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CENTRO UNIVERSITÁRIO INTA – UNINTA

CURSO DE PSICOLOGIA

DOMENICO TRÉVIA DE OLIVEIRA COUTINHO

DANIEL LOPES

RELATO E REFLEXÃO SOBRE A MORTE E O PROCESSO DE LUTO

GRANJA

2022
Relato e reflexão sobre a morte e o processo de luto:

Eu gostaria de lembrar da primeira vez que ouvi esta palavra, “luto”, durante a vida nós
ouvimos por diversas vezes falar dele, da mesma maneira como vemos em diversos lugares,
assistimos em filmes, lemos em livros, nos emocionamos com as novelas e em outra série de
alusões fictícias a este tão falado “luto”, ao tão famoso processo de encarar a morte, a perda de
um amigo, familiar, bicho de estimação... mas, acho que nunca entendemos de fato o que é o
luto até a vida nos colocar diante de tal situação.

O que trago neste texto é o relato de uma das experiências específicas de luto que passei
durante a vida, relato esse bastante íntimos, o qual eu raramente falo com as pessoas ao meu
redor, eu sempre fui uma pessoa muita fechada em relação a tudo, sempre fui de fechar a cara
e bater de frente com o mundo e meus problemas como se eu fosse de ferro, um dia a gente
descobre que não é... eu tive uma história de vida bem complicada desde meu nascimento, você,
Isabela, que está lendo esse texto e que sabe de parte do meu contexto de vida em relação a
reabilitação, morar na rua e outros fatores que já comentei em sala, tem uma mínima ideia do
que eu possa estar falando.

Bom, não pretendo aprofundar na minha história de vida, embora eu também a considere
um luto, não é sobre esse luto que venho falar, sem mais delongas, vamos lá... acredito que
dentre vários momentos que já passei diante da tão temida/amada morte, o suicídio de meu
amigo Daniel foi uma das piores situações, eram por volta de 02:30 da madrugada de um
sábado, quando recebi algumas mensagens no celular, do Daniel, tirando algumas brincadeiras
e no fim dizendo que me amava e que iria dormir, pois estava tarde, em momento nenhum
aquilo me causou estranhamento, o Daniel sempre foi aquele amigo, brincalhão, amoroso, nada
parecia abalar a alma daquele ser humano.

Nesta mesma madrugada, por volta das 05:00 da manhã, lembro de acordar muito zonzo
e com bastante dor de cabeça, meu celular tocava alto e tinham várias ligações do João Luís,
amigo em comum nosso, eu atendi e ele me pediu que fosse na casa dele, que a mãe do Daniel
tinha ligado falando que algo tinha acontecido com ele, a reação foi imediata, abri a casa inteira,
liguei a moto e imediatamente fui até a casa dele com nossos outro amigo... Daniel morava em
uma das avenidas principais de Granja, a casa tinha dois andares e no andar de cima uma
varanda que dava pra rua, quando entramos na avenida, lá estava ele, pendura pelo pescoço para
o lado de fora da varanda, exposto na avenida para que todos pudessem ver.
Eu não lembro em que momento eu passei pelo o que as pessoas chamam de choque de
realidade, lembro de ter acelerado a moto o máximo que eu pude e de chegar lá já invadindo a
casa e correndo pra varanda, eu, João Luís e Handson, irmão do Daniel, arrombamos a porta
que estava trancada e puxamos o corpo de volta, o pescoço havia quebrado, a pele rasgado um
pouco, acredito que devido ao impacto da queda, o sangue havia subido a cabeça e ele estava
muito roxo... a partir daí eu me lembro pouco do que aconteceu, lembro de descermos com o
corpo pelas escadas, a polícia e uma ambulância chegando, a mãe dele desmaiada de tanto
chorar e uma multidão de pessoas na rua.

O velório foi na noite do dia seguinte, eu devo ter passado umas 32 horas sem comer,
só bebia muito café e fumava um cigarro atrás do outro, eu demorei a ir a casa dele no dia do
velório, mas fui ainda na madrugada, todos da família me abraçavam, davam as condolências e
me agradeciam por ter feito o que fiz pelo filho deles, eu lembro de caminhar calado e ignorando
toda e qualquer pessoa que falava comigo ou que me estendia a mão, andei até o caixão, olhei
pro Daniel, já maquiado, as marcas no pescoço escondidas e a cabeça já com a cor “normal.”

Eu passei uns 40 minutos olhando pra ele, sentindo aquele cheiro de morte e vendo que
o que cheirava a morte era ele, e tudo oque eu conseguia me questionar era por que as pessoas
me agradeciam tanto por ter feito algo, sendo que mesmo tendo feito o Daniel estava ali, morto,
acho que em toda a minha vida eu nunca tinha me sentido tão impotente como naquele
momento, e foi aí que tudo veio, a angústia, o choro desesperado e a vontade de morrer junto
com meu tão amado amigo.

Acredito que o suicídio do Daniel tenha sido a primeira “grande experiência” com o luto
que tive na vida, ou pelo menos, uma das experiências que mais me marcou, isso já fazem por
volta de 6 anos, e todo dia de sexta-feira eu vou ao cemitério visitar o túmulo do Daniel, durante
6 anos eu mantive esse ritual, e pretendo manter pelo resto da vida, lá nós conversamos,
fumamos cigarros e as vezes bebemos uma boa cachaça e no fim da tarde, enquanto o sol se
põe, choramos juntos mais uma vez, não por ele estar morto, mas por sabermos que a nossa
amizade sempre será a mesma, aproveito a deixa do texto pra deixar aqui que eu te amo, Daniel,
você sempre será parte de quem eu sou hoje.

O músico Raul Seixas, em uma de suas composições chamada “Canto Para Minha
Morte” do disco “Há 10 Mil Anos Atrás”, traz uma reflexão sobre a morte e cita o seguinte:
“Cada vez que eu me despeço de uma pessoa, pode ser que essa pessoa esteja me vendo pela
última vez, a morte, surda, caminha ao meu lado e eu não sei em que esquina ela vai me beijar.
Com que rosto ela virá? Será que ela vai deixar eu acabar o que eu tenho que fazer? Ou será
que ela vai me pegar no meio do copo de uísque? Na música que eu deixei para compor amanhã?
Será que ela vai esperar eu apagar o cigarro no cinzeiro? Virá antes de eu encontrar a mulher,
a mulher que me foi destinada e que está em algum lugar me esperando, embora eu ainda não
a conheça? Vou te encontrar vestida de cetim, pois em qualquer lugar esperas só por mim e no
teu beijo provar o gosto estranho que eu quero e não desejo, mas tenho que encontrar, vem, mas
demore a chegar, eu te detesto e amo morte, morte, morte... que talvez seja o segredo desta
vida.” (SEIXAS, RAUL. 3:50. 1976. UNIVERSAL MUSIC LTDA.)

Qual será a hora ou a forma da minha morte? Existem tantas... Será que todos ansiamos
por tal beijo? Por tal criatura vestida em cetim, ou em seu formoso e longo manto preto com
sua foice em mãos... em que momento criamos esse medo ou ânsia de ir ao encontro deste tão
grande mistério da vida, a vida é atravessada por tantas reflexões voltadas para tal momento,
que no fim, deixamos que a mesma passe e esquecemos de viver um processo ansiando por
outro que só irá nos acometer no futuro.

Nas esquinas, nos bares, nas calçadas, nas casas, camas de hospital, cemitérios, bancos
de ônibus e até mesmo passando por você na rua, quantos estão passando por tal reflexão sobre
o momento da morte e sobre o processo de luto em silêncio, seguindo suas vidas, acometidos
por pensamentos e sensações que muitas das vezes eles nem sabem explicar, só sentir, e sentir
já é dolorido o bastante para cada um deles, e para nossa nem tão grande surpresa, não é
demonstrado, pois se mostrar vulnerável é sinal de fraqueza... mas sinal de fraqueza pra quem?
Por que aprendemos tão cedo que temos que suportar toda e qualquer dor sem pedir a mínima
ajuda?

Por fim, acho que de fato nunca entenderemos realmente que tipo de sentimento é o
luto, não é como se fosse algo que seguisse um padrão, entende? Primeiro você sente isso,
depois aquilo e por fim tal coisa, durante o processo nós somos abraçados por uma série de
emoções que não conseguimos entender o por que de estarmos sentindo todas elas, pois não
entendemos de forma concreta pelo oque estamos passando, sabemos que é o luto, mas afinal,
oque é esse sentimento? Por que rimos e depois choramos? Por que sentimos raiva e depois
alívio? Por que odiamos essas sensações e depois acolhemos todas elas? Acho que isso é o que
torna esse processo tão subjetivo, e esse ser subjetivo que nos torna seres humanos, vulneráveis
e aptos a passar por situações como essas, o luto nos mostra a humanidade de cada criatura
viva, que outro sentimento nos torna tão vulneráveis? O tão temido e amado luto e morte pra
mim é isso, é a parte mais humana de cada ser humano vivo que pisa nesta terra.

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