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Universidade de São Paulo

Departamento de Filosofia

Psicologias do fascismo
Curso completo – 2019

Prof. Vladimir Safatle


Psicologias do fascismo
Aula 1

Goebbels chega a minha fábrica. Manda os funcionários se alinharem em duas


filas, uma à direita, outra à esquerda. Eu devo ficar entre elas e fazer a
saudação a Hitler com o braço. Levo cerca de meia hora para levantar o
braço apenas alguns milímetros. Goebbels observa meu esforço como se
assistisse a um espetáculo, sem expressar nem aprovação nem desagrado.
Quando finalmente consigo erguer o braço até o fim, ele diz apenas seis
palavras “Eu não desejo a sua saudação”. Daí vira-se e vai na direção da
porta de saída. Eu fico exposto daquela maneira em minha própria
fábrica, entre meus próprios trabalhadores, com o braço levantado.
Fisicamente, só posso ficar assim. Então fixo o olhar no pé torto de
Goebbels, enquanto ele se retira, mancando. E permaneço nessa mesma
1
posição até acordar .

Este é o relato de um sonho de um pequeno industrial alemão em 1933,


ano da ascensão de Hitler à chancelaria. Um sonho no qual talvez se encontre
muito da realidade socio-econômica que seria a regra no país a partir de então.
Lá estava a figura do poder que reconstitui a sociedade a partir de novas
posições nas quais todos estão igualmente distantes do centro. O pequeno patrão
agora está ao lado de seus empregados, obrigado a fazer a saudação nazista como
todos. Mas há algo nos corpos que não se adestra muito bem. Os gestos são feitos
com esforço indescritível. Há algo nos corpos que sai de suas imagens
necessárias. O corpo de Goebbels é manco, o do pequeno patrão é exposto em
seu descontrole, em seu esforço para sustentar um gesto simples. “Eu não desejo
sua saudação” é o que diz o ministro da propaganda de Hitler. Esta é uma
maneira de dizer : “seus gestos são vazios, eles denunciam como falta-lhes o
sedimento da identificação”.
Neste sonho, toda uma dimensão libidinal de resistência e conflito
aparece. Por mais que o sujeito procure “fazer como”, há o corpo que resiste, há o
corpo que manca. Quando ele acordar e estiver na realidade socialmente
partilhada levantando o braço para fazer a saudação nazista, o sonho lhe
lembrará deste real. Ele lhe produzirá um sentimento de irrealidade que pode a
qualquer momento expo-lo em sua inverdade. O corpo lhe lembrará do caráter
real de seu próprio desejo e da irrealidade da vida social.

Uma abordagem psicológica de fenômenos sociais é desejável?

Começar com sonhos talvez seja uma maneira adequada de dar início a
um curso sobre o fascismo. Pois eles nos lembram não apenas como nossas

1
BERADT, Charlotte; ​Sonhos no Terceiro Reich,​ São Paulo: Três estrelas, p. 30
formações do inconsciente, nossos sintomas, angústias, desejos e fantasias são
expressões de dimensões fundamentais da vida social, como elas expressam
formas sociais de sofrimento e enraízam estruturas de resistência. Eles nos
lembram também como a verdade das dinâmicas imanentes a fenômenos sociais,
como o fascismo, exige a mobilização de uma dimensão propriamente
“psicológica”, mesmo que este termo vá, no decorrer de nosso curso, perdendo
sua distinção específica, até o ponto em que talvez não tenhamos mais certeza do
que falamos quando falamos de “psicológico”, até o ponto em que cheguemos à
conclusão de que precisaremos, talvez, de abandonar tanto o termo quanto seus
opostos. Pois no interior deste trajeto todos os termos que utilizávamos para
falar de indivíduos e sociedade se demonstrarão atravessados por uma urgente
necessidade de modificação.
Por isto, gostaria de utilizar este primeira aula para abordar duas
questões prévias que pedem resposta antes de iniciarmos um curso cujo título é
“Psicologias do fascismo”. A primeira é de ordem epistemológica e poderia ser
enunciada na forma seguinte: “Qual a razão para se propor uma abordagem
psicológica do fascismo?”, até porque não é claro o que entendemos por
“abordagem psicológica” neste caso. A outra questão é simples apenas em
aparência, a saber, o que entendemos neste contexto por “fascismo”? Estamos a
falar de um fenômeno totalitário historicamente situado nos anos trinta do
século passado ou de uma latência sempre presente nas formas hegemônicas de
vida no interior das sociedades liberais que, por isto, pode emergir a qualquer
momento? Se o segundo caso for correto, então qual sua especificidade, em que
condições poderíamos falar, de maneira analítica, de fascismo?
Uma questão como a anterior, relativa à abordagem psicológica do
fascismo, apenas declina outra, de ordem mais geral, a saber: “Não estaríamos a
produzir um erro categorial primário ao mobilizarmos categorias psicológicas
para descrever fenômenos sociais?”. Pois pode parecer inicialmente que
estaríamos a propor alguma forma de reducionismo que ignoraria a
complexidade dos sistemas de interação entre as múltiplas esferas sociais de
valores em prol de descrições sociais baseadas na maneira com que sujeitos
individualizados mobilizam representações mentais, crenças, afetos, desejos a
fim de aderir a certos papéis e modos de reprodução material da vida. Como se,
ao final, as relações sociais pudessem ser descritas como desdobramentos de
uma situação ideal originária na qual encontraríamos, preferencialmente, duas
consciências interagindo em relações de autoridade e poder. Como se
estivéssemos a falar que a expressão institucional do Estado, por exemplo,
tivesse sempre a tendência a submeter-se à figura de uma pessoa singular na
posição de líder. Estratégia que implicaria em um estranho resquício de
categorias da filosofia da consciência transpostas para o quadro da análise da
lógica do poder.
Como se não bastasse tal dificuldade epistemológica, haveria ainda um
problema mais grave que se explicita quando procuramos reconstruir a gênese
do que se convencionou chamar de “psicologia das massas”, conjunto do qual as
análise psicológicas do fascismo fariam parte. O campo da psicologia das massas
nasce no final do século XIX no interior de uma conjunção explícita entre:
criminologia, reflexão sociológica sobre o impacto social dos processo de
urbanização na Europa, reflexão política sobre movimentos de massa, além de
considerações sobre a psicologia do desenvolvimento. Em solo francês, eixo
central para o campo do qual estamos a falar, o termo não será exatamente
“psychologie des masses”, mas “psychologie des foules”, cuja tradução mais
aproximada seria “psicologia das multidões”. Os principais textos são escritos em
um prazo de não mais de quinze anos: ​Psychologie des foules, ​de Gustave Le Bon é
de 1895. ​Les lois de l’imitation​, do magistrado francês Gabriel Tarde é de 1890,
seu ​L’opinion et la foule​, de 1901. ​La folla delinquente,​ do jurista italiano Scipio
Sighele é de 1891. Por sua vez, ​Essai sur la psychologie des foules: considérations
médico-judiciaires sur les responsabilités collectives​, do médico francês Henry
Fournial é de 1892. Depois, as discussões sobre psicologia das massas alcançarão
o mundo anglo-saxão principalmente com os trabalhos de Wilfred Trotter a
respeito do instinto gregário (de 1908) e de William McDougall, que em 1920
escreverá: ​T​he Group Mind: A sketch of the principles of collective psychology with
some attempt to apply them to the interpretation of national life and character. ​O
texto de Freud sobre a psicologia das massas e a análise do Eu é de 1921. ​
Conhecemos análises anteriores a respeito de fenômenos de massa, elas
estão lá nos textos de Edmund Burke, de Hyppolite Taine, de Charles Mackay e de
Jules Michelet, assim como nos romances de Zola, de Victor Hugo e Maupassant.
Mas esses livros sobre a psicologia das massas que descrevi anteriormente
explicitam uma perspectiva analítica nova. Eles procuram, cada um a sua
maneira, fazer das massas, da multidão, o objeto de uma ciência a parte inteira, o
que não era o caso anteriormente. Na verdade, uma ciência da regressão social,
das involuções que estariam a ameaçar as novas sociedades capitalistas urbanas
do século XIX. Assumindo uma noção bastante presente na psicologia de então,
que definia a doença mental como degenerescência, como retorno a estágios
arcaicos de maturação e desenvolvimento, esses trabalhos (embora os trabalhos
de Tarde sejam uma exceção a este caso) veem as massas como o equivalente
social de uma degenerescência patológica, propícia a comportamentos
criminosos, ao rebaixamento da inteligência e a reações violentas e
incontroláveis.
Por exemplo, em seu livro supracitado que certamente será o mais
influente desta corrente inicial da psicologia das massas, Le Bon começa
afirmando: “As massas sempre desempenharam um papel importante na
história, mas nunca tão considerável quanto atualmente. A ação inconsciente das
massas, substituindo a ação consciente dos indivíduos, representa uma das
2
características da idade atual” . Pois não seria mais nos conselhos de príncipes,
mas na alma inconsciente das multidões (inconsciente compreendido neste
contexto como a dimensão do irracional, do primitivo) que se estaria a decidir o
destino das nações.
Isto só pode significar, diz Le Bon, “uma fase de desordem”, um período de
“anarquia confusa precedendo a eclosão de novas sociedades”, período
3
caracterizado pelo império de uma “potência unicamente destrutiva”
representada pelas massas. Le Bon chega a usar a ideia de hipnose para
caracterizar o pretenso caráter inconsciente do comportamento dos indivíduos
no interior da massa, para descrever como indivíduos modificariam
radicalmente seu comportamento quando parte da massa. Da mesma forma,

2
LE BON, ​Psychologie des foules, ​préface
3
Idem, p. 14
4
Gabriel Tarde irá descrever o homem social como um “verdadeiro sonâmbulo” ,
como alguém em estado constante de hipnose, já que, em todos os três casos
(sonambulismo, hipnose, ação social) encontramos a ilusão de ter ideias
sugestionadas e acreditar tê-las espontaneamente.
Sendo assim, todo o livro de Le Bon é uma tentativa de compreender o
advento das massas enquanto ator político como uma regressão no sentido
psicológico do termo. Regressão a uma sociedade ingovernável, já que não seria
possível governar as massas. No máximo, o conhecimento de sua psicologia
permitiria não ser governado por elas. O esquema da degenerescência fica claro
quando Le Bon afirma ser tal mudança de comportamento resultante do fato de
que “nossos atos conscientes derivam de um substrato inconsciente formado
sobretudo por influências hereditárias (...) por trás das causas assumidas de
5
nossos atos, encontram-se causas sociais ignoradas por nós” . Tais causas
resultantes de sedimentações que compõe “a alma de um povo” formariam um
inconsciente coletivo e arcaico responsável pela constituição da unidade mental
da massa. Daí a afirmação de que a psicologia das massas seria uma psicologia de
processos de regressão: “Pelo simples fato de fazer parte de uma massa, o
6
homem desce vários degraus na escada da civilização” .
Se nos perguntarmos pelas condições históricas para o advento de tal
psicologia das massas, encontraremos uma velha conhecida que fará história
posteriormente:

Hoje, as reivindicações das multidões são cada vez mais claras e visam destruir
de cima abaixo a sociedade atual, para lhe levar a esse comunismo
primitivo que foi o estado normal de todos os grupos humanos antes da
7
aurora da civilização .

O que não poderia ser diferente, já que as condições históricas para o


aparecimento de tal psicologia não é outra que as experiências revolucionárias
que sacudiram a França do século XIX, em especial a Comuna de Paris, de 1871,
com sua insubmissão das classes populares às representações de ordem e
autoridade. Isto explica um pouco da razão pela qual foi na França que a
psicologia das massas acabou por aparecer inicialmente. Foram três revoluções
populares em menos de um século (1789, 1848, 1871). Diante da subida à cena
da história de revoluções de massa nas quais a natureza do poder era contestada,
a psicologia será mobilizada para construir um discurso social com pretensões
científicas no qual o corpo social era apresentado como em risco de
degenerescência, como tais fenômenos seriam explosões patológicas de
irracionalidade.
Certamente, devido a sua origem claramente reativa aos processos
históricos de transformação social, a psicologia das massas acabaria por ser
relegada à condição de curiosidade histórica se ela não tivesse sido
completamente invertida por Sigmund Freud, em seu ​Psicologia das massas e
análise do eu, de 1921. Veremos com mais calma tal inversão no interior de nosso

4
TARDE; ​Les lois de l’imitation​, p. 84
5
LE BON, ​idem, p​ . 22
6
idem, p. 24
7
Idem, p. 13
curso, mas se nosso curso começa com Freud é por ele ter representado uma
espécie de novo começo para a abordagem psicológica dos fenômenos sociais.
Primeiramente, porque não se tratava mais de descrever as regressões que
ameaçariam do exterior a marcha do progresso própria ao processo de
racionalização das sociedades europeias do começo do século XX.
O tamanho do passo dado por Freud pode ser compreendido se levarmos
em conta um ponto. Contrariamente à tendência geral da psicologia social da
época, que procurava distinguir a natureza da massa desorganizada e de grupos
organizados, isto a fim de demonstrar que a regressão do primeiro não
invalidava a racionalidade do segundo, Freud se serve exatamente de dois
grupos organizados paradigmáticos, a saber, a igreja e as forças armadas, para
descrever a natureza regressiva das massas. A distinção entre grupo e massa se
perde de forma deliberada. Pois Freud quer defender que grupos como a igreja e
as forças armadas demonstrariam, de maneira mais clara, o que só pode aparecer
nas massas espontâneas de maneira “mais camuflada”. Maneira de afirmar que a
psicologia das massas é, ao mesmo tempo, uma psicologia das instituições, isto
no sentido de uma psicologia da regressão imanente ao funcionamento normal
de nossas instituições, e não mais psicologia da regressão que apareceria como
desvio em relação ao bom funcionamento normal das instituições democráticas.
Daí virá uma das primeiras críticas feitas contra a psicologia das massas de
8
Freud, no caso, escrita pelo jurista Hans Kelsen .
Notemos como este gesto freudiano consistia em mostrar como duas
instituições que aparecem como subsistemas inerentes a toda noção de
democracia liberal seriam a expressão mais evidente de núcleos de regressão
social no interior mesmo de nossas formas liberais de vida. No interior das
sociedades liberais, igreja e forças armadas não são a arché a ser superada por
um fortalecimento dos processos decisórios em instituições democrático
representativas, como se esperaria se assumíssemos a teses de um processo
weberiano de desencantamento do mundo e de um fortalecimento progressivo
da sociedade civil no interior do liberalismo. Na verdade, igreja e forças armadas
seriam nosso verdadeiro destino. Décadas depois, outro psicanalista, Jacques
Lacan, será ainda mais explícito ao dizer: “A religião triunfará não apenas sobre
a psicanálise , ela triunfará sobre muitas outras coisas. Não podemos sequer
9
imaginar como é potente, a religião” .
Se, para Freud, a história da democracia no ocidente será uma história de
afastamentos malogrados em relação tanto ao núcleo teológico-político do poder
quanto a suas figuras fortemente hierárquicas e militarizadas, se esses núcleos e
figuras conhecerão retornos periódicos e constantes em lugares e momentos que
menos se espera, é porque nunca de fato teríamos conseguido abandonar uma
concepção teológico-política de poder (a secularização de nossas sociedades é
um projeto bloqueado), nem nunca de fato teríamos nos livrados de uma
realidade social cuja matriz fundamental de relação é a guerra, para ser mais
preciso, a guerra civil (nossos Estados continuam sendo profundamente
militares). É desta forma que, a partir de Freud, a psicologia das massas deixará
de ser uma aplicação da noção clínica de doença como degenerescência tendo em
vista dar conta de fenômenos sociais que colocariam em risco o horizonte de

8
Ela está em KELSEN, Hans; ​A democracia​, São Paulo: Martins Fontes, 2002
9
LACAN, Jacques; ​Le triomphe de la religion,​ Paris, Seuil, p. 78
racionalidade da democracia liberal. Ela se tornará então a análise das latências
de regressão imanentes a tal racionalidade.
É neste ponto que o sentido de uma abordagem psicológico de fenômenos
sociais pode se fazer sentir. Pois para Freud é claro que se nunca nos livramos do
núcleo teológico-político do poder nem da guerra como paradigma central das
relações sociais é porque a maneira com que os indivíduos modernos são
constituídos, seus desejos socializados, a maneira com que os processos de
individuação se realizam perpetuariam modos de relação social fundados em
fantasmas de autoridade cujos modelos historicamente constituídos são próprios
ao amparo produzido pelo poder pastoral e pela submissão à soberania do líder
da guerra. Ou seja, a individualidade moderna não seria exatamente o esteio de
uma forma democrática de vida baseada na cooperação imanente e no respeito à
integridade da pessoa. Ela seria a porta aberta a todas as formas de regressão
social. E não será por acaso que comportamentos xenófobos, racistas e violentos
não virão necessariamente dos integrantes de famílias em decomposição, povos
submetidos a crises profundas e submetidos a autoridade em degradação, mas
também de famílias aparentemente sólidas, países aparentemente prósperos. A
teoria freudiana deve ser vista pois como um momento fundamental de
auto-crítica da modernidade e isto ficará muito claro quando a Escola de
Frankfurt se voltar a ele para analisar o fascismo.
Mas voltemos a nossa questão epistemológica inicial, esta que dizia
respeito à adequação de propor uma análise psicológica de fenômenos sociais. O
que vemos aqui é como não seria possível compreender fenômenos sociais, seus
modos de criação de adesão, as modalidades de produção de corpos sociais, sem
levarmos em conta a mobilização de fantasmas, de afetos e representações que
não são individuais, mas profundamente sociais. Pois este é um dos maiores
equívocos vinculados ao que chamamos normalmente de vida psíquica, a saber,
acreditar que fantasmas, crenças e desejos são individuais. Lembremos do que
diz Freud:

A oposição entre psicologia individual e psicologia social ou das massas, que à


primeira vista pode parecer muito significativa, perde boa parte de sua
agudeza se a examinarmos mais detidamente. É certo que a psicologia
individual se dirige ao ser humano particular, investigando os caminhos
pelos quais ele busca obter a satisfação de seus impulsos instintuais, mas
ela raramente, apenas em condições excepcionais, pode abstrair das
relações deste ser particular com os outros indivíduos. Na vida psíquica
do ser individual, o Outro é via de regra considerado enquanto modelo,
objeto, auxiliador e adversário, e portanto a psicologia individual é
também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado mas
10
inteiramente justificado .

Em uma afirmação desta natureza, fica evidente quão pouco clara são
noções como “ser humano particular”, como se estivéssemos a falar de algo
dotado de realidade ontológica. Se pensamos o ser humano no interior de
relações de desejo, é impossível abstrair o fato de sermos obrigados a descrever
estruturas sociais de relação. Na verdade, fantasmas, afetos, crenças e desejos

10
FREUD, Sigmund; ​Psicologia das massas e análise do Eu,​ São Paulo: Companhia das Lestras, p. 14
são modos de participação social. Podemos mesmo dizer, não são indivíduos que
desejam, mas a sociedade deseja através dos indivíduos. Não são indivíduos que
produzem fantasias, mas a sociedade produz fantasias através dos indivíduos. É a
história dos desejos desejados antes de mim, como disse uma vez Alexandre
Kojève, que se manifesta nos desejos que julgo meus, nos fantasmas que julgo
meus. Neles, encontram-se tanto a constelação familiar quanto a história dos
povos, das raças, as figuras de sua literatura, assim como do que se recusou a se
constituir como família, como povo, como raça.

O que é fascismo?

O texto de Freud é de 1921 e seu horizonte histórico é profundamente marcado


pela primeira guerra civil europeia que passou para a história como a Primeira
Guerra Mundial. Ou seja, seu objeto não poderia ser o que aparecerá anos depois
como fascismo. Mas com a ascensão do nazismo em janeiro de 1933 foram
publicados, no mesmo ano, dois textos propondo uma análise psicológica do
fascismo a partir do quadro compreensivo derivado do proposto por Freud. São
eles : ​A estrutura psicológica do fascismo​, de Georges Bataille, e ​A psicologia de
massa do fascismo​, de Wilhelm Reich. Esses dois textos, escritos por autores que
não se conheciam e vindos de tradições distintas, irão inaugurar uma longa série
de trabalhos que procurarão utilizar conceitos clínicos para dar conta tanto do
fascismo como de seus mecanismos imanentes, como o anti-semitismo (muito
mais presente no nazismo alemão do que no fascismo italiano), o totalitarismo, a
concepção orgânica do corpo social com sua forma de vínculo ao território, o
nacionalismo militarista, a concepção imunitária de identidade.
Dois aspectos saltam imediatamente aos olhos na comparação entre esses
dois textos. O primeiro consiste em perceber como eles procuram fornecer uma
teoria libidinal da regressão social. Ou seja, eles procuram defender a tese de que
fenômenos como o fascismo não podem ser explicados se não levamos em conta
a economia libidinal que lhe seria própria. Ele não seria um fenômeno de classe,
de raça, de nação, mas uma estrutura libidinal que poderia se fazer sentir em
qualquer lugar e momento. Para sermos claros, o que esses textos afirmam é a
existência de algo como um regime fascista do desejo que deveria ser o
verdadeiro alvo de uma ação política.
Este teoria da estrutura libidinal do fascismo, no entanto, não procurará
descreve-lo como alguma espécie de expressão política do retorno a estruturas
arcaicas de comportamento, um pouco como vimos Le Bon a falar da emergência
das massas no campo político. Alguém como Reich, por exemplo, insistirá que
longe da ressurgência de comportamentos arcaicos, estaríamos diante do
resultado final de um trabalho de civilização que confunde socialização e
repressão pulsional. Pois até agora não houve processo civilizacional que não se
constituiu sobre os escombros das pulsões sexuais, tema também caro a Bataille.
Daí porque é importante lembrar como: “a estruturação autoritária do homem se
produz em primeiro lugar através da ancoragem de inibições e de angústias
11
sexuais na matéria viva das pulsões sexuais” . Ou seja, tudo se passa como se
eles estivessem a dizer que não é falta de civilização que produz o fascismo, mas

11
REICH, Wilhelm; ​La psychologie de masse du fascisme​, Paris: Payot, p. 75
civilização em sua função repressiva bem sucedida e em sua capacidade de
produção de satisfações substitutas à sexualidade reprimida.
Mas essas teorias não funcionarão simplesmente como a figura do que
Foucault chamará décadas depois de “a hipótese repressiva”. Pois elas lembrarão
como o fascismo será incompreensível a partir da hipótese de um regime
repressivo “lei e ordem”. Antes, ele é a mobilização contínua e simultânea da
transgressão e da repressão. Ele é a articulação entre a suspensão da lei e o culto
da lei. É que visa Reich ao afirmar: “O fascismo não é, como se tende a acreditar,
um movimento puramente reacionário, mas ele se apresenta como um amálgama
12
de emoções revolucionárias e de conceitos sociais reacionários” . Bataille dirá
algo semelhante quando afirmar, sobre o fascismo: “a revolução afirmada como
um fundamento é ao mesmo tempo fundamentalmente negada desde a
13
dominação interna exercida militarmente por milícias” . Há a emergência do que
Bataille chama de “heterogeneidade”, há a recusa da homogeneidade da
sociedade utilitária da produção pulsando no interior do fascismo. Mesmo o
vínculo a autoridade fascista será caracterizado por uma incondicionalidade que
se coloca para além de todo julgamento utilitário.
Desta forma, tanto Reich quanto Bataille assumem a proposição política
de que o fascismo só pode crescer em situações pré-revolucionárias. De certa
forma, ele é a figura maior do que poderíamos chamar de uma contrarrevolução
preventiva que se faz passar por revolução, e este “se fazer passar por” é o ponto
decisivo aqui. Pois esta é uma forma desses autores afirmarem que o ponto
analítico fundamental passa por compreender por que, em dado momento,
setores majoritários da população desejaram o fascismo. Pois uma teoria que
eleva o desejo a estrutura fundamental dos laços sociais precisará responder
sobre como é possível desejar o fascismo, ela precisará procurar nele os traços
conjugados de revolta contra a opressão social e reforço da opressão.
No que, paradoxalmente, nos encontramos em um terreno clássico para a
filosofia política, ao menos desde Etienne de La Boétie. Pois se o ​Discurso sobre a
servidão voluntária, ​de 1553, pode ser visto como o texto inaugural da literatura
política moderna é por ele aparecer como o primeiro a colocar o problema da
servidão a partir dos termos de sua aquiescência. Por que em certos momentos
se deseja a servidão, por que em certos momentos se deseja esse processo de
concentração radical da soberania na mão de um? Não se trata de descrever a
servidão a partir da submissão à força, mas a partir da sua associação à ​voluntas,
de um querer e participar à sua própria servidão,​ e​ este é o ponto fundamental:

Gostaria apenas de entender como é possível que tantas pessoas, tantas aldeias,
tantas cidades e tantas nações suportem por vezes um único tirano, que
tem o poder que elas mesmas lhe dão; cujo poder de prejudicá-las é o
poder que elas mesmas aceitam, que só sabe fazer-lhes algum mal porque
14
elas próprias preferem padecer deste mal a contradizer o tirano .

12
Idem, p. 17
13
BATAILLE, Georges; ​La structure psychologique du fascisme​, In: Oeuvres complètes vol. I, Paris:
Galllimard, p. 362
14
LA BOËTIE, Etienne; ​Discurso da servidão voluntária,​ São Paulo: Nós, 2016, p. 16
O segredo será pensar as modalidades através das quais os sujeitos
participam de sua própria servidão, como eles serão, ao mesmo tempo, a vítima e
o carrasco. Quando em 1971, Deleuze e Guattari se voltarem ao problema da
estrutura libidinal do fascismo, eles não deixarão de lembrar do tipo de
estratégia outrora colocada em circulação novamente por Reich:

Pois como disse Reich, o surpreendente não é que pessoas roubem, que outros
façam greve, mas sim que os famintos não roubem sempre, que os
explorados não façam greve sempre: por que os homens suportam desde
séculos a exploração, a humilhação, a escravidão, ao ponto não apenas de
quere-las para os outros, mas para si mesmos? (...) Não, as massas não
foram enganadas, elas desejaram o fascismo em tal momento, em tal
15
circunstância, e é isto que se faz necessário compreender .

A resposta de Reich e Bataille passará por insistir que categorias como


opressão, repressão, ameaça não bastam, embora não se trate de ignorar a
presença dos fenômenos que elas descrevem. Há certa liberação que o fascismo
realiza, há certa revolta que ele libera e não será possível compreender sua força
sem analisar sua produção. Entender a natureza dessa produção será um dos
desafios mais complexos.
Quando décadas depois Deleuze e Guattari retornarem aos problemas
internos às psicologias do fascismo e às formas de paralisia à emancipação social,
após a consciência da paralisia das forças de transformação produzidas a partir
de maio de 68, quando eles retornarem em uma via que procura explicitamente
recuperar pontos importantes do pensamento de Reich, eles claramente verão
como estratégia política maior mobilizar a crítica em duas direções: uma
macro-política e outra micro-política. Se a primeira se refere as grandes
estruturas normalmente binárias e biunívocas de representação, suas classes,
partidos, seus objetos e instituições que tendem a convergir na figura do Estado
e de uma política dirigida para o Estado (molares), a segunda se refere à
lateralidade dos fluxos libidinais que estabelecem relações e processos de
transformação para além dos lugares socialmente codificados e determinados
pelas estruturas sociais (molecular). Da mesma forma, pode haver um
macro-fascismo e um micro-fascismo. Daí afirmações como: “é muito fácil ser
anti-fascista no nível molar, sem ver o fascista que se é si-mesmo, que se
conversa e alimenta, que se autocompraz com as moléculas, pessoais e coletivas”
16
. E é nesta dimensão micro-fascista que podemos encontrar uma resposta à
questão: por que se deseja sua própria repressão? É ela que prepara a
consolidação de uma política estatal fascista e que aparece como condição para
sua emergência.
Dentre as múltiplas questões que a abordagem de Deleuze e Guattari
produzirá, uma chamará em especial nossa atenção. Ela se refere à utilização do
conceito de pulsão de morte para descrever o modelo de movimento em direção
à catástrofe que seria imanente ao fascismo. Essa realização da catástrofe, como
se uma máquina de guerra descontrolada tivesse se apropriado do Estado,
criando não exatamente um Estado totalitário, mas um Estado suicidário (para

15
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix: L’anti-Oedipe, Paris: Seuil, 1972, p. 37
16
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix; Mil Plateaux, Paris: Seuil, p. 262
falar com Paul Virilio), uma tanatopolítica que é uma necropolítica a se voltar
contra si mesma, levará os dois a afirmarem:

Há no fascismo um niilismo realizado. É que, a diferença do Estado Totalitário


que se esforça por colmatar todas as linhas de fuga possíveis, o fascismo
se constrói sobre uma linha de fuga intensa, que ele transforma em linha
de destruição e de abolição puras. É curioso como, desde o início, os nazis
anunciaram à Alemanha o que eles trariam: ao mesmo tempo as núpcias e
a morte, inclusive sua própria morte e a morte dos alemães (...) Uma
máquina de guerra que tinha apenas a guerra por objeto e que preferia
17
abolir seus próprios servos a parar a destruição .

Nós veremos com calma o sentido desse recurso à pulsão de morte como
fundamento de um desejo social de catástrofe, como fundamento de uma
experiência de purificação, de um movimento sem telos que só pode se realizar
na sua própria aniquilação.

Frankfurt contra o fascismo

Outra vertente que se apoiará nos trabalhos de Freud para desenvolver


uma reflexão de larga escala sobre a psicologia do fascismo será a Escola de
Frankfurt. D
​ esde os estudos pioneiros de Erich Fromm sobre a adesão do
operariado alemão ao nazismo a partir da análise das articulações entre
18
“impulsos emocionais do indivíduo e suas opiniões políticas” , os
frankfurtianos tomaram para si a tarefa de utilizar o quadro psicanalítico para
compreender as formas sensíveis de sujeição social. Fromm procurava, para
além da expressão explícita do engajamento político, compreender e tipificar as
estruturas motivacionais e emocionais que sustentavam tais decisões. Sua
compreensão visava lançar luz sobre as contradições imanentes entre
comportamentos públicos e representações psíquicas, o que poderia explicar o
sistema de modificações bruscas das posições políticas da classe operária,
como a deserção do comunismo em direção ao nazismo.
Principalmente a partir dos anos quarenta, os frankfurtianos farão
diversos estudos sobre o anti-semitismo, sobre a formação do estado nazista
(​Behemoth,​ de Franz Neumann), sobre a antecipação do nazismo no interior da
cultura alemã (​De Calegari a Hitler e ​O ornamento da massa​, de Sigfried
Kracauer), sobre as estruturas da propaganda fascista e de extrema direita (​A
técnica psicológica de Martin Luther Thomas, ​de Adorno; ​Profetas do engano​,
de Löwenthal e Guterman), sobre a economia nazista (​Sobre o
nacional-socialismo: uma nova ordem?,​ de Friedrich Pollock), sobre a
personalidade autoritária (​Estudos sobre a personalidade autoritária,​ de

17
Idem, p. 280
18
FROMM, Erich. ​Arbeiter und Angestelle am Vorabend des Dritten Reiches,​ Stuttgart:
Deutsche Verlags-Anstalt, 1980. p. 110. Para uma discussão sobre as primeiras colaborações
de Erich Fromm ao Instituto de Pesquisas Sociais, ver: JAY, Martin. ​The Dialectical
Imagination.​ Berkely: California University Press, 1996.
Adorno e o grupo de Berkeley). Em suma, não seria possível menosprezar o
tamanho do impacto do nazismo no interior da trajetória da primeira geração da
Escola de Frankfurt e da maneira com que boa parte de suas figuras moldarão
sua compreensão das próprias sociedades de democracia liberal.
Mas será na ​Dialética do Esclarecimento,​ em especial em seu capítulo
intitulado “Elementos de anti-semitismo”, que encontraremos pela primeira vez
de forma sistemática a descrição do fascismo como uma patologia social.
Adorno e Horkheimer se servirão do quadro clínico da paranoia para dar conta
da natureza dos vínculos sociais no fascismo, assim como das tendências de
segregação inerentes às democracias ocidentais. Assim, ao aproximar o fascismo
e outras formas de autoritarismo da paranoia, Adorno e Horkheimer estavam a
dizer que a paranoia seria o modo hegemônico de participação social no interior
de tais sociedades. O que implicava afirmar que, nestes casos, os vínculos sociais
se sustentariam a partir da generalização da paranoia como tipo social, mesmo
que os sujeitos, do ponto de vista de suas patologias individuais, tivessem outra
forma de organização de seus sintomas. Neste sentido, não teríamos apenas uma
analogia, mas a descrição de uma modalidade de funcionamento social a partir
de gestão do sofrimento através da elevação de comportamentos patológicos a
forma de participação social. Como condição de participação, os sujeitos
deveriam agir como paranoicos. Um “agir como” que não deixará de ter
implicações na própria estrutura da personalidade subjetiva. Ao pensar na
paranoia, Adorno e Horkheimer falam de um funcionamento específico das
relações de identidade e alteridade, das fantasias de imunização, de contágio, de
perseguição e de grandeza. Na verdade, é a configuração do corpo social que será
compreendida como paranoica. O fascismo como um corpo social paranoico.
Veremos como o conceito psicanalítico de paranoia, base do uso dos
frankfurtianos, a aproximava de uma patologia que colocava, à céu aberto, os
mecanismos de identificação e introjeção próprios do narcisismo que, por sua
vez, eram a expressão de dinâmicas próprias à constituição mesma do Eu do
indivíduo moderno com seus desconhecimentos e denegações. Freud insistira
claramente, por exemplo, que o narcisismo era uma fase necessária do
desenvolvimento individual e que seu mecanismo expunha dinâmicas próprias
da paranoia e da melancolia. Neste ponto, encontramos uma radicalização desta
perspectiva em Lacan e em sua maneira de mostrar como a própria constituição
“normal” do Eu moderno era paranoica, pois produtora de uma instância
psíquica que organizava suas relações ao mundo através de projeções,
introjeções e fundava sua identidade a partir de um sistema de denegações e
19
agressividades .
Neste sentido, era impossível colocar em circulação uma crítica que eleva
a paranoia à condição de patologia social sem defender que o indivíduo moderno
não era o esteio da vida democrática, mas a ferida aberta que coloca o corpo
social em risco perpétuo de deriva autoritária. Como se ao capitalismo restasse
fornecer regressões paranoicas periódicas aos sujeitos que ele socializa e produz.
Isto pode nos explicar porque a reflexão dos frankfurtianos não se serve do
fortalecimento do indivíduo moderno como contraponto à natureza paranoica
dos vínculos sociais, como seria o caso em uma perspectiva liberal. Na verdade,

19
Ver, por exemplo, LACAN, Jacques; ​Séminaire II,​ Paris: Seuil, 1982
os dois conceitos tecem relações profundas de solidariedade. Isto explicará
porque, nos anos 50, ao analisar a estrutura do que conhecemos por
“personalidade autoritária”, os frankfurtianos desenvolverão estudos extensivos
aos modos gerais de regressão presentes também nas sociedades liberais.
Tudo isto visa mostrar a vocês, como deve ter ficado claro, as razões pelas
quais trabalharemos neste curso com a hipótese de que “fascismo” não deve ser
utilizado apenas para descrever a experiência histórica que terá lugar na
Alemanha e na Itália anterior a Segunda Grande Guerra. Ele explicita uma
convergência de práticas e discursos que persegue nossas sociedades como uma
sombra e que se atualiza nas condições as mais diversas. Mas a titulo
operacional, essa sombra poderia ser descrita a partir de quatro vetores.
Gostaria que vocês tivessem isto em mente durante todo nosso curso.
Quatro elementos definem a forma de vida fascista e suas patologias.
Primeiro, o culto da violência. Pois se faz necessário acreditar que a impotência
da vida ordinária e da espoliação constante será vencida através da força
individual de quem enfim tem o direito de tomar para si a produção autorizada
da violência. O fascismo oferece uma certa forma de liberdade, ele sempre se
construiu a partir da vampirização da revolta. Há uma anarquia bruta, um
carnaval sempre liberado pelo fascismo. Mas no seu caso, a liberdade se
transforma na liberação da violência por aqueles que já não aguentam mais
serem violentados. O carnaval não é aqui a reversão da ordem, mas a conjugação
entre a ordem e a desordem: a desordem travestida com a fantasia da ordem.
Segundo, não há fascismo sem ressurreição dos Estados-nação em sua
versão paranoica. Pois alguém tem que cuidar das nossas fronteiras, que são
completamente porosas. Alguém tem que ensinar Educação Moral e Cívica para
nossas crianças a fim de que elas têm orgulho desta pátria construída através do
genocídio dos índios e da escravidão dos negros. Alguém tem que impedir que
sejamos invadidos por mais uma leva de refugiados que vem para cá com seus
crimes. O Estado-nação se mostra como o último refúgio do que é meu, do que
me é próprio. É o meu território, o meu país, a minha língua, os meus costumes, a
minha miséria, a minha violência, o meu sufocamento. A comunidade nacional é
o avesso do comum. Ela é apenas a figura alargada de uma propriedade que
aparece como a expressão básica do medo como afeto político central.
Terceiro, o fascismo sempre será solidário da insensibilidade absoluta em
relação à violência com classes vulneráveis e historicamente marcadas pela
opressão. Ele é a implosão da possibilidade de solidariedade genérica. Essa
insensibilidade expressa o desejo inconfesso de que as estruturas de visibilidade
da vida social não sejam transformadas. Pois toda política é uma questão de
circuito de afetos e de estruturas de visibilidade. Trata-se de definir o que pode
nos afetar, com qual intensidade, através de qual velocidade. Para tanto, há de se
gerir a gramática do visível, a forma com que as existências são reconhecidas. Na
vida social, ser reconhecido é existir, o que não reconhecido não existe. Mas ser
reconhecido não significa apenas uma recognição do que já existia. Todo
reconhecimento é implicativo, ele exige que aquele que reconhece mude
também, pois habitará um mundo agora com corpos que antes não o afetavam, e
isto é o que aparece para alguns como insuportável.
Por fim, o fascismo sempre será baseado na deposição da força popular
em prol de uma liderança fora da lei. Ele é a colonização do desejo
anti-institucional pela própria ordem. O desejo anti-institucional, quando
realmente liberado, pode criar poderes que voltam às mãos do povo,
democracias que abandonam a representação para transferir a deliberação e a
gestão para a imanência do povo. Mas o fascismo faz dessa
anti-institucionalidade um clamor pela mão forte do governo expresso em uma
liderança que parece estar acima da lei, que parece poder falar o que quiser sem
culpa, expor seus piores sentimentos sem preocupação com seus efeitos,
demonstrar seu desejo mais baixo de violência como expressão de uma liberdade
conquistada.
Por isso, é necessário que tais líderes pareçam cômicos, sejam uma
mistura de militar e palhaço de circo. Pois só assim, através dessa ironização, tais
proposições poderão circular com fricção baixa. Afinal, não é para levar a sério
tudo o que eles dizem. Mas quem sabe o que se deve então levar exatamente a
sério? O que é real e o que é apenas bravata? Ninguém sabe, a não ser eles
mesmos. Isto se chama: misturar a ordem e a desordem, a lei e a anomia. Isto é
fascismo. Dito isto, que cada use sua capacidade de análise para saber em que
situações atuais esta descrição encaixa.
Psicologias do fascismo
Aula 2

Na aula de hoje, começaremos a leitura de ​Psicologia das massas e análise do


Eu​, escrito em 1921 por Sigmund Freud. Como havia dito anteriormente, a escolha
em começar um curso intitulado “psicologias do fascismo” com esse texto se justifica
pelo seu caráter fundador. O texto de Freud consolida um modelo de abordagem dos
fenômenos de massa que visa descrever, em um movimento sobreposto, o
funcionamento social regressivo de grupos, instituições e os processos de formação do
indivíduo moderno. Daí o título peculiar que articula “psicologia das massas” e
“análise do Eu”. Esta articulação permite a Freud fazer uma verdadeira crítica da
psicologia social até então existente que inverte completamente seus objetos e seu
horizonte. Tal crítica nos leva à compreensão das regressões imanentes a nossa vida
institucional. Esse modelo de análise aparecerá, à posteridade, como profícuo a fim de
compreender fenômenos como o fascismo e outras figuras do totalitarismo. Pois ele
permite uma análise no interior da qual democracia liberal e fascismo estarão em linha
de contato, na qual o fascismo será uma latência da democracia liberal. O que
proponho nos nossos próximos encontros é seguir a argumentação freudiana,
apresentando a teses principais de seu livro.
Antes, lembremos como a reflexão política de Freud conhece três obras
fundamentais. Cada uma delas aborda uma dimensão do problema do político e tecem
entre si relações profundas. A primeira é ​Totem e tabu, l​ ivro que visa apresentar uma
tese a respeito dos fundamentos antropológicos do político através do mito do
assassinato do pai da horda primitiva e da produção da culpabilidade e da melancolia
como afetos políticos centrais. A segunda é exatamente ​Psicologia das massas ​como
sua crítica da psicologia social e sua centralidade nos processos verticais de
identificação, como veremos nas próximas aulas. Por fim, a última é ​Moisés e o
monoteísmo​, com sua maneira peculiar de fornecer uma crítica aos fundamentos
teológico-políticos do poder. Nós iremos ver esta obra no último módulo de nosso
curso.

Freud, leitor de Le Bon

A oposição entre psicologia individual e psicologia social e das massas, que à


primeira vista pode parecer muito significativa, perde boa parte de sua
agudeza se a examinamos mais detidamente. É certo que a psicologia
individual se dirige ao ser humano particular, investigando os caminhos
pelos quais ele busca obter a satisfação de seus impulsos instintuais, mas
ela raramente, apenas em condições excepcionais, pode abstrair das
relações deste ser particular com os outros indivíduos. Na vida psíquica
do ser individual, o Outro é via de regra considerado enquanto modelo,
objeto, auxiliador e adversário, e portanto a psicologia individual é
também desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas
20
inteiramente justificado .

20
FREUD, ​Psicologia das massas​ , São Paulo: Companhia das Letras, p. 14
Essa introdução a ​Psicologia das massas ​deve ser lida, principalmente, como uma
nota metodológica. Freud insiste de maneira reiterada na impossibilidade de se
estabelecer distinções estritas entre psicologia individual e psicologia social. O
que só pode significar que uma clínica da subjetividade será, necessariamente,
uma clínica de fenômenos sociais. Pois não há fato psicológico legível a partir de
uma perspectiva solipsista, os modos de relação a si e a própria constituição de
uma noção identitária como o si-mesmo é dependente destes fenômenos sociais
que são: “as relações dos indivíduos aos seus pais, irmãos e irmãs, a seu objeto de
21
amor, a seu professor e a seu médico” . Freud chega mesmo a afirmar que a
distinção entre atos psíquicos sociais e atos psíquicos narcísicos deve ser situada
no interior da psicologia individual, já que não há ato psíquico narcísico, ou seja,
não há amor de si que não se oriente a partir da internalização de uma teleologia
das relações sociais. O que não poderia ser diferente já que identidades
individuais são produções relacionais, as próprias instâncias da vida psíquica são
internalizações de disposições sociais de conduta. Proposições que podem nos
levar à interpretação de Etienne Balibar, para quem: “a própria individualidade é
22
um caso particular da formação de massa” .
Mas há de se saber como compreender tais estruturas de relações sociais.
Neste sentido, a grande crítica de método que Freud faz a psicologia social de seu
tempo pode ser sintetizada através da noção de abstração. Ao tomar o indivíduo
isolado como “membro de uma linhagem, de um povo, uma casta, uma classe ou
uma instituição”, a psicologia social passa por cima da estruturação sistêmica dos
modos de interação social, ou seja, deste modo de interação social que vai
progressivamente se abrindo dos primeiros contatos entre mãe e bebê à família,
às instituições sociais e ao Estado. Desenvolvimento progressivo que implica que
experiências primeiras de interação no interior do núcleo familiar servirão de
base para desenvolvimento subsequentes. Isto é importante não para assumir
alguma forma de familiarismo, mas para insistir na dimensão instauradora do
conflito. Pois a família é, antes de qualquer coisa, um núcleo produtor de
conflitos e de ambivalências.
Por outro lado, note-se que Freud não ignora a dependência das
configurações familiares a estruturas sociais mais amplas. No entanto, quem diz
dependência não diz subsunção simples. Por isto Freud afirma: de nada adiante
tentar compreender a configuração dos processos de interação social postulando
algum princípio abstrato como “pulsão gregária”, “pulsão social”, “group mind”
etc. Devemos compreender como modos elementares de interação influenciam
regimes de aplicação de princípios sociais mais gerais. Daí porque Freud termina
insistindo: “Nossas expectativas são orientadas por duas possibilidades: que a
pulsão social não seja nem originária nem indecomponível e que os inícios de sua
formação possam ser encontrados em um círculo mais restrito, como por
23
exemplo na família” .
A partir de tais considerações, Freud parte para uma certa revisão de
literatura que ocupará os próximos dois capítulos. Tal revisão começa com o
livro de Gustave Le Bon, ​La psychologie des foules​, editado em 1895. A razão não

21
FREUD, ​Psicologia das massas - introdução
22
BALIBAR; “Psychologie des masses et analyse du moi: le moment transindividuel”. p. 42
23
FREUD, ​Psicologia das massas - introduçõa
deve ser procurada apenas no caráter fundador deste livro que, aos olhos de
muitos, aparece como a inauguração da psicologia social e como a realização
clássica dos princípios de uma sociologia das massas de forte caráter
conservador. De fato, Freud encontra uma problemática com a qual ele
compartilha, embora marcado por um encaminhamento que lhe é estranho. Em
seu livro, Le Bon começa afirmando:

As massas sempre desempenharam um papel importante na história, mas nunca


tão considerável quanto atualmente. A ação inconsciente das massas,
substituindo a ação consciente dos indivíduos, representa uma das
24
características da idade atual .

Esta consciência do advento das massas à cena do político nas democracias


modernas, advento que implica uma política de mobilização capaz de romper
com o impéris seguro das leis e instituições, é o pano de fundo sócio-histórico
das reflexões de Le Bon. Todo seu livro é uma tentativa de compreender o
advento das massas enquanto ator político como uma regressão no sentido
psicológico do termo. Daí porque ele insistirá que uma massa psicológica seria
dotada de uma unidade mental resultante do desaparecimento da personalidade
consciente dos indivíduos Le Bon chega a usar a idéia de hipnose para insistir no
caráter inconsciente do comportamento dos indivíduos no interior da massa.
Freud aceitará tal perspectiva ao afirmar que o comportamento da massa não
pode ser visto como a somatória dos comportamentos individuais:

Devemos explicar o surpreendente fato de que este indivíduo sinta, pense e aja
de uma maneira totalmente distinta daquela que esperávamos desde que
entra em uma multidão de homens (​Menschenmenge​) que adquiriu a
25
qualidade de uma massa psicológica .

Le Bon compreende tal mudança de comportamento como resultante do


fato de: que “nosso atos conscientes derivam de um substrato inconsciente
formado sobretudo por influências hereditárias (...) por trás das causas
26
assumidas de nossos atos, encontram-se causas sociais ignoradas por nós” . Tais
causas resultantes de sedimentações que compõe “a alma de um povo”
formariam um inconsciente coletivo responsável pela constituição da unidade
mental da massa. Daí a afirmação que a psicologia das massas seria uma
psicologias de processos de regressão: “Pelo simples fato de fazer parte de uma
27
massa, o homem desce vários degraus na escada da civilização” .
Esta comparação entre comportamento social e hipnose já havia sido
abordada por Gabriel Tarde em um livro que apareceu cinco anos antes que este
​ arde, visto também como um nome importante
de Le Bon, ​As leis da imitação. T
na constituição da psicologia social e recuperado recentemente principalmente
devido ao interesse de Gilles Deleuze por sua obra, insistia no papel fundamental
da imitação na estruturação do vínculo social: “o ser social, enquanto social, é por

24
LE BON, ​Psychologie des foules, ​préface
25
FREUD, Psicologia das massas – capítulo II
26
LE BON, ​idem, ​p. 22
27
idem, p. 24
essência imitador. A imitação desempenha nas sociedades um papel análogo
28
àquele da hereditariedade nos organismos e da ondulação nos corpos brutos” .
No entanto, esta imitação fundamental para a reprodução do vínculo social seria
um fenômeno, em larga medida, desenvolvido de maneira inconsciente. Daí
29
porque Tarde irá descrever o homem social como um “verdadeiro sonâmbulo” ,
como alguém em estado constante de hipnose, já que, em todos os três casos
(sonambulismo, hipnose, ação social) encontramos a ilusão de ter ideias
sugestionadas e acreditar tê-las espontaneamente.
Mas, a fim de dar conta deste esquema de reprodução social através da
imitação, Tarde precisa insistir no papel formador das relações de autoridade e
de prestígio. Daí afirmações como:

Foi necessário ​a fortiori ​no início de toda sociedade antiga uma grande
autoridade exercida por alguns homens soberanamente imperiosos e
afirmativos. Foi através do terror e da impostura, como se diz
normalmente, que eles reinaram? Não, esta explicação é claramente
30
insuficiente. Eles reinaram graças a seu prestígio .

A fim de explicar o que entende por prestígio, por uma certa forma de admiração
capaz de sustentar relações sociais, Tarde faz então apelo às relações próprias a
hipnose. Segundo ele, o hipnotizado tem uma “força potencial de crença e de
desejo, imobilizada em lembranças de toda natureza, adormecidas mas não
31
mortas” . O hipnotizador será aquele capaz de, através do seu prestígio,
atualizar tal força potencial, atualizar este desejo imobilizado em lembranças de
toda natureza. Ele será aquele capaz de colocar-se como sujeito que saber a
respeito da verdade do meu desejo. O que Tarde não está longe de aceitar ao
dizer: “Obedecer alguém não é sempre querer o que ele quer ou parece querer?”
32
.Tal relação de hipnose social baseada em relações assimétricas de prestígio
poderia nos explicar aquilo que Tarde chama de: “a passividade imitativa do ser
social”. Uma passividade que leva Tarde a dizer que a “sociedade é a imitação e a
33
imitação é uma espécie de sonambulismo” .
Freud compreenderá fenômenos como a mútua sugestão dos indivíduos e
o prestígio do líder (poderíamos acrescentar aqui o carisma) como necessitando
de explicações. E para tanto ele mobilizará o conceito de “libido”. Ou seja, as
relações de autoridade e de coesão no interior da massa são expressões de
vínculos libidinais inconscientes, vínculos esses que Freud não teme em remeter
ao conceito platônico de “Eros”. Mas a respeito de tais vínculos, Freud dirá:

Todas essas tendências seriam expressão dos mesmos impulsos instintuais que
nas relações entre os sexos impelem à união sexual, e que em outras
circunstâncias são afastados dessa meta sexual ou impedidos de
alcançá-la, mas sempre conservam bastante da sua natureza original, o

28
TARDE, ​Les lois de l´imitation, ​p. 12
29
idem, p. 84
30
idem, p. 86
31
idem, p. 87
32
idem, p. 97
33
idem, p. 97
suficiente para manter sua identidade reconhecível (abnegação, busca de
34
aproximação) .

Ou seja, as relações políticas e a constituição das massas são uma questão


de atração libidinal, de amor. Não há relação vertical à autoridade e horizontal
aos membros da massa que não seja constituída a partir da dinâmica das
relações amorosas, com sua produção de objeto de amor e suas modalidades de
identificação. Não há sujeição ou submissão sem amor, é o que lembra Freud.
Amor que não desconhece a força de atração dos corpos, a afecção dos corpos e
suas modalidades de prazer. Afecção que, mesmo deslocada, tem sua
inteligibilidade nos mecanismos sexuais de procura de prazer e gozo. Há um
gozo das massas e é ele que precisa ser compreendido caso queiramos entender
a natureza do político.
Se voltarmos a ​Psicologia das massas e análise do Eu​, veremos Freud se
serve deste esquema a fim de afirmar que. no interior da massa, o indivíduo
poderia se livrar dos recalques de suas moções pulsionais, o que acarretaria a
desaparição dos sentimentos de responsabilidade e da consciência moral. Essa
supressão do recalque aproxima os fenômenos de massa e as formações do
inconsciente. Mas ele logo insiste em operar uma distinção extremamente
significativa: o inconsciente de Le Bon, diz Freud, este inconsciente resultante da
sedimentação de heranças arcaicas não é o inconsciente psicanalítico fundado
em operações de recalque:

Nós não negamos que o núcleo do Eu (o Isso, como nomeamos mais tarde), ao
qual a “herança arcaica” da alma humana pertence, seja inconsciente, mas
nós distinguimos um ‘recalque inconsciente” que é uma parte desta
35
herança. Este conceito de recalque falta em Le Bon .

Quer dizer, falta uma elaboração clara da natureza dos conflitos psíquicos como
motor das experiências sociais que podem aparecer como herança de
experiências históricas. A verdadeira questão é: quais os conflitos que levam
sujeitos a se constituírem em uma massa que se sustenta através da
implementação de exigências libidinais? Esses conflitos psíquicos, cuja
compreensão exige a mobilização dos conflitos inerentes à constituição do Eu,
com suas dinâmicas de identificação, com suas modalidades de sujeição psíquica,
explicam principalmente a natureza das relações sociais de autoridade. Por isto,
contrariamente a Le Bon, Freud não se interessa pelas dinâmicas
revolucionárias, já que os processos revolucionários são exatamente aqueles nos
quais as figuras de autoridade são depostas.
A este respeito, lembremos como alguns anos antes de Freud escrever
Psicologia das massas e análise do eu​, um de seus mais antigos colaboradores,
Paul Federn, escrevera ​Sobre a psicologia da revolução: a sociedade sem pais
(1919). Neste texto, que Freud certamente conhecia pois seus argumentos
principais foram apresentados na Sociedade das quarta-feiras, Federn via no fim
do Império Austro-Húngaro e na queda da figura do Imperador, assim como na
vitória da Revolução Soviética, a possibilidade do advento de sujeitos políticos

34
FREUD;​ Psicologia das massas,​ op. cit., p. 43
35
FREUD, ​Psicologia das massas, c​ apítulo II
que não seriam mais “sujeitos do Estado autoritário patriarcal”. Para tanto, tais
sujeitos deveriam apelar à força libidinal das relações fraternas, relações
distintas e que não se derivam completamente da estrutura hierárquica de uma
relação com o pai que até então havia marcado a experiência política de forma
hegemônica. Para que novas formas de identidades coletivas fossem possíveis,
não bastaria apenas transmutar a identificação com o pai em recusa de seu
domínio. Seria necessária a existência de um modelo alternativo de
identificações que se daria de maneira horizontal e com forte configuração
igualitária. Daí uma afirmação maior como: “Dorme em nós, igualmente herdada
ainda que em uma intensidade inferior ao sentimento de filho, um segundo
princípio social, este da comunidade fraterna cujo motivo psíquico não está
carregado de culpabilidade e temor interior. Seria uma liberação imensa se a
revolução atual, que é uma repetição das revoltas antigas contra o pai, tiver
36
sucesso” .
O modelo de Federn, baseado na defesa de que as relações fraternas
poderiam constituir um “segundo princípio social” relativamente autônomo e
não completamente dedutível das relações verticais entre filhos e pais,
inscreve-se no horizonte de reflexões sobre estruturas institucionais
pós-revolucionárias. A partir de tal modelo, Federn tentará pensar o fundamento
libidinal de organizações políticas não-hierárquicas como, por exemplo, os
sovietes e os conselhos operários que procuravam se disseminar na nascente
república austríaca graças às propostas dos social-democratas. A sociedade sem
pais a que Federn alude tem a forma inicial de uma república socialista de
conselhos operários.
É fato que Freud não seguirá esta via. Para tanto, seria necessária a defesa
de uma dimensão de relações intersubjetivas naturalmente cooperativas baseada
na reciprocidade igualitária. Tal dimensão não existe nos escritos de Freud que,
neste sentido, estaria mais à vontade lembrando da agressividade própria às
relações fraternas com suas estruturais duais baseadas em rivalidade. Por isto, as
relações de cooperação tipificadas em confrarias ou comunidades de iguais só
podem se consolidar, dentro de um paradigma freudiano, apoiando-se na
exclusão violenta da figura antagônica. Isto talvez explique porque, mesmo
dizendo-se interessado pelos desdobramentos da revolução bolchevique, Freud
pergunta-se sobre o que os soviéticos farão com sua violência depois de
acabarem com seus últimos burgueses.
Neste sentido, não é um mero acaso que os dois exemplos privilegiados de
massa para Freud não sejam, como poderíamos esperar, eclosões revolucionárias
(como a Comuna de Paris, para Le Bon), mas o exército e a igreja: duas
instituições que não pareceriam, a primeira vista, exemplos de regressão social.
Pois se trata de afirmar que a lógica da regressão social, esta mesma que
anteriormente foi usada para dar conta da tríade selvagem, criança, neurótico e
que agora se vê acrescida da massa, é peça constitutiva que atua no cerne de
nossas instituições (e não simplesmente nas força que visam desestabilizá-las).
Se levarmos em conta que estamos a falar de um cidadão do finado Império
Austro-Húngaro, podemos imaginar que esta forma de falar sobre o poder
teológico-político da igreja e as forças armadas é uma maneira metonímica de se
referir ao estado.

36
FEDERN, Paul; “La société sans père”, In: Figures de la psychanalyse 2/2002 (n. 7), pp. 217-238
Ao falar sobre a igreja e as forças armadas, Freud privilegia a natureza
constitutiva das relações verticais ao líder. No caso da igreja, já que o exemplo
freudiano vem da igreja católica, o líder é Cristo. No caso das forças armadas, o
general. As relações entre os membros e o líder constitui uma relação na qual
todos estão igualmente distantes do centro, Por outro lado, é o vínculo libidinal
ao líder que constitui tais massas, isto a ponto do desaparecimento do líder
provocar ou pânico provocado pela anulação das ligações mútuas ou uma
desintegração que libera a violência generalizada contra aquele que aparece
como o outro.
Isto nos leva a dois fatores. O primeiro deles é a relação entre identidade e
identificação no interior dos fenômenos sociais. A proposição de Freud se refere
a uma tese sobre o processo de formação de identidades coletivas. Uma
identidade coletiva precisa de uma identificação vertical para se constituir. Ela
precisa de uma relação à representação de soberania. Essa é uma tese forte e
polêmica, mas lembremos que tal identificação vertical não precisa
necessariamente ser um líder. Ela pode se referir a um princípio diretivo, uma
ideia, uma representação, uma organização. Mas, para Freud, tais identificações
verticais devem necessariamente existir.
Por outro lado, vemos como como as massas se organizam contra dois
fenômenos: o pânico e violência sem direção já que, como lembra Freud, não há
religião do amor sem violência; “Uma religião, mesmo que se denomine a religião
do amor, tem de ser dura e sem amor para com aqueles que não pertencem a ela.
No fundo, toda religião é uma religião do amor para aqueles que a abraçam, e
37
tende à crueldade e à intolerância para com os não seguidores” . Nesta
proposição, está sintetizado o fundamento do antagonismo político através da
consolidação de relações amigo-inimigo. As massas são constituídas como
mecanismos de defesa contra o pânico vindo da angústia da ausência de
identificação, assim como da defesa contra a desintegração da gestão das
relações antagonistas entre amigo e inimigo.

Problemas de imagens

Um outro ponto central que leva Freud a se aproximar de Le Bon


enuncia-se na afirmação: ‘A massa pensa por imagens que se chamam
(​hervorrufen)​ por associação, tal como acontece no homem isolado quando este
38
dá livre curso a sua imaginação” . Este pensar por imagens, pensar que segue a
lógica da associação com suas regras de contiguidade e semelhança, pensar que
explicaria fenômenos como o contágio social, a catarse e a sugestão, seria o ponto
de partilha entre massa, pensamento selvagem, pensamento infantil e neurose:

Os raciocínios inferiores das massas são, como os raciocínios elevados, baseados


em associações: mas as idéias associadas pelas massas tem, entre elas,
apenas ligações aparentes de semelhança ou de sucessão. Elas
encadeiam-se à maneira das idéias de um Esquimó que, sabendo por
experiência que o gelo, corpo transparente, dissolve na boca, conclui que o

37
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 14
38
idem,
vidro, corpo igualmente transparente, deve dissolver na boca também; ou
do selvagem que acredita adquirir a bravura de um inimigo corajoso ao
comer seu coração, ou do operário que, explorado pelo patrão, conclui que
39
todos os patrões são exploradores .

Esta noção assume a distinção entre imagem e conceito, entre a abstração


própria ao conceito e a contiguidade indevida das imagens. No entanto,
percebemos novamente o deslocamento operado por Freud em idéias
relativamente correntes de sua época. O modo de pensar que Freud descreve é
aquele próprio aos processos primários do inconsciente. Neste sentido, eles não
são arbitrários e vinculados ao erro, mas descrevem processos de encadeamento
de representações absolutamente necessários do ponto de vista da dinâmica do
desejo. Eles permitem a compreensão dos conflitos e desenvolvimentos que dão
inteligibilidade a uma função intencional central como o desejo. Por outro lado,
sendo as massas e as instituições o espaço de desdobramento de processos
primários, chega-se rapidamente à conclusão de que a análise não deverá se
basear nas disposições normativas imanentes ao horizonte de racionalidade
social. Há uma dinâmica inconsciente que deve ser desvelada e na qual se
encontra o verdadeiro fundamento da coesão social.
Por outro lado, vemos como a figura de um pensar por analogias, por
similitudes aparece como pensar defeituoso que ignora os princípios
elementares da lógica e do entendimento. Foucault e Adorno, por razões
distintas, insistiram bastante neste ponto: como a razão moderna impôs à
mimesis como figura de um pensar exilado das exigências de racionalidade do
entendimento. Desde o descrédito cartesiano à imaginação, o que tem afinidade
mimética é negado enquanto algo dotado de potência cognitiva. Vale sempre a
pena lembrar que a potência disruptiva da mimesis em sociedades pré-modernas
implica na implementação social de processos de diferenciação que não são
solidários da entificação do princípio de identidade, como é o caso no
pensamento próprio ao conceito moderno de razão.
Por enquanto, devemos lembrar como Freud identifica o ponto cego das
teorias de Le Bon, assim como as teorias de McDougall, na reflexão sobre a
natureza do líder das massas. De nada adiante, segundo Freud, tentar
compreender o poder da liderança (seja uma pessoa, uma idéia ou instituição) a
partir de conceitos vagos como prestígio ou carisma. Mas antes de aprofundar a
natureza da relação entre indivíduo e líder da massa, Freud passa à distinção de
McDougall entre massas organizadas (​group)​ dotadas de singularidade e
responsáveis por processos de individuação e massas desorganizadas e efêmeras
(​crowd​) que parecem impedir toda e qualquer individuação. O fato significativo é
que Freud irá privilegiar o primeiro caso como o caso paradigmático. Ou seja, de
fato, a tradução inglesa de Strachey não estava totalmente incorreta: o
diagnóstico freudiano é também uma ​group psychology. O ​ que deixa a crítica
freudiana ainda mais próximo de nossos modos de organização social.
É esta proximidade que mobiliza a crítica do jurista austríaco Hans Kelsen
à psicologia freudiana das massas. Em “O conceito de Estado e a psicologia social,
com especial referência à teoria da massa de Freud”, Kelsen se volta contra a
possibilidade das hipóteses fundamentais de ​Psicologia das massas e análise do

39
LE BON, idem, pp. 44-45
eu ​valerem também para sociedades democráticas ​insistindo, no seu caso, na
irredutibilidade da norma jurídica à crença ou amor por uma pessoa ou ideia
personificada. Ao acreditar na relação fundamental entre norma e fantasia, ou
antes, ao operar como quem não é capaz de estabelecer distinções entre norma e
fantasia, Freud generalizaria indevidamente o comportamento das massas e dos
“grupos transitórios” fortemente dependentes de móbiles psicológicos para todo
e qualquer ordenamento jurídico possível. Freud não apenas indicaria a gênese
das ilusões substancialistas que afetam a representação da autoridade do Estado,
mostrando como tais ilusões significariam o retorno de uma mentalidade arcaica
a ser combatida por inviabilizar uma concepção democrática da vida política
incapaz de sobreviver ao conflito particularista das paixões. Neste sentido, a
perspectiva freudiana não é eminentemente crítica, o que para Kelsen seria
bem-vindo. Ao contrário, ao insistir em compreender todo e qualquer vínculo
social a partir “dos processos de ligação e associação libidinal” em sua
multiplicidade empírica, ele pareceria expor a necessidade de tal ilusão tanto
para a própria sobrevida da soberania do Estado quanto para a legitimidade da
ordem jurídica. De um lado, Kelson dirá: “Freud, portanto, vê o Estado como uma
40
mente de grupo” , insistindo que uma linha vermelha teria sido atravessada, já
que o Estado, para o jurista austríaco

Não é um dos vários grupos transitórios de extensão e estrutura libidinal


​ ue os indivíduos pertencentes aos grupos
variáveis; é a ​ideia diretora, q
variáveis colocaram no lugar de seu ideal de ego, para poderem, por meio
dela, identificar-se uns com os outros. As diferentes combinações ou
grupos psíquicos que se formam quando da realização de uma única ideia
de Estado não incluem, de modo algum, todos os indivíduos que, num
sentido inteiramente diverso, pertencem ao Estado. A concepção
inteiramente jurídica do Estado só pode ser entendida na sua
conformidade jurídica específica, mas não psicologicamente, ao contrário
dos processos de ligação e associação libidinal, que são o objeto da
41
psicologia social .

Ou seja, a existência de uma concepção inteiramente jurídica exigiria uma


universalidade genérica que não pode ser assegurada se creio que todas as
instituições devem necessariamente encontrar seu fundamento em processos de
identificação e investimento libidinal, tal como quer Freud. Pois não haveria
identificações universalmente recorrentes, já que elas dependem das
particularidades empíricas das relações familiares em sua contextualidade
especifica.

40
KELSEN, Hans; ​A democracia,​ São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 323
41
Idem, p. 327. Não deixa de ser sintomático a proximidade entre a vertente formalista kelseniana e
leituras “republicanas” como a crítica a Freud sugerida por Bernard Baas: “O agrupamento do povo
para o exercício do poder soberano, ou seja, do poder de fazer leis às quais todos aceitam obedecer, é a
ereção dos cidadãos que formam o ​bando ​político republicano. É claramente a ideia republicana que é
aqui objeto de amor unificando os cidadãos em um mesmo corpo: mas se trata de um corpo sem
cabeça, sem ‘chefe’ no sentido freudiano do termo” (BAAS, Bernard; ​Y a-t-il de psychanalystes
sans-culotte?,​ op. cit., p. 217)
No entanto, é fato de que, para o psicanalista, a “concepção inteiramente
jurídica do Estado” da qual fala Kelsen seria simplesmente uma hipóstase que
nos impediria de compreender as dinâmicas próprias àquilo que poderíamos
chamar de “estrutura fantasmática da autoridade” em nossas sociedades, a saber,
a maneira com que autoridade e fantasia se articulam, o que nos levará
diretamente à teoria do supereu, como veremos na próxima aula.
Freud havia fornecido as bases filogenéticas da fantasia que estrutura
nossa relação ao lugar soberano do poder em ​Totem e tabu.​ Lá, Freud lembrava
como tudo se passava ​como se sujeitos agissem no interior das relações sociais
tendo que carregar o peso da culpabilidade e da melancolia produzida pelo
assassinato de um pai primordial. Os sujeitos se socializam, eles agem
socialmente a partir da culpa e da melancolia. Culpa anterior a qualquer ação,
melancolia vinda do sentimento de perda de um objeto perdido vivida sob a
forma de reprimendas e auto-depreciação. Neste sentido, se Freud se vê
obrigado a afirmar o caráter filogenético de sua fantasia social do pai primevo, é
por entender que os vínculos à ordem jurídica procuram se legitimar através da
reiteração retroativa de um modelo de demanda de autoridade. Tais vínculos não
se alimentam apenas da especificidade de relações familiares, mas assentam-se
em outros “aparelhos de estado” como a igreja ou o exército, aparelhos mais
gerais que incitam continuamente a certas formas de vínculos libidinais. Com
esta crítica, Freud recusa até mesmo a legitimidade de um ordenamento jurídico
para além do Estado, já que se trata de criticar o fundamento fantasmática da
autoridade. De fato, a esfera do direito da qual fala Kelsen exige uma espécie de
“purificação política dos afetos” através da defesa da validade ideal da norma que
só pode nos levar à crença na imunidade à problematização política do quadro
jurídico com seu ordenamento e seus mecanismos previamente estabelecidos de
revisão. a teoria freudiana da psicologia das massas fornece uma crítica a tal
positivismo jurídico.
Psicologias do fascismo
Aula 3

Na aula de hoje, continuaremos a leitura de ​Psicologia das massas e análise


do eu ​a partir do comentário dos capítulos IV a VIII. É neste momento do texto
que fica mais explícito aquilo que Freud entende por “análise do Eu” e,
principalmente, como ele conta utilizar tal análise no interior do projeto de
compreender a natureza da psicologia das massas. Aqui aparecem a noção de
identificação, a descrição do processo de constituição da identidade pessoal
através do Complexo de Édipo, além a natureza libidinal da relação entre a massa
e o líder e a dinâmica melancólica desse investimento. A ideia central de Freud é
mobilizar processos genéricos de constituição do Eu a fim de expor os
fundamentos da regressão social. Ou seja, trata-se de mostrar como a
compreensão da constituição do Eu moderno nos explica a tendência, inata a
nossas formas de vida, de produção de uma política regressiva de massas.
Enquanto constituirmos individualidades como fazemos, tais regressões serão
sempre o nosso horizonte mais concreto.
Notem, por exemplo, a maneira como Freud passa de fenômenos
psicológicos “normais” às relações próprias à massa. Ele é capaz de começar por
descrever as dinâmicas de enamoramento e de amor para aproximá-las da
hipnose para, posteriormente, falar da relação ao líder da massas como uma
relação hipnótica. Isto lhe leva a afirmar que a hipnose seria, na verdade: “uma
42
formação de massa a dois” . O que poderia nos levar a compreender as relações
amorosas como uma formação de massa a dois, como a repetição potencial de
tendências que serão aumentadas no interior das massas.
Lembremo-nos do que vimos na aula passada, antes de continuar nossa
leitura. Freud partia da impossibilidade de se estabelecer distinções estritas
entre psicologia individual e psicologia social. O que só podia significar que uma
clínica da subjetividade seria, necessariamente, uma clínica de fenômenos
sociais. Pois não haveria fato psicológico legível a partir de uma perspectiva
solipsista, os modos de relação a si e a própria constituição de uma noção
identitária como o si-mesmo seriam dependentes de fenômenos sociais como:
“as relações dos indivíduos aos seus pais, irmãos e irmãs, a seu objeto de amor, a
43
seu professor e a seu médico” .
Mas Freud insistia na necessidade de compreender como se dão, de forma
concreta, tais estruturas de relações sociais. Neste sentido, a grande crítica de
método que Freud fazia a psicologia social de seu tempo estava sintetizada na
noção de “abstração”. Ao tomar o indivíduo isolado como “membro de uma
linhagem, de um povo, uma casta, uma classe ou uma instituição”, a psicologia
social passaria por cima da estruturação sistêmica dos modos de interação social,
ou seja, deste modo de interação social que vai progressivamente se abrindo dos
primeiros contatos entre mãe e bebê à família, às instituições e ao Estado.
Desenvolvimento progressivo que implica que experiências primeiras de

42
FREUD, ​Psicologia das massas e análise do eu,​ op. cit., p. 71
43
FREUD, ​Psicologia das massas - introdução
interação no interior do núcleo familiar servirão de base para desenvolvimentos
subsequentes. Isto permite a Freud fazer afirmações como:

a exploração psicanalítica dos indivíduos ensina de maneira enfática que o deus


de cada homem é formado a partir do pai, que a relação pessoal a deus
depende da sua relação ao pai carnal, que ela oscila e se transforma a
partir desta última, e que deus, no fundo, não é outra coisa que um pai
44
elevado .

Ou ainda, a respeito do comportamento social das massas : “Há nas massas


humanas uma forte necessidade de uma autoridade que se possa admirar (...) A
psicologia do indivíduo nos ensinou de onde vem tal necessidade das massas.
45
Trata-se da nostalgia do pai” . No entanto, não se trata simplesmente de assumir
alguma forma de familiarismo que reduz a complexidade dos fenômenos
políticos e religiosos à projeção de dinâmicas internas ao núcleo pais/mãe/filhos.
O que Freud realmente procura é insistir na dimensão instauradora do conflito.
Pois a família é vista por Freud, antes de qualquer coisa, como um núcleo
produtor de conflitos e de ambivalências.
Eu dissera na aula passada como esta era uma maneira de desconstituir a
crença na existência de um núcleo de cooperação imanente e de mutualismo
natural no interior da vida social. Se visões autoritárias de sociedade tendem
normalmente a recuperar uma visão idílica da família, além de projetar para as
estruturas gerais do poder as figuras do núcleo familiar (o pai dos povos, a mãe
dos pobres, etc.), é por estarmos diante da defesa da artificialidade do
antagonismo. Como se a vida social não fosse antagônica desde seu núcleo mais
elementar de interação social. Como se tais antagonismos pudessem ser
extirpados através de procedimentos de imunização contra os que não se
conformam às formas da unidade e da totalidade orgânica. Lembremos, por
exemplo, de um manifesto eleitoral do partido nacional-socialista de 1932:

A mulher é por natureza e destino a companheira do homem. Isto implica que


todos os dois não são apenas companheiros para a vida, mas também
companheiros de trabalho. Da mesma forma que a evolução econômica
transformou, ao curso de milênios, o domínio do trabalho do homem, ela
transformou o da mulher. Mais imperioso que o trabalho em comum é o
dever do homem e da mulher na perpetuação do gênero humano. É a
nobreza dessa missão de sexos que é a causa dos dons naturais específicos
que a providência, em sua sabedoria eterna, dispensou invariavelmente
ao homem e à mulher. Nossa mais alta tarefa consiste em facilitar aos dois
companheiros ligados eternamente a fundação de uma família. Sua
destruição definitiva equivale à supressão de toda humanidade superior
(...) ele é a unidade menor mas também a mais importante de toda a
estrutura do Estado.

44
FREUD, ​Totem und tabu i​ n ​Gessamelte Werke, vol.IX, ​Frankfurt, Fischer, 1999,​, ​p. 177
45
FREUD, ​O homem Moisés e a religião monoteista, p​ . 207
Freud precisa insistir na prevalência do núcleo familiar para colocar, na
origem da vida social, as marcas do antagonismo. Por isto, seu conceito de família
é basicamente a narrativa de um sistema de conflitos de identificação descrito
por ele através do complexo de Édipo.
Neste sentido, podemos aceitar que: “livrar a ideia do dirigente político da
​ a ​analogia teológico-política assim como da ​analogia
analogia familiar-política, d
epistemo-política (​ a compreensão do dirigente como detentor do Saber) foi e
46
continua sendo uma tarefa incessante do pensamento crítico” . Mas não
devemos ver Freud como alguém que procuraria retornar a tais analogias
familiar-políticas ao insistir em como as representações de liderança são
produzidas e dependem de representações familiares. Pois se Freud opera desta
forma é para demonstrar como as saídas neuróticas do complexo de Édipo ainda
determinam nossas formas de aquiescência ao poder, nossas maneiras de dirigir
demandas à esfera do político.
Lembremo-nos disto para compreender melhor porque Freud partilha
com Le Bon a defesa da natureza inconsciente da ação das massas, mas para
dizer que o inconsciente psicanalítico nada tem a ver com o sistema de heranças
hereditárias descrito pela psicologia das massas de sua época:

Nós não negamos que o núcleo do Eu (o Isso, como nomeamos mais tarde), ao
qual a “herança arcaica” da alma humana pertence, seja inconsciente, mas
nós distinguimos um ‘recalcamento inconsciente” que é uma parte desta
47
herança. Este conceito de recalcamento falta em Le Bon .

Se falta uma elaboração clara da natureza dos conflitos psíquicos como motor
das experiências sociais que podem parecer herança de experiências históricas, é
porque falta a compreensão da maneira com que os conflitos psíquicos
produzidos nos processos “normais” de socialização produzem indivíduos com
fortes tendências a regressão social. Por isto, lembrei a vocês como não era mero
acaso que os dois exemplos privilegiados de massa para Freud não fossem, como
poderíamos esperar, eclosões revolucionárias (como a Comuna de Paris, para Le
Bon), mas o exército e a igreja: duas instituições que não pareceriam, a primeira
vista, exemplos de regressão social. Pois se tratava de afirmar que a lógica da
regressão social, esta mesma que anteriormente foi usada para dar conta da
tríade selvagem, criança, neurótico e que agora se vê acrescida da massa, é peça
constitutiva que atua no cerne de nossas instituições (e não simplesmente nas
força que visam desestabilizá-las). Assim, se a questão fundamental do texto de
Freud era: “porque homens modernos retornam a estruturas de comportamento
em contradição flagrante com seus próprios níveis de racionalidade e com o
48
estágio atual da civilização tecnológica esclarecida” , a resposta passava por
expor como tais “níveis de racionalidade” e tal “estágio atual da civilização” era
indissociável da conservação de arcaísmos e de formas de servidão.
Freud termina esta parte introdutória identificando uma espécie de ponto
cego das teorias de Le Bon, assim como nas teorias de McDougall. Ponto este que
se encontraria na reflexão sobre a natureza do líder das massas. De nada adiante,

46
MONOD, Jean-Claude; ​Qu’est-ce qu’un chef en démocratie?,​ Paris: Seuil, p. 87
47
FREUD, ​Psicologia das massas, c​ apítulo II
48
ADORNO, ​Freudian theory ..., p​ . 412
segundo Freud, tentar compreender o poder da liderança (seja uma pessoa, uma
idéia ou instituição) a partir de conceitos vagos como prestígio ou carisma. Para
compreender a dinâmica do político nas sociedades modernas faz-se necessário
uma teoria que vincule os processos de formação do Eu à análise da natureza dos
vínculos entre sujeitos e figuras de autoridade. Este é o problema central do livro
e é ele que será o objeto das articulações presentes nos próximos capítulos.
Trata-se de um problema que permitirá, a leitores como Adorno, encontrar neste
livro a previsão: “da ascensão e natureza dos movimentos fascistas de massa
49
através de categorias puramente psicológicas” .

Identificação e interação social

Partamos pois da análise dessa “mais antiga e original forma de ligação


50
afetiva” , a saber, a identificação. Notemos inicialmente que “identificação” é um
conceito que visa descrever um dispositivo fundamental do processo de formação do
Eu como instância de auto-referência. É só através da identificação que o Eu se
constitui como instância, já que não haveria nada parecido a um Eu, com sua
capacidade de auto-referência e sua estrutura de identidade, originariamente. No
entanto, sabemos que a psicanálise partilha a noção de que a constituição do Eu é
resultado de um processo de socialização. Em suma, não há instância idêntica ao Eu
antes da internalização de processos de socialização. Mas socializar é,
fundamentalmente, “fazer como”, atuar a partir de tipos ideais que servem de modelo
e de pólo de orientação para os modos de desejar, julgar e agir. Daí porque a
identificação pode aparecer como peça fundamental para a compreensão do processo
de formação do Eu. O Eu é uma produção social e trata-se de compreender melhor as
engrenagens de tal produção.
Nós já sabemos que Freud trabalha com uma lógica sistêmica na
articulação dos processos de socialização, lógica esta que se inicia no interior do
núcleo familiar para se abrir em direção a esferas sociais cada vez mais amplas.
Isto explica sua tendência em procurar raízes de problemas e configurações de
vínculos sociais mais amplos a partir dos conflitos próprios à esfera familiar. É
isto que vemos no capítulo VII do nosso texto. Nele ,Freud se propõe a descrever
a lógica dos processos de identificação na esfera familiar a partir do Complexo de
Édipo. A seu ver, isto poderia dar conta da natureza da relação do indivíduo ao
líder das massas, assim como do sistema de expectativas que ela suporta.
Do Complexo de Édipo guardemos aqui este processo que vemos mais
claramente no caso da criança masculina. A fim de ser reconhecido como sujeito
no interior do núcleo familiar, ele deve se ​identificar ​com o pai e com a ordem
que ele estabelece. Isto significa não poder realizar o ​investimento libidinal neste
primeiro objeto que lhe proporcionou satisfação lidibinal, ou seja, a mãe. Esta
distinção entre identificação e investimento é da mesma ordem que a
diferenciação entre ​ser c​ omo um tipo ideal e ​ter ​um objeto capaz de preencher
expectativas de satisfação pulsional.
No entanto, esta identificação implica em internalização de princípios de
conduta através da formação de um “Ideal do eu” e de dispositivos de repressão
a moções pulsional através daquilo que Freud chama de “supereu”. Esta

49
ADORNO, ​Freudian theory and the patterns of fascist propaganda, ​p. 411
50
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 63
internalização é o que Freud chama no texto de “introjeção do objeto no eu” e
pode aparecer ainda como processo de introjeção do objeto perdido na
melancolia ou como escolha homossexual de objeto. Lembremos ainda que tal
introjeção pode se dar de outras formas, além da constituição de ideais. Ela pode
51
se dar de maneira parcial “tomando apenas um traço da pessoa-objeto” . Ela
pode se por identificação ao sintoma do outro, ou seja, repetindo seus modos de
adoecer e seus conflitos.
Freud insiste nestes processos de identificação a fim de lembrar como ele
tem valor explicativo no caso da relação entre o indivíduo e o líder da massa. Pois
percebamos que este objeto introjetado, embora apareça inicialmente como
limitação do narcisismo, é ainda um modo de investimento narcísico, já que ele
aparece como Ideal do eu. Isto nos leva a afirmar que:

​ e
o caráter primitivamente narcísico da identificação como um ato de ​devorar, d
fazer o objeto amado parte de si mesmo, pode nos providenciar uma
explicação para o fato de que a moderna imagem do líder parece, as vezes,
o alargamento da própria personalidade do sujeito, uma projeção coletiva
52
de si mesmo .

Ou seja, a identificação não é normalmente com alguém em posição de


ideal regulador, de modelo sublimado, mas alguém que é “o alargamento da
própria personalidade do sujeito”, alguém que é “como nós”, que tem as mesmas
fraquezas, explosões de raiva e incongruências. Ele fala o que nós pensamos mas
não temos mais o direito de falar. Isto porque a identificação é narcísica. O líder
sempre terá traços que o faz alguém que parece estar no mesmo nível que nós,
pois se trata de constituir relações sociais a partir do narcisismo.
É para insistir neste ponto que Freud lembra como a identificação própria
aos processos de formação do Eu está em operação em estados amorosos nos
quais o objeto amado é colocado no lugar do Ideal do Eu, como se uma certa
quantidade de libido narcísica fosse transposta para o objeto para depois
retornar sob as formas da introjeção. E veremos como Freud descreve essas
relações amorosas em chave necessariamente narcísica.

Melancolia e poder

Comecemos, no entanto, por salientar outro aspecto. Notemos como


Freud insiste que esse processo de introjeção que constitui o Eu e suas relações
também se encontra na base da melancolia. Nesse caso, vemos: “o Eu dividido,
decomposto em dois pedaços, um dos quais se enfurece com o outro. Esse outro
53
pedaço é aquele transformado pela introjeção, e que contém o objeto perdido” .
Na verdade, ao mostrar a similitude entre identificação e certa forma de
patologia, Freud toca em um ponto central a respeito das relações entre
melancolia e poder. Judith Butler foi uma das primeiras a perceber claramente
isto ao lembrar que:

51
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 64
52
ADORNO, idem, p. 418
53
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 67
o relato sobre a melancolia é uma relato a respeito de como os domínios psíquico
e social são produzidos um em relação ao outro. Enquanto tal, a
melancolia oferece uma visão potencial a respeito de como os laços do
social são instituídos e mantidos, não apenas às expensas da vida psíquica,
mas através da ligação da vida psíquica à formas de ambivalência
54
melancólica .

Pois a melancolia é o modo privilegiado de produção da vida psíquica, ao menos


no interior das relações de poder que são imanentes a nossas formas de vida.
Podemos dizer isto porque a melancolia deixa evidente uma dinâmica de
produção da vida psíquica que levará à constituição de estruturas fundamentais
da vida psíquica, como o supereu. Partamos, por exemplo, de afirmações como:

foi-nos dado esclarecer o doloroso infortúnio da melancolia, através da


suposição de que um objeto perdido é novamente estabelecido no Eu, ou
seja, um investimento objetal é substituído por uma identificação (…)
Desde então compreendemos que tal substituição participa enormemente
na configuração do Eu e contribui de modo essencial para formar o que se
55
denomina seu ​caráter .

Se a melancolia deixa evidente dimensões importantes do processo de


configuração do Eu em seu caráter próprio, das transformações do caráter do Eu,
e se elas são mobilizadas para explicar como se dá a relação entre massa e líder, é
porque as identificações nas quais o poder político se assenta agem produzindo
em nós melancolia, fazendo-nos ocupar uma posição necessariamente
melancólica. Podemos dizer que o poder nos melancoliza e é desta forma que ele
nos submete. Esta é sua verdadeira violência, muito mais do que os mecanismos
clássicos de coerção e dominação pela força, pois se trata aqui de violência de
uma regulação social que leva o Eu a acusar a si mesmo em sua própria
vulnerabilidade, sujeitando-se e paralisando sua capacidade de ação ou de
levá-lo a uma reação agressiva contra aqueles que portam o que outrora foi
amado. Pois a melancolia tem dois destinos: a auto-reprimenda sádica ou a
exteriorização da violência contra si para algo que outrora foi amado.
A este respeito, lembremos primeiro como, para Freud, a melancolia é
uma forma de amor. Mesmo a maneira com que Freud descreve o enamoramento
não deixa de ter traços profundamente melancólicos. Por exemplo:

O objeto se colocou no lugar do ideal do Eu. Agora é fácil descrever a diferença


entre a identificação e o enamoramento em suas mais desenvolvidas
formas, chamadas de ‘fascínio’ e ‘servidão enamorada’. No primeiro caso o
Eu se enriqueceu com os atributos do objeto, ‘introjetou-os’, na expressão
de Ferenczi; no segundo ele está empobrecido, entregou-se ao objeto,
56
colocou-o no lugar de seu mais importante componente .

54
BUTLER, Judith; The psychic life of power, p. 168
55
FREUD, Sigmund; “O Eu e o Id”, In: Obras completas vol. 16, São Paulo: Companhia das Letras,
2011, p. 34.
56
FREUD, idem, p. 73
Ou seja, o apaixonar-se é descrito por Freud como uma espécie de “servidão
enamorada” na qual o Eu se empobrece por se entregar ao objeto, por idealiza-lo:
57
“o objeto consumiu o Eu, por assim dizer” . Isto a ponto de Freud comparar o
objeto amado ao hipnotizador: “a mesma humilde sujeição, mesma docilidade e
58
ausência de crítica ante o hipnotizador, como diante do objeto amado” . Essa
forma de descrever o enamoramento como empobrecimento do Eu, e não como
alguma forma de confirmação mútua de si no interior de relações pretensamente
simétricas ou como alguma forma de despossessão mútua que leva todos a
narrarem a si de outra forma, mostra como estamos a falar de relações
assimétricas fundadas em uma lógica melancólica, na qual o objeto amado retira
sua força da associação a um objeto perdido.
Se formos a um texto fundamental de Freud tal qual “Luto e melancolia”,
veremos porque Freud insiste em inserir a etiologia da melancolia no interior de
uma reflexão mais ampla sobre as relações amorosas. Essa é a maneira freudiana
de lembrar que o amor não é apenas o nome que damos a uma escolha afetiva de
objeto. Ele é a base dos processos de formação da identidade subjetiva a partir da
transformação de investimentos libidinais em identificações. Esta é uma maneira
de dizer que as verdadeiras relações amorosas colocam em circulação dinâmicas
identificatórias de formação da identidade, já que tais relações fornecem o
modelo elementar de laços sociais capazes de socializar o desejo, de produzir as
condições para o seu reconhecimento. Através das relações amorosas, traços de
caráter são modificados e identificações ao outro são integradas. Eu sou aquilo
que eu amo.
Por exemplo, Freud aceita uma teoria na qual a bissexualidade é a posição
inata dos sujeitos. Eles começam por investir libidinalmente as duas figuras
parentais, o pai e a mãe. No decorrer do processo de constituição de uma
identidade de gênero, um desses investimentos é recalcado, perdido. Mas essa
perda não é simples anulação. Antes, ela produz uma posição melancólica. A
posição masculina deve perder o investimento libidinal na figura paterna,
trocando-o por uma identificação. A posição feminina deve perder o
investimento libidinal na figura materna, trocando-o por uma identificação. Estes
investimentos, no entanto, mesmo recalcados voltam melancolicamente ou como
reprimenda e desvalorização contra si, por ter perdido o objeto outrora amado.
Neste sentido, lembremos da definição freudiana:

A melancolia se caracteriza por um desânimo profundamente doloroso, uma


suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de
amar, inibição de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de
autoestima, que se expressa em auto-recriminações e auto-insultos,
59
chegando até a expectativa delirante de punição .

Assim a tese fundamental de Freud consiste em dizer que tudo se passa


como se a sombra desse objeto fosse internalizada por incorporação, como se a
melancolia fosse a continuação desesperada de um amor que não pode lidar com
suas perdas. Incapacidade vinda do fato da perda do objeto que amo colocar em

57
Idem, p. 72
58
Idem, p. 73
59
FREUD, Sigmund; ​Luto e melancolia, ​São Paulo: Cosac e Naif, 2010, p. 47.
questão o próprio fundamento da minha identidade. Mais fácil mostrar que a voz
do objeto ainda permanece em mim, através da autoacusação patológica contra
aquilo que, em mim, parece ter fracassado em conservá-lo ou que permanece em
mim como marcas de identificação narcísica com o objeto que me decepcionou.
Nesse sentido, uma afirmação importante de Judith Butler diz que “Freud
identifica consciência elevada e auto-reprimendas enquanto signos da
melancolia com um luto incompleto. A negação de certas formas de amor sugere
que a melancolia que fundamenta o sujeito expressa um luto incompleto e não
60
resolvido” . Assim, a sujeição do desejo pode se transformar em desejo por
sujeição. Essa é uma maneira de dizer que a melancolia é o saldo afetivo
fundamental de um modelo hegemônico de instauração da vida psíquica.
Notemos então como o poder melancoliza os sujeitos que ele assujeita,
fornecendo o fundamento libidinal das dinâmicas de servidão voluntária. Freud
compreende que a relação da massa ao líder é caracterizada por impulsos
sexuais inibidos na meta. Isto significa que, mesmo servindo-se de energia
libidinal, as relações autoritárias de poder fundamentam-se na perpetuação de
certa forma de recalque. Mas de um recalque que, ao mesmo tempo, reascende a
força do objeto anteriormente investido. Assim Freud poderá dizer:

É interessante ver que justamente os impulsos sexuais inibidos na meta


conseguem criar laços tão duradouros entre as pessoas. Mas isso se
entende com facilidade a partir do fato de não serem capazes de plena
satisfação, enquanto os impulsos sexuais não inibidos experimentam uma
extraordinária redução, mediante a descarga, toda vez que atingem sua
61
meta .

A plena satisfação dos impulsos sexuais permite uma descarga que não faz
“laços tão duradouros entre as pessoas”. Mas a duração é baseada em uma forma
muito específica de inibição, a saber uma inibição melancólica. Uma inibição da
meta que guarda relações indiretas com a meta inibida. O líder autoritário
guarda sempre traços daquilo que ele combate ou organiza purgações periódicas
contra grupos e sujeitos que reascendem aquilo que os sujeitos precisaram
perder para constituir os sistema de cicatrizes que representa sua própria
identidade. Essa dinâmica é fundamental para compreendermos a lógica libidinal
da relação entre massa e líder. O líder, assim como a instituição autoritária,
oferece uma maneira do sujeito se relacionar àquilo que fora anteriormente
objeto de seu investimento e que ele precisou recalcar para constituir uma
identidade. Essa maneira pode se dar de duas formas: através de impulsos
sexuais inibidos na meta (e não é por outra razão que Freud procurou, como
paradigma das massas, duas instituições homogêneas e de forte vínculo
homossexual inibido como a igreja e o exército) ou através da inversão do afeto,
de amor a raiva, e a constituição do objeto social de agressão. A explosão de
desrecalque que a massa produz é, na verdade, apenas a contrapartida de uma
posição melancólica mais profunda e original.

Uma teoria do supereu

60
BUTLER, The psychic life of power, p. 23
61
FREUD, Psicologia das massas, p. 75
Nesse ponto, podemos entender melhor a definição freudiana de massa:
“Uma massa primária desse tipo é uma quantidade de indivíduos que puseram
um único objeto no lugar de seu ideal do eu e que, consequentemente, se
62
identificaram uns com os outros em seu Eu” . Os membros da massa
identificam-se entre si horizontalmente porque todos eles se identificam
verticalmente com um único objeto no lugar de seu Ideal do Eu, ou ainda, de seu
supereu. O líder da massa é assim um representante do supereu social. Freud
ainda dirá, de forma mais explícita: “o indivíduo abandona seu ideal do eu
63
(​Ichideal)​ e o troca pelo ideal da massa, encarnado pelo líder (​Führer​)”​ .
Lembremos, a este respeito, de alguns traços gerais dos processos de
socialização próprios à família burguesa. Relação marcada pela sobreposição
entre rivalidade e identificação que aparece de maneira mais visível no conflito
entre o filho e aquele que sustenta a lei paterna. Para ser reconhecido como
sujeito e como objeto de amor no interior da esfera familiar, faz-se necessário
que o sujeito se identifique exatamente com aquele que sustenta uma lei
repressora em relação às exigências pulsionais. Para ser reconhecido como
sujeito, a criança deve abrir mão de certos desejos (como os desejos incestuosos
e agressivos) e saber hierarquizar suas pulsões a partir de uma vontade
relativamente unitária. Ele deve aprender a « agir como » uma autoridade
paterna dotada de força de coerção.
O resultado é a internalização psíquica de uma ”instância moral de
observação”, no caso, o supereu derivado da identificação com os pais e outras
representações de autoridade. A internalização da lei parental através do
supereu é, para Freud, signo sempre legível de uma demanda de amor, e saber-se
objeto amado por um Outro (que é representante da Lei simbólica), saber-se
potencialmente protegido por alguém a quem reconheço certa força tem, para o
sujeito, o valor da anulação de uma posição existencial de pura contingência.
Lembremos disto: ​todo vínculo a autoridade é baseado sob alguma forma de
demanda de amor e reconhecimento; ele nunca é simplesmente o resultado de
alguma coerção. No entanto, há um conflito fundamental entre, de um lado,
repressão a desejos incestuosos, agressivos e polimórficos e, de outro, demanda
de amor e reconhecimento.
Podemos nos perguntar aqui por que a formação de uma instância
psíquica como o supereu deve ser vivenciada necessariamente sob a forma da
repressão. Pois ela poderia ser vivenciada como uma espécie de aceitação tanto
da limitação necessária de exigências pulsionais de satisfação quanto de um
ordenamento fundamental para a perpetuação da vida social. Mas sabemos como
Freud insiste ser impossível submeter-se integralmente às injunções do supereu
sem que isto não leve à pura e simples auto-destruição. Conhecemos as páginas de
Freud dedicadas à descrição da « ferocidade » irracional do supereu na sua
aplicação de exigências ao Eu. Isto a ponto dele indicar, como ideal do tratamento
psicanalítico : « fortalecer o Eu, ​torná-lo independente do supereu​, estender seu
campo de percepção e ampliar sua organização de maneira que ele possa se
64
apropriar de pedaços do Isso. Onde Isso estava, devo Eu advir » . Isto talvez se

62
FREUD, idem, - capítulo VIII
63
FREUD, ​Massenpsychologie und Ich-analyse, ​p. 144
64
Idem, GW vol. XV, op. cit., p. 86
explique pelo fato do ​supereu não ser apenas a internalização de um conjunto de
regras e normas que visam orientar a conduta e o desejo. Antes, ele indica a
constituição e internalização de uma representação fantasmática de autoridade
que sempre acompanhará o sujeito. Ele é o complemento fantasmático necessário
para minha aquiescência à regra e à norma. T ​ al representação é, ao mesmo
tempo, objeto de amor (por ocupar o lugar para o qual minhas demandas de
amparo se dirigem, por alimentar minhas expectativas de gratificação, por
aparecer como ​promessa de segurança e proteção)​ e de ódio (por suas injunções
serem vivenciadas de maneira restritiva).
Jacques Lacan tem uma maneira precisa de explicar esta natureza
restritiva do supereu, isto quando insiste que ele é uma “lei desprovida de
65
sentido” . Podemos compreender tal ausência de sentido a partir da ideia de que
as injunções do supereu são determinações contraditórias feitas apenas para
submeterem o sujeito a uma representação fantasmática de autoridade que deve
perpetuar um sentimento de inadequação, fraqueza e impotência. Como se, ao
final, a afirmação do líder para as massas seria sempre um: “vocês não estavam à
altura”. Como Hitler a dizer que ao final que o povo alemão não estava à altura de
seu destino.
Este sentimento de inadequação é fundamental para conservar uma
representação de autoridade superegóica, já que a possibilidade de tal
representação conservar-se como lócus de acolhimento de uma demanda de
amor está vinculada ao velamento de sua impossibilidade em dar conta do
desamparo e de impedir a confrontação com a contingência. E a maneira mais
eficaz para isto é impondo obrigações contraditórias ou superlativas que nunca
poderão ser realizadas pelo sujeito. Desta forma, a ineficácia do supereu em suas
funções de proteção e segurança acaba por ser, de uma certa forma, invertida
para ser vivenciada como impotência do próprio sujeito em se adaptar às
exigências do supereu, o que ao menos preserva o supereu como representação
fantasmática de autoridade. ​Estamos dispostos a tudo, mesmo a nos auto-destruir,
para defender a crença de que há um amor que pode nos livrar da insegurança.
Estamos dispostos até a esconder a impotência do Outro que nos promete tal
amor. Neste sentido, só podemos concordar com psicanalista inglês Adam
Phillips :

“Do ponto de vista de Freud, nossa impotência não diminui com o tempo. Ela nos
inquieta cada vez mais, e o terror da qual ela é a fonte nos faz procurar a
segurança ao invés da satisfação, a magia ao invés do alimento, o
desmentido ao invés da constatação. Para Freud, somos animais
66
atormentados por nossa impotência” .

Isto explica um pouco porque o supereu é, como disse Balibar em uma


fórmula feliz, o representante da política no interior da teoria do inconsciente e o
67
representante do psiquismo inconsciente no interior da teoria política . Pois,
primeiro, ele expõe de maneira clara como as relações de poder constituem

65
​ aris: Seuil, 1975, p. 9
LACAN, Jacques; ​Séminaire I, P
66
PHILLIPS, Adam; ​Trois capacites négatives, P ​ aris : Editions de l´Olivier, 2009, pp. 90-91.
67
BALIBAR, Etienne; ​Citoyen Sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, ​Paris: Seuil, 2011,
p. 384
sujeitos através da internalização não apenas de normas, mas de uma “instância
moral de observação” que nos “pastoreia” ao mesmo tempo que nos julga
implacavelmente. Perguntar-se sobre a economia libidinal do poder é, para
Freud, evidenciar o ponto de interseção entre “cuidar” e “culpar”, entender como
o cuidado paterno é indissociável da perpetuação de relações profundas de
dependência e sujeição alimentadas não apenas pela reiteração do medo da paz
do rebanho ser, a qualquer momento, destruída pela matilha de lobos, medo que
o pastor saberá bem manejar para conservar o rebanho paralisado, mas pela
culpabilização do meu próprio desejo de violência contra a norma de igualdade
restritiva enunciada pelo poder. Neste sentido, se Freud pode dizer que o
sentimento de culpa é o “mais importante problema no desenvolvimento da
68
civilização” é porque, entre outras coisas, ele conhece sua função decisiva na
construção da coesão social e na sustentação das relações com a autoridade. Uma
função que não se reduz à expressão da responsabilidade consciente diante dos
impulsos de transgressão de normas aceitas como necessárias para a
perpetuação da vida social. Ela indica principalmente o vínculo libidinal
inconsciente com objetos que perdemos, que ainda tem a força de projetar em
nós a sombra de reprimendas sem fim e de auto-destruição melancólica. A culpa
que sustenta os laços sociais sob a égide do poder tem uma gênese em fantasias
inconscientes construídas a partir de objetos que perdemos, e muito pouco tem a
ver com a expressão de uma responsabilidade diante da perpetuação da vida
institucional assumida de forma consciente.

68
FREUD, Sigmund; “O mal estar na civilização”, op. cit., p. 106
Psicologias do fascismo
Aula 4

Na aula de hoje, vamos terminar nossa leitura de ​Psicologia das massas e análise
do eu ​através do comentário de seus últimos capítulos. Neles, veremos a
mobilização feita por Freud a partir da hipótese antropológica do assassinato de
uma figura coercitiva como fundamento do vínculo social. Assassinato provoca
uma circulação de afetos que pulsam entre a melancolia e a mania, definindo as
dinâmicas regressiva no interior da massa.
Antes, gostaria de lembrar a vocês o que vimos até agora, qual o saldo de
nosso trajeto de leitura. Vimos como Freud abria o espaço para uma psicologia
das massas que se enraizava na análise dos processos de formação da
individualidade moderna. Sua ideia central era de que os fenômenos sociais de
regressão não poderiam ser vistos como a emergência de estruturas arcaicas
sedimentadas em um inconsciente que se confundiria com a dimensão do
irracional. Eles eram o anverso necessário dos processos hegemônicos de
constituição de individualidades. Freud procurou mostrar como individualidades
eram constituídas a partir de identificações através das quais lidávamos com
nossas contradições, nossas bivalências, nossa polimorfia a partir da
internalização de figuras disciplinares que tiravam sua força não daquilo que eles
eram capazes de produzir, mas da maneira com que eles eram capazes de
perpetuar nossa dependência a um poder social que não poderia entregar o
amparo que prometia. Ou seja, a ideia central de Freud é que a individualidade
moderna é estruturalmente dividida, ela é um espaço estrutural de sofrimento
por estar cindida entre a disciplina e sua transgressão, entre a unidade e a
multiplicidade, por ser o campo de uma espécie de guerra civil.
As formas de sua gestão desta divisão serão o fundamento para os
processos de regressão social. Assim, as regressões não serão simplesmente o
retorno a alguma forma de demanda de proteção paterna, de retorno à
simplicidade dicotômica de situações. Elas serão, na verdade, as formas de gestão
da divisão subjetiva. Vimos uma dessas formas de gestão através da melancolia.
Eu afirmara que a massa é uma produção melancólica, que a verdadeira violência
do poder consiste em submeter sujeitos à melancolia, que há uma melancolia das
massas. Isto nos permitiu compreender um pouco porque Freud insiste tanto em
levar em conta a natureza vertical da relação entre massas e líder. Pois ele quer
mostrar como a violência das massas contra grupos e populações específicas, sua
relação hipnotizada ao líder não são explosões arcaicas de violência originária,
nem a expressão de uma necessidade animal de submissão e de comando. Elas
são expressões de reações melancólicas. A violência contra grupos é
indissociável da maneira com que objetos anteriormente amados e investidos
serão postos em uma série na qual encontraremos ao final os grupos atuais que
são alvos de violência. Daí porque essas dinâmicas de massa são tão vinculadas
às temáticas da traição, da luta contra os infiltrados, contra aqueles que parecem
conosco mas não o são.
Baseando-se em uma interversão do afeto, de amor a ódio, note-se como
este “ódio” é estruturalmente diferente, pois ele é um afeto através do qual
sujeitos se voltam contra aquilo que um dia amaram, o que faz dele um
sentimento muito mais contínuo. A dimensão maníaca da ação das massas será
sempre marcada por tal dinâmica. Ela se baseia no caráter de “festa” que esta
69
esse “periódico desrespeito das proibições” produz.
Por outro lado, a identificação das massas ao líder é descrita por Freud
como uma identificação superegóica. Isto significa que sua função é perpetuar
uma fantasia que dará sustentação ao poder. Esta fantasia é baseada em uma
demanda de amor cujo resultado só pode ser certo empobrecimento do Eu, certa
paralisia de sua ação. Pois este amor é baseada na internalização de objetos
perdidos que agora se voltam contra o próprio Eu em uma dinâmica de
auto-reprimenda e auto-depreciação. A função do líder, neste caso, é levar os
indivíduos a exigências cada vez mais superlativas, como se estivéssemos diante
de provas de amor que precisam sempre serem dobradas. O fim não poderia ser
outro que uma relação na qual o próprio líder se volta à massa como se ela não
estivesse à altura de seu destino, como se ela o tivesse traído. O líder promete à
massa que ela será “grande novamente”. Ele entrega sempre uma catástrofe na
qual todos são jogados à sua própria pequenez.

Retorno ao problema da horda

Voltemos então ao texto freudiano para compreender seus últimos


desdobramentos. Após fornecer esta teoria da constituição do vínculo social no
interior de sociedades de massa a partir de uma teoria das identificações, Freud
reconhece que tal estratégia pode parecer insuficiente. Vários fenômenos ligados ao
caráter regressivo das massas e de suas estruturas de julgamento parecem não poder
ser explicados a partir do problema das identificações. Por isto, Freud se propõe
analisar um teoria distinta da sua, esta desenvolvida pelo cirurgião e psicólogo social
britãnico Wilfred Trotter e apresentada no livro ​Instincts of the herd in peace and
war.
A base da teoria de Trotter consiste na defesa da existência de uma espécie de
instinto gregário em operação em todo organismo vivo, instinto a partir do qual ele
procura derivar todos os sentimentos que desempenham papéis fundamentais na
conservação do vínculo social, como a consciência do dever e o sentimento de culpa.
No entanto, Freud age como quem vê, nesta posição de forças instintuais na
antecâmara de todo vínculo social, um certo recurso á abstração. A posição de um
instinto gregário nos impede de compreender o peso das relações concretas do
indivíduo na configuração de suas expectativas sociais. Há um certo empirismo
fundamental freudiano, empirismo de quem afirma que não há nada que possa atuar
na consciência que não tenha, anteriormente, se apresentado á consciência. Daí o
sentido de afirmações que procuram demonstrar como : “durante muito tempo, não
percebemos na criança nada parecido a um instinto gregário ou de um sentimento de
massa. Tal sentimento se forma primeiramente em maternidades com grande número
de crianças, a partir da relação entre criança e pais, e ele se forma em reação ao ciúme
70
com o qual o mais velho acolhe o irmão mais novo” . Ou seja, não compreenderemos
nada da configuração dos vínculos sociais se não partirmos da maneira particular com
que os investimentos libidinais vão sendo determinados a partir da história social do
desejo. A abstração das forças deve dar lugar à perspectiva concreta das dinâmicas

69
FREUD, ​Psicologia das massas,​ p. 91
70
FREUD, ​Psicologia das massas ... ​ – capítulo IX
sociais de conflito. É tal perspectiva que permite Freud propor uma arqueologia do
sentimento de solidariedade social a partir da reversão (​Umwendung)​ de um
sentimento inicialmente hostil em vínculo positivo próprio à natureza da
71
identificação” .
Por outro lado, a noção de instinto gregário passa ao largo, mais uma vez, do
caráter constitutivo das relações sociais de dominação. Ela não fornece um quadro
explicativo sólido para a compreensão da figura do líder (ou de alguma instância
central de autoridade) como elemento fundador da massa. Pois, para compreender o
problema da natureza dos vínculos sociais, não é possível abstrair o problema dos
modos de interação social do problema do poder. Ao contrário, devemos sempre
lembrar que relações simétricas fundam-se a partir do reconhecimento anterior da
essencialidade de relações assimétricas. Daí porque o problema freudiano é, seguindo
esta longa tradição de reflexão sobre o fato político que vincula o problema do
política à assimetria do poder, compreender porque: “todos querem ser dominados por
72
um só” . É para tentar dar conta deste problema que Freud retorna, mais uma vez, ao
seu mito antropogenético do assassinato do pai primevo.
De fato, Freud é claro em seus propósitos quando afirma que: “A massa nos
aparece como uma revivescência da horda originária. Da mesma forma que o homem
das origens manteve-se virtualmente em cada indivíduo, a horda originária pode se
73
constituir a partir de qualquer agregado humano” .A função desta articulação entre
massa e horda originária consiste, principalmente, em fornecer uma perspectiva de
apreensão das peculiaridades da figura do líder das massas modernas. Tanto é assim
que Freud não deixa de lembrar: “as massas humanas nos mostram, mais uma vez, a
imagem familiar de um indivíduo isolado, onipotente no interior de uma horda de
74
iguais, imagem igualmente presente na nossa representação da horda originária” .
Esta aproximação é fundamental no interior do quadro freudiano de análise porque se
trata de mostrar como a força de coesão do líder das massas não vem, simplesmente,
da sua capacidade em se colocar como tipo ideal que regula sua conduta, por
exemplo, a partir do ascetismo do dever, da imagem de auto-controle sereno de si, da
ética da convicção, como poderíamos imaginar se compreendermos a gênese das
figuras de autoridade como o que advém destes ideais do eu sintetizados pela
internalização da lei paterna. Ao contrário, e este foi um ponto claramente visto por
alguém como Adorno, as figuras de liderança são encarnações de algo como um
supereu social. ​Daí porque Freud pode afirmar que: “o pai originário é o ideal da
75
massa que domina o eu no lugar do ideal do eu” .
Esta natureza própria ao supereu social apropriado pelo líder explica, aos olhos
de Freud, dois traços maiores advindos das figuras modernas de liderança. O primeiro
é que, enquanto tipo ideal pautado pela imagem arcaica de um pai primevo que não se
submete aos imperativos de repressão do desejo, o líder consegue mobilizar uma
revolta contra a civilização e sua lógica de socialização (já que fornece uma imagem
para além da lógica repressiva), mas perpetuando relações de dominação instrumental.
Ele mobiliza representações vinculadas ao fantasma de que a demanda de amor que
suporta os processos sociais de identificação seja direcionada e ouvida por figuras

71
idem
72
idem
73
idem, - capítulo X
74
idem
75
FREUD, idem, cap. X
marcadas pela onipotência (maneira de bloquear a rivalidade própria à ambivalência
da figura paterna na família burguesa). Neste sentido, sua legitimidade vem da força
em mobilizar continuamente estruturas fantasmáticas inconscientes pressupostas por
processos de socialização no interior da família burguesa.
Aqui, vale a pena retornar a algumas considerações postas rapidamente no
final de nossa leitura de ​Totem e tabu.

O mito do pai primevo

Ao ler o mito freudiano do pai primevo, Lévi-Strauss dirá:

Freud dá conta, com sucesso, não do início da civilização, mas de seu presente.
Partindo à procura da origem de uma proibição, ele consegue explicar não
a razão pela qual o incesto é conscientemente condenado, mas porque ele
76
é inconscientemente desejado .

Tal afirmação é repetida, a sua maneira, por alguém a milhas de distância de


Lévi-Strauss, Herbert Marcuse:

Se a hipótese de Freud [a respeito do pai primevo] não for corroborada por


qualquer prova antropológica, terá de ser inteiramente rejeitada,
excetuando o fato de que ela encaixa, numa sequência de eventos
catastróficos, toda a dialética histórica de dominação e, por conseguinte,
77
elucida aspectos da civilização até aqui inexplicados .

Estas duas afirmações convergem na defesa da força do mito freudiano


em formalizar impasses e aspirações vivenciadas no presente. Neste sentido, a
importância de Freud estaria no fato de ter fornecido um mito à altura daquilo
que a modernidade colocava a si mesmo como questão. De toda forma, esta não
será a primeira vez que a reflexão sobre a natureza dos vínculos sociais
modernos faz apelo a um mito para dar conta da figuração do que tem, de fato, a
força indestrutível de um mito, isto se pensarmos no mito como uma construção
social que visa dar sentido a um conflito socialmente vivenciado. No caso de
Freud, as consequências são enormes pois: “a constituição da cidadania (o
pertencimento a uma ​politeia)​ pede um suplemento mítico que parece vir das
constituições mais arcaicas de autoridade e que alimenta as representações
78
patológicas da soberania” .
Freud inicia seu texto retomando certas considerações sobre o totemismo
que haviam sido esboçadas no primeiro capítulo de seu livro. Inicialmente Freud
havia insistido na relação privilegiada entre totemismo e exogamia, seguindo
uma via defendida por Frazer. Agora, trata-se de tentar apreender qual a gênese
possível de tais exigências de exogamia. Daí porque ele valoriza afirmações sobre
o totem como esta:

76
LEVI-STRAUSS, ​Les structures élémentaires de la parenté, p​ . 610
77
MARCUSE, ​Eros e civilização, ​p. 70
78
BALIBAR, Etienne; L’invention du surmoi, p. 32
Um totem, escreveu Frazer em seu primeiro ensaio, é um objeto material a
respeito do qual o selvagem porta um respeito supersticioso pois ele
acredita que entre sua própria pessoa e cada coisa desta espécie existe
79
uma relação absolutamente particular .

Tal relação absolutamente particular indicaria uma certa forma de participação:


“quanto mais voltamos no tempo, mais evidente fica que o membro de uma clã se
considera como fazendo parte da mesma espécie que seu totem”, como se os
membros do clã descendessem de um totem elevado à condição de ancestral. Isto
permite a Freud afirmar que a questão central do totemismo estaria presente nas
relações entre a descendência totêmica e os imperativos de exogamia.
Com este problema em vista, Freud passa em revista às teorias sobre a
origem do totemismo, organizando, para isto três grupos explicativos. No
primeiro, estariam explicações de cunho nominalista. O totem seria uma
designação nominal através da qual um clã tomaria o nome de um animal de
empréstimo a fim de realizar exigências de distinção. Posteriormente tal
empréstimo teria se naturalizado, fazendo com que a ilusão da descendência
totêmica fosse criada. No segundo grupo, estariam as ditas teses sociológicas que
veem no totemismo a representação visível de uma religião social. Por fim, as
teses psicológicas baseadas na ideia de que o totemismo seria resultado da
crença primitiva a respeito da transmigração das almas e da reprodução.
Nenhuma destas explicações satisfaz Freud, já que todas elas parecem
ignorar a relação necessária entre elaboração de conflitos pulsionais e formação
de estruturas sociais, ou antes, entre economia libidinal e teoria social. Desta
forma, ele passa então a construir, a partir de teorias distintas, um outro quadro
explicativo para o fenômeno do totemismo. Dois nomes são fundamentais aqui:
Charles Darwin com sua teoria da horda primitiva apresentada em ​A
descendência do homem e Seleção em relação ao sexo, d ​ e 1871 e William
Robertson Smith com sua teoria do ​festim totêmico ​apresentada em ​A religião dos
​ e 1889.
semitas, d
Baseado nas teorias de Darwin, Freud afirma que o estado social
originário do homem estaria marcado pela vida em pequenas hordas no interior
das quais o macho mais forte e mais velho impediria a promiscuidade sexual,
produzindo com isto a exogamia. Para acoplar tal teoria aos esquemas próprios
ao totemismo, bastou a Freud recorrer às similitudes entre fato social e sintoma,
no caso, sintomas infantis de fobia de animais. Por exemplo, é sintomático como
Freud compreendia a lógica que regia a constituição do objeto fóbico do pequeno
Hans (o medo de ser mordido por um cavalo). Um dos pólos de produção da
fobia vem do fato de que ele ama e odeia seu pai, ou seja, a mesma representação
paternal é objeto de afeto e medo, o que provoca uma instabilidade no interior da
identidade da representação. Para rejeitar tal ambivalência, Hans desloca a
angústia diante do pai para uma angústia diante de cavalos e denega a moção
agressiva contra o pai. O cavalo aparece assim como um “substituto do pai
(​Vatersurrogat​)”. É exatamente a mesma lógica que permitirá a Freud afirmar
que o animal totem não seria outra coisa que uma representação substituta do
pai, da mesma forma que o animal no interior de uma fobia infantil. Daí a

79
FREUD, ​Totem und tabu, ​p. 125
afirmação central que permite a compreensão do sentido das interdições tabu
através do uso do Complexo de Édipo:

Se é verdade que o animal totem é o pai, os dois principais mandamentos do


totemismo – a interdição de matar o totem e de usar sexualmente uma
mulher pertencente ao totem – coincidem, em conteúdo, com os dois
crimes de Édipo, que matou seu pai e tomou sua mãe por mulher, assim
como coincidem com os dois desejos originários da criança, cujo
recalcamento insuficiente ou o despertar formam o núcleo de todas as
80
psiconeuroses .

Afirmações como esta renderam várias críticas ao texto freudiano, já que se trata
de assumir a universalidade do Complexo de Édipo (um complexo resultante de
certas características específicas da família burguesa, como a sobreposição de
rivalidade e identificação com a figura paterna) como dispositivo geral de
socialização do desejo no interior da cultura.
Por fim, Freud apoia-se em Robertson Smith a fim de insistir que o
sacrifício e a festa são práticas sociais fundadoras e renovadoras dos vínculos
sociais. Neste sentido, lá onde há sacrifício e festa há uma organização social
baseada na circulação de dons (sacrifício) e no reconhecimento de uma Lei que
se faz sentir no momento mesmo em que é suspensa (festa). Smith lembra que: ‘a
forma mais antiga do sacrifício, anterior ao uso do fogo e ao conhecimento da
agricultura, era o sacrifício animal cuja carne e sangue eram consumidos em
81
comum pelo deus e seus adoradores” isto a fim de identificar o animal
sacrificado e o animal totêmico. Daí a hipótese do “festim totêmico”:

O sacrifício era um sacramento, a vítima era um membro do clã. Na verdade, era


o antigo animal totem, o próprio deus primitivo, através da sua morte e
absorção, os membros do clã renovavam e confirmavam a semelhança que
82
estes tinham em relação ao deus .

A partir daí, as peças estão armadas para que Freud apresente a hipótese
do assassinato do pai primevo, senhor da horda originária:

Um dia, os irmãos que tinham sido expulsos da hordas se uniram, mataram e


comeram o pai, colocando assim um fim a horda paterna (...) Que eles
tenham comido o cadáver, isto é evidente para o selvagem canibal. O pai
originário tirânico fora certamente o modelo invejado e temido de cada
um dos membros da irmandade. Assim, através do ato de comê-lo, eles
realizaram a identificação com o pai (...) O festim totêmico, talvez a
primeira festa da humanidade, seria a repetição deste gesto criminoso
memorável que está no começo de tantas coisas: organizações sociais,
restrições morais e religião (...) Eles odiavam o pai que representava um
forte obstáculo ás suas necessidades de poder e às suas exigências
sexuais, mas eles também o amavam e o admiravam. Uma vez que eles o

80
FREUD, ​Totem e tabu
81
idem
82
idem
eliminaram, satisfizeram seu ódio e realizaram seu desejo de com ele se
identificar, as moções tenras que tinham sido violentadas reapareceram.
Isto se produziu sob a forma do arrependimento (​Reue)​ , desenvolve-se
um sentimento de culpa que coincide com o arrependimento sentido
83
coletivamente .

Deste sentimento de culpa, segue-se a renúncia às mulheres desejadas (e, com


ela, a exogamia), a conservação da organização social comunitária, assim como a
preservação do lugar do pai primevo como um lugar vazio ocupado por um
substituto, o totem, que deve a partir de então ser objeto de homenagens e
cuidados. O totemismo aparece assim como um sistema de defesa contra o
sentimento de culpa. Sem o totemismo, tal sentimento recrudesce novamente (o
que explicaria seu retorno na modernidade).
Com este esquema explicativo, Freud procura dar conta do advento da
religião (que teria herdado do totemismo este esquema de sentimento de culpa
em relação a uma representação paterna), assim como a transformação de uma
“sociedade sem pais” em sociedade patriarcal. Sociedade, no entanto, em que a
figura paterna é uma pálida encarnação desta representação do pai primevo.
Mas o que podemos dizer deste mito freudiano? Ha duas dimensões do
problema que merecem nossa atenção. A primeiro diz respeito a esta figura do
poder que Freud apresenta através da hipótese do pai primevo. A segunda diz
respeito à anterioridade da culpabilidade em relação ao estabelecimento da Lei
social e da moralidade.
Sobre o primeiro ponto, lembremos que o mito freudiano constrói o pai
primevo como uma figura na qual convergem a enunciação soberana da Lei e
exigências de regulação social que tocam, principalmente, expectativas de
satisfação sexual. Como se uma genealogia do poder fosse, necessariamente,
arqueologia da maneira com o que é da ordem do sexual é regulado no interior
do tecido social. Não é por acaso que a posse do macho mais forte não é simples
posse de bens, mas posse de mulheres. Freud acaba por dar forma a esta crença
moderna de que o sexual transformara-se em fator central da política. Neste
sentido, lembremos desta afirmação fundamental de Foucault: : ”o que é próprio
das sociedades modernas não é o terem condenado o sexo a permanecer na
obscuridade, mas sim o terem-se devotado a falar dele sempre, valorizando-o
84
como ​o s​ egredo” . Um valorização que permitiu que algo da ordem das
expectativas utópicas que animaram a esfera do político transformasse o que é
da ordem do sexual em campo fundamental de intervenção social. O que explica
a constatação surpresa de Foucault:

E perguntemo-nos como foi possível que o lirismo, a religiosidade que


acompanharam durante tanto tempo o projeto revolucionário tenham
sido, nas sociedades industriais e ocidentais, transferidas, pelo menos em
85
boa parte, para o sexo .

83
idem
84
FOUCAULT, ​História da sexualidade I, p​ . 36
85
idem, p. 13
É tendo tais questões em mente que podemos ver o pai primevo freudiano
como um estranha figuração, talvez a única possível à sensibilidade moderna, do
lugar de exceção próprio à soberania. O lugar do pai primevo é um lugar
soberano por deixar à vista esta articulação, que estaria escondida em toda
formação social (que seria a dimensão recalcada de toda formação social
“racionalizada”), onde a enunciação do poder e a apropriação do gozo se
vinculam. O mito do pai primevo é assim a representação imaginária própria a
um tempo que vê a essência de todo poder como regulação e administração da
satisfação subjetiva. Se o mito é aquilo que fornece uma matriz explicativa capaz
de guiar a conduta dos sujeitos diante de certos conflitos socialmente
vivenciados, então podemos dizer que, através do mito do pai primevo, Freud
acaba por nos dizer (mesmo se a contragosto) que o sujeitos modernos agem
como quem vê instituições e figuras reconhecidas de autoridade como aquilo que
instaura e é responsável por uma distribuição desigual das possibilidades de
satisfação subjetiva. Maneira de conservar certas representações fantasmáticas
de satisfação que só podem ter realidade fantasmática.
As consequências políticas de tal representação imaginária serão
exploradas em ​Psicologia das massas e análise do eu. Ao invés do que poderíamos
normalmente esperar (ou seja, consolidação de demandas de “redistribuição”),
as sociedades modernas estariam abertas ao retorno de figuras superegóicas de
autoridade vindas na linha direta do mito do pai primevo, deste objeto perdido
inicial, ou que permitem a identificação com tais tipos ideais. Neste sentido,
lembremos como algumas das grandes contribuições da Escola de Frankfurt na
análise dos líderes fascistas era a insistência de que não estávamos diante de
líderes que pregavam alguma forma de sistema repressivo “law and order”, mas
de encarnações de sistemas sócio-políticos voltados para a mobilização contínua
de exigências libidinais e de transgressões controladas. Daí porque eles
lembravam que a verdadeira análise da ideologia fascista era uma análise da
economia libidinal que suportava o vínculo a tal ideologia.

A gênese da comunidade e o lugar vazio do poder

Neste ponto, fica claro como o ponto fundamental do argumento


freudiano neste livro não está na tentativa de fundamentar hipóteses
antropogenéticas recorrendo a uma pretensa cena originária da vida social com
sua violência primordial. Melhor seria se perguntar sobre qual perspectiva de
avaliação da estrutura dos vínculos sociais no começo do século XX leva Freud a
procurar as bases para a autorreflexão da modernidade em teorias como o
totemismo, o festim totêmico e a ideia darwiniana de que o estado social
originário do homem estaria marcado pela vida em pequenas hordas no interior
das quais o macho mais forte e mais velho (o pai primevo) impediria a
promiscuidade sexual, produzindo com isto a exogamia. Por isto, ​devemos
compreender a criação do mito do assassinato do pai primevo como a maneira,
disponível a Freud, de dizer que, em relações sociais atuais, os sujeitos agem como
quem carrega o peso do desejo de assassinato de um pai que nada mais é do que a
encarnação de representações fantasmáticas de autoridade soberana. O
fundamento da vida social é a revolta e sua impotência.
Esta dimensão de um “agir como” é o que deve ser salientado aqui. Ela nos
envia a modos de representação fantasmática em operação nas relações de
sujeitos com instâncias de autoridade e instituições. Haveria muito a se dizer a
respeito desta estratégia freudiana, mas nos restrinjamos a alguns pontos gerais.
Mas queria terminar insistindo nos problemas ligados ao sentimento de culpa
como modo de adesão social. Este sentimento de culpa vem do fato do pai não
ser apenas responsável pela crueldade e coerção, mas ser também objeto
perdido de amor e identificação. A este respeito, lembremos como:

a identificação é ambivalente desde o início; ela pode se voltar tanto para a


expressão da ternura quanto para o desejo de eliminação (…) Como se
sabe, o canibal permanece nessa posição; ele gosta de devorar seus
inimigos, e não devora aqueles de que não poderia gostar de alguma
86
maneira .

Mas notemos como a identificação com o pai primevo implica crença na


transmissão, na possibilidade de ocupar em algum momento o mesmo lugar.
Note-se como a mera possibilidade de tal lugar de exceção existir é, de maneira
bastante peculiar, fonte de amparo pois implica alcançar posição na qual as
limitações normativas seriam inefetivas, na qual a decisão se afirmaria, como
gostava de dizer Carl Schmitt, “em sua pureza absoluta” insubmissa à codificação
87
prévia de suas condições, em sua indivisão teológica entre vontade e ação . Mas
com seu assassinato, instaura-se algo como uma comunidade de iguais na qual
todos acabam por abrir mão de ocupar o lugar outrora preenchido pelo pai:

Os irmãos haviam se aliado para vencer o pai, mas eram rivais uns dos outros no
tocante às mulheres. Cada um desejaria, como o pai, tê-las todas para si, e
na luta de todos contra todos a nova organização sucumbiria. Nenhum era
tão mais forte que os outros, de modo a poder assumir o papel do pai.
Assim, os irmãos não tiveram alternativa, querendo viver juntos, senão -
talvez após superarem graves incidentes – instituir a proibição do incesto,
com que renunciavam simultaneamente às mulheres que desejavam,
88
pelas quais haviam, antes de tudo, eliminado o pai .

Notemos inicialmente a recorrência da iminência hobbesiana da “luta de


todos contra todos” produzida pela igualdade natural de forças e pela
convergência de objetos de desejo. Como se antes do estado de natureza
hobbesiano houvesse a soberania do pai primevo. A possibilidade recorrente da
luta deve produzir o desejo pela instauração de normas responsáveis pela
restrição mútua (no caso, a proibição do incesto) e pela regulação das paixões,
garantindo assim as condições de possibilidade para a constituição do espaço
político. Aparece, desta forma, uma espécie de contrato social que permite a
renúncia pulsional, o reconhecimento de obrigações mútuas e o estabelecimento
86
(FREUD, Sigmund; ​Psicologia das massas e análise do eu, p​ . 94)
87
Difícil discutir tal função da fantasia social do pai primevo sem recorrer à noção de decisão em
SCHMITT, Carl; ​Politische Theologie: Vier Kapitel zur Lehre von der Souveranität, B ​ erlin: Duncker
and Humblot, 1934. Como se tratasse, em Freud, de fornecer a economia libidinal da soberania.
88
FREUD, Sigmund; “Totem e tabu”, In: Obras completas vol. 11, São Paulo: Companhia das Letras,
2012, p. 220
de instituições. Ele ainda tem, como saldo, a perpetuação da condição feminina
como exterior à determinação dos sujeitos agentes já que, nesta narrativa, as
mulheres se perpetuam como meros objeto de contrato.
No entanto, insistamos em outro ponto. No mito freudiano há de se levar
em conta como tal constituição do espaço político produz inicialmente a abertura
de um “lugar vazio” do poder, já que: “ninguém mais podia nem era capaz de
89
alcançar a plenitude de poder do pai” . Tal lugar vazio, que Freud chega a
descrever como próprio a uma sociedade sem pais (​vaterlose Gesellschaft)​ que
parece poder realizar a igualdade democrática, permitiu o aparecimento de laços
comunitários baseados em “sentimentos sociais de fraternidade (...) na
sacralização do sangue comum, na ênfase na solidariedade de todas as vidas do
90
mesmo clã” .
Mas esta comunidade de iguais, esta sociedade sem pais, tem uma
fragilidade estrutural: tal lugar vazio é suplementado por uma elaboração
fantasmática. A fantasia do pai primevo não foi abolida, já que ele permanece na
vida psíquica dos sujeitos sob a forma de um sentimento comum de culpa como
fundamento de coesão social, que denuncia, por outro lado, o desejo que tal lugar
seja ocupado. Assim, o afeto de solidariedade que a comunidade dos iguais
permite circular é também responsável pela paralisia social de quem continua
sustentando a “nostalgia pelo pai” (​Vatersehnsucht)​ agora elevado à condição de
objeto perdido. Este pai que não está lá, mas que faz sua latência ser sentida,
retornará sob uma forma melancólica.
A sociedade sem pais deverá assim converter-se gradualmente em uma
sociedade organizada de forma patriarcal. Pois o lugar vazio do poder é, ao
mesmo tempo, lugar pleno de investimento libidinal em uma figura de exceção
que se coloca em posição soberana. Isto leva Freud a afirmar:

houve pais novamente, mas as realizações sociais do clã fraterno não foram
abandonadas, e a efetiva distância entre os novos pais de família e o
ilimitado pai primevo da horda era grande o suficiente para garantir a
continuação da necessidade religiosa, a conservação da insaciada
91
nostalgia pelo pai .

“Houve pais novamente”. Mas agora pais que poderiam cuidar,


individualizar, pregar a renúncia pulsional, em suma, aplicar o poder pastoral e
nos lembrar da importância do respeito à norma e às exigências restritivas das
instituições. Pais que precisavam lembrar que estavam lá para enunciar mais
uma vez a Lei porque, caso não mais lá estivessem, estaríamos vulneráveis a
figuras como o pai primevo. Medo que apenas ativa a memória da identificação
arcaica com um direito natural que abri mão, mas que constituiu em minha vida
psíquica os laços melancólicos com um objeto perdido, enredado nas sendas da
transmissão. Assim houve pais novamente, mas pais assombrados pela
inadequação em relação à figuras de soberania que se fundamentam em posição
de excepcionalidade em relação à Lei. O que nos permite pensar que a
autoridade desses pais precisará reavivar periodicamente os traços do pai

89
Idem, p. 226
90
Idem, p. 222
91
Idem, p. 227
primevo e seu lugar de excepcionalidade, dando espaço para um jogo de
reiteração constante entre a Lei e sua transgressão, pulsação pendular de
retorno e distância em relação à cena primitiva, pulsação afetiva que vai da
mania à depressão. Assim, se esses pais souberem como trazer periodicamente o
pai primevo, a revolta contra a civilização poderá servir de elemento para a
perpetuação de uma ordem que todos sentem de forma restritiva.
Psicologias do fascismo
Aula 5

Na aula de hoje, gostaria de mostrar como o esquema que vimos em ​Psicologia


das massas, de Freud, servirá para a recomposição contemporânea da
compreensão do populismo. É conhecido de todos vocês como “populismo”
tornou-se um termo central na filosofia política atual. Hoje, ele é utilizado para
dar conta das forças que parecem se contrapor aos processos e modos de gestão
inerentes à democracia liberal. Não é difícil perceber como, na grande maioria
dos casos, “populismo” é utilizado como sinônimo de regressão social e política.
Ele aparece assim como a expressão da irracionalidade e do primado das
identificações afetivas personalistas em política. Vários teóricos liberais gostam
de descrever o populismo como a explosão do irracional e do afeto em política,
como se a democracia corriqueira fosse o domínio desencantado da razão.
Dentro desta lógica, o uso extensivo do termo populismo permite a
criação de uma estratégia de desqualificação e aproximação dos extremos
políticos, isto a fim de defini-los como posições políticas anti-democráticas,
fundamentada não na força do melhor argumento, mas na mobilização de afetos
e paixões. Desta forma, o termo “populismo” pode ser utilizado para evitar
nomear grupos claramente racistas, xenófobos e de tendências fascistas. Pois,
cria-se uma certa relação de equivalência entre os extremos políticos da direita e
da esquerda. Por outro lado, ele tende a nomear toda tendência que não se
reconhece no interior das posições possíveis da democracia liberal. Assim,
“populista” serão as políticas econômicas anti-liberais, “populista” serão as
posições políticas que insistirão na necessidade de refundação institucional da
democracia. Pois notemos que o recurso à liderança como princípio de unificação
social não é um elemento diferencial do populismo, mas está presente no
funcionamento normal de quase todos os processos genéricos de governo.
No entanto, populismo descreve, de forma analítica, uma dinâmica precisa
ligada a construção de hegemonia no interior do campo político. Tal construção
de hegemonia está necessariamente ligada oa uso da noção de “povo” como
operador político central. O populismo aparece assim como uma forma de
integração de massas ao processo político através da construção do “povo” como
agente. O filósofo argentino Ernesto Laclau foi um dos poucos a conseguir
escapar da desqualificação genérica do populismo, ao mostrar como este
descrevia uma característica fundamental da democracia, a saber, a capacidade
de incorporação, através da construção do “povo”, de classes sempre expulsas do
92
poder . Na sua reconstrução do populismo, Laclau recuperou a psicologia das
massas de Freud a fim de lhe dar uma nova dimensão. Na aula de hoje, eu
gostaria de discutir tal operação, a fim de compreender suas estratégias e limites,
assim como entender melhor a psicologia inerente às formas atuais de análise de
fenômenos políticos de massa e da lógica de formação de identidades coletivas.

Demandas e afetos

92
LACLAU, Ernesto; ​A razão populista​, São Paulo: Três Estrelas, 2014. Discuto mais detidamente a
hipótese de Laclau nos dois primeiros capítulos de SAFATLE, Vladimir; ​O circuito dos afetos: corpos
políticos, desamparo e o fim do indivíduo​, Belo Horizonte: Autêntica, 2016
O projeto de Laclau parte da impossibilidade de pensar o campo social a
partir da noção de grupos em conflito. A noção de grupo pressupõe uma
homogeneidade de interesse na constituição de atores sociais. Cada ator é
portador de sistemas homogêneos de interesses que entram em conflito com
interesses de grupos opostos. Na verdade, Laclau se propõe a dar um passo atrás
a fim de abrir espaço a uma noção na qual grupos aparecem como arranjos
desenvolvidos a partir de demandas muitas vezes heterogêneas. Neste sentido, é
a noção de “demanda” que ganha importância. Entende-se, neste contexto, por
demanda uma ​petição, u​ ma ​exigência​. O que deixa claro seu horizonte de direção
a um Outro que deve, de certa maneira, ocupar uma dimensão de poder. Grupos
podem conter demandas muitas vezes contraditórias, heteróclitas e toda questão
gira em torno de compreender como demandas contraditórias podem ser, muitas
vezes, agenciadas em incorporações unificadoras. No caso, como é possível a
criação de hegemonia a partir de um terreno socialmente fragmentado, disperso
e múltiplo. Lembremos que, neste contexto, hegemonia deve ser compreendido
como:

Hegemonia aludirá a uma totalidade ausente, e às diversas tentativas de


recomposição e de rearticulação que, ao superar a ausência original,
tornará possível para as lutas um sentido e para forças históricas serem
93
fortalecidas com uma positividade plena .

Por isto, o conceito de hegemonia irá emergir precisamente em um


contexto dominado pela experiência da fragmentação e pela indeterminação das
articulações entre diferentes lutas e posições subjetivas. O horizonte histórico
deste pensamento insere-se na crítica às noções tradicionais de classe e de
consciência de classe como modo de constituição de sujeitos políticos dotados de
unidade potencial de ação e de interesse. Por outro lado, trata-se de outorgar
centralidade à noção de “afeto” na constituição social. A possibilidade de
incorporação não se dá através do esclarecimento da existência de interesses
comuns fundadores de uma classe, mas através da mobilização de afetos capazes
de estabelecer convergências entre demandas contraditórias.
Notemos inicialmente como Laclau procura uma definição estrutural de
populismo para retirá-lo da condição de descrição de alguma forma de distorção
no campo pretensamente comunicacional do político. Na verdade, ele procura
definir o populismo como a expressão do político enquanto tal. Vejamos, por
exemplo, colocações como esta a respeito da “simplificação” que seria inerente às
estratégias populistas:

Não seria esta lógica da simplificação e da imprecisão a condição mesma da ação


política? Apenas em um mundo impossível, no qual a administração
suplantasse totalmente a política e uma ​piecemeal engineering ​no trato
das diferenças particularizadas tivesse suplantado totalmente as
dicotomias antagônicas, poderíamos dizer que a “imprecisão” e a
“simplificação” teriam sido realmente erradicadas da esfera pública.
Nesse caso, sem dúvida, o traço distintivo do populismo seria apenas a

93
LACLAU, Ernesto e MOUFFE, Chantal; Hegemony and socialist strategy, p. 7
ênfase em uma lógica política que é um ingrediante necessário da política
94
tout court .

Laclau está a dizer que as dinâmicas internas ao populismo são próprias a


todo e qualquer embate político. Laclau chega a ver no populismo “a via real para
95
compreender algo relativo à constituição ontológica do político enquanto tal” .
Isto a ponto de defender não haver “nenhuma intervenção política que não seja,
96
até certo ponto, populista” . A maneira depreciativa com a qual tais dinâmicas
aparecem seriam, na verdade, parte de uma estratégia de desqualificação da
emergência de uma política popular a partir do final do século XIX. Daí porque
Laclau relê Le Bon a fim de afirmar que sua maneira de descrever processos de
regressão social não é outra coisa que a descrição dos processos normais de
produção de significação social e sentido. Ele relê Hyppolite Taine, Lombroso,
Sighele para mostrar como as representações das massas tinham como objetivo
dar conta das dinâmicas afetivas que constituíam os laços sociais, mas sem nunca
perceber que estávamos a descrever os processos gerais de constituição de
formas de corpo social.
É neste ponto que Laclau recorre a Freud. Ele verá em ​Psicologia das
massas e análise do eu t​ anto a descrição da lógica imanente às identidades
coletivas populares quanto as formas de regressão autoritária. Partindo das
mesmas descrições do advento da sociedade de massas que influenciaram Freud
(Le Bon, Tarde, e McDougall) a fim de deixar evidente seu caráter de reação ao
aparecimento de identidades populares no campo político, Laclau retorna ao
texto freudiano para explorar a dubiedade do fenômeno identificatório no qual
sua psicologia das massas se baseia:

Se nossa leitura está correta, tudo gira em torno da noção chave de identificação
e o ponto de partida para explicar uma pluralidade de alternativas
socio-políticas deve basear-se no ​grau ​de distância entre o eu e o ideal do
eu. Se tal distância aumenta, encontraremos a situação centralmente
descrita por Freud: a identificação entre os pares como membros do
grupo e a transferência do papel de ideal do eu para o líder. (...) Se, ao
contrário, a distância entre o eu e o ideal do eu é menor, o líder será o
objeto eleito pelos membros do grupo, mas também será parte destes,
97
participando do processo geral de identificação mútua .

Ou seja, Laclau procura definir uma diferença entre processos identificatórios a


fim de distinguir uma identificação autoritária (esta na qual o grau de distância
entre o eu e a ideal é grande) e outra própria a uma dinâmica de incorporação
popular (esta na qual temos um processo geral de identificação mútua).
Mas a mera proximidade entre eu e ideal do eu nos processos de
identificação entre líder e povo não é suficiente para determinarmos uma
natureza não autoritária dos vínculos políticos. Adorno insistia que os líderes
fascistas eram exatamente aqueles que se constituíam a partir de uma distância

94
LACLAU, Ernesto; La razón populista, p. 33
95
LACLAU, Ernesto; ​La razón populista​, Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2011, p. 91
96
Idem, p. 195
97
Idem, p. 87
mínima entre o eu e o ideal do eu. Pois a condição de ser, ao mesmo tempo, o
ideal do eu e a representação de um mesmo objeto internalizado - que permite a
construção de relações gerais de equivalência na massa - faz o líder tender a
aparecer como “o alargamento da própria personalidade do sujeito, uma
projeção coletiva de si mesmo, ao invés da imagem de um pai cujo papel durante
98
a última fase da infância do sujeito pode bem ter decaído na sociedade atual” .
Adorno explora tal traço ao afirmar que:

uma das características fundamentais da propaganda fascista personalizada é o


conceito de ‘pequeno grande homem’, uma pessoa que sugere, ao mesmo
tempo, onipotência e a ideia de que ele é apenas mais um do povo, um
simples, rude e vigoroso americano, não influenciado por riquezas
99
materiais ou espirituais .

Pois as identificações não são construídas a partir de ideais simbólicos. Elas são
basicamente identificações narcísicas que parecem compensar o verdadeiro
100
sofrimento psíquico do “declínio do indivíduo e sua subsequente fraqueza” , um
declínio que não é apenas apanágio de sociedades abertamente totalitárias. Isto
talvez explique porque este “mais um do povo” possa ser expresso não apenas
pela simplicidade, mas às vezes pelas mesmas fraquezas que temos ou que
sentimos, pela mesma revolta impotente que expressamos. Pois:

o líder pode adivinhar as necessidades e vontades psicológicas desses suscetíveis


à sua propaganda porque ele se assemelha a eles psicologicamente, e
deles se distingue pela capacidade de expressar sem inibição o que está
101
latente neles, isto ao invés de encarnar uma superioridade intrínseca .

A fim de salientar o fundamento democrático de sua hipótese, Laclau


descreverá a especificidade de certa forma de alçar a particularidade do líder à
condição de apresentação de uma totalidade composta pelo povo. Ela consiste
em mostrar como “uma particularidade assume uma significação universal
102
incomensurável consigo mesma” , transformando-se no corpo de uma
totalidade inalcançável. É importante para Laclau insistir no caráter inalcaçável
da totalidade a fim de impedir que ela se coloque como fundamento a ser
recuperado em um retorno autoritário à essencialidade original dos vínculos
sociais, aparecendo ao contrário como fundamento de um horizonte de
transformação continuamente aberto. Para tanto, tal particularidade deve se
tornar um “significante vazio”. Ou seja, não basta, como em Claude Lefort, que o
lugar simbólico do poder esteja vazio. Faz-se necessário que aquele que ocupa tal
lugar também apareça como um significante vazio e que tal vacuidade seja
decisiva na constituição de sujeitos políticos.
Neste ponto, encontramos um dos eixos fundamentais do conceito de
populismo em Laclau. Populismo é sempre uma forma de criar hegemonia em

98
ADORNO, Theodor; op.cit., p. 418
99
Idem, p. 421
100
Idem, p. 411.
101
ADORNO, Theodor; “Democratic leadership and mass manipulation”, op. cit., p. 427
102
Idem, p. 95
campos de demandas heterogêneas. Encontramos demandas contraditórias que
são colocadas em uma série convergente, são articuladas a partir da
convergência de todas elas a um ponto comum. No entanto, como podem
demandas sociais contraditórias convergirem para um mesmo ponto, para uma
mesma pessoa, para uma mesma ideia? Faz-se necessário que esta pessoa seja
um significante vazio: alguém que nunca enuncia claramente suas posições,
alguém que parece adequar-se a todos os grupos, como se estivesse em uma
posição flutuante. Este significante será a encarnação de uma totalidade cujo
nome será “povo”.

O vazio instaurador

Notemos alguns pontos aqui. O primeiro foi bem salientado por Slavoj
Zizek:

“O vazio do ‘povo’ é o vazio do significante hegemônico que totaliza a cadeia de


equivalência, isto é, cujo conteúdo particular é ‘transubstanciado’ numa
incorporação do todo social, enquanto o vazio do lugar do poder é uma
distância que torna ‘deficiente’, contingente e temporário todo portador
103
empírico do poder” .

Ou seja, não se trata de dizer que, no populismo, o lugar do poder está vazio.
Trata-se de dizer que o líder é a encarnação de um povo que precisa de um
significante vazio para se totalizar. Este significante pode ser, por exemplo,
valores como “liberdade”, “justiça”. Eles precisam ser vazios para que uma
multiplicidade de demandas possa encarnar-se, transcendendo seus próprios
contextos particulares. Este momento transcendente seria fundamental para a
constituição de toda identidade coletiva.
Só assim o vazio poderia preencher o papel que lhe cabe: instaurar o povo
como um modelo de identidade coletiva baseado na multiplicidade. No caso,
multiplicidade de demandas concretas de diferentes grupos distintos, muitas
vezes contraditórias entre si, mas capaz de ser agenciada em uma rede de
equivalências que permite, ao mesmo tempo, a constituição de uma identidade
popular-coletiva e a determinação de linhas antagônicas de exclusão (agora
politizadas). Assim, Laclau poderá afirmar:

Não há totalização sem exclusão, e sem que tal exclusão pressuponha a cisão de
toda identidade entre, de um lado, sua natureza diferencial que a
vincula/separa de outras identidades e, de outro, seu laço equivalencial
com todas as identidades restantes a partir do elemento excluído. A
totalização parcial que o vínculo hegemônico consegue criar não elimina a
cisão mas, ao contrário, deve operar a partir das possibilidades
104
estruturais que derivam dela .

Freud não falaria outra coisa ao denunciar a dinâmica autoritária da psicologia


das massas, mas Laclau não vê tal cisão como expressão necessária de práticas

103
ZIZEK, Slavoj; ​Em defesa das causas perdidas,​ São Paulo: Boitempo, 2011, p. 247
104
LACLAU, Ernesto; idem, p. 104
segregacionistas. Vários movimentos populistas, em especial os
latino-americanos, se servem desta totalização por exclusão para operar no
âmbito político das lutas de classe, no que é incorreta a crítica de que Laclau
desconheceria a luta de classes. Desta forma, o populismo pode dividir a
sociedade em dois campos antagônicos no interior do qual o povo, mesmo não se
confundindo com a totalidade dos membros da comunidade, coloca-se como
parte que procura ser concebida como única totalidade politicamente legítima,
plebs até então não-representada que reclama ser o único ​populus legítimo.
Assim se constitui um povo. O que não deixa de ressoar uma ideia fundamental
de Carl Schmitt:

Palavras como Estado, república, sociedade, classe e ademais soberania, Estado


de direito, absolutismo, ditadura, plano, Estado neutro ou total etc. são
incompreensíveis quando não se sabe quem deve ser, ​in concreto​,
105
atingido, combatido, negado e refutado com tal palavra .

Por isto, um elemento central do populismo é sua natureza


anti-institucional. Ele se constitui no interior de um processo de incorporação
daqueles que até então não existiam do ponto de vista dos atores políticos.
Não-contados que foram colocados a margem do funcionamento da vida
institucional. Por isto, sua emergência só pode se dar colocando em questão a
ordem institucional vigente. No populismo, aqueles até então invisíveis começam
a ser contados. Mesmo que, para tanto, suas demandas apareçam junto a várias
outras demandas de naturezas distintas. Mas isto implica em mobilizar a força
política contra as instituições que, até o momento, foram responsáveis pela
gestão da invisibilidade social. Laclau sintetiza isto da seguinte forma:

Sabemos que o populismo requer a divisão dicotômica da sociedade em dois


campos – um que se apresenta a si mesmo como parte que reclama ser o
todo – dicotomia que implica a divisão antagônica do campo social e que
pressupõe, como condição de constituição do campo popular, a
construção de uma identidade global a partir da equivalência de uma
106
pluralidade de demandas sociais .

No entanto, sob o populismo, a constituição do campo popular, quanto


maior for, pede cada vez mais a suspensão do caráter contraditório de demandas
particulares que ele precisa mobilizar. Por isto, só cabe à liderança ser um
significante vazio que parece operar como ponto de unidade entre interesses
aparentemente tão distintos. Tal caráter vazio dos significantes que unificam o
campo popular não é resultado de algum arcaísmo político próprio a sociedades
prenhes de ideias fora do lugar. Ele “simplesmente expressa o fato de que toda
unificação populista tem lugar em um terreno social radicalmente heterogêneo”
107
. Daí porque ele precisa afirmar:

105
​ elo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 32
SCHMITT, Carl; ​O conceito de político – Teoria do partisan, B
106
LACLAU, Ernesto; La razón populista, p. 110
107
Idem, p. 128
A identidade popular se torna cada vez mais plena a partir de um ponto de vista
extensivo, já que representa uma cadeia sempre maior de demandas; mas
ela se torna intensivamente mais pobre, pois deve despojar-se de
conteúdos particulares a fim de abarcar demandas sociais que são
totalmente heterogêneas entre si. Isto é uma identidade popular que
108
funciona como um significante tendencialmente vazio .

Laclau fornece vários exemplos para dar conta de um fenômeno que, em


seu caso, certamente tem expressões profundas no peronismo e em outras
formas de populismo latino-americano reformista, capazes de permitir a
constituição de identidades coletivas. Nestes casos, o populismo demonstrou tal
função pelo fato da defesa da ordem institucional nestes países ter sempre
estado, em larga medida, vinculada às demandas hegemônicas de setores
conservadores da sociedade. O que pode não ser o caso. Tal indeterminação de
resultados relativos a fenômenos populistas permite a Laclau ver no papel
unificador de Nelson Mandela, que acaba por se confundir com o nome do
próprio Estado, na política ​cosa nostra do governador paulista Adhemar de
Barros ou nos projetos de Mao Tse-Tung exemplos do antiinstitucionalismo
populista. Pois:

existe em toda sociedade um reservatório de sentimentos anti ​status quo puros


que se cristalizam em alguns símbolos de ​maneira relativamente
independente da forma de sua articulação política e é sua presença que
percebemos intuitivamente quando denominamos “populista” um
109
discurso ou uma mobilização .

Tais símbolos são “significantes flutuantes” cujo caráter de “flutuação” vem do


fato de poderem aparecer organizando o discurso de perspectivas políticas
muitas vezes radicalmente distintas entre si. Por outro lado, esses sentimentos
anti institucionais normalmente se encarnam em chamados aos “de baixo”, aos
que estavam fora da ordem institucional. Por isto, Benjamin evocava a atração
popular pelo criminoso, pelo bandido. A atração vem da posição de exterioridade
em relação à ordem legal.

Transformação e paralisia

As elaborações de Laclau são precisas em mais de um ponto. Elas


mostram como a perspectiva freudiana e seus desdobramentos permitem
compreender, com clareza, os processos identificatórios no campo político não
apenas como regressivos, mas também como constitutivos da própria dinâmica
transformadora das lutas sociais. Não há política democrática sem o
reconhecimento de dinâmicas constituídas no ponto de não-sobreposição entre
direito e demandas sociais, entre legalidade e legitimidade. Não há política
democrática sem um excesso de antagonismo em relação às possibilidades
previamente decididas pela estrutura institucional, e é isto que a experiência
populista nos mostra, embora o populismo não seja o único modo de existência

108
Idem, p. 125
109
Idem, p. 136
110
do excesso de antagonismo sobre a estrutura democrático-institucional . De
toda forma, Laclau nos permite compreender como a reflexão política freudiana
pode nos ajudar a sublinhar a complexidade da relação entre institucionalidade e
demandas que se alojam em um espaço anti-institucional. A irredutibilidade da
posição da liderança implica reconhecimento de um lugar, não completamente
enquadrado do ponto de vista institucional, marcado pela presença da natureza
constituinte da vontade política. Tal lugar pode tanto impedir que a política se
transforme na gestão administrativa das possibilidades previamente
determinadas e constrangidas pelo ordenamento jurídico atual quanto ser o
espaço aberto para a recorrência contínua de figuras de autoridade e liderança
que parecem periodicamente se alimentar de fantasias arcaicas de segurança,
proteção e de medo. Esta ambivalência lhe é constitutiva, pois ela é, na verdade, a
própria ambivalência da incorporação em política. Tanto é assim que a definição
de demandas democráticas fornecida por Laclau é bastante sumária:

Há um ingrediente da noção de democracia na tradição marxista que é


necessário reter: a noção de insatisfação da demanda que enfrenta um
status quo existente e permite o desencadeamento da lógica equivalencial
111
que conduz ao surgimento do povo .

Como podemos notar, esta colocação não se diferencia muito de uma


descrição genérica de ruptura anti-institucional. O que nos coloca uma questão
importante, a saber, se a concepção política de povo é suficiente para descrever
processos emancipatórios. A constituição do povo e de sua visibilidade é
condição suficiente para falarmos em política emancipatória?
Pois talvez sejamos obrigados a afirmar que o povo é uma categoria
política provisória e profundamente limitada. Quando o povo sobe à cena e lá
permanece de forma não-provisória, é impossível impedir que seus eixos de
convergência não se cristalizem sob a figura da nação e se institucionalizem sob a
figura do estado. Não há povo sem nação. Não há nação sem exclusão,
perseguição e afirmação territorial. Não é possível criticar a colonização do
campo político pelo estado-nação e tentar conservar uma compreensão
ontológica do povo. O povo induz necessariamente ao estado e à nação, a não ser
que ele só se encarne em momentos nos quais as sociedades precisam
concentrar sua potência em um linha de fuga a fim de que rupturas e mudanças
qualitativas sejam possíveis. Por isto, ​o povo não deve aparecer como substância
social, mas como potência de emergência. Uma potência de emergência que
ampliará sua força se for capaz de se encarnar em um corpo social des-idêntico e
inquieto, ao invés do corpo unitário do imaginário social. Pois a política é a
emergência do que não se estabiliza nos regimes atuais de existência
Por outro lado, a estratégia de Laclau tem ainda outro problema
importante. Pois ele deveria explorar com mais sistematicidade a natureza
profundamente ambígua das estratégias populistas e sua necessária limitação.
Ambiguidade entendida não no sentido da polaridade, sempre alimentada pelo
pensamento conservador, entre democracia com instituições fortes e
autoritarismo personalista, mas no sentido de uma oscilação contínua, interna a

110
Cf. ZIZEK, Slavoj; ​Em defesa das causas perdidas,​ op. cit., p. 287
111
LACLAU, idem, p. 161
todo movimento populista, entre ​transformação e ​paralisia.​ Por sustentar ​a
necessidade de sujeitos políticos se expressarem como povo c​ onstituído através de
cadeias de equivalências entre demandas concretas muitas vezes contraditórias,
o populismo é assombrado continuamente pelo risco da paralisia dos processos
de transformação social devido ao fato de alcançarmos rapidamente um ponto de
equilíbrio no qual demandas conflitantes começam a se vetar mutuamente. O
populismo avança em situações nas quais há um cálculo possível que permite a
várias e determinadas demandas mais fortes serem, em algum nível,
contempladas. No entanto, ele se depara rapidamente com uma situação na qual
processos de transformação se estancam devido ao equiílbrio impossível entre
demandas conflitantes, o que faz do processo de liderança uma gestão contínua
do imobilismo e da inércia, desviada pela construção pontual de antagonismos
setorizados com grupos exteriores. Faz parte da dinâmica do populismo a
presença destes momentos nos quais o imobilismo se justifica pela
transformação da luta de classes em mero fantasma a assombrar, com ameaças
de regressões a condições antigas de vulnerabilidade, os setores submetidos à
liderança. Assim, consolida-se a dependência às figuras de liderança que já não
são mais capazes de fazer o processo de transformação avançar, mas que tentam
nos fazer acreditar que, se desaparecerem, elas poderiam nos levar à situação de
perda das conquistas geradas. Figuras que a partir de então se perpetuarão
através do retorno fatídico à mobilização libidinal do medo como afeto político.
Psicologias do fascismo
Aula 6

Na aula de hoje, gostaria de discutir o texto “A estrutura psicológica do fascismo”,


de Georges Bataille. Escrito em 1933, no ano da ascensão do Partido Nacional
Socialista ao poder, o texto de Bataille é um dos primeiros a utilizar o quadro
psicanalítico de análise do social para dar conta diretamente do fascismo. Mas
primeiramente lembremos de alguns traços fundamentais do horizonte crítico de
Georges Bataille. Eles nos facilitarão na tarefa de compreender sua interpretação
do fascismo.

Um crítica da sociedade do trabalho

Bataille inicia seu texto afirmando que a sociedade capitalista da


produção é uma sociedade homogênea, ou seja, baseada na construção de uma
estrutura social na qual relações e valores são baseadas na utilidade e na
quantificação. Sociedade homogênea produtora de indivíduos homogêneos.
“Homogeneidade significa aqui comensurabilidade e consciência dessa
comensurabilidade (as relações humanas podem ser mantidas por uma redução
a regras fixas baseadas na consciência da identidade possível de pessoas e de
112
situações definidas)” . Todo o problema de tais sociedades é como lidar com a
exclusão do que é heterogêneo, que Bataille aproxima daquilo que é inconsciente,
ou seja, sem forma própria de apreensão pela consciência. Ou seja, a base da vida
social é uma certa noção de homogeneidade criada pelo sistema de produção,
pela submissão das atividades à abstração monetária, pelos ditames da
sociedade do trabalho.
Em vários momentos, Bataille lembrará que nossas sociedades modernas
ocidentais são caracterizadas por serem, principalmente, sociedades do trabalho.
O trabalho aparece como atividade fundamental para a constituição das
identidades sociais e para o meu reconhecimento como sujeito. Se o trabalho tem
esta dimensão formadora é porque ele é uma das versões mais bem acabadas de
certo processo de auto-governo. Só aqueles capazes de se auto-governar são
capazes de trabalhar. Pois, como dizia Marx, através do trabalho, aprendemos a
impor uma lei à vontade, lei que deve ser reconhecida por mim como expressão
da minha própria vontade. Esta vontade que submete outras vontades e que
aparece assim para o sujeito com um dever que ele mesmo põe para si, dever que
lhe permite relativizar as exigências imediatas de auto-satisfação, é um fator
decisivo na constituição da noção moderna de autonomia. Por isto, só aqueles
capazes de trabalhar são autônomos; não apenas no sentido material de serem
capazes de prover seus próprios sustentos, mas no sentido moral de serem
capazes de impor para si mesmo uma lei de conduta que é a expressão de sua
113
própria vontade. E se lembrarmos da ideia de Rousseau , para quem a
verdadeira liberdade é a capacidade de dar para si mesmo sua própria lei, ser
legislador de si mesmo, então seremos obrigados a dizer que o trabalho é
exercício mais importante para a liberdade.

112
BATAILLE, Georges; ​La structure psychologique du fascisme, p​ . 137
113
​ aris : gallimard, 2000
Ver ROUSSEAU, Jean-Jacques; ​Le contrat social, P
No entanto, para Bataille, devido a esta natureza de auto-controle
socialmente validado não é possível ao trabalho aparecer, em qualquer momento
que seja, como modalidade bem sucedida de reconhecimento social. Trabalhar
sempre será uma operação servil. Podemos mesmo modificar radicalmente a
divisão social imposta ao trabalho pelo capitalismo e permitir que todos tenham
a posse dos meios de produção e de seus frutos. Para Bataille, isto não mudará o
essencial, a saber, que o mundo do trabalho é o mundo da produção e que
produzir implica ser capaz de submeter atividades ao cálculo de tempo e metas,
não se deixar desviar das metas estabelecidas, perguntar-se pela utilidade final
de cada objeto produzido, avaliar cada ação a partir do valor que ela produziu.
Ou seja, o mundo do trabalho é um mundo no qual posso calcular valores que
são homogêneos. A lei que imponho para mim mesmo quando organizo minhas
atividades a partir da lógica do trabalho é uma lei que me ensina a calcular, a
medir, a quantificar minhas atividades, os objetos que produzo e, principalmente,
o prazer final que alcanço. E neste ponto que se encontra, para Bataille, o
verdadeiro núcleo da experiência de alienação produzida pela sociedade do
trabalho. Por isto, ele precisará lembrar:

O trabalho exige uma conduta em que o cálculo do esforço, relacionado à eficácia


produtiva, é constante. Exige uma conduta razoável, em que os
movimentos tumultuosos que se liberam na festa e, geralmente, no jogo,
não são admitidos. Se não pudéssemos refrear esses movimentos, não
poderíamos trabalhar, mas o trabalho introduz justamente a razão de
114
refreá-los .

Nesta citação, vemos Bataille introduzir uma oposição importante. Há um


modelo de cálculo derivado da lógica do trabalho. Tal modelo é indissociável da
noção de “utilidade”, assim como de um tempo no qual as atividades são
calculadas tendo em vista sua utilidade. Se nos perguntarmos sobre o que
devemos entender por “utilidade” neste contexto, teremos que apelar a um texto
do início dos anos 30, intitulado “A noção de dispêndio”. Nele, lemos:

A utilidade tem teoricamente como finalidade o prazer – mas somente sob uma
forma moderada, pois o prazer violento é tido como ​patológico –​ e se
deixa limitar, por um lado, à aquisição (praticamente à produção) e à
conservação dos bens e , por outro, à reprodução e à conservação das
vidas humanas (...) No conjunto, qualquer julgamento geral sobre a
atividade social subentende o princípio de que todo esforço particular
deve ser redutível, para ser válido, às necessidades fundamentais da
115
produção e da conservação .

Ou seja, fica claro como a utilidade aparece não apenas enquanto modo de
descrição da racionalidade própria a um sistema social determinado, mas
principalmente como o princípio fundamental de definição da natureza dos
sujeitos próprios a tal sistema. Os sujeitos racionais no interior do capitalismo
são aqueles que organizam suas ações tendo em vista sua auto-conservação, a

114
BATAILLE, Georges; ​O erotismo, p​ . 64
115
BATAILLE, Georges; ​A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”, p​ . 20
conservação de seus bens e a fruição de formas moderadas de prazer. Eles são
aqueles que se julgam racionais por sempre se perguntarem pela utilidade de
suas ações, não apenas suas ações no interior do mundo do trabalho, mas
também suas ações relativas a outros sujeitos. Pois, dessa forma, como dirá Marx
a respeito do problema do fetichismo da mercadoria, as relações entre pessoas
acaba ganhando a forma de relações entre coisas: “a humanidade, no tempo
116
humano, antianimal​ do trabalho é em nós o que nos reduz a coisas” .
Segundo Bataille, esta homogeneidade social produzida pelo trabalho
exige a figura do Estado. Pois a função do Estado seria garantir a homogeneidade
e usar sua autoridade contra forças inassimiláveis. O processo produtivo produz,
no entanto, contradições ligadas ao desenvolvimento da vida econômica. Isso
pode levar “uma parte apreciável da massa dos indivíduos homogêneos a cessar
117
de ter interesse na conservação da forma de homogeneidade existente” . Esta
parte pode se associar a formas heterogêneas já existentes.

O sagrado e o poder

Bataille afirma que o sagrado é o melhor exemplo social do heterogêneo,


já que ele pode ser definido, como o faz Durkheim, como o absolutamente
heterogêneo em relação ao mundo profano, como aquilo dotado de uma força
desconhecida e perigosa e, por isto, submetido a uma proibição social de contato
que o separa do mundo homogêneo ou profano. Mas o sagrado, por sua vez, é
apenas uma parte do que Bataille chama de “dispêndios improdutivos”: tudo
aquilo que a sociedades homogêneas rejeitam como detrito sem valor ou como
valor superior transcendente. Há uma dualidade fundamental do mundo
heterogêneo, preso entre a glória e a decadência, entre o puro e o impuro (como
a própria palavra ​sacer indica). Tais objetos heterogêneos podem, por isto,
produzir tanto atração quanto repulsão e se apresentam a nós através da força
violenta do choque.
Assim, contra essa sociedade do trabalho, Bataille quer apelar a tudo o
que ela compreende como excessivo, tudo capaz de mobilizar um gozo que não
se confunde com o cálculo do prazer e desprazer e, principalmente, toda ação
social que aparece como improdutiva. Pois devemos inicialmente entender por
“gozo” aquilo que está para além do prazer, aquilo que dissocia desprazer e dor,
prazer e alegria. Daí o sentido de uma afirmação como:

A atividade humana não é inteiramente redutível a processos de reprodução e de


conservação, e o consumo deve ser dividido em duas partes distintas. A
primeira, redutível, é representada pelo uso do mínimo necessário para
os indivíduos de uma dada sociedade, à conservação da vida e ao
prosseguimento da atividade produtiva: trata-se, portanto, simplesmente
da condição fundamental desta última. A segunda parte é representada
pelos dispêndios ditos improdutivos: o luxo, os enterros, as guerras, os
cultos, as construções de monumentos santuários, os jogos, os
espetáculos, as artes, a atividade sexual perversa (isto é, desviada da
finalidade genital) representam atividades que, pelo menos nas condições

116
Idem; ​O erotismo, ​p. 184
117
Idem, ​La structure psychologique du fascisme, p​ . 342
118
primitivas, têm em si mesmas seu fim .

Há várias questões que poderíamos colocar a partir de afirmações desta


natureza. Elas apontam para o fato de toda sociedade ser atravessada pela
necessidade de experiências de excesso, de dispêndio e de destruição que, do
ponto de vista das exigências econômicas de produção e maximização, são
simplesmente irracionais. Este excesso tem duas formas principais, duas formas
contrárias à utilidade e ao cálculo: uma forma superior e outra inferior. Uma
pura e outra impura. Uma que tem um valor elevado e outra que tem um valor .
Esta distinção é fundamental e implica duas dinâmicas possíveis às forças
heterogêneas. Elas podem aparecer como um poder intocável e purificado, sem
medida comum com o mundo homogêneo. Ou elas podem aparecer como um
aquém da forma, como uma potência do informe. Um exemplo dessas
determinações contrárias encontra-se na palavra ​sacer​.
Bataille afirma então que os líderes fascista, de uma forma muito peculiar,
pertencem a tal existência heterogênea. Eles mobilizam o descontentamento com
a homogeneidade social e o peso fastidioso das normas a seu favor. No entanto, o
fluxo afetivo que eles mobilizam se dirige a uma unidade, a uma instância
dirigente representada pela autoridade do líder:

O fluxo afetivo que une o líder aos seus apoiadores – que toma a forma de uma
identificação moral destes com aquele que eles seguem (e
reciprocamente) - é função da consciência comum dos poderes e das
energias cada vez mais violentas, cada vez mais desmedidas que se
acumulam na pessoa do chefe e se tornam indefinidamente disponíveis
119
nele .

Cria-se assim uma soberania presa apenas a um lado da heterogeneidade, o que


produz uma soberania assentada na experiência da dominação. É assim que
Bataille introduz o tema da soberania. Normalmente, o conceito de soberania é
utilizado no interior da filosofia política para descrever aquele que se encontra
em um lugar excepcional, pois fonte de emanação do poder. O exemplo mais
paradigmático aqui é o lugar do rei no poder monárquico. O rei é soberano
porque, sendo a fonte do poder, a lei é expressão da sua vontade. Por isto, ele
pode, ao mesmo tempo, ser o fundamento da lei e suspendê-la quando entender
dever ser o caso. O soberano é aquele que pode estar dentro ou fora da lei,
aplicá-la ou suspendê-la, porque é dele que emana o poder. Estando fora, ele é
uma potência heterogênea que dirige a violência contra todo exterior ou contra
as formas de heterogeneidade vinculadas às formas miseráveis. Bataille
aproxima a soberania monárquica, da soberania religiosa e militar. Poder
religioso e poder militar são as formas mais claras da soberania, no que Bataille
se apropria das figuras freudianas da constituição das massas organizadas. O
fascismo tenderia sempre a reunir todas essas figuras, reativando uma instância
soberana latente.
Para Bataille, as forças armadas são baseadas na transformação de uma
massa miserável (sempre são os pobres que entram na linha de frente das

118
Idem; ​A parte maldita, p​ . 21
119
Idem, ​La strucuture psychologique du fascisme, p. 348
guerras) em figura de glória através da identificação com o chefe militar:

Os seres humanos incorporados em um exército são apenas elementos negados,


negados com um espécie de raiva (de sadismo) manifesto no tom de cada
mandamento, negados nos desfiles, pela uniforme pela regularidade
geométrica realizada dos movimentos cadenciados. O chefe enquanto
imperativo é a encarnação dessa negação violenta. Sua natureza íntima, a
natureza de sua glória, constitui-se em um ato imperativo anulando o
populacho infame (que constitui o exército) enquanto tal (da mesma
120
forma que ele anula a carnificina enquanto tal) .

Assim esta dominação soberana , para se afirmar, volta-se contra tudo o


que a sociedade homogênea definiu como heterogêneo mas impuro, exterior. Ela
se volta contra o outro lado da heterogeneidade que poderia quebrar a
experiência da dominação, revelando a força do descentramento. Assim, o
fascismo se transforma no uso do heterogêneo como astúcia última da sociedade
homogênea. Contra ela, Bataille crê que devemos procurar uma forma de
heterogeneidade que não se submete a esta soberania monárquica recuperada
pelo fascismo. É isto que ele procura ao falar das experiências do sagrado e do
erotismo.

O sacrifício

“O sacrifício – que é, como a guerra, a suspensão do interdito do assassinato – é o


121
ato religioso por excelência” . Mas por que o sacrifício seria o ato religioso por
excelência? Certamente, Bataille não está a falar do sacrifício como limitação da
minha vontade em nome de um ideal moral. Algo presente quando falo, por
exemplo: “eu me sacrifiquei para defender nossa causa”. Sacrifício significa uma
destruição improdutiva, melhor meio de negar uma relação utilitária entre o
homem, as coisas e os animais. Um animal sacrificado é uma animal com o qual
não tenho mais uma relação de uso e de submissão à lógica da produção. Ele é
objeto de uma “consumação sem lucro”. Mas, principalmente, um animal
sacrificado é um animal do qual eu participo, ele me representa e tomo parte no
ritual do sacrifício através dele e, principalmente, nele. No sacrifício do animal,
eu posso ser um com ele. Por isto, Bataille pode dizer: “o sacrifício é o calor em
que se reencontra a intimidade daqueles que compõem o sistema das obras
122
comuns” . Esta intimidade revelada pelo sacrifício implica certa forma de
simbiose e de fusão que Bataille aproxima da relação amorosa. Daí uma
afirmação central como:

​ sacrifício substitui a vida


O que o ato de amor e o sacrifício revelam é a ​carne. O
ordenada do animal pela convulsão cega dos órgãos. O mesmo se dá com a
convulsão erótica: ela libera órgãos pletóricos cujos jogos cegos
prosseguem além da vontade refletida dos amantes. A essa vontade

120
BATAILLE, La structure psychologique du fascisme, p. 358
121
BATAILLE, Georges;​ O erotismo​, p. 105
122
BATAILLE; ​A parte maldita, ​p. 73
refletida sucedem os movimentos animais desses órgãos inchados de
sangue. Uma violência, que a razão não controla mais, anima esses órgãos,
tensiona-os até a explosão e, de repente, é a alegria dos corações de ceder
123
ao excesso dessa tempestade .

O sacrifício revela a carne que nos constitui aquém da individualidade. Ele é a


revelação de um corpo em nós que é feito de carne, ou seja, de algo próprio a
uma corporeidade que reage para além da vontade refletida dos amantes. A
carne, como dirá quase na mesma época Maurice Merleau-Ponty, é o “anonimato
inato de mim mesmo”, este ponto no qual sou habitado por uma matéria
anônima que me aproxima do que exige uma explosão violenta para aparecer.
O recurso à ideia de carne pode ser visto como a expressão daquilo que
Bataille chama por um momento de “baixo materialismo”. Trata-se de uma ideia
por ele apresentada nos anos trinta e que consiste em dizer que todo ideal
elevado assenta-se em uma base material constantemente negada. Neste ponto,
não parece que estejamos longe do Marx de ​A ideologia alemã ​com sua crítica à
impossibilidade de ver como o sistema metafísico de ideias era a expressão
invertida dos processos de reprodução material da vida. No entanto, Bataille
insiste que tal base material tem uma base distinta daquela que encontramos no
materialismo histórico marxista. Ela é a composição material heterogênea e
disforme da qual toda forma é extraída. Ela é este solo primeiro anterior a toda
forma e sempre negado como impuro, obsceno, nauseabundo e repulsivo. Por
isto, o termo “baixo materialismo”. É em direção a tal solo que o sacrífico procura
nos levar, em direção a uma matéria que é produção contínua de diferença e que
pode aparecer sob a forma do grotesco e do informe.
Notem aqui, principalmente, que a aproximação entre sacrifício e amor
não é feita em nome da visão moral de que a relação afetiva duradoura exige a
restrição dos interesses próprios em nome da construção de um
empreendimento comum. Bataille aproxima sacrifício e amor para dizer que o
erotismo partilha deste sentimento de participação através do desvelamento de
um elemento comum, a carne, que é o elemento informe que me forma, o
elemento impessoal que me personaliza e que, por isto, se encontra partilhado
em um sistema de partilha que une desiguais, homem e animal, morto e vivo.
Desta forma, através do erotismo, opera-se um reconhecimento que não é
movimento através do qual eu confirmo meus interesses e desejos ao ver que ele
é levado em conta pelo outro. O reconhecimento produzido pelo erotismo é
reconhecimento de que em mim habita o que me leva a abrir-se como um animal
sacrificado, a procurar me ver no que perde sua forma e se submete a um agir
que não pode ser visto como expressão de um Eu. Ou seja, se o amor sempre foi,
na filosofia, a figura de um modelo importante de reconhecimento social no qual
seria capaz de, através do outro, assegurar-me de minha identidade ao mesmo
tempo em que reconheço a identidade do outro, construindo assim um sistema
de mútuo estabelecimento de identidades, o erotismo, ao menos segundo
Bataille, produz um fenômeno de outra ordem. Pois: “o que, desde o início, é
sensível no erotismo é o abalo, por uma desordem pletórica, de uma ordem que
124
exprime uma realidade parcimoniosa, uma realidade fechada” . Entre o amor

123
Idem, O erotismo, p. 116
124
Idem, p. 129
dos filósofos e o erotismo de Bataille há uma diferença que se expressa na
distinção entre um processo de reconhecimento entre sujeitos e outro processo
de reconhecimento de si na alteridade radical do que não aparece mais como
sujeito.
Neste sentido, podemos dizer que, através do erotismo, eu perco a
segurança da minha identidade e não sou mais capaz de assegurar a identidade
do outro. Em seu lugar aparece esta intimidade que descreve a força de um
elemento comum que nos une e nos dissolve. Algo que deve ser compreendido
não como identidade, mas como espaço de confrontação com a heterogeneidade
que não se submete a uma unidade. Por isto, o erotismo produz uma fusão que
Bataille deve descrever como: violenta, excessiva, disforme e desordenadora.
Como se a existência de tal modelo de fusão fosse a condição para uma
experiência social de emancipação em relação às amarras da figura do indivíduo,
assim como de toda e qualquer fascinação pela identidade, tal como vimos, por
exemplo, no modelo da fusão próprio às massas fascistas, com sua fusão
organizada a partir da identificação a um soberano capaz de produzir
homogeneidade.
Neste ponto, podemos retornar ao problema do fascismo, segundo
Bataille, isto a fim de compreendermos melhor a aposta política feita por ele com
seu conceito de erotismo. Bataille insiste que nossa sociedades sofrem por não
saberem como dar conta de uma experiência da heterogeneidade que se
manifesta sob a forma de desejo de fusão e de perda de limites da
individualidade. Vimos como o fascismo seria maneira de absorver tal desejo
através de uma política das massas, mas onde o desejo de fusão produz uma
homogeneidade organizada sob a identificação, profundamente disciplinar, a um
líder transcendente, cujo discurso é marcado pela unidade, pela depuração e
purificação do corpo social. Maneira da identidade ter a última palavra, mesmo
se através do uso do desejo de heterogeneidade. Pois: “a tentar controlar e
purificar a heterogeneidade, o fascismo acaba por destruir a heterogeneidade
125
que está a usar” .
Contra o fascismo, dirá Bataille, de nada adianta tentar alimentar as
experiências descontínuas ligadas à figura do indivíduo. Contra o fascismo, só
mesmo outra forma de heterogeneidade, esta mais radical ligada ao que vem de
baixo, ao que expressa este ponto no qual forma alguma se estabiliza, mas no
qual toda forma ainda é possível. Esta heterogeneidade é aquilo que não se
disciplina, aquilo que quebra toda hierarquia pois expressa a consciência da
dependência entre o alto e baixo. Ela teria, segundo Bataille, um poder
subversivo, por exigir que: “o que é alto se transforme em baixo, o que é baixo se
126
transforme em alto” . Por isto, o fascismo procura destrui-la e retira-la do
contato dos homens. Para Bataille, de uma forma bastante peculiar, a melhor
arma contra o fascismo é o erotismo. Pois a luta não é entre regimes políticos,
mas entre formas de vida, e não haverá superação do fascismo se não lhe
compreendermos como uma forma de vida que só pode ser barrada através de
outra forma de circulação do desejo. No fundo, a questão política realmente
relevante será sempre: como o desejo circula. Daí uma afirmação importante
como:

125
NOYS, Benjamin; ​Georges Bataille’s base materialism,​ p. 506
126
BATAILLE, ​La structure psychologique du fascisme, p​ . 157
Não apenas as situações psicológicas das coletividades democráticas são, como
toda situação humana, transitórias, mas continua possível encontrar,
como uma representação ainda imprecisa, forças de atração diferentes
das já utilizadas, tão distintas do comunismo atual ou passado quanto o
fascismo é das reivindicações dinásticas. É tendo em vista tais
possibilidade que se deve desenvolver um sistema de conhecimentos
permitindo prever as reações afetivas sociais que percorrem a
127
super-estruturas – talvez mesmo, em até certo ponto, delas se dispor .

É possível se perguntar como poderíamos pensar uma experiência


política revolucionária (pois é isto que Bataille procura) apelando a aberturas
desta natureza. Talvez a melhor resposta passe pela influência que Bataille
sofreu de Alexandre Kojève. Uma das principais características do ensino de
Kojève foi insistir na importância de compreendermos as dinâmicas dos conflitos
sociais como problemas ligados a demandas de reconhecimento. Conflitos sociais
são, principalmente, conflitos por reconhecimento de nossa posição de sujeitos.
Bataille acrescenta a esta ideia a noção de que todas conflitos por
reconhecimento só pode ser efetivamente compreendidos se levarmos em conta
como sujeitos aspiram à soberania, ao dispêndio improdutivo, ao erotismo, ao
sacrifício. No interior deste processo, cria-se um problema importante e
complexo, a saber, o que pode ser uma sociedade de sujeitos soberanos?

127
Idem, p. 163
Psicologias do fascismo
Aula 7

Na aula de hoje, gostaria de expor os traços fundamentais da reflexão de


Wilhelm Reich a respeito do fascismo. Reflexão esta cuja influência não será
apenas restrita aos anos trinta, mas que será uma referência fundamental para as
lutas de emancipação social que ocorrerão a partir do final dos anos sessenta.
Reich será peça importante na compreensão das relações entre dominação
política e repressão libidinal, entre sexualidade e poder. Psicanalista de relações
turbulentas com a ortodoxia freudiana devido a sua concepção de tratamento,
libido e sexualidade, ele será afastado da Associação Psicanalítica Internacional
no início dos anos trinta. Ao invés de uma técnica centrada no manejo da palavra,
Reich defendia um terapia de intervenção corporal visando liberar a força
libidinal reprimida.
Suas reflexões, no entanto, não derivam apenas de problemas
eminentemente clínicos. Elas nasceram de uma articulação extensa sobre
regimes de sujeição social. Reich é um dos principais nomes (juntamente com
Alfred Adler, Siegfried Bernfeld, Otto Fenichel, Paul Federn, Erich Fromm) do que
se convencionou chamar por um tempo de “freudo-marxismo”, ou seja, a
tentativa de aproximar reflexão marxista sobre processos de alienação social e
psicanálise. Reich irá procurar na psicanálise a chave para compreender os
mecanismos de paralisia da emancipação no capitalismo. A impossibilidade de
constituição de uma consciência de classe ou de uma atitude revolucionária será
derivada de processos de sujeição psíquica responsáveis pela própria formação
da personalidade e do sujeito psicológico. Trata-se de entender como os desejos
inconscientes paralisam a emergência de uma consciência de classe. Todos esses
autores fazem parte de um tempo histórico no qual a possibilidade de uma
revolução política se colocava de forma concreta no horizonte, principalmente
depois da vitória da Revolução Russa.
No entanto, eles se deparam com o crescimento contínuo de alternativas
fascistas e de extrema-direita no próprio seio da classe proletária. Uma resposta
a isto passa pela defesa de que o fracasso da política marxista se deveria a uma
concepção insuficiente da psicologia humana, suas contradições e conflitos. Há
de se entender por que as massas desejaram o fascismo. Daí porque talvez a
melhor maneira de começar a refletir sobre as posições de Reich seja lembrando
de afirmações como:

Para a psicologia social, o problema se apresenta de maneira inversa: ela não se


demora sobre as razões que levam o homem faminto ou explorado ao
roubo ou à greve, mas ela procura explicar por que a maioria dos famintos
128
não rouba, por que a maioria dos explorados não faz greve .

Esta é uma das colocações fundamentais de ​A psicologia de massas do fascismo,


de Wilhelm Reich, escrito em 1933. O livro, uma das principais obras de Reich

128
REICH, idem, p. 62
juntamente com ​A função do orgasmo ​e A análise do caráter apareceu como uma
reflexão psicológica sobre os mecanismos de servidão e, em segundo nível, como
um estudo sobre a psicologia social do fascismo. A questão inicial gira em torno
da tentativa de compreender a constituição psicológica dos indivíduos como uma
forma de sujeição social, ou seja, como a psicologia do indivíduo moderno é fruto
da internalização da sujeição social. Desta forma, ele espera explicitar em novas
bases a profunda relação entre desejo e o campo social.

Fascismo e sexualidade

A partir desta questão inicial, o fascismo será tratado como a figura


extrema da sujeição. Ou seja, o que temos aqui é uma teoria geral da sujeição
psíquica e uma teoria específica da estrutura psicológica do fascismo. O fascismo
aparece assim como uma tendência sempre inscrita na estrutura psicológica dos
sujeitos modernos.
A escolha em construir a análise da sujeição social através da produção da
psicologia do indivíduo é clara. Primeiro, trata-se de afirmar que tal psicologia
tem como seu operador fundamental os mecanismos de repressão. Ou seja, as
faculdades mentais e as instâncias psíquicas são fundadas na operacionalização
da repressão à experiência sexual:

O mecanismo através do qual as massas humanas perdem o sentido da liberdade,


como a economia sexual social provou de maneira abundante graças a
experiências clínicas é a repressão social da sexualidade genital das
129
crianças, dos adolescentes e dos adultos .

O materialismo de Reich tem uma espécie de base energética fundada em uma


noção que eleva a sexualidade à condição de fundamento material do humano.
Reich desenvolverá uma compreensão naturalista da energia sexual, uma
bioenergética da libido (compreendida como urgência psíquica em direção à
gratificação sexual) que é fruto de uma perspectiva materialista bastante
explícita, definindo a prática clínica como um processo de liberação, pela via do
contato físico (vegetoterapia), da referida energia sexual de sua couraça
caracterial e muscular repressora. As disposições corporais, os traços de caráter
funcionam como uma armadura cuja análise deve saber como desconstituir. Uma
desconstituição que tem não apenas função clínica, mas fundamentalmente
política.
Tal repressão vinculada de forma estrutural aos processos de socialização
não é, no entanto, a condição para a civilização. Ou seja, é possível para Reich
pensar formas de sociedade não-repressiva. Trata-se, e isto não se encontrará em
Freud, de estabelecer as coordenadas históricas da repressão, e não suas
coordenadas antropológicas. Não é o processo civilizatório que produziria uma
sociedade repressiva, baseada na culpabilidade e na agressividade. Há
coordenadas históricas bastante precisas que podem e devem ser superadas. O
trabalho analítico deve ser um setor de tal superação. Daí a necessidade de
sublinhar como a repressão é o resultado direto da reprodução material de certa
forma bastante específica de forma de vida:

129
Idem, p. 299
Ao voltarmos para a história da repressão sexual descobrimos que ela não
nasceu com a cultura, que ela não é condição para a formação da cultura,
mas que ela iniciou relativamente tarde, após a instauração do
130
patriarcado autoritário e do nascimento das classes .

Isto é uma maneira de afirmar que a vida social permite modos de socialização
que não passam pela repressão das pulsões sexuais. No entanto, um modelo de
dominação política baseado no patriarcado autoritário e um modelo de
espoliação econômica baseado na perpetuação da sociedade de classes é
profundamente solidário da generalização de formas de repressão. Reich eleva a
família autoritária, cujo teatro inconsciente nos é fornecido pelo Complexo de
Édipo, ao núcleo central de reprodução social das dinâmicas de regressão. Ela
131
será a “célula reacionária central” , um Estado autoritário em miniatura que
visa não apenas a naturalização de um tipo patriarcal de dominação, mas
também a oposição da mulher como genitora e a mulher como ser sexual, de
onde se segue, por exemplo, a defesa fascista das famílias numerosas: estratégia
clássica para submeter a mulher a condição de genitora. O que significa que
apenas o desmantelamento da família burguesa pode permitir o advento de uma
sociedade emancipada. Apenas a anulação de uma prática clínica baseada na
redução dos conflitos psíquicos aos processos de identificação no interior do
núcleo familiar poderia contribuir para a emancipação.
Ou seja, Reich procura fornecer uma análise da gênese do fascismo que se
fundamente na natureza dos processos de repressão social em operação nas
dinâmicas de socialização, em especial na família. O que significa aceitar que:
“todo espírito autenticamente revolucionário, toda arte e toda verdadeira ciência
132
tem suas raízes no núcleo biológico natural do homem” . A emancipação social
é indissociável de uma certa ressureição da natureza negada, da afirmação de
uma força biológica que permite aos sujeitos amar, conhecer e trabalhar. Não
será por outra razão que Reich passará para a história como aquele que
inventará a noção de “revolução sexual”. Não haverá revolução efetiva sem a
quebra das dinâmicas repressivas que fundamentam os processos de
socialização.
Esta será a razão que levará Reich a criticar as revoluções comunistas que
ocorrem no início do século XX. A seu ver, o potencial revolucionário desaparece
na medida que as tentativas iniciais de transformação das estruturas das
relações entre os sexos, dos modos de reprodução da família são abandonadas
em prol do fortalecimento dos modelos autoritários tradicionais. Lembremos
como, de fato, os primeiros anos da Revolução Russa foram marcados pela
descriminalização da homossexualidade (1917), pelo reconhecimento do
casamento entre pessoas do mesmo sexo, legalização do aborto (1919), além das
defesas da união livre, da emancipação da mulher através do trabalho
assalariado (criação massiva de creches e escolas em período integral), da
socialização dos trabalhos domésticos (muitos dos trabalhos domésticos seriam
transferidos para a esfera pública através de lavanderias coletivas, refeitórios

130
Idem, p. 73
131
Idem, p. 164
132
REICH, Wilhelm; ​La psychologie de masse du fascisme​, op. cit., p. 15
públicos etc.) e da crítica da família (criação do casamento civil, supressão do
poder marital, exercício conjunto da autoridade dos pais sobre os filhos, e
facilitação extrema dos processos de divórcio). Tais mudanças se consolidam
através do Código das Leis sobre Casamento, Família e Tutela de 1918, mas que
serão revistas no período stalinista.

Uma personalidade fascista

Ao descrever as estruturas da vida psíquica, Reich fala de três camadas


distintas do que ele chama de estrutura biopsicológica. Uma camada mais
superficial diria respeito às dinâmicas sociais de cooperação e civilidade. Uma
segunda se refere a impulsos agressivos, concorrenciais e belicistas. Por fim, a
última está vinculada ao núcleo biológico natural do humano. Nela, encontra-se
uma forma de cooperação mais natural e sexualmente desenvolvida. Depois da
decomposição da organização democrática primitiva fundada no trabalho, o
núcleo biológico do humano não teria mais conhecido representação social. Por
isto, sua recuperação seria necessariamente revolucionária.
O fascismo seria a expressão politicamente organizada da estrutura
caracterial do homem médio, esse cuja caracteriologia estaria ligada à segunda
camada. Tal estrutura seria universal e internacional, não sendo próprio de
raças, nações ou partidos determinados. Ou seja, a análise do fascismo é uma
análise caracterial.
A noção de caráter permite a Reich “integrar no edifício da sociologia não
apenas os dados econômicos, mas também os dados sexuais”. Sobre a noção de
caráter, Reich lembrará que os mecanismos de defesa do Eu, assim como seus
traços de caráter que compõem o cerne da personalidade psicológica, são
constituídos da mesma forma que os sintomas. Daí porque:

A forma das reações do ego, que difere de um caráter para outro mesmo quando
os conteúdos das experiências são semelhantes, pode ser remontada às
experiências infantis, da mesma maneira que o conteúdo dos sintomas e
133
das fantasias .

Na análise, estamos lindando com resistências que são manifestações de traços


134
de caráter. Este caráter ou “modo de existir de uma pessoa” , seu sistema de
reações, de regularidades, representa uma expressão de todo seu passado. Ao
analisar o fascismo a partir da estrutura caracterial, Reich apenas mobiliza mais
claramente a relação entre arqueologia social das repressões e produção de
personalidade psíquica. Ou seja, Reich é praticamente o primeiro a insistir que há
uma personalidade fascista, que o fascismo é uma forma de personalidade. Isto
permite a Reich afirmar que o líder fascista só pode ocupar tal lugar porque sua
personalidade coincide com a estrutura daquela própria a largas parcelas da
população. O que lhe leva a analisar de forma extensiva os traços de
personalidade de Hitler.
Lembremos ainda que esta estrutura caracterial precisa ser objeto de uma
adesão forte para constituir uma personalidade fascista. Isto explica porque a

133
REICH; Wilheim; ​Análise do caráter,​ São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 53
134
Idem, La psychologia de masse …p. 56
base de seus recrutados estaria nos estratos médios, na “pequena burguesia
medíocre e reacionária”. Pois a pequena burguesia simplesmente teria copiado a
atitude dos “grandes”, fornecendo sua versão caricatural e exagerada: “não se
135
representa impunemente ao pequeno burguês a comédia da ‘grande política’” .
Ela naturaliza aquilo que, nos estratos mais elevados, seria algo como uma
aparência assumida enquanto tal. Ela é o setor que realmente acredita nas
injunções do discurso do poder e suas estratégias retóricas de auto-justificação.
A personalidade estará assim assentada em uma arqueologia social das
repressões porque o destino da sexualidade moldaria toda a extensão dos traços
de caráter do indivíduo. É isto o que permite a Reich fazer afirmações como:

A inibição moral da sexualidade natural da criança cuja última etapa é o


afunilamento característico da sexualidade genital faz da criança alguém
ansioso, selvagem, submisso, obediente, “amável” e “dócil” no sentido
autoritário da palavra; impondo a todo movimento de vida e liberdade
uma forte carga de angústia, ela paralisa as forças de revolta no homem e
deteriora, ao impedi-lo de pensar nas coisas sexuais, sua potência
136
intelectual e seu senso crítico .

Ou ainda, de forma mais explícita:

O homem genitalmente satisfeito é honesto, consciente do seu dever, corajoso,


disciplinado sem fazer muito caso disto. Todas essas qualidades estão
organicamente ligadas à sua personalidade. O indivíduo sofrendo de
fraqueza genital cuja estrutura sexual é plena de contradições, está
constantemente em guarda para dominar sua sexualidade, para salvar sua
honra sexual, para lutar corajosamente contra as tentações, etc. Cada
adolescente e cada criança conhece a luta contra a tentação da
masturbação. Ë no curso desse combate que se desenvolve todos os
137
elementos estruturais, sem nenhuma exceção, do homem reacionário .

A colocação é clara. Haveria uma espécie de moral naturalizada que


derivaria da ausência de distorções de comportamento provocada pela repressão
à função do orgasmo. Tal moral naturalizada seria o fundamento para uma
estrutura de caráter que não está às voltas com a necessidade dos sujeitos se
mortificarem até se tornarem completamente submissos à ordem ou dar conta
de contradições que aparecerão insuperáveis, que obrigarão os sujeitos a
encontrar formas de satisfação substitutiva, de desvio agressivo àquilo com o
qual eles não são mais capazes de lidar.
Reich chegará a dizer que o medo da liberdade sexual, sinônimo na mente
reacionária de caos e depravação sexual é o que realmente freia a superação da
liberação em relação à exploração econômica. A exploração econômica é
assentada na naturalização de dinâmicas sociais de opressão, de mando, de
submissão. Tais dinâmicas são inefetivas em alguém cuja liberdade sexual é
conquistada. Não por outra razão, os fascistas cunharão o termo de

135
Idem, p. 19
136
Idem, p. 74
137
Idem, p. 104
“bolchevismo sexual” para dar conta do que seria o processo de depravação e
enfraquecimento da nação produzida pela “libertinagem” bolchevique.

Imunizar o corpo social

A partir desta estrutura repressiva de base, Reich procura derivar


algumas das características principais do fascismo, a saber, o racismo e sua
variante anti-semita, o lugar das temáticas religiosas (o que Reich chama de
misticismo) e a fantasia da purificação do corpo social que fundamenta uma
concepção unitária e identitária de nação, de estado e de pátria. Analisemos cada
um desses pontos.
A respeito dos vínculos entre fascismo e religião, Reich afirma que eles se
fundam na reversão do caráter masoquista da antiga religião patriarcal em
sadismo. Daí porque um regime que se coloca como a redenção sagrada contra a
decadência ateísta pode admitir de forma tão orgânica todos os padrões de
violência.
Por outro lado, essa experiência religiosa nada tem a ver, por exemplo,
com a defesa de Georges Bataille a respeito da força de descentramento do
sagrado. Antes, ela é redução da temática religiosa à defesa contra a destituição
das estruturas psicológicas de reprodução da vida social sob a forma da
“individualidade”. Reich cita, por exemplo, um trecho de texto de propaganda
fascista:

Como o bolchevismo quer aniquilar toda individualidade, ele destrói a família,


que imprime ao homem sempre uma marca individual. É por isto que ele
detesta todas as aspirações nacionais. Ele quer uniformizar os povos
tornando-os dóceis ... Mas todas as tentativas de aniquilar a vida pessoal
serão reduzidas a nada enquanto restar no coração do homem uma
centelha de religião, pois é na religião que sempre se manifesta a
138
liberdade pessoal em relação ao mundo ambiente .

Sobre o racismo fascista, Reich lembrará como ele estará sempre


associado ao imaginário da purificação do corpo social, da sua unidade e da sua
imunização necessária:

A ideologia mundial da ‘alma’ e da ‘pureza’ é a ideologia mundial da


asexualidade, da ‘pureza sexual’ ou, para chamar as coisas por seus
nomes, uma forma de recalque sexual e de angústia sexual, emanação de
139
uma sociedade patriarcal autoritária .

Assim, Reich insiste que o racismo não é apenas uma justificação biológica
para aspirações imperialistas. Sua posição estrutural e decisiva está ligada, por
um lado, à clara desumanização dos que serão objetos da reificação máxima, pois
serão reduzidos à condição de objeto. Mas o racismo fascista, como é voltado
contra setores não submetidos à reificação da escravidão, como os judeus, é para
Reich fruto de estrutura psicológica precisa. Nele, pulsa as formas mais

138
Idem, p. 192
139
Idem, p. 139
elementares de recalque sexual através da temática da purificação das raças e da
hierarquia pressuposta que procura aproximar motivos teológicos e geográficos:

A ideologia fascista separa o desejo de orgasmo do homem das estruturas


humanas formadas pelo patriarcado autoritário e atribui tal separação às
diferentes raças: nórdico se torna assim sinônimo de luminoso, celeste,
assexual, puro; o Oriente médio, inversamente, é instintual, demoníaco,
140
sexual, orgiástico .

Ou seja, o racismo é indissociável das dinâmicas próprias à repressão.


Sabemos como tal divisão emtre o nórdico luminosos e o semita instintual marca
também os negros e os africanos. O fascismo relega o sexual e o sensual às raças
estrangeiras, aos costumes que pervertem nosso povo. Reich mostra, por
exemplo, a abundante propaganda produzida pelos nazistas alemães a respeito
da pretensa promiscuidade da então União Soviética, onde não haveria mais
casamento, onde mulheres seriam disponíveis a todos em uma espécie de
prostituição generalizada, de socialização das mulheres, onde “não haveria mais
união entre homem e mulher, onde se viveria hoje com uma pessoa, amanhã com
141
outra, de acordo com seus caprichos” .
Mas notemos como colocar o problema do racismo e do antisemitismo
inerente ao fascismo desta forma é maneira de afirmar que sua superação não
passa pela denúncia das dinâmicas econômicas e de exploração imanentes a tal
violência social. Na verdade, os problemas do racismos e do antisemitismo
exigem o esclarecimento de seu fundamento sexual e a atuação neste nível. O
racismo para Reich se combate através de uma revolução sexual.
Reich tem o mérito de expor como não há autoritarismo sem regulação
necessária da vida sexual, pois se trata de lembrar que isto não é uma manobra
diversionista, não é um elemento auxiliar, mas o fundamento necessário de toda
servidão e sujeição social. Reich era tão consciente deste ponto que, no início dos
anos trinta, organizará ações chamadas de Sex-Pol que visavam fornecer às
classes proletárias esclarecimentos e auxílios para uma sexualidade livre.

140
Idem, p. 143
141
Idem, p. 170
Psicologias do fascismo
Aula 8

Ao prefaciar a versão norte-americana de ​O anti-Édipo, ​Foucault dirá que se


tratava de uma introdução à vida não-fascista:

não apenas o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini - que soube tão bem
mobilizar o desejo das massas – mas também o fascismo que está em
todos nós, que assombra nossos espíritos e nossos comportamentos
cotidianos, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa mesma
142
que nos domina e nos explora .

A colocação de Foucault revelava inicialmente um uso da noção de


fascismo que não se reduzia à descrição de movimentos totalitários no Europa
dos anos 30. Tratava-se de falar de algo que estaria em todos nós, como uma
potencialidade imanente às formas de vida que partilhamos. Isto a ponto de
Foucault continuar perguntando:

Como fazer para não se tornar fascista, mesmo quando (e sobretudo quando) se
crê ser um militante revolucionário? Como livrar nosso discurso e nossos
atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como encontrar o
fascismo que se incrustou em nosso comportamento? Os moralistas
cristãos procuravam os traços da carne que se alojavam nas dobras da
alma. Deleuze e Guattari procuram os traços mais ínfimos do fascismo no
143
corpo ​.

Esta maneira de compreender o fascismo se enraizava na maneira que


vimos Wilhelm Reich definir o fascismo a partir de uma análise caracterial e uma
análise de estruturas de personalidade. Mas não se tratava apenas de uma
recuperação de certa psicologia das massas própria a fenômenos históricos dos
anos 30. Deleuze e Guattari começam a escrever juntos tendo um problema
central em vista. Ele está enunciado na seguinte constatação de Guattari:

Esta colaboração não é o resultado de um simples encontro entre dois


indivíduos. Para além do concurso das circunstâncias, há também todo
um contexto político que nos conduziu a ela. Na origem, tratou-se menos
da apresentação em comum de um saber que de um certo
desnorteamento diante da guinada que tomaram os acontecimentos após
maio de 68. Fazemos parte de uma geração cuja consciência política
nasceu do entusiasmo e da ingenuidade da Liberação, com sua mitologia
conjuratória do fascismo. E as questões deixadas em suspenso por esta
outra revolução abortada que foi maio de 68 se desenvolveram para nós
segundo um contraponto tão preocupante que nós nos inquietamos, como
várias outras pessoas, das alvoradas que nos preparam e que poderiam
cantar hinos de um fascismo nova roupagem que nos levaria a ter

142
FOUCAULT, Michel; Dits et écrits II, p. 154
143
Idem, p. 155
saudades do fascismo dos velhos tempos. Nosso ponto de partida
consistiu em considerar que, em um momento crucial, algo da ordem do
desejo manifestou-se à escala de toda a sociedade para em seguida ser
reprimido, liquidado, tanto por forças do poder quanto por partidos e
sindicatos ditos operários e, até certo ponto, pelas próprias organizações
144
esquerdistas .

É assim que Félix Guattari apresentou ​O anti-Édipo e​ m um debate


organizado pela ​Quinzaine littéraire, e​ m 1972. Dificilmente poderíamos ser mais
claros a respeito do que produziu não apenas este livro decisivo para a filosofia
contemporânea, mas todo o projeto intitulado “Capitalismo e esquizofrenia” com
seus dois volumes. Segundo Guattari, trata-se de pensar porque, diante das
possibilidades de transformação postas pelas revoltas de maio de 68, algo
pareceu se quebrar. Da revolta, aparece um desnorteamento provocado pelos
acontecimentos que se seguiram a maio de 68, um conjunto de promessas que
parecem não se realizar. Como se maio de 68 fosse uma latência na vida social
que deveria ser fechada o mais rápido possível, tanto pelas forças do poder
quanto por partidos e sindicatos ditos operários e pelas próprias organizações
esquerdistas.
De certa forma, a primeira questão que mobiliza o projeto de Deleuze e
Guattari é um questão de prática política: como se aborta uma revolução? Seria o
caso de fazer análises sociológicas sobre os conflitos no interior dos grupos que
mobilizaram maio de 68, suas fragmentações e equívocos estratégicos? Ou seja,
há de se compreender tal aborto como o resultado de escolhas políticas
equivocadas, cálculos de circunstância errados? Ou seria o caso de ir em direção
a outro nível de análise, um nível mais elementar que procura compreender a
dificuldade na constituição de sujeitos políticos capazes de sustentar processos
de transformação? Nível este que deve começar com uma crítica dos modelos
hegemônicos de subjetividade com seus aparelhos sociais de reprodução
internalizados como um sistema de repressões e limitações que parece nos
paralisar diante de acontecimentos com forte potencial emancipador?
Questões desta natureza parecem naturalmente procurar articular os
campos da psicologia e da política. A sua maneira, elas parecem inicialmente ser
uma revivescência de estratégias críticas que já teriam sido colocadas em
circulação no século XX, em especial à ocasião de pesquisas feitas nos anos trinta
a respeito da psicologia do fascismo. Todos estes trabalhos procuravam
compreender, a partir da análise da economia libidinal dos sujeitos, a forma com
que a paralisia diante das possibilidades de uma revolução operária estava
enraizada nos regimes de constituição da vida psíquica. Todos eles, à sua
maneira, viam o fascismo não apenas como um regime político, mas como a
consequência necessária de um modo de constituição da vida psíquica. O
fascismo seria, inicialmente, um modo de funcionamento da vida psíquica. Por
isto, tais trabalhos procuravam compreender como a própria constituição da
vida psíquica, com suas dinâmicas de identificação, com suas modalidades de
organização de conflitos, com seus sistemas de repressão pulsional era, na
verdade, o fundamento de formas de sujeição social. Daí a ideia de que não

144
GUATTARI, Félix in DELEUZE, Gilles; L’île déserte, Paris: Minuit, pp. 301-302
haveria transformação política possível que não começasse por partir da crítica à
sujeição que dá forma à vida psíquica.
Mas havia algo mais no projeto de Deleuze e Guattari e que faz de
“Capitalismo e esquizofrenia” uma experiência intelectual única. Lembremos
desta afirmação de Guattari: “em um momento crucial, algo da ordem do desejo
se manifestou”. Ele deixa claro um dos pressupostos maiores do projeto
Capitalismo e esquizofrenia, a saber, a ideia de que uma teoria do desejo é,
necessariamente, uma teoria dos modos sociais de produção e que, por
consequência, uma teoria da transformação dos modos sociais de produção só
pode ser uma teoria da transformação do desejo. Um marxista clássico torceria o
nariz a tal colocação, lembrando que a teoria dos modos de produção deve ser
compreendida como expressão dos regimes sociais de trabalho. De fato, de certa
forma, Deleuze e Guattari operam uma substituição da centralidade da categoria
de trabalho ao proporem a centralidade da categoria de desejo. Como dirá
Guattari em conceitualização marxista, o desejo não deve ser considerado como
uma superestrutura subjetiva, mas como elemento fundador da infraestrutura.
Isto a ponto de Deleuze e Guattari afirmarem, por exemplo:

Na verdade, a produção social é unicamente a própria produção desejante em


condições determinadas (...) Só há desejo e social, nada mais. Mesmo as
formas as mais repressivas e mais mortíferas de reprodução social são
produzidas pelo desejo, a partir da organização que deriva de tal ou tal
condição que devemos analisar (...) Não, as massas não foram enganadas,
em certo momento elas desejaram o fascismo e é isto que se trata de
145
explicar, esta perversão do desejo gregário .

De fato, não é possível explicar a racionalidade de um sistema econômico


e político se não formos capazes de explicar como se constrói a adesão
psicológica a suas injunções e premissas. Esta ideia está presente desde o
momento em que Max Weber lembrava ser impossível compreender o
capitalismo sem partir do ​ethos que ele exige com seus regimes específicos de
vontade e de auto-controle, sem partir da ética protestante na qual ele se
sustenta e que ele perpetua, ao menos durante sua primeira fase. Podemos dizer
que é uma intuição semelhante que levam Deleuze e Guattari a defender a
necessidade de afirmar que todo modo de produção social é, basicamente, um
modo de inscrição social do desejo, isto a ponto de afirmarem que só há desejo e
social, nada mais.
No entanto, Deleuze e Guattari dizem ainda algo a mais. Pois não há
regime de sujeição que seja baseado na pura e simples coerção, não há
dominação que seja apenas uma questão de submissão pela força. A sua maneira,
toda sujeição é também uma captura do desejo. Daí a necessidade de afirmar:
não, as massas não foram enganadas. Em certo momento elas desejaram o
fascismo e este é o verdadeiro desafio: compreender como se deseja o fascismo,
quais são os afetos que nos mobilizam a tal desejo, como eles são produzidos
para que eles possam ser desativados. Trata-se então de fazer a crítica de
modalidades de inscrição social do desejo que bloqueiam algo que poderíamos
chamar, se quisermos, de potencial emancipatório.

145
DELEUZE e GUATTARI; L’anti-OEdipe, pp. 36-37
Neste sentido, o projeto “Capitalismo e esquizofrenia” é uma peculiar
crítica da antropologia filosófica baseada na categoria de desejo, crítica
construída com o objetivo de fornecer a genealogia dos múltiplos processos de
alienação social. Uma genealogia que não teme apelar, entre outros, a
procedimento clássicos da filosofia social, como uma filosofia da história
constituída, neste caso, a partir dos desdobramentos da forma-Estado e que visa
construir, ao menos segundo as palavras de Pierre Clastres: “uma teoria geral da
sociedade e das sociedades”. Por isto, podemos dizer que o eixo fundamental do
projeto de Deleuze e Guattari pode ser descrito da seguinte forma: ​articular a
crítica da economia política a uma crítica da antropologia filosófica do desejo.
Como dirá Deleuze: “É pois a economia política enquanto tal, a economia dos
fluxos, que é inconscientemente libidinal: não há duas economias; o desejo ou a
146
libido são apenas a subjetividade da economia política” . Maneira de mostrar
como a economia política própria ao capitalismo, com seus processos de
racionalização, é indissociável da procura em dar realidade social a um conceito
de agente cuja compreensão exige a análise de seus modos de desejar,
fundamento maior de seus modos de ser.
Neste ponto, encontra-se uma de suas operações filosoficamente mais
surpreendentes do projeto. Deleuze e Guattari mobilizam uma forte crítica a uma
certa compreensão filosófica do desejo que aproximaria nomes como Platão,
Hegel e, principalmente, a psicanálise (cuja metapsicologia seria fortemente
dependente de certa tradição filosófica), isto a fim de afirmar que tal
compreensão filosófica forneceria o horizonte normativo dos modos de
socialização no interior do capitalismo avançado. Como se o capitalismo fosse
dependente de uma certa metafísica, como se ele fosse, à sua maneira, a
realização social de uma certa metafísica. Por fim, como se sua crítica só pudesse
ser, ao mesmo tempo, a crítica de uma metafísica pretensamente hegemônica no
pensamento ocidental. Maneira de submeter a economia política do capitalismo a
uma crítica da metafísica ocidental, de afirmar que, de certa forma, o capitalismo
é uma metafísica materializada em processos de racionalização social.
Contra tal compreensão metafísica do desejo, faz-se necessário
contrapô-la a uma outra, construída principalmente através do acoplamento dos
conceitos de ​conatus, e​ m Spinoza e de potência (​Macht)​ , em Nietzsche. Dois
filósofos aparentemente marginais à constituição hegemônica do pensamento
ocidental. Faz-se necessário ainda acoplar tal reflexão filosófica aos conceitos
produzidos pelas práticas de tratamento da psicose colocadas em circulação na
Clínica de La Borde, da qual Guattari fazia parte. A seu ver, este embate ao
mesmo tempo filosófico e clínico é, no fundo, estratégia necessária para fazer a
crítica não apenas de um ontologia do desejo, mas de toda uma política que, por
pensar processos de organização apenas a partir das figuras do partido e do
Estado, não sabe o que fazer quando o desejo aparece, em acontecimentos com
forte potencial de ruptura, para além das figuras de sua alienação. Por isto,
“Capitalismo e esquizofrenia” não é apenas um projeto crítico, mas é uma
proposição de refundação dos campos da clínica e da política, uma tentativa de
fornecer a teoria que, de certa forma, teria faltado a maio de 68, a teoria que o
acontecimento seria capaz de produzir. Pois:

146
DELEUZE, Gilles; L’île déserte, p. 274
Se é verdade que a revolução social é inseparável de uma revolução do desejo,
então a questão se desloca: sob quais condições a vanguarda
revolucionária poderá se liberar de sua cumplicidade inconsciente com as
estruturas repressivas e desativar as manipulações do desejo das massas
pelo poder, manipulações que as fazem: ‘combater pela sua servidão
147
como se estivessem a combater pela sua salvação’?

Segmentaridade e micropolítica

Este horizonte pode nos permitir melhor compreender a maneira com que o
problema do fascismo retorna em ​Mil Platôs, e​ m especial no seu capítulo IX.
Deleuze e Guattari introduzem sua discussão sobre o fascismo a partir de uma
teoria geral da organização social. Essa teoria não parte de formas de
desenvolvimento em sequência, ela não é evolutiva. Na verdade, ela tenta dar
conta de um jogo de dinâmicas distintas presentes em todas as formas sociais.
Maneira de abandonar uma perspectiva histórica teleológica.
Tendo isto em mente, Deleuze e Guattari partem de uma apresentação de
modos de segmentaridade, conceito que vem de Durkheim e se refere a regimes
de organização e reorganização social que estabelece relações não a partir de um
centro funcional, como no caso da noção de Estado. Aparece aí a distinção entre
sociedades de segmento e as sociedades centralizadas.
Deleuze e Guattari partem daí para abandonar tal distinção e propor duas
formas de segmentaridade : uma dura e binária, outra flexível e não-binária.
Todas as duas estariam presentes em todas as formas sociais, em maior ou
menor grau. Esta é a base para uma distinção bastante presente em sua teoria
entre estruturas molares e estruturas moleculares. Note-se que tais dualidades
não são mobilizadas tendo em vista uma distinção etapista entre tipos de
sociedades. Elas procuram dar conta de tendências diversas, de níveis distintos
no interior de todas as formas sociais. Esta dualidade será fundamental para a
distinção que nos interessa, a saber, esta entre macropolítica e micropolítica.
Deleuze e Guattari a descreve assim:

Sejam conjuntos do tipo percepção ou sentimento: sua organização molar, sua


segmentaridade dura não impede todo um mundo de micro perceptos
inconscientes, de afetos inconscientes, segmentações finas que não
apreendem ou não experimentam as mesmas coisas, que se distribuem de
outra forma, que operam de outra forma. Uma micropolítica da
percepção, da afecção, da conversação, etc. Se consideramos os grandes
conjuntos binários, como os sexos ou as classes, fica claro que eles passam
também nos agenciamentos moleculares de outra natureza, e que há
dependência recíproca. Pois os dois sexos reenviam a múltiplas
combinações moleculares que colocam em jogo não apenas o homem na
mulher, mas a relação de cada um no outro com o animal, a planta, etc. Mil
148
pequenos sexos .

147
DELEUZE, Gilles; L’île déserte, p. 304
148
DELEUZE e GUATTARI, Mille Plateaux, p. 260
Ou seja, a macropolítica é aquela que se organiza a partir de um modo
necessariamente binário e opositivo, daí a referência às esferas da classe e do
sexo. Este binarismo é o modo privilegiado de organização e legislação inerente
ao Estado, a uma constituição do que eles chamarão de “aparelho de Estado”.
Nesse sentido, a macropolítico normalmente opera pela visibilidade de grandes
oposições.
No entanto, esses binarismos molares também se enraízam em estruturas
moleculares. Assim, os binarismos escondem um rede molecular de relações em
seu interior que sempre forçam as oposições molares a um ponto de
decomposição. As contradições sociais só funcionariam a grande escala; do ponto
de vista micropolítico as organizações se fazem a partir de linhas de fuga, de
dinâmicas de transbordamento. Deleuze e Guattari fazem a mesma observação a
respeito da relação entre classe e massa. Há sempre um outro regime que
coexiste com a separação e a totalização de segmentos duros. Há sempre uma
tensão internas às formas sociais entre processos de codificação e fluxo de
descodificação.
Deleuze e Guattari ainda farão uma distinção interna às estruturas
moleculares. Há os fluxos moleculares que permitem devires e micro-devires,
que estabelece conexões e relações para além dos binarismos molares. Mas há
também aquilo que eles chamarão de linhas de fuga com seu empuxo em direção
ao fora.
Neste sentido, a análise política não deve se deixar aprisionar pela
dimensão macropolítica, embora tal dimensão não seja indiferente. Ela também
não deve ter a ilusão de que a dimensão micropolítica é a verdadeira esfera
decisiva: “As fugas e movimentos moleculares não seriam nada se eles não
repassassem pelas organizações molares, não refizessem seus segmentos, suas
149
distribuições binárias de sexo, de classe, de partidos” . Esta é uma maneira de
dizer que uma análise efetiva deve compreender as articulações entre
macropolítica e micropolítica, deve apreender os fenômenos em seu ponto de
articulação entre os dois níveis. Pois só assim será possível apreender o
movimento efetivo e as tensões concretas em jogo nas transformações políticas.
Esta dimensão micropolítica não é “individual” em contraposição à
dimensão “social”. Podemos dizer que ela é libidinal, organizada como fluxo, em
contraposição à dimensão institucional e organizada como segmento. Uma
contraposição fundada sob uma solidariedade profunda. Daí porque:

A administração de uma grande segurança molar organizada tem por correlato


toda uma microgestão dos pequenos medos, toda uma insegurança
molecular permanente, a ponto de que a fórmula dos ministérios do
interior poderia ser: uma macropolítica da sociedade por e para uma
150
micropolítica da insegurança .

Uma teoria do fascismo

Esta compreensão das relações entre molar e molecular será fundamental para a
leitura que Deleuze e Guattari farão do fascismo. Pois não se trata de privilegiar a

149
DELEUZE e GUATTARI, Mille Plateaux, p. 264
150
Idem, p. 263
dimensão macropolítica e descrever o fascismo a partir da presença de uma
concepção totalitária de Estado, até porque outros modelos políticos conhecerão
figuras totalitárias do Estado. O fascismo traz um tipo muito específico de
totalitarismo no qual a preservação do Estado totalitário não será o eixo da
lógica da ação política. Mas para entender este ponto, faz-se necessário
compreender a dimensão molecular do fascismo, compreender o micro-fascismo.
Neste nível, o fascismo se mostra muito menos centralizado e duro do que, por
exemplo, o estado stalinista, que seria a figura mais clássica de um Estado
totalitário. Observando-o a partir de sua estrutura molecular, o fascismo aparece
muito mais como um corpo cancerígeno do que como um organismo totalitário.
Nesta dimensão do “microfascismo”, fica mais claro encontrar uma
resposta à questão reichiana: “Por que o desejo deseja sua própria repressão?”.
Pois: “é muito fácil ser anti-fascista no nível molar sem ver o fascista que se é,
que nos entretemos e alimentamos, que cuidamos com moléculas pessoais e
151
coletivas” . Mas a resposta de Deleuze e Guattari a respeito do que nos faz
desejar o fascismo passa pela implementação política de uma certa dimensão da
pulsão de morte, mesmo que os dois afirmem, à ocasião: “não invocamos pulsão
de morte alguma”. Mas não seria necessário invoca-la de maneira explícita. Basta
ouvir o que pulsa em afirmações como:

Eis aí o quarto perigo: que a linha de fuga atravesse a parede, que ela saia dos
buracos negros, mas que, ao invés de se conectar com outras linhas e
aumentar suas valências a cada vez, ela se volta à destruição, à abolição
152
pura e simples, à paixão de abolição .

Nós veremos na aula que vem por que insistir que se trata aqui de uma
leitura libidinal do fascismo que se apoia, à sua maneira na mobilização de um
certo risco interno à pulsão de morte. Mesmo as ambiguidades que Deleuze e
Guattari descrevem (o mesmo processo pode produzir a pura e simples abolição
ou a mutação das formas e lugares) está bastante enraizado nos usos do conceito
psicanalítico de pulsão de morte. Como veremos na aula que vem, Guattari
deixará isto mais claro.
Mas, por enquanto, insistamos em outro ponto, a saber, o fascismo não é
exatamente o culto da ordem, o fortalecimento da estrutura binária da norma e
de suas formas de controle. Há algo em seu interior que se assemelha a essas
dinâmicas libertárias de linha de fuga, a esses fluxos moleculares que
paradoxalmente são fundamentais para processos de singularização. Mais uma
vez, encontramos a ideia de que há algo que necessariamente aproxima o
fascismo de um processo revolucionário efetivo. No entanto, essa possibilidade
de efetivação é cortada por uma submissão da força de transformação a uma
paixão de abolição.
De toda forma, percebamos que é necessário que o assujeitamento faça
também parte do desejo, que ele se enraíze nos agenciamentos do desejo. Ele é
uma de suas linhas que sempre pode ser seguida. Deleuze e Guattari lembram
então como tais liberações de linhas de fuga são impulsionadas por máquinas de
guerra. Essa figura da máquina de guerra visa dar conta de um princípio social de

151
DELEUZE e GUATTARI, Mille Plateaux, p. 262
152
Idem, p. 280
movimento e desterritorialização. Ela descreve todo agenciamento social em
relação de exterioridade ao campo estatal de uma dada situação. Ou seja, a
guerra não aparece aqui como um exercício do Estado, mas como um princípio
exterior que o Estado procura, por várias formas, capturar. Pois em toda
sociedade, o que é primeiro são suas linhas de fuga, seus movimentos de fuga.
Posteriormente, aparecem aparelhos do Estado cuja função é captura-las. A
guerra se aproxima aqui da figura nietzscheana da potência e do combate.
Trata-se da virtude do guerreiro, que em várias situações se coloca em confronto
com as obrigações do Estado. Trata-se da figura do nômade que não se move por
viver em um espaço liso.
Tal máquina de guerra pode operar como um princípio de mutação
contínua de formas, por um princípio de nomadismo que se desdobra em um
longa linha de fuga ou pode liberar uma carga catastrófica de destruição. Nesse
caso, a máquina de guerra funciona exatamente a partir da guerra, pois a guerra:
“é o único objeto que resta quando a máquina de guerra perdeu sua potência de
153
mover” . O mesmo princípio de transformação pode se deteriorar em forma
bruta da destruição. Toda linha de fuga tem um risco interno de se tornar uma
linha de abolição, de destruição de si e dos outros. De certa forma, a questão
central gira em torno viver em linhas de fuga, de impedir que as linhas de fuga
sejam tomadas por máquinas de destruição e de autodestruição. Quando isto
ocorre, uma forma fascista necessariamente emerge. Por isto, é importante para
Deleuze e Guattari indicar diferenças entre o fascismo e o totalitarismo:

O totalitarismo é conservador por excelência. Já no fascismo trata-se claramente


de uma máquina de guerra. E quando o fascismo constrói um Estado
totalitário, não é mais no sentido em que um exército de Estado toma o
poder mas, ao contrário, no sentido de uma máquina de guerra que toma
para si o Estado. Uma colocação bizarra de Virilio nos coloca no bom
caminho: no fascismo, o Estado não é exatamente totalitário, mas
154
suicidário. Há no fascismo um niilismo realizado .

Ou seja, a guerra fascista não é uma guerra de conquista, ela não tem como parar,
ela não tem como se realizar. Como se fosse um “movimento perpétuo, sem
objeto nem alvo” cujos impasses só levam a uma aceleração cada vez maior. A
ideia nazista de dominação não está ligada ao fortalecimento do Estado, mas a
um movimento em movimento constante. Hannah Arendt falará da: “essência dos
movimentos totalitários que só podem permanecer no poder enquanto
155
estiverem em movimento e transmitirem movimento a tudo o que os rodeia” .
há uma guerra ilimitada que significa a mobilização total de todo efetivo social, a
militarização absoluta em direção a uma guerra que se torna permanente.
Guerra, no entanto, cuja direção não pode ser outra que a destruição simples.
Como se o horizonte da catástrofe fosse, desde o início, o verdadeiro horizonte
da ação. Deleuze e Guattari lembram, por exemplo, dessas afirmações de
Goebbels:

153
Idem, p. 281
154
Idem, p. 281
155
ARENDT; Origens do totalitarismo, p. 434
No mundo da fatalidade absoluta no interior do qual se move Hitler, nada tem
mais sentido, nem o bem nem o mal, nem o tempo nem o espaço, e o que
os outros homens chamam de ‘sucesso’ não pode servir de critério (...) É
156
provável que Hitler terminará em catástrofe .

Não por outra razão, tudo se passa como se o nazismo tivesse


necessariamente que se realizar neste famoso telegrama 71, no qual Hitler
anuncia: “Se a guerra está perdida, que a nação pereça”. Arendt, cuja análise
Deleuze apreciava, falava do fato espantoso de que aqueles que aderiam ao
fascismo não vacilavam mesmo quando eles próprios se tornavam vítimas,
mesmo quando o monstro começava a devorar seus próprios filhos.

156
Idem, p. 282
Falta a aula 9
Psicologias do fascismo
Aula 10

Na aula de hoje, iniciaremos o nosso módulo sobre o problema do fascismo na Escola


de Frankfurt através do comentário do último capítulo da ​Dialética do
Esclarecimento​: “Elementos do anti-semitismo: limites do Esclarecimento”. Do ponto
de vista metodológico, este é o capítulo mais importante do livro. Pois Adorno e
Horkheimer submetem a discussão sobre o anti-semitismo a um modelo de análise do
que poderíamos chamar de “patologias sociais”. Trata-se de compreender o
anti-semitismo não apenas como um comportamento político, mas como o sintoma de
um vínculo social que se organiza tal como uma patologia mental. Desta forma, as
estruturas autoritárias e totalitárias da vida social não serão explicadas apenas através
de sua necessidade econômica, mas principalmente através de seu vínculo a estrutura
psíquica dos sujeitos socializados. Sem negligenciar a pergunta sobre as condições
sócio-econômicas que geraram o anti-semitismo, interessa aos nossos autores,
principalmente, compreender como funciona a estrutura psíquica e libidinal do
anti-semita.
No entanto, esta perspectiva não visa, por sua vez, patologizar o anti-semita
como alguém que sofreria, porventura, de alguma forma de doença mental. Esta seria
uma forma de transformar o anti-semitismo em um fenômeno marginal vinculado a
indivíduos ou grupos refratários ao processo de esclarecimento e racionalização
social. No entanto, a perspectiva de Adorno e Horkheimer é mais radical e consiste
em analisar o anti-semitismo como: “um esquema profundamente arraigado, um ritual
157
da civilização” . Um modo de comportamento organicamente vinculado ao modo
com que a modernidade constitui individualidades e pensa, tanto psiquicamente
quanto socialmente, ideias como identidade e diferença. Assim, a análise da estrutura
psíquica e libidinal do anti-semita aparecerá como a lente de aumento que nos permite
observar as tensões no interior de todo e qualquer processo de formação do Eu
moderno. Por isto que o anti-semitismo aparecerá como um “limite do
esclarecimento”, como um fenômeno que expõe os limites internos do esclarecimento.
Para realizar este modelo de análise do anti-semitismo, Adorno e Horkheimer
precisam colocar em circulação um movimento duplo. Primeiro, trata-se de
compreender porque “em razão de sua adaptação deficiente” os judeus seriam o grupo
que: “tanto prática quanto teoricamente, atraem sobre si a vontade de destruição que
158
uma falsa ordem social gerou dentro de si mesma” . Argumentos que levam em
conta a posição sócio-econômica dos judeus na Europa, representantes do capital mas
sem direito de posse, assim como a tensão entre as religiões cristã e judaica serão
utilizados. Nesta parte, que vai até o sub-capítulo V, o modelo de análise é
relativamente tradicional.
No entanto, a partir do sub-capítulo V, Adorno e Horkheimer farão apelo a
uma antropologia filosófica profundamente inspirada na psicanálise freudiana para
descrever dois processos complementares: a passagem de uma racionalidade mimética
a uma racionalidade conceitual e o processo de formação do Eu como instância
auto-identitária. É na maneira com que a racionalidade mimética será recalcada para
permitir o fortalecimento das ilusões identitárias do Eu que Adorno e Horkheimer

157
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 160
158
Idem, p. 157
verão as raízes psíquicas do anti-semitismo e de todo e qualquer processo de
segregação social, já que:

A cólera é descarregada sobre os desamparados que chamam a atenção . E como as


vítimas são intercambiáveis segundo a conjuntura: vagabundos, judeus,
protestantes, católicos, cada uma delas pode tomar o lugar do assassino, na
mesma volúpia cega do homicídio, tão logo se converta na norma e se sinta
159
poderosa enquanto tal .

Na verdade, esta análise do totalitarismo fascista como patologia social terá dois
momentos: este que encontramos em nosso texto e uma análise das mutações da
autoridade através do quadro freudiano fornecido por ​Psicologia das massas e análise
do Eu. ​Podemos encontrar tal elaboração no texto de Adorno: ​Teoria freudiana e as
estruturas da propaganda fascista. O ​ que vincula os dois desenvolvimentos é o uso
contínuo da categoria clínica de “paranoia” para descrever a estrutura psíquica e
libidinal no interior do fascismo. Longe de ser uma simples metáfora, tal uso de um
conceito clínico para a análise de fenômenos sociais é de extrema importância.
Esta era uma maneira de lembrar que a compreensão de fenômenos como o
fascismo era incompleta se mobilizasse apenas categorias econômicas, sociológicas e
políticas. Elas precisariam mobilizar também categorias psicológicas para dar conta
da maneira com que experiências políticas podem gerir estruturas psíquicas e se
enraizar em dimensões nas quais as ações não são motivadas apenas por cálculos de
maximização de interesses ou de crença política, mas também por circuitos
inconscientes de afetos.
Assim, ao aproximar o fascismo e outras formas de autoritarismo da paranoia,
Adorno e Horkheimer estavam a dizer que a paranoia seria o modo hegemônico de
participação social no interior de tais sociedades. O que implicava afirmar que, nestes
casos, os vínculos sociais se sustentariam a partir da generalização da paranoia como
tipo social, mesmo que os sujeitos, do ponto de vista de suas patologias individuais,
tivessem outra forma de organização de seus sintomas. Neste sentido, não teríamos
apenas uma analogia, mas a descrição de um modalidade de funcionamento social a
partir de gestão do sofrimento através da elevação de comportamentos patológicos a
forma de participação social. Como condição de participação, os sujeitos deveriam
agir como paranoicos. Um “agir como” que não deixará de ter implicações na própria
estrutura da personalidade subjetiva.
Mas há um ponto que gostaria de insistir nessa aula. Lembremos como o
conceito psicanalítico de paranoia, base do uso dos frankfurtianos, a aproximava de
uma patologia que colocava, à céu aberto, os mecanismos de identificação e
introjeção próprios do narcisismo que, por sua vez, eram a expressão de dinâmicas
próprias à constituição mesma do Eu do indivíduo moderno com seus
desconhecimentos e denegações. Freud insistira claramente, por exemplo, que o
narcisismo era uma fase necessária do desenvolvimento individual e que seu
mecanismo expunha dinâmicas próprias da paranoia e da melancolia. Neste ponto,
encontramos uma radicalização desta perspectiva em Lacan e em sua maneira de
mostrar como a própria constituição “normal” do Eu moderno era paranoica, pois
produtora de uma instância psíquica que organizava suas relações ao mundo através
de projeções, introjeções e fundava sua identidade a partir de um sistema de

159
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 160
160
denegações e agressividades . Isto lhe obrigava a pensar uma clínica que é,
inicialmente, crítica das ilusões identitárias e sintéticas do Eu, se não quisesse ser o
fortalecimento de tendências paranoicas nos indivíduos.
Neste sentido, é impossível colocar em circulação uma crítica que eleva a
paranoia à condição de patologia social sem defender que o indivíduo moderno não é
o esteio da vida democrática, mas a ferida aberta que coloca o corpo social em risco
perpétuo de deriva autoritária. Como se ao capitalismo restasse fornecer regressões
paranoicas periódicas aos sujeitos que ele socializa e produz. Isto pode nos explicar
porque a reflexão dos frankfurtianos não se serve do fortalecimento do indivíduo
moderno como contraponto à natureza paranoica dos vínculos sociais, como seria o
caso em uma perspectiva liberal. Na verdade, os dois conceitos tecem relações
profundas de solidariedade. Gostaria de desenvolver este ponto nas próximas aulas.

O anti-semitismo

Na aula de hoje, partiremos da discussão sobre o anti-semitismo. Adorno e


Horkheimer começam seu texto lembrando que os judeus são o grupo que atrai para
si, de maneira privilegiada, a vontade de destruição gerada pela falsa ordem social.
Sua caracterização como povo sem pátria, ligado a si apenas pela força da tradição e
da religião teria levado a um “apego inflexível às suas próprias formas de
ordenamento da vida” e a uma relação sempre insegura com a ordem dominante. Isto
auxiliou a eleição do anti-semitismo em modo social maior de racismo.
Adorno e Horkheimer são sensíveis às representações sociais normalmente
associadas aos judeus: banqueiros e intelectuais, o dinheiro e o espírito como o sonho
renegado daqueles que a dominação mutilou. Na posição de banqueiros eles são os
bodes expiatórios da injustiça econômica de uma classe inteira. Pois os judeus ficaram
presos ao setor de circulação, sem direito a aceder a posses no setor produtivo, eles se
transformaram nos oficiais de justiça para o sistema inteiro, atraindo a si o ódio que
normalmente deveria estar direcionado a uma classe inteira. Na Europa, eles se
transformaram nos intermediários que representam, para o povo, a conta a pagar pelo
progresso:

Os judeus não foram os únicos a ocupar o setor de circulação, mas ficaram encerrados
nele tempo demais para não refletir em sua maneira de ser o ódio que sempre
suportaram. Ao contrário de seu colega ariano, o acesso à origem da
mais-valia ficou-lhes em larga medida vedado. Foi só após inúmeras
dificuldades e tardiamente que lhes foi permitido o acesso à propriedade dos
161
meios de produção .

Desta forma, a revolta contra uma classe econômica se transforma em revolta contra
um povo. O conflito sócio-econômico se transforma em conflito cultural, em revolta
contra formas de vida pretensamente diferentes. Assim, o destino dos judeus esteve
ligado ao descontentamento em relação a um processo de racionalização econômica
que eles foram obrigados a representar por serem “capitalistas sem propriedade”.
Esta explicação ligada à posição econômica dos judeus na Europa será
acrescida à defesa de uma relação particularmente problemática entre cristianismo e

160
Ver, por exemplo, LACAN, Jacques; ​Séminaire II,​ Paris: Seuil, 1982
161
Idem, p. 163
judaísmo, até porque o judaísmo esteve, durante toda a época de intolerância religiosa
na Europa, presente como minoria constantemente vítima de revoltas.
Adorno e Horkheimer desconfiam do propalado universalismo paulino do
cristianismo por identificarem uma “nostalgia incontrolada” dos vínculos
comunitários religiosos canalizados como “rebeliões racistas” esporádicas: “os
descendentes dos visionários evangelizadores são convertidos, segundo o modelo
wagneriano dos cavaleiros do Santo graal, em conjurados da confraria do sangue e em
162
guardas de elite” . A potencia comunitária da religião cristã é ativada de forma
violenta contra os semitas. Esta nostalgia incontrolada dos vínculos comunitários
pode ser melhor compreendida se lembrarmos da leitura frankfurtiana do cristianismo,
que coloca de ponta a cabeça a leitura hegeliana. Ela está resumida na seguinte
afirmação:

Na medida em que o absoluto é aproximado do finito, o finito é absolutizado. Cristo,


o espírito que se tornou carne, é o feiticeiro divinizado. A
auto-reflexão-humana no absoluto, a humanização de Deus por Cristo, é o
próton pseudos. O​ progresso para além do judaísmo tem por preço a afirmação
de que o homem Jesus era Deus. É justamente o aspecto reflexivo do
163
cristianismo, a espiritualização da magia, que está na origem do mal .

Podemos entender tais colocações da seguinte maneira. No cristianismo, um particular


(Cristo) é elevado à condição de universal abstrato (Deus). Tal humanização do
divino tem um preço: a impossibilidade de vivenciar a limitação do particular, com
suas exigências. Um finito vale por absoluto, ele deve se sacrificar no absoluto, mas
tal sacrifício nunca é completo, pois implica perpetuação da natureza representativa
da finitude. Algo muito diferente do judaísmo e de seu caráter radicalmente
anti-representativo. Ao dar tal lugar à finitude, Adorno e Horkheimer podem dizer que
o cristianismo queria permanecer espiritual, mesmo quando aspirava à dominação. O
sacrifício do finito através da morte de Cristo faz com que o cristianismo viva entre a
recaída em uma religião natural (e o reconhecimento da inanidade do sacrifício da
representação finita) e o reconhecimento do paradoxo de um fé que exige sacrifício
completo da razão do mundo (como vemos nestes “cristão paradoxais”, como Pascal e
Kierkegaard). Os que recaíram em uma religião natural precisavam ver, nos que não
confundiram seu particularismo com o universal (a religião judaica), o inimigo a ser
abatido.

Mimese

Mas o verdadeiro cerne da discussão de Adorno e Horkheimer sobre o


anti-semitismo está vinculado à necessidade do recalque da mimese enquanto
condição para a formação da individualidade. Com o recalque da mimese é o
problema da relação à alteridade que se transforma em questão: “A mera existência do
outro é motivo de irritação. Todos os outros são ´muito espaçosos´ e devem ser
164
recolocados em seus limites, que são os limites do terror sem limites” . Sendo os
judeus uma das figuras privilegiadas da alteridade na Europa, abre-se espaço para uma

162
Idem, p. 165
163
Idem, p. 166
164
Idem, p. 171
discussão que enquadra o anti-semitismo como sintoma de uma recuperação social da
revolta contra a mimese perdida.
Esta é a maneira frankfurtiana de dizer que a consolidação de uma
racionalidade que expulsa as afinidades miméticas de seu horizonte é paga com o
retorno, no campo político, do extermínio de todo risco de se perder no outro, de sair
do invólucro defensivo de uma identidade construída de maneira compulsiva. Esse
extermínio não é sem definir modalidades de “retorno” à mimese recalcada, a uma
“mimese da mimese”, como se fosse o caso de: “colocar diretamente a serviço da
165
dominação a própria rebelião da natureza reprimida contra a essa dominação” .
Uma maneira de introduzir o problema da assimilação da mimese passa pela
compreensão de afirmações como:

A natureza que não se purificou nos canais da ordem conceitual para se tornar algo
dotado de finalidade; o som estridente do lápis riscando a lousa e penetrando
até a medula dos ossos, o haut goût que lembra a sujeira e a putrefação; o suor
que poreja a testa da pessoa atarefada; tudo o que não se ajustou inteiramente
ou que fira os interditos em que se sedimentou o progresso secular tem um
166
efeito irritante e provoca uma repugnância compulsiva .

As figuras mobilizadas aqui indicam certa forma de vínculo libidinal ao que


não se purificou na ordem conceitual, ao som que toca os ossos, à mistura promíscua
entre putrefação e alimentação, ao elemento não ajustado à imagem. Como se
houvesse alguma forma de tendência de retorno ao não completamente formado, ao
não completamente determinado, ao que não se submete integralmente à “recognição
no conceito”. Esta tendência a uma identificação com o que não é provido de
semelhança, de uma imitação do que não se assemelha é exatamente o que Adorno e
Horkheimer chamam de “mimese”.
Para apreender a especificidade de tal conceito, faz-se necessário lembrar que
sua construção visa dar conta de quatro problemas diferentes, porém complementares,
a saber, o problema do conteúdo de verdade do pensamento analógico que sustenta
práticas mágicas e rituais, a tendência pulsional a regressar a um estado de natureza
marcado pela despersonalização, o mimetismo animal e, sobretudo, as experiências
estéticas contemporâneas de confrontação com materiais reificados. Teoria
antropológica da magia, teoria psicanalítica das pulsões, mimetismo animal e o
problema estético da representação: eis os eixos da problemática frankfurtiana do
mimetismo.
Não é o caso de discutir aqui todas essas dimensões do problema, mas apenas
de lembrar de alguns traços essenciais do uso frankfurtiano da noção de mimese e
suas consequências políticas. Primeiramente, lembremos da maneira com que a
problemática do conteúdo de verdade do pensamento mágico coloca-se para Adorno e
Horkheimer. Se o pensamento racional deve denegar toda força cognitiva da mimese,
é porque se trata de sustentar: “a identidade do eu ​que não pode perder-se na
identificação com um outro​, mas [que] toma possessão de si de uma vez por todas
167
como máscara impenetrável” . A identidade do eu seria pois dependente da
entificação de um sistema fixo de identidades, de uma rigidez de diferenças

165
Idem, p. 172
166
Idem, p. 168
167
ADORNO et HORKHEIMER, ​Dialética do esclarecimento, p​ . 24
categoriais. A projeção de tal sistema sobre o mundo é exatamente aquilo que Adorno
e Horkheimer chamam de “falsa projeção” ligada à dinâmica do narcisismo e ​a
processos de categorização do sujeito cognoscente.​
Mas, por outro lado, se a racionalidade mimética do pensamento mágico pode
pôr as múltiplas afinidades entre o que existe, é porque ele seria mais aberto ao
reconhecimento da natureza constitutiva da identificação. Isto pode nos explicar a
importância de considerações como: “o espírito que se dedicava à magia não era um e
idêntico: ele mudava igual às máscaras do culto, que deviam se assemelhar aos
168
múltiplos espíritos” . Mas Adorno e Horkheimer sabem que tal imitação pode ir até
aquilo que não tem forma. Sigamos uma afirmação canônica sobre o mimetismo. Ele
seria o index de uma: “ tendência a perder-se no meio ambiente (​Unwelt​) ao invés de
desempenhar aí um papel ativo, da propensão a se deixar levar, a regredir à natureza.
169
Freud a qualificou de pulsão de morte (​Todestrieb​), Callois de mimetismo” . A
pulsão de morte freudiana expõe a economia libidinal que leva o sujeito a vincular-se
à uma natureza compreendida como espaço do inorgânico, figura maior da opacidade
material aos processos de reflexão. Esta “tendência a perder-se no meio ambiente” da
qual fala Adorno e Horkheimer pensando na pulsão de morte é o resultado do
reconhecimento de si no que é desprovido de inscrição simbólica. É tal manifestação
da pulsão de morte que deverá ser negada por aqueles que negam a mímese.
Isto fica ainda mais claro se levarmos a sério o recurso feito por Adorno a
Roger Caillois. Operação extremamente esclarecedora pois nos ajuda a compreender
melhor o que significa esta “tendência a perder-se no meio ambiente” da qual fala
Adorno. Pois lembremos que, com seu conceito de ​psicastenia lendária, ​Caillois
tentava demonstrar como o mimetismo animal não deveria ser compreendido como
um sistema de defesa, mas como uma “tendência a transformar-se em espaço” que
implicava em distúrbios do “sentimento de personalidade enquanto sentimento de
170
distinção do organismo no meio ambiente” . Falando a respeito desta tendência,
própria ao mimetismo, de perder-se no meio ambiente, Caillois afirma:

O espaço parece ser uma potência devoradora para estes espíritos despossuídos. O
espaço os persegue, os apreende, os digere em uma fagocitose gigante. Ao
final, ele os substitui. O corpo então se dessolidariza do pensamento, o
indivíduo atravessa a fronteira de sua pele e habita do outro lado de seus
sentidos. Ele procura ver-se de um ponto qualquer do espaço, do espaço negro,
lá onde não se pode colocar coisas. Ele é semelhante, não semelhante a algo,
171
mas simplesmente semelhante .

Este espaço negro no interior do qual não podemos colocar coisas (já que ele
não é espaço categorizável, condição transcendental para a constituição de um estado
de coisas) é um espaço que nos impede de ser semelhantes a ​algo ​de determinado. Por
outro lado, tal como na noção freudiana de tendência de retorno a um estado
inorgânico, Caillois lembra que o animal geralmente mimetiza não apenas o vegetal
168
ADORNO E HORKHEIMER, ​idem, ​p. 24 [tradução modificada]
169
​idem, p​ . 245 [tradução modificada]
170
O termo « psicastenia » refere-se a nosografia de Pierre Janet que compreendia a psicatenia como
afecção metal caracterizada por rebaixamento da tensão psicológica entre o eu e o meio, sendo
responsável por desordens como sentimentos de icompletude, perda do sentido da realidade, fenômenos
ansiosos, entre outros.
171
CAILLOIS, ​Le mythe et l’homme, ​p. 111
ou a matéria, mas o vegetal corrompido e a matéria decomposta. “A vida recua em um
degrau”, dirá Caillois (2002, p. 113).
O que faria o fascismo, segundo Adorno e Horkheimer, não é apenas perpetuar
esse recalque da mimese, mas permitir seu retorno através da violência contra aqueles
contra os quais a afinidade mimética está proibida. Assim: “o impulso recusado é
permitido na medida em que o civilizado o desinfeta através de sua identificação
172
incondicional com a instância destruidora” . Há uma “mimese desinfetada” nos
rituais de homogeneidade fascista, há uma “mimese desinfetada” na possibilidade de
imitação dos judeus a partir do escárnio e da derrisão. Há projeção nos judeus de tudo
aquilo que seriam os impulsos que o sujeito não admite como seus e que, no entanto,
lhe pertencem. É neste ponto que aparece a mobilização da paranoia como patologia
social do fascismo.

A sombra da razão

Na estrutura clínica psicanalítica, a paranoia é ainda concebida como um dos


três quadros nosográficos próprios à estrutura psicótica, juntamente com a
esquizofrenia e a melancolia (ou psicose maníaco-depressiva). Sua caracterização
atual não é muito distinta daquela que encontramos em Freud. Desde 1895, Freud
173
compreendia a paranóia como um “modo patológico de defesa” que se servia de
174
mecanismos como o delírio e uma forte tendência à projeção de representações
inconciliáveis com a coerência ideal do Eu. À ocasião de seu texto paradigmático
relativo ao caso Schreber, tais mecanismos de defesa encontrarão seu fundamento em
uma desesperada reação contra um certo impulso homossexual impossível, por razões
estruturais, de ser vivenciado como tal pelo sujeito.
Por trás desta temática aparentemente muito redutora ligada à defesa contra a
homossexualidade (que, no limite, nos obrigaria a tese incorreta do ponto de vista da
fenomenologia clínica referente à impossibilidade de alguém ser, ao mesmo tempo,
paranoico e homossexual explícito) há, no entanto, o que poderíamos chamar de uma
intuição psicanalítica fundamental a respeito das psicoses. Ela se refere à
impossibilidade de alguma forma de mediação simbólica das identificações e da
alteridade devido à fixação em um estado de desenvolvimento e de maturação que
Freud chamava de “narcísico”. Assim, devido a tal fixação, todo reconhecimento de si
em um outro aparece como anulação catastrófica dos regimes de identidade que, até
então, sustentavam uma certa estabilidade pré-psicótica. O problema da defesa contra
o homossexualismo é, no fundo, modo freudiano de dizer que, na psicose paranoica,
todo reconhecimento de si em um outro é vivenciado de maneira ameaçadora e muito
invasiva, o que coloca uma personalidade formada a partir da internalização de
identificações em rota contínua de colapso. Notemos ainda como tal situação indica
um certo modo de ligação defensiva à identidade, de negação da “interioridade da
diferença”, que demonstram a fragilidade, no caso da psicose, dos modos de síntese
psíquica fundadas na noção funcional de Eu.

172
ADORNO e HORKHEIMER; Dialética do esclarecimento, p. 172
173
Ver, FREUD; Sigmund; ​Manuscrit H ​ In: La naissance de la psychanalyse, Paris: PUF, 1996, p. 98.
174
Sendo que, em Freud, o delírio paranóico é: “uma tradução em representações de palavras do
reprimido que retornou maciçamente na forma de signos perceptuais” (SIMANKE, Richard; ​A
formação da teoria freudiana das psicoses, ​Belo Horizonte: Loyola, 2008, p. 100)
O primeiro traço do fascismo que Adorno e Horkheimer associam à paranoia é
a natureza projetiva da relação ao mundo:

O anti-semitismo baseia-se numa falsa projeção. Ele é o reverso da mimese genuína,


profundamente aparentada à mimese que foi recalcada, talvez o traço
caracterial patológico em que esta se sedimenta. Se a mimese se torna
semelhante ao mundo ambiente, a falsa projeção torna o mundo ambiente
175
semelhante a ela .

A projeção serve para expulsar impulsos que o sujeito não admite como seu,
assim como tudo aquilo que quebraria a unidade e a coerência suposta da
personalidade. Adorno e Horkheimer admitem que, em certo sentido, perceber é
projetar. Ou seja, eles assumem a natureza projetiva da percepção como algo
faltamente inerente ao espírito devido a exigências de autoconservação. No entanto,
tal tendência à projeção seria paulatinamente controlada através de uma dupla
reflexão, de uma reflexão duplicada. O sujeito tem a experiência da resistência que
vem do objeto e tal resistência pode ser integrada através deuma reflexão de segundo
grau. Daí porque Adorno e Horkheimer podem dizer: “o patológico no anti-semitismo
não é comportamento projetivo enquanto tal, mas a ausência de reflexão que o
176
caracteriza” . Nota-se claramente uma articulação profunda entre paranoia e
narcisismo que está na base da descrição psicanalítica da nosografia. O paranoico
projeta o mundo a sua imagem e semelhança, reificando tal projeção.
Por outro lado, contrariamente a outras categorias da psicose, como a
esquizofrenia, a paranoia teria como traço diferencial a preservação das funções
superiores do raciocínio. Neste sentido, não é desprovido de interesse perceber como
encontramos tal intuição em um trabalho profícuo de psicologia social como ​Massa e
177
Poder, d​ e Elias Canetti . Esta absorção de modos formais de raciocínio e
comportamento próprios a estrutura normal pode ser identificado, por exemplo, na
presença, no interior da paranoia, de algo como um “vício da causalidade” e um
“vício da fundamentação”. Uma espécie de ​princípio de razão suficiente elevado à
defesa patológica : nada acontece que não tenha uma causa. Assim, na “ontologia
paranóica”, não haverá lugar para noções como contingência e acaso. Por trás da
máscara do novo, há sempre o mesmo. Tudo o que é desconhecido deve ser remetido
a algo conhecido e referido ao doente. Isto leva o paranoico à necessidade compulsiva
do ​desmacaramento. E ​ le quer que haja algo por trás dos fenômenos ordinários e só se
acalma quando uma relação causal é encontrada. Como dirá Adorno e Horkheimer:

A excessiva coerência paranoica, este mau infinito que é o juízo sempre igual, é uma
falta de coerência do pensamento. Ao invés de elaborar intelectualmente o
fracasso da pretensão absoluta e assim continuar a determinar seu juízo, o
178
paranoico se aferra à pretensão que levou seu juízo ao fracasso .

Essa excessiva coerência seria traço de uma forma de saber chamada por
Adorno e Horkheimer de “semicultura” ou “semiformação”: “uma semicultura que,

175
ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do esclarecimento, p. 174
176
Idem, p. 176
177
​ ão Paulo : Companhia das Letras, 2005, pp. 448-463
CANETTI, Elias; ​Massa e poder, S
178
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 181
por oposição à simples incultura, hipostasia o saber limitado como verdade, não pode
suportar a ruptura entre o interior e o exterior, o destino individual e a lei social, a
179
manifestação e a essência” . Eles chegam a dizer que a paranoia seria o sintoma do
indivíduo semicultivado, com sua atribuição arbitrária de sentido ao mundo exterior,
seus estereótipos e generalizações marcadas por perseguições e grandeza. Ou seja, o
traço fundamental dessa semicultura é a hipóstase de relações, a impossibilidade de
admitir a limitação do saber, o que leva o sujeito a não suportar rupturas entre o
exterior e o interior, o destino individual e a lei social, a manifestação e a essência.
“Desde Hamlet, a vacilação tem sido para os modernos um sinal de pensamento e de
180
humanidade” . Daí uma tendência às formas do complot, da perseguição.
Neste sentido, é possível dizer que um dos traços fundamentais da paranoia,
traço que fornece a base de sua certeza delirante e da incorrigibilidade de seus
julgamentos, está vinculado à ​naturalização das estruturas e dos quadros narrativos de
organização da experiência. Não é possível ao sujeito tomar distância de suas próprias
construções, retificando criticamente suas pretensões a partir dos acasos e
contingências da experiência, desconfiando de sua sistematicidade e de sua exigência
absoluta de sentido e ligação, pois tais construções foram naturalizadas. Neste sentido,
não seria incorreto ver, nesta forma imanente de adesão a suas próprias crenças, um
efeito maior daquilo que em teoria social chamaríamos simplesmente de ​reificação. O ​
que talvez nos permitiria dizer que a paranoia é uma sombra da razão, pois é o risco
aberto quando ocorre uma reificação da própria estrutura do conhecimento. Esta
compreensão da paranoia como uma espécie de “patologia da reificação” estará
claramente presente em Adorno e Horkheimer quando estes afirmarem:

Sempre que as energias intelectuais estão intencionalmente concentradas no mundo


exterior, ou seja, sempre que se trata de perseguir, constatar, captar (que são as
funções que, tendo origem na empresa primitiva de subjugação dos animais, se
espiritualizaram nos métodos científicos da dominação da natureza), tendemos
a ignorar o processo subjetivo imanente à esquematização e a colocar o
sistema como a coisa mesma. Como o pensamento patológico, o pensamento
objetivador contém a arbitrariedade do fim subjetivo que é estranho à coisa;
ele esquece a coisa e, por isto mesmo, inflige-lhe a violência a que depois é,
181
mais uma vez, submetida na prática .

Por outro lado, notemos como há um conjunto de valores ​políticos q​ ue


parecem nortear o sofrimento paranoico. Falamos de unidade, identidade, controle e
risco de invasão. Como se fosse questão de assegurar a posse e a unificação de um
território a todo momento ameaçado. Não é difícil perceber, já neste momento, como
os motivos paranoicos parecem derivados de uma certa compreensão a respeito
daquilo que uma ​ordem ​deve ser capaz de produzir.

179
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 182
180
Idem, p. 191
181
ADORNO e HORKHEIMER; idem, p. 180
Psicologias do fascismo
Aulas 11 e 12

Na aula de hoje iremos terminar o módulo dedicado à Escola de Frankfurt em sua


leitura do fascismo. Gostaria de começar por fazer uma recapitulação desse
módulo. Deve ter ficado claro para vocês como a leitura frankfurtiana do
fascismo privilegia o problema do anti-semitismo e o lugar funcional que os
processos de segregação ocupam como motor de construção de coesão social.
Claro que a leitura dos frankfurtianos não se resume ao lugar funcional da
segregação no interior das práticas do Estado totalitário. Na verdade, se puder
dar a vocês um panorama dos trabalhos da Escola de Frankfurt sobre o tema, eu
desenvolveria três eixos.
No primeiro, encontramos os trabalhos sobre a consolidação do Estado
fascista. O principal trabalho neste eixo é ​Behemoot: a estrutura e prática do
nacional-socialismo, de Franz Neumann, mas devemos lembrar também do
premonitório texto “O combate ao liberalismo na concepção totalitária de
estado”, escrito por Herbert Marcuse no início dos anos trinta e “Capitalismo de
Estado: suas possibilidades e limitações”, do economista Friedrich Pollock. Esta
discussão a respeito do Estado fascista está conectada a uma hipótese que será
um dos eixos de discussão entre os frankfurtianos, a saber, a ascensão do
capitalismo de estado, segundo Pollock. Nele, encontramos a tese da passagem
inexorável de um “capitalismo privado” determinado pelo mercado para um
capitalismo de alta regulação estatal, seja ele totalitário ou democrático.
Capitalismo no qual as decisões econômicas estariam submetidas à orientação
política das deliberações de gestão controlada pela burocracia estatal, pelo
partido vitorioso e pela classe empresarial. Pollock chega a falar em uma
substituição de problemas econômicos por problemas administrativos, criando
um horizonte “racional” de gestão.
Este modelo dialoga, em certos pontos, com a ideia de que a noção
fascista de “estado total” que, como compreendera Marcuse já nos anos trinta,
nunca havia se contraposto ao liberalismo. Antes, era seu desdobramento
necessário em um horizonte de capitalismo monopolista. Compreendendo
como o fundamento liberal da redução da liberdade à liberdade do sujeito
econômico individual em dispor da propriedade privada com a garantia
jurídico-estatal que esta exige permanecia como a base a estrutura social do
fascismo, Marcuse alertava para o fato do “estado total” fascista ser compatível
com a ideia liberal de liberação da atividade econômica e forte intervenção nas
esferas políticas da luta de classe. ​Daí porque:

“Os fundamentos econômicos desse trajeto da teoria liberal à teoria totalitária


serão assumidos como pressupostos: repousam essencialmente na
mudança da sociedade capitalista do capitalismo mercantil e industrial,
edificado sobre a livre concorrência dos empresários individuais
autônomos, ao moderno capitalismo monopolista, em que as relações de
produção modificadas (sobretudo as grandes ‘unidades’ dos cartéis, dos
trustes etc.) exigem um Estado forte, mobilizador do todos os meios do
182
poder”

Esta articulação entre liberalismo e fascismo fora tematizada por Carl


Schmitt, pois vem de Schmitt a noção de que a democracia parlamentar com
183
seus sistemas de negociações tendia a criar um “Estado total” . Tendo que dar
conta das múltiplas demandas vindas de vários setores sociais organizados, a
democracia parlamentar acabaria por permitir ao estado intervir em todos os
espaços da vida, regulando todas as dimensões do conflito social,
transformando-se em mera emulação dos antagonismos presentes na vida
social. Contra isto, não seria necessário menos estado, mas pensar uma outra
forma de estado total. Neste caso, um estado capaz de despolitizar a sociedade,
tendo força suficiente para intervir politicamente na luta de classes, eliminar as
forças de sedição a fim de permitir a liberação da economia de seus pretensos
entraves sociais. Como bem lembrará Pollock, esse mesmo modelo poderá
tanto operar em chave de democracia liberal quanto de regime autoritário. Se
pudermos completar, essa indiferença vem do fato dos dois polos estarem
menos longe do que se gostaria de imaginar. Na verdade, tanto em um caso
como em outro os fundamentos da racionalização liberal, com sua noção de
agentes econômicos maximizadores de interesses individuais, permanecia com
a estrutura da vida social e dos modos de subjetivação, justificando toda forma
de intervenção violenta contra tendências contrárias.
Neumann compreende em outra chave o estado nazista. Na verdade, sua
leitura está muito mais vinculada à compreensão de uma situação de conflito
perpétuo que decompõe a capacidade de planificação do estado em prol de um
movimento anárquico em direção à guerra imperialista. Uma guerra levada por
um estado que está a todo momento a ponto de se decompor. Por isto, uma
guerra que deve ser implacável:

Nada resta senão lucro, poder, prestígio e, acima de tudo, medo. Desprovidos de
qualquer lealdade comum e preocupados somente com a preservação de
seus próprios interesses, os grupos dominantes romperão tão logo o Líder
milagreiro encontre um oponente de valor. No presente, cada seção
precisa das outras. O exército precisa do partido porque a guerra é
totalitária. O exército não pode organizar a sociedade “totalmente”; isto é
tarefa do partido. O partido, por outro lado, precisa do exército para
vencer a guerra e assim estabilizar e mesmo ampliar seu próprio poder.
Ambos precisam da indústria monopolista para garantir a expansão
contínua. E todos os três precisam da burocracia para alcançar a
racionalidade técnica sem a qual o sistema não consegue operar. Cada
grupo é soberano e autoritário; cada é equipado com poderes legislativos,

MARCUSE, Herbert; ​Cultura e sociedade, vol. I,​ São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 61
182
183
Ver SCHMITT, Carl; “Starker Staat und gesunde Wirtschaft. Ein Vortrag für Wirtschaftsführen”, in
Volk und Reich Politische Monatshefte für das junge Deutschland​, 1933, tomo 1, caderno 2, pp. 81-94
administrativos e jurídicos próprios; cada um é assim capaz de conduzir
184
hábil e inescrupulosamente os compromissos necessários aos quatro .

No segundo eixo de estudos dos frankfurtianos, encontramos as análises


sobre a relação entre nazismo e cultura. Talvez o mais exemplar desses estudos
sobre ​De Caligari a Hitler​, de Sigfried Kracauer, não por acaso uma “história
psicológica do cinema alemão”. Kracauer analisa a produção cinematográfica
alemã até a ascensão de Hitler a fim de recompor “o padrão psicológico de um
185
povo numa determinada época” . Foi após a Primeira Guerra Mundial que o
cinema alemão realmente nasceu. Ele não poderia ser indiferente a seu próprio
nascimento, a sua necessidade de elaborar os traumas de um país humilhado
pela derrota e conduzido por um governo fraco até uma crise econômica de
proporções catastróficas. Kracauer insistirá na compreensão da psicologia social
como condição para determinar os processos que levam à consolidação do
nazismo. Daí afirmações como:

A dissolução de sistemas políticos resulta na decomposição de sistemas


psicológicos e, no tumulto subsequente, atitudes internas tradicionais,
agora liberadas, são impelidas a se tornarem manifestas, sejam elas
186
combatidas ou apoiadas .

Por fim, temos o eixo das análise do fascismo como patologia social. Foi
isto que vimos nas últimas duas aulas. Primeiro, eu insistira com vocês no
sentido em abordar um fenômeno social como o fascismo enquanto patologia
social. Vale a pena entendermos melhor este ponto devido a sua importância
epistemológica.

Retornando à hipótese do fascismo como patologia social

Podemos compreender sociedades como sistemas produtores e gestores


de patologias. Inexiste sociedade que não se fundamente em um complexo
processo de gestão de patologias e tal gestão é uma dimensão maior, mas nem
sempre completamente explícita, de reprodução social de afetos. Não se trata
apenas de se perguntar pelas modalidades de sofrimento que sociedades
produzem, já que toda forma de restrição e coerção, toda forma de assunção
normativa é necessariamente produtora de sofrimento. No entanto, nem toda
forma de restrição e coerção é produtora de patologias, da mesma forma que
nem todo sofrimento é traduzível imediatamente na forma de patologia. Um
sofrimento patológico é um sofrimento socialmente compreendido como
excessivo e, por isto, objeto de tratamento por modalidades de intervenção
médica que visam permitir a adequação da vida à valores socialmente
estabelecidos com forte carga disciplinar.
Há de se insistir neste ponto pois reconhecer-se como portador de uma
patologia é indissociável do ato de se reconhecer em uma identidade social com
clara força performativa. Uma patologia mental pressupõe um ato de

184
NEUMANN, Behemoot, p. 397
185
KRAKAUER; De Calegaria a Hitler, p. 20
186
Idem, p. 21
reconhecimento por parte do próprio portador, um ato que o modifica e o
inscreve socialmente. Por isto, a discussão sobre os processos de produção de
identidade social tem, no debate a respeito da estrutura do sofrimento psíquico,
um setor importante de desenvolvimento. Pois ao ser traduzido em patologia, o
sofrimento transforma-se em modo de partilha de identidades que trazem em
seu bojo regimes definidos de compreensão dos afetos e de expectativas de
efeitos. Neste sentido, podemos dizer que as patologias são setores fundamentais
de processos de socialização. Socializamos sujeitos, entre outras coisas, ao
faze-los internalizar modos de inscrever seus sofrimentos, seus “desvios” e
descontentamentos em quadros clínicos socialmente reconhecidos. Não se
socializa apenas levando sujeitos a internalizar disposições normativas positivas,
mas principalmente ao fornece-lhes uma ​gramática social do sofrimento​, ou seja,
quadros patológicos oferecidos pelo saber médico de uma época. Não se socializa
apenas através da enunciação da regra, mas principalmente através da gestão
das margens.
Por isto, as categorias clínicas utilizadas para descrever patologias
próprias a sofrimentos psíquicos são necessariamente ​patologias sociais. ​Neste
contexto, percebe-se que falar em “patologias sociais” implica, inicialmente,
discutir a maneira com que categorias clínicas participam de formas sociais de
disciplina.
Mas é fato que a análise de Adorno e Horkheimer a respeito do fascismo
como um laço social paranoico dizia um pouco mais. Pois se tratava não apenas
de compreender como patologias mentais forneciam a inscrição de formas de
sofrimento a serem geridas e classificadas. Tratava-se de mostrar como essas
mesmas patologias se transformavam em modo normal de participação social.
Até porque:

Padrões de personalidade que foram descartados como ‘patológicos’ porque não


estavam em consonância com os padrões manifestos mais comuns ou com
os ideais mais dominantes em uma sociedade, mostraram-se em um
investigação mais apurada serem apenas exagerações do que era quase
universal sob a superfície dessa sociedade. O que é ‘patológico’ hoje pode,
com a modificação de condições sociais, tornar-se a tendência dominante
187
de amanhã .

Ou seja, falar em patologias sociais implicava inicialmente ​uma reflexão


sobre as patologias enquanto categorias que descrevem modos de participação
social, e não uma reflexão sobre a sociedade como organismo saudável ou doente​.
Tal reflexão permitiria, por sua vez, o desenvolvimento de uma articulação entre
clínica e crítica no interior da qual a crítica social aparece indissociável do
diagnóstico de limitação do campo de experiências implicado na circulação
massiva de quadros de patologias, na transformação reiterada de sofrimento em
patologias específicas.
Isto explica muito dos dois processos principais em jogo na compreensão
do fascismo proposta por Adorno e Horkheimer. O primeiro diz respeito a
definição da estrutura projetiva da paranoia como ponto de partida para a
análise do fascismo. Na paranoia, a relação ao mundo dos objetos é marcado pela

187
ADORNO e alli.,; Studies in the Authoritarian personality, p. 157
projeção, graças a qual os conflitos internos ao aparelho psíquico são expulsos e
retornam sob a forma de delírios. Vimos como Adorno e Horkheimer
reconheciam que todo pensamento tinha uma dimensão projetiva. No entanto, o
que diferencia percepção e delírio é certa capacidade de retificação da
experiência através da internalização dos fracassos da projeção. A isto, os dois
chamavam de “reflexão duplicada”. Esta capacidade de retificação da experiência
inexistiria no fascismo, pois não há internalização do princípio de resistência dos
objetos.
Vimos como tal ausência de retificação da experiência era resultado da
generalização da reificação da estrutura do conhecimento. Neste ponto, Adorno
introduzia sua teoria da semiformação. A este respeito, notemos o sentido de
afirmações como:

Hoje, mais provavelmente, as áreas rurais são criadouros de semiformação. Lá,


sobretudo graças aos meios de comunicação de massa como o rádio e a
televisão, o mundo de representação pré-burguesa, essencialmente
apegado à religião tradicional, está subitamente despedaçado. Ele está
suplantado pelo espírito da indústria cultural; todavia, o ​a priori do
conceito propriamente burguês de formação, a autonomia, não teve
tempo para se formar. A consciência passa imediatamente de uma
heteronomia a outra; em vez da autoridade da bíblia, se coloca a do
campo de esportes, da televisão e das “histórias verdadeiras” que se
sustentam na exigência do literal, da factualidade do aqui e agora da
imaginação produtiva. O ameaçador ali, que no ​Reich de Hitler se revelou
amplamente mais drástico do que as questões relativas à mera sociologia
da formação, quiçá até hoje dificilmente foi enxergado de maneira correta
188
.

O que diz Adorno? Ele não afirma que semiformação diga respeito a uma
incapacidade da circulação de informações, do acesso a conhecimento produzir
por si só autonomia. Ao contrário, “a consciência passa de uma heteronomia a
outra”, da autoridade de bíblia, à autoridade da indústria cultural, à autoridade
dos que denunciam a verdade expressa em complots inimagináveis. Em todos
esses casos, o elemento central é a incapacidade de uma relação cognitiva ao
mundo sob o fundo de crise. Digamos que nenhum lugar vazio circula, nenhuma
contingência ocorre, nenhum acaso obriga à revisão. Semiformação não está
ligada à falta de acesso à pretensa totalidade do saber, mas impossibilidade de
lidar com a fragilidade do saber, com os descompassos entre experiência e saber.
Isto pede não apenas uma descrição sociológica das modalidades de circulação
do saber, mas uma descrição psicológica da relação entre saber e desejo, do
saber como anteparo a certas formas de desejo.

O problema da identificação narcísica

Assim, se nos perguntarmos porque certos sujeitos abraçam


semiformações, devemos nos dirigir ao outro polo do diagnóstico do fascismo
como patologia social, a saber, a redução dos processos identificatórios a

188
ADORNO, ​Teoria da semiformação
identificações narcísicas. Adorno sabe que nossa era é uma era marcada pelo
declínio da autoridade paterna. Este era um tópico presente nos trabalhos dos
frankfurtianos desde os anos trinta. Isto significa, entre outras coisas, que as
figuras de autoridade não poderiam mais se constituir a partir de representações
paternas e ideais sublimados e tipos sociais marcados pelo auto-controle de seus
próprios desejos. As identificações não serão simbólicas, elas serão imaginárias.
Por isto, as identificações só poderiam ocorrer com personalidades que são a
projeção narcísica do próprio sujeito.
Isso faz o líder fascista tender a aparecer como “o alargamento da própria
personalidade do sujeito, uma projeção coletiva de si mesmo, ao invés da
imagem de um pai cujo papel durante a última fase da infância do sujeito pode
189
bem ter decaído na sociedade atual” . Adorno explora tal traço ao afirmar que:

uma das características fundamentais da propaganda fascista personalizada é o


conceito de ‘pequeno grande homem’, uma pessoa que sugere, ao mesmo
tempo, onipotência e a ideia de que ele é apenas mais um do povo, um
simples, rude e vigoroso americano, não influenciado por riquezas
190
materiais ou espirituais .

Pois as identificações não são construídas a partir de ideais simbólicos. Elas são
basicamente identificações narcísicas que parecem compensar o verdadeiro
191
sofrimento psíquico do “declínio do indivíduo e sua subsequente fraqueza” , um
declínio que não é apenas apanágio de sociedades abertamente totalitárias. Isto
talvez explique porque este “mais um do povo” possa ser expresso não apenas
pela simplicidade, mas às vezes pelas mesmas fraquezas que temos ou que
sentimos, pela mesma revolta impotente que expressamos. Daí porque: “o líder
pode adivinhar as necessidades e vontades psicológicas desses suscetíveis à sua
propaganda porque ele se assemelha a eles psicologicamente, e deles se
distingue pela capacidade de expressar sem inibição o que está latente neles, isto
192
ao invés de encarnar uma superioridade intrínseca” . Ao descrever de maneira
mais precisa o processo imanente às identificações narcísicas, Adorno dirá:

A fragilidade do eu [tema que Adorno traz do psicanalista Hermann Nunberg]


que retrocede ao complexo de castração, procura compensação em uma
imagem coletiva e onipotente, arrogante e, assim, profundamente
semelhante ao próprio eu enfraquecido. Esta tendência, que se incorpora
em inumeráveis indivíduos, torna-se ela mesma uma força coletiva, cuja
193
extensão até agora não se estimou corretamente .

Ou seja, a figura da liderança fascista é uma compensação à experiência


efetiva de enfraquecimento do Eu, ameaçado pelo complexo de castração.
Marcado pelo seu enfraquecimento, o Eu não é capaz de estabelecer mediação
alguma com aquilo que não lhe é absolutamente semelhante. Toda capacidade de

189
ADORNO, Theodor; op.cit., p. 418
190
Idem, p. 421
191
Idem, p. 411.
192
ADORNO, Theodor; “Democratic leadership and mass manipulation”, op. cit., p. 427
193
ADORNO, Theodor; ​Ensaios de psicologia social e psicanálise​, São Paulo: Unesp, 2015
afinidade mimética será brutalmente denegada, toda presença da alteridade é
vista como fonte de frustração. Neste sentido, Adorno é um dos primeiros a
compreender a funcionalidade do narcisismo enquanto modo privilegiado de
vínculo social em uma sociedade de enfraquecimento da capacidade de mediação
do eu, adiantando em algumas décadas problemas que levarão às discussões
sobre a “sociedade narcísica”. Ele sabe como tal fraqueza permite, através da
consolidação narcísica da personalidade com suas reações diante da consciência
tácita da fragilidade dos ideais do eu, aquilo que chama de expropriação do
inconsciente pelo controle social, ao invés de transformar o sujeito consciente de
seu inconsciente. O que serve para nos lembrar como estas apropriações
frankfurtianas de considerações freudianas servem, entre outras coisas, para nos
mostrar como o autoritarismo em suas múltiplas versões não é apenas uma
tendência que aparece quando a individualidade é dissolvida. Ele é
potencialidade inscrita na própria estrutura narcísica dos indivíduos modernos
de nossas democracias liberais. O que não poderia ser diferente para alguém que
afirma: “Quanto mais nos aprofundamos na gênese psicológica do caráter
totalitário, tanto menos nos contentamos em explicá-lo de forma exclusivamente
psicológica, e tanto mais nos damos conta de que seus enrijecimentos
194
psicológicos são um meio de adaptação a uma sociedade enrijecida” .
Por ter que lidar com uma sociedade enrijecida, a constituição moderna
do indivíduo é potencialmente autoritária, pois ela é narcísica, com tendência a
projetar para fora o que parece impedir a constituição de uma identidade
autárquica e unitária, além de continuamente aberta à identificação com
fantasias arcaicas de amparo e segurança. Conhecemos a ideia clássica segundo a
qual situações de anomia, famílias desagregadas e crise econômica são o terreno
fértil para ditaduras. Um pouco como quem diz: lá onde a família, a prosperidade
e a crença na lei não funcionam bem, lá onde os esteios do indivíduo liberal
entram em colapso, a voz sedutora dos discursos totalitários está à espreita. No
entanto, se realmente quisermos pensar a extensão do totalitarismo, ​seria
interessante perguntar por que personalidades autoritárias aparecem também em
famílias muito bem ajustadas e sólidas, em sujeitos muito bem adaptados a nossas
sociedades e a nosso padrão de prosperidade.

A personalidade autoritária

Este é o horizonte dos Estudos sobre a Personalidade Autoritária, publicados em


1950 e desenvolvidos por Theodor Adorno e pelos psicólogos Else
Frenkel-Brunswik, Daniel Levinson e R. Nevitt Sandford. Trata-se de um largo
estudo sobre indivíduos potencialmente fascistas. Ele parte da premissa de que
convicções políticas, econômicas e sociais formam uma “mentalidade” que
expressa tendências de uma “personalidade”. Tal personalidade seria
responsável seria essencialmente “uma organização de necessidades”, uma
estrutura que, ainda que sempre modificável, é frequentemente muito resistente
a transformações fundamentais:

As forças da personalidade são primariamente necessidades (pulsões, desejos,


impulsos emocionais) que variam de um indivíduo a outro em sua

194
ADORNO, Theodor; ​Ensaios de psicologia social e psicanálise​, op. cit.
qualidade, intensidade, modo de gratificação e objetos aos quais se
vinculam, e que interagem com outras necessidades em padrões
195
conflituais ou harmônicos .

Notemos como, sem mencioná-lo, esse estudo recupera a intuição de


Reich em ​Psicologia das massas e fascismo a respeito do fascismo como um tipo
de personalidade. Lembremos como Reich determinava uma etiologia de tal
personalidade através do destino do processo de socialização das pulsões
sexuais, o que não será o caso nesse estudo. Mas mesmo não oferecendo uma
etiologia da personalidade autoritária, o estudo insiste na existência de um
padrão geral de comportamento marcado pela permanência estrutural de
dinâmicas de segregação que facilmente podem evoluir para comportamentos
abertamente fascistas. Há um “fascismo potencial” naturalizado em práticas de
segregação que habitam de forma extensiva no interior de nossas democracias
liberais. Potencialidade que indica como indivíduos diferem em sua
suscetibilidade ​a propaganda antidemocrática. Daí porque se trata de insistir que
as práticas de segregação não são fenômenos isolados, mas parte de um quadro
ideológico mais amplo que dá forma à personalidade. Alguém hostil em relação a
uma minoria é normalmente hostil a uma variedade de outros grupos. O que nos
leva a compreender a personalidade como uma espécie de “ideologia privada”.
Uma das inovações fundamentais dessa pesquisa consistiu em levar a
sério a compreensão de que tal personalidade é formada, inclusive, por
elaborações inconscientes que não são imediatamente acessíveis aos próprios
sujeitos. O que lhe levou a desenvolver um modelo de abordagem que privilegia
questões indiretas, que trabalha com “níveis” no interior da personalidade. Isto
os levou a questionários compostos por questões fatuais, escalas de atitude e
opiniões, além de questões ‘projetivas’. A expectativa era de que tal formato de
questionário permitiria inferências sobre níveis profundos da personalidade dos
sujeitos.
O sistema de escalas era composto por três escalas visando avaliar níveis
de anti-semitismo, de etnocentrismo e de conservadorismo político-econômico.
Com o desenrolar da pesquisa, ficou claro que as escalas de anti-semitismo e de
etnocentrismo tendiam a se correlacionar com um horizonte fascista que
permitiu a constituição do que será conhecido como “escala F”. Trata-se de um
questionário composto por um conjunto de 77 questões visando medir o
potencial fascista da personalidade em questão. Tais questões estavam divididas
em eixos que visavam medir: convencionalismo, submissão autoritária,
anti-intracepção, superstição e estereotipia, poder e rudeza, destrutividade e
cinismo, projetividade e sexo. Já o universo da pesquisa era composto tanto de
voluntários da Universidade de Berkeley e Oregon quanto por pacientes da
clínica psiquiátrica da Universidade da California, prisioneiros da Prisão estadual
de San Quentin, membros de sindicatos, grupos de fieis de igrejas, além de
membros do Rotary club.
Por fim, lembremos como esta procura por uma “personalidade
autoritária” visava explicar porque os padrões de comportamento e de adesão
fascista não estavam vinculados diretamente a classes, mas a estruturas
psicológicas. Em situações de fascismo não é incomum indivíduos irem contra

195
ADORNO e alli.; Studies no authoritarian personality, p. 155
seus próprios interesses materiais. Pois não se trata de compreender tais ações
como ações de indivíduos maximizadores de interesses, mas como sujeitos
motivados por sonhos, fantasias e delírios.
Psicologias do fascismo
Aula 13

Na aula de hoje, começamos nosso último módulo. Ele é dedicado à compreensão


das estruturas afetivas do fascismo, do neoliberalismo, além de apresentar de
uma proposta de superação de processos de regressão de laços sociais,
desenvolvida por Freud. Trata-se de discutir as bases afetivas do fascismo, sua
perpetuação no interior do neoliberalismo e a resposta freudiana a tal desafio.
Tendo isto em vista, gostaria de começar através da discussão de certos aspectos
da teoria do poder de um dos mais influentes teóricos que deram suporte ao
nazismo, a saber, o jurista alemão Carl Schmitt. Schmitt é o teórico de uma visão
de estado, de política e de poder que se realiza de forma explícita através do
nazismo alemão. No entanto, sua astúcia vem do fato de, no mesmo movimento,
explicitar, dinâmicas presentes no interior da tradição de nossa filosofia política.
Há várias formas de abordar sua teoria, mas eu gostaria de explorar uma
de maneira privilegiada. Ela concerne a compreensão do fundamento do estado a
partir de certa teoria dos afetos. Podemos encontrar este ponto em sua leitura da
filosofia política de Thomas Hobbes. A leitura de Hobbes feita por Schmitt não é
apenas rica. Ela explicita, em um vocabulário aberto, uma concepção de política
que ultrapassa o quadro do absolutismo hobbesiano. Para tanto, proponho
seguir tal leitura, reconstruindo alguns aspectos importante da teoria do Estado
de Thomas Hobbes.

O fantasma da guerra total

Partamos da definição célebre de Hobbes:

Durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de


mantê-los todos em temor respeitoso eles se encontram naquela condição
a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra
196
todos os homens .

Daí porque: “a origem de todas as grandes e duradouras sociedades não


provém da boa vontade recíproca que os homens teriam uns para com os outros,
197
mas do medo recíproco que uns tinham dos outros” . Esta definição determina
uma das condições centrais do estado de natureza, a saber, a insegurança e a
guerra iminente. Uma guerra que não é apenas o tempo da batalha, mas a
disposição contínua à violência contra o outro. É uma reflexão sobre a guerra que
funda a reflexão política moderna. Ou seja, o problema político fundamental em
Hobbes estará ligado ao destino da destrutividade, ao destino desta “inimizade”
beligerante. A saída do estado de natureza e de sua guerra de todos contra todos,
estado este resultante de uma igualdade natural que não implica consolidação da
experiência do bem comum mas conflito perpétuo entre interesses
concorrenciais, se faria pelas vias da internalização de um “temor respeitoso”

196
HOBBES, Thomas; ​Leviatã,​ São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 109.
197
HOBBES, Thomas; ​Do cidadão​, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 28
constantemente reiterado e produzido pela força de lei de um poder soberano.
Pois:

se os bens forem comuns a todos, necessariamente haverá de brotar


controvérsias sobre quem mais gozará de tais bens, e de tais
controvérsias inevitavelmente se seguirá o tipo de calamidades, as quais,
198
pelo instinto natural, todo homem é ensinado a esquivar .

Proposição que ilustra como as individualidades seriam animadas por algo como
uma força de impulso dirigido ao excesso. Não pode haver bens comuns porque
há um desejo excessivo no seio dos indivíduos, desejo resultante da “natureza
199
ter dado a cada um direito a tudo” sem que ninguém esteja assentado em
alguma forma de lugar natural. Como lembrará Leo Strauss, a respeito de
200
Hobbes: “o homem espontaneamente deseja infinitamente” . Tal excesso
aparece, necessariamente para Hobbes, não apenas através do egoísmo ilimitado,
mas também através da cobiça em relação ao que faz o outro gozar, da ambição
por ocupar lugares que desalojem aquele que é visto preferencialmente como
concorrente. Pois o excesso, como é traço comum de todos os homens, só pode
acabar como desejo pelo mesmo. “Muitos, ao mesmo tempo, têm o apetite pelas
201
mesmas coisas” . A guerra será inevitável se lembrarmos que o direito natural
(​jus naturalis)​ é o direito de tudo fazer para preservar minha própria natureza,
ou seja, minha vida. Da mesma forma, a lei natural (​lex naturalis)​ prescreve a
proibição de fazer e aceitar aquilo que é destrutivo à minha vida. Assim, Hobbes
descreve como o aparecimento histórico de uma sociedade de indivíduos
liberados de toda forma de lugar natural ou de regulação coletiva
predeterminada só pode ser compreendido como o advento de uma “sociedade
202
da insegurança total” . Este ponto é fundamental pois é a possibilidade efetiva
da morte violenta que definirá a necessidade de emergência do político.
Notemos pois como o conflito entre indivíduos se dá como consequência
necessária da expressão da natureza de seus desejos. É na verdade uma reflexão
sobre o desejo como disposição humana fundamental que inaugura uma das
bases da filosofia política moderna. O que demonstra como o desejo é, para os
modernos, uma categoria política por excelência. Segundo Hobbes, os desejos são
miméticos. Deseja-se o mesmo que o outro, vejo como o outro deseja para saber
como desejar, ou seja, há desde o início uma certa forma de dependência entre os
seres humanos, mas esta racionalidade mimética não se traduz em empatia ou
tendência à cooperação. Ela se traduz em rivalidade e violência direta. É a
expressão do desejo que coloca os indivíduos na rota de uma luta de vida ou
morte. No entanto, esta luta não pode ser regulada pelos próprios contendores.
Dela, não emerge nada a não ser um impasse, já que todos os indivíduos são
portadores de força relativamente igual. A força maior de um não irá muito mais
além do que a força de dois ou três unidos. A luta só pode ser superada então
através da introdução de um terceiro elemento, que neutraliza a rivalidade da
198
HOBBES, Thomas; ​Do cidadão​, op. cit., p. 7
199
Idem, p. 30
200
STRAUSS, Leo; ​The political philosophy of Thomas Hobbes,​ University of Chicago Press, 1963, p.
10
201
HOBBES, ​Do cidadão,​ p. 30
202
CASTEL, Robert; ​L’insécurité sociale: qu’est-ce qu’être protégé?​, Paris: Seuil, 2003, p. 13
relação dual, a saber, através da instauração do direito e do Estado. Daí esta
definição de Schmitt: “Para Hobbes, o Estado não é outra coisa que a guerra civil
203
constantemente impedida por meio de um força ilimitada” .
No entanto, há de se entender melhor qual é a natureza deste direito. É ele
expressão da liberdade dos indivíduos e sua capacidade de criar instituições? Ou
é o Estado a expressão de uma coerção consentida, de uma restrição legítima
como condição para a não desagregação do laço social? Qual a natureza do pacto
que produz o advento do Estado?
A fim de responder tal questão percebamos que é contra a destrutividade
amedrontadora desse excesso que coloca os indivíduos em perpétuo movimento,
fazendo-os desejar o objeto de desejo do outro, levando-os facilmente à morte
violenta, que se faz necessário o Estado. Ou seja, como nenhuma forma de pacto
imanente entre indivíduos é possível, como a própria figura do indivíduo
portador de interesses já é a consolidação da inevitabilidade do conflito, já que
luto pelos meus interesses a despeito dos interesses do outro, não haverá outra
saída para a regulação social do que o aparecimento de uma força externa
chamada de “governo” capaz de estabelecer um pacto feito da auto-restrição
mútua e da limitação de si.
Notemos, no entanto, um ponto importante. Este estado de natureza é
composto de indivíduos que parecem naturalizar princípios de conduta baseados
na concorrência, no sentimento de posse e na propriedade. Daí porque Hobbes
dirá que os três principais motivos de conflito são: a concorrência, a
desconfiança e a glória. Ou seja, e esta é uma tese avançada pela primeira vez por
Macpherson no clássico ​A teoria do individualismo possessivo​, tudo se passa como
se Hobbes tivesse naturalizado a emergência do indivíduo moderno liberal em
situação de ator animado pela exigência de reconhecimento de seus interesses,
colocando-o no fundamento de uma antropologia normativa do humano. Mesmo
sem ser exatamente um teórico liberal, já que Hobbes submete o direito da
propriedade individual às condições de sobrevivência do Estado, vemos
claramente como sua teoria política é, na verdade, resultado da naturalização
antropológica dos pressupostos imanentes à individualidade liberal.

O medo como afeto que funda o laço social

Neste sentido, há de se estar atento para o circuito de afetos que


constituirá o fundamento possível desta forma de vida social. Pois a
possibilidade mesma da existência do governo e, por consequência, ao menos
neste contexto, a possibilidade de estabelecer relações através de contratos que
determinem lugares, obrigações, previsões de comportamento, fornecendo à
sociedade sua racionalidade, estaria vinculada à circulação do medo como afeto
instaurador e conservador de relações de autoridade. A emergência do indivíduo
moderno é indissociável da elevação do medo à condição de afeto social central.
Ninguém melhor que Carl Schmitt descreve os pressupostos desta passagem
hobbesiana do estado de natureza ao contrato fundador da vida em sociedade:

Este contrato é concebido de maneira perfeitamente individualista. Todos os


vínculos e todas as comunidades são dissolvidos. Indivíduos atomizados

203
SCHMITT, Carl; Le Leviathan dans la doctrine d’état de Thomas Hobbes, p. 86
se encontram no medo, até que brilhe a luz do entendimento criando um
204
consenso dirigido à submissão geral e incondicional à potência suprema
.

Notemos o sentido da elevação do medo como afeto político instaurador


de laços sociais. Esse medo teria a força de estabilizar a sociedade, paralisar o
movimento e bloquear o excesso das paixões, viabilizando assim a perpetuação
de nossas formas sociais. Isto leva comentadores, como Remo Bodei, a insistir em
uma “cumplicidade entre razão e medo”, não apenas porque a razão seria
impotente sem o medo, mas principalmente porque o medo seria, em Hobbes,
uma espécie de “paixão universal calculadora” por permitir o cálculo das
consequências possíveis a partir da memória dos danos, fundamento para a
205
deliberação racional e a previsibilidade da ação . Ou ainda, como dirá Esposito,
em Hobbes, o medo “não determina apenas fuga e isolamento, mas também
relação e união. Não se limita a bloquear e imobilizar, mas ao contrário, leva a
refletir e neutralizar o perigo: não tem parte com o irracional, mas com a razão. É
206
uma potência produtiva. Politicamente produtiva: produtiva de política” . Por
isto, o medo ligado à força coercitiva da soberania, ou seja, o medo que tenho do
soberano, deve ser visto apenas como certa astúcia para defender a vida social de
medo maior:

porque os vínculos das palavras são demasiado fracos para refrear a ambição, a
natureza, a avareza, a cólera e outras paixões dos homens, se não houver o
medo de algum poder coercitivo – coisa impossível de supor na condição
de simples natureza, em que os homens são todos iguais, e juízes do
acerto dos seus próprios temores (2003, p. 119).

É verdade que Hobbes também afirma: “As paixões que fazem os homens
tenderem para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são
necessárias para uma vida confortável e a esperança de consegui-las por meio do
207
trabalho” . Ou seja, parece não haver apenas um afeto, mas três: medo, desejo e
esperança. Da mesma forma, ele lembra que, sendo a força da palavra demasiado
fraca para levar os homens a respeitarem seus pactos, haveria duas maneiras de
reforçá-la: o medo ou ainda o orgulho e a glória por não precisar faltar com a
palavra. Tais considerações parecem abrir espaço à circulação de outros afetos
sociais, como a esperança e um tipo específico de amor-próprio ligado ao
reconhecimento de si como sujeito moral. Renato Janine Ribeiro, por exemplo,
insistirá que “pode-se reduzir a pares a multiplicidade das paixões: medo e
esperança, aversão e desejo ou, em termos físicos, repulsão e atração. Mas não é
possível escutar a filosofia hobbesiana pela nota só do medo, que não existe sem
208
o contraponto da esperança” .

204
SCHMITT, Carl; ​Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un
symbole politique, P ​ aris: Seuil, 2002, p. 95.
205
BODEI, Remo; ​Geometria delle passioni: Paura, speranza, felicità – filosofia e uso politico, ​Milão:
Feltrinelli, 2003, p. 86.
206
ESPOSITO, Roberto; ​Communitas,​ op.cit., p. 6
207
HOBBES, Thomas; ​Leviatã,​ p. 111
208
RIBEIRO, R.J.; ​Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo​, Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2004, p. 23
No entanto, a antropologia hobbesiana faz com que tais afetos circulem
apenas em regime de excepcionalidade, o que fica claro em afirmações como: “de
todas as paixões, a que menos faz os homens tender a violar as leis é o medo.
Mais: excetuando algumas naturezas generosas, é a única coisa que leva os
209
homens a respeitá-las” . Faltaria à maioria dos homens a capacidade de se
afastar da força incendiária das paixões e atingir esta situação de esfriamento na
qual o vínculo político não precisaria fazer apelo nem ao temor nem sequer ao
amor (que, enquanto modelo para a relação com o Estado, acaba por construir a
imagem da soberania à imagem paterna, modelando a política na família). Ou
seja, o esfriamento das paixões aparece como função da autoridade soberana e
condição para a perpetuação do campo político, mesmo que tal esfriamento se
pague com a moeda da circulação perpétua de outras paixões que parecem nos
sujeitar à contínua dependência.
Por isto, mais do que expressão de uma compreensão antropológica
precisa, que daria a Hobbes a virtude do realismo político resultante da
observação desencantada da natureza humana, seu pensamento possui como
horizonte uma lógica do poder pensada a partir de uma limitação política, no
caso, a impossibilidade de pensar a política para além dos dispositivos que
transformam o amparo produzido pela segurança e pela estabilidade em afeto
mobilizador do vínculo social. Política na qual “o ​protego ergo obligo é o ​cogito
210
ergo sum do Estado” . Difícil não chegar em uma situação na qual esperamos
finalmente por “um quadro jurídico no interior do qual não exista realmente
211
mais conflitos – apenas regras a colocar em vigor” ​. O que fica claro em
afirmações como:

entre os homens são muitos os que se julgam mais sábios e mais capacitados do
que os outros para o exercício do poder público. E esses esforçam-se por
empreender reformas e inovações, uns de uma maneira e outros doutra,
212
acabando assim por levar o país à perturbação e à guerra civil .

As reformas e inovações são um convite à perturbação e à guerra civil.


Pois o estado hobbesiano é, acima de tudo, um Estado de proteção social, ou seja,
Estado baseado na promessa de amparo, que se serve de todo poder possível,
instaurando um domínio de legalidade própria neutro em relação a valores e
verdade. Estado que precisa realizar sua tarefa sem constrangimento externo
algum, ou seja, como uma máquina administrativa que desconhece coerções em
sua função de assegurar a existência física daqueles que domina e protege. Um
Estado construído a partir da dessocialização de todo vínculo comunitário,
213
constituindo-se como o espaço de uma “relação de não-relações” .
Não é por acaso que este Estado será comparado a um Leviatã. A metáfora
não poderia ser mais adequada. O Leviatã é um monstro aquático dotado de
força descomunal que aparece no Livro de Jó. O contexto de sua aparição é
sintomático. Sem entender os desígnios divinos, enfermo e despossuido de tudo

209
HOBBES, ​Leviatã,​ p. 253
210
SCHMITT, Carl; ​O conceito do político – Teoria do partisan,​ Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 56
211
BALIBAR, Etienne; ​Violence et civilité, ​Paris: Galilée, 2010, p. 56
212
HOBBES, Thomas; ​Leviatã, ​op. cit., p. 146
213
ESPOSITO, Roberto; ​Communitas, ​op. cit., p. 12
o que tinha, Jó expressa sua perplexidade. Sendo um servo temente, por que
sofre tanto? Jeová então lhe aparece não para lhe responder a apazigua-lo, mas
para mostrar a desmedida entre a ciência divina e a ciência humana. Ou seja, ele
está diante de Jó para dizer : quem és tu que questiona meus desígnios? Neste
contexto, Jeová apresenta a figura de duas forças descomunais: uma aquática (o
Leviatã) e outra terrestre (Behemooth). “Não há nada mais tremendo sobre a
terra que se lhe possa comparar”, dirá a Bíblia. Um poder o mais potente,
supremo e sem partilha. Ou seja, fazer do Estado um Leviatã é inscrever-lhe a
força de uma imagem teológica que visa anular o sofrimento e a restrição como
disposição de revolta. Daí porque Schmitt dirá, que o Estado aparece aí como:
214
“uma totalidade mítica, compreendendo o deus, o homem e a máquina” . Ele
precisa ser dotado de uma força absoluta a fim de realizar seu designo de
proteção. Isto significa que sua autoridade não se deixa limitar por valores e
verdade. Seu mandamento é uma decisão soberana não restringida por nada,
única forma de evitar o conflito inevitável de interpretações e a sedição. Daí
afirmações como:

Ou bem esse Estado é realmente existente como estado, e então ele funciona
como o instrumento irresistível de calma, segurança e ordem, e todo o
direito objetivo, assim como o subjetivo, está de seu lado, pois enquanto
legislador único e supremo ele edita todo o direito; ou então ele não existe
realmente e não realiza sua função de assegurar a paz, e novamente é o
215
estado de natureza que reina, não havendo simplesmente mais Estado .

Por isto, não é possível dizer que o Estado opere aqui a partir de uma
lógica do reconhecimento. Ele opera, ao contrário, através da impossibilidade de
reconhecer aquilo que seria constitutivo da natureza humana. Pois há uma
violência elevada à condição de determinação metafísica do humano. Violência
que só pode aparecer como desagregação de todo e qualquer laço social. Notem
que há uma decisão, prenhe de consequências, que faz a violência vinda do
caráter excessivo do desejo ser expressa apenas como tendência à despossessão
do outro, de sua vida e de seus bens.
Cabe ao Estado usar o medo para impor aos indivíduos a limitação de seus
desejos e a restrição de suas possibilidades de reconhecimento. Cria-se assim
uma duplicidade fundamental na estrutura dos sujeitos que são cidadãos e
cidadãs de tal Estado. Como cidadão e cidadã do Estado ajo como sujeito capaz
de me auto-limitar, sujeito dotado de controle. No entanto, o que me vincula a tal
personalidade é um afeto responsável pela restrição e repressão de meus reais
impulsos. Por isto, a própria noção de personalidade será comparada por Hobbes
a uma máscara, recobrando o sentido originário do termo persona entre os
gregos. Máscara que não reconhece, mas que encobre algo a ser reprimido para
que o laço social possa existir.
Mas há um ponto no qual essa força é quebrada, ao menos no interior da
teoria de Hobbes. Pois há uma única limitação que Hobbes reconhece ao poder
do Estado. Ela se refere ao direito dos indivíduos à auto-defesa quando a vida
está ameaçada pelo poder soberano, o que decorre do respeito ao primeiro

214
SCHMITT, Carl; ​Le Leviathan​ …, p. 84
215
Idem, p. 107
direito natural. Se o soberano atenta contra minha vida, tenho o direito de a ele
me contrapor, pois o que me liga a ele é um pacto de proteção que não existe
mais. No entanto, o soberano guarda o direito de continuar sua ação contra mim
já que pode tudo fazer para garantir a proteção social e a permanência do Estado.
Nesta mesma linha, Schmitt dirá que o germe de morte que destruiu o
Leviatã foi a preservação da liberdade interior de pensamento e de crença. Teria
sido por este caminho que o “pensamento judeu liberal” de Spinoza teria se
aproveitado para distinguir a obrigação dos rituais do culto exterior e a
liberdade da crença privada, reduzindo paulatinamente o Estado a uma mera
aparência reguladora, a um garantidor do direito à opinião individual. Este seria
o caminho para uma situação na qual o Estado não poderia mais reduzir os
conflitos no seio da sociedade à condição de “distúrbios” e tentativas de
rebeliões.

A função do amparo

Mas nos atentemos para outro aspecto do nosso problema. Ele diz
respeito ao modelo geral de gestão social quando as exigências de
reconhecimento são bloqueadas. Pois o Estado não será apenas a instância que
opera a repressão. Ele será o gestor da lembrança contínua de que há algo a se
reprimir. Ele não será apenas o bombeiro da vida social, mas também o próprio
piromaníaco. Pois o fato fundamental no interior desta relação de não-relações é
a necessidade que a legitimação da soberania pela capacidade de amparo e
segurança tem da perpetuação contínua da imagem da violência desagregadora à
espreita, da morte violenta iminente caso o espaço social deixe de ser controlado
por uma vontade soberana de amplos poderes. O segredo da legitimidade do
Estado é a perpetuação da iminência da guerra de todos contra todos. O
fundamento fantasmático deste Estado será a figura do conflito social reduzida à
condição de guerra de todos contra todos. Daí uma conclusão importante de
Agamben: “A fundação não é um evento que se cumpra uma vez por todas ​in illo
tempore, m​ as é continuamente operante no estado civil na forma da decisão
216
soberana” . Este mecanismo de fundação que necessita ser continuamente
reiterado diz muito a respeito da continuidade do medo como força de reiteração
da relação do Estado ao seu fundamento.
Sendo o Estado nada mais que “a guerra civil constantemente impedida
217
através de uma força insuperável” , ele precisa provocar continuamente o
sentimento de desamparo, da iminência do estado de guerra, transformando-o
imediatamente em medo da vulnerabilidade extrema, para assim legitimar-se
como força de amparo fundada na perpetuação de nossa dependência. Na
verdade, devemos ser mais precisos e lembrar que a autoridade soberana tem
sua legitimidade assegurada não apenas por instaurar uma relação baseada no
medo para com o próprio soberano, mas principalmente por fornecer a imagem
do distanciamento possível em relação a uma fantasia social de desagregação
imanente no laço social e de risco constante da morte violenta. Uma fantasia
social que Hobbes chama de “guerra de todos contra todos”. É através da

AGAMBEN, Giorgio; ​Homo sacer​, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 115.
216

SCHMITT, Carl; ​Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un
217

symbole politique, o​ p. cit., p. 86


perpetuação da iminência de sua presença que a autoridade soberana encontra
seu fundamento. É alimentando tal fantasia social que se justifica a necessidade
do “poder pacificador” da representação política, ou seja, do abrir mão de meu
direito natural em prol da constituição de um representante cujas ações
soberanas serão a forma verdadeira de minha vontade. Só assim o medo poderá
218
“conformar as vontades de todos” os indivíduos, como se fosse o verdadeiro
escultor da vida social.
É importante ainda salientar que essa fantasia pede uma dupla
fundamentação. Por um lado, ela apela à condição presente dos homens. Não
sendo uma hipótese histórica, o estado de natureza é uma inferência feita a partir
da análise das paixões atuais. Isto leva comentadores como Macpherson a
afirmar que, longe de ser uma descrição do ser humano primitivo, ou do ser
humano aparte de toda característica social adquirida, o estado de natureza
seria: “a abstração lógica esboçada do comportamento dos homens na sociedade
219
civilizada” .
Hobbes pede que lembremos como “todos os países, embora estejam em
paz com seus vizinhos, ainda assim guardam suas fronteiras com homens
armados, suas cidades com muros e portas, e mantém uma constante vigilância”.
Lembra ainda como os “particulares não viajam sem levar sua espada a seu lado,
para se defenderem, nem dormem sem fecharem – não só as portas, para
proteção de seus concidadãos – mas até seus cofres e baús, por temor aos
220
domésticos” . Mas notemos um ponto central. A espada que carrego, as trancas
na minha porta e em meus baús, os muros da cidade na qual habito são índices
não apenas do desejo excessivo que vem do outro. Eles são índices indiretos do
excesso do meu próprio desejo. Como se Hobbes afirmasse: “olhe para suas
trancas e você verá não apenas seu medo em relação ao outro, mas o excesso de
seu próprio desejo que lhe desampara por querer lhe levar a situações nas quais
imperam a violência e o descontrole da força”. A retórica apela aqui a uma
universalidade implicativa.
De toda forma, como não se trata de permitir que configurações atuais
sejam, de maneira indevida, elevadas à condição de invariante ontológica, faz-se
absolutamente necessário também a produção contínua dessas construções
antropológicas do exterior caótico e do passado sem lei. Ou seja, mesmo não
sendo uma hipótese histórica, não há como deixar de recorrer à antropologia
para pensar o estado de natureza. Assim, aparecem construções como esta que
leva Hobbes a acreditar que:

os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do governo de


pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência natural, não
possuem nenhuma espécie de governo, e vivem nos nossos dias daquela
221
maneira brutal que antes referi .

218
HOBBES, Thomas; ​Leviatã, ​op. cit., p. 147
219
MACPHERSON, C.B.; ​The political theory of possessive individualism: Hobbes to Locke​, Oxford
University Press, 1962, p. 26.
220
HOBBES, Thomas;​ Do cidadão​, p. 14.
221
Idem, p. 110.
Ou seja, sociedades sem Estado como nós, os povos de muitos lugares da
América, são mobilizadas continuamente para lembrar à sociedade europeia
porque a soberania é legítima. No interior desta lógica de legitimação, esta é
nossa função. Ou ainda:

sabemos disso também tanto pela experiência das nações selvagens que existem
hoje, como pelas histórias de nossos ancestrais, os antigos habitantes da
Alemanha e de outros países hoje civilizados, onde encontramos um povo
reduzido e de vida breve, sem ornamentos e comodidades, coisas essas
222
usualmente inventadas e proporcionadas pela paz e pela sociedade .

Sociedades da violência e sociedades da penúria estão à nossa espreita seja em


uma diferença geográfica, seja em uma diferença histórica. Na verdade, sempre
deverá haver um “povo selvagem da América” à mão, o Estado sempre deverá
criar um risco de contaminação da vida social pela violência exterior,
independente de onde esse exterior esteja, seja geograficamente no Novo Mundo
ou no Oriente Médio, seja historicamente em uma cena originária da violência.
Ao menos neste ponto, Carl Schmitt é o mais consequente dos hobbesianos
quando afirma que:

Palavras como Estado, república, sociedade, classe e ademais soberania, Estado


de direito, absolutismo, ditadura, plano, Estado neutro ou total etc. são
incompreensíveis quando não se sabe quem deve ser, ​in concreto,​
223
atingido, combatido, negado e refutado com tal palavra .

Neste ponto, será importante ao Estado operar em duas frentes. Primeiro,


colocando continuamente a sociedade em guarda contra os “distúrbios”, as
revoltas internas. Deverá assim sempre haver um princípio de sedição contra o
qual deveremos estar à espreita. Segundo, a função do Estado consistirá em
definir quem são os inimigos, como se gerencia a guerra, que será sua ação
fundamental, mesmo que essa seja uma guerra fria. Isso explica porque Schmitt
dirá:

O inimigo político não precisa ser moralmente mau, não precisa ser
esteticamente feio; ele não tem que se apresentar como concorrente
econômico e, talvez, pode até mesmo parecer vantajoso fazer negócios
com ele. Ele é precisamente o outro, o desconhecido e, para sua essência,
basta que ele seja, em um sentido especialmente intenso,
existencialmente algo diferente e desconhecido, de modo que, em caso
extremo, sejam possíveis conflitos com ele, os quais não podem ser
decididos nem através de uma normalização geral empreendida
antecipadamente, nem através da sentença de um terceiro “não
224
envolvido” e, destarte, “imparcial” .

222
HOBBES, Thomas; ​Os elementos da lei natural e política,​ São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 70
223
​ elo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 32
SCHMITT, Carl; ​O conceito de político – Teoria do partisan, B
224
Idem, p. 28
Ou seja, o inimigo é aquele que mobiliza o caráter polêmico da diferença e do
desconhecimento, o sistema de defesas contra o que me implica como alteridade.
Não haveria vida política sem uma operação desta natureza. A vida política é,
para Schmitt, a mobilização contínua da força tendo em vista a gestão do medo
da despossessão produzido pela existência da diferença. Pois a diferença não é
apenas algo que tolero, ela é o que me transforma e me despossui. Ela me leva a
uma forma de vida outra. Contra isto, uma certa política existe. Ela existe
inclusive para impedir outra forma de diferença, fora do horizonte da guerra, a
diferença do “distúrbio”:

Em hipótese alguma se constitui em um progresso no sentido do humanitarismo


proscrever a guerra cerceada do Direito internacional europeu,
designando-a como reacionária e criminosa e, em seu lugar, em nome de
uma guerra justa, desencadear inimizades revolucionárias entre classes e
raças que não mais são capazes, e tampouco o querem, de diferenciar
225
entre inimigo e criminoso .

225
Idem, p. 10
Psicologias do fascismo
Aula 14

Na aula de hoje, gostaria de falar sobre a psicologia do indivíduo neoliberal e sua


estrutura de afetos. Pois lembremos que o neoliberalismo não é apenas um modo
de regulação dos sistemas de trocas econômicas baseado na maximização da
concorrência e do dito livre-comércio. Ele é um regime de gestão social e
produção de formas de vida. Margareth Thatcher mostrou ao menos a virtude da
honestidade ao afirmar que “a economia é o método. O objeto é modificar o
226
coração e a alma” . Se Thatcher tivesse lido Foucault, ela complementaria
afirmando que o coração e a alma são peças na dominação que o poder exerce
sobre o corpo. Há uma instauração sensível da vida psíquica cujos mecanismos
precisam ser compreendidos. Há de se ter isto em mente quando se perguntar o
que seria então este novo homem neo-liberal, qual sua economia libidinal.
Neste sentido, toda reflexão sobre o neoliberalismo talvez tenha de partir
de um paradoxo aparente. Poderíamos começar lembrando como o
desmantelamento neoliberal do sistema de seguridade social construído pelos
ditos Estados de Bem-estar a partir dos anos setenta provocou a liberação de um
processo de expropriação da mais-valia absoluta, ou seja, de acumulação
econômica através de uma expropriação baseada na intensificação dos regimes
de trabalho e na redução dos salários. Os números são claros neste sentido: por
exemplo, enquanto o PIB norte-americano por habitante cresceu 36% entre
1973 e 1995, o salário horário de trabalho de não-executivos (que constitui a
maioria dos empregos) caiu em 14%. No ano 2000, o salário real de
227
não-executivos nos EUA retornou ao que era há cinqüenta anos . No entanto, tal
processo ocorreu paradoxalmente a partir do momento em que as sociedades
capitalistas não podiam mais constituir sua coesão social e sua adesão
psicológica a tal processo através do recurso aos modelos de internalização
psíquica de uma ética do trabalho de moldes weberianos; devido, entre outras
coisas, ao desenvolvimento exponencial da sociedade de consumo e suas
exigências de mobilização total dos desejos, de enunciação integral dos desejos
no interior da esfera da multiplicação da satisfação mercantil. Neste momento,
em que um novo ethos do capitalismo se fazia necessário, o neoliberalismo
conseguiu consolidá-lo através de uma certa expropriação direta da economia
libidinal dos sujeitos.
A disciplina neoliberal não pode ser compreendida como simples
conjunto de condições para a internalização de dinâmicas repressivas capazes de
determinar sujeitos em individualidades rígidas e funcionalizadas, como vemos
nas “sanções psicológicas” da moralidade própria ao espírito protestante do
capitalismo, tal como descrito por Weber. Por serem repressivas, tais estruturas
disciplinares produziam subjetividades clivadas entre exigências de
conformação social e uma “outra cena” na qual se alojava a potência
desreguladora do desejo. A uniformização disciplinar criava uma matriz de
conflito claramente presente na fratura entre princípio de realidade e desejo
recalcado cujo modelo de sofrimento psíquico era tão claramente expresso nas

226
THATCHER, Margaret; Interview in http://www.margaretthatcher.org/document/104475
227
Ver, a este respeito, THUROW, Lester ; ​Les fractures du capitalisme, ​Paris, Village Mondial, 1997.
neuroses, tais como descritas por Freud. Mas regimes de gestão social que se
queiram realmente eficazes não podem permitir clivagens desta natureza com a
consequente constituição de um polo alternativo de motivações para o agir, que
encontrariam muitas vezes expressão em atividades normalmente dissociadas
do universo compulsivo do trabalho alienado, atividades vistas por este como
improdutivas (como o sexo, a experiência amorosa, o fazer estético, dar aulas
sobre o problema da contradição em Hegel, etc.). Ele deve expropriar todas as
esferas que poderiam fornecer espaço para experiências que não se deixam ler a
partir da lógica em operação na esfera econômica, eliminado os afetos que tais
experiências geram. Processo de expropriação cujas bases foram pela primeira
vez descritas através do conceito frankfurtiano de “dessublimação repressiva”.
Mas expropriar só é possível aqui através da absorção da própria dinâmica
pulsional pela lógica econômica, ou seja, através de uma socialização das pulsões
que não passe mais, de forma hegemônica, pelas clivagens organizadas sob a
forma do recalque. Uma socialização que não é simplesmente retorno à temática
da integração das demandas particulares de satisfação por uma sociedade cada
vez mais “hedonista”, topos clássico de uma crítica moral da sociedade de
consumo, mas que se refere à maneira com que a estrutura polimórfica e
disruptiva da ordem das pulsões, sua potência de indeterminação é traduzida em
um novo papel sócio-econômico através de uma forma renovada de gerir
conflitos psíquicos.
O neoliberalismo conseguiu resolver esta equação através da constituição
de um “ideal empresarial de si” como dispositivo disciplinar:

lá onde o liberalismo clássico mantinha uma distinção e às vezes mesmo uma


tensão entre critérios da moral individual ou coletiva e as ações
econômicas (de onde se seguem as diferenças impressionantes de tom, de
tipos de questões e mesmo de prescrições entre ​A riqueza das nações d ​ e
Adam Smith e sua ​Teoria dos sentimentos morais​) o neoliberalismo produz
normativamente os indivíduos como atores empreendedores,
228
endereçando-se a eles como tais, em todos os domínios de suas vidas .

Assim, se nos perguntarmos sobre como foi possível colocar em marcha um


processo de recentragem da acumulação através da extração da mais-valia
absoluta no momento em que não havia mais condições para apelar à ética
protestante do trabalho, responderemos que devemos estar atentos a a maneira
229
com que um certo “consentimento moral” a tal expropriação, vindo
exatamente daqueles que dela mais sofrem, constitui-se graças ao impacto
psíquico da internalização de um “ideal empresarial de si”. Graças à
internalização de tal ideal, o risco de insegurança social produzido pela
desregulamentação do trabalho foi suplantado pela promessa de plasticidade
absoluta das formas de vida produzidas como propriedades de projetos
individuais; tal desregulamentação se traduziu em liberação da potencialidade
de constituir projetos conscientes de formas de vida, da mesma forma que a

228
BROWN, Wendy; ​Les habits neuf de la politique mondiale: néolibéralisme et néoconservatisme,
Paris: Les Prairies Ordinaires, 2007, p. 54
229
Bem percebido, como veremos no próximo capítulo, por Axel Honneth em HONNETH, Axel; ​Das
recht der Freiheit​, Frankfurt: Suhrkamp, 2013.
intensificação do desempenho e das performances exigida pelo ritmo econômico
neoliberal se transformou em um peculiar modo subjetivo de gozo. Assim, o
medo do risco provocado pela insegurança social pode aparecer como covardia
moral.
Este ideal empresarial de si foi o resultado psíquico necessário da
estratégia neoliberal de construir uma “formalização da sociedade com base no
230
modelo da empresa” , o que permitiu à lógica mercantil, entre outras coisas, ser
usada como tribunal econômico contra o poder público. Pois é fundamental ao
neoliberalismo “a extensão e disseminação dos valores do mercado à política
231
social e a todas as instituições” . A generalização da forma-empresa no interior
do corpo social abriu as portas para os indivíduos se auto-compreenderem como
“empresários de si mesmos” que definem a racionalidade de suas ações a partir
da lógica de investimentos e retorno de “capitais” e que compreendem seus
afetos como objetos de um trabalho sobre si tendo em vista a produção de
232
“inteligência emocional” e otimização de suas competências afetivas. Ela
233
permitiu ainda a “racionalização empresarial do desejo” , fundamento
normativo para a internalização de um trabalho de vigilância e controle baseado
na auto-avaliação constante de si a partir de critérios derivados do mundo da
administração de empresas. Esta retradução das dimensões gerais das relações
inter e intrasubjetivas em uma racionalidade de análise econômica baseada no
“cálculo racional” dos custos e benefícios abriu uma nova interface entre governo
e indivíduo, criando modos de governabilidade muito mais enraizados
psiquicamente.
Notemos ainda que esta internalização de um ideal empresarial de si só
foi possível porque a própria empresa capitalista havia paulatinamente
modificado suas estruturas disciplinares a partir do final dos anos 20. A
brutalidade do modelo taylorista de administração de tempos e movimentos,
assim como a impessoalidade do modelo burocrático weberiano haviam
paulatinamente dado lugar a um modelo “humanista” desde a aceitação dos
trabalho pioneiros de Elton Mayo, fundados nos recursos psicológicos de uma
engenharia motivacional na qual “cooperação”, “comunicação” e
“reconhecimento” se transformavam em dispositivos de otimização da
produtividade. O que permitiu a uma socióloga como Eva Illouz lembrar que:

a esfera econômica, longe de ser desprovida de sentimentos, tem sido, ao


contrário, saturada de afeto, um tipo de afeto comprometido com o
imperativo da cooperação e com uma modalidade de resolução de
234
conflitos baseada no ‘reconhecimento’ bem como comandada por eles .

Esta “humanização” da empresa capitalista, responsável pela criação de uma


zona intermediária entre técnicas de gestão e regimes de intervenção
terapêutica, com um vocabulário entre a administração e a psicologia, permitiu
uma mobilização afetiva no interior do mundo do trabalho que levou à “fusão
230
FOUCAULT, Michel; ​O nascimento da biopolítica,​ op. cit., p. 222
231
BROWN, Wendy; ​Les habits neufs de la politique mondiale: néolibéralisme et néo-conservatisme​,
Paris: Les Prairies Ordinaires, 2007, p. 50
232
Cf. GOLEMAN, Daniel; ​Inteligência emocional​, Rio de Janeiro: Objetiva, 1996
233
DARDOT e LAVAL: ​La nouvelle raison do monde,​ op. cit, p. 440.
234
ILLOUZ, Eva; ​O amor nos tempos do capitalismo,​ Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011, p. 37
235
progressiva dos repertórios do mercado com as linguagens do eu” . As relações
de trabalho foram “psicologizadas” para serem melhor geridas, até chegar ao
ponto em que as próprias técnicas clínicas de intervenção terapêutica
começaram por obedecer, de forma cada vez mais evidente, padrões de avaliação
e de gerenciamento de conflitos vindos do universo da administração de
empresas. Sem tal movimento prévio, não teria sido possível ao neoliberalismo
reconstruir processos de socialização, em todas as esferas sociais de valores,
através da internalização de um ideal empresarial de si.
É fato, no entanto, que tal internalização de ideais exige uma mobilização
cruzada de regimes de identificação. Se, por um lado, ele apoia-se na constituição
de ideais, por outro é inegável que tal processo deve ser impulsionado, entre
outros, por uma parcela significativa de medo. Há uma produção neoliberal da
adesão social através da circulação do medo que não deve ser menosprezada,
mesmo que ela não sirva de causalidade suficiente. É do manejo conjunto do
medo e da esperança, do temor e do desejo, que estruturas de poder se
fundamentam.
Esta dimensão psicológica do medo foi claramente compreendida por
Adorno em suas reflexões sobre o capitalismo tardio e as modificações na
economia psíquica que ele implica. Enquanto instância psíquica de
auto-observação submetida ao impacto das transformações sociais, o supereu
mesclaria atualmente o medo arcaico de aniquilação física com “o medo muito
236
posterior de não mais pertencer ao conjunto humano” devido ao fracasso de
ser bem sucedido como sujeito econômico. Assim, é importante que o discurso
social produza a circulação incessante do risco de morte social devido à
degradação econômica iminente daqueles que resistem a reconstruir sua vida
psíquica a partir da racionalidade econômica. Pois:

quem não se comporta segundo as regras econômicas, hoje em dia raramente


naufraga imediatamente, mas no horizonte delineia-se o rebaixamento
socioeconômico (...) O medo de ser excluído, a sanção social do
comportamento econômico, internalizou-se há muito através de outros
237
tabus, sedimentando-se no indivíduo .

Uma mobilização contínua do medo advindo do risco de morte social só


efetivamente possível a partir do momento que o desmantelamento do
Estado-providência se impôs como realidade inelutável e consensual.
Tal medo se funde com outros medos produzidos no interior da sociedade
neoliberal, como a insegurança advinda de um estado contínuo de guerra, sem
distinção possível entre situação de guerra e de paz. Insegurança impulsionada
pela violência espetacular de pretensas “comunidades arcaicas” refratárias à
lógica neoliberal de valores e de modos de circulação de desejos. Peça
fundamental da adesão social às sociedades neoliberais a ponto destas serem,
cada vez mais, sociedades que se deixam transpassar por formas militares de
controle, criando uma oscilação sintomática entre liberalidade e restrição
securitária. Pois o amálgama produzido pela lógica de confronto entre “nossos

235
Idem, p. 154
236
ADORNO, Theodor; ​Escritos sobre psicologia social e psicanálise,​ op. cit., p. 76
237
Idem, p. 75
valores e modos de vida liberais” e tudo aquilo que é descrito como fruto de uma
mentalidade baseada na recusa à nossa liberdade, visa alimentar a sensibilidade
social contra a possibilidade de nos afastarmos da racionalidade econômica que
funda a esfera dos nossos valores. Os medos funcionam como um sistema de
vasos comunicantes.

A função do medo

A função do medo dentro da psicologia do indivíduo neoliberal é central.


Lembremos, a este respeito, como Frederik Hayek estabelecia uma oposição
entre o conceito liberal de liberdade e a democracia, alertando para os riscos de
uma “democracia totalitária” ou de uma “ditadura plebiscitária”. Hayek
considerava que a democracia deveria ser limitada, pois colocaria em risco a
verdadeira liberdade, isto é, a livre concorrência. A liberdade aparece para o
liberalismo como a livre disposição da propriedade e a liberdade para cumprir à
risca as exigências irracionais da acumulação.
Mas esse conceito liberal de liberdade só poderia se impor à base de choques.
Afinal, as sociedades não aceitam sem resistência limitar seus desejos e sua
inquietude à liberdade de empreender (reservada para alguns). A experiência histórica
das lutas por liberdade revela justamente a insistência em livrar a atividade da
submissão à forma do trabalho, da ânsia pela igualdade radical e pelo fim da
naturalização da exploração, da vontade de liberação do mundo das coisas dos
contratos de propriedade. Para tanto, a experiência do medo da morte social deveria
ser imposto custe o que custar. O que nos explica a necessidade de despolitizar a
sociedade, nem que seja apelando a ditaduras. Como dirá Hayek, em entrevista ao
jornal chileno ​El mercurio​, em 1981, ou seja, durante o regime Pinochet:

Eu diria que, enquanto instituição de longo termo, sou totalmente contra


ditaduras. Mas uma ditadura pode ser um sistema necessário durante um
período de transição. Às vezes, é necessário para um país ter, durante certo
tempo, uma forma de poder ditatorial. Como vocês sabem, é possível para um
ditador governar de maneira liberal. E é possível que uma democracia governe
com uma falta total de liberalismo. Pessoalmente, prefiro um ditador liberal a
um governo democrático sem liberalismo.

Difícil não perceber que a matriz desta ditadura liberal vem exatamente de
Carl Schmitt, como vimos na aula passada.

O infinito ruim do neoliberalismo

Mas voltemos os olhos para a estrutura interna dos ideais empresariais de


si a fim de compreender melhor a natureza de suas disposições normativas.
Lembremos, neste sentido, como tais ideais se baseiam na racionalização das
ações a partir de uma dinâmica de maximização de performances. Ações que
visam à pura maximização de performances devem se organizar de maneira
similar a atividades econômicas baseadas na extração da mais-valia e, por
consequência, nos processos de auto-valorização circular do Capital. Este é o
sentido fundamental da estratégia lacaniana em insistir na homologia entre a
forma pela qual objetos que causam o desejo (objetos ​a)​ circulam socialmente no
interior das sociedades capitalistas contemporâneas e o estatuto da mais-valia
em Marx, criando com isto o sintagma “mais-gozar” (​plus-de-jouir)​ .
Lacan se interessa pelo fato da mais-valia poder ser extraída a partir do
momento em que o trabalho social inscreve-se no mercado como trabalho
abstrato, mensurável como puro quantum de trabalho, permitindo com isto que
o capitalismo se sirva da dessimetria entre valor pago pelo tempo de trabalho e
valor dos objetos produzidos durante tal tempo quantificado. Assim, se Lacan
pode afirmar que “o que Marx denuncia na mais-valia é a espoliação do gozo”, é
para lembrar que a renúncia ao gozo produzida pela abstração do tempo de
trabalho (tema batailleano por excelência que nos lembra como o tempo do gozo
e o tempo do trabalho não se confundem), esta “redução do próprio trabalhador
238
a não ser nada mais que valor” , ou seja, não ser mais que suporte do processo
de produção do valor, permite a produção de um mais-valor que inaugura a
circulação incessante da auto-valorização do Capital. Circulação do que “é
absolutamente urgente gastar. Se não se gasta, isto produz toda forma de
239
consequência” .
Esta racionalidade própria a uma sociedade organizada a partir da
circulação do que não tem outra função a não ser se auto-valorizar, que
determina as ações dos sujeitos a partir da produção do valor, precisa socializar
o desejo levando-o a ser causado pela ​pura medida da intensificação​, pelo puro
empuxo à ampliação que estabelece os objetos de desejo em um circuito
incessante e superlativo chamado por Lacan de mais-gozar. Assim é possível
afirmar que “subjetivação ‘contábil’ e subjetivação ‘financeira’ definem em última
análise uma subjetivação do excesso de si sobre si ou ainda pela ultrapassagem
240
indefinida de si” .
Como se trata, porém, de uma lógica contábil e financeira, em momento
algum o excesso deve colocar em questão a normatividade interna do processo
capitalista de acumulação e desempenho. Em momento algum o excesso implica
quebra das ilusões de autonomia que orientam os indivíduos empresariais em
suas relações por propriedade. Pois este é um excesso quantitativo que não se
transforma em modificação qualitativa. Sob a forma-empresa, ao contrário, todo
excesso é financeiramente codificável, é confirmação do código previamente
241
definido . Como diria Hegel a respeito de outros fenômenos, esse excesso é
marca de uma má infinitude, pois não passa ao infinito verdadeiro do que muda
sua própria forma de determinação a partir de si, do que é infinito por realizar-se
produzindo paradoxalmente a exceção de si. Uma exceção que, ao ser integrada,
modifica processualmente a estrutura da totalidade anteriormente pressuposta.
Antes, ele é o infinito do ruim do que é sempre assombrado por um para além
que nunca se encarna, para além cuja única função é marcar a efetividade com o
selo da inadequação, do gosto amargo do “ainda não”. A análise do capitalismo
sempre precisou de uma teoria dos dois infinitos.

238
LACAN, Jacques; ​Séminaire XVII,​ Paris: Seuil, 1991, p. 93
239
Idem, p. 19
240
DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian; ​La nouvelle ordre du monde​, op. cit., p. 437
241
Desta forma, “não se trata de assegurar aos indivíduos uma cobertura social dos riscos, mas de
conceder a cada um uma espécie de espaço econômico dentro do qual podem assumir e enfrentar
riscos” (FOUCAULT, Michel; ​O nascimento da biopolítica​, op. cit., p. 198)
Por fim, é importante salientar que um ideal empresarial de si baseado na
dinâmica de maximização de performances exige a flexibilização contínua de
normas tendo em vista o crescimento de quem vence relações de concorrência. O
sujeito neoliberal é muito mais um agente calculador de custos e benefícios do
que um sujeito a quem se espera a conformação às normas sociais. Ele não segue
normas positivas, mas calcula resultados e por isto, flexibiliza normas
continuamente. Pois sendo a concorrência o valor moral fundamental do laço
social, uma versão mercantil da luta hobbesiana entre os indivíduos, cabe ao
Estado assegurar as condições de possibilidade no interior das quais sua
violência possa desdobrar-se. Tais condições fundamentam-se, por sua vez, na
tradutibilidade geral, na conversão sempre possível da violência da concorrência
em flexibilização contínua de normas e formas. A violência contra o outro se
converte em violência contra as formas e normas que pareciam determinar o
outro e que permite ultrapassá-lo.
Desta forma, através da flexibilização normativa, a forma de vida
neoliberal traduz a violência da estrutura pulsional polimórfica e fragmentária -
que anteriormente parecia ser o fundamento libidinal da revolta - para a crítica à
funcionalização e à fixidez das identidades sociais. Este é um ponto importante,
pois é necessário que os sujeitos aprendam a desejar a flexibilização, não apenas
devido às promessas de realização e de ganho presentes no capitalismo, mas
também devido à tentativa de transformação da flexibilidade em expressão
natural da dinâmica pulsional dos sujeitos, à variabilidade estrutural de seus
objetos. Se o neoliberalismo pode contar com o consentimento moral ao risco
ligado à precarização resultante de processos de flexibilização próprios a modos
intermitentes de trabalho baseados em “projetos”, deslocalizações contínuas e
reengenharias infinitas, é porque tal flexibilização parece traduzir a pulsão em
seu ponto mais insubmisso. Todo consentimento moral fundamenta-se em um
consentimento pulsional mais profundo. Assim fica mais fácil marcar toda recusa
a ela como covardia moral e infantilismo.
No entanto, há de se lembrar como a flexibilização não implica
desarticulação dos quadros de regulação, mas apenas seu deslocamento. O
enfraquecimento de estruturas institucionais com sua capacidade de assistência
e amparo, assim como o enfraquecimento de capacidade de produção de lugares
e identidades sociais, além de normas fixas, dá lugar à mutação das instituições
sociais (Estado, escola, igreja etc.) em empresa. Todas elas começarão a
funcionar a partir de uma mutação na qual suas lógicas se adaptarão à lógica
empresarial. O desamparo provocado pelo enfraquecimento da capacidade
institucional de assegurar condições mínimas de defesa nas relações trabalhistas
é pago pelo amparo produzido pelo discurso do indivíduo como promessa de que
toda experiência poderá ser objeto de cálculo de utilidade, de interesse, de
satisfação, amparo produzido pela injunção a ser plenamente um indivíduo
empreendedor de si como condição para o reconhecimento social e a
auto-realização pessoal.
Desta forma, não se trata mais de regular através da determinação
institucional de identidades, mas através da internalização do modo empresarial
de experiência, com seu regime de intensificação, flexibilidade e concorrência. A
regulação passa assim do conteúdo semântico dos modelos enunciados pela
norma ao campo de produção plástica dos fluxos que se conformam ao modo
empresarial de experiência. A regulação social poderá produzir uma das mais
impressionantes características do modelo disciplinar neoliberal, a saber, sua
capacidade de construir espaços de “anomia administrada”, isto ao assumir
situações de anomia na enunciação das conformações normativas, mesmo
guardando a capacidade de administrá-lo através da regulação do modo geral de
experiência. A biopolítica das sociedades capitalistas contemporâneas se
transforma assim em uma peculiar gestão da anomia.
É com tais processos em mente que podemos entender as mutações da
corporeidade na era neoliberal. Tais mutações poderão nos mostrar como a
biopolítica própria ao neoliberalismo não poderia, de fato, ser compreendida
através do impacto de estruturas normativas disciplinares que funcionariam a
partir de exigências de conformação a mandatos simbólicos claramente
determinados. Ela estaria vinculada à conformação dos sujeitos a certa forma de
indeterminação absorvida pelo modo de funcionamento normal do capitalismo
atual. É necessário que eles organizem sua experiência subjetiva naquilo que ela
tem de mais decisivo, a saber, em seu modo de relação com a diferença, através
desta forma de circulação financeira da indeterminação. É necessário que tal
organização seja corporalmente sentida, que ela tenha uma realidade corporal.

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