outro? E o que é que forma um todo, ção: guiado pela analogia, se passard do sensivel ao
senão tal combinação finita, cheia de buracos,
que, arbitra: pensade e do pensado ao sensivel por transições, paulatim,
nament_e, se acredita que reúne todos os elementos
da soma? à medida que o sensivel se decompGe ¢ se compde. Passa-
Nos dois casos o diverso e sua produção não são compre
en- -se do analogo noético ao anilogo sensivel, e inversamente,
didos. Não se engendra o diverso a partir do
Uno senão por uma série de graus concebidos e estabelecidos a partir
supondo que não importa o que possa nascer de
ndo de um procedimento de exaustdo.
importa o que, e portanto, qualquer coisa do nada.
Nio
se engendra o diverso a partir do todo senão supondo que 2. Cf Livro I, a critica de Herdclito, Empédocles e Anaxigoras sobre
os elementos que formam esse todo são contrarios capazes o nada que zonda essas concepções pré-epicurianas, cf. I, 657-669, 753-762.
3 633-634,
4. L 599-634, 749752,
29) A soma dos átomos é infinita, justamente porque 49) É por isso que o clingmen não manifesta nenhuma
eles são elementos que não se totalizam. Mas essa soma não contingência, nenhuma indeterminação. Ele manifesta, ao
seria infinita se o vazio também não o fosse. O vazio e o contrário, coisa bem diversa: a lex atomi, isto é, a plurali-
cheio se entrelaçam e se distribuem de tal forma que a dade irredutíve l das causas ou das séries causais, a impossi-
soma do vazio e dos átomos, por sua vez, é ela mesma bilidade de reunir as causas em um todo. Com efeito, o
infinita, Esse terceiro infinito exprime a correlação funda- clinamen é a determinação do encontro entre séries causais,
mental entre os átomos e o vazio. O alto e o baixo no cada série causal sendo constituída pelo movimento de um
vazio resultam da correlação do próprio vazio com os átomo e conservando no encontro toda sua independência.
átomos; o peso dos átomos (movimento de cima para baixo) Nas famosas discussões que opõem os Epicuristas aos
resulta da correlação dos átomos com o vazio. Estóicos, o problema não recai diretamente sobre contin-
39) Os átomos se encontram na queda, não em virtude gência e necessidade, mas sobre causalidade e destino. Os
de sua diferença de peso, mas em virtude do clinamen. O Epicuristas, como os Estéicos, afirmam a causalidade
clinamen é a razão do encontro ou da relação de um átomo (nenhum movimento sem causa); mas os Estóicos quercm
com outro. O clinamen está fundamentalmente ligado à ainda afirmar o destino, isto é, a unidade das causas “entre
teoria epicuriana do tempo, peça essencial do sistema. No si”. Ao que os Epicuristas objetam que não se afirma o
vazio, todos os átomos caem com velocidade igual: um destino sem introduzir a necessidade, isto é, o encadeamento
átomo não é mais ou menos rápido em função de seu peso absoluto dos cfeitos uns com os outros. É verdade que os
mas em função de outros átomos que retardam mais ou Estóicos retrucam que eles absolutamente não introduzem
menos sua queda. No vazio, a velocidade do átomo é igual a necessidade, mas que os Epicuristas por sua vez não podem
ao seu movimento numa direção única num mirimo de recusar 2 unidade das causas sem cair na contingéncia e no
tempo contínuo. Esse mínimo exprime a menor duração acaso?. O verdadeiro problema é: há uma unidade das
possível durante a qual um átomo se move numa dada causas entre si? o pensamento da Natureza deve reunir as
direção, antes de poder tomar outra direção sob o choque causas em um todo? A grande diferenca entre os Epicu-
de um outro átomo. Há pois um mínimo de tempo, não Tistas e os Estéicos é que eles ndo operam a mesma cisdo
menos que um mínimo de matéria ou de átomo. De acordo da relação causal. Os Estéicos afirmam uma diferenca de
com a natureza do átomo, esse mínimo de tempo contínuo natureza entre as causas corporais e seus efeitos incorporais,
Temete à apreensão do pensamento. Ele exprime o pensa- se bem que os efeitos remetam aos efeitos, e formem uma
mento mais rápido e mais curto: o átomo se move “tão conjugag@o, enquanto que as Causas remetem às causas &
rapido quanto o pensamento” 5. Mas, desde então, devemos formam uma unidade. Os Epicuristas, ao contrério, afir-
conceber uma direção origindria de cada átomo, como uma mam a independéncia ou a pluralidade das séries causais
sintese que dá ao movimento do 4tomo sua primejra dire- materiais, em virtude de uma declinação que afeta cada
ção, sem a qual ndo haveria choque. Esta sintese se faz uma; e é somente nesse sentido objetivo que o clinamen pode
necessariamente num tempo menor que o minimo de tempo ser dito acaso.
continuo. Tal é o clinamen. O clinamen ou declinagio 59) Os átomos têm grandezas e figuras diversas. Mas o
ndo tem nada a ver com um movimento obliquo que viria 4tomo ndo pode ter uma grandeza qualquer, pois atingiria
por acaso modificar uma queda verticalé. Ele está pre- e ultrapassaria o minimo sensivel. Os átomos não podem
sente todo o tempo: ele não é um movimento secundario, também ter uma infinidade de figuras, pois toda diversi-
nem uma determina¢do secundédria do movimento que se dade de figura implica seja uma permutagio dos minima
produziria num momento qualquer, num lugar qualquer. de átomos, seja uma multiplicagio desses minima que não
O clinamen é a determinagio original da diregio do movi- poderia ser levada 2o infinito sem que o 4tomo, mais uma
mento do dtomo. É uma espécie de conatus: um diferen- vez, não se tormasse ele mesmo sensivel . Os contornos e
cial da matéria, e por isso mesmo um diferencial do as figuras dos átomos não sendo em número infinito, hd
pensamento, de acordo com o método da exaustio. Dai o entdo uma infinidade de átomos do mesmo contorno e de
sentido dos termos que o qualificam: incertus não significa mesma figura.
indeterminado, mas não designavel, paulwn, incerto tem- 6º) Um átomo qualquer que se encontre com outro
pore, intervallo minimo significam “em um tempo menor qualquer não se combina com ele: os átomos, de outra ma-
que o minimo de tempo continuo pensdvel”. nejra, formariam uma combinação infinita. O choque, na ver-
5. Cf. Epicuro, Carta a Herddoto, 61-62 (sobre o mínimo de tempo
o).
contínuo) 7. Um dos temas pricipais do De Fato de Cícero.
6. H, 243-250. 8. 11, 483499.
dade, é tanto repulsivo quanto combinatório. Os átomos perder elementos da sua composição, o conjunto em que ele
se combinam na medida em que suas figuras o permit se banha lhe fornece outros novos, seja por via direta, seja
em.
Suas combinagSes se desfazem sob o impacto de através de uma ordem determinada, a partir de outros
outros
4tomos que quebram o enlace, perdendo seus elementos que conjuntos com os quais se comupica. Mais ainda: um
aderem a outros compostos. Se se diz que os átomos são corpo terd seus semelhantes em outros lugares, no elemento
‘:germes especificos” ou “sementes”, é porque que o produz e o alimenta!?. É por isso que Lucrécio
qualquer
atomo não entra em composição com qualquer outro. reconhece um último aspecto do principio de causalidade:
79) Toda combinagio sendo finita, há uma infinidade de um corpo não nasce apenas de determinados elementos,
mmblpqções. Mas nenhuma combinação é formada de que são como sementes que o produzem, mas também num
uma única especie de átomos. Os átomos são pois germes determinado meio, que é como uma mãe apta a reproduzi-lo.
específicos num segundo sentido: eles constituem a hetero- A heterogencidade do diverso forma uma espécie de vita-
geneidade do diverso consigo mesmo num mesmo corpo. lismo dos germes, mas a semelhanca do préprio diverso,
O que não impede que, num corpo, os diferentes átomos uma espécie de panteismo das mães 12,
tendam, em virtude de seu peso, a se distribuir segundo sua A fisica é o naturalismo do ponto de vista especulativo.
figura: em nosso mundo os átomos de mesma figura O essencial da fisica está na teoria do infinito, e dos
se
agrupam formando vastos compostos. Nosso mundo dis- minima temporais e espaciais. Os dois primeiros livros de
tribui seus elementos de tal forma que os da terra ocupam Lucrécio sdo conformes a esse objeto fundamental da fisica:
o centro, “exprimindo”, fora deles, os que vão formar determinar o que é verdadeiramente infinito e o que não o é,
o
mar, o ar, o éter (magna res)º. A filosofia da Natureza distinguir o verdadeiro infinito e o falso. O que é verda-
nos diz: heterogeneidade do diverso consigo, e també deiramente infinito é a soma dos dtomos, o vazio, a soma
m
semelhança do diverso consigo. dos atomos e do vazio, o nimero de 4tomos de mesma
89) Potência do diverso e de sua produção, mas também figura e mesmo contorno, o mimero de combinações e os
potência de reprodução do diverso. É importante ver como mundos semelhantes ou diferentes do nosso. O que ndo é
essa segunda potência decorre da primeira. À semelhança infinito são as partes do corpo e do átomo, os contornos e
decorre do diverso enquanto tal e da sua diversidade. Nio figuras do atomo, e sobretudo toda combinagio mundana ou
}n’x mundo nem corpo que não percam elementos, a cada intramundana. Ora, é de se observar que, nessa determi-
Instante, e que não encontrem outros de mesma figura. nação do verdadeiro e do falso infinito, a fisica opera de
Não há mundo nem corpo que não tenham eles próprios maneira apoditica; e é aí, também, que ela revela sua
seus semelhantes no espaço e no tempo. E que a produção subordinagio com relação à pritica ou à ética. (Ao
de qualquer composto supõe que os diferentes elementos contrdrio, se a fisica procede hipoteticamente, como para
capazes de o formar sejam eles mesmos em número infinito; explicar um fenômeno finito, ela pouco contribui para a
eles não teriam nenhuma chance de se encontrar se cada étical4,) Devemos entdo perguntar por que a determinagio
um deles, no vazio, fosse o único de sua espécie ou limitado apoditica do verdadeiro e do falso infinito, especulativa-
em número. Mas, como cada um deles tem uma infinidade mente, é o mejo necessirio da ética ou da prética.
de semelhantes, eles não produzem um composto-sem que O fim ou objeto da pratica é o prazer. Ora, a pritica,
seus semelhantes não tenham a mesma chance de renovar nesse sentido, nos recomenda apenas todos os meios de
as partes dele e mesmo de reproduzir um composto seme- suprimir e de evitar a dor. Mas nossos prazeres tém
lhante . Este argumento das chances vale sobretudo para obsticulos mais fortes que as proprias dores: os fantasmas,
os mundos. Com razão mais forte ainda, os corpos intra- as supersticdes, os terrores, o medo de morrer, tudo o que
mundanos dispõem de um princípio de reprodução. Eles forma a inquietagio da almalS. O quadro da humanidade
nascem, com efeito, nos meios já compostos, onde cada um é um quadro da humanidade inquicta, aterrorizada mais
reline um máximo de elementos de mesma figura: a terra, que dolorida (mesmo a peste se define não apenas pelas
O mar, o ar, o éter, as magnae res, os grandes esteios que dores que transmite, mas pela inquietação generalizada que
constituem nosso mundo e se prendem uns aos outros por institui). É a inquietagdo da alma que multiplica a dor;
transições insensíveis. Um determinado corpo tem seu lugar
num desses conjuntos . Como esse corpo não cessa de 12, T, 1068: “cum locus est praesto”
13, 1, 168. E 1I, 708: seminibus certis certa genctrice,
14 Ck Epicuro, Carta a Herddoto, 79.
9. V, 449454
10. 1, 541-588.
15. À introdução do Livro I é construfda sobre esta opasigio: para
1.V, 128-181
evitar a dor tanto quanto é possivel, bastam poucss coisas — mas para vencer
2 perturbagio da alma é preciso uma arte mais la
superficie somente emlftlelm
é ela que a torna invencível, mas sua origem é outra e bem TInversamente, os simulacros de
que, ela', vem das pro g-
mais profunda. Ela se compõe de dois elementos: uma ilusão as cores e as formas sob a luz
emis sões e simulacros não são
vinda do corpo, ilusão de uma capacidade infinita de pra- dezas. Em todo caso as
os.tos de átomos,blmtaã
zeres; depois uma segunda ilusão projetada na alma, ilusão evidentemente tomados como cqmp ODJE ;{;
ncia sobre e no
de uma duração infinita da prépria alma, que nos entrega como qualidades apreendidas à distâ
de ar que atravessa O 1org 0
indefesos à idéia de uma infinidade de dores possíveis a distância é dada pelo fluxo
que as emissoese Slênu acme
depois da morte!. As duas ilusões se encadeiam: o medo dos sentidos e por aquele sÉmpêº
que o objeto
dos castigos infinitos é a sanção natural dos desejos ilimi- abrem diante de si®. É por isso , em fun% ao S
perce jmc}o
tados. É sobre esta terra que se deve procurar Sísifo e percebido tal qual ele deve ser
da distância que eles tem
Títios; “é aqui embaixo que a vida dos tolos se torna um estado dos simulacros e emissões,
encontram, das defotmaçoãs
verdadeiro inferno” !7, Epicuro chega mesmo a dizer que, a vencer, dos obstáculos que en:
se a injustiça é um mal, se a cupidez, a ambição, mesmo que sofrem choques de que são alvo: ao fir{nh
ou dos
o deboche são maus, é porque eles nos entregam à idéia um longo percurso os envelopes visuais nZo nos CoMas
perdem sua distingdo. MS
de uma punição que pode sobrevir a todo instante!º. Estar com o mesmo Vigor, as VOZes
serem referidas a -
entregue indefeso à inquietação da alma é justamente a sempre subsiste 2 propriedade 'de-
único sentido que 'ªf;ie:xido
condição do homem ou o produto da dupla ilusão: “Hoje objeto; e, no caso do tato, o o
o dado de superfí(]:;e é
não há nenhum meio, nenhuma forma de resistir, pois são o objeto sem intermediário, re o obj:
apreende uso
as penas eternas que é preciso temer na morte” . É por à profundidade e aquilo que se á a
isso que para Lucrécio, como para Spinoza mais tarde, o é percebido como residindo em seu fundo?!. —
o ob]ett;, Ao qu:r
homem religioso tem dois aspectos: avidez e angústia, De onde provém esse vínculo com azem? —Acre ;
e simu lacr os se desf
cupidez e culpabilidade, complexo estranho, gerador de entretanto as emissões plcu ro, ]'J㺠cs:fn
de'E
crimes. AÀ inquictagio da alma é pois feita do medo de tamos que seu estatuto, na filosofia er essen clª,
Seu carát
morrer quando não estamos ainda mortos, mas também separável da teoria do tempo.
atravessam O €sp Qoésma
do medo de ndo estarmos ainda mortos quando já o esti- efeito, é a rapidez com a qual eles o simulacro a nàd ke
vermos. Todo o problema é o do principio dessa intran- por isso que Epicuro emprega para m
não no n‘u’esm]g sent
qiiilidade ou dessas duas ilusdes. fórmula que para o átomo (embora w A (%uel, eão
Pens amen
É ai que intervém uma teoria epicuriana muito bonita ele vai “tão répido quanto o de tempo serás vel csnma
e dificil. Dos préprios corpos ou dos compostos atdmicos virtude da analogia, há um mínimo Ora, da nr:x ...
pensável.
emanam constantemente elementos particularmente sutis, menos que um mínimo de tempo num tempo d
selfa z
fluidos e tênues. Esses compostos de segundo grau são de forma como a declinação do átomo a 14 no _lgeg gs
‘ela já estej
dois tipos: ou eles emanam da profundeza do corpo, ou que o tempo pensável, embora
se desprendem da superficie (peles, tinicas ou tecidos, enve- tempo que se possa pensar, assim que também a emlãsalem
o mínimo ce ;;g
lopes, cascas, aquilo que Lucrécio chama de simulacros e simulacros se faz UM tempo menor meno r temp o quen dc
no
Epicuro, de idolos). Conforme atingem o arimus e a sensível, embora eles já estejam
anima, produzem qualidades sensiveis. Os sons, os odores, senti r, e nos pare çam estar ainda no objeto quãissi—
possa o como unlcç'ãe S
os sabores, os calores, remetem sobretudo às emissdes de nos atingem. “No momento percebid
ênci -
profundidade, enquanto que as determinagdes visuais, formas mula um gran de número de momentos cuja exist "
que 2 todo mome nto,
e cores remetem aos simulacros de superficie. Na verdade razão descobre, de tal forma 2
simulacros se encomr:
é ainda mais complicado, pois cada sentido parece combinar todos os lugares, todo tipo de
informagdes de profundidade e de superficie; as emissdes O simu lacr o é pois insensivel, solmfglt"l
nosso alcance2,” :
a qu_ahdade, e que El el
profundas passam pela superficie, e os envelopes superficiais é sensivel a imagem que leva
ór_la de muitos simu acáos
ao se desprenderem do objeto sdo convertidos por camadas da sucessão muito rápida, da somat
anteriormente enterradas. Por exemplo, os ruidos das pro- O que dize mos da rapid ez de formaçaofu : dºi-
idênticos. "
as emanagdes da prof
fundezas tormam-se vozes quando encontram em certas simulacros é ainda verdade para lacr os são 1:\“2’: 0
os simu
superficies perfuradas (boca) condições para sua articulagdo. dade, mas em menor medida: com relaç:
16. Lucréeio insiste tanto sobre um como sobre o outro desses nspecto que as emanações, como se houvesse
rápidos
1, 110-119; 10T, 41-73; 1, 978-1023; VI, 12-16. Sobre a capacidade infi-
nita de prazeres, cf. Epicuro, Pensamentos, 20. 20. 1V, 245-260.
1 7. I, 1023, 21 1V, 265.270.
18, Epicuro, Pensamentos, 7, 10, 34, 35. 22] IV, 794-798.
19. 1, 110-111.
ao tempo sensível diferenciais de diversas ordens . — Vemos segundo gênero de fantasmas é constituido por simulacros
então sobre que se baseia a originalidade do método epicu- particularmente sutis e delgados, provenientes de objetos
riano, onde se combinam os recursos da analogia e da diversos, aptos a se dissolver, condensar e dissipar, rápidos
gradação. É a teoria do tempo, e seu caráter “exaustivo”, e tênues demais para se oferccerem & vista, mas capazes
que asseguram a unidade dos dois aspectos do método. de fornecer ao animus visões que lhe são próprias: cen-
Pois há um mínimo de tempo sensível tanto quanto um tauros, cérberos e assombrações, ou ainda todas as imagens
mínimo de tempo pensável, e um tempo menor que O que correspondem ao desejo, ou ainda e sobretudo as
mínimo nos dois casos. Mas, simultaneamente, os tempos imagens de sonho. Não que o descjo seja aqui criador,
análogos ou as determinações análogas do tempo se organi- mas ele torna o espírito atento, e o faz selecionar entre
zam numa gradação, gradação que nos faz passar do todos os fantasmas sutis que nos banham aqueles que mais
p«ãn;avel ao sensível e vice-versa: 1º) tempo menor que o convém; e com maior razão o espírito, recolhido e sub-
mínimo de tempo pensável (incertum tempus efetuado pelo merso quando o corpo dorme, se abre a esses fantasmas??.
clinamen); 2º) mínimo de tempo contínuo pensável (rapi- Quanto ao terceiro gênero, os fantasmas eróticos, ele
dez do, átomo numa mesma direção); 3º) tempo menor também é constituído por simulacros emitidos por objetos
que o mínimo de tempo sensível (punctum temporis, ocupado muito diversos, aptos a se condensar (“a mulher que acre-
lã;lo simlulacra); 43) minimo de tempo continuo sensivel ditamos ter em nossos braços aparece subitamente transfor-
o 0 ofietoNA,
qual corresponde
po; a imagem
gem que assegura
as egui a percepção3 mada em homem”). E sem dúvida a imagem constituída
por esses simulacros está ligada ao objeto de amor real;
, Há uma terceira espécie, distinta tanto das emanações mas, diferentemente do que acontece com as outras necessi-
saídas da profundeza como das simulações desprendidas da dades, o objeto não pode ser absorvido nem possuído,
superfície das coisas. São os fantasmas, que gozam de somente a imagem inspira e ressuscita o desejo, miragem
grande independência com relação aos objetos e de uma que não assinala mais uma realidade consistente: “de um
extrema mobilidade, de extrema inconstância nas imagens rosto bonito ou de uma bela tez, nada se oferece ao gozo
que formam (uma vez que não são renovados por cons- do corpo, exceto simulacros ténues, miserável esperanga
tantes emissões do objeto). Parece pois que a imagem, levada pelo vento” 2.
aqui, tem o lugar do próprio objeto. Dessa nova espécie O tempo se manifesta com relagio ao movimento. E
« de simulacros há três variedades principais: teológica, por isso que falamos de um tempo do pensame nto com
o_nirica, erótica. Os fantasmas teoldgicos são feitos de relação ao movimento do 4tomo no vazio, e de um tempo
simulacros que se cruzam espontaneamente no céu, onde sensivel com relagio 2 imagem mével que percebemos, ou
d_esenham imensas imagens de nuvem, altas montanhas e que nos fazem perceber as qualidades dos compostos
figuras de gigantes 25, É que, de qualquer forma, os simu- atômicos. E falamos de um tempo ainda menor o minimo
lacros se encontram em toda parte; não cessamos de nos de tempo pensdvel, com relagdo ao clinamen como deter-
banhar neles, de sermos atingidos por eles como por fluxos minação do movimento do átomo; e de um tempo menor
de ondas. Entdo acontece que, muito longe dos objetos que o mínimo de tempo sensível, com relação aos simu-
d9s quais emanam, com os quais perderam toda relagio Jacros como componentes da imagem (para esses compo-
direta, eles formam essas grandes figuras autônomas. Sua nentes há até ordens diferenciais de rapidez, sendo as
independéncia os torna tanto mais cambiaveis; dir-se-ia que
emanações profundas menos rápidas que os simulacros de
eles'dfin'z;am, que falam, que modificam seu tom e gestos
superficie, e estes menos rápidos que a terceira espécie).
ao mfimtc_i. Tanto isso é verdade, como lembrara Hume,
Talvez o movimento em todos estes sentidos seja constitutivo
que na origem da crenga nos deuses não há a permanéncia, dos “acontecimentos” (eventa, aquilo que Epicuro chama
mas antes o capricho e a variabilidade das paixdes®. O por oposição aos atributos ou propriedades
sintomas)
23. sOs simulacros visuais têm dois priviiégios
privilégi com relação às emanações (conjuncta), de tal forma que o tempo deve ser dito o
profundas: justâmente porque, o desprendem da i 2ão modificam acontecimento dos acontecimentos, o “sintoma dos sintomas”
Sua ordem nem sua figura, é por isSo são representativos;, por puiro lado Pois os atributos são
eles vão mais zápido pois encontram menos obstáculos. Of. 1V, 67-71, 1299-209. que se depreende do movimento?.
aiz É analogia dessa gradagio aparece claramente quando Epicoro
iz dos simulacros, como dos átomos, que eles vão “tão rápido quanto 0
peasamento” (Carta a Heródoto, 48); é quando Lucrécio aplica à rapidez 27. IV, 722 e s, 962 e 5
EAy Ay as mesm:T expressões que para a rapidez dos átomos no 280 1V, 1094-1098.
Math, X, 219, A teoria do aconteci-
dos simulacros õ it
29, C£ Sextus Empiricus, ADV. Epicuro (Carta a Herddoto, 68-73)
142. mento tal como a encontramos no textoao demesmo tempo rica e obscura, muito
26. V, 1169 e s. A bem dizer, Lucrécio faz intervir dois el o na de Lucrécio (I, 440-482) é
comxistentes, s mobilidade do fantasma & 5 permanôncia da erdem celesto, breve. — Samente o vazio sendo incorporal, o acontecimento 2ão tem um
as propriedades que não podem ser abstraídas ou separad encaixados uns nos outros, com as passagens de limite que
as
do corpo: assim a forma, a dimensdo ou o peso do eles implicam? Tal é o sentido do Naturalismo. Então os
átomo;
ou ainda as qualidades de um composto que exprim
em a próprios fantasmas tornam-se objetos de prazer, inclusive no
disposição atômica sem a qual deixa de ser o que efeito que produzem e que aparece enfim tal como é: um
é (calor
do fogo, fluidez da dgua). Mas o acontecimento exprime efeito de rapidez e de leveza, que se vincula à interferéncia
antes aquilo que se dá e que se vai sem destruir
a natureza exterior de objetos muito diversos, como um condensado de
da coisa, portanto um grau de movimento compati
vel com sucessões ¢ de simultancidades. O falso infinito é o prin-
sua ordem: assim os movimentos dos Compostos
e de seus cipio da inquietacdo da alma. O objeto especulativo e o
simulacros, ou os movimentos e colisdes
de cada dtomo; objeto prético da filosofia como Naturalismo, a ciéncia e o
€ se O nascimento e a morte, a composigio
e decomposiçãt; prazer, coincidem sobre este ponto: trata-se sempre de
são acçnteçlmenms, é em função de
elementos de uma denunciar a ilusdo, o falso infinito, o infinito da religido
qrdem inferior 3 dos compostos, e cuja
existéncia é compa- e todos o mitos teoldgicos-eréticos-cniricos em que se
!'IVE'I com a variagio dos movimentos
numa passagem ao exprime. A quem pergunta: “para que serve a filosofia?”,
limite dos tempos correspondentes.
Podemos entdo responder a questdo do falso infinito é preciso responder: que outro jnteresse tem sendo o de
Os
. levantar a imagem de um homem livre, de denunciar todas
sugnªlacros não são percebidos em si, mas somente sua as forcas que tém necessidade do mito e da inquietação de
somatoria num minimo de tempo sensfvel (imagem). Nio alma para afirmar sua poténcia? A Natureza não se opõe
ob,st_ante, da mesma forma que o movimento
do 4tomo num ao costume, pois há costumes naturais. A Natureza não se
minimo de tempo continuo pensável prova a declinagio,
que se faz entretanto num tempo menor que esse opõe à convengio: que o direito dependa de convengdes
a imagem
minimo, não exclui a existéncia de um direito natural, isto é, de
prova a sucessio e a somatdria dos simulacros
que se fazem num tempo menor que o minimo uma função natural do direito que mede a ilegitimidade dos
de tempo
çonqnuo sensível.. E, da mesma forma que
desejos & perturbação de alma de que se fazem acompanhar.
n o cliname
inspira ao pensamento faisas concepções da liberdad A Natureza não se opde à invenção, não sendo as invengdes
simulacros inspiram à sensibilidade um falso e, os sendo descobertas da propria Natureza. Mas a Natureza se
sentimento da
vontad
e e do desejo. Em virtude de sua rapidez que os opde ao mito. Ao descrever a histéria da humanidade,
faz ser e agir abaixo do mínimo sensível, Lucrécio nos apresenta uma espécie de lei de compensagdo:
os simulacros
Droduzem a Miragem de um falso infinito
nas imagens que a infelicidade do homem não provém de seus costumes, de
Jormam, e fazem nascer a dupla ilusão de uma capacidade suas convengGes, de suas invengdes, nem de sua indústria,
infinita de prazeres e de uma possibilidade mas da parte de mito que ai se mistura e do falso infinito
infinita de tor-
mentos, essa mistura de avidez e de angústi que introduz em seus sentimentos como em suas obras. Às
a, de cupidez
¢ culpabilidade tão característica do homem religioso. origens da linguagem, & descoberta do fogo e dos primeiros
Particularmente na terceira espécie, a mais Tápida, É
a dos metais se juntam a realeza, a riqueza ¢ a propriedade,
fantasll nas, que se assiste ao desenvolvimento miticas em seu principio; às convenções do dircito e da
da ilusão e
dos mifos que a acompanham. Numa mistura de teologia, justica, a crenga nos deuses; ao uso do bronze e do ferro,
de erotismo e de onirismo, o desejo amoroso o desenvolvimento das guerras; as invenções da arte e da
não possui
senão simulacros que lhe fazem conhecer o amargo inddstria, o luxo e o frenesi. Os acontecimentos que fazem
r e o
tormento até mesmo em seu prazer que ele deseja a infelicidade da humanidade não sdo separdveis dos mitos
infinito;
€ nossa crença nos deuses repousa em simulac que os tornam possiveis. Distinguir no homem o que
fos que nos)
parecem dançar, modificar seus gestos, lançar provém do mito e o que provém da Natureza, ¢, na propria
vozes que
nos prometem penas eternas, em suma, representar
infinito.
o Natureza, distinguir o que é verdadeiramente infinito e o
que não o é: tal é o objeto pritico e especulativo do
Como impedir a ilusão senão pela distinção rigoros Naturalismo. O primeiro filésofo é naturalista: ele dis-
do verdadeiro infinito e a justa apreciação a
dos tempos corre sob a natureza, em lugar de discorrer sobre os deuses.
Tem o mérito de não introduzir na filosofia novos mitos
que retirariam à Natureza toda sua positividade. Os deuses
ativos são o mito da religido, como o destino o mito de
uma falsa filosofia, e o Ser, o Um, o Todo, o mito de uma
falsa filosofia toda impregnada de teologia.
Jamais se levou tão longe a empresa de “desmistificar”.
O mito é sempre a expressão do falso infinito e da inquie-
tação da alma. Uma das constantes mais profundas do
Naturalismo é denunciar tudo que é tristeza, tudo que é
causa de tristeza, tudo que tem necessidade da tristeza para
afirmar seu poder . De Lucrécio a Nietzsche, o mesmo
fim é buscado e atingido. O Naturalismo faz do pen-
samento uma afirmação, da sensibilidade uma afirmação.
Ele ataca os prestigios do negativo, ele destitui o negativo
de toda poténcia, ele nega 2o espirito do negativo o direito
de falar em filosofia. É o espirito do negativo que fazia do
sensivel uma aparéncia, é ainda ele que reunia o inte-
ligivel em um Um ou em um Todo. Mas esse Todo, esse
Um, não eram senão um nada do pensamento, como essa
aparéncia um nada da sensagio. O Naturalismo, segnndo
Lucrécio, é o pensamento de uma soma jnfinita onde todos
os elementos não se compõem ao mesmo tempo, mas, inver-
samente também, a sensação de compostos finitos que não
se somam como tais uns com os outros. Dessas duas
formas o múltiplo é afirmado. O miiltiplo enquanto mdlti-
plo é objeto de afirmação, como o diverso enguanto diverso
objeto de alegria. O infinito é a determinacdo inteligivel Il. Fantasmae
Literatura Moderna
absoluta (perfeição) de uma soma que ndo comple seus
clementos em um todo; mas o préprio finito é a determi-
nação sensivel absoluta (perfeição) de tudo aquilo que é
composto. A pura positividade do finito é o objeto dos
sentidos; a positividade do verdadeiro infinito, o objeto do
pensamento. Nenhuma oposição entre esses dois pontos de
vista, mas uma correlagdo. Lucrécio fixou por muito tempo
as implicagdes do Naturalismo: a positividade da Natureza,
o Naturalismo como filosofia da afirmação, o pluralismo
ligado à afirmação miltipla, o sensualismo ligado à alegria
do diverso, a critica pratica de todas as mistificações.

30. Não se pode evidentemente comsiderar a descrição trágica da peste


como o final do poema. Ela coincide excessivamente com 2 lenda da loucura
& do suicidio, que os cristios propagaram para mostrar o triste fim pessoal
de um Epicurisia. Por outro lado, pode ser que Lucrécio estivesse louco ao
fim de sua vida. Mas é igualmente vão invocar dados supostos da vida para
concluir do poema ou tratilo como um confunto de sintomas de onde se
concloiria do caso “pessoal” do autor (psicanilise de araque). Certamente
não é assim que se apresenta o problema das relações da psicanálise e da
arte — cf. 334 série.
Y NIVIDUVVDINI VU

os Corpos-Linguagem

A obra de Klossowski é construida sobre um admirável


paralelismo do corpo e da linguagem, ou antes, sobre uma
reflexdo de um no outro. O raciocínio é a operagdo da
linguagem, mas a pantomima é a operagdo do corpo. Por
motives ainda a determinar, Klossowski concebe o raciocinio
como sendo de esséncia teoldgica e tendo a forma do silo-
gismo disjuntivo. No outro pólo, a pantomima do corpo é
essencialmente perversa e tem a forma de uma articulagio
disjuntiva. Dispomos de um fio condutor para melhor
compreender este ponto de partida. Por exemplo, os biolo-
gistas nos ensinam que o desenvolvimento do corpo procede
em cascata: um membro é determinado como pata antes
de sê-lo como pata direita etc. Dir-se-ia que o corpo
animal hesita ou procede por dilemas. Da mesma forma,
o raciocinio vai por cascatas, hesita e bifurca em cada nivel.
O corpo é um silogismo disjuntivo; a lingnagem é um ovo
em vias de diferenciagio. O corpo oculta, encerra uma
linguagem escondida; a linguagem forma um corpo glorioso.
A mais abstrata das argumentagSes é uma mimica; mas a
pantomima dos corpos é um encadeamento de silogismos.
Não se sabe mais se é a pantomima que raciocina ou o
raciocinio que faz mimica.
De uma certa maneira, nossa época descobre a perver-
sdo. Ela não tem necessidade de descrever comporta-
mentos, de compor narrativas abomindveis. Sade precisava
disso, mas há um legado de Sade. Procuramos antes a
“estrutura”, isto é, a forma que pode ser preenchida por
estas descrições e narrativas (uma vez que ela as torna
possiveis), mas não tem necessidade de sé-lo para ser dita
perversa. O que chamamos de perverso é precisamente
esta potencialidade de hesitagdo objetiva no corpo, esta
pata que não é nem direita nem esquerda,
nação por
esta determi- escandem os raciocinios e as alternativas; inversamente, os
cascata, esta diferenciação que jamais
indiferenciado que nela se divide, esta suprime o silogismos e os dilemas se refletem nas posturas e á)as
suspensão que marca ambigiiidades do corpo2 O la;o' do raciocinio e de; es-
cada momento da diferença, esta imobilização que
marca crição sempre foi o problema lógico mais alto, sua forma
cada momento da queda.
A Pornografia
Gombrowicz pode intitular de mais nobre. É o que vemos ocorrer com os légicos, inca-
um romance Perverso que não comp pazes de pôr fim a este problema, ta}vgz por o cololacé;t;m
nenhuma narrativa obscena e que mostra orta
somente jovens em condições muito gerais. A_s condigdes duras, cort dss,
corpos suspensos que hesitam e que caem,
mento coag
em um movi- são aquelas em que a descrigo concerne à perversdo do
ulado. Em Klossowski, cuja técnica é outra corpos em patologia (a cascata o:_gfimf:a dlS]l!m.lV.a) e em
descrições ,
sexuais aparecem, com uma grande força, que o raciocinio concerne & eqmchnd'ade da lmglllãgeãx
para “preencher” a hesitação dos corpo mas
s e distribuí-la nas em teologia (0 silogismo espiritual disjuntivo). O pro! emi 2
partes do silogismo disjuntivo. A prese
nça de tais descri- da relagio raciocínio-descnção recÉbcga em Sade uma prª
¢Oes assu me então uma função lingiiistica: não se trata de meira solução, da maior importância teórica e (ecmcte,
falar dos corpos tais como são antes da linguagem
da linguagem, mas, ao contrário, ou fora filosófica e literdria. Klossowski abre vias completament º
de formar com as palavras novas porque coloca as condições de nossa cancepça:i
um “corpo glorioso” para os
puros espiritos. Nio há moderna tanto da perversão como da teologia ou and»
obsceno em si, diz Klossowski; isto é, o obsceno nio é a teologia. Tudo comega com este brasdo, esta reflexdo do
intrusão do corpo na linguagem, mas
sua comum reflexão da linguagem. .
© 0 ato de linguagem que fabrica um Corpo
o ato pelo qual a linguagem assim
para o espírito, cmpºoeparaleligsmog se apresenta, em p!illlelfo lugar, entre
se ultrapassa a si mesma, ver e falar. Já no romance de Des 'Forets, que colocava
refletindo um corpo. “Não há nada de mais verbal
Os exces do que em cena um tagarela-voyeur, ver des'lgxava uma ageraâã(;
sos da carme... AÀ descrição reiterada do ato
carnal não somente dá conta da transgress ou uma contemplação muito especial: pura visão do:
ão, ela própria é reflexos que multiplicam o que refletem e que corifcrem aic_'
uma transgressão da linguagem pela linguagem”!, voyeur uma participação mais intensa do que se e; expãe
De uma outra maneira, nossa época
descobre a teologia. mentasse estas paixões, cujo duplo ou cuja reflex ão 50
Não temos mais necessidade de acreditar
em Deus. Procu- os semblantes de outrem ele agora persegue. Assim _ta:ãx-
Tamos, antes, a “estrutura”, isto ¢,
a forma que pode ser bém em Klossowski, quando Octave Lgsta,\’u'a a le::]h e
preenchida pelas crencas, mas que ndo
tem necessidade, de hospitalidade de acordo com a qual “dá' sua‘fln_l " c::
modo algum, de sé-lo para ser chamada de teolégica.
A Roberte aos convidados. Trata-se, para ele, de multip!
teologia é agora a ciéncia das entid
ades não existentes, a a esséncia de Roberte, de criar tantos simulacros e teflextlrs
maneira segundo a qual estas entid
ades, divinas ou anti- dé Roberte quanto o número de personagens que com ed la
divinas, Cristo ou anticristo, animam
a linguagem e formam entrem em relação e de inspirar a Roberte uma çspâcclte ef
para ela este corpo glorioso que se divide em emulação de seus próprios duplos, graças aos q.umã avse
disjunções.
Realiza-se a predição de Nietzsche sobre -voyeur possui e conhece melhor a mulher, mzªª o q::.eciso
o lago entre Deus
e a gramdtica; mas desta vez o lago é reconhecido, queri a guardasse, simplificada, parasi mesmo. “Era p eckso
atuado, mimetizado,
do,
“hesitado”, desenvolvido
em todos os que Roberte tomasse gosto por si mesma, que tivesse Ci o
sentidos da disjunção, posta a servigo sidade de se reencontrar naquela que eu elaborava ct;e
do anticristo, Dionisio
crucificad o. Sc a perversão é a potencialidade seus préprios elementos e que pouco a pouco ela quâs:sh,
prépria ao
corpo, a equivocidade o é à teologia; por uma espécie de emulação com seu próprio pen;
elas se refletem uma
na outra; se uma é a pantomima ultrapassar até mesmo os aspectos que se esbogavam e
por
a oy(tra excelência,
€ o raciocinio por exceléncia, meu espírito: importava pois que ela fosse mustante:lqse e
De onde o caráter admirdvel da obra cercada por jovens a procura de facn}ldades, homens di pilo
a unid
de Klossowski:
ade da teologia e da pornografia, níveis”?. Assim é a posse visual: só se possui bem aql:r «
bem neste sentido
particular. O que é preciso chamar de Ppornologia super que já é possuido. Não somente possuido por um outro,
E é esta sua maneira de Superar a metaffsica ior.
: a argumen- i ilogismo disjuntivo toma-se
tação mímica e a pantomima silogistica, o
¢ a disju ngdo
dilema no corpo um Mbiodo geral do interpretação
do mito e dó recontímicao do comoral %0
no silogismo. As violentagdes mo 3. e
2E Révocation de FEdis de Nantes, ed. dede Minuit,
Minuit, 1954, p. 59.
1954 p. 59
de Roberte
ivro form: Roberte ce soir (ed. de Minuit, 1953) e ouffl
1: Un si funeste désir. Gallimard, 1968, pp. 126-127. CPauvert oa 10607 uma tilogia s i renditada sob o títilo de Loy
Lois de Chospitalité (Gallimard, 1965).
da vista,
pois o outro aqui não é mais do que um disfarcz e, no atividade capaz de corresponder com a pa_sslvxdada
corre spond endo com a paixão da vista, A
limite, não tem existéncia. Mas possuído por um morto, a única ação
possuído pelos espíritos. Não se possui bem a não ser é nossa conduta ativa com respeito aos reflçxos,
palavra
s'uscltz.x—los.
aquilo que é expropriado, posto fora de si, desdobrado, ecos e duplos, tanto para recolhé-los como para
refletido sob o olhar, multiplicado pelos espíritos possessivos. perversa, a palavra também oê Pois, eviden-
Se a vista é
Eis por que a Roberte do Souffleur é o objeto de um pro- temente, não se trata, como faria uma crianga, de falar ªºf,
blema importante: poderá haver “um mesmo morto para duplos e aos simulacros. Trata-se de falar d.eles,., Aguerp.
duas viúvas”? Possuir é, pois, dar a possuir e ver este aos espírit os. Quando “nomeamos” ou desig-
Aqui, ainda, a
dado, vê-lo multiplicar-se no dom. “Semelhante colocação namos” algo ou alguém, com a condição deA fazé-lo com
também o
em comum de um ser caro mas vivo não deixa de ter uma precisio e sobretudo com o estilo necessdrios,
ou _antes fazemo s surgir
certa analogia com o olhar consagrado de um artista” 4 “denunciamos”: apagamos o nome
(relembraríamos um estranho tema do roubo e do dom na de do denom inado , desdo bramos,
sob o nome a multiplicida
peça de Joyce Os exilados). coisa, damos muitas coisas a ver sob_ a mesma
refletimos a
Se a função da vista consiste em dobrar, desdobrar, a, assim como ver dá, em um olhar, muitas cfnsas
palavr
a
multiplicar, a do ouvido consiste em ressoar, fazer ressoar. a falar. Nio falamos nunca alguém, falan:los de alguerp
isso
Toda a obra de Klossowski tende para um objetivo único: uma poténcia apta a refleti-lo e 2 qupllcé-lo; por
assegurar a perda da identidade pessoal, dissolver o eu, é o não o nomea mos sem denunc iá-lo a um espirit o
mesmo
esplêndido troféu que os personagens de Klossowski trazem cstranho espelho. Octave diz, no se‘:l CSp|il’,ldld0
como
Eu não falei a Roberte, não a ‘“nomeei” um
de uma longa viagem nos confins da loucura. Mas, justa- orgulho:
mente, a dissolução do eu deixa de ser uma determinação ao contrário, nomeei Roberte ao espirito e assim
espirito;
patológica para se tornar a mais alta poténcia, rica em a “denunciei”, para que o espírito revele o que esconde,
Ora
promessas positivas e salutares. E o eu só é “dissoluto” para que libere, enfim, o que reúne sob seu nome*.
Mas
porque primeiro foi dissolvido: não somente o eu que é a vista induz a palavra e ora a palavra conduz' a vista.
olhado, que perde sua identidade sob o olhar, mas aquele há a multip licaçã o e a reflex ão daqulf o que é vlsto.
sempre
que olha e que se põe assim fora de si, que se multiplica e o que é falado e também daquele que vê e que fala:
em seu olhar. Octave enuncia seu projeto perverso acerca que fala participa da grande dissolução dos eu, e
aquele
de Roberte: “Levá-la a prever quando seria vista..., mesmo comanda-a ou provoca-a. Michel Foucault escreveu
ava o jogo
incitá-la a destacar seus gestos deste sentimento de si sem sobre Klossowski um belo artigo, em que an_alis
nunca se perder de vista. . ., fazé-la atribuí-los a seu reflexo da vistç e da lmg'ug gem;. ele
dos duplos e dos simulacros,
até ao ponto dela se mimetizar de alguma forma a si as catego rias klosso wskian as da visdo: simu-
ai designava
cate-
mesma...” S Mas ele também sabe muito bem que à Jacro, similitude, simulagdo 7. Correspondem a clas as
forga de olhar ele acaba por perder a prépria identidade, evocag io, provoca g:ic_, revoga ção.
gorias de linguagem:
e,
coloca-se fora de si, multiplica-se no olhar tanto quanto o Assim como a vista duplica o que vê e multiplica o vident
outro sob o olhar — e que é este o conteúdo mais profundo a lingua gem denunc ia o que diz e muitip lica o falante
da idéia do Mal. Aparece então a relagdo essencial, a a muitiplicidade das vozes superpostas no
(por exemplo,
cumplicidade da vista com a palavra. Pois que conduta Souffleur). ,
manter, diante destes duplos, simulacros ou reflexos, a não Que os corpos falam, já o sabemos há bastante tempo.
ser falar? Aquilo que só pode ser visto ou o que só Klossowski designa um ponto que é quase o centro
Mas
pode ser ouvido, o que não é nunca confirmado ppr um em que a linguagem se forma. Latinista, ele evoca Quinti-
er o
outro órgão, o que é o Objeto de um esquecimento na liano: o corpo é capaz de gestos que dão a entend
meméria, de um Inimaginivel na imaginagdo, de um Impen- que indica m. Tais gestos são o çquxvz; —
contrário daquilo
sável no pensamento, — que fazer de tudo isso a ndo ser daquil o que chama mos, na lingua gem, soleci smos*.
lente
falar a respeito? A prépria linguagem é o duplo último Por exemplo, um braço repele o agressor enquanto o ouiro
que cxprime todos os duplos, o mais alto simulacro. espera e parece acolhê-lo. Ou então uma mesma mão
Freud elaborava casais ativo-passivo, no modo do repele, mas não pode fazê-lo sem oferecer sua palma. E
uns retos, outros dobrados. Octave tem
voyeurismo e do exibicionismo. Este esquema não pode o jogo dos dedos,
it fecue it
satisfazer Klossowski, segundo o qual a palavra é a única
OL Ll MR AT
).
9 e
i VP icia”

4. La Révocation, p. 48. margo de 1964.


&. La Révocation, p. 58. 8. La Récocation, pp. 11-12.
Pois uma coleção de
eToênerre, Próximo 20 lada, que reflete todos os dilemas e todos os silogismos de
mesmo tempo a Ingres,
ouxbet,(que sabe que a Chasserian que Roberte, durante sua violentação, foi atacada pelos
pintura está no solecismo
dos “espíritos”. Mas se o corpo é flexão, a linguagem também
descrições imaginárias são oé. Eé preciso uma reflexão das palavras, uma reflexão
como brilhantes estereotipia
s que nas palavras para que apareca enfim liberada de tudo o que
Teais, a recobre, de tudo o que lhe esconde o cariter flexional
da lingua. Na sua admirével tradugio da Eneida, Klos-
determ
r inar a mão como o sowski ilumina este ponto: a busca estilistica deve fazer
órgã o
órgã dos solecismos.
ã;]eãs;ªendt:, qual“é a positividade jorrar a imagem a partir de uma reflexdo refletida em duas
da mão,
de seu gl\::ti
seu “gesto em suspenso”? palavras, oposta a si, refletida sobre si nas palavras. Tal
enc
2 arnaçãoo de uma 'Í'al é ¢ a poténcia positiva de um “solecismo” superior, forga
: potência
ICla
lgngufgegz._woddflema, a disj que é também ém Fnte
interios
rior à3 da poesia constituida no choque e na copulagio das palavras.
unção, o silogismo dísjum.i
escrgvel? I“Se cíl quâgro voª. Se a linguagem imita os corpos, não o faz pela onomatopéia,
Tepresentando Lucrécia, Oct
3 ela cede, ave mas pela flexdo. E se os corpos imitam a linguagem, não
evidentemente
traj: se nã
Passará 4 por ter traíZdo, vist
s.
o que, morta porjá seu n ãgr:s:fy o é pelos órgãos, mas pelas flexdes. Assim, há toda uma
f" À pantomima interior à linguagem, como há um discurso, uma
narrativa interior ao corpo. Se os gestos falam é primeiro
porque as palavras mimetizam os gestos: “O poema épico
de Virgilio é, com efeito, um teatro em que são as palavras
que mimetizam os gestos e o estado de alma dos persona-
gens... Sdo as palavras que tomam uma atitude, ndo os
âo refleâir—se em seu projeto corpos; que se tecem, ndo os vestimentos; que cintilam,
de morte, ela se lança
lraç;s e Tarquinio e, como nos não as armaduras...”® E haveria muito a dizer sobre a
evada
o insinua Santo Agostinho,
talvez Por sua prépria sintaxe de Klossowski, feita ela prépria de cascatas e de
cobiga, pune-se em seguida, suspensGes, de flexdes refletidas. Na flexão há esta dupla
“transgressdo” de que fala Klossowski: da linguagem pela
ã:;lgul;e, dâfia eu,
à Sua própria cobiça que carne e da carne pela linguagem!’. Ele soube tirar dai
a 'se dc;c:fl; ;e seu prc;puc]v5 pud se cinde em um estilo, uma mimética, a0 mesmo tempo uma lingua e
: or deixa de lado o pudor um corpo particulares.
carnal” ? Eis que, , em sua identidad, le, o
;lfl;::r em cascata e o gest Qual o papel destas cenas em suspensdo? Trata-se
o em SUSpenso represent
minação do corpo como o mov am tx.:ato menos de captar nelas uma perseveragdo, uma continuagio,
imento da linguagem.
Mas que o element o comum sejaó ão indi 5 do que apreendé-las em si mesmas como o objeto de uma
ouira coisa. da a reflexdo indica-nos ainda repetigio fundamental: “A vida reiterando-se para se reto-
mar em sua queda, como retendo seu sopro numa apreensdo
NaNa 1reflexão, a flexão
ã cor poral se acha com instantanea de sua origem; mas a reiteração da vida por
cindida, oposta a si, refl o d si mesma ficaria desesperada sem o simulacro do artista
etida sobre si; ela aparee
sc%º%rnaª que, reproduzindo este espetéculo, chega ele mesmo a livras-
-se da reiteragdo” 2. Estranho tema de uma repeti¢io que
salva e que salva em primeiro lugar da prépria repetição.
É verdade que a Psicanilise nos ensinou que nossa doenga
era a repeti¢do, mas também que nos curdvamos pela repe-
ticio. Le Souffleur é precisamente a narrativa de uma
salvagio, de uma “cura”. Esta cura, contudo, deve-se
menos acs cuidados do inquictante doutor Ygdrasil do que
aos exercicios de teatro, a repetição (ensaio) teatral. Mas
o que deve ser o ensaio no teatro para ser salvador? A
9. La Révocation, pp. 28-29. 10. Introduglo à tradução da Encida.
1: Un si funeste désir, p. 126.
12. Lo Révocation, 3. 15.
Roberte do Soufileur atua em Roberte ce soir; e ela se
desdobra em duas Roberte. querer que ela o seja” !4. Théodore fica surdo, ele sab_e qàm
Ora, se ela repete com dema-
siada exatidão, se atua a verdadeira repetição está no dom, em uma economia do
com exce
sso de naturalidade, a
repetição não alcança seu obje dom que se opõe à economia mercantil da) troca (...
tivo e o mesmo se dá se ela
atua mal e reproduz com imperici homenagem a Georges Bataille). Que o hdspede e síx'a
a, Novo dilema insolúvel?
Ou não será preciso, talvez, reflexdo, nos dois sentidos da palavra, se oponham ao palé-
imaginar duas espécies de
repetição: um falso e um verd cio. E que, no héspede e no dom, a repetição surja como a
adei
salutar, um aprisionador e outr ro, um desesperado e um mais alta poténcia do que não pode ser objeto de —"ººã;,
o libertador, um que teria a
exatidão como critério contradi “a esposa, prostituida pelo esposo, nem por 115550 deixa
tório ¢ o outro dependendo
de outros critérios? ser a esposa, bem não cambidvel do esposo” 15 "
Um tema percorre toda a obra
Como Théodore se cura — já que estava doente e já
oposição da troca e da verdadei de Klossowski: a
ra repetição. Pois a troca que se trata de sua cura — ao término de uma viagem
implica somente a semelhança, até à beira da loucura? Precisamente, ele esteve doente
ainda que extrema. É ela
que tem por critério a exatidão enquanto o risco de uma troca veio comprometer e corroer
, com a equivalência dos
produtos trocados; é ela que form sua tentativa de uma repetição pura. Roberte e a mulher
a a falsa repetição, aquela
de que todos nós adoecemos. A verdadeira repetição, ao de K não se trocavam a tal ponto que nunca se soube quem
contrário, aparece como uma cond efa uma e quem era a outra, até mesmo na luta em que
uta singular que mante-
mos com relação ao que não pode ser elas cruzavam suas mãos? E o próprio K não se uqcaªa
tituído: trocado, nem subs-
assim, o poema que repetimo com Théodore, para lhe tomar tudo e desviar as llexs 2-1
estamos s, impedidos que
de mudar-lhe uma só palavra. hospitalidade? Quando Théodore (_ot_l K :?) se cura é pz]rª
de uma Não se trata mais
equivalência entre coisas semelhantes, que ele compreende que a repetição não estd em u_1
nem mesmo não se trata
de uma identidade do Mesmo. AÀ verdadeira
extrema semelhança, que ela não está na exatidão daqm_ o
repetição se dirige a algo de singular, que é trocado, que ndo está nem mesmo em uma regrodjlçgo
que
não pode ser
trocado e a algo de diferente, do idéntico. Nem identidade do Mesmo nem equivaléncia
sem “identidade”. Ao invés
de trocar o semelhante e de do semelhante, a repetição estd na intensidade do Diferente.
identificar o Mesmo, ela aute
tifica o diferente.Eis como a opos n- Não há duas mulheres que se parecem e que se fazem
ição se desenvolve em
Klossowski: Théodore herói do Souffleur, passar por Roberte; não ha tampouco dolsA seres em
da hospital retoma as “leis
idade” de Octave, que consiste
m em multiplicar Roberte, na mesma mulher. Mas Roberte d5§1gna em_fsl
Roberte, dando-a a convidad mesma uma “intensidade”, t_vomprfaen_de em si uma dife-
os, a héspedes. Ora, nesta
retomada, Théodore se choc Tença, uma desigualdade, cujo próprio é retornar ou ser
a com uma estranha concor-
Tência; o palicio de Longchamp repetida. Em suma, o duplo, o reflexo, o s!nlulaczo, ahr_e;
é uma instituição de Estado,
em que cada esposa deve ser “dec -se enfim para entregar seu segr_edo: a repetigio ndo supõe
larada”, segundo Tegras
fisca
is e normas de equivaléncia, contribu o Mesmo ou o Semelhante, não 'iaz “deles p—fehmmãres” :
em comum das mulheres e dos
ir para a colocagdo
homens13, Mas, justa- ela, ao contrério, que produz o único “mesmo daquilo q\:
mente, na instituição de Longch difere e a única semelhanga do diferente. K couvalescende
amp, Théodore vê a0 mesmo
tempo a cari
catura ¢ o contrério das leis de hosp (ou Théodore?) é o eco do Zaratustra convalescente de
De nada adianta o doutor Yedrasil italidade.
dizer a ele: “O senhor Nietzsche. Todas as “desigmgées’.’ se desmoronam e sdo
se mantém firme no propésito de dar, sem “denunciadas”, para dar lugar ao sistema pleno das intensi-
nenhuma retri-
buigdo, sem nada receber de volta. dades. Ji o casal Octave-Roberte remete a uma puãa
Mas o senhor não
pode viver sem se submeter à lei univ diferença de intensidade no pensamento; os mnomes :
ersal datroca... A
prética da hospitalidade, tal como o Octave e de Roberte deixaram de designar clcónsas par:
senhor a concebe, não
poderia ser unilateral. Como toda exprimir intensidades puras, elevações e quedas’s. s
hospitalidade, esta tam-
bém, e esta em particular, exige a reci Tal é a relagdo entre as cenas congeladas ea repetição.
bara
procidade absoluta
ser vidvel e é este o passo que Uma “queda”, uma “diferença”, uma “susgensao reflelem;
o senhor ndo quer
dar: a colocação em comum das mulheres -se na reprise, na repetigio. Neste sentido, o corpo s
€ dos homens
pelos homens
pelas mulheres. É preciso agora ir até o
fim, consentir em trocar Roberte com outras mulheres, 14. Le Souffleur, pp. 211, 212, 216.
aceitar ser infiel a Roberte Souffleur, p. 214. . .
como o senhor se obstina a 18 & Tt 2, Thospitalité: “Um nome, Roberte,
foi uma
1. Le Souffleur, p. 51 o 5, p 71 e s designação já específica de intensidade primeira”; assim, o casal e ambém
Gpidenne e a luva não designam colias, mas' exprimem fntensidades (pp.
334-336)
reflete na linguagem: o Próprio 2 lingu
agem é retomar em ada, alienada, a palavra torna-se o discurso de
si a cena fixa e fazer dela um acont
ecimento do espírito, :f:::’ Igeell:galm’a, que fala das leis e das virtudes e que
ou antes, um acontecimento dos “espír
itos”. É na lingua- silencia sobre o corpo. É claro, neste caso, q}lf a pmpbr;a
gem, no seio da linguagem, que o espíri
to apreende o corpo, palavra é por assim dizer pura, mas que o siléncio sol :
os gestos do corpo, como o objeto de
uma repetição funda- o qual repousa é impuro. Calando-se, a0 mesmo tcdmp
mental. É a diferença que dá a ver e que multiplica
corpos; mas é a repetição que dá a falar e os encobrindo ¢ delegando sua palavra, o corpo nos aban og:
que autentifica às imaginações silenciosas. Roberte, na grangle oeéua
o múltiplo, que dele faz acontecimento
espiritual. Klos- violentação pelo Colosso e pelo Corcunda (isto é, p«â
sowski diz: “Em Sade, a linguagem não chega
esgotar, intolerdvel a si mesma, após a se espíritos que marcam neles mesmos uma“dx.ferença. de níve
ter se encarnicado como última realidade), ouve-se dizer: “Que fareis de nós
dias inteiros sobre a mesma vitima...
Não pode haver e que vamos fazer de vossa carne? Poupá-la-emos porque
transgressdo no ato carnal se não é vivido
como um aconte- é ainda capaz de falar ou então vamos tratá-la como ssg
cimento espiritual; mas para apreender
seu objeto, é preciso devesse guardar siléncio para sempre?. . . Cm:lo (vos“e
Pprocurar e repro duzir o acontecimento numa descrição
rada do
reite- corpo) seria tão delicioso senão em erEudE da p: avra q
ato carpal” 17, Finalmente, o que é um
grafo? É o repetidor, é o iterador.
Pornó- oculta?” 1? E Octave a Roberte: “Não tendes senaobm:;
to sejaE que o litera corpo para encobrir vossa palavra” 2º. Com efeito, Rol Íl[es
essencialmente iterador deve nos ilustr
ar sobre a relação da é presidente da comissão de censura; e_la fala qas virtus :
linguagem com o corpo, sobre o
limite e a transegressão e das leis; ela não deixa de ter austeridade, não 'matouªs
mútuo s que cada qual encontra no outro.
No romance de “bela alma” que está nela.... Suas palavras saqlpucrio
Gombrowicz, La Pornographie, lembramo-nos
Cenas supremas são também congeladas: de que as mas seu silêncio, impuro. Pois, graças a este si ensuá
que o herói papéis ela imita os espiritos; ela os provoca, pois provoca S
{ou os heróis?) voyeur-felador-literato,
homem de teatro, agressão, eles agem sobre seu corpo ”em seu corpo, tso
impSe a dois jovens; cenas que só
assumem sua perversi- forma de “pensamentos indes.ejé\"exs , a0 mesmo ?mp:
dade pela indiferenca dos jovens um
a0 outro; mas cenas colossais e andes. Tal é o primeiro termo do d].}C-EIB. au
que culminam com um movimento de
queda, uma diferenca Roberte se cala, mas provoca a agressão Élºª espíritos, se
de nivel, retomada em uma repeticio
da linguagem e da silêncio é tão menos puro quanto mais o é sua pala;ra.n.ª,
. visdo; cenas de possessdo, falando
propriamente, pois que Ou então, é preciso uma linguagem impura, o sce“m,
os jovens são possuidos em espírito,
destinados e denun- ímpia, para que o silêncio tse]:íl Pucriz; e ‘?Fallll;ig“:g;'ens; :aw
ciados pelo voyeurtfalador. “Não, não, decididamente, i repousa mneste siléncio. a
toda a cena não teria apresentado
um Caráter tão escan- m:g,emdiz?e‘:; osp espiritos a Roberte 21, Klossowski p;;
daloso, se não fosse tão incompatível
com seu Titmo natural, tenderá dizer apemas que falar evita pensamentos so ¢
tão congelada, imóvel, estranha. . .
Suas mãos, acima de coisas vis? Não: da mesma forma como a llyguagem P‘!io
suas cabeças, tocaram-se involuntariamen
te, E, no mesmo que faz um silêncio impuro é uma provocação go_esplno
instante, foram reconduzidas para
baixo, com violéncia. pelo corpo, a linguagem impura que faz o sxlen;;o pnros
Durante algum tempo ambos contemplaram com atenção é uma revogação do corpo pelo espírito. Como zen]tªm
as suas mãos entrelagadas. E bruscamente cafram; não se
sabia bem qual dos dois havia feito heróis de Sade, não são os corpos presentes que exci o
o outro cair, a ponto o libertino, mas a grande idéia do que não estd prese% t”
de se acreditar que suas mãos os derrubaram
que dois autores tão novos, tão importante 8. É bom e em Sade, “a pornografia é uma forma de luta do zspn o
s, tão diferentes contra a carne”. Mais precisamente, o que é que r;;d A
também, encontrem-se no que tange
20 tema do corpo- gado no corpo? Klossowski responde que € a mtegnh de
-linguagem ¢ da pornografia-repeticio, do porndgrafo-repe
- do corpo; e que, por isso, a ldenudªdç da pessoa acl la H
tidor, do literato-iterador.
como suspensa, volatilizada. Sem dúvida, esta resposí;az é
Qual é o dilema? Em que consiste o silogismo disjun- bastante complexa. Ela basta,.wntudo, para %oí .
tivo que o exprime? O corpo é linguagem. Mas ele pode pressentir que o dilema corpo-linguagem se estabelece N
oculta r a palavra que §, pode encobrila. O corpo pode fato entre duas relações do corpo : da lmguage'm.c e
desejar e deseja geralmente o siléncio a respeito de suas “linguagem pura — silêncio impuro” designa uma
obras. Então, recalcada pelo corpo, mas também proje- 19. Roberte, pp. 73 e 85.
17. Un si funeste 20, Roberte, p. 133. . . .
18. Gomenrowicz, W.désir,La pp.Pormo126.1 27.
graphic. Tulliard ed., ppe 147 e 157. 21. Roberts, ;: 85. E sobre esse movimento do puro e do impuro, of.
Un si funeste désir, pp. 123-125.
relação, em que a linguagem reúne a identidade de uma realização das vias de Deus é a “vida da carne”?*. “Tanto
pessoa e a integridade de um corpo em um eu responsável, que Deus é essencialmente o Traidor: ele é traidor dos
mas faz silêncio sobre todas as forças que dissolvem este espiritos, traidor dos sopros e, para prevenir sua resposta,
eu. Ou então a própria linguagem torna-se uma destas reduplica sua traição encarnando-se ele proprio”». “No
forças, encarrega-se com todas estas forças e faz aceder o comego era a traicdo”.
corpo desintegrado, o eu dissolvido, a um silêncio que é A ordem de Deus compreende todos estes elementos:
o da inocência: eis o outro termo do dilema, “linguagem a identidade de Deus como último fundamento, a identidade
impura — silêncio puro”. Se preferem, a alternativa está do mundo como meio ambiente, a identidade da pessoa
entre duas purezas, a falsa e a verdadeira, a da responsa- como instdncia bem fundada, a identidade do corpo como
bilidade e a da inocência, a da Memória e a do Esqueci- base, enfim 2 identidade da linguagem como poténcia para
mento. Colocando o problema no plano lingúístico, Le designar todo o resto. Mas esta ordem de Deus se construia
Baphomet diz: ou nos lembramos das palavras, mas seu contra uma outra ordem: outra ordem que subsiste nela e
sentido permanece obscuro; ou então o sentido aparece, que a corréi. Aqui comega o Baphomet: A servigo de
quando desaparece a memória das palavras. Deus, o grio-mestre dos Templdrios tem por missdo fazer
Mais profundamente, a natureza do dilema é teológica. a triagem dos sopros, impedi-los de misturar-se, esperando
Octave é professor de Teologia. Todo o Le Baphomet é o dia da ressurreigio. É, pois, porque já existe entre as
um romance de Teologia, que opõe o sistema de Deus e o almas mortas alguma intengdo rebelde, uma intencdo de se
sistema do Anticristo como os dois termos de uma disjunção subtrair 2o juizo de Deus: “As mais antigas espreitam as
fundamental?º. A ordem da criação divina, com efeito, mais recentes e, misturando-se por afinidades, elas se enten-
prende-se aos corpos, está suspensa aos corpos. Na ordem dem para apagar umas nas outras sua responsabilidade
de Deus, na ordem da existência, os corpos dão aos espí- prépria” 2. Um dia o grio-mestre reconhece um sopro
ritos ou antes lhes impõem duas propriedades: a identidade que se insinua em suas préprias volutas: é Teresa, a santa,
e a imortalidade, a personalidade e a ressurrectibilidade, a é Santa Teresa! Deslumbrado pela prestigiosa convidada, o
incomunicabilidade e a integridade. Como dizia Antoine, grio-mestre se queixa a ela da “complicagio” de sua tarefa
sobrinho dócil à teologia tentadora de Octave: “O queéa e da má vontade dos espiritos. Mas, longe de se compa-
incomunicabilidade? — É o princípio segundo o qual o ser decer, Teresa profere um discurso inaudito: que o número
de um indivíduo não poderia ser atribuído a vários indi- dos eleitos é fechado, que mais ninguém é condendvel, nem
víduos e que constitui propriamente a pessoa como idêntica santificivel; que os espiritos ficaram como libertos da
a si mesma. — Qual é a função privativa da pessoa? — ordem de Deus, que se sentem dispensados de ressuscitar e
A de tornar nossa substância inapta a ser assumida por que se aprestam em penetrar, seis ou sete, em um só corpo,
uma natureza seja inferior, seja superior 2 nossa” B. É no embrião, para se descarregar de sua pessoa e de sua
enquanto ligado a um corpo, encarnado, que o espírito responsabilidade. Teresa em pessoa é rebelde, profeta da
adquire a personalidade: separado do corpo, na morte, ele rebelião: ela anuncia a morte de Deus, a reversdo de Deus.
reencontra sua potência equívoca e múltipla. E é enquanto “Eu me excluí do ndmero dos eleitos.” Para um jovem
reunido a seu corpo, que o espírito adquire a imortalidade, tedlogo que amava, cla soube obter uma nova existéncia
sendo a ressurreição dos corpos a condição da sobrevivência em um outro corpo, depois uma terceira... Nio era já
do espírito: liberado de seu corpo, declinando seu corpo, a prova de que Deus renunciava & sua ordem, que renun-
revogando seu corpo, o espírito cessaria de existir, mas ciava aos mitos da pessoa incomunicdvel e da ressurreigdo
“subsistiria” em sua inquietante poténcia. A morte e a definitiva, ao tema do “uma vez por todas” implicado
duplicidade, a morte e a multiplicidade são pois as verda- nestes mitos? Em verdade, uma ordem da perversidade fez
deiras determinações espirituais, os verdadeiros aconteci- explodir a ordem divina da integridade: perversidade no
mentos do espírito. Compreendemos que Deus seja o baixo-mundo, onde reina uma natureza tumultuosa exube-
inimigo dos espíritos, que a ordem de Deus vá contra a rante, plena de violentagdes, de estupros, e de travestimentos,
ordem dos espíritos: para instaurar a imortalidade e a per- pois que várias almas entram no mesmo corpo € que uma
sonalidade, para impô-las à força aos espíritos, Deus deve mesma alma possui vdrios corpos; perversidade no alto, pois
apostar nos corpos. Ele submete os espíritos à função que os proprios sopros se misturam. Deus não pode mais
privativa da pessoa, à função privativa da ressurreição. A
24. Roborte, p. 73.
25. Roberte, p. 8L
“OLIOTECA “SeroninL g e Exl 26 Lo Bophomet, p. 54.
garantir nenhuma identidade! É a grande “pornografia”, a Justamente, é a propósito de uma tese de Kant sobre
desforra dos espíritos, a0 mesmo tempo sobre Deus e sobre a teologia, tese insólita e particularmente irônica, que o pro-
08 corpos. E Teresa anuncia ao grão-mestre seu destino: ele blema do silogismo disjuntivo adquire todo o seu alcance:
próprio não mais saberá fazer a triagem dos sopros! Então, Deus é apresentado como o princípio e o senhor do silogismo
tomado por uma espécie de raiva e de ciúme, mas também disjuntivo. Para compreender semelhante tese é preciso
por uma louca tentação e ainda por um duplo desejo de lembrar-se do laço que Kant coloca, em geral, entre as Idéias
castigar e pôr a prova Teresa e, enfim, pela vertigem dos e o silogismo. A razão não se define primeiro por noções
dilemas que perturbam suas volutas (pois sua consciéncia especiais que chamaríamos de Ydéias. Ela se define antes
sucumbira em meio a “‘desconcertantes silogismos™), o grão- por uma certa maneira de tratar os conceitos do entendimen-
-mestre jnsufla o sopro de Teresa no corpo ambiguo de um to: um conceito sendo dado, a razão procura um outro que,
jovem; jovem pajem que, outrora, havia dado trabalho aos tomado na totalidade de sua extensão, condiciona a atribuição
'.l"e'n_xplérios e que havia sido enforcado durante uma cena de do primeiro ao objeto ao qual se relaciona. Tal é a na-
iniciagdo. Seu corpo, em levitação e em rotagdo, marcado tureza do silogismo: mortal atribuindo-se a Sócrates, procu-
pelo enforcamento, miraculosamente conservado, reservado ramos o conceito que, tomado em toda sua extensão, con-
para uma fungdo que vai subverter a ordem de Deus, recebe, diciona esta atribuição (todos os homens). Assim, o
pois, o sopro de Teresa. Insuflagdo anal, & qual responde procedimento da razão não colocaria problema particular
no corpo do pajem uma forte reação genital. se não se chocasse, contudo, com uma dificuldade: é queo
Eis pois o outro termo do dilema, o sistema dos sopros, entendimento dispõe de conceitos originais chamados ca-
a ordem do Anticristo que se opde ponto a ponto & ordem tegorias. Ora, as categorias se atribuem já a todos oOS
divina. Ele é caracterizado por: a morte de Deus; a des- objetos da experiência possível. Quando a razão encontra
truigdo do mundo; a dissolução da pessoa; a desintegragdo uma categoria, como vai poder encontrar um outro conceito
dos corpos; a mudanca de função da linguagem que ndo capaz, em toda sua extensão, de condicionar a atribuição da
exprime mais do que intensidades. Afirma-se com freqiién- categoria a todos os objetos de experiência possível? Aí,
cia que a filosofia na sua histéria mudou de centro de pers- a razão é agora forçada a inverter noções supracondicio-
pectiva, substituindo o ponto de vista do eu finito ao da nantes, que chamaremos de Idéias. É pois em segundo
substdncia divina infinita. A virada seria com Kant. Esta lugar que a razão se define como faculdade das Jdéias.
mudanga, todavia, é assim tdo importante como se diz? É Chamaremos de Idéia uma nogdo tomada em toda sua
mesmo esta a grande diferenga? Enquanto guardamos a extensio, que condiciona a atribuigdo de uma categoria de
identidade formal do eu, não fica ele submetido a uma relação (substancia, causalidade, comunidade) a todos os
L.:rdem divina, a um Deus único que o funda? Klossowski objetos da experiéncia possivel. O génio de Kant estd em
insiste sobre o seguinte: que Deus é a única garantia da mostrar que o eu é a Idéia que corresponde à categoria de
identidade do eu e de sua base substancial, a integridade do substincia; com efeito, o eu condiciona não somente a
corpo. Não conservamos o eu sem ter que guardar também atribuigiio desta categoria aos fendmenos do sentido interno,
Deus. A morte de Deus significa essencialmente, provoca mas aos do sentido externo, em virtude de sua imediatez não
essencialmente a dissolugdo do eu: o timulo de Deus é menos grande. ‘Assim, o eu é descoberto como principio
também o timulo do eu?’. E o dilema encontra talvez sua universal do silogismo categérico, na médida em que este
expressio mais aguda: a identidade do eu remete sempre à relaciona um fendmeno determinado como predicado a um
identidade de alguma coisa fora de nós; ora, “se é Deus, sujeito determinado como substância. Kant mostra tam-
nossa identidade é pura graga, se é o mundo ambiente em bém que mundo é a Xdéia que condiciona a atribuigdo da
que tudo comega e acaba pela designacio, nossa identidade categoria de causalidade a todos os fendmenos: o que faz
é apenas puro gracejo gramatical” %, O próprio Kant de “mundo” o principio universal do silogismo hipotético.
pressentira & sua maneira, quando condenou a psicologia Esta extraordinaria teoria do silogismo, que comsiste em
racional, a cosmologia racional e a teologia racional, a uma descobrir suas implicagSes ontolégicas, vai pois se encontrar
morte comum, pelo menos especulativa. diante de uma terceira e Gltima tarefa, a mais delicada:
não temos escolha, não resta mais para Deus como terceira
27. Un si funeste désir, pp. 220-221: “Quando Nietzsche anuacia Idéia a ndo ser assegurar a atribuigio da categoria de
Deus está morto, isto é o mesmo que dizer que Nietzsche deve mecessaria- comunidade, isto é, o dominio sobre o silogismo disjuntivo.
mente perder sua identidade... À garantia absoluta da identidade do eu
Tesponsável desaperece mo horizonte da consciência de Nietzsche, o qual, Deus é destituido aqui, pelo menos provisoriamente, de suas
por sua vez, confunde-se com este desaparecimento”, mundo,
28. Lés Lois do Uhospitalité, Posfácio, p. 337. pretenses tradicionais, de criar sujeitos e fazer um
para não ter mais do que uma tarefa aparentemente humil- corpo glorioso formado pela linguagem e, finalmente, entre
de, operar disjunções ou pelo menos fundá-las, a ordem de Deus e a ordem do Anticristo. Mas, precisa-
Como é isso possivel? É aí que a ironia abre passa- mente, é na ordem de Deus e somente nesta ordem, que as
gem: Kant vai mostrar que, sob o nome do Deus cristão disjungdes têm valor negativo de exclusdo. E é do outro
filosófico, nunca se entendeu outra coisa. Com efeito, de- lado, na ordem do Anticristo, que a disjunção (a diferenga,
finimos Deus pelo conjunto de toda possibilidade, na me- a divergéncia, o descentramento) torna-se enquanto tal po-
dida em que este conjunto constitui uma matéria “originá téncia afirmativa e afirmada.
-
ria” ou um todo da realidade. A realidade de cada coisa Qual é este outro lado, este sistema do Baphomet, dos
daí “deriva”: ela repousa, com efeito, na limitagio deste puros sopros ou dos espiritos mortais? Eles não têm a iden-
todo, “uma vez que um pouco da realidade é atribuido
à tidade da pessoa, depuseram-na, revogaram-na. Nem por
coisa enquanto o resto dai é excluido, o que está de acordo isso deixam de ter uma singularidade, singularidades múlti-
com o ou da maior disjuntiva e com a determinação do objeto plas: flutuagdes formando figuras na crista das ondas. Toca-
por um dos membros desta divisio na menor” 2, Em su- mos no ponto em que o mito klossowskiano dos sopros torna-
ma, o conjunto do possivel é uma matéria origindria de
onde -se também uma filosofia. Parece que os sopros, em si e em
deriva por disjungio a determinação exclusiva e completa nós, devem ser concebidos como intensidades puras. É sob
do conceito de cada coisa. E Deus não tem outro sentido esta forma de quantidades intensivas ou de graus que os
além de fundar este manejo do silogismo disjuntivo, pois espiritos mortos têm uma “subsisténcia”, enquanto perderam
que nos é proibido concluir da unidade distributiva
que a “existéncia” ou a extensão do corpo. É sob esta forma que
sua Idéia representa & unidade coletiva ou singular
de um são singulares enquanto perderam a identidade do eu. As
ser em si que seria representado pela Idéia.
intensidades compreendem em si o desigual ou o diferente,
Vemos pois que, em Kant, Deus não é descoberto
como cada qual já é diferenca em si, tanto que todas estão com-
senhor do silogismo disjuntivo a não ser na medida em
que a preendidas na manifestagdo de cada uma. É um mundo de
dxsj}:ngfio fique ligada a exclusdes na realidade que dela
deriva,
intengdes puras, explica Baphomet: “nenhum amor-préprio
logo a um uso negativo e limitativo. À tese de prevalece”, “toda intengdo continua permeável de intenções”,
Klossowski, com a nova crítica da razão que implica, assume
en_téo todo seu sentido: não é Deus, é, ao conlrári “s6 levaria a melhor sobre outra a intenção do passado mais
o,,o Anti- insensata em esperar o futuro”, “um outro sopro vem 20 seu
cristo que é o senhor do silogismo disjuntivo, E isto porque
© antideus determina a passagem de cada coisa por encontro, eis que se supdem mutuamente, mas cada qual se-
todos os gundo uma intensidade varidvel de intengdo”. Singularidades
predicados possiveis. Deus, como ser dos seres, é substitu
ido pré-individuais e impessoais, esplendor do On (Se), singu-
pelo Baphomet, “principe de todas as modificações”, modifi-
c?çãq de todas as modificagdes. Não há mais realidad laridades móveis e comunicantes que penciram umas nas
e ori- outras através de uma infinidade de graus, de uma infini-
gindria. A disjungio não deixa de ser uma disjunggo, o
ou então não deixa de ser um ou entdo. dade de modificagdes. Mundo fascinante em que a iden-
Mas, ao invés da
disjunção significar que um certo número de predicados são tidade do eu se acha perdida, não em beneficio da identi-
excluidos de uma coisa em virtude da identidade do dade do Um ou da unidade do Todo, mas em proveito de
con-
ceito correspondente, ela significa que cada coisa uma multiplicidade intensa e de um poder de metamorfose
se abre
ao infinito dos predicados pelos quais passa, com a condi- em que as relagdes de poténcia atuam umas nas outras. É
ção de perder sua identidade como conceito e como en. o estado do que é preciso chamar de complicatio contra a
Ao
mesmo tempo que o silogismo disjuntivo acede a um prin- simplificatio cristd. Já Roberte ce soir mostrava o esforgo
Cípio e a um uso diabdlicos, a disjunção é afirmada de Octave para se insinuar em Roberte, para nela deslizar
por si
mesma sem cessar de ser uma disjunção, a divergência sua intengdo (sua intensiva intencionalidade) e com isso para
ou
a diferença tornam-se objetos de afirmação pura, o lhe dar a outras intengdes, ainda que “denunciando-a” aos
ou então
torna-se potência de afirmar, fora das condições no conceito espiritos que a violam*. E no Baphomet, quando Teresa
da identidade de um Deus, de um mundo ou de um en. se insufla no corpo do jovem pajem, é para formar o an-
O
dllem_a e o solecismo adquirem como tais uma positividade drégino ou Principe das modificações que se oferece à in-
superior. Contudo, vimos quanto subsistia ainda em Klos- tengdo dos outros, que se dá a participar aos outros espi-
sowski de disjunções negativas ou exclusivas: entre ritos: “Não sou um criador que sujeita o ser ao que cria,
a troca
€ a repetição, entre a linguagem dissimulada pelo corpo o que cria a um só eu e cste cu a um só coipo. ..” O siste-
e o
29. KaNT. Critica da Razdo Pura (O Idedl). 30. Roberie, p. 53.
ma do Anticristo é o dos simulacros que se opõem ao mundo peculiar de integridade) para descobrir um valor puramen-
das identidades. Mas ao mesmo tempo que o simulacro re- te expressivo ou, como diz Klossowski, “emomcm.:\”: não
voga a identidade, a0 mesmo tempo em que fala e é falado, relativamente a alguém que se exprime e que estaria como-
ele ocupa o ver e o falar, inspira a luz e o som. Ele se abre vido, mas com relação a um puro expresso, pura moção ou
à sua diferença e a todas as outras diferenças. Todos os puro “espírito” — o sentido como singularidade pré-indi-
simulacros sobem à superfície, formam esta figura móvel vidual, intensidade que se volta sobre si mesma através das
na crista das ondas de intensidade, fantasma intenso. outras, É assim que o nome de Roberte não designava uma
Vemos como Klossowski passa de um sentido ao outro pessoa mas exprimia uma intensidade primeira, ou que o
da palavra insentio, intensidade corporal e intencionalidade Baphomet langa a diferenca de intensidade constitut_lva de
falada. O simulacro torna-se fantasma, a intensidade torna- seu nome, B-A BA (“nenhum nome próprio subsiste ao
se intencionalidade na medida em que toma por objeto uma sopro hiperbólico do meu, assim, como a 'alfa idéia que cada
outra intensidade que compreende e se compreende a si qual tem de si mesmo é incapaz de resistir à vertigem de
mesma, toma-se a si mesma por objeto, no infinito das inten- meu tamanho”)”. Os valores da linguagem expressiva ou
sidades pelas quais passa. É o mesmo que dizer que há em expressionista são a provocação, a revogação, a evocagdo.
Klossowski toda uma “fenomenologia”, que segue a escolás- O que é evocado (expresso) são os espíritos singulares e
tica tanto como a Husserl, mas que traça suas próprias vias. complicados, que não possuem um corpo sem multiplicá-lo
Esta passagem da intensidade à intencionalidade é também no sistema dos reflexos e que não inspiram a linguagem sem
a do signo ao sentido. Em uma bela análise que fez de projetá-la no sistema intensivo das ressonâncias. O que é
Nietzsche, Klossowski interpretou o “signo” como rastro de revogado (denunciado) é a unicidade corporal tanto como
uma flutuação, de uma intensidade e o “sentido” como a identidade pessoal e a falsa simplicidade da linguagem na
o
movimento pelo qual a intensidade visa a si mesma ao visar medida em que é incumbida de só designar corpos e mani-
ao outro, modifica-se a si mesma ao modificar o outro e festar um eu. Como dizem os espíritos a Roberte, “somos
volta, enfim, sobre seu próprio rastro3!, O eu dissolvido nós evocáveis, vosso corpo ainda é revogável” 34,
abre-se a séries de papéis, porque faz subir uma intensidade Da intensidade à intencionalidade: cada intensidade
que já compreende a diferença em si, o desigual em si e que quer a si mesma, intenciona-se a si mesma, vo!ta-se sobre
penetra todas as outras através e nos corpos múltiplos. Há seus próprios rastros, repete-se e imita-se através de todas
sempre um outro sopro no meu, um outro pensamento no as outras. É o movimento do sentido. Movimento a ser
meu, uma outra posse no que possuo, mil coisas e mil seres determinado como eterno retorno. Já o Souffleur, romance
implicados nas minhas complicações: todo verdadeiro pen- da doença e da convalescença, acabava com uma revçlação
samento é uma agressão. Não se trata das influências que do eterno retorno; e com o Baphomet, Klossowski cria em
sofremos, mas das insuflações, flutuações que somos, com sua obra uma seqiiéncia grandiosa do Zaratustra. O difícil
as quais nos confundimos. Que tudo seja tão “complicado”, estd apenas na interpretagdo das palavras: o eterno retorno
que Eu seja um outro, que algo de outro pense em nós numa do Mesmo. Pois nenhuma forma de identidade é aqui su-
agressão que é a do pensamento, numa multiplicação posta, uma vez que cada eu dissolvido não volta a passar
que é
a do corpo, numa violência que é a da linguagem, é por si a não ser passando nos outros ou só se deseja a si
esta a
alegre mensagem. Pois não estamos tão seguros de reviver mesmo através da série de papéis que ndo sdo ele próprio.
(sem ressurreição) a não ser porque tantos seres e A intensidade, sendo já diferenca em si, abre-se sobre sé-
coisas
pensam em nós: porque “não sabemos sempre, ao certo, Ties disjuntas, divergentes. Mas, precisamem.e, porque as
se
não são os outros que continuam a pensar em nós — mas séries não estão submetidas à condigdo da identidade de
o que é este outrem que forma o fora com relação a este um conceito em geral e muito menos a instancia que as per-
dentro que julgamos ser? —, tudo se reduz a um só discurso, corre está submetida à jdentidade de um eu como ind.widl_xo,
seja a flutuações de intensidade que respondem ao pensa- as disjungdes permanecem disjungdes, mas sua sínte;a_ deixa
mento de cada qual e de ninguém” 2. Ao mesmo tempo de ser exclusiva ou negativa para assumir, ao contririo, um
em que os corpos perdem sua unidade e o eu sua identidade, sentido afirmativo pelo qual a instincia mével passa por
a linguagem perde sua função de designação (seu modo
33. Le Baphomet, p. 137. E, sobre a linguagem puramente expressiva
31. Cf “Oubli et anamnêse dans Vexpérience ou “emocional”, em relação com a noção de srâ-um & em oposição, com
du Méme”, em Nietzsche, Cahiers de Royaumont, ed. vécuo de V'étemnel retour
de Minut, 1067,
a função de designação, cf. “La Période turinoise de Nictzsche”, em L'Ephê-
mêre, 29 5, 1968, pp. 62-64,
32. “Oubli et anamnése...”, p. 233. 34. Roberte, p. 84
todas as séries disjuntas; em suma, a divergência e a dis- faz voltar nada do que volta uma vez, do que pretende re-
junção tornam-se objeto de afirmação como tais. O verda- centrar o circulo, tornar as séries convergentes, restaurar o
deiro sujeito do eterno retorno é a intensidade, a singula- eu, o mundo e Deus. O Cristo não voltard no ciclo de
Tidade; daí a relação entre o eterno retorno como intenciona- Dionisio, a ordem do anticristo expulsa a outra. Tudo o
lidade efetuada e a vontade de potência como intensidade quée, fundado em Deus, faz da disjunção um uso negativo ou
aberta. Ora, desde que a singularidade se apreende como exclusivo, é negado, é excluido pelo eterno retorno. Tudo
pré-individual, fora da identidade de um eu, isto é, como isto é remetido 2 ordem de Deus, que procede uma vez por
fortuita, ela se comunica com todas as outras singularidades, todas. O fantasma do Ser (eterno retorno) só faz voltar os
sem cessar de formar com elas disjunções, mas passando por simulacros (vontade de poténcia como simulagdo). Coerén-
todos os termos disjuntos que afirma simultaneamente, ao cia que não deixa subsistir a minha, o eterno retorno é não-
invés de reparti-los em exclusões. “Não me resta pois sendo -senso, mas não-senso que distribui o sentido s séries di-
me re-querer, não mais como o desembocar de possibili- vergentes sobre todo o circuito do circulo descentrado —
dades preliminares, nem como uma realização entre mil,
pois a “loucura é a perda do mundo e de si mesmo sob a
mas como um momento fortuito, cuja fortuidade mesma
forma de um conhecimento sem comego nem fim” 37,
implica a necessidade do retorno integral de toda a série” 35.
O que exprime o eterno retorno é este novo sentido da
síntese disjuntiva. Da mesma forma o eterno retorno não se
diz do Mesmo (“ele destrói as identidades”). Ao contrá-
rio, ele é o único Mesmo, mas que se diz do que difere em
si — do intenso, do desigual ou do disjunto (vontade de
poténcia). Ele é realmente o Todo, mas que se diz do que
permanece desigual; a Necessidade, que se diz somente do
fortuito. Ele préprio é univoco: ser, linguagem ou siléncio
univocos. Mas o ser univoco se diz de existentes que não
o sdo, a linguagem univoca se aplica a corpos que não o
são, o siléncio “puro” envolve palavras que não o são. Pro-
curarfamos, pois, em vão no eterno retorno a simplicidade
de um circulo, assim como a convergéncia das séries em torno
de um centro. Se há circulo, é o circulus vitiosus deus: a
diferenga ai está no centro e o circuito é a eterna passagem
através das séries divergentes. Circulo sempre descentrado
para uma circunferéncia excéntrica. O eterno retorno é real-
mente Coeréncia, mas é uma coeréncia que não deixa subsis-
tic a minha, a do mundo e a de Deus. A repeticio
nietzschiana não tem nada a ver com a kierkegaardiana ou,
mais geralmente, a repetição no eterno retorno não tem
nada a ver com a repetição cristd. Pois, o que a repeticio
cristd faz voltar, volta uma vez, apenas uma vez: as rique-
zas de Jó e o filho de Abrado, o corpo ressuscitado e o eu
reencontrado. Há uma diferenga de naturcza entre o que
volta “uma vez por todas” e o que volta por todas as vezes,
uma infinidade de vezes. Assim, o eterno retorno é real-
mente o Tedo, mas o Todo que se diz dos membros di
juntos ou das séries divergentes; ele não faz voltar tudo, não

35. <Oubli et anamnése...”, p. 229, E “La Période turinoise de


Nietzsche”, pp. 66-67 e 83.
36. Lei Lois de Phospiralité, Posicio. E “‘Oubli et anamnése
p. 233: “Significa isto que o sujeito pensante perderia a identidade a P
de um pensamento coerente que o excluiria de si mesmo?” 37. Les Lois de Vhospitalité, Posticio, p. 346.
“. IVIILHGE DUUTINNGI G U

Mundo sem Outrem

O animal parou de repente de mastigar, guardando entre seus


dentes uma longa gramínea. Escarneceu, em seguida, com sua barba
e se levantou sobre suas patas traseiras. E assim deu alguns passos
em direção a Sexta-feira, agitando no vácuo seu casco dianteiro,
sacudindo seus imensos cornos como se estivesse, de passagem,
saudando uma multidão. Esta mimica grotesca gelou de surpresa
Sexta-feira. O animal estava apenas a alguns passos dele quando
se deixou cair para a frente, tomando 20 mesmo tempo um impulso
de catapulta em sua direção. Sua cabeça mergulhon entre as patas
da frente, seus cornos apontaram em forquilha e ele voou em dire-
ção ao peito de Sexta-feira como uma grande flecha, guarnecida de
penas e de peles. Sexta-feira se lançou para a esquerda numa
fração de segundo tarde demais. Um fedor almiscarado envol-
veu-o...1

Estas péginas assim tio belas contam a luta de Sexta-


~feira com o bode. Sexta-feira saird ferido, mas o bode mor-
rerá, “o grande bode estd morto”. E Sexta-feira anuncia seu
projeto misterioso: o bode morto voará e cantard, bode
voador e musical. Para o primeiro ponto do projeto, ele se
serve da pele, depilada, lavada, polida, esticada sobre uma
estrutura de madeira. Amarrado a uma vara de pescar, o
bode amplifica o menor movimento da linha, assumindo a
função de uma gigantesca rolha celeste, transcrevendo as
4guas sobre o céu. Quanto ao segundo ponto, Sexta-feira
serve-sc da cabega e das tripas, faz deles um instrumento
que coloca em uma árvore morta a fim de produzir uma sin-
fonia instantanea cujo único executante deve ser o vento:
é assim que o rumor da terra é, por sua vez, transportado
no céu e se torna um som celeste organizado, pansonoridade,
“música verdadeiramente elementar”2 Destas duas ma-
1. Vendredi ou les limbes du Pacifigue, Gallimard, 1967, p. 161
2. p 1L
neiras o grande bode morto libera os Elementos. Observar- rosa fixada pela origem? Em suma, em De’foe a intengdo
se-á que a terra e o ar desempenham menos o papel de ele- ocorrer a um homem só, Sem, Qutrem,
era boa: o que pode o prob lema esta va mal colocado.
mentos particulares do que o de duas figuras completas em uma iiha deserta? Mas em
asse)suado a uma orig
opostas, cada qual reunindo, por conta própria, os quatro Pois, ao invés de levar um Robinson
elementos. Mas a terra é o que os encerra e os estreita, con- que reproduz um mundo econdmico andlogo ao nosso, ar-
uzu' um _Robmson ãs-
tém-nos na profundidade dos corpos, enquanto que o céu, quétipo do nosso, seria preciso çond e dzvgygente:. 05
com a luz e o sol, leva-os ao estado livre e puro, liberados a fins completamente diferentes
sexuado
ele proprio desviado.
de seus limites para formar uma energia cósmica de super- nossos, em um mundo fantéstico tendo
fim ¢ ndo de origem,
ficie, una e, contudo, própria a cada elemento. Há, por con- Colocando o problema em termos de
aba.udo'nar‘a”flha. o
seguinte, um fogo, uma água, um ar e uma terra terrestres Tournier se profbe de deixar Robinson
2 “des umanizacio”, o en-
mas também uma terra, uma água, um fogo, um ar aéreos fim, o alvo final de Robinson é
ou celestes. Há um combate entre a terra e o céu, em que contro da libido com os elementos livres, a descoberta de
r,
está em jogo o aprisionamento ou a liberação de todos os uma energia cósmica ou de uma g.ra.ude Sjaúde elementa
ainda na medida
elementos. A ilha é a fronteira ou o lugar deste combate. que não pode surgir a não ser na ilha e
Henr y Miller falava
É por isso que é tão importante saber de que lado vai pen- em que a ilha se tornou aérea e solar. 'fuudamen‘
os dos elem cm?s
der; se serd capaz de derramar no céu seu fogo, sua terra e destes “vagidos de recém-nascid
ferro ”. E sem divi da há um
suas águas e de se tornar ela prépria solar. O herdi do tais hélio, oxigénio, silicio, de
romance é a ilha tanto quanto Robinson, tanto quanto Sexta- e mesmo de Lawrence neste Ro'bnqsou
pouco de Miller
o vagido dos
~feira. A ilha muda de figura no curso de uma série de hélio e de oxigênio: o bode morto já organiza
desdobramentos, não menos do que Robinson que muda de elementos fundamentais.
que esta
forma no curso de uma série de metamorfoses. A série Mas o leitor tem também a impressão de
subjetiva de Robinson é insepardvel da série dos estados da Robinson de Tournier es.coude al_go, que
grande Saúde de
Não seria
ilha. não é em absoluto milleriano ou lawrenciano.
ica, .mse paraxàel
O termo final é Robinson feito elementar em sua ilha, este desvio totalmente essencial que ela impl
cla propria entregue aos elementos: um Robinson de sol na nson de Tour nier se opde
da sexualidade desértica? O Robi
ilha tornada solar, uraniano em Urano. O que importa aqui se enca deia m com Tigor : ele
ao de Defoe por trés tragos que em;
não é, por conseguinte, a origem, mas, ao contririo, o des- a alvos , ao invés de sê-lo a uma orig
é relacionado a fins,
fecho, o alvo final, descobertos através de todo tipo de ava- ele
é sexnado; estes fins representam um desvi_o fantéstico
tares. É a primeira grande diferenca em relagdo ao Robinson de nosso mundo, sob a influência de uma sexu alidade trans-
de Defoe. Observou-se freqiientemente que o tema de Ro- formada, ao invés de uma reprodugdo dmica de nossoecon
do. Na verdade,
binson em Defoe não era somente uma historia, mas o “ins- mundo sob a ação de um trabalho continua
trumento de uma pesquisa”: pesquisa que parte da jlha deser- este Robinson não faz nada de perv erso ; e, contudo, como
é perverso,
ta ¢ que pretende reconstituir as origens e a ordem rigoro- nos desembaragarmos da impressdo de que ele
sa dos trabalhos e das conquistas que delas decorrem com ud, aque le que .desvm
isto é, segundo a definição de l:?re
o tempo. Mas é claro que a pesquisa é duas vezes falseada. Era a mesma coisa, em Defoe, referic Ro-
quanto aos fins?
De um lado, a imagem da origem pressupde o que ela pre- binson à origem e fazé-lo produzir um mundo conforme 20
tende engendrar (cf. tudo o que Robinson tirou dos restos do nosso; É a mesma coisa em Tournier reíeri-l_o a fjns e_faze—
aos fins. Referido às origens,
naufragio). De outro lado, o mundo re-produzido a partir lo desviar, divergit quanto
o mundo,
desta origem é o equivalente do mundo real, isto ¢, econd- Robinson deve necessarizmente reproduzir noss
mico ou do mundo tal como seria, tal como deveria ser se ia nece ssar iame nte. Estranho
mas, referido aos fins, ele desv
não existisse a sexualidade (cf. a eliminagdo de toda sexua- udo, daqu eles dç que nos fala Freud,
desvio que não é, cont
entos: tal
lidade no Robinson de Defoe)3. Serd preciso concluir a uma vez que é solar e toma como objeto os elem iamente
partir dai que a sexualidade é o único principio fantéstico “Se fosse prec iso nece ssar
é o sentido de Urano. conve-
capaz de fazer desviar 0 mundo da ordem econdmica rigo- em termos humanos este coito solar, seria
traduzir
a esposa
niente definir-me sob as espécies femininas e como
3. Sobre o Robinson de Defoe, cf. as observagies de Pierre Machersy, cont ra-s enso . Em
que mostra como o tema da origem está ligado a uma reprodução econdmi do céu. Mas este antropomorfismo é um ?—fen 'a e
do mundo e a uma eliminacio do fantistico em proveito de uma pretensa verdade, no supremo grau em que aced emos , Sext.
“realidade” deste mundo: Pour unc théorie de la production litéraire, cd. de sexo está ultrapassada e Sexta-feira pode
Maspéro, pp. 266-275. eu, a diferença
identificar-se a Vênus, do mesmo modo como podemos dizer mos em alguma coisa que não vimos), é porque o primeiro
em linguagem humana que me abro à fecundação do Astro objeto dispunha de toda uma margem em que eu sentia já
Maior” 4. Se ¢ verdade que a neurose é o negativo da per- a preexisténcia dos seguintes, de todo um campo de virtua-
versdo, a perversão, de seu lado, não seria o elementar da lidades e de potencialidades que eu já sabia capazes de se
neurose? atualizarem. Ora, um tal saber ou sentimento de existénci
O conceito de perversão é bastardo, semijurídico, semi- marginal não é possível a não ser por intermédio de out
médico. Mas nem a medicina, nem o direito ganham nada
“Qutrem é para nós um poderoso fator de distração, não so-
com isso. No interesse renovado hoje por um tal conceito,
mente porque nos desconcerta sem cessar e nos tira de nosso
parece que procuramos em uma estrutura da perversão mesma
pensamento intelectual, mas também porque basta a possi-
a razão de sua relação eventual muito ambígua, tanto com a
bilidade da sua aparição para lançar um vago clarão sobre
justica como com a medicina. O ponto de partida é este: a
um universo de objetos situados à margem de nossa atenção,
perversão não se define pela força de um desejo no sistema
mas capaz a qualquer momento de se tornar o centro dela” 5.
das pulsões; o perverso não é alguém que deseja, mas que
introduz o desejo em um outro sistema e faz com que ele A parte do objeto que não vejo, coloco-a ao mesmo tempo
desempenhe, neste sistema, o papel de um limite interior, de
como visível para outrem; tanto que, quando eu tiver feito
um foco virtual ou de um ponto zero (a famosa apatia a volta para atingir esta parte escondida, terei alcançado
sádica). O perverso não é um eu que deseja, mais do que outrem por trás do objeto, para dele fazer uma totalização
o Outro, para ele, não é um objeto desejado, dotado de previsível.. E os objetos atrás de mim, sinto que eles se
existéncia real. O romance
ligam e formam um mundo, precisamente porque visíveis e
de Tournier não é, contudo,
uma tese sobre a perversão. vistos pc itrem. E esta profundidade para mim, segundo
Não é um romance de tese.
Nem um romance de personagens, uma
a qual os objetos se invadem ou mordem uns aos outros e se
vez que não há
outrem Nem um romance de análise interior, Robinson escondem uns atrás dos outros, eu a vivo também. como
tendo muito pouca interioridade. É um surpreendente sendo uma largura possível para outrem, largura em que se
romance cômico de aventuras e um romance cósmico alinham e se pacificam (do ponto de vista de uma outra
de avatares. Ao invés de uma tese sobre a perversão, profundidade). Em suma, outrem assegura as margens&”
é um romance que desenvolve a tese mesma de Robinson: transições no_mundo. Ele é a dogura das contigiiidades ¢ ..
o homem sem outrem em sua ilha. Mas a “tese” encontra das semelhanças. Ele regula as transformações da forma e
tanto mais sentido quanto mais anuncia aventuras ao do fundo, as variações de profundidade. Ele impede os as-
invés de se referir a uma origem suposta: que vai ocorrer saltos por trás. Povoa o mundo de um rumor benevolente.
10 mundo insular sem outrem? Procuraremos, pois, primeiro Faz com que as coisas se inclinem umas em direção às outras
o que significa outrem por seus efeitos: buscaremos os efei- e de uma para a outra encontrem complementos naturais., {
tos da auséncia de outrem na ilha, induziremos os cfeitos da Quando nos queixamos da maldade de outrem, esquecemos
presença de outrem no mundo habitual, concluiremos o que esta outra maldade mais temivel ainda, aquela que teriam as
é outrem e em que consiste sua auséncia. Os efeitos de coisas se não houvesse outrem. Ele relativizao ndo-sabido,
outrem são, por conseguinte, as verdadeiras aventuras do es- o não-percebido; pois outrem para mim introduz o signo do
pirito: um romance experimental indutivo. Então, a refle- nio-percebido no que eu percebo, determinando-me a apreen-
xão filosófica pode recolher o que o romance mostra com der o que não percebo como perceptivel para outrem. Em
tanta força e vida. todos estes sentidos é sempre por outrem que passa
O primeiro efeito de outrem é, em torno de cada objeto meu desejo e que meu desejo recebe um objeto. Eu
que percebo ou de cada idéia que penso, a organização de não desejo nada que não seja visto, pensado, possuido por
um mundo marginal, de um arco, de um fundo que outros um outrem possivel. Estd ai o fundamento de meu desejo.
objetos, cutras idéias podem sair segundo leis de transição É sempre outrem que faz meu desejo baixar sobre o objeto. |
que regulam a passagem de uns aos outros. Olho um obijeto, O que ocorre quando falta outrem na estrutura do:-
em seguida me desvio; deixo-o voltar ao fundo, ao mesmo mundo? Só reina a brutal oposigdo do sol e da terra, de
tempo em que se destaca do fundo um novo objeto da minha “uma luz insustentével e de um abismo obscuro: “a lei sumá-
atenção. Se este novo objeto não me fere, se não vem me ria de tudo ou nada”. O sabido e o não-sabido, o percebido
chocar com a violência de um projétil (como quando bate- e o não-percebido enfrentam-se em termos absolutos, num
4. p. 185 5. p. o2
combate sem nuanças; “minha visão da ilha está reduzida que a atualizam em cada campo perceptivo organizado —
0 vosso, o meu. Assim, Outrem — a priori como estrutura
a si mesma, o que não vejo é uma incógnita absoluta, em
todos os lugares onde não estou atualmente reina uma noite absoluta, funda a relatividade dos outrem como termos efe-
tuando a estrutura em cada campo. Mas qual é esta estru-
insondável” 6. Mundo cru e negro, sem potencialidades nem
tura? É a do possível. Um semblante assustado é a ex-
virtualidades: é a categoria do possível que se desmoronou.
pressão de um possível mundo assustador ou de alguma coisa
Ao invés de formas relativamente harmoniosas, saindo de de assustador no mundo que ainda não vejo. Compreende-
um fundo para a ele voltar segundo uma ordem do espaço
mos que o possível não é aqui uma categoria abstrata desig-
e do tempo, nada mais do que linhas abstratas, luminosas e nando alguma coisa que não existe: o mundo possivel ex-
contundentes, nada mais do que um sem-fundo, rebelde e
presso existe perfeitamente, mas não existe (atualmente) fora
sugador. Nada além de Elementos. O sem-fundo e a linha
do que o exprime. O semblante terrificado não se parece
abstrata substituíram o modelado e o fundo. Tudo é impla- como algo
com a coisa terrificante, ele a implica, a envolve
cável.. Tendo cessado de se estender e se curvar uns em di-
de diferente, numa espécie de torção que põe o expresso no
reção aos outros, os objetos se erguem ameaçadores; desco- apreendo, por minha vez e por conta
exprimente. Quando
brimos então maldades que não são mais as do homem.
própria, a realidade do que outrem exprimia, não faço nada
Dir-se-ia que cada coisa, tendo abdicado de seu modelo, re-
mais do que explicar outrem, desenvolver e realizar o mundo
duzida a suas linhas mais duras esbofeteia-nos e golpeia-
possível correspondente. É verdade que outrem já dá uma
-nos pelas costas. À ausência de outrem, nós a sentimos
certa realidade aos possíveis que envolve: falando, precisa-
quando damos uman que nos é reve-
mente. Outrem é a existência do possível envolvido. A lin-
lada a velocidade estupidificante de nossos gestos. “A nudez
guagem é a realidade do possivel enquanto tal. O eu é o
é um luxo que só e homem calorosamente cercado pela desenvolvimento, a explicação dos possiveis, seu processo
multidão de seus semelhantes pode se oferecer sem perigo. de realizagio no atual. De Albertine percebida ao longe,
Para Robinson, enquanto não tivesse mudado de alma, seria Proust diz que envolve ou exprime a praia e a arrebentação
uma provação de uma mortífera temeridade. Despojado de das ondas: “Se ela me tivesse visto, o que é que eu pode-
seus pobres fardos — usados, dilacerados, maculados, mas ria ter representado para ¢la? Do seio de que universo ela
saídos de vários milênios de civilização e impregnados de me distinguiria?” O amor, o ciúme, serão a tentativa de de-
humanidade —, sua carne era oferecida vulnerável e branca senvolver, de desdobrar este mundo possivel chamado Al-
3 irradiação dos elementos brutos?.” Não há mais transi- bertine. Em suma, outrem como estrutura, é a expressio. de
ções; acabou-se a dogura das contigilidades e das semelhan- um mundo possivel, € o expresso_apreendido como não exis-
ças que nos permitiam habitar o mundo. Mais nada subsiste tindo ainda fora do que o exprime. “Cada um destes homens
além das profundidades infranqueáveis, das distâncias e das era um mundo possivel, bastante coerente, com seus valores,
difere_nças absolutas ou então, ao contrário, de insuportáveis seus focos de atração e repulsdo, seu centro de gravidade.
Tepetições, assim como extensões exatamente superpostas. Por mais diferentes que fossem uns dos outros, estes pos-
Comparando os primeiros efeitos de sua presença e de síveis tinham a ente em comum uma pequena imagem
sua ausência, podemos dizer o que é outrem. O engano das da ilha — quão suméria e superfícial! — em torno da qual
teorias filosóficas é reduzi-lo ora a um objeto particular, ord se organizavam ¢ num canto da qual se encontravam um
a um outro sujeito (e mesmo uma concepção como a de Sar- néufrago chamado Robinson e seu servidor mestigo. Mas,
tre do L'Étre et le Néant, que se contentava em reunir as por mais central que fosse esta imagem, ela era em cada
duas determinações, fazendo de outrem um objeto sob meu qual marcada com o signo do provisério, do efémero, con-
olhar que me olhe, por sua vez, e me transforme em objeto). denada a voltar no mais breve prazo para o nada de onde
Mas outrem não é nem um objeto no campo de minha per- a retirara o naufragio ocidental do Whitebird. E cada um
cepção, nem um que me percebe: & em primeiro desses mundos possiveis proclamava ingenuamente sua rea-
* lugar, uma estrutura
do campo perceptivo, sem a qual este lidade. Isso é que era outrem: um possivel que se obstina
campo no seu conjunto não funcionaria como o faz. Que em passar por real” 3.
esta estrutura seja efetuada por personagens reais, por sujei- Podemos compreender melhor os efeitos da presenga
tos variáveis, eu para vós e vós para mim, não impede que ela de outrem. A psicologia moderna elaborou uma rica séric
preexista como condição de organização em geral aos termos de categorias que explicam o funcionamento do campo per-
8. p 192
ceptivo e das variações de objetos neste campo: forma-fun- to em que tudo acaba: “Os faróis desapareceram de meu
do, profundidade-comprimento, tema-potencialidade perfis- campo. Nutrida por minha fantasia, durante muito tempo
-unidade de objeto, franja-centro, texto-contexto, tético-não- ainda sua luz chegou até mim. Agora, acabou-se, as trevas
-tético, estados transitivos-partes substantivas etc. Mas o me envolvem™. E quando Robinson reencontrar Sexta-feira,
problema filoséfico correspondente não estd, ao que parece, nós o verémos, não é mais como outrem que o encontrard.
bem colocado: pergunta-se se essas categorias pertencem ao E quando, no final, chega um navio na ilha, Robinson sa-
préprio campo perceptivo e lhe são imanentes (monismo), berá que não pode mais restaurar os homens em sua função
ou se remetem a sinteses subjetivas exercendo-se sobre uma de outrem, uma vez que a prépria estrutura que preenche-
matéria da percepgdo (dualismo). Estariamos enganados se riam desapareceu: “Era isto outrem: um possível que se
recusdssemos a interpretação dualista sob o pretexto de obstina em passar por real. E que seja cruel, egofsta, imoral
que a percepção não se faz por meio de uma sintese intelec- negar esta exigéncia, é o que toda sua educação havia in-
tual ajuizadora; podemos evidentemente conceber sinteses culcado a Robinson mas que ele esquecera durante todos
passivas sensiveis de um tipo bem diferente, exercendo-se esses anos de solidão e ele perguntava agora se chegaria al-
sobre uma matéria (Husserl, neste sentido, nunca renunciou gum dia a retomar o hébito perdido”!º, Ora, esta dissolução'
a um certo dualismo). Mas, mesmo assim, duvidamos de progressiva mas irreversível da estrutura não é o que o per-
que o dualismo esteja bem definido enquanto o estabelecer- verso atinge por outros meios, na sua “ilha” interior? Para
mos entre uma matéria do campo perceptivo e sínteses pré- falar como Lacan, a “perempção” de outrem faz com que
-reflexivas do eu. O verdadeiro dualismo encontra-se alhures: os outros não sejam mais apreendidos como outrem, uma
entre os efeitos
da “estrutura Outrem” no campo perceptivo vez que inexiste a estrutura que poderia dar-lhes este lugar
e os efeitos de sua auséncia (o que seria a percepgdo se não e esta fungdo. Mas não &, assim, todo o nosso mundo per-
houvesse outrem). É preciso compreender que outrem não é cebido que se desmorona? Em proveito de outra coisa?. . .
uma estrutura entre outras no campo da percepção (no sen- Voltemos, por conseguinte, aos efeitos da presenca de
tido em que, por exemplo, reconhecer-lhe-iamos uma dife- outrem, tais como decorrem da definição “outrem-expressão
tru- de um mundo possível”. O efeito fundamental é a distinção
licionao conjunto do campo e o funcionamento de minha consciência e de seu objeto. Esta distinção decor- .
nto, tornando possivel a constituigio € a aplica- te com efeito da estrutura Outrem. Povoando o munçlçfdw
ção das categorias precedentes. Não é o eu, é outrem como possibilidades, de fundos, de franjas, de transições, — ins-
estrutura que torna a percepção possível. São pois os mesmos crevendo a possibilidade de um mundo espantoso quando
autores que interpretam mal o dualismo e que não escapam ainda não estou espantado ou então, ao contrário, a possi-
da alternativa segundo a qual outrem seria ou um objeto bilidade de um mundo trangiiilizante quando, eu, me encontro
particular no campo ou então um outro sujeito de campo. realmente assustado com o mundo, — envolvendo sob
Definindo outrem, segundo Tournier, com a expressão de outros aspectos o mesmo mundo que se mantém diferente-
um mundo possível, fazemos dele, ao contrário, o princípio mente desenvolvido diante de mim, — constituindo no mun-
a priori da organização de todo . campo perceptivo segundo do um conjunZ) de bolhas que contêm mundos possíveis:
as categorias, fazemos dele a estrutura que permite o fun- weis 0 que é outremM. A partir daí, outrem faz com que miz |
nha consciéncia caia necessariamente em um “eu era”, em
cionamento assim como a “categorização” deste campo. O
verdadeiro dualismo aparece então com a ausência de um passado que não coincide mais com o objeto. Antes que
outrem: o que ocorre, neste caso, para o campo perceptivo? outrem apareça, havia por exemplo um mundo tranqiiilizan-
Será que é estruturado segundo outras categorias? ou, ao 9. p. 47,
contrário, abre-se sobre uma matéria muito especial, fa- 10. pp. 192, 193. L
11. A concepção de Tournmier comporta evidemtementeccos ccossartrianos. leibnizianos
zendo-nos penetrar em um informal particular? Eis a aven- (2 mônada como expressio de mundo), mas também — À
teoria de Sartre em L'Stre ¢t le Néant é a primeira grande teoria de outrem,
tura de Robinson, porque ultrapassa a altemativa: outrem é um (ainda que fosse um
Objeto particular 10 campo perceptivo) Ou en icito (ainda que fosse
A tese, a hipbtese-Robinson, tem uma grande vantagem: vm outro sujeito para um oOutro campo perceptivo)? — Sartre aqui é precursor
apresenta-nos como devido as circunstancias da ilha de- do estraturalismo, pois ele é o primeiro a ter considerado outrem como estru-
tura própria ou especificidade irredutivel ao objeto e ao sujeito. Mas como ele
serta o desaparecimento progressivo da estrutura Outrem. definia esta estrutura pelo “olhar”, cafa de novo nas categorias de objeto e
Certamente, ela sobrevive e funciona ainda, muito tempo de sujeito, fazendo de outrem aquele que me constitui como objeto quando
me olha, pronto para se converter em cbjeto quando o olho Parece que &
depois que Robinson, na ilha, não mais cncontra termos estrutura. - Qutrem precede o olhar; este marca amtes o instante em que alguér
atuais ou personagens para efetui-la. Mas vem o momen- vem preencher a estratura; o olhar não faz mais do que efetuar, atualizar wma
estrotura que deve ser definida independentemente,,
te, do qual não distingufamos minha consc execução, eles se parecem a tal ponto que se superpõem
iéncia; outrem
surge, exprimindo a possibilidade de um mund exatamente em minha memória e que me parece viver sem
o assustador,
que ndo é desenvolvido sem fazer passar cessar o mesmo dia 3.7 A consciência deixa de ser uma luz
o precedente.
Eu nada sou além dos meus objetos passados, meu
sobre os objetos para se tornar uma pura fosforescência das
eu
ndo é feito. senão de um mundo passado, precisaménte coisas em si. Robinson não é senão a consciência da ilha,
- aquele que outrem faz passar. Se outrem é um mas a consciência da ilha é a consciência que a ilha tem
mundo
possível, em sou um mundo passado. E todo o erro
dela mesma e é a ilha nela mesma. Compreende-se então o
das teorias do conhecimento é o de postular a contem- paradoxo da ilha deserta: o náufrago, se é único, se perdeu
poraneidade do sujeito e do objeto, enquanto a estrutura-outrem, em nada rompe o deserto da ilha, antes
que um
não se constitui a não ser pelo aniquilamento do o consagra. A ilha se chama Speranza, mas o Eu quem é?
outro.
“De repente se produz um desligamento. O sujeito se “A questão está longe de ser ociosa e nem é insolúvel, pois
arran-
ca do objeto, despojando-o de uma parte de sua cor e se ele não é Eu, Eu só pode ser Speranza 14 Eis que pro-
de
seu peso. Alguma coisa arrebentou no mundo gressivamente Robinson se aproxima de uma revelação: a
e todo um
conjunto de coisas se desmorona convertendo-se em mim. perda de outrem, ele o experimentara primeiro como uma
Cada objeto é desqualificado em proveito de um sujeito cor- perturbação fundamental do mundo; nada mais subsistia além
respondente. AÀ luz se torna olho e não existe da oposição da luz e da noite, tudo se fazia contundente, o
mais como
tal: ela não é mais do que excitação da retina. O odor tor- mundo tinha perdido suas transições e suas virtualidades.
na-se narina — e o próprio mundo se revela inodoro. Mas ele descobre (lentamente) que é outrem, ao contrário,
A
música do vento nas árvores é refutada: não era mais do que que per ava o mundo. Era ele a perturbação. Outrem
um abalo de timpano. .. O sujeito é um objeto desqualifi desaparecido não são mais somente os dias que se retificam.
ca-
do. Meu olho é o cadáver da luz, da cor. Meu nariz é tudo São as coisas também que não são mais baixadas umas sobre
o que resta dos odores quando sua irrealidade foi demon as outras. É também o descjo não mais baixando sobre um
s-
trada. Minha mão refuta a coisa que segura. O probl objeto ou um mundo possível expresso por outrem. À ilha
ema
do conhecimento nasce, então, de um anacronismo. deserta entra numa retificação, numa ereção generalizada.
Ele im-
plica a simultancidade do sujeito e do objeto, cujas miste- A consciência não se tornou somente uma fosforescên-
riosas relações gostaria de esclarecer. Ora, o sujeito e o obje- cia interior às coisas, mas um fogo nas suas cabeças, uma
to não podem coexistir, uma vez que são a mesma coisa, luz acima de cada uma, um “Eu voador”. Nesta luz aparece
pri-
meiro integrada ao mundo real, depois jogada fora como outra coisa: um duplo aéreo de cada coisa. “Parecia-me en-
re-
botalho 12” Qutrem assegura, por conseguinte, a distinção trever, durante um breve instante, uma outra ilha escon-
da consciência é de seu objeto, como distinção tempo dida... Esta outra Speranza, para aí fui transportado
ral. O
primeiro efeito de sua presença concernia ao espaço e à dis- agora, aí me instalei num momento de inocéncia 3.’ É
tribuição das categorias da percepção; mas o segundo cfeito, isto que o romance descreve de maneira excelente: em cada
talvez mais profundo, concerne ao tempo e à distribuição de caso, o extraordinário nascimento do duplo erigido. Ora,
suas dimensões, do precedente e do seguinte no tempo qual é exatamente a diferença entre a coisa tal como aparece Q
.
Como haveria ainda um passado quando outrem não em presença de outrem e o duplo que tende a_s&'_degtaçu
funciona mais? em sua ausência? É que outrem presidia à organização dó |
Na ausência
de Outrem, a consciéncia e seu objeto não mundo em objetos e às relações transitivas entre estes
fazem mais do que um. Não hd mais possibilidade. de er objetos. Os objetos não existiam senão pelas posslblhslades
não simplesmente Porque outrem não está mais 14, cons com as quais outrem povoava o mundo; cada qual não se
tuindo o tribunal de toda realidade, para discutir, infir fechava sobre si, não se abria sobre outros objetos a não
mar ou
verificar 0 que acredito ver, mas porque, faltando em sua ser em função dos mundos possiveis expressos por outrem.
estrutura, ele deixa a consciéncia colar ou coinci ircom o Em suma: outrem é quem aprisionava os clementos no
objeto num eterno presente. “Dir-se-ia,
por conseguinte, que limite dos corpos e, mais ao longe, nos limites da terra.
meus dias se endireitaram. Não mais oscilam uns sobre os Pois a prépria terra nada mais é do que o grande _corpo
outros. Mantêm-se de pé, verticais e se afirmam orgulhosa- que retém os elementos. A terra ndo é ferra a ndo ser
mente em seu valor intrínseco. E como não são mais dife- povoada de outrem. Outrem é quem fabrica os corpos com
j renciados pelas etapas sucessivas de um plano em vias de
i 13. p 176,
i 1: p. 175
12. pp. 82-84. 1: p. 177
o desvio de Robin-
elementos, os objetos com corpos, assim como fabrica seu gação da libido com os elementos, ‘tal é é tam-
Laí;;;riu semblante com os mundos que exprime. O duplo son; mas toda a história deste desvio quanto aos fms
e do desejo.
liberado, quando outrem se desmorona, não é, pois, uma bém a “retificação” das coisas, da terra
se chegar
réplica das coisas. O duplo, ao contrário, é a imagem endi- Quantas dificuldades foram necessérias para ira rea-
aventuras romanescas. Pois .a prime
reitada em que os elementos se liberam e se retomam, todos até af, quantas
os elementos tornados celestes e formando mil figuras capri- ção de Robinson foi o desespero. Ele exprime exatamente
tura Outrem funcio-
chosas elementares. E primeiro a figura de um Robinson este momento da neurose em que a estru chê-la,
para preen
solar e desumanizado: “Sol, estás contente comigo? Olha- na ainda, embora não haja mais ninguém
ra, ela funci ona tanto mais
-me. Minha metamorfose vai bastante no sentido de tua efetuá-la. De uma certa manei
não é mais ocup ada por seres reai.
chama? Desapareceu minha barba, cujos pêlos vegetavam rigorosamente quanto ;-
em direção da terra, como radículas geotrdpicas. Em Os outros não estão mais ajustados à estrutura; esta tuncif
mesmo. Elg não
compensação, minha cabcleira enrola seus cachos ardentes na no vazio, tanto mais exigente por isso
um passa do pessoal não-re-
como um braseiro voltado para o céu. Sou uma flecha cessa de rejeitar Robinson em
dirigida para o teu foco...” Tudo se passa como se a ilhas da memó ria e nas dores da_ alu-
conhecido, nas armad
se (em que é R?bm'son
terra inteira tentasse escapar-se pela ilha, ndo somente resti- cinagio. Este momento da neurc
encarna-se no chigueiro,
tuindo os outros elementos que retinha indevidamente sob a inteiricho que se acha “rejeitado”) seus olhos,
“Somente
influéncia de outrem, mas tragando por si mesma seu pró- que Robinson partilha com 0s porcos:
aflor avam no tapete flutuante das
prio duplo aéreo que a torna, por sua vez, celeste, que a seu nariz e sua boca
Liberado de todos os
faz concorrer com os outros elementos no céu e para as goticulas de água e dos ovos de sapo. eio abobalha-
num devan
figuras solares. Em suma, outrem é o que, envolvendo os seus vinculos terrestres, ele seguia,
mundos possiveis, impedia os duplos -de -se endireitarem. que, retor nandoAde: seu fiassado,
do, fiapos de lembrangas %
Outrem era o grande abaixador. Tanto que a des-estru- das folhas imóveis”
dangavam no céu nos corddes egtru tpra
a que a
turagio de outrem não é uma desorganizagio do mundo, O segundo momento, contudo, mostr
mas uma organizagio-de pé por oposição 2 organizagio Outrem comega a se esboroar. Libertando-se do chiqueiro,
deitada, o endireitamento, a circunscrigio de uma imagem substituto de outrem, capaz dg man-
Robinson procura um
dava às coisas: a
vertical e sem espessura; depois, de um elemento puro ter, apesar de tudo, o. hábito que outrem.
temp o pela clepsidra, a
enfim liberado. ordem, o trabalho. A ordenação do ~
o estabeleci
Foram necessérias catástrofes para esta produção dos instauração de uma produgdo superabundante,
dade dos tip:los e
duplos e dos elementos: ndo somente os ritos do grande bode mento de um código de leis, a multiplici
encarrega, tudo isto dá
morto, mas uma formidével explosdo, em que a ilha largou funções oficiais de que Robinson se
todo seu fogo e vomitou-se a si mesma através de uma de oar o mlmc!o de outros
testemunho de um esforço para repov
suas cavernas. Mas, através das catastrofes, o desejo retifi- para mante r Os ehíelt'os da pre-
que são ainda ele mesmo ¢ Mas a
cado aprende qual é seu verdadeiro objeto. A natureza e a faléncia.
senga de outrem quando 2 estrutura abre de Defoe se
terra já não nos diziam que o objeto do desejo não é o corpo faz sentir : enqu anto O Robi nson
anomalia se ando que
sidad e, pens
nem a coisa, mas somente a Imagem? E quando desejiva-
proibe de produzir além de sua neces Tonrm.er'se
mos o préprio Qutrem, sobre o que incidia nosso desejo gdo, o de
o mal comega com o €XCesso da produ
senão sobre este pequeno mundo possivel expresso que outrem ugdo “fren ética ”, o único mal C_on515tln-
Jança em uma prod
havia cometido o engano de envolver dentro de si ao invés sempre CONSUMIMOS so-
do em consumir, na medida em que dade
nte a esta ativi
de deixé-lo flutuar e voar acima do mundo, desenvolvido zinhos e para nós mesmos. E, paralelame
como um duplo glorioso? E quando contemplamos esta bor- de trabalho, como correlato neces sário , desenvolve-se uma
e. Detendo por
boleta que saqueia uma flor que reproduz exatamente o abdô- estranha paixão de distensão e de sexualidad sem fundo de uma
men de sua fémea e que vai embora levando em sua cabega vezes sua cleps idra, habit uando -se 2 noite
Robinson mergulha
dois bicos de pólen, percebemos que os corpos não são mais caverna, untando seu corpo com leite,
ilha e encon tra um alvéolo um que
do que desvios para atingir as Imagens e que a sexualidade até o centro interior da
ope larvar de seu
realiza tanto melhor e mais prontamente seu fim quanto mais consegue se enrodilhar, que é como o envel a da 'r:eurosc,
stica que
economiza este desvio, dirige-se diretamente as Imagens e, próprio corpo. Regressão mais fantá : “Ele era
finalmente, aos elementos liberados dos corpos !?. A conju- pois que remonta à Terra-Mãe, à Mãe primordial
16. p 175, 18. p M.
17. Cf pp. 100 ¢ 111
esta pasta mole apanhada em um monte de pedra, era esta
fava, tomada profundo significa, ao contrério, de grande Profundldadc e
na carne maciça e inabalável de Speranza” 1º,
Enquanto o trabalho não de fraca superfície. E, contudo, um sentimento como o
conservava a forma de objetos como
uma porção de vestígios acumulados, amor se mede bem melhor, ao que parece, se é verdade que
a involução renuncia a
todo objeto formado em proveito de um interior da Terra e pode ser medido, pela importância de sua superf?cie d_o que
de um princípio de enterramento. Temos, porém, a impres- por seu grau de profundidade...” 2t Na superficie, primeiro
são de que as duas condutas assim tão diferentes são se Jevantam estes duplos ou estas Imagens aéreas; depois, no
singularmente complementares. De uma e de outra
sobrevoo celeste do campo, estes Elementos puros ¢ liberados.
parte
há frenesi, duplo frenesi definindo o momento da psicose e A ereção generalizada é a das superficies, sua retificagdo,
que aparecia, evidentemente, no retorno à Terra e à outrem desaparecide. Entdo os simulacros sobem e conver-
genealogia Cósmica do esquizofrênico, mas não menos já tem-se em fantasmas, na superficie da ilha e no vôo sobre o
no trabalho, na produção de objetos esquizofrênicos incon- céu. Duplos sem semelhanga e elementos sem constrangimen-
sumiveis, procedendo por amontoamento e acumulação 2. to são os dois aspectos do fantasma. Esta reestruturagio do
Aqui €, pois, a estrutura Outrem que tende ela prépria a mundo é a grande Saúde de Robinson, a conguista da grande
se dissolver: o psicético tenta aliviar a auséncia dos Saúde ou o terceiro sentido de “perda de outrem”,
outrem
reais instaurando uma ordem de vestigios humanos É aí que intervém Sextafeira. Pois o personagem
e 2
dissolução da estrutura organizando uma filiagio principal, como diz o titulo, é Sexta-feira, o jovem.
sobre-
-humana. Somente ele pode guiar e acabar a metamorfgsel começada
Neurose e psicose são a aventura da profundidade. por Robinson e lhe revelar seu sentido, o objetivo. Tudo
A
estrutura Outrem organiza a profundidadee pacifica-a, tor- isto, inocentemente, superficialmente. É Sexta-feira que
na-a possivel de ser vivida. Da mesma forma as perturba- destrói a ofdem econômica e moral instaurada por Robin-
ções desta estrutura implicam um desregramento, um enlou- son na ilha, É ele que faz Robinson deixar de gostar da
quecimento da profundidade, como um reforno agressivo do encosta, tendo feito crescer, segundo seu próprio prazer,
sem-fundo que não podemos mais conjurar. Tudo perdeu sen- uma outra espécie de mandrágora. É ele que faz exp_lodu'
tido, tudose torna simulacr e vestígio,
o objeto do a ilha, fumando o tabaco proibido perto de um barril de
trabalho, mesmo o ser amado, mesmo o mundo em si mes- pólvora e restitui ao céu, a terra, assim como as águas
mo é o eu no mundo... A menos, contudo, que haja uma e o fogo. É ele que faz voar e cantar o bode morto
salvação de Robinson. À menos que Robinson invente uma (= Robinson). Mas é ele sobretudo que apresenta a Robin-
nova dimensão ou um terceiro sentido para a expressão son a imagem do duplo pessoal, como complemento ne,cessfi-
“perda de outrem”. A menos que a ausência de outrem e a rio‘da imagem da ilha: “Robinson vira ¢ revira esta questio
dissolução de sua estrutura não desorganizem simplesmente o consigo mesmo. Pela primeira vez ele emr_evé claxgm;n{e,
mundo, mas abram ao contrário uma possibilidade de salva-
sob o mestico grosseiro e estúpido que o irrita, 2 existência
ção. É preciso que Robinson volte à superfície, que descubra
as superfícies. possível de um outro Sexta-feira — como suspeitou outrora,
À superfície pura é, talvez, o que outrem nos
escondia. bem antes de descobrir a caverna e a encosta, uma outra
É talvez na superfície, assim como um vapor, que
uma imagem desconhecida das coisas se determina e, da ter- ilha, escondida sob a ilha administrada” 22. Enfim, é ele que
ra, uma nova figura enérgica, uma energia superficial sem conduz Robinson & descoberta dos Elementos Jivres, mais ra-
outrem possivel. Pois o céu não significa, em absoluto, uma dicais que as Imagens ou os Duplos, pois que os formam.
altura que seria somente o inverso da profundidade. Que dizer de Sexta-feira, senão que é travesso e moleque,
Na sua
Oposição com a terra profunda, o ar e o céu são a descricdo mas apenas na superfície? Robinson não deixará de ter sen-
de uma superficic pura e sobrevéo do campo desta superfi- timentos ambivalentes a seu respeito, só o salvando por acaso,
cie. O céu solipsista não tem profundidade: “Estranho pre- graças a um erro de tiro, quando, na realidade, queria
conceito que valoriza cegamente a profundidade em de matá-lo.
mento da superficie e que pretende que superficial significa Mas o essencial é que Sexta-feira não funciona em abso-
ndo de vasta dimensio, mas pouca profundidade, enquanto luto_como um outrem reencontrado. É muito tarde, poisA a
estrutura desapareccu. Ora ele funciona como um objeto in-
19. p oL sólito, ora como um estranho cúmplice. Robinson trata-o ora
20. Cf as páginos de Henri Michaux descrevendo uma mesa fabricada
Por um esquizofrénico, Les
A fabricagio por Robinson Grandes Epreuves de lesprit, Gallimard, p. 156 ¢ s
de um barco transportável não deixa de ter ana-
como um escravo que procura integrar à ordem econômica
logia com isto. 21. pp. 58-59.
220 p 119
da ilha, pobre simulacro, ora como o detentor de um segredo definida e fundir um corpo feminino 28”. Robinson não
novo que ameaça à ordém, misterioso fantasma. Ora quase pode mais apreender-se a si mesmo ou apreender Sexta-feira,
como um objeto ou um animal, ora como se Sexta-feira fosse
do ponto de vista de um sexo diferenciado. A psicanilise
um além de si mesmo, um além de Sexta-feira, o duplo ou a está livre para ver nesta abolição do desvio, nesta separagio
imagem de si. Ora aquém de outrem, ora além. A diferença da causa do desejo com relação ão objeto, neste retorno aos
é essencial. Pois outrem, no seu funcionamento normal, ex- elementos, o signo de um instinto de morte — instinto
prime um mundo possível; mas este mundo possível existe tornado solar.
em nosso mundo e, se não é desenvolvido ou realizado sem Tudo é aqui romanesco, inclusive a teoria, que se con-
mudar a qualidade de nosso mundo, ele o é, pelo menos, se- funde com uma ficgdo necessdria: uma certa teoria de outrem.
gundo leis que constituem a ordem do real em geral e a su- Devemos primeiro conceder a maior importéncia à concep-
cessão do tempo. Sexta-feira funciona bem diferentemente, ção de outrem como estrutura: não “forma” particular em
ele que indica um outro mundo suposto verdadeiro, um du- um campo perceptivo (distinta da forma “objeto” ou da for-
plo irredutível unicamente verdadeiro e neste outro mundo ma “animal”), mas sistema condicionando o funcionamento
um duplo de outrem que ele não é mais, que não pode mais do conjunto do campo perceptivo em geral. Devemos pois
ser. Não um outrem, mas um outro do outrem. Não uma distinguir Outrem a priori, que designa esta estrutura e este-
réplica, mas um Duplo: o revelador dos elementos puros, -outrem-aqui, aquele-outrem-ld, que designam os termos reais
aquele que dissolve os objetos, os corpos e a terra. “Parecia efetuando a estrutura neste ou naquele campo. Se este outrem
que (Sexta-feira) pertencia a um outro reino, em oposigio aqui é sempre algném, eu para vós, vós para mim, isto &,
ao reino telirico de seu senhor sobre o qual ele tinha efei- em cada campo perceptivo o sujeito de um outro campo,
tos devastadores por pouco que tentdssemos aprisiona-lo af.” outrem g p¥iori, em compensagdo, não é ninguém, pois a es-
Eis por que ele não ¢ nem mesmo para Robinson objeto de trutura é transcendente aos termos que a efetuam. Como de-
desejo. Robinson pode muito bem envolver seus joelhos, con- finila? A expressividade que define a estrutura Outrem é
templar seus olhos, ele o faz só para apreender seu duplo constituida pela categoria do possível. Outrem a priori é a
luminoso que quase não retém mais do que os elementos existência do possível em geral: na medida em que o possivel
livres escapados de seu corpo. “Ora, tratando-se de minha existe somente como expresso, isto é, em um exprimente que
sexualidade, dou-me conta de que nem uma só vez Sexta-feira não se parece a ele (torção do expresso no exprimente).
despertou em mim uma tentação sodomita. O que se explica, Quando o herói de Kierkegaard reclama: “possível, possível,
em primeiro lugar, porque ele chegou muito tarde: minha por favor, senão sufoco”, quando James reclama o “oxigênio
sexualidade já se tornara elementar e era para Speranza que da possibilidade”, nada mais fazem do que invocar Outrem
ela se dirigia... Não se tratava para mim de regredir em a priori. Tentamos mostrar neste sentido como outrem con-
direção e amores humanos, mas de mudar de elemento sem dicionava o conjunto do campo perceptivo, a aplicação a este
sair do elementar.” Outrem baixa: baixa os elementos na camnpo das categorias do objeto percebido e das dimensões
terra, a terra em corpos, os corpos em objetos. Mas Sexta- do sujeito que percebe, enfim, a distribuição dos outrem par-
-feira, inocentemente, endireita de novo os objetos e os cor- ticulares em cada campo. Com efeito, as leis da percepção
pos, leva a terra até o céu, libera os elementos. Endireitar para a constituição de objetos (forma-fundo etc.), para a de-
de novo, retificar é também encurtar. Outrem é um estra- terminação temporal do sujeito, para o desenvolvimento su-
nho desvio, ele baixa meus desejos sobre os objetos, meus
cessivo dos mundos, pareceram-nos depender do possível
amores sobre os mundos. A sexualidade não estd ligada 2 como estrutura Qutrem. Mesmo
o desejo, quer seja desejo
geragdo a ndo ser em um tal desvio que faz passar por outrem de objeto ou desejo de outrem, depende da estrutura. Não
primeiro a diferenga dos sexos. É primeiro em outrem,
desejo objeto a não ser como expresso por outrem no modo
por
outrem, que a_diferenca dos sexos do possível; não desejo em outrem senão os mundos possí-
veis que exprime. Outrem aparece como o que organiza os
Inst Elementos em Terra, a terra em corpos, os corpos em objetos
e que regula e mede ao mesmo tempo o objeto, a percepção
e o desejo. '
Qual é o sentido da ficção “Robinson”? Que é uma
instituições e de mitos que permitem ao desejo tomar corpo, robinsonada? Um mundo sem outrem. Tournier supõe que
no duplo sentido da palavra, isto é, de se dar uma forma 23. p 99
através de muitos sofrimentos Robinson descobre e conquis- to que nem a vitima nem o cúmplice funcionam como
ta uma grande Saúde, na medida em que as coisas acabam não é ue
outros 2. Por exemplo, porq ele queira, não porque
por se organizar bem diferentemente do que o fariam com
outrem presente, porque liberam uma imagem sem semelhan- le ca
ça, um duplo delas próprias ordinariamente recalcado e que utrem, e vive sob uma outra estrutura servindo de.
este duplo, por sua vez, libera puros elementos ordinaria- condição a seu mundo vivo, que apreende os outros seja
mente prisioneiros. Não é o mundo que é perturbado pela como vítimas seja como cúmplices, mas em nenhum dos c‘lo}s
ausência de outrem, ao contrário, é o duplo glorioso do mun- casos pdo os apreende como outrem, sempre 20 contrário
do que se acha escondido por sua presença. Eis a descoberta como Outros do que outrem. AÍí, amc’la, é chocanic ver em /
de Robinson: descoberta da superfície, do além elementar, Sade até que ponto as vítimas e os cúmplices, com sua re-
do Outro para Outrem. Então por que a impressão de que versibilidade necessária, não são em absoluto captados como
esta grande Saúde é perversa, que esta “retificação” do mun- outrem: mas ora como corpos detestáveis, ora oomoflup]os
do e do desejo é também desvio, perversão? Robinson, con- ou Elementos aliados (não sobrel‘udo duplos do herdi, mas
tudo, não tem nenhum comportamento perverso. Mas qual- duplos de si mesmos, sempre saídos de seu corpo à con-
quer estudo sobre a perverssão, qualquer romance sobre a atdmicos)?. B )
quista dos elementos
Derversão esforça-se por manifestar a existência de uma “es- O contra-senso fundamental sobre a perversão consis-
trutura perversa” como principio do qual os comportamentos fenomenologia apressada dçsA compor-
te, em razio de uma
perversos decorrem eventualmente. Neste sentido a estrutura em virtude também das exigéncias do
tamentos perversos,
perversa pode ser considerada como aquela que se opõe à relacionar a perversão a certas o.fensas feitas a
direito,
estrutura Outrem e se substitui a ela. E da mesma forma
como
outrem. E tudo nos persuade, do ponto de vista do compor-
os outrem concretos são termos atuais e variáveis efe- tamento, de que a perversio não é nada sem a presença de
tuando esta estrutura — outrem, os comportamentos do per- o exibicionismo ew.lefs,, do ponto
outrem: o voyeurismo,
Verso, sempre pressupondo uma ausência fundamental de 2
de vista da esirutura, é preciso dizer o contririo: é porque
outrem, são somente termos variáveis outra estrul\n'ai
efetuando a estrutura estrutura Outrem falta, substituida por uma
perversa. que os “outros” reais ndo podem mais desempenharo pape!
B Por que tem o perverso a tendéncia para se imaginar de termos efetnando a primeira estrutura ’d_esaparemda, mas
um anjo radioso, de hélio e de fogo? Por que ele tem, ao somente, na segunda, o papel de corpos vitimas (no sentido
mesmo tempo, contra a terra, contra a fecundação e os obje- ito particular que O perverso atribui aos cmgos_) dou o
tos de desejo, este ódio que encontramos já sistematizado em apel de cúmplices-duplos, cúmplices-elementos (aí ainda no
Sade? O romance de Tournier não se propoe explicar, mas sentido muito particular do perverso). lefrxe_r—/
mostra. Por aí ele reencontra, com a ajuda de meios bem so é um mundo sem outrem, logo, :gq _mundo 's’elx?mp‘:::x‘:;k
diferentes, os estudos psicanaliticos recentes que parecem
: é o que possibilita. O mundo perverso é
dever renovar o estatuto do conceito de perversio e primeiro guliu⪠eaºcã g; “do necessário substitui completamente
fazem com que ele saia desta incerteza moralizante em que .a do possível: estranho spinozismo em que falta o oxigênio,
era mantido pela psiquiatria e o direito reunidos. Lacan e em proveito de uma energia mais elementar_ e fie um ar ra-
. Sua escola insistem profundamente: sobre a necessidade de (o Céu-Necessidade). Toda perversio é um 'ogmeàm-
refeito
e COmpreender os comportamentos perversos 2 partir de uma cidio, um altruicidio e, por conseguinte, um assassinio | dos
estrutura e de definir esta estrutura que condiciona os pré- possiveis.- Mas o altruicidio não é cometido pelo comporta-
prios comportamentos; sobre a maneira pela qual o desejo “mento perverso, mas sim suposto na estrutura perversa. o
sofre_uma_espécie de_deslocamento nesta_estrutura e pela
qual a Causa do desejo sedestac
assim do a
objefo; sobre a ã
letinea Le Désir e1 i ed. du Seull,il, 1967.1967.
la Perversion, OO
]n]g?'de CG‘;lysch:o]:l“o, “Estado das perversdes sexuais a partir do fetichismo”.
maneira pela qual a diferenca dos sexos é desautorada pelo Gpresenta observações muito interessantes, embora talvezwm pouço rápidas, d
“ 25:26).
dos sexos” e sobre o “duplo”sem 3 (p. vitima
perverso, em proveito de um mundo andrégino dos duplos; $oon Clavreul, 0. casel perverso”, mostra que ão”, cf. p. ou110 o e cúmplics
sol e
sobre a anulação de outrem na perversio, sobre a posição voupam o lugar de outram (sobre a “dessubjetivaç
mesmo autor, «Observações
Gistiação da Causa e do Objeto do desejo, cf, do Psyohanalyee,
de um “além do Outro” ou de um Outro de outrem, como Sobre a questão da realidade nas perversões”,no Laestruturalismo nº 8 p 290
se outrem desprendesse aos olhos do perverso e s). Parece que estes estudos, fundados de Lacan e
sua propria análise da Verleugnung, estão em desenvolvimento.
metdfora; sobre a “dessubjetivagdo” perversa — pois é cer- 25. Em Sade, o tema constante das combinações de moléeulas.
que não impede que o perverso seja perverso não constitu-
O. Lola e a FISSUTA
cionalmente, mas no desfecho de uma aventura que passou
seguramente pela neurose e rogou a psicose. É o que sugere
Tournier neste romance extraordinário: é preciso imaginar
Rnbmsgn perverso; a única robinsonada é a própria
perversão.

É na Besta Humana que aparece o célebre texto:


A familia não tinha aprumo, muitos possufam uma fissura.
Ele sentia muito bem, em certas horas, esta fissura hereditária; não
que ele tivesse má saúde, pois a apreensão e a vergonha de suas
crises haviam bastado para emagrecê-lo outrora; mas era, no seu
ser, súbitas perdas de equilíbrio, tais como brechas, orifícios pelos
quais seu eu lhe escapava, em meio a uma espécie de grande
fumaça que tudo deformava...

Zola langa um grande tema, que será retomado sob


outras formas e com outros meios pela literatura moderna e
sempre numa relação privilegiada com o alcoolismo: o te-
ma da fissura (Fitzgerald, Malcolm Lowry).
É muito importante que Jacques Lantier, o herói de
A Besta Humana seja vigoroso, sadio, de boa saúde. É que
a fissura não designa um caminho pelo qual passariam ele-
mentos mórbidos ancestrais, marcando o corpo. Ocorre de
fato a Zola exprimir-se assim, mas ele o faz por comodidade.
E é realmente assim para certos personagens, os macilentos,
OS nNervosos, mas precisamente não são eles que carregam a
fissura ou não é por isso somente que a carregam. A he-
reditariedade não é o que passa pela fissura, ela é a própria
fissura: a fratura ou o orifício, imperceptiveis. Em seu ver-
dadeiro sentido, a fissura não é uma passagem para uma
hereditariedade mórbida, em si mesma, ela é toda a heredita-
riedade e todo o mórbido. Ela não transmite nada além de
si mesma, de um corpo são para um outro corpo são dos
Rougon-Macquart. Tudo repousa no paradoxo desta heredi-
tariedade confundida com seu veículo ou seu meio, deste
transmitido confundido com sua transmissão ou desta trans-
missão que não transmite nada além de si mesma: a fissura
cerebral em um corpo vigoroso, a fissura do pensamento. Através da fissura, o instinto procura o objeto que lhe
Salvo acidentes que teremos oportunidade de ver, o soma é corresponde nas circunstancias historicas e sociais de seu gé-
vigoroso, sadio. Mas o germe é a fissura nada mais do que nero de vida: o vinho, o dinheiro, o poder, a mulher. ..
a fissura. Nestas condições, esta toma um aspecto de des- Um dos tipos femininos preferidos de Zola é a nervosa, es-
tino épico, passando de uma história ou de um corpo a magada pela abundancia de seus cabelos negros, passiva,
outro, formando o fio condutor dos Rougon-Macquart. não revelada a si mesma e que se soltará no encontro (tal
O que é que se distribui em torno da fissura, o que é era já Teresa em Thérése Raquin, antes da série dos Rou-
que formiga nas suas bordas? O que Zola chama de tem- gon, mas também Séverine em A Besta Humana. Terrivel
peramentos, instintos, “os gordos apetites”. Mas o tempera- & encontro entre os nervos e o sangue, entre um tempera-
mento ou o instinto não designa uma entidade psicofisio- mento nervoso ¢ um temperamento sangiiineo, que reproduz
16gica. É uma nogdo muito mais rica e concreta, uma nogéo a origem dos Rougon. O encontro faz ressoar a fissura. E
de romance. Qs instintos designam em geral condicbes de que os personagens que não são da família Rougon, assim
vida e de sobrevivéncia, condições de conservagio de um como Séverine, intervém ao mesmo tempo como objeto aos
determinado género de vida em um meio histérico e social quais se fixam o jnstinto de um Rougon, mas também como
(aqui, o Segundo Império). Eis por que os burgueses de seres providos eles préprios de instintos e de temperamento
Zola podem facilmente chamar de virtudes seus vicios e suas e, enfim, como cúmplices ou inimigos, dando testemunho, por
covardias, suas ignominias; eis por que, inversamente, os po- sua propria conta, de uma fissura secreta que vem ajuntar-se
bres são freqtientemente reduzidos a “instintos” como o al- à outra. A fissura-aranha: tudo culmina, na familia Rou-
coolismo, exprimindo suas condigdes histéricas de vida, sua gon-Macquart, com Nana, sadia e boa menina no fundo,
maneira Gnica de suportar uma vida historicamente determi- em seu corpo vigoroso, mas que se faz objeto para fascinar
nada. Sempre o “naturalismo” de Zola é histérico e social. os outros e comunicar sua fissura ou revelar a dos outros
O instinto, o apetite, tém pois figuras diversas. Ora ele ex- — imundo germe. De onde também o papel privilegiado
prime a maneira pela qual o corpo se conserva em um meio do álcool: é gragas a este “objeto” que o instinto opera sua
favorável dado; neste sentido, ele proprio é vigor e saúde. mais profunda junção com a propria fissura.
Ora ele exprime o género de vida que um corpo inventa O encontro do instinto e do objeto forma uma idéia
para fazer girar em seu proveito os dados do meio, com o fixa, não um sentimento. Se Zola romancista intervém nos
risco de destruir os outros corpos; neste sentido, ele é po- seus romances, é primeiro para dizer aos leitores: atengdo,
tência ambigua. Ora exprime o género de vida sem o qual não acreditem que se trate de sentimentos. Célebre é a insis-
um corpo não suportaria sua existéncia historicamente deter- téncia com a qual Zola, tanto em 4 Besta Humana, como em
minada em um meio desfavoravel, com o risco de se destruir Thérése Raquin, explica que os criminosos não tém remor-
a si mesmo; neste sentido, o alcoolismo, as perversdes, as sos. É os amantes ndo tém igualmente amor — salvo quan-
doengas, mesmo 2 senilidade são instintos. O instinto tende do o instinto soube verdadeiramente “colar de novo” tornar-
a conservar, enquanto exprime sempre o esforgo de perpetuar -se evolutivo. Nio se trata de amor, não se trata de remor-
um modo de vida; mas este modo e o proprio instinto podem sos etc., mas de torgdes, de estalidos ou, ao contrério, de
ser destruidores não menos do que conservadores no senti- acalmias, de apaziguamentos, nas relações entre tempera-
do restrito da palavra. O instinto manifesta a degenerescén- mentos sempre estendidos por cima da fissura. Zola é ex-
cla, a precipitagdo da doenga, a perda de saúde não menos celente na descricio de uma calma breve antes da grande
do que a saúde mesma. Sob todas as suas formas, o instinto decomposição (“era certo agora, havia uma desorganização
não se confunde nunca com a fissura, mas mantém com ela progressiva, como uma infiltração do crime. ..”). Esta de-
relagBes estreitas varidveis: ora a recobre ou a cola de novo negação do sentimento em proveito da idéia fixa tem eviden-
bem ou mal e por um tempo mais ou menos longo, gragas temente virias razbes em Zola. Invocaremos primeirc a
4 saúde do corpo; ora ele a alarga, lhe d4 uma outra orien- moda do tempo, a importincia do esquema fisiologico. A
tagdo que faz explodir os pedagos, provocando o acidente na “fisiologia”, desde Balzac, desempenhava o papel literdrio
decrepitude do corpo. É no Assomoir, por exemplo, em Ger- hoje conferido à psicandlise (fisiologia de um pais, de uma
vaise, que o instinto alcodlico vem duplicar a fissura como profissdo etc.). Mais ainda, é verdade que deste Flaubert
tara original. (Deixamos, por enquanto, de lado a questdo o sentimento é inseparavel de um malogro, de uma faléncia
de saber se há instintos evolutivos ou ideais, capazes enfim ou de uma mistificagio; e o que o romance conta é a impo-
de transformar a fissura.) téncia de um personagem em constituir uma vida interior.
Neste sentido, o naturalismo introduziu no romance três tipos similar ou de transformagdo”, com caráter difuso, definindo
de personagens, o homem da falência interior ou o frustrado, uma “familia neuropatoldgica” 1. Ora, o interesse de uma
o homem das vidas artificiais ou o perverso, o homem tal distingo é que se substitui completamente à dualidade
das
sensações rudimentares e das idéias fixas ou o animal. do hereditdrio e do adquirido ou mesmo torna esta dualida-
Mas
em Zola, se o encontro do instinto e de seu objeto não chega de impossivel. Com efeito, a pequena hereditariedade ho-
a formar um sentimento, é sempre porque se faz por cima móloga dos instintos pode muito bem transmitir caracteres
da fissura, de uma a outra borda. O grande vazio interior adquiridos: é mesmo inevitdvel na medida em que a forma-
é causado pela existência da fissura. Todo o naturalismo ção do instinto não é separdvel de condigBes histéricas e
adquire então uma nova dimensão. ‘sociais. Quanto à grande hereditariedade dissimilar da fissu-
Há, pois, em Zola, dois ciclos desiguais coexistentes, 13, ela tem com o adquirido uma relação completamente di-
in-
terferindo um com o outro: a pequena e a grande heredita- ferente, mas não menos essencial: trata-se desta vez de uma
riedade, uma pequena hereditariedade histórica e uma gran- potencialidade difusa que ndo se atualizaria se um adquirido
de hereditariedade épica, uma hereditariedade somática transmissivel, de caréter interno e externo, não lhe desse tal
e uma
hereditariedade germinal, uma hereditariedade dos instintos ou tal determinagio. Em outros termos, se é verdade que
e
uma hereditariedade da fissura. Por mais forte e constante os instintos não se formam e ndo encontram seus objetos
que seja a junção entre as duas, elas não se confundem, sendo nas bordas da fissura, a fissura inversamente não pros-
A
pequena hereditariedade é a dos instintos, no sentido em que segue em seu caminho, não estende sua tela, não muda de
as condições e gêneros de vida dos ancestrais ou dos pais diregdo, não se atualiza em cada corpo sendo em relagdo
podem se enraizar no descendente e agir nele como com os instintos que lhe abrem a via, ora colando-a de novo
uma
natureza, por vezes a gerações de distância: por um pouco, ora alargando-a e aprofundando-a, até & quebra
exemplo,
um fundo de saúde se reencontra ou então a degradação final, também, assegurada pelo trabatho dos instintos. A cor-
alcoólica passa de um a outro corpo, as sínteses instinto- relação é pois constante entre as duas ordens e atinge seu
robjeto se transmitem ao mesmo tempo que os modos de mais alto ponto quando o instinto se tornou alcodlico e a
vida se reconstituem. Quaisquer que sejam os saltos que fissura, rachadura definitiva. As duas ordens se esposam es-
opera, esta hereditariedade dos instintos transmite alguma treitamente, anel envolvido por um anel major, mas nunca
coisa de bem determinado; e o que transmite, ela o “repro- se confundem.
duz”, ela é hereditariedade do Mesmo. Não é assim em Ora, se é justo observar a influéncia das teorias cien-
absoluto da outra hereditariedade, a da fissura, pois, nós tificas ¢ médicas sobre Zola, como seria injusto deixar de
o
vimos, a fissura não transmite nada além de si mesma. Ela sublinhar a transformagio que ele as faz sofrer, a maneira
não está ]j.gada a este ou aquele instinto, a uma determina- pela qual ele recria a concepção das duas hereditariedades, a
ção orgânica interna e muito menos a tal acontecimento poténcia poética que dá a esta concepção para dela fazer a
exterior que fixaria um objeto. Ela transcende os géneros estrutura nova do “romance familiar”. O romance integra
de vida, assim, vai de maneira continua, imperceptivel e si- entdo dois elementos de fundo que lhe eram até entdo es-
lenciosa, fazendo toda a unidade dos Rougon-Macquart. A tranhos: o Drama, com a hereditariedade histérica dos ins-
fissura ndo transmite senão a fissura. O que ela transmite tintos, o Epos, com a hereditariedade épica da fissura. Nas
não se deixa determinar como isto ou aquilo, mas é forgosa- suas interferéncias os dois formam o ritmo da obra, isto é,
mente vago e difuso. Não transmitindo senão a si mesma, asseguram a repartição entre 0s siléncios e os ruidos. São os
¢la ndo reproduz o que transmite, não reproduz um “mesmo”, instintos, os “gordos apetites” dos personagens que preen-
não reproduz nada, contentando-se em avangar em siléncio, chem os romances de Zola com seus ruidos, formando um
em seguir as linhas de menor resisténcia, sempre obliquando, prodigioso rumor. Mas o siléncio que vai de um romance
prestes a mudar de direção, variando sua tela, perpetuamente
herdada do Outro. 1. Em um artigo sobre Freud e a ciência Jacques Nassif analisa bre-
vemente esta concepção de hereditariedade, tal como ela se encontra, por
Observou-se com freqiiéncia a inspiração cientifica de exemplo, em Charcot. Ela abre o caminho no reconbecimento da influência
Z.cl'a. Mas sobre o que recaj esta inspiração, vinda
dos acontecimentos exteríores. “£ claro que o termo família é tomado agui
da Me- em suas dvas acepções: a do modelo da classificação e a do laço de parentesco”,
dicina de seu tempo? Ela recai precisamente sobre a distin- De um lado as doenças do sistema mervoso constituem uma só família, de
outro lado esta família está indissoluvelmente unida pelas leis da hereditarieda-
ção de duas hereditariedades, distinção que se elaborava no de. Estas permitem explicar o fato de não ser uma mesma doença & se
pensamento médico contemporâneo: uma hereditariedade dita transmitir eletivamente, mas só uma disposição meuropática difusa que, Dos-
teriormente e em função de fatores nãohereditários, poderá especializar-se em
homologa e bem determinada e uma hereditariedade dita “dis- uma doenga distinta”. (Cahiers pour Fanalyse, nº O, 1968). Evidentemen.
te, & família Rougon Macquart já tem estes dois sentidos.
ao outro e sob cada romance, pertence essencialmente à fis- lado: primeiro das mulheres, depois tambépa do vinho, do
sura sob o ruído dos instintos, à fissura prossegue e se trans- dinheiro, das ambições que poderia ter legitimamente. Ele
mite silenciosamente. renunciou aos instintos; seu único objeto é a miquina. O
O que a fissura designa ou antes o que ela é, este va- que ele sabe é que a fissura introduz a morte em todos os
zio, é a Merte, o Tostinto de Morte. Os instintos podem instintos, persegue seu trabalho neles, por eles; e que, na
muito bem falar, fazer barulho, agitar-se, não podem origem ou termo de todo instinto, trata-se de matar e t_alvez,
é re-
cobrir este siléncio mais profundo, nem esconder aquilo também, de ser morto. Mas, este siléncio que Lant}er se
de
que saem e no qual entram de novo: o instinto de morte, que impõe, para opd-lo ao siléncio mais profundo da flssura,
não é um instinto entre os outros, mas a fissura em pessoa, acha-se, de repente, rompido: Lantier viu, num ‘clarau,‘ um
em torno da qual todos os instintos formigam. Em sua ho- assassínio cometido em um trem que passava e viu a vítima
menagem a Zola, a0 mesmo tempo profunda e reticente, jogada na estrada; adivinhou quem eram os assassinos, ROP—
Cé-
line encontrava acentos freudianos para marcar esta presen- baud e sua mulher, Séverine. E ao mesmo tempo que se poe
ça universal do instinto de morte silencioso, sob os a amar Séverine e redescobre o dominio do instinto, é a
instintos
ruidosos: “O sadismo unânime atual procede antes de tudo morte que transborda nele, pois que este amor veio da morte
de um desejo de nada profundamente instalado no homem e deve a ela voltar.
e
sobretudo na massa dos homens, uma espécie de impaciéncia A partir deste crime cometido pelos Roubaud desen-
amorosa, quase irresistivel, uninime, pela morte. .. Nossas volve-se todo um sistema de identificagdes e de repetições
palavras vão até os instintos e por vezes tocam-nos,
mas ao que forma o ritmo do livro. Primeiro Lantier se idenh.flca
mesmo tempo aprendemos que ai se definha e para sempre, imediatamente ao criminoso: “o outro, o homem entrevisto
nosso poder. .. No jogo do homem o Instinto com a faca na mão, havia ousado! Ah, não ser covarde,
de morte, e
instinto silencioso está decididamente bem .colocado,
ao satisfazer-s¢, enfim, enfiar a faca! Ele, cujo desejo disto
lado talvez do egoísmo” 2. Mas pense o que quiser Céline, torturava há dez anos!” Roubaud, de seu lado, matqu o pre-
já era esta a descoberta de Zola: como os gordos
apetites sidente por ciúme, tendo compreendido que este violentara
gravitam em torno do instinto de morte, como formigam por
Séverine quando crianga e lhe fizera esposar uma mulher
uma fissura que é a do instinto de morte, como a morte
conspurcada. Mas, após o crime, ele se idenufx'ca de uma
surge sob todas as idéias fixas, como o instinto de morte se
certa maneira ao presidente: por sua vez, ele da.a Lªn(lfl'
* faz reconhecer sob todos os instintos, como ele constitui por
sua mulher, conspurcada e criminosa. E se Ifanner se “poe
si só a grande hereditariedade, a fissura. Nossas palavras
2 amar Séverine é porque ela participou do crime: ela‘ era
não vão senão até aos instintos, mas é da outra instância
, do como o sonho de sua carne”. Entdo produziu-se a u!p].\cc
Instinto de morte que clas recebem seu sentido e seu não- acalmia: acalmia de torpor no lar de Roubaud; acalmia de
-senso, assim como suas combinações. Sob todas as histó- Séverine, que reencontra sua inocéncia em seu amor por
rias dos instintos, o epos da morte. Dir-se-ia primeiro que Lantier; sobretudo acalmia de Lantier, que reencontra com
os instintos recobrem a morte e fazem-na recuar; mas é pro-
Séverine a esfera dos instintos e que imagina ter preenchido
visório e mesmo seu ruído se alimenta de morte. Como
se a fissura: nunca, acredita, desejari matd-la, ela. que mªf.º“
diz na Besta Humana a propósito de Roubaud, “e na noite
(“sua posse tinha um encanto poderoso, ela\ o havia curado™).
turva de sua carne, no fundo de seu desejo Sujo que
san- Mas já uma triplice desorganizagio sucede a acalmia, segugdo
grava, bruscamente levantou-se a necessidade da morie”,
cadéncias desiguais. Roubaud, desde o crime, Sllbs'llflll. o
E Misard tem como idéia fixa a descoberta das economias
álcool a Séverine, como objeto de seu instinto. - Sevenpe
de sua mulher, mas não pode perseguir sua idéia senão atra-
encontrou um amor instintivo que lhe restitui a inocência;
vés do assassinato da mulher e da demolição da casa, num mas não pode se impedir de misturar a ela uma confissão
combate silencioso. explícita a seu amante que, no entanto, adivinhou tudo.
O essencial de 4 Besta Humana é o instinto de morte E, numa cena em que Séverine esperou Lantier, exatamen-
no personagem principal, a fissura cerebral de Jacques Lan- te como Roubaud antes do crime esperara Séverine, ela diz
tier, mecânico de locomotiva. Jovem, ele pressente tão bem tudo ao amante, detalha a confissão, precipitgndo seu
a maneira pela qual o instinto de morte se disfarça sob todos desejo na lembrança da morte (“o arrepip do desejo perdia-
os apetites, a Idéia de morte sob todas as idéias fixas, a se em um outro arrepio de morte”). Livre, ela confessa o
grande hereditariedade sob a pequena, que se mantém isola- crime a Lantier, assim como, constrangida, ela cçnfessaxa
2. “Céline 1, L'Herno, nº 3, p. 191 a Roubaud suas relagdes com o presidente, as quais provo-
caram o crime. E esta imagem de morte que despertou, ela
não pode mais conjurá-la, desviá-la a não ser projetando-a ainda mais claramente do que se ele se suicidasse e o conduz
sobre Roubaud, levando Lantier a matar Rouband (“Lantier com Pecqueux para uma morte comum.
viu-se com a faca na mão, golpeando Roubaud na garganta, A força de Zola está em todas estas cenas em eco, com
assim como este golpeara o presidente. ..”). mudanga de parceiros. Mas o que é que assegura a distri-
buição das cenas, a repartição dos personagens ¢ esta lógica
Quanto a Lantier, a confissdo de Séverine não lhe ensi-
nou nada, mas terrificou-o. Ela não deveria ter falado. A do™instinto? Seguramente, o trem. O romance abre-se com
uma espécie de balé das maquinas na estagdo. Mas, acima
mulher que ele amava e que lhe era “sagrada” porque en-
de tudo, a breve visdo do assassinato do presidente é prece-
volvia mele a imagem de morte, perdeu seu poder confes-
dida, para Lantier, escandida e seguida pelos trens que
sando, designando uma outra vitima possivel. Lantier não
passam, assumindo funções diversas (Cap} m). 'O trem
chega a matar Roubaud. Ele que não poderá matar senão o
aparece primeiro como o que desfila, espetáculo móvel reu-
o objeto do seu instinto. Esta situação paradoxal, em que
nindo toda a terra e pessoas de toda origem e de 'todo e
todo mundo em torno dele mata (Roubaud, Séverine, Mi-
qualquer país: contudo, espetáculo já para uma monbm}da,
sard, Flore) por razões tiradas de outros instintos, mas em para a vigia imóvel assassinada lentamente por seu marido.
que Lantier não chega a matar, ele que carrega, contudo,
o Um segundo trem surge, formando desta vez assim como um
puro instinto de morte — não pode ser desfeito senão pelo corpo gigante, mas também assim como tragando uma fissu-
asassinio de Séverine. Lantier aprende que a voz dos ra neste corpo, comunicando esta fissura à terra e as Fasas
instintos o enganara; que seu amor “instintivo” por Séverine — e “nas duas bordas ... a eterna paixdo e o eterno crime”.
só em aparéncia havia preenchido a fissura, que o ruido Um terceiro e um quarto trens permitem ver os elementos
dos instintos não tinha senão por um momento recoberto o da via, trincheiras profundas, aterros—bamcada5, túncis. .El‘!-
Instinto de morte silencioso. E que é Sevérine que é preciso fim, um sexto trem reúne as forças do inconsciente, da indi-
matar, para que a pequena hereditariedade reencontre a ferença e da ameaça, roçando de um lado a cabega_do as-
grande e que todos os instintos entrem na fissura: “tê-la sassinado e de outro o corpo do voyeur, puro Instinto de
como a terra, morta”; “o mesmo golpe dado no presidente, morte cego e surdo. Por mais barulhento que seja, o trem
no mesmo lugar, com a mesma raiva... e os dois assassi- é surdo e, gragas a isto, silêncio.
nios haviam se aproximado, um não era a lógica do outro?” A verdadeira significação do trem aparece com a lo-
Séverine sente em torno de si um perigo, que interpreta como comotiva que Lantier conduz, a Lison. No começo, ela
uma “barreira”, uma barragem entre ela ¢ Lantier, em vir- substituíra, aos seus olhos, todos os objetos de instinto aos
tude da existéncia de Roubaud. Não é, contudo, uma bar- is renunciava. E ela própria é apresentada como tendo
reira entre ambos, mas somente a fissura-aranha no cérebro um instinto, um temperamento, “uma necessidade muito
de Lantier, o trabaho silencioso. E Lantier não terd remorso, grande de ser lubrificada: os cilindros, sobretudo, deYora—
após o assassínio de Séverine: sempre esta saúde, este corpo vam quantidades impensaveis de graxa, uma fome continua,
são, “nunca ele passara tão bem, sem remorsos, com o ar uma verdadeira devassiddo”. Ora, o que se passa com a
aliviado, numa grande paz feliz”, “a memória abolida, os locomotiva não será o mesmo que se passa com a huma-
órgãos em um estado de equilíbrio, de saúde perfeita”, Mas, nidade, em que o rumor dos instintos remete a uma fissura
precisamente, esta saúde é ainda mais derrisória do que se secreta, a tal ponto que seria possivel dizer que é ela, a
o corpo tivesse caído doente, minado pelo álcool ou por um locomotiva, a Besta humana? No capitulo sobre a viagem
outro instinto. Todo este corpo pacífico, este corpo de saú- em plena neve, ela se engaja na via como em uma fi_ssura
de, não é mais do que um terreno rico para a fissura, um estreita em que não pode mais avançar. E quando sai, ela
alimento para a aranha. Ele terá necessidade de matar se acha fendida, “atingida em algum lugar por um golpe
outras mulheres. Com toda sua saúde, “viver tinha chegado mortal”. A viagem cavou essa fissura que o instinto, o ape-
ao fim, ele não tinha mais diante de si senão esta noite pro- tite de graxa, escondia. Além do instinto perdido, revela-se
funda, de um desespero sem limites, em que ele fugia”. E cada vez mais a miquina como imagem de morte, como puro
quando seu antigo amigo, Pecqueux, tenta fazê-lo cair do Instinto de morte. E quando Flore provoca o descarrila-
trem, mesmo o protesto de seu corpo, seus reflexos, seu ins- mento, não sabemos mais muito bem se é a maquina que é
tinto de conservação, sua luta contra Pecqueux, são uma assassinada ou se é ela que mata. E, na última cena do
reação derrisória, que oferece Lantier ao grande Instinto Tomance, a nova mdiquina, sem condutor, conduz para a
morte soldados embriagados que cantam.
“Desfilavam tantos homens e mulheres na tempestade dos
A locomotiva não é um objeto, mas evidentemente um trens ..., seguramente, a terra toda passava por lá, ... a
símbolo épico, grande Fantasma como há sempre em Zola luminosidade levava-os, ela não estava bem segura de tê-los
e que reflete todos os temas e as situações do livio. Em visto.” O duplo registro, en A Besta Humana, são os
todos os romances dos Rougon-Macquart, há um enorme instintos ruidosos e a fissura, o Instinto de morte silencioso.
objeto fantasmagórico que é também o lugar, o testemunho Tanto que tudo o que ocorre, ocorre em dois niveis, do
€ o agente. Sublinhou-se fregiientemente o caráter épico do amor e da morte, do soma e do germe, das duas hereditarie-
gênio de Zola, visível na estrutura da obra, nesta sucessão dades. A historia ¢ duplicada por um epos. Os instintos ou
de planos que esgotam, cada qual, um tema. Nós o com- os temperamentos ndo ocupam mais o lugar essencial. Os
preenderemos melhor se compararmos ÀA Besta Humana instintos fervilham em torno do trem e no trem, mas o
com Thérêse Raquin, romance anterior à série dos Rougon- préprio trem é a representagio épica do Instinto de morte.
-Macquart. Os dois se parecem muito: pelo assassinato que A civilizagio é avaliada de dois pontos, do ponto de vista
une o casal, pelo encaminhamento da morte ¢ o processo dos instintos que determina, do ponto de vista da fissura
de desorganização, pela semelhança de Thérêse e de Séve- que, por sua vez, a determina.
rine, pela ausência de remorso ou a denegação de interiori- No mundo que lhe é contemporineo, Zola descobre
dade. Mas Thérêse Raquin é a versão trágica, enquanto a possibilidade de restaurar o épico. A sujeira como
A Besta Humana é a versão épica. Em Thérése Raquin, o elemento de sua literatura, “a literatura patrida”, é a his-
que ocupa verdadeiramente a cena é o instinto, o tempera- téria do instinto sobre este fundo de morte. A fissura é o
mento, a oposição dos dois temperamentos de Thérêse e de deus épico para a histéria dos instintos, a condição que torna
Laurent; e se há uma transcendência, é somente a de um possivel uma histéria dos instintos. Para responder aqueles
juiz ou de uma testemunha inexorável que simboliza o des- que o acusam de exagero, o escritor não tem logos, mas
tino trágico. Eis por que o papel do símbolo ou do deus somente um epos, que diz que não iremos nunca muito
trágico é representado pela velha Mme Raquin, 2 mãe do longe na descrição da composigdo, uma vez que é preciso
assassinado, muda e paralisada, assistindo à decomposição ir até onde vai a fissura. Indo o mais longe possivel o Ins-
dos amantes. O drama, a aventura dos instintos, não se re- tinto de morte voltar-se-4 contra si mesmo? A fissura tem,
flete a não ser em um logos representado pelo mutismo da talvez, elementos para se ultrapassar ma diregdo que cria,
velha, por sua expressiva fixidez. Nos cuidados que Laurent ela que não é preenchida senão em aparéncia e por um ins-
lhe impõe, nas declarações teatrais que Thérêse lhe faz, há tante pelos gordos apetites? E uma vez que ela absorve
uma intensidade trágica raramente igualada. Mas, precisa- toã%os os instintos, pode talvez também operar a transmuta-
mente, é só a prefiguração trágica de A Besta Humana; ção dos instintos, voltando a morte contra si mesma. Fazer
Zola, em Thérêse Raquin, não dispõe ainda de seu método instintos que seriam evolutivos ao invés de serem alcoólicos,
épico que anima a empresa dos Rougon-Macquart. eróticos ou financeiros, conservadores ou destruidores?
Pois, o essencial da epopéia é um duplo registro em Observou-se fregiientemente o otimismo final de Zola e os
que os deuses, ativamente, desempenham à sua maneira e romances róseos entre os negros. Mas, interpretamo-los
num outro plano a aventura dos homens e de seus instintos. muito mal se invocarmos uma alternância; de fato, a litera-
O drama, então, reflete-se em um epos, a pequena genea- tura otimista de Zola não é diferente de sua literatura pú-
logia em uma grande genealogia, a pequena hereditariedade trida. É num mesmo movimento, que é o do épico, que os
em uma grande hereditariedade, a pequena manobra em uma mais baixos instintos se refletem no terrível Instinto de
grande manobra. Daí decorrem conseqiiências de vários Morte, mas também que o Instinto de morte se reflete em
tipos: o caráter pagão da epopéia, a oposição do destino um espaço aberto e talvez contra si mesmo. O otimismo
épico e do destino trágico, o espaço aberto da epopéia socialista de Zola quer dizer que, pela fissura, já é o prole-
contra o espaço fechado da tragédia e sobretudo a diferença tariado que passa. O trem como simbolo épico, com os
do símbolo no épico, e no trágico. Em 4 Besta Humana instintos que ele transporta e o instinto de morte que ele
não é mais simplesmente uma testemunha nem um juiz, é Tepresenta, está sempre dotado de um futuro. E as últimas
um agente e um lugar, o trem, que desempenha o papel de frases de A Besta Humana são ainda um canto ao futuro,
símbolo com relação à história, operando a grande manobra. quando, Pecqueux e Lantier jogados fora do trem, a máqui-
Ele traça também um espaço aberto na escala de uma nação na cega e surda leva para a morte soldados “estupidificados
e de uma civilização, contrariamente ao espaço fechado de de fadiga e bêbados, que cantavam”. Como se a fissura
Thérêse Raquin, dominado somente pelo olhar da velha.
não atravessasse e não alienasse o pensamento senão por ser
também a possibilidade do pensamento, aquilo a partir do
qual o pensamento se desenvolve e se recobre. Ela é o
obstáculo ao pensamento, mas também a morada e a potência
do pensamento, o lugar ¢ o agente. O último romance da
série, Le Docteur Pascal, indica este ponto final épico da
volta da morte contra si mesma, da transmutação dos
instintos e da idealização da fissura, no elemento puro do
pensamento “científico” e “progressista” em que queima a
árvore genealógica dos Rougon-Macquart.

O VISIVEL E O iNVISIVEL
M. Merleau-Ponty (Col. debates)

A LOGICA DA CRIAGAO LITERARIA


Kãte Hamburger (Col. estudos)

O SENTIDO E A MASCARA
Gerd A. Bornheim (Col. debates)

O que é o sentido?
Como a noção de fungdo logica pode ser aplicada &
Arte?
Qual a relagdo entre o sentido e a mascara?

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Vida e Valores do Povo Judeu, Cecil Roth e outros
A Lógica da Criação Literdria, Kithe Hamburger
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Histéria e Historiografia, Salo W. Baron
Fernando Pessoa ou o Poetodrama, José Augusto Seabra
As Formas do Contetido, Umberto Eco
Filosofia da Nova Misica, Theodor Adorno
Por Uma Arquitetura, Le Corbusier
Percepção e Experiéncia, M. D. Vernon
Filosofia do Estilo, G. G. Granger
A Tradição do Novo, Harold Rosenberg
Introdugdo à Gramdtica_ Gerativa, Nicolas Ruwet
Sociologia da Cultura, Karl Mannheim
Tarsila, Aracy Amaral
O Mito Ariano, Leon Poliakov
Ldgica do Sentido, Gilles Deleuze
Mestres do Teatro, John Gassner
O Regionalismo Gaúcho e as Origens da Revolugdo de 1930,
Joseph L. Love
Sociedade, Mudange e Politica, Helio Jaguaribe
Desenvolvimento Politico, Helio Jaguaribe
Crises e Alternativas da América Latina, Helio Jaguaribe

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